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Copyright © Elen Mclsins Wood, 1995 Copyright desta edigio © Boiterpo Editorial, 2003 Tula oxiginal: Democracy Agus Capitan Cambridge, Cambridge Universiry ress, 1995 Dirctosadguiides para o Brasil pla Botempo Ealtoria) Tradugdo Pavlo Cert Casanheira Reviso Sandka Regina de Soura ‘Mauricio Balthazar Leal (rice renisive Daniela Jinkings Juliana Zannisi Renata Alcides Capa Antonio Caos Keb! sobre ela de Chord Sil sem lo, 195, ‘Nacional Gallery ofA, Washington, OC Dizgramagio Deserho Soluyses Grificas Editors Wana Joking Ecltor assent Sande Bri Coordenasio de produsto liane Alves de Oliveira Fotolites OESP Impreado sah Gefica © Edltora ISBN 85.7559-008-1 Nenhuma parte dent livto pode ser uilzada fou reprodunida sm a cxpressaaorizasfo da cicora. edigio: argo de 2003 Tage: 2.000 exemplres BOITEMPO EDITORIAL Jinkings EdicoesAssocadar Lic Rus Euclides de Andeade, 27, Perdis (5030-030 Sao Paulo SP Tel fia: (11) 3875-7250 1 3872-6869 email: editora@boitempo.com site: wboitempocors DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL 21000057804 SUMARIO Prefécio & edigao brasileira. 7 Agradecimentos .. u Introdusio. ww 1B PARTE I (0 MATERIALISMO HISTORICO EA ESPECIFICIDADE DO CAPITALISMO so 25, A separacio entre 0 “econdmico” e 0 “politico” no capicalismo.. 27 Repensar a base © a superesteUtta sornsnn 31 Classe como processo e como relagio Hiscéria ou determinism tecnol6gico? nn 99 Histéria ou teleologia? Marx versus Weber 129 PARTE II [ADEMOCRACIA CONTRA 0 CAPITALISMO. 155 © trabalho e a democracia antiga € moderna.. 137 (0 demas versus "ns, 0 powo": das antigas 8s modernas concepaées de cdadania.w. 177 Sociedade civil e politica de identidade . 205 CCapitalismo © emancipagio humana: raga, género ¢ democFaia nun 27 Conclusio 243 Indice remissivo 251 O TRABALHO E A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA. Gao de virias formas de exploragio por coacio os Fotados, era ceramente uma formagio distintiva que indicava uma relagio tnica centre as classes apropriadoras e produtoras. 10s desenvolvimentos politicos forma afetados por ela, desde os ‘onflitos entre democratas e oligarcas nas transagGes da politica democritica para 4 clissica da flosofia grega. As tradigBes politicas ¢ culcurais da Antiguidade clés- fea que chegaram até ns esto, portanto, imbuidas do esptrito do cidadéo raba- Thador e da vontade ancidemocritica que ele inspirou e que informou os textos de grande filésofos. A condigio do trabalho no mundo ocidental moderno, tanto na feotia quanto na pritica, ndo pode ser inteiramente explicada sem que se busque na historia da Antiguidade greco-romana a disposigio distintiva de relag6es entre as classes apropriadoras e produtoras na cidade-Estado greco-romana. \cidente ra radical que, sob esse aspecto, separa o capitalismo modi ‘um papel renovade ¢ pro: fo capitalismo moderno, ter ‘ido eliminada, mas também no sentido de o trabalho livre, apesar de se tornar 4 forma dominante, ter perdido grande parte do status politico ¢ cultural que opinido erudita algo profundamente antiintuitivo tna proposicio de a evolucio das antigassociedades escravagistas liberal moderno ter sido marcada pelo deelini mbém 197 © fato de que o trabalho livre nunca teve a importancia bua esravio no mundo anige. Quando chegam s teat ences sabato de ee efeitos cara os ioridons de Anciguidade dio prividade oluta a escravidio. E consenso geral que a escravidio foi responsével pela estage nao eee Grae da Rom antiga Asucalodewaio con scravidfo, segundo este argumento,produait tm desprezo geal pelo trabalho na tra greg antiga. No curto przo, a esravidéo aumentou a estbilidade da Bs democritica ao unr eidads cos ¢ pabres, mas eausou no longo pazo 0 (ecfinio do império romano sea por sn presenga (como obsticulo ao desenvol mento das forgas produtivas) ou por sua auséncia (8 medida que o declinio na lc escravos impds pressGes teriveis sobre o Estado romano imperial), E assim por diante. Nenhum dees efeitos determinativos atrbutdo ao trabalho lve, Nos pirat suis haved una tents de rsa calves considerar 0 que uma percepsio diferente do trabalho na Antiguidade pode nos informar sobre seu equivalente no captalismo modemma, 12 questio do ‘A DIALETICA DE LIBERDADE E ESCRAVIDAO Poucos historiadores teria hesitado em identifcar lo em identificaraexcravidfo como uma carac- teristcaesencial da ordem socal da Grécia ang, partcularmente de Atenas, talvezafirmassem que a escravidio é, de uma forma ou de outra, : Poetpoorhde ipso de Crt Tol erento ts do clo angot °° NENCIUS mT yf Tc Ching tr Way), Garden i "pm eel ean pe er FINLEY, nia te Cantilo md ge Rede ci 183 163 forma de Estado em que as relagbes de producio entre apropriadores e produtores tenha tido papel central, A questio 6, pelo contririo, que essa relagSes assumiram ‘uma forma radicalmente nova. A comunidede cvica representou uma relacio dire- 12, dotada de I6gica prépria de processo, entre proprietirios e camponeses como individuos e como classes, separada da velha relagio entre governantes e tiitos. Avelha telaglo dicotémica entre o Estado apropriador ¢ os siditos camponeses produtores foi prejudicada de alguma forma por todo o mundo greco-romano, em todos os lugares onde houvesse uma comunidad ctvica unindo proprietérios e cam- poneses, ou sea, onde os eamponeses possulam o statusde cidadios, Isso era verdade ‘mesmo onde, tal como em Roma, a condicio civica dos eamponeses era relativa- ‘mente resirita, Havia, entretanto, diferengassignificaivas entre as condi tocritica Roma e da democritica Atenas. Tanto em Atenas como em Roma, 0 status politicorejuridico do campesinaco impunha restrig6es aos meiosdispontveis de apro- priasio pelos proprietérios e incentivou o desenvolvimento de alternativas, princi palmente a escravidéo. Mas na democracia ateniense o regime camponés era mais restritivo do que na Roma aristocrética e marcou de forma muito mais decisiva 0 conjunto da vida culeura, politica ¢ econémica da democracia, chegando mesmo a ajustar o ritmo ¢ os objetivos da guerra is exigéncias do pequieno agricultor e seu Geni agli Na verdad snds que incenvaseo cece da ra dio, a democracia inibia ao mesmo tempo a coneentrasio da propriedade, limitan- do assim as formas em que se podia utilizar a eseravidio, especialmente na agricultura, Em comparasio, embora o regime arstocritico de Roma fosse restrto de diver- sas formas pela condigio civica e militar do camponés, a cidade-Estado romana era dominada pela lgica do propriectio de terras. A concentracio da propriedade que tornava possivel o uso intensivo de escravos na agriculeura era uma manifestagao importante dessa dominincia aristocrética. Outta manifestagio foi o drama espeta- cular da expansio imperial (em que a partiipagio indispensivel do soldado camponés © tomava vulnerdvel & perda de propriedades em sua prépria terra), uma operacio de apambarcaio deer fit um eval desconecda no mundo tent oi sobre essa fundagio aristocritica que a cidade-Estado deu lugar ao império, e com tle delnou a condigio do camponts cidadgo, Nem ca latifindos eetoves nom uum vasto terrtério imperial, duas das earactersticas definidoras de Roma, seriam ‘compativeis com o regime dle pequenus propticitios da Atenas democritica, Assim, em nenhum outro lugar o padrio tipico de divisio entre governantes e produtores foi quebrado de forma tio completa quanto na democracia ateniense. Nenhuma explicagéo do desenvolvimento politico e cultural ateniense serd com. pleta se nao levar em conta essa formagio distintiva, Embora os confltos politicos cote democrats ligase Arenas nunc enham enn exatamente com ‘uma divisio entre classes apropriadoras e produtoras, permaneceu uma tensio entre Cidadtios que tnham interee na rear do monopi rsociic da com, "aun xl cso da grt, et OSBORNE, Robin. Clea Landay with igus Th Ac Gok ip nd i Conia Loner. 13, BE. ‘en 164 O TRABALHO E & DEMOCRACIA ANTIGA F MODERN digio politica ¢ 0s que resistiam a cla, uma divisio entre cidadéos para quem o Estado deveria servir como meio de apropriacao e cidadaos para quem cle deveria scrvir como protegio contra a exploragio. Em outras palavras, permaneceu a opo- sigio entre os que tinham e os que no tinham interesse em restaurat a divisio entre governantes ¢ produtores. Em nenhum lugar essa oposisio é tio vistvel quanto nos cléssicos da filosofia grega. Sem meias palavras: a divisio entre governantes e produtores é 0 principio fundamental da filosofia de Platéo, no apenas de seu pensamento politico, mas de sua epistemologia. E a sua obra que d a medida real da condigéo do trabalho na democracia ateniense. Entretanto, iso € verdade no no sentido de que o des- prezo evidente de Platio pelo trabalho e pelas capacidades moral e politica dos que fo tolhidos pela necessidade material de trabalhar para viver represent uma nor- ma cultura. Pelo contritio, 0s textos de Platio representam um poderoso contra- ‘exemplo, uma negagio deliberada da cultura democritica. sio do miro de Prometeu em que as “artes prétias * mento da vida civilizada. © herdi do Promezew de Esquilo, aquele que trxz 0 fogo as artes, é um benfeitor da humanidade, enquanto na Antigona de S6focles o Coro canta um hino de louvor is artes humanas ¢20 trabalho (350 e segs). Ea associagio da democracia com a liberdade de trabalho & sugerida por um discurso em As supli- cantes (429 e segs), em que se diz.que entre as béngios de um povo livre esta nao apenas o fato de que 0 governo da lei dé igual direito& justia tanto ao rico quanto 420 pobre, ou que qualquer um tem o direto de falar 2o puiblico, mas também o fato de que o trabalho do cidadso nio se perde, a0 contririo do que acontece nos Estados dlespéticos, nos quais as pessoas trabalham apenas para enriquccer 0s tiranos com sua faina. Também & sem dividasignificativo que a divindade epénima de Atenas, 2 deusa Arena, fosse a padrocira das artes e dos ofcios, e que nfo houvesse em nenhu- ‘ma outra cidade da Grécia templo tio grande devotado a Hefestos, deus da forja, quanto o que foi construfdo no séeulo V a.C., dominando a Agora atenicnse. Mas nenhum desses pedagos de evidéncia confirma de forma tio elogiiente o status do trabalho livre na democracia quanto a reagio de Platio a cle! ‘joann d eda clos Aad, pli seria ne Pligg clei spose no ctl defer on bon cig bs a pls Ea pa a codec dn pl fee ‘en ps fed ecrnpetaren ma hee prs cui i sina (12771278) [oud mane doe pon encloses em Pater ed Sane 137-6, sumer, en ote oa qe howvane buts dion 2 envient scclgc cs etam esinad 3 pem eb ude dere desumacige coms cnn gute inp do pon podutne uta de pret pas utente oto. 165 (GovERNANTES F PRODUTORES: PLATAO VERSUS PROTAGORAS. Em seu didlogo Protégoras, Platao define a orientacio de grande parte de sua bra flosética posterior Aqui cle levantou questesrelativas A vieude, a0 conhe. cimento 8 arte da politica que iriam preocupi-lo em suas obras da maturidade, principalmente na Republica, eo contexto em que essas questées foram levantadas nos diz muito sobre a importancia do trabalho no discurso politico da democra- cia, Nesse didlogo, talvez pela tiltima vez em sua obra, Platio dew atensio, no minimo, razoavel d oposigio, apresentando o sofista ProtSgoras sob uma liz mais ‘ou menos simpética & medida que este constréi a defesa da democracia, a tnica argumentagio sistematica em favor da democracia a sobreviver da Antiguidade. Platioiria passar 0 resto de sua carrera refutando implicitamente os argumentos de Protigoras. Protdgorarse relaciona & natureza da virtude ca possibilidade de cla ser ensina- da. A questio ¢ levantada num contexto explicitamente politico, no momento em. propos, de apren- dizado eensno. Se alguém oferececonslho, alguém que no sjaconsderado coahe- cedor, por mais belo ot rico ou bem-naicido cles, no import: os membros © ‘eeitam ruidosamente ecom desprez,aé que ele ou ea obrigad ae calare desist, ou sjaexpusoe retrado pela plicis por ordens do magistado presidente, E assim que eles secomportam com rlagioa temas que consderam ténicos. M tts de deer slg ev a gon dopa ohomem ques oun pana) conselhos pode ser um constutor, ou mesmo wm fertiro ou sapaeio, mereador ow armador, ou pobre, aside os node boa familia, Ninguém 0 cus, como suede 20s que rlencionei ha pouce, que ese homem nio em qualfcagées tenes, ineapar de ndicar quem oensinou sind assim ent dar conselho, A rrio deve ser que ees no consideram que ete seja wm asunto que poss ser ensinad,* Em sua eexspostaa Séerates, ProtAgoras demonstra que “seus compatriotas agem sisanam chee oatodtca ham cod armen te politicas”®. E assim as questdes epistemolégicas e éticas fundamentais que for. ‘mam a base da filosofia grega, na realidade de toda a tradigiofilosdfica ocidental, so situadas num contexto explicitamente politico, relacionado a pritica demo- critica de permitir a sapateiros ou ferrciros fazer julgamentos politicos. A argimentagio de Protégoras continua, primeiro por uma alegoria destinada a demonstrat que a sociedade politica, sem a qual homens nio se beneficiam das artes € oficios que compdem 0 unico presente dos deuses, nfo sobrevive a menos que a pecgaes 319-3 166 que Séerates define os —e——h— y 500 Estado se vé diante de um projero de OLTRABALHOE. A DEMOCRACIA ANTIGA E MODERNA virtude civica que prepara as pessoas para a cidadania seja uma qualidade universal Passa entio a mostrar que virtude pode ser uma qualidade universal sem ser inata, tuma qualidade que pode ser ensinada, Todo aquele que vive numa comunidade civilizada, especialmente pélis, éexposto desde 0 nascimento-a0 processo de apren- dlizagem que promove a virtude civiea, em casa, na escola, por admoestagéo e puni- «fo e, acima de tudo, por meio dos costumes ¢ das leis da cidade, sua nomoi. A virtude civica tal como a ingua mée, é a um s6 tempo aprendida ¢ universal. O sofista que, assim como o préprio Protégoras,afitma ensinar a virtude pode aperfei- {goar esse progresso continuo ¢ universal, € 0 homem possui as qualidades da boa Cidadania sem o beneficio da instrugio do sofista. ‘A énfase de Protigoras na universalidade da vireude & evidentemente critica para sua defesa da democracia. Mas igualmente importante é sua concepcio do processo pelo qual se transmite o conhecimento morale politico. A vide ¢ ensi- ‘nada, mas o modelo de aprendizagem nfo € tanto a erudigao quanto o aprendizado, [Aprendizado, nas chamadas sociedades tradicionais, é mais que um meio de apren- der habilidades técnicas. “E também’, para citar um notével historiador inglés do século XVIII, “o mecanismo de transmissio intergeracional”, 0 meio pelo qual as pessoas se iniciam nas habilidades de adultos ou em artes préticas particulares, ¢ So, 0 mesmo tempo, introduzidas “na experincia social ena sabedoria comum da comunidade” 6, Nao hi forma melhor de caracterizar 0 processo de aprendiza- gem descrito por Protagoras, o mecanismo pelo qual a comunidade de cidadios passa adiante a sabedoria coletiva, suas priticas, seus valotes ¢ suas expectativas Fundados nos costumes. (O principio invocado por Sécrates contra Protégoras — neste estgio de forma ainda tentativa e pouco sistemtica ~ é que a virtude é conhecimento, Esse prin- cipio viria a se tomnar a base do ataque de Platao & democracia, especialmente em O politico © A Repiblica. Nas mios de Platéo, ele representa a substituigio do aprendizado moral e politico de Protigoras por uma concepcio mais exaltada da virtude como conhecimento filoséfico, néo a assimilagso convencional dos cos- ‘tumes ¢ valores da comunidade, mas um acesso privilegiado a verdades mais altas, universais e absolutas. ‘Ainda assim, Platéo também constréi sua definicio de virtude politica ¢ justi- ga sobre a analogia com as artes préticas. Também ele se bascia na experiéneia Comum da Atenas democritica, apelando para a experiencia familiar do cidadéo trabalhador a0 invocat a ética do artesio, techn?. Mas, desta vez, a énfase nio recai ra universalidade ou na transmissio orginica do conhecimento convencional de tuma geragio para a seguinte, mas sobre a epecializacdo, competéncia ¢ exclusivi- dade. Assim como os melhores sapatos so feitos por um sapateiro especialista, também a arte da politica deveria ser praticada apenas por quem nela se especiali- za, Nao deve haver sapateiros e ferreios na Assembléia, A esséncia da justiga no Estado é 0 principio de que o sapateiro deve se ater 4 sua forma. THOMPSON, EP Gomi Common Londe, 199157. 167 Tanto Protigoras quanto Platio colocam os valores culturais da techne, as artes priticas do cidadio trabalhador, no centro de sua respectiva argumentagio politica, ‘embora ofasam com objetivosanttéticos. Grande parte do que se segue na tradicio da filosofia ocidental procede desse ponto de partida. Nao é apenas a filosofia politica cocidental que deve suas origens a esse confito em torno do papel politic de sapateiros ¢ ferrcros. Para Platio, a divisio entre os que governam e os que tabalham com 0 corpo, entre os que governam c sio alimentados € os que produzem o alimento ¢ ‘io governados nao € somente o principio basico da politica. A divisio de trabalho centre governantes e produtores, que & a eséncia da justia na Reprblica, & também a «sséncia da teoria do conhecimento de Patio. A oposigio radical ehierdrquica entre os _mundos sensivel e inteligive, entre as respectivas formas de cognigao — uma oposigao que foi identificada como a caracteristica mais distintiva do pensamento grego e que definiu as bases da ilosofia ocidencal desde ento'” — foi criada por Platio com base ‘numa analogia com a divisio socal de trabalho que exclui da politica 0 produtor. © cust Do TRABALHO LIVRE d , dor, apesar de toda a sua caracter(stica dstintiva histérica, perdeu-se na ‘scravidio!®, Mais uma ver, nfo sc trata de os historiadores nao terem reconhecido 0 fato de sero corpo de cidadios de Arenas composto em grande parte de cidadios que trabalhavam para viver. Pelo contrério, tata-se de que ese reconhecimento nio foi acompanhado de um esforgo simultineo para explora a significagio histérica desse {ato notivel. Como fator determinante do movimento da histria, © trabalho livre no ‘mundo antigo foi eclipsado pela escravidéo,e nia somente pea rao notdvel de terem 1nssos melhores instintos se chocado como os horrores daquela terivel institugio. ( eclipse do cidadio trabalhador na Atenas democritica tem menos a ver com as realidades'da democracia ateniense do que com a politica da Europa moderna. Antes da segunda metade do século XVIII, e principalmente antes das revolugBes americana e francesa, nfo teria sido incomum uma caracterizagio da antiga demo- cracia ateniense como uma comunidade “mecinica” em que a aristocracia era su- bordinada a uma multidio “utilitéra” decidados trabalhadores ~ em comparagio, por exemplo, com Esparta, onde o conjunto dos cidadéos era formado por uma espécie de nobreza, “dos que vivem com fartura de suas préprias rendas, sem se cengajar no trabalho de sua prépria terra nem cm qualquer outto trabalho para se manter"”, Caracterizagdes semelhantes fizeram parte de uma longa tradigao "Fees Gene cdow om quo em Soci Honan he Eason of Ht in Chis nd Gre th Sih tothe Second Ceary BC” In Mh ond Set dnc Gdn Pere Yan, Sa 198, [eb Me ‘vind Gr amg Ri ei, at Olygi, 1999} ea seach em me lv, Pant Cite and Sl ep HARRINGTON, fines "TheCommontalth of Ocxns: Te Pla irksome Haren.) G. Took sd Cambre, 1977p. 259-00 Hangin oma empresas enn de abn de ein, 168 OTRABALHOE A DEMOCRACIA ANTIGA B MEISRINY ue se estende no passado até a propria Grécia antiga e a identificagio de demo- ‘acia com a dominagio por um demos “atliarsta, Nesses relatos da democra- cia, 0 cidadso trabalhador ainda estd vivo ¢ forte. ‘ocorreu uma ateracio significativa. A multidéo A anplicagio dessa mudanga oe me ie 0s historiadores de repente descoberto @ extensio da escravidio na democracia de Atenas. Escritores precedentes dela jt rnham ciéncia. Montesquieu, por exemplo, chegou mesmo a superestimar em muito fo ntimero de escravos em Atenas; ¢ como autor de um influente ataque contra & escravid leno tei inna a encontrar justifcativs pre as manifestagées regas. Mesmo assim, ele insistiu que a esséncia da democracia ateniense — a0 con- ere ia de Eypana ojos cdadion cram “brigados ao Gco” ~ era que sus id dios esbalhavam pars vier. Nem mesmo a aparncs de rlé oxo pode ser explicada por uma nova preocupacio com os males da excraviddo, gerada por uma areas past opiate dade das Revolugées. Pelo contritio, a ralé ios nase sobetad das mente dos antidemocrasraciondson (Os principais culpados foram, no primeiro caso, os historiadores britanicos que exctever primes histra poieaenarraias modenassobrea Grécia Antiga com o objetivo explicito de advertir os seus contemporineos contra os perigos da democracia. O mais importante entre les foi William Mitford, mem- bro do Téri, proprietério de terras e opositor da reforma parlamentar, que escre- ‘yeu uma influente histéria da Grécia publicada em varios volumes entre 1784 € 1810. Quando, no perfodo em que estava escrevendo sua obra, estourou a Revo- luggo Francesa, ee interrompeu a narrativa para explicar por que os ingleses ha- viam sido poupados daquele mals e sua explicacio se relacionava com as formas pelas quais os ingleses eram diferentes da Franga moderna ¢ da antiga Atenas. A Inglaterra gorava de harmonia sem paralelos entre os “virios niveis de cidadania”, a0 passo que a Grécia (e a Franca) carecia de mecanismo semelhante de harmonizacio. Em particular, por toda a Grécia, os nobres¢ 08 rcos, atendidos por esravos nfo apenas como empre- gados doméstcos, mas como agricultorese artesios,tinkam poucas ligagBes com Thultge dos mais pobres,« apenas pars governé-los nos Estados olipirquicos. © nos dlemocritcos para temé-los,adulé-los, importundclos e, ou engané-los, ou por eles serem comandados. Nenhium ineresse comum unia as duas desrigbes de homem (..}" resultado foi uma multidio licenciosae turbulenta, “cidadios sem propricdade, sem industria etalvez ser objetos de industria’, uma multiiio ociosa, mantida pela ‘escravidio e por pagamentos piblicos, sempre pronta a pilhar a riqueza dos ricos™. SSECONDAT Chala de Buon de Monee, TheSpitfie Lew Nora ek 149. AS. Eat: Oop dar i Bata, 4 Uni 98D Sy4ETFORD, Wiliam, Te Hizey of Grae al, Lone 1814p 345. deme, p16 169 Diane 2014 CU THA CAPTTALEEMO. Mas, se Mitford representa um exemplo particularmente extremo de retérica antidemocritica, a mesma multidio ociosa aparece em obras muito mais sdbrias e cruditas 0 longo do século seguince. Na influente histéria econdmica de August Baickh, a escravidao e os pagamentos publicos mais uma ver sfo fontes de corrupgio da democracia, acostumando a multidéo & “indoléncia” e dando a ela o lazer de participar da politica, “ao passo que nos paises em que a escravidio nao existia, os cidadaos, obrigados a trabalhar para garancir a propria sobrevivéncia, néo tinham tanta disponibilidade para se empregar nos negécios do governo”. O resultado foi {que “Mesmo na mais nobre das ragas da Grécia, entre as quais os atenienses dever set relacionados, a depravacio e a corrupcio moral predominavam entre todo 0 povo"®. E mesmo Fustel de Coulanges atribuiria a turbuléncia da Grécia antiga & auséncia de principios econémicos que teriam compelido ticos e pobres a viver juntos em bons termos, como reriam feito “se, por exemplo, um tivesse necessida- de do outto ~ se 0s ricos no pudessem ter enriquecido sem convocar o trabalho dos pobres, ¢ se os pobres pudessem ter encontrado meios de vender o proprio trabalho para os ricos"™., Na realidade, “o cidadio encontrava poucos empregos, tinha pouco a fazer; a falta de ocupagio logo o tornava indolente. Como via ape- nas escravos a trabalhar, le desprezava o trabalho”. E assim por diante ‘Nenhum desss escritores desconhecia que os cidadios ateniensestrabalhavam como agricultores ou artesios. A questio nio era tanto 0 fato de eles no trabalha- rem, mas o de eles nao trabalharem o suficiente e, acima de tudo, o fato de nio servirem, Sua independénciae o lazer de que desfrutavam para poder participa da politica foram a causa da condenagio da democracia grega. Para Mitford e Béckh, « participagio da multidao cra um mal em si mesma. Para o mais iberal Fustel, 0 smal eta que, na auséncia das formas tradicionais de controle politico, se fizia necesséria uma espécie de disciplina econdmica tornada possivel pela sociedade ‘moderna pela necessidade material que forga os trabalhadores sem propriedade a vender sua forga de trabalho por um salirio. Em outras palavras, faltavam o Esta- do e a economia burgueses modernos. Mas, em todos esses exemplos, a indepen- déncia do cidadio trabalhador foi consistentemente traduzida como indoléncia da ralé ociosa, e com ela veio a predominancia da escravidio. Os efeitos dessa revisio histérica foram cnormes, estendendo-se para muito além das motivagées antidemocriticas originais de historiadores como Mitford. A ralé ociosa cobriu desde a descrigéo da democracia de Hegel, na qual a condigdo bsica da politica democratica era serem os cidadios liberados da necessidade do twabalho e “que aquele que entre nés ¢ executado por cidadios livres ~ 0 trabalho dda vida didria ~ deveria ser executado por escravos”®, até a inversio marxista da ralé ociosa no “modo escravista de produsio” 2SBOECKH (Beck), August. The Publ comms of Ahem 1842, p. 611-14, “ FUSTEL de COULANGES, Numa Deni. The dni Ci, Gan Ci 397 (Eas; Cidade aie Sto Pro, Hema 1975 PHEGH, 6. W. hin iy Ta) Ste, Nn Yo 93.36 Eb Fi ii 170 OTHAAALIIO EA TEMIICHACIA ANTIIGA F MODTINA Entretanto, hi aqui um paradoxo, porque o interese intelectual pela eseravidio cra muito menor em propor que o pro weoegieoatbuido a ela". Os anide- ‘mocratas que levaram os escravos & sua posigfo proeminente pelo uso do tema da ralé ociosatinham interesse muito menor em explorar 0 préprio tema da escravidio do que em desacteditar a multidéo democritica. Do outro lado, os liberais que invocaram o exemplo da Grécia antiga em defesa da reforma politica moderna esta- vam ainda menos ansiosos em se deter no embarago representado pela escravidio, enquanto, dada a sua ambivaléncia em relacio & democracia, & extensio de direitos politicos & classe trabalhadora (por comparagio com o aperfeigoamento das institui- {Ges representativas ¢ das liberdades civis), também no tinham tanto interesse em enfatizar 0 papel da multidio trabalhadora na democracia ateniense (© resultado foi uma curiosa imprecisio em relagio 2 economia politica de ‘Arenas, talvez ainda mais acentuada entre os liberais que entre os conservadores. George Grote, reformador politico ¢ autor de uma celebrada historia da Grécia antiga, menciona apenas de passagem o trabalho dependente, ¢ mesmo assim so- bre os servos da Tessilia ¢ de Creta, em lugar dos esctavos de Atenas; 20 passo que seu amigo, JS. Mill, inclinava-se menos a focalizar as caracteristicas demoendticas da democracia ateniense do que a clogiar seus valores liberais, a individualidade ¢ a variedade da vida ateniense ~ em contraste com of espartanos no-liberais, a ‘quem, na resenha da histéria de Grote que escreveu para a Edinburgh Review, ele descreveu como “os tris e conservadores hereditrios da Grécia". Nenhum desses exemplos ajudou a esclarecer a posigio da escravidio ou do trabalho livre na An- tiguidade classica. (© TRABALHO E 0 “EsefRITO DO CAPITALISM” oct Rt enn engine Sp rcs de Mitford & consticuigio inglesa). Segundo Thompson: © slo XVI exemunhou una mana gual ns reais depth, Ua proporgio substancial da forga de trabalho ficou realmente mais ivr da disciplina do trabalho diiio, mais livre para escolher ent empregadores e entre trabalho e lazer, me- thos prest a uma posigao de dependéncia em rode o seu noe de vila do gus havia sido antes ou do que viia a set nas primeiras décadas da disciplina da fibrica e do relégio. “Trabalhando geralmente em suas pr6prias casas, possuindo ou alugando suas préprias ferramentas, trabalhando para pequenos empregadores, muita vezes em horas irregu- lares em mais de um emprego, eles conseguiram fugir dos controles sociais da casa senhoriale ainda nio estavam sujeitos 3 disciplina do trabalho na Fabrica. trabalho livre trouxe consigo um enfraquecimento dos velhos meios de discipl na social. param ebogo hindice dor fndncs ticos do conhecmento dscns Anisiads, ver FINLEY, Ancet ‘Sy p18 ¢ GARLAND, Sly p14 Versa CANTORA, Lian, elie Csi 1980, p19. THOMPSON, Can p 342. m1 ‘A linguagem com que esses desenvolvimentos foram saudados pela classe do- rminante inglesa € a prépria linguagem da ralé ociosa. Os trabalhadores pobres da Inglaterra, desprezando a “grande lei da subordinagio” e a tradicional deferéncia do servo para com o senhor, aternavam-se entre “o clamot e o mot recendo para toda espécie de maus atos, seja a Insurreigio publica, ou 0 saque privado", e, “insolentes, preguigosos, ociosos ¢ devassos (..) eles trabalham apenas dois ou trés dias da semana’ © mito da ralé ociosa ateniense é, portanto, uma queixa antiga de senhor contra servo, mas acrescida da urgéncia de uma nova ordem social na qual 0 trabalho assalariado e sem propriedade se tornava, pela primeira vez na hist6ria, 0 ‘modo dominante de trabalho. No mesmo processo de desenvolvimento capicali- ‘a, 0 conceito de trabalho passava também por outras transformasGes. Freqilente- mente, se diz que o mundo modemo testemunhou a elevagso do trabalho a um status cultural sem precedentes que deve muito & “ética protestante’, © & idéia calvinista do “Chamamento”. E, com ou sem a “Etica Protestante” de Max Weber, a associagéo do “spirit do capitalismo” com a glorificagio do trabalho tornou-se parte do saber convencional Ainda assim, enquanto 0 capitalismo, com os imperativos do lucro e da produ- tividade do trabalho, trouxe consigo diseiplinas de trabalho mais rigorosas, a glorifi-

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