Você está na página 1de 9
AAs veres, de forma demasiadamente simplista, entendemos a critica como uma mera intermediria entre o afastamento de alguns deuses e a consagragao de outros, Mas a ertica modema, aquela que tem 0 riso como instrumento, tem um carter que a faz tnica na historia a impossi- bilidade de se consagrara si mesma em qualquer uma de suas modalida- es, aimpossibilidade de que algumadas formas do espiritoeritico conver- {a-se em ortodoxia ertica, em dogma critico, em catecismo erfico. Por isso, na Modemidade, 0 mesmo riso eritico se destrdi, sem cessar, a si mesmo e tem niilismo como resultado. A ironia critica permanente que se toma a si mesma como objeto é ao mesmo tempo, 0 alimento € 0 ‘Yeneno de nosso mundo, a garantia de seu préprio dinamismo, de sua pro pria abertura. Nietzsche dizia que ante a pretensio de Deus de se otnico Deus, os deuses morreram deri. E mais vale morrerde rirque momrer de endeusamento, No fim, todos mortem, pis até os deuses si init; mas, ‘80 momrer de ir, os deusessalvaram sua divindade enquanto que, ao mor- rer de endeusamento, Deus nio pode se salvar a si mesmo. Noms "Este texto foi eserito pra ser ido €omo wa conferénea, rum semindro entitulado “Formaro pensamenioe pensar a formagio”, que teve hears Universidadede Barcelona, «em 1994, Dato reso ora do texto ea referencias iniits a0 contexo em que fi i, * O.autorretere:sea um tipo de bareteclfdtico, de, usd na catalan. (NT) "Para uma exposigo de conjunt, ver INNERARITY, Daniel, “La ron omotia ys erica hegetiana”, cap. 6 de Hegel ye! Romantcismo, Maxi: Teens, 1993,p, 187 ese. “HEGEL, G,W.F fnrodueciin a ta Eséica. Barcelona: Peninsula, 1979p. 111 SLIPOVETSKY, G.La er del vata. Ensayor sobre elindividuallsne euntempordine. Barcelona: Anagram 1992, “BAKHTIN, M, Teoria y esta de fa novela. Madid: Taurus, 1989, p. 208 °RORTY.R. Contig, ir, and solidarity, Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 73-78. *CORTAZAR, J. Del sentimiato de no esta del todo, ‘ochenta mano. V1, Madrid: Siglo XX1, 1979, p. 32, Lea vueliat da en 9 O ENIGMA DA INFANCIA ‘ou 9 que voi do impossivel 00 verdadeiro “Totes les vis ant piles isi a ere, sau es aft, Les enfants ne savait en. Ces ai, sit Te pets, es enfants om sat en, Marguerite Derus eens os vot tne fan, acques Prévert 1 ee it ro i 25 got a Pilea pepe pete ty so tal ot oc i) Sete aT poe seria ose toe ee ‘coe saberemos de seu desamparo, da violéncia que se exerce sobre elas, Sc Saati sail EG Se aarciapae Liles icaanaeleeena Te esc ota ottagencasrincvde Oe ee caeaen ac nL? Ce ee hse metectonraine Berio i es dena Oanceporne umole pesca es re eon an Tm woman a nim oe Co eran coos ra fae popes Soe so para criangas, Se visitarmos a cidaile, veremos escolas de miisica ppara criangas, escolas de artes plisticas, de danga, centros de lazer, ludo- EE ee ion ase ce Re CE nial cediacoral prvi po a3 imeros planos € projetos para as criangas, feitos tal qual se fazem os Blanos ¢ projetos: com um diagndstico da situagao, objetivos, estratégiase luma série de mecanismos de avaliago. E se nos dedicarmos a conhecer pessoas, encontraremos logo multiddes de professores,psicélogos, anima dors pias, bade sca, pedagogies eces diversos ¢ todo tipo de gente que trabalha com criangas que, como bons especialistas e bons téenicos,tém tamibém determinados objetivos, apli- cam determinadas estratégias de atuagioe slo eapazes de avalar, segun- 40 certs critérios, a maior ou menor efiedcia de seu trabalho, A inflincia € algo que nossos saberes, nossas priticas © nossas ins- tituigdes j capturaram: algo que podemos explicar e nomear, algo sobre © qual podemos intervir, algo que podemos acother, A inflincia, desse Ponto de vista, ndo é outra coisa sendo o objeto de estudo de um conjunto ddesaberes mais ou menos cientificos, a coisa apreendida por um conjun- to de agdes mais ou menos tecnicamente controladas e eficazes, ou a suria de um conjunto de insttuiges mais ou menos adaptadas a suas nnecessidades, 8 suas earacteristicas ou as suas demandas. Nés sabe- "0s 0 que so as eriangas, ou tentamos saber, ¢ procuramos falar uma lingua que as eriangas possum entender quando tratamos com elas, nos lugares que organizamos para abriga-las, [Nao obstante,e ao mesmo tempo, ainfincia 6 um outro: aquilo que, sempre além de qualquer tentativa de captura, inquieta a seguranga de hnossos saberes, questiona o poder de nossas priticas e abre um vazio {em que se ahisma o edificio bem construido de nossa instituiges de acolhimento. Pensar a infincia como um outro 6, justamente, pensar sa inquietagdo, esse questionamento e esse vazio. E insisir uma vez mais: as eriangas, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que ndo compreendem a nossa lingua A infancia, entendida como um outro, ndo ¢ 0 que jd sabemos, mas lampouco € 0 que ainda niio sabemos. O que ainda & desconhecido _justifica 0 poder do conhecimento e inquieta completamente a sua segu= ranga., O que ainda nio sabemos nao € outra coisa seni 0 que se deixa ‘medir € anunciar pelo que sabemos, aquilo que 0 que sabemnos se dé ‘como meta, como tarefa e como itineririo pré-fixado. A arrogincia do Saber ndo apenas esté na exibigdo do que ja se conquistou, mas também ‘Ro tamanho de seus projetos e de suas ambigtes, em tudo aquilo que ainda esté por conquistar, mas que jé foi assinalado e determinado como territ6rio de conquista possfvel. De outro lado, a infincia como um outro nao se reduz ao que jé fomos capazes de submeter & I6gica cada vez mais refinada de nossas priticas e de nossas instituigdes, mas tampouco pode se confundir com 0 que ainda nao pudemos submeter: Aquilo que ainda nos resist justifica nosso poder e de forma alguma o questiona. Os «que sabem continuam investigando, os politicos eontinuam fazendo planos € projetos, as grandes lojas continuam atvalizando seus catélogos, os pro- dutores de espeticulos continuam fabricando novos prexiutos os profissio- ais continuam methorando suas pritieas e os lugares nos quais acolhe- ‘mos as eriangas eontinuam aumentando ese adaptando cada vez mais aos seus usuarios. Todos trabalham para reduzr o que ainda existe de desco- nhecido nas eriangas e para submeter aquilo que nelas ainda existe de selvagem, Entfo, onde esto a inquietagao, oquestionamento ¢ 0 vazio, se a inffincia ja foi explicada pelos nossos saberes, submetida por nossas priticas ¢ capturada por nossas insttuigdes,e se aquilo que ainda nao foi explicado ou submetido jé esti medido e ussinalado segundo os eritérios ‘met6dicos de nossa vontade de saber ¢ de nossa vontade de poder? ‘Ainancia como um ontro nao 6 0 objeto (ou 0 objetivo) do saber, mas € algo que escapa a qualquer objetivagdo ¢ que se desvia de qualquer “objetivo: no ¢ o ponto de fixagio do poder, mas aquilo que marca sua linha de declinio, seu limite exterior, sua absoluta impoténcia: nfo & 0 que esti ‘presente em nossas insttuigdes, mas aquilo que permanece ausente ¢ nio- “abrangivel, brlhando sempre fora de seus limites. Assim, a alteridade da infincia nao significa que as criangas ainda resstam a serem plenamente ‘captutaveis por nossos sabetes, nossas prticas € nossasinsttuigSes; nem sequer significa que essa apropriagdo talvez nunca poderdrealizar-se com pletamente. A alteridade da infincia€ algo muito mais radical: nada mais, nada menos que sua absoluta heterogeneidade em relagio a n6s © a0 ‘nosso mundo, sua absoluta diferenga. E se a presenga enigmistica da in- fncia é a presenga de algo radical e imedutivelmente outro, ter-se-d de ppensi-la na medida em que sempre nos escaps: na medida em que ingu {eta 0 que sabemos (¢ inquieta a soberba da nossa vontade de saber), na medida em que suspende 0 que podemos (e a arrogiincia da nossa vontade de poder) e na medida em que coloca ém questdo os lugares que constri- fos para ela (e a presungio da nossa vontade de abarcé-la). Af esté a vertigem: no como a alteridade da infancia nos leva a uma regio em que nfo comandam as medidas do nosso saber € do nosso poder. ass: Na medida em que encarna o surgimento da alteridade, a inféncia inunea € 0 que sabemos (€ 0 outro dos nossos saberes), mas, por outro lado, ¢ portadora de uma verdade & qual devemos nos colocar& disposi- ‘slo de escutar; nunca é aquilo apreendido pelo nosso poder (é 0 outro {ue no pode ser submetido), mas ao mesmo tempo requer nossa iniciae tiva; nunca esté no lugar que a ela reservamos (6 0 outro que no pode ser abarcado), mas devemos abrir um lugar para recebé-la. Isso € a experiéncia da erianga como um outro: o encontro de uma verdade que ‘nao aceita a medida do nosso saber, com uma demanda de iniciativa que no aceita a medida do nosso poder, e com uma exigéncia de hospitalida- de que niio aceita a medida de nossa casa. A experiéncia da crianga ‘como um outro é a atengao a presenga enigmética da inffncia, a esses seres estranhos dos quais nada se sabe e a esses seres selvagens que hilo entendem nossa lingua, ‘Trata-se aqui, entdo, de devolver a infancia a sua presenga enigmée tica © de encontrar a medida da nossa responsabilidad pela resposta, ante a exig@ncia que esse enigma leva consigo, Inffincia e novidade ‘As palavras simples so as mais dificeis de escutar. Logo acredita- ‘mos que as entendemos ¢ imediatamente, sem ouvi-las, as abandonamos € passamos para outra coisa, Hannah Arendt escreveu uma coisa 180 simples que € dificil de ler (¢ ndo abandoné-la), como algo que todo ‘mundo sabe. Hannah Arendt escreveu: “a educacao tem a ver com 0 hascimento, com o fato de que constantemente nascem seres humanos ‘no mundo”. Onnascimento de uma crianga € um acontecimento que parece com- pletamente trivial e despojado de qualquer mistério: algo habitual que se submete, sem qualquer diiculdade, 2 légica daquilo que € normal, daquilo «que pode ser previsto e antecipado. A extrema vulnerablidade do reeém- nascido toma absoluto 0 nosso poder, que nele nito encontra nenhuma ‘posicio. Sua extrema simplicidade torna absoluto nosso saber, que nele no encontra nenhum obstéculo, Podemos, sem nenhiuma resistencia, pro jetar ele nossos desejos, nossos projetos, nossas expectativas, nossas vidas e nossos fantasmas. Inclusive, sua fragilidade e suas necessida- des abrem-se com absoluta transparéncia aquilo que nés podemos Ihe 186 oferecer, : medida de nossa generosidade, Podemos vesti-lo com nos- sas cores, roded-lo com nossas palavras, levé-lo ao lugar que para ele fizemos em nossa casa € mostrar-Ihe como algo totalmente préximo e familiar, como algo que nos pertence. A crianga expde-se completamen- te ao nosso olhar, se oferece abyolutamente as nossas mis e se subme- te, sem resisténcia, para que a cubramos com nossas idéias, nossos so- nnhos e nossos delirios. Dir-se-ia que o recém-nascido nao € outa coisa seniio aquilo que n6s colocamos nele. (© nascimento nao € sendo o principio de um proceso em que & crianga, que comega a estar no mundo e que comeca a ser um de nés, serd introduzida no mundo e se converteré em um de n6s. Esse processo 6, sem diivida, dificil e incerto, Mas, apesar desse resto irredutivel de incerteza, 0 nascimento poe a crianga em continuidade conosco e com nosso mundo. Desse ponto de vista, 0 nascimento situa-se nama dupla temporalidade: de um lado, 0 nascimento constitui o comego de uma cronologia que a crianga terd de percorrer no caminho de seu desen- volvimento, de sua maturagdo e de sua progressiva individualizagio € socializago; por outro ado, o nascimento constitui um episédio na con- tinuidade da hist6ria do mundo, ‘Mas, ao mesmo tempo, quando uma crianga nasce, um outro apare- ‘ce entre nés. Eé um outro porque é sempre algo diferente da material ago de um projeto, da satisfago de uma necessidade, do cumprimento de um desejo, do complemento de uma caréneia ou do reaparecimento de uma perda. 6 um outro enquanto outro, niio a partir daquilo que nés ccolocamos nela. E um outro porque sempre € outta coisa diferente do {que podemos antecipar, porque sempre esté além do que sabemos, ou do ‘que queremos ou do que esperamos. Desse ponto de vista, uma erianga € algo absolutamente novo que dissolve a solider do nosso mundo e que suspende a certeza que nés temos de nés préprios. Nao € 0 comego de ‘um processo mais ou menos antecipavel, mas uma origem absoluta, um verdadeiro infcio. Nao é 0 momento em que colocamos a crianga numa ‘elagio de continuidade conosco e com nosso mando (para que se con verta em um de nds e se introduza ém nosso mundo), mas 0 instante da absoluta descontinuidade, da possibilidade enigmtica de que algo que iio Sabemos e que nio nos pertence inaugure um nove inicio. Por isso, ‘© nascimento nao é um momento que se possa situar numa cronotogia, mas aquilo que interrompe toda cronologia. Que significa, para a educagao, o fato de que nasgam seres huma- nos no mundo? Que significa que a educago seja justamente uma rela- ‘gio coma infancia entendida simplesmente como uma relago com aquele que nasce? A ediucaglo € 9 modo como as pessoas, as instituigBes e as sociedades respondem & chegada daqueles que nascem. A educagio é 4 forma com que 0 mundo recebe os que nascem. Responder abrir-se a imerpelagao de uma chamada e aceitar uma responsabilidade. Rece- ber é criar um lugar: abrir um espago em que aquele que vem possa hhabitar; por-se & disposigo daquele que vem, sem pretender reduzi-loa Hogica que impera em nossa casa [Nao se trata, entao, de que — como pedagogos, como pessoas que conhecemos as criangas e a educagio — reduzamos a infincia a algo gue, de antemao, jf sabemos 0 que é, 0 que quer ov do que necessita. Por exemplo, um estado psicossomitico que nao seria sendo © momento espeeificoe cronologicamente o primero de um desenvolvimento que a psicologia infantil poderia descrever ea pedagogia,ditigir. Tampouco se trata de que — como adultos, como pessoas que temos um mundo — vyejamos a infncia como aquilo que tems de integrar no nosso mundo, ‘Como se conhecéssemos, de antemao, o resultado desse processo de individualizagdo e de sovializagao através do qual as criangas conver- ter-serdo em pessoas como nés mesmos. Por fim, ndo se trata de que —como adultos, como pessoas que jd estamos no mundo, que ji sabe- mos como é 0 mundo e até onde vai ou até onde deveria ir, que jé temos certos projetos para o mundo — convertamos a infincia na ma- \éria prima para a realizacfa de nossos projetos sobre 6 mundo, de nossas previsdes, nossos desejos & nossas expectativas sobre o futuro, Por exemplo, uma determinada idéia da vida humana, da convivencia humana ou do progresso humano, que a educacao, a partir da infancia, deveria tratar de realizar. Considerar o nascimento como se fosse 0 ponto inicial de um desen- volvimento previsto ou, de outra perspectiva, como se fosse o apareci- ‘mento de uma matéria prima que vamos tomar como ponto de partida para influir na histéria, com vistas a uma nova ordem social sobre a qual 16s fenhamos planejado suas ordens diretivas, nfo € receber o$ que nas- ccem em sua alteridade, mas simplesmente tomd-los como uma expres sto de nds mesmas: do que nds somos ou do que nds quiséssemos ser. Mas a alteridade daquele que nasce s6 pode se fazer presente como tal quando, no encontro com ela, encontramos verdadeiramente algum ou- tro ¢ nao simplesmente aquilo que nés colocamos ali, O nascimento, portanto, implica o aparecimento de algo no qual nds nao podemos reco- nhecer a nés mesmos O nascimento € 0 aparecimento da novidade radical; 0 inesperado ue interrompe toda expectativa; 0 acontecimento imprevisto que no pode ser tomado como a conseqiiéncia de nenhuma causa € que nio pode ser deduzido de nenhuma situagao anterior; o que, longe de se inserir placidamente nos esquemas de percepcio que funcionam no nosso mundo, coloca-os radicalmente em questio. Nao & surpreen- dente, entio, que Hannah Arendt tome como emblema do nascimento fesse que teve Ingar numa aldeia chamada Belém, hi uns dois mil anos, O nascimento de Jesus representa, para ela, a expressio mais ida e condensada das qualidades de todo nascimento: 0 milagre do aparecimento da novidade radical no mundo e a possibilidade sempre aberta da inauguragio de um novo comego na hist6ria, O nascimento de Belém, como modelo de todo nascimento, ¢ 0 acontecimento ines- perado que interrompe a seguranga do mundo ¢ a continuidade da his- {6ria, Por isso, para Hannah Arendt, a infincia entendida como 0 que nasce é a salvaguarda da renovagao do mundo e da descontinuidade do tempo. Desse ponto de vista, 0 naseimento constitu’ um verdadeiro acontccimento que nio se deixa inserir na idéia de temporalidade & qual nos habituaram as eiéncias modermas: aquela em que o tempo nto E seniio o quadro vazio e homogéneo em que se sucedem 08 fatos, segundo certas leis de causa-c-efeito ou de vondigio-conseqiéneia. Se aquele que nasce pudesse se inserir nesse tipo de temporalidade ‘continua e linear, o naseimento nao seria, absolutamente, a aparigio de algo novo nem, naturalmente, a promoga0 de umn futuro indefinido, aberto e radicalmente desconhecido, nascimento nos introduz, melhor di- zendo, num tempo em que 0 futuro nio é a consequéncia do passado.e ‘em que o que vem ao mundo nao & dedutivel do que ja existe no mun- do, Pelo fato de que constantemente nascem seres huumanos no mun do, 0 tempo est sempre aberto a um novo comego: ao aparecimento de algo novo que 0 mundo deve ser eapaz.de receber, ainda que, para recebé-lo, tenha de ser capaz de se renovar; & vinda de algo novo a0 qual tem de ser capaz de responder, ainda que, para responder, deva ser ceapaz de se colocar em questo. 189 Uma nota sobre o totalitarismo ‘Num liveo dedicado a analisar a I6gica do sistema totalitério, Han- nah Arend! faz uma observagio complementar asta teoria da novidade ‘radical, enquanto inscrita no proprio fato do nascimento, Nessa observa- «20 hi uma equivaléncia entre o terror totalitio e a destruigio da novi- dade inscrita no nascimento. Diz. Arendt: “A necessidade do terror nas- ce do medo de que, com o naseimento de cada ser humano, um novo comego se eleve e faga ouvir sua vor, no mundo”, Se voltarmos a0 nascimento de Belém como modelo de todo nascimento, 0 terror estaria, cencarnado no infanti tem medode que o nascimento de algo novo ponha em perigo aco dade do seu mundo. Daf ato totalitirio por exceléncia: matar as erian- ‘688, para eliminar do mundo a novidade que poderia ameagé-lo, (sistema totalitério & uma ordem estavel e estabilizada, a qual re- pugna a incerteza, Por isso, o fotalitarismo supe a pretensio de projetar, planificar ¢ fabricar o futuro, ainda que para isso tenha de antecipar ¢ prodizr, também, as pessoas que viverdo no futuro, de modo que a con- tinuidade do mundo permanega garantida. O terror totlitario poder iden- Lificar-se, entdo, coma redugio e, no limite, com a destruigo da novida- de inscrita no nascimento e com a correspondente pretensio de escre- ver antecipadamente a hist6ria. Deverfamos nos perguntar, cntio, até que ponto toda educagio, entendida como a realizagiio de wm projeto, reduz.a novidade da infancia no sentido em que a reconduz as condigdes existentes ¢ a faz dedutfvel daquilo que ja existia, Deveriamos nos per zguntar, em suma, pelo alcance dessa frase oélebre ¢ provocadora que escreveu o heterSnimo de Antonio Machado, Juan de Mairena: “houve lum pedagogo: chamava-se Herodes”, Que significa essa identificagao entre pedagogia ¢ totalitarismo? Ou, dito de outro modo, quais so as rmiltiplas faces de Herodes? No nosso século, talvez tenha sido o nazismo ¢ 0 estalinismo 0 rosto bifronte mais evidente com o qual o terror totalitério se mostrow para niés. Mas esse rosto € equivoco por duas razées. Por um lado, hé, em ‘ambos os sistemas, uma supervaloragdo da juventude: a juventude € trans formada num valor quase absoluto, em um fim em si mesma, em uma obsessio publicitria, emum objeto de culto. Por outro lado, a pretensiio aparente de ambas as formas de totaitarismo ndo é tanto conservadora quanto revolucionsria: nfo se trata tanto de assegurar a conservacio de 190 ‘um mundo vetho, quanto de fabricar um mundo novo. Se a politica tem a pretensio de mudar a realidade em fungio de um conjunto mais ou menos ccoerente de projetos,a politica totalitaria €a que pretende mudé-ta absolu- tamente em fungao de um dnico projetoe eliminando, pela forga, todo tipo deresisténciae todo projetoalternativo. O toalitarismo concebe a politica como uma pritica orientada a realizagio de uma idéia; € 0 terror inscrito na politica totalitéra deriva da assimetria entre a idéia que deve ser reali- zada. a faticidade do mundo que ela opde resistencia: sea realidade nto se ajustaidéia, pior para a realidade. Desse ponto de vista, © nazismo € 0 estalinismo matam as criangas 4 medida que as convertem na encarnag0 de uma idéia toalitiria de organizagaio do mundo e no instrumento de uma pritica totalitiria de transformagio da realidade. Hitler ¢ Stalin sio as novas faces de Herodes, porque convertem o enigma daquele que nasce ‘num meio para produzir um futuro previsto de antemio, Se aiss0 acres-

Você também pode gostar