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RENE GIRARD Tradugao LILIA LEDON DA SILVA Pa RIALIACOES, Impresso no Brasil, outubro de 2009 Copyright © 2009 by Editions Grasset & Fasquelle, 1961 Publicado originalmente na Franca, em 1961, pela Editions Grasset & Fasquelle, Paris, sob o titulo Mensonge romantique et Verité romanesque. Os direitos desta edigio pertencem a ealizagdes Editora, Livraria e Distribuidora Ltda. Caixa Postal: 45321 - 04010 970 - Séo Paulo SP Telefax: (5511) 5572 5363 e@erealizacoes.com.br - www.erealizacoes.com.br Editor Edson Manoel de Oliveira Fitho Revista Tessé de Almeida Primo Capa e projete grafico Mauricio Nisi Goncalves / Estadio Préimpressio e impressiio Prof Editora Grafica Feelse Uf Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reproducio desta edigdo por qualquer meio ou forma, sea ela electronica ou mecinica, fotocdpia, gravagio ou qualquer outro meio de reprodugdo, sem permissiio expressa do editor. Cet onvrage, publié dans le cadre de UAnnée de la France au Brésif et du Programme d’Aide & la Publication Carlos Drummond de Andrade, béneficie du soutien du Ministre francais des Affaires Etrangtres et Europennes « Franca Br 2000 » l'Année de la France aw Brésil (21 april — 15 novembre} ext organise. ett Frauce dar le Commissariat général frangais, le Ministére des Affaires Etrangeres et Européernes, ke Ministire de la Culture et de La Communication et Culturesfrance, aa Briésil bar le Commissariat général brésilien, le Ministere dela Culture et le Ministére des Relations Extérieures. Este livro, publicado no ambito do Ano da Franga no Brasil ¢ do programa de auxilie & publicag#o Carlos Drummond de Andrade, nou coml © apoio do Ministério francés das Relacaes Exteriores ¢ Européias. « Franca. Br 2009 » Ano da Franca no Brasil (21 de abril a 15 de novembro} € organizado na Franca peio Comissariado geral francés, pelo Ministétio das Relages Exteriores ¢ Europeias, pelo Ministério da Cultura e da Camunicagio e por Culturesfrance, no Brasil pelo Comissariado geral brasileiro, pelo Ministério da Cultura e pelo Ministério das Relagées Exteriores. Tiberté « (= Byalte Frater + Fraternité REPUBLIQUE FRANCAISE A meus pais O homem possui ou wm Deus ou um fdolo Max Scheler SUMARIO INTRODUCAO A primeira pedra de uma catedral de Tage Conar de: Caste Ra0d vesrecsaesoes vs senncsrseisunesstennsunmssacceecooen dE CAPITULO 1 OMe (6 HBR BO ST yc eo reen cesarean ennmmr ann araneaa NS CAPITULO 2 Os homens serao deuses uns para 0s outros... CAPITULO 3 As metamorfoses do desejo oo... ees eects tienes tessrecseneee OD CAPITULO 4 OSHC ELO CBCTEN woe cccastccsissennssssnsasincssninsnnnarsesensneaneceucene 123 CAPITULO 5 Open. © ORG secre ee comenmmnmmenemmununraucey TAT CAPITULO 6 Problemas de técnica em Stendhal, Cervantes ¢ Flaubert... 167 CAPITULO 7 Aascese do herdi... 2 ASL CAPITULO 8 Masoquismo e sadismo CAPITULO 9 Os mundos proustianos ..........ccceseseesssseses CAPITULO 10 Problemas de técnica em Proust ¢ em Dostoievski................ CAPFTULO 11 O apocalipse dostoievskiano ... CAPITULO 19 A WOREIISAG wasmmneanaper deren BIBLIOGRAFIA DE RENEE GIRARD occ ccccsesee RETEREN TAS BIBLIOGRAFICAS .. INDICE ANAL{TICO E ONOM: SCO ss 205 see 2287 eS DS A PRIMEIRA PEDRA DE UMA CATEDRAL Jogo Cezar de Castro Rocha! Un porco espinbo (mas com asas) Roberto Calasso propds uma célebre definicio da obra de René Girard: 0 fildsofo francés seria um dos tiltimos porcos-espinhos da his- téria do pensamente. O escritor italiano aludia & disting’o estabelecida ' Professor titular de “Comparative Transatlantic Studies” ¢ Diretor do “Institute for ‘Transnational Studies in Languages, Linguistics and Cultures" da Universidade de Man- chester, Professor licenciado de Hiterature comparada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. No outono de 2009, ocupa a “Helio and Amélia Pedroso/Luso-American Foundation Endowed Chair, no Departamento de Portugués da University of Mas- sachusetts-Lartmouth. Entre outros, autor de Exercicies crfticos — Leituras do contemboraneo (Argos, 2008); O exilio do homem cordial. Ensaios e renisoes (Editora do Museu da Republica, 2004), Literatura ¢ cordualidads. O priblico ¢ o prieado na cultura brasileira (EAUERJ, 1998), “Pré- mio Mario de Andrade" (Biblioteca Nacional). Coautor de Evolution ad Conversion (Con- tinuum, 2008), com René Girard ¢ Pierpaolo Antonello ledicdes em portugués, italiano, espanhol, polonés ¢ francés — “Prix Aujourd hui” 2004). Editor de mais de 20 fivros, entre 05 quais The Author as Blagiarist: The Case of Machado de Assis. Portujuese Literary « Cultural Stud- ies, 13/14. Massachusetts: Center for Portuguese Studies and Culture, Dartmouth, 2006, Nenbum Brasil existe—prquena enciclopidia. Rio de Janeiro: Topbooks Editora, 2003. por Isaiah Berlin entre a raposa e 0 porco-espinho: enquanto aquela sabe muitas coisas, este conhece apenas uma, mas se trata de um grande achado. Na opiniao de Calasso, Girard compreendeu como ninguém o mecanismo do bede expiatério.? Essa observacao espirituosa, & primeira vista Correta, no resiste contudo a um exame atento da obra do autor de Mestira romantica, verdade romanesca —livro fundamental que o leitor tem agora em maos. A segunda “grande coisa” descoberta por Girard pode ser ilustrada a partir da definigao de Calasso. A fim de sintetizar sua compreensao da tcoria mimética, 0 italiano recorreu ao filésofo inglés Isaiah Berlin. Este, por sua vez, tomou emprestada a distingao entre a foca e © porco-es- pinho do poeta grego Arquiloco. Talvez o poeta tenha apropriado o motivo de algum outro poeta ou mesmo da tradig&o oral. Em outras palavras, ha uma sutil corrente que atravessa os séculos, viajando do século VII a.C., época de Arquiloco de Paros, ao final do século XX (e inicio do XXI). Essa corrente tem um nome Préprio na obra de Girard. deseja miméico. Assim, se 0 filésofo francés € um porco-espinho, melhor sera imaginar um porco-espinho com asas, pois o alcance do seu pen- samento néo depende de uma tnica ideia. Muito pelo contrario, sua teoria articula-se através de uma complexa inter-relagao entre diversos conceitos; conceitos esses reunidos por uma intui¢ado pioneira: 4 origem mitética do desejo bumano. Avancemos contudo passo a passo, a fim de melhor apreender a arqui- tetura da catedral armada pelo pensamento de René Girard, Na sintese de um de seus mais importantes intérpretes: “A catedral de Girard’ & uma piramide apoiada em seu vértice, isso é, a hipétese mimética”* E, no fundo, tudo comegou com a publicagio de Mentira romantica, verdade * Roberto Calasso. La rovina di Kash, Milan: Adelphi, 1983, p. 205 * Jean-Pierre Dupuy, “Mimésis et morphogénése", Michel Deguy & Jean-Pierre Dupuy Corgs.) René Girard et le probleme du Mal, Parts: Grasset, 1982, p. 295 14 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA rontanesca. Por isso mesmo, tentemos compreender o significado dos dois termos que compéem o titulo da obra. Mentira romdantica — Verdade romanesca A intuigéo basica foi derivada da leiiura de romances de sécules e con- textos culturais diversas. E, no arco temporal compreendido entre Cervantes e Proust, a recorréncia de um mesmo dado representou o elemento catalisador, cujo pleno desenvolvimento exigiu décadas de es- forgo continuado e levou & formulacao da teoria mimética. Qual o dado comum? A centralidade do desejo na reflexdo acerca da con- digdo humana; reflexo essa presente nos romancistas os mais distintos e distantes entre si. Ora, mas como considerar esse dado comum algo realmen- te inovador? Alguém ignora ou nega sua centralidade? Eis 0 ponto-chave: Girard identificou uma constante que até entéo havia passado despercebi- da: f como se os mais importantes escritores da iradigdo ocidental — posteriormente, 0 filésofo ampliou seu horizonte de referéncias, mas, nesse primeiro livro, li- mitou sua abordagem aos classicos da literatura ocidental — tivessem refletido so- bre uma mesma distincdo fundamental. Mais importante, portanto, do que a obvia diferenga entre suas obras seria a semelhanca no tocante & mesma questo. De um lado, certos autores apresentam o descjo como sendo o elo, por assim dizer, esponténeo entre dois sujeitos. Trata-se do famoso “amar & primeira vista’: Joo conhece Maria ¢ os dois se apaixonam imediata- mente. O outro somente existe como uma instancia da sociedade que na maior parte das vezes impde obstaculos a plena realizagao desse amor: rapidamente o desejo se metamorfoseia em amor e os sujeitos enamora- dos vivem uma “robinsonada" com final feliz. De outro lado, ¢ aqui reside a forca da intuicao girardiana, determinados autores, na dtica do fildsofo francés, os grandes autores, descortinam 15 INTRODUCAO uma inguietante nogdo: dois sujcitos somente passam a desejar-se atra- vés da mediagdo de um terceiro termo. Vale dizer, toda relagio amorosa é sempre triangular, h4 sempre um outro que estimula o desejo de um dos vértices do triangulo. Poucos exemplos possuem a eloquéncia de Dom Casmurro. Como se anunciasse o fundamento da teoria mimética, Ben- tinho denominou o capitulo em que descobriu “seu” amor por Capitu com palavras girardianas, “A dentincia’. Como 0 leitor brasileire saberd de cor, o agregado José Dias decidiu confessar 4 mie de Bentinho sua preocupagdo com a amizade “excessiva" de Bentinho e Capitu. Escon- dido no corredor da casa, 0 futuro narrador do romance tudo escuta. Mais tarde, sozinho, comega a pesar as palavras do agregado: “Com que ento eu emava Capitu, e Capitu a mim? Realmente, andava cosido as saias dela, mas nao me ocorria nada entre nds que fosse deveras secreto. Tudo isto agora me era apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a mim mesmo(...)".4 Esse € 0 procedimento trazido 2 luz na prosa dos grandes autores, ou seja, o desejo é sempre mediado, ele supe uma complexa relagdo triangular, em vez de anunciar 0 contato direto entre dois “coragées simples’. Ao contririo do lugar-comum, tornado dogma com a avalanche ideolégica representada pelo Romantismo, em briga de marido e mulher desde sempre alguém metew a colher. Por assim dizer, todo casal tem o José Dias que merece... Ou a Leopoldina que the cabe, se pensarmes no outro grande romancis- ta da lingua portuguesa, Eca de Queiroz. Luisa, entregou-se & aventura com seu primo Basilio ¢ assim considerou sua nova condigio: "Foi-se ver 4 Machado de Assis. Dom Casmurro. Obra completa. Volume I. Afrinio Coutinho (org.). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986, p. 821. A continuagio imediata da passagem € igualmente reveladora: “(...),€ a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, 0 mal que fizera, ¢ o que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade néo valeria mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas, Eu amava Capitu! Capitu amave-me!”. Bentinho, como se vé, é um dos Ppersonagens mais mimé- ticos da literatura brasileira, pois depende totalmente da presenca de um mediador para saber se atta ¢ a quem ama. 16 MENTIRA ROMANTICA F VERDADE ROMAMESCA ac espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento um:do no olhar; — seria verdade ent&o 0 que dizia a Leopoldina, que ‘nao hav:a como uma maldadezinha para fazer a gente bonita? Tinha um amante, ela!" . A sagacidade da intuic&o girardiana permite que se vis- lumbre na referéncia em tese irrelevante a opiniao da amiga a presenca da mediacao interna. Afinal, por que terfamos casos se nao pudéssemos compartilhar os frutos da transgressio com uma terceira pessoa ou com 2 roda de amigos? No fundo, como chegarfamos a ter casos se uma terceira pessoa nc nos tivesse a0 menos sugerido a possibilidade de zazé-lo? Eis a razio profunda pela qual amor e citime sem pre formam um par indissohivel: o citime assegura a promessa do outro, na presenga real ou imaginaria do rival. Nao importa: o citime assegura que o objeto do meu desejo também ¢ desejado por outros, e, no espelho dos seus olhos, meu desejo ndo pode senao aumentar. A teoria mimética ganhou corpo quando Girard enunciou a pergunta- chave: Como € possivel que tal mecanismo esteja presente em obras x40 diversas como Dom Quixote e Em busca do tempo perdido? De nossa par- te, acrescentamos O Primo Basilio e Dom Casmurro — sem dtivida, o leitor deste livro pensaré em muitos outros exemplos. Retornemos A questéo girardiana: Como é possivel que tal mecanismo tenha atravessado a modernidade ocidental como uma sombra, sem a qual 0 contorno dos grandes romances empalidece e deixa de revelar sua vocacgao propria- mente antropolégica? Mais uma vez, avancemos passo a passo. A tesposta de René Girard abriu as portas para o futuro desenvolvi- mento de sua teoria: 0 desejo humano € fruto da presenca de um mediador, vale dizer, o desejo é sempre mimétice. Nao desejamos dircta, mas indirctamente, e oalvo do nosso desejo ¢ determinado menos por nds mesmos do que > Fa de Queiroz, © Primo Bastio, Episédio doméstico. Sao Paulo: Atelié, 2004, 9.226. 7 INTRODUCAQ pelas redes tramadas pelas mediacGes nas quais nos envolvemos. Fis 0 pecado original do mimetismo: como aprendo a comportar-me a partir da reprodugio de comportamentos jd existentes, sou levado, consciente ou inconscientemente, a adotar modelos ¢ a segui-los como se fossem expressdes do meu desejo auténono. Nao € verdade que, em geral, ao co- megarmos uma nova relacgao amorosa, buscamas ansiosos a opinido dos amigos sobre a pessoa que “escolhemos"? Quantas relagdes adolescentes nao terao terminado antes do tempo porque as amigas desaprovaram @ novo namorado de uma delas? Como ocorreu com Bentinho, preci- samos que aleuém nos “denuncie” para que saibamos identificar nossos préprios sentimentos. Os romancistas que ocultam, consciente ou inconscientemente, a pre- senga fundamental do mediador colaboram para a mentira romantica, se- gundo a qual os sujeitos se relacionam espontanea ¢ diretamente. Por seu turno, os escritores que tematizam a necessdria presenca do mediador permi- tem que se vislumbre a verdade romanesca, segundo a qual os sujeitos dese- jam através da imitagao de modelos, embora muitas vezes, ou mesmo quase sempre, ignorem o mecanismo que ainda assim guia seus passos. Portanto, metira romantica e verdade romanesca designam formas diametral- mente opostas de lidar com a natureza mimética do desejo: enquanto aquela oculta o mimetismo mediante a supresséo do mediador, esta re- flete sobre o desejo mimético através do protagonismo concedido ao mediador ou as consequéncias da mediacao. Formas de mediagao — Conversdo Nesse momento, chegamos a um dos pilares da ieuria mimética: as con- sequéncias da mediacdo, ou seja, do caréter mimético da condicao hu- mana. Ora, se, em alguma medida, 0 processo de aprendizagem supde a reprodugao de modelos prévios, entéo, 0 comportamento humano 18 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA possui um lado potencialmente disruptivo, intrinsecamente associado ao carater mimético. Vejamos: se adoto X como meu modelo, num primeiro momento, ao imité-lo, amplio meu repertério social. Nesse sentido, a imitagao representa um ganho palpavel: assim aprendemos a usar a linguagem e, por exemplo, no campo das artes plésticas, € muito comum que um artista principie reproduzindo 0 gesto de outro pintor até encontrar scu prdprio trago, Em todos esses casos, o impulso mimé- tico € visto como agregador e fundamentalmente positivo. Contudo, através da leitura dos romances estudados neste livro, Girard identificou uma zona sombria no processo mime¢tico. Ora, voltemos & situagéo antcrior: se adeto X como meu modelo, entao, também passare? a desejar os objetos por ele deseiados. Os autores dedicados & andlise da verda- de romtatesca exploram essa dimensio sobretudo no campo das relagdes amorosas: aqui, o triangulo mimético assume a mascara bem conhecida do trigngulo amoroso. O conflito parece inevitavel, pois, se desejo a mesma pessoa que meu modelo, a rivalidade somente tende a crescer e paulatinamente substituird o cardter "neutro” atribuido & imitagio. O desejo mimético, pelo contrario, esclarece que buscarei apropriar-me do objeto desejado por meu modelo. Desse mado, a mediacio pode transformar-se em confronto aberto. Porém, Girard diferenciou dois ti- pos de mediacio. Na mediagdo externa, o modelo esta tao distante do sujeito mimético que 0 risco de confronto desaparece: Dom Quixote adota Amadis de Gaula como modelo supremo, mas, salvo engano, jamais poderé encontrar-se pessoalmente com o lendério cavaleiro. Por isso mesmo, 0 confronto zberto nao terd vez. Dai, Girard deriva 0 coroldrio: quanto mais externa a mediacdo, mais pacifico serd o resultado da imitagéo Pelo contrario, na mediagao ‘nterua 0 modelo se encontra perigosamente préximo do sujeito mimético: é seu professor, set amigo bem-sucedido; seu vizinho, cuja mulher cobigainos — sim, caro leitor, € isso mesmo 0 19 INTRODUGAO que quero escrever: cobicamos: a teoria mimética convida-nos a compre- ender o mimetismo em nossas acées cotidianas, em lugar de defini-lo como uma abstragao sem vinculos com o dia-a-dia, Nessa circunstancia, 0 desejo mimético se converte rapidamente em rivalidade ¢ essa pode originar disputas irreconcilidveis — tema predileto de muitos roman- cistas. Daf, Girard deriva 0 coroldrio: quanto mais interna a mediagéo, mais violento serd o resultado da imitagao. Na visio do autor, a andlise minuciosa da mediagio interna e de seus indmeros desdobramentos caractetiza o romance moderno. Um esclarecimento importante refere-se ao conceito de conversio. No Ambito deste livro, tal conceito possui uma acepgo prépria ¢ nao se confunde necessariamente com o gesto religioso. Ou seja, no momen- to em que me torno consciente da natureza mimética do meu proprio desejo, e nao apenas do desejo numa formulacao puramente teérica, re- conhego que a mentira romantica deve ser substituida pela verdade romanesca — eis 0 sentido do cobicamos do pardgrafo anterior. Esse reconhecimento epistemoldgico importa uma atitude ética: na medida do possfvel, bus- carci evitar as rivalidades decorrentes do desejo mimético. Pelo menos, tentarei driblar suas consequéncias mais sombrias: © acirramento das tensdes e o confronto direto com meu antigo modelo. O sistema mimético — O bode expiatério Os dois corolarios, relativos as duas formas de mediagio, estimularam o pleno desenvolvimento da teoria mimética, através do reconhecimento de sua vocag&o antropoldégica Mensonge romantique et vévité romanesque, publicado em 1961, revelou o me- canismo do desejo mimético na literatura moderna. Jé em La Violence et le Sacré, saido em 1972, Girard estudou sua génese nos primérdios da organizagao social, buscando identificar os mecanismos subjacentes ao 20 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA processo Ccivilizatdrio.* Na verdade, esse processo depende da desco- berta de um mecanismo que permita controlar a violéncia desencadeada pelo desejo mimético, Num resumo muito esquematico,” recordemos a derivagio apropriativa do comportamento mimético: ao imitar meu modelo, terminarei por desejar os objetos que cle posstti e farei 0 pos- sivel para deles me assenhorear. Imaginemos, agora, 0 alcance desse tipo de rivalidade em grupos sociai 0 desejo mimético € contagioso € pode agravar-se na exata proporcao em que um ndmero maior de agen- tes cncontrar-se envolvido no curto-circuito da rivalidade mimética. Se nenhuma forma de controle da dimensio apropriativa da mimesis for desenvolvida, a prépria formagio social pode vir a desintegrar-se em meio aum conflito generalizado, Nesse instante, 0 mecanismo do bode expiatério, tal como descrito por René Girard, oferece uma alternativa impar. No auge da violéncia endégena, um fenémeno ocorre e, devido ao éxito com que permite controlar os efeitos disruptivos da mimesis, tende a repetir-se: a vio- léncia indiscriminada, de todos contra todos, torna-se dirigida contra um unico membro do grupo. Todos voltam-se contra esse membro, canalizando a violéncia que, de geral e inespecifica, portanto andrquica e¢ desagregadora, se converte em violéncia dirigida ¢, por isso mesmo, ordenadora do prdéprio grupo. O bode expiatério & sacrificado ¢ a or- dem retorna: a violéncia, de origem mimética, engendra o sagrado, na “Publicado em portugu€s como A riolincie ¢ 0 sagrado, So Paulo: Paz e erta, 2° Edicgao, 1990. O leitor também pode consultar, em portugues, Un longo argumento do principio ao Fim, Dislogos com Joao Cezar de Castro Rocha ¢ Pierpaolo Antonello. Rio de Janeiro: Topbooks, 2000. Este livro também apareceu, com algumas modificagSes, em italiano, espanhal, polonés, inglés ¢ francés, Na Franca, em 2004, recebeu o “Prix Aujourd’hui", 7 Esta introducao nao é 0 local mais adequado para detalhar os desdobramentos do conflito mimético, pois Mensonge romantique et vérité romanesque lida sobretudo com o fe- némeno da mediagio interna, caracteristico da modernidade, Na introdugao a A Theatie of Enwy: Willian Shakespeare, que também sera publicado por esta editora, tratazei com mais minticia 0 conflito mimético nos primordios de proceso civilizatério at INTRODUCAO figura da restauracao da ordem social, j4 que o bode expiatério passa a ser divinizado, pois seu sacrificio resolve o conflito. Contudo, para fazer justiga a complexidade do sistema mimético é neces- sdrio reconhecer que Girard nao vistumbra a histdria como um processo jinear e teleolégico, mas como uma espiral, dominada por elementos comuns, cujos desdobramentos porém nao podem ser determinados a priori® Tal distingao é fundamental, embora seja negligenciada com frequéncia pelos seus criticos mais afoitos. Girard nunca afirmou que o mecanismo do bode expiatério sempre tera lugar na resolugao dos confli- tos miméticos e que tal resolucdo sempre assumird as mesmas formas. Podem-se muito bem imaginary intimeros casos em que grupos sociais desintegra- ram-se precisamente porque nao desenvolveram um mecanismo de con- trole da violéncia endégena ocasionada pelo desejo mimético. Girard, porém, defende que os grupos sociais que organizaram associagbes cada vez mais complexas descobriram o mecanismo do bode expiatério, cada att a seu modo ¢ sem necessariamente trilbar um caminbo tinico. Posteriormente, esse mecanismo foi aperfeigoado mediante a criac3o de ritos e institui- ges. Por isso, Michel Serres considerou Girard. um auténtico “Darwin das Ciéncias Humanas",® pois sua teoria pretende oferecer uma chave interpretativa da origem da organizagao social, com base na resolugaéo do conflito mimético. Paises shakesperianos? Uma iltima palavra, até mesmo para anunciar o préximo livro de René Girard a ser publicado por esta editora: A Theatre of Exey, um estudo ino- vador da obra de William Shakespeare. Ora, uma parte consideravel das ® Maria Stella Barberi (org). La Spirale mimetique: dix-buit lecons sur René Girard, Par clée de Brouwer, 2001. ® Michel Serres. Atlas. Paris: Julliard, 1994, p. 219-26 Des- 22 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA ideias que fazemos de nds mesmos, e que acreditamos serem “genufnas” do Brasil bem brasileiro, na verdade foram propostas pelo olhar estran- geiro, que assimilamos como se fosse nosso. Um exemplo? Dois ou trés. © mito da miscigenagaéo como a verdadeira contribuigao brasileira & civilizagao moderna foi sistematizado por um alemao — Karl Friedrich Philipp von Martius. O projeto de representagdo da natureza tropical como a marca distintiva da literatura romantica tupiniquim [oi ideado por um francés — Ferdinand Denis.’° A fundacao da mais importante uni- versidade brasileira, a Universidade de Sao Paulo, criada em 1934, teve suas bases langadas através de uma mitica missio francesa — cuja maior contribuig&o foi a de voltar os olhos dos alunos a realidade brasileira. Para seguir na trilha da teoria mimética, poder-se-ia supor que o Brasil e tantas outras nagSes de passado colonial recente sio "Shakespearean countries", ou seja, como ocorre com frequéncia com os personagens do autor inglés, amam através dos olhos de outro, apaixonam-se, por assim dizer, pelos cuvidos e nao pelos ofhos. Na caracterizagao mordaz de um personagem do romance The Minic Men: “Ele era como eu: necessitava da orientagado dos olhos de outro homem".? Logo a seguir, 0 escritor apresentou o corolario dessa atitude: “Tornamo-nos 0 que vemos de nds mesmos nos olhos dos outros”.!* Nao seria ent&o 0 caso, jd que mencio- namos O Primo Basilio, de resgatar pelo avesso 0 Conselheiro Acicio? Ver, de Marie Helena Rouanet, Fteraamente em Berco Esplésdido: a fundagaio de uma lite- ratura nacional, Sac Paulo: Siciliano, 1991. © Recorde-se, nesse sentido, a observacio de Antonio Candido, recordando os anos iniciais da Universidade de Séo Paulo e 0 saldo positivo da missao francesa: “(...) para os professores brasileiros, o chic cra conhecer a Europa. Devam aulas falando sobre a Franga, a Inglaterra, citando linguas estrangeiras, nos puxavam para fora. Os profes- sores estrangeiros, falando francés, nos puxavam para dentro". Sénia Maria de Freitas Rerminiscéicias. Séo Paulo: Maltese, 1993, p. 40 VS. Naipaul. The Mimic Men, New York: Vintage International, 2001, p. 23. Hem, p. 25, 23 INTRODUCAO Be Segundo a 6tica da tcoria mimética somos todos um tanto (ou mesmo muito) acacianos, pois sempre necessitamos de uma autoridade externa Para sustentar nossas afirmagdes, inclusive as mais triviais — talvez, so- bretudo, as mais banais. Em sintes , paises shakesperianos necessitam da mirada alheia, porque ela ajuda a definir a propria imagem. Portanto, s¢ néo me equivoco, a obra de René Girard deve possibilitar uma com- preensao renovada da cultura brasileira: eis a tarefa dos seus leitores nos tristes trépicos. MENTIRA RG). ANTICA £ VERDADE ROMANESCA O DESEJO “TRIANGULAR" Quero, Sancho, que saibas que © famoso Amadis de Caula foi um dos isis perfeitos cavaleiros andantes. Nao disse bem “foi um"; foi o tnico, © primeiro, o mais cabal, ¢ o senhor de todos quantos em seu tempo no mundo nunca houve. Quando qualquer pintor quer sair famoso em sua arte, nao procura imitar os originais dos melhores intores de que ha noticia? Esta mesma regra sc observa em todos os mais offcios ou exer- cicios de monta com que se adornam as repiblicas ¢ assim hé de fazer, ¢ fez, quem aspira a alcangar a nomeada de prudente e sofrido, imitando a Ulisses, em cuja pessoa ¢ trabalhos nos pinta Homero um retrato vivo de prudéncia ¢ sofrimento, come também nos mostrou Virgilio na pes- soa de Eneias 0 valor de um filho piedoso e a sagacidade de um valente e entendido, nao pintando-os ou descrevendo-os como eles foram, mas sim como deviam ser para deixar exemplos de suas virtudes aos homens da posteridade. Deste modo, Amadis foi o norte, 0 luzeiro, € 0 sol dos valentes ¢ namoradas cavaleiros, a quem devemos imitar, todos os que debaixo da bandeira do amor e da cavalaria militamos. Sendo pois isto assim, como €, acho cu, Sancho amigo, que o cavaleiro andante que melhor o imitat, mais perto estard de alcancar a perfeicdo da cavalaria.? Dom Quixote renunciou em favor de Amadis a prerrogativa fundamen- tal do individuo: ele nao escolhe mais os objetos de seu desejo, € Amadis quem deve escolher por ele. O discipulo se langa em diregéo aos objetos gue o modelo de toda cavalaria lhe indica, ou parece Ihe indicar. Cha- maremos esse modelo de mediador do desejo. A existéncia cavalheiresca € a imilagéo de Amadis no sentido em que a existéncia do cristdo 6 a imitagao de Jesus Cristo Na maioria das obras de ficgo as personagens desejam mais simples- mente que Dom Quixote. Nao ha mediador, ha apenas 0 sujeito eo objeto. Quando a “natureza’ do objeto apaixonante nao suficiente para justificar 0 desejo, a atengao se volta para o sujeito apaixonado. Constréi-se sua “psicologia" ou invoca-se sua "liberdade’. Mas o desejo € sempre espontanco. Sempre se pode representé-lo por uma simples linha reta ligando o sujeito e 0 objeto. A linha reta esta presente no desejo de Dom Quixote, porém ela nao é o essencial. Acima desta linha, hd o mediador que se irradia ao mesmo tempo em diregio ao sujeito ¢ em direcio ao objeto. A metéfora espa- cial que expressa essa tripla relacaéo € obviamenie o triangulo. O objeto muda a cada aventura, mas o triangulo permanece. A bacia de barbe- ar ou as marionetes de Mestre Pedro substituem os moinhos de vento; Amadis, em contrapartida, esté sempre presente. No romance de Cervantes, Dom Quixote é a vitima exemplar do desejo triangular, mas esta longe de sera tinica. O mais atingido depois dele é o escudeiro Sancho Panga. Certos desejos de Panga nao sio imitados, os 0 Paulo: E ' Cervanres, Miguel de, Dont Quixote. 156. (N.E.} itora Nova Cultural, 2002. pp. 155, 26 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA que desperta, por exemplo, a visio de um pedaco de queijo ou a de um odre de vinho. Porém Sancho tem outras ambicoes além da de encher o est6mago. Desde que passou a conviver com Dom Quixote ele sonha com uma “ilha” da qual seré o governador, e quer um titulo de duquesa para sua filha. Tais desejos nio surgiram espontaneamente no homem simples que é Sancho, Foi Dom Quixote quem os sugeriu. Desta feita, a sugest&o € oral e no mais literéria. Mas a diferenga nao tem a menor import&ncia. Esses novos desejos formam um novo trian+ gulo cujas ponias estéo ocupadas pela ilha fabulosa, por Dom Quixo- te ¢ por Sancho. Dom Quixote ¢ 0 mediador de Sancho. Os efeitos do desejo triangular sic os mesmos nas duas personagens. Assim que a influéncia do mediador se manifesta, o sentido do real fica perdido, a capacidade de julgamento, paralisada Sendo essa influéncia do mediador mais profunda ¢ mais constante no caso de Dom Quixote que no de Sancho, os leitores rominticos ativeram-se téo somente & oposigéo entre Dom Quixote, o idealista, eo realista Sancho. Essa € uma Oposicao real, porém secundaria; cla ndo deve nos fazer esquecer as analogias entre as duas personagens. A paixio cavalheiresea estipula um desejo segundo o Outro que se opde ao desejo segundo Si préprio, de que a maioria de nos se vangloria de usu- fruir. Dom Quixote e Sancho emprestam ao Outro seus desejos com tal intensidade e tal originalidade, que o confundem perfeitamente com a vontade de ser Si préprio. Amadis, dirao, € uma personagem fabulosa. Sem dtivida, mas a fabula nao tem Dom Quixote por autor. O mediador & imaginério, a mediagaio nao o €. Por tras dos desejos do herdi, esté claramente sugerida a presen- a de um terceiro, o inventor de Amadis, 0 autor dos romances de cava laria. A obra de Cervantes é uma longa meditag3o acerca da influéncia nefasta que podem exercer, uns sobre os outros, os espfritos mais sios. Dom Quixoie, salve no que diz respeito a sua cavalaria, raciocina sobre a7 CAPITULO 1. O DESETO “TRIANGULAR® todas as coisas com muita justeza. Seus escritores favoritos tampouco sao loucos: eles nao levam sua ficcZo a sério. A ilusio é 0 fruto de um singular casamento entre duas consciéncias hicidas. A literatura cava- theiresca, em franca expansao desde a inveng3o da imprensa, multiplica de mancira prodigiosa as chances de semelhantes unides. O deseio segundo 0 Outro e a funcgo “seminal” da literatura também estao presentes nos romances de Flaubert. Emma Bovary? deseja através das heroinas romfnticas das quais sua imaginacao esta repleta. As obras medfocres que devorou na adolescéncia destruitam nela toda esponta- neidade. E Jules de Gauitier quem melhor define esse bovarismo que ele descobre em quase todas as personagens de Flaubert: “A mesma ignoréncia, a mesma inconsisténcia, a mesma auséncia de reacio indi- vidual parecem destina-las a obedecer a sugestio do meio exterior na falta de uma autossugestao provinda de seu interior.”? Gaultier observa ainda, em seu famoso ensaio, que, para atingirem seu objetivo que € 0 de “se conceberem outros diferentes do cue sio”, os herdis flaubertia- nos elegem um “modelo” ¢ “imitam da personagem que eles decidiram * Edicdo brasileira: Gustave Flaubert, Madame Bovary. Sao Paulo: Nova Cultural, 2002, (N.E.} * Ver Jules de Gaultier, Le bovarysme: la psychologie dans U'oeuore de Flaubert. Paris: Ed, du Sandre, 2007. Obs. Algo parecido disse Machado de Assis da personagem Luisa, do romance O primo Bastlio, de Eca de Queiroz: "A Eugénia [de Belzac], a provinciana singela ¢ boa, cuje cospo, aliés robusto, encerra uma alma apatxonada e sublime, nada tem coma Luisa do Sr, Eca de Queirés. Na Eugénia, ha uma personalidade acentuada, uma figura moral, que por isso mesmo nos interessa e prende, a Luise — forga é dizé-lo— a Luisa Zum cardter negativo, e no meio da acao ideada pelo autor, Eantes um titere do due uma pessoa moral.(...) Luisa resoala no todo, sem vontade, sent repulsi, sens couscitncia; Basilio nao faz mais do que empuxd-la, como matéria inerte, que é. Lina vez rolada ao erro, como newbuna fama spiritual a alenta, nao acha ali a saciedade das grandes paixdes criminosas: rebolca-se simplesmente.” “O primo Basilio de Ega de Queiroz" in O Cruzeiro, £6 de abril de 1878. (N.E.) 28 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANFSCA ser tudo o que € possivel imitar, todo o exterior, toda a aparéncia, o gesto, a intonagaa, o traje”, Os aspectos exteriores da imitagio s4o os mais marcantes, mas levemos em considerag&o sobretudo que as personagens de Cervantes e de Flau- bert imitam, ou pensam imitar, os desejos dos modelos pelos quais opta- ram livremente. Um terceiro romancista, Stendhal, insiste da mesma forma no papel da sugesto e da imitac3o na personalidade de seus he- réis. Mathilde de fa Mole toma seus modelos na histéria de sua familia. Julien Sorel imita Napole3o. O Memorial de Santa-Helena* ¢ os Boletins do Grande Exército’ substituem os romances de cavalaria e as extravagan- cias romanticas. O Principe de Parma imita Luis XIV. O jovem bispo de Agde ensaia o ato de benzer diante do espelho, numa mfmica dos velhos prelados veneraveis com quem cle receia nio s¢ parecer o suficiente. A histéria nao passa aqui de uma forma de literatura; ela sugere a todas essas personagens stendhalianas sentimentos e, sobretudo, desejos que elas nio experimentariam espontaneamente. Ao comecar a trabalhar para os Rénal, Julien empresta das Confissées de Rousseau o desejo de comer & mesa dos patrées antes que & dos criados. Stendhal designa pelo nome de vaidade todas essas formas de “cépia", de “imitacio". O vai- doso nao pode extrair seus desejos de seu préprio cabedal: ele os toma emprestado de outrem. O vaidoso €, pois, irm&o de Dom Quixote ¢ de Emma Bovary. E reencontramos em Stendhal o desejo triangular. Nas primeiras paginas de © Vermelho eo Negro®, passeamos em Verriéres com o prefeito da aldeia e sua mulher. O sr. de Rénal passa, majestoso conquanto atormentado, entre seus muros de arrimo. Ele deseja fazer de Julien Sorel o preceptor de seus dois filhos. Mas nao por solicitude * Ver Emmanuel de Las Cases, Ménorial de Sainte Hane. Paris: Ed, du Seuil, 1999. (N.E.) * Trata-se do exército de Napoledo. (N.E.) © Edigao brasileira: Stendhal, O rermelho ee negro.Si0 Paulo: Nova Cultural, 2002. (N.E.) 29 CAPITULO 1 O DESEIO “TRIANGULAR” para com estes, nem por amor pelo saber. Seu desejo nao é espontaneo. A conversa entre os dois cénjuges logo nos revela qual seu mecanismo: — O Valened nao tem preceptor para seus filhos. — Ele bem podia tirar-nos este.” Valenod é o homem mais rico e mais influente de Verritres, depois do proprio sr. de Rénal. O prefeito de Verritres tem sempre a imagem de seu rival diante de si durante as negociagdes com o velho Sorel. Ele faz a este ultimo propostas muito favoraveis mas 0 camponés astuto inventa uma resposta genial: “Recebemos melhor proposta.*” Dessa vez, o sr. de Rénal esta inteiramente convencido de que Valenod deseja contratar Julien ¢ seu préprio descjo redobra.O prego cada vez mais alto que 0 comprador esté disposto a pagar se pauta no desejo imagindrio que ele atribui ao rival. H4, pois, comprovadamente uma imitacao desse desejo imagindrio, e até mesmo uma imitagao bastante escrupulosa ja que tudo, no desejo copiado, inclusive seu grau de fervor, depende do desejo que the serve de modelo. No fim do romance, Julien procura reconquistar Mathilde de la Mole e, aconselho do dandy Korasof, recorre ao mesmo tipo de astticia que seu pai. Ele corteja a marechala de Fervacques; quer despertar o desejo dessa mulher ¢ da-la em espetdculo a Mathilde, para sugerir-Ihe que a imite. Um pouco de 4gua basta para fazer funcionar uma bomba; um pouco de desojo basta para o ser cuja esséncia é a vaidace Julien pe seu plano em execucao e tudo acontece conforme previra. O interesse que por ele manifesta a marechala desperta o desejo de Mathil- de. FE 0 triangulo reaparece... Mathilde, a sra. de Fervacques, Julie o se. de Rénal, Valenod, Julien... O triangulo reaparece toda vez que "Idem. p.16 (NE) “Idem. p. 22 (N.E.} 30 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA Stendhal fala em vaidade, quer se trate de ambigao, de comércio ou de amor. Causa espanto que os criticos marxistas, para quem as estruturas econdémicas fornecem 0 arquétipo de todas as relacées humanas, n3o renham ainda notado a analogia entre 0 ardil do velho Sorel ¢ os estra- mas amorosos do filho. Ps sa que um vaidoso deseje um objeto, basta convencé-lo de que esse objeto j4 € desejado por um terceiro a quem se agrega um certo pres- gio. O mediador € nesse caso um rival suscitado primeiramente pela aidade, que, por assim dizer, cla chamou A sua existéncia de rival, antes ee impingit-lhe derrota. Essa rivatidade entre mediador e sujeito dese- “ante constitui uma diferenga essencial com o Gesejo de Dom Quixote gu de Emma Bovary. Amadis pao pode disputar com Dom Quixote a rotela das orfas desamparadas, ele nao pode fender os gigantes em seu ‘vgar. Valenod, em conirapartida, pode tomar para si o preceptor do sr. de Rénal; a marechala de Fervacques pode tirar Julien da Mathilde de la ‘ole. Na maioria dos desejos stendhalianos, o préprio mediador deseja > objeto, ou poderia deseja-lo: € esse mesmo descjo, real ou presumi vel, que torna esse objeto iniinitamente desejavel aos olhos do sujeito. Amediagao gera um segundo desejo inteiramente idéntico ao do media- gor. Vale dizer que nos deparamos sempre com dois desejos concorren- O mediador nao pode mais desempenhar seu papel de modelo sem. rpretar também, ou parecer interpretar, o papel de obstaculo. Tal qual a sentinela implacave! do apdlogo katkiano, o modelo mostra a sew a cipulo a porta do paraiso ¢ proibe-lhe o acesso num tinico e mesmo gesto. No nos espantemos se o sr. de Rénal langa sobre Valenod olha- res bem diferentes dos que Dom Quixote ergue para Amadis. Em Cervantes, o mediador reina num ¢éu inacessivel e transmite ao fiel um pouco de sua serenidade. Em Stendhal, esse mesmo mediador bai- xou a terra. Distinguir claramente esses dois tipos de relacionamento en:re mediador e sujeito é reconhecer a imensa distancia espiritual que 3 CAPITULO |. 0 DESEFO “TRIANGUL separa um Dom Quixote dos vaidosos mais interiores dentre as perso- nagens stendhalianas, A imagem do triangulo nao pode nos reter de modo duradouro a no ser que permita essa distincio, a ndo ser que nos permita medir, num relance, essa distancia. Para alcangar esse duplo ob- jetivo, é suficiente que se faga variar, no triangulo, a distancia que separa © mediador do sujeito desejante. Eem Cervantes, obviamente, que essa dist&ncia é a maior. Nenhum contato € possivel entre Dom Quixote e seu Amadis lendario, J4 Emma Bovary estd menos distante de seu mediador parisiense. Os relatos dos viajantes, os livros e a imprensa propagam até Yonville as ultimas mo- das lancadas na capital. Emma se aproxima ainda mais do mediador por ocasido do baile em casa dos Vaubyessard; ela penetra no santudrio e contempla o idolo frente a frente. Mas essa aproximagao permaneceré fugaz. Jamais Emma conseguira desejar o que desejam as encarnagdes de seu "ideal"; jamais cla conseguiré competir com estas; jamais ela par- tird para Paris. Julien Sorel faz tudo 0 que Emma nio pode fazer. No comego de O Vermelho ¢ 0 Negro, a distancia entre herdi ¢ mediador nao € inferior & de Madame Bovary. Mas Julien vence essa distancia; ele abandona sua provincia e se torna o amante da orgulhosa Mathilde, sobe rapidamente a uma posi¢ao brilhante. Essa proximidade do mediador se reproduz nos demais heréis do romancista. E ela que diferencia essencialmente © universo stendhaliano dos universos que j4 enfocamos. Entre Julien e Mathilde, entre Rénal e Valenod®, entre Lucien Leuwen e os nobres de Nancy", entre Sansfin e os fidalguetes da Normandia", a distancia é sempre pequena o suficiente para permitir a concorzéncia dos desejos. * Idem, ibdem. (N.E.) "De Lacien Lemuen. Rio de Janeiro, F. Alves, 1983. (NE) "De Lamiel. Paris: Flammarion, 1993. (N.E.) 32 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA Atptiotece Cente Cédige da obra: in" do exembyiers Sos romances de Cervantes e de Flaubert, o mediador ficava exterior a0 universo do herdi; ele esta agora no interior desse mesmo universo. As obras romanescas se agrupam, pois, em duas categories fundamen- iais — em Cujo interior se podem multipticar infinitamente as distingdes secundarias. Falaremos de mediagao externa quando a distancia € suficiente para que as duas esferas de possiveis, cujo centro estd ocupado cada qual pelo mediador ¢ pelo sujcito, ndo estejam em contato. Falaremos de me- diagio interna quando essa mesma distancia esta suficientemente reduzida para que as duas esferas penetrem com maior ou menor profundidade uma na outra. Obviamente, nao € 0 espaco fisico que mede a distancia entre 0 media- dor e 0 sujeito desejante. Conquanto o afastamento geogréfico possa constituir-se num de seus fatores, a distancia entre o mediador ¢ 0 sujeito € primeiramente espiritual. Dom Quixote e Sancho estao sempre fisica- mente préximos um do outro, mas a distAncia social e intelectual que os separa permanece intransponivel. Nunca o criado deseja o que deseja o amo. Sancho cobiga os viveres abandonados pelos monges, a bolsa de oure encontrada no caminho e outros objetos mais que Dom Quixote the cede sem qualquer pesar. Quanto 4 ifha fabulose, é do préprio Dom Quixote que Sancho calcula recebé-la, na qualidade de fiel vassalo que tudo possui em nome de seu senhor. A mediagao de Sancho € assim uma mediagao externa. Nenhuma rivalidade com 0 mediador € viével, A har- monia nunca fica seriamente afetada entre os dois companheiros O herdi da mediagio externa proclama em alto ¢ bom tom a verdadeira natureza de seu desejo. Ele venera abertamente seu modelo e declara- se seu discipulo. Vimos o préprio Dom Quixote explicar a Sancho o papel privilegiado que Amadis desempenha em sua vida. A sra. Bovary a3 CAPITULO 1. O DESEJO "TRIANGULAR" e Léon também confessam a verdade de seus desejos em suas confidén- cias Ifricas. O paralelo entre Dow Quixote ¢ Madame Bovary tornou-se classico. E sempre fécil perceber as analogias entre dois romances da mediagao externa. Em Stendhal, a imitacao nao parece tao diretamente ridicula por nao haver mais, entre o universo do discfpulo e o do modelo, a defasagem que tornava grotescos um Dom Quixote ou uma Emma Bovary. A imi- taco contudo nao € menos estrita e literal na mediag&o interna do que na mediacao externa. Se essa verdade nos parece surpreendente nao é $6 porque a imitac3o se baseia num modelo “aproximado"; é também por- que o herdi da mediagao interna, longe de se vangloriar de seu projeto de imitacao, desta feita, dissimula-o cuidadosamente. O impulso em diregio ao objeto é no fundo impulso na diregio do mediador; na mediagao interna, esse impulse € gucbrado pelo proprio mediador j4 que este mediador deseja, ou talvez possua, esse objeto. O discfpulo, fascinado por seu modelo, vé forgosamente, no obstaculo mecdnico que este tiltimo lhe opSe, a prova de uma vontade perversa para com ele. Longe de se declarar vassalo fiel, esse discfpulo nao pensa senao em repudiar os lacos da mediacao. Esses lacos, no entanto, esto mais sdlidos do que nunca pois a hostilidade aparente do mediador, longe de lhe diminuir 0 prestigio, nao faz senio aumenta-lo. O sujcito esté persuadico de que seu modelo se julga demasiadamente superior a ele para aceité-lo como discfpulo. Ent&o, 0 sujeito experimenta por esse modelo um sentimento dilacerante formado pela uniio destes dais con- trérios que s4o a mais submissa veneragao € o mais intenso rancor. Fis af © sentimento que chamamos de édio Apenas o ser que nos impede de satisfazer um desejo que cle prdprio nos despertou € verdadeiramente objeto de ddio. Quem odeia, odeia primeiramente a si mesmo em razio da admiracao secreta que seu 6dio encobre. A fim de esconder dos outros, e de esconder de si mesmo, 34 MENTIZA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA essa admiragao desvairada, cle nio quer enxergar mais em seu mediador senao um obstdéculo. O papel secundario desse mediador passa desse modo ao primeiro plano é dissimula o papel primordial de modelo reli- giosamente imitado. Na disputa que o opde a seu rival, 0 sujeito inverte a ordem légica € cronolégica dos descios com o fim de dissimilar sua imitacao. Ele afirma que seu préprio desejo é anterior ao de seu rival, logo, se lhe dermos ouvidos, ele nunca é o responsavel pela rivalidade: € 0 mediador. Tudo © que provém desse mediador ¢ sistematicamente denigrido apesar de ainda secretamente desejado. O mediador é agora um inimigo sutil e diabdlico; procura despojar o sujeita de suas mais caras posses, contra- poe-se obstinadamente a suas mais legitimas ambicgdes Em nossa opinido, todos os fendmenos que Max Scheler estuda em QO Homem do ressentimensto’? dizem respeito 3 mediagao interna. A palavra ses. sentimento enfatiza, alias, o cardter de reacao, de contrachoque que ca- racteriza a experiéncia do sujeito nesse tipo de mediagao. A admiragao apaixonada e a vontade de emulacdo esbarram no obstdculo, em apa- réncia, injusto que o modelo opée a seu discipulo e recaem sobre este Ultimo sob a forma de ddio impotente, provocando assim a espécie de autoenvenenamento psicolégico que Max Scheler tao bem descreve. Como indica Scheler, o ressentimento pode impor seu ponto de vista mesmo aqueles que ele nao domina. E 0 ressentimento que nos impede que impede as vezes o préprio Scheler de perceber o papel que a imita- cao desempenha na génese do desejo. Nao desconfiamos, por exemplo, de que o citime € a inveja, tal como o ddio, néo passam dos nomes tra- dicionais dados mediagao interna, nomes que escondem de nds, quase sempre, sua verdadeira natureza. © Max Scheler, L’homme du ressewtinent. Paris: Gallimard, 1970. 35 CAPITULO tO DESEIO “TRIANGULAR’ be O citime ¢ a inveja deixam supor uma tripla presenga: presenca do objeto, presenga do sujeito, presenga daquele de quem se sente cit- me ou daquele de quem se tem inveja. Esses dois “defeitos” sao, pois, triangulares: jamais, no entanto, apreendemos um modelo naquele de quem sentimos citime porque enfocamas sempre o citime do ponto de vista do proprio ciumento, Como todas as vitimas da mediag&o inter- na, este se convence facilmente de que scu desejo é espontance, isto &, que ele estd enraizado no objeto ¢ somente nele. Por conseguinte, 0 ciumento alega sempre que seu desejo precedeu a intervengio do mediador. Ele nos apresenta este como um intruso, um encrenqueiro, ée. O ci- time cquivaleria assim & irritagdio que todos sentimos quando um de nossos desejos € acidentalmente contrariado. O verdadeiro citime é um terzo incommodo que vem interromper um delicioso tée-d- infinitamente mais rico e mais complexo que isso. Ele comporta sem- pre um elemento de fascinio para com o rival insofente. Sao sempre os mesmos seres, alids, que sofrem de citime. Devemos acreditar que nao passam todos de vitimas de um infeliz acaso? Serd o destino que suscita para eles tantos rivais e que multiplica os obstaculos através de seus desejos? Nds mesmos niio o cremos jd que, perante essas vitimas crénicas do citune, ou da inveja, falamos de “temperamento ciumen- to” ou de “natureza invejosa”. Mas em que pode implicar, concreta- mente, um tal "temperamento” ou uma tal “natureza” a nao ser numa irresistivel propensio em desejar o que desejam os Outros, ou seja, em imitar seus desejos? Max Scheler faz constar “a inveja, 0 citime ¢ a rivalidade" entre as fontes do ressentimento. Ele define a inveja como “o sentimento de impoténcia que yer opor-se ao estorgo que fazemos para adquirir tal coisa, pelo fato de ela pertencer a outrem”. Fle observa, por outro lado, que nao haveria inveja, no sentido estrito do termo, se a imaginacao do invejo- so no transformasse em oposigio planejada o obstéculo passivo que 0 possuidor do objeto Ihe opde, pelo fato da posse em si. 36 MENTIRA ROMANTICA E VERDADS ROMANESCA Asimples circunstancia de lamentear nao possuir 0 que um outro possui ¢ o que eu desejo, nZo basta, em si, para... fazer bratar (a invejal, pois essa lamentagao pode, como simples alternativa, me determinar a adquirir a coisa desejada ou algo andlogo... A cobiga nasce somente se 0 esforgo requerido para colocar em operagio esses meios de aquisico fracassar dando lugar a um sentimento de impoténcia, A anilise esta exata ¢ completa; nico omite nem a ilusio que 0 invejoso cria para si acerca da causa de seu fracasso, nem a paralisia que acom- panha a inveja. Mas esses elementos se mantém isolados, a relagao que os une nao esté realmente apreendida. Pelo contrario, tudo se esclarece, tudo se organiza numa estrutura coerente, ao se renunciar, para explicar a inveja, a partir do objeto da rivalidade ¢ ao se fazer do préprio rival, ou seja, do mediador, o ponto de partida da andlise, assim como seu ponto de chegada. © obstdculo passivo que constitui a posse no apareceria como um gesto de desprezo calculado, esse obstéculo nao provocaria desespero se o rival nao fosse secretamente venerado. O semideus pa- rece responder as homenagens com uma maldigao. Ele parece pagar 0 bem com o mal. O sujeito gostaria de acreditar-se vitima de uma atroz injustiga, mas ele se pergunta com angustia se a condenacdo que, segun- do as apar€ncias, pesa sobre ele ndo € justificada. Assim sendo a rivali- dade nao pode senao exasperar a mediagao; ela aumenta o prestigio do mediador e reforca o laco que une © objeto a esse mediador, torgando-o a afirmar claramente seu direito, ou seu desejo, de possessio. O sujeito toma-se entao menos capaz do que nunea de se desviar do objeto ina- cessivel: € a esse objeto e tao somente a ele que o mediador transmite seu prestigio, possuindo-o ou desejando possui-lo. Os demais objetos nao tém o menor valor aos olhos do invejoso, mesmo sendo andlogos ou até idénticos ao objeto “mediatizado”. Todas as sombras se dissipam quando se reconhece um mediador no rival abominado. O préprio Max Scheler nao esta longe da verdade a7 CAPITULO i - O DESEIO “PRIANGULAR" quando constata, em © Homem do ressentimenio, que “o fato de escolher um modelo para si” esté fandado numa certa disposicdo para comparar-se, partilhada por todos os homens ¢, prossegue ele, “é uma comparagao desta ordem que esta na base de toda inveja, de toda ambicio, como também na atitude que implica, por exemplo, a imitaciio de Jesus Cris- to". Porém essa intuicdo permanece um fato isolado. $6 0s romancistas devolvem ao mediador o lugar usurpado pelo objeto, sé os romancistas invertem a hierarquia do desejo habitualmente aceita. Em As Memdrias de win turista'?, Stendhal alerta seus leitores contra 0 que ele chama de sentimentos modernos, frutos da vaidade universal: “a in- veja, o citime e 0 édio impotente.” A férmula stendhaliana reine os trés sentimentos triangulares, ela os examina de fora de qualquer ob- jeto particular; associa-us a essa imperiosa necessidade de imitacio da qual o século XIX, no dizer do romancista, esta inteiramente possuido. Scheler, por seu lado, afirma, depois de Nietzsche — que reconhecia uma grande divida para com Stendhal —, que o estado de espfrito ro- méantico esté impregnado de “ressentimento”. Stendhal nao diz outra coisa, mas ele procura a fonte desse veneno espiritual na imitacao apai- xonada de individuos que sio no fundo nosses semelhantes ¢ que do- tamos de um prestigio arbitrario. Se os sentimentos modernos florescem, nao & porque as “naturezas invejosas” ¢ os “temperamentos ciumentos” se multiplicaram desagradavel e misteriosamente, é porque a mediacao intema triunfa num universo onde vio se apagando, pouco a pouco, as diferencas entre os homens. Somente os romancistas revelam a natureza imitativa do desejo. Essa natureza € diffcil de se perceber em nossos dias pois a mais fervorosa imitagéo € a mais vigorosamente negada. Dom Quixote se proclamava discfpulo de Amadis e os escritores de sua época se proclamavam discé- pulos dos Antigos. O vaidoso romantico nio se quer mais discfpulo de ! SUENDHAL, Mémoires duis touriste. Coeuvres.et-Valsery: Ressouvenances, 1999. (N.E.) 38 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA ninguém. Ele se convence de ser infinitamente ori inal. Por toda parte, no século XIX, a espontaneidade se torna dogma, destronando a imi- tagio. Nao nos deixemos enganar, insiste Stendhal, os individualismos professados com tanto alarde escondem uma nova forma de cdpia. Os enfados romanticos, 0 Gdio & sociedade, a nostalgia pelo deserto, tanto quanto o espirito gregério, ndo encobrem, na maioria das vezes, nada mais que um interesse mérbido pelo Outro. Para disfargar o papel essencial desempenhado pelo Outro em seus de- sejos, o vaidoso stendhaliano recorre frequentemente aos esteredtipos da ideologia reinante. Por tras da devogao, do altrufsmo meloso, do exgajamento hipécrita das grandes damas de 1830, Stendhal nado encontra co impulso generoso de um ser realmente pronto a se doar, mas o recurso angustiado de uma vaidade & espreita, o movimento centrifugo de um Fu impotente em desejar por si proprio. O romancista deixa falar e agir suas personagens para em seguida, numa piscadela, nos revelar o media- dor. Ele restabelece por baixo do pano a verdadeira hierarquia do dese- jo, ao mesmo tempo que simula dar crédito as pretensas razGes que sua personagem apresenta para conterir credibilidade & hierarquia contraria. Eis af um dos procedimentos constantcs da ironia stendhaliana. O vaidaso romantico quer sempre se convencer de que seu desejo esta inscrito na ordem natural das coisas ou, o que vem a dar na mesma, que ele € a emanacao de uma subjetividade serena, a criagio ex aibilo de um Eu quase divino. Desejar a partir do objeto equivate a desejar a partir de si mesmo: nio é nunca, com efeito, desejar a partir do Outro. O preconceito objetivo se junta ao precenccito subjetivo ¢ esse duplo preconceito estd enraizado na imagem que todos temos de nossos pré- prios desejos. Subjetivismos e objetivismos, romantismos e realismos, individualismos ¢ cientificismos, idealismos ¢ positivismos se opSem em aparéncia, mas estao secretamente coligados para ocultar a presenca do mediador. Todos esses dogmas sio a traducfo estética ou tilosdfica de 39 CAPITULO 1. 0 DESEIO “TRIANGUTAR® vis6es do mundo préprias & mediag&o interna. Sdo todos derivados, mais ou menos diretamentc, desta mentira que € o deseja espontaneo. Sdo todos defensores de uma mesma ilusio de autonomia a que o homem moderno esté apaixonadamente apegado. E essa mesma ilusio que © romance genial ngo consegue enfraquecer, apesar de denuncid-la incansavelmente. Diferentemente dos escritores romanticos ou neorromanticos, um Cervantes, um Flaubert e um Sten- dhal desvendam a verdade dos desejos em suas grandes obras romanes- cas. Porém essa verdade permanece escondida no préprio 4mago de seu desvendamento. © leitor, geralmente persuadido de sua espontaneida- de pessoal, projeta sobre a obra significades que ele 44 costuma projetar sobre o mundo. O século XIX, que nao entendeu nada de Cervantes, néo cessava de elogiar a “originalidade” de seu heréi. O leitor romanti- o, por um maravilhoso contrassenso que nao passa, no fundo, de uma verdade superior, se identifica com Dom Quixote, 0 imitador por exce- léncia, o qual ele torna 0 individuo-modelo Assim sendo, nao é de se espantar se 0 termo romanesco espelha sempre, por sua ambiguidade, a ig- norancia em que nos encontramos acerca de toda € qualquer mediagao. Esse termo designa os romances de cavalaria e designa Dom Quixote; ele pode ser sindnimo de romantico e pode significar a rufna das pretensdes Tomanticas. Reservaremas doravante o termo roméntico para as obras que tefletem a presenga do mediador sem jamais revelé-la e 0 termo romanesco para as obras que revelam essa mesma presenca E aestas Ultimas que se dedica essencialmente o presente escrito, O prestigio do mediador se comunica ao objeto desejado ¢ confere a este ciltimo um valor ilusério. O desejo triangular € o desejo que transfigura seu objeto. A literatura romantica nio desconhece essa 40 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA metamorfose; muito pelo contrério, cla a torna proveitosa e gragas a ela se engrandece, mas sem jamais revelar seu verdadeiro mecanismo A iluséo € um ser vivo cuja concepgao exige um elemento macho e um elemento fémea. E a imaginagdo do pocta a mulher, e essa imagi- nag&o fica estéril enquanto nao for fecundada pelo mediador. Tao sé o romancista descreve essa génese verdadeira da ilusio cuja respon- sabilidade é sempre atribuida pelo romantismo a um sujeito solitdrio. O romantismo defende uma “partenogénese" da imaginagao. Amante inveterado da autonomia, ele recusa inclinar-se diante de seus préprios deuses. As poéticas solipsistas que se sucedem h4 um século e meio sao um modo de expressar essa recusa. Os criticos romanticos parabenizam Dom Quixote por ver numa sim- ples bacia de barbear o elmo de Mambrino, mas € preciso acrescentar que nao haveria iluso se Dom Quixote nao estivesse imitando Amadis. Emma Bovary nao tomaria Rodolfo por um principe encantado se cla nao estivesse imitando as heroinas romanticas. O mundo parisiense da “inveja", do “cide” ¢ do “édio impotente’ nao € menos ilusério € nao é menos desejado que o elmo de Mambrino. Nele, todos os desejos investem-se em abstrages, so, nos diz Stendhal, “desejos mentais’. As alegrias, ¢ sobretuco os sofrimentos, nao se enraizam nas coisas; eles sdo "espirituais”, mas num sentido baixo que convém elucidar. Do medizdor, verdadeiro sol facticio, desce um raio misterioso que faz o objeto brilhar com um fulgor enganoso. Toda a arte stendhaliana visa a nos convencer que os valores de vaidade, nobreza, dinheiro, poder, reputagio, s6 sao concretos em aparéncia... E esse carater abstrato que permite fazer a aproximacSo entre o desejo de vaidade ¢ 0 desejo de Dom Quixote. A ilusio nao € a mesma, con- tudo sempre hi ilusio. O desejo projeta ao redor do herdi um universe de sonho. Nos dois casos, o herdi escapa de suas quimeras apenas no momento da agonia. Se julien nos parece mais lticido que Dom Quixote At CAPITULO : ~ © DESEJO “TRIANGULAR € porque os seres que o rodeiam, com excegao da sra. de Rénal, estio ainda mais enfeiticados que ele. A metamorfose do objeto desejado impressionou Stendhal muito antes do periodo romanesco. A descrigao que faz dela. em Ds Amor’, é famosa e baseada na imagem da cristalizagéio. Os desdobramentos romanescos Posteriores aparentam ser bei ficis & ideologia de 1822. Dela se dis- lanciam, no entanto, num ponto fundamental. Segundo as anilises que precedem, a cristalizacdo deveria ser um fruto da vaidade. Mas nao ¢ sob © signo da vaidade que Stendhal, em De Amer nos apresenia esse fendmeno, ¢ sim sob o signo da paixio. A paixao, em Stendhal, é 0 contrario da vaidade. Fabricio Del Dongo™ € 0 ser apaixonado por exceléncia, ele se distingue por sua autonomia sentimental, pela espontancidade de seus desejos, por sua indiferencga absoluta & opiniao dos Outros. O ser de paixdo extrai dele mesmo € nao de outrem a forga de seu desejo Terfamos nos enganedo e seria a paixio euténtica, nos romances, que se acompanha de cristalizag3o? Todos os grandes casais de amantes stendhalianos contradizem esse ponto de vista. O amor verdadeiro, o de Fabricio por Clélia, aquele que Julien acaba conhecendo com a sra. de Rénal, nio transfigura. As qualidades aue esse amor descobre em seu objeto, a ventura que dele espera, nao sio ilusérias. O amor-paixao acompanha-se sempre de estima, no sentido corneliano do termo. Ele se fundamenta numa perfeita concordancia entre a razao, a vontade e a sensibilidade. A verdadeira sra. de Rénal ¢ aquela que Julien descja. A verdadeira Mathilde ¢ aquela que ¢le nao deseja. No primeiro caso trata-se de paixdo, no segundo de vaidade. Consequentemente € de fato a vaidade que metamorfoseia seu objeto 4 Edigdo brasileir : STENDHAL, De amor, 2.ed Sao Paulo: Martins Fontes, 1999. (NLE.) * Ver Stendhal, A cartuxa de Panna. Edigio brasileira: Sao Paulo, Globo, 2004. (N.E.) 42 MENTIRA ROMANTICA £ VERDADE ROMANESCA Entre o ensaio de 1822 e as obras-primas romanescas, a diferenca é radical mas nem sempre é t4cil de se perceber, pois a distingio entre paixdo e vaidade estd presente nos dois casos. Em Do Amor, Stendhal nos descreve os cfeitos subjetivas do desejo triangular, mas os atri- bui an desejo espontaneo. O verdadeiro critério do desejo espontaneo € a intensidade desse desejo. Os mais fortes desejos sio os desejos apaixonados. Os desejos de vaidade sao os retlexos empalidecidos dos desejos auténticos. Assim, sio os desejos dos Outros que esto rela- cionados a essa vaidade pois temos todos a impressio de desejar mais intensamente que os Outros. A distingao paixio-vaidade serve para proteger Stendhal — e seu leitor — da acusag&o de vaidade. O media- dor permanece escondido no ponto onde sua revelagao tem a maior importancia, na existéncia do proprio autor; é preciso, pois, qualiticar como romantico 6 modo de ver de 1822. A dialé: ica paixdo-vaidade se mantém “individualista’. Lembra um pouco a dialética gideana do Eu natural ¢ do Eu social em © Imoralisia’® © Stendhal de quem falam os eriticos, e em particular Paul Valéry em seu prefacio a Lucies Leuwer, € quase sempre esse Stendhal “gideano” da juventude. E fécil entender que este tenha estado na moda & época em que proliferavam as morais do desejo do qual foi precursor. Este primei- ro Stendhal que triunfou no fim do século XEX € no inicio do século XX nos oferece um contraste entre o ser esponténeo que deseja intensamen- te, ¢ o sub-homem que deseja frouxamente copiando os Outros Pode-se sustentar, apoiando-se sobre As Crénicas ftalianas'’ e sobre al- gumas frases tiradas das obras fntimas, que a oposigao vaidade-paixio conservou esse seu sentido de origem no Stendhal da maturidade. Mas nem As Crénicas itelianas nem os escritos intimos pertencem ao sistema '© Edicgo brasileira: André Gide, () into 1983. (NEY "Edi ia. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, © brasileira: Stendhal, Crinicas italianas. S30 Paulo: Edusp, 1997. (NE) 43 CAPITULG #~ © DESEIO ‘TRIANGULAR das grandes obras romanescas. Se se observa de perto a estrutura destas, constata-se sem dificuldade que a vaidade se torna af tanto o desejo transfigurador quanto o desejo de grande intensidade. Mesmo nos textos de juventude a oposigio vaidade-paixdo jamais coin- cidiu com a oposig3o gideana do Eu social e do Eu natural tal como é ilustrada, por exemplo, pelo contraste Fleurissoire-Lafcadio em Os Subterraueos do Vaticano'®. Stendhal afirma ja em Do Amor que “a vaidade faz nascerem arrebatamentos’'’. Logo, ele nao oculta completamente de si prdéprio a forga prodigiosa do desejo imitado. E cle mal esta no comego de uma evolugao que desemboca na inversao pura e simples da hierarquia inicial. Quanto mais nos adiantamos na obra, mais a forga do desejo se desloca em direcao a vaidade. F a vaidade que faz Julien sofrer quando Mathilde se esquiva ¢ esse sofrimento é 0 mais violento que esse heréi jamais tenha experimentado. Todas os desejos intensos de Jutien so desejos segundo o Outro. Sua ambicao é um sentimento triangular que se alimenta de ddio aos poderosos. E aos maridos, a0s pais e aos noivos, isto &, aos rivais, que se dirigem os tiltimos pensamentos desse amante ao colocar o pé nas escadas; nunca & mulher que 0 espera no balcda. A evolucdo que faz da vaidade o mais intenso dos desejos se encerra com o prodigioso Sansfin de Lamie, em quem a vaidade é um verdadeiro frenesi Quanto 4 paixao, ela nao comega mais, nos grandes romances, senio com este siléscio tao bem comentado por Jean Prévost em sua Criagao en: Stendbal*®. Essa paixdo que se cala mal chega a ser descjo. Tao logo haja verdadeiramente desejo, mesmo nas personagens cheias de paixdo, re- encontramos o mediador. Assim, reencontramos o triangulo do desejo Edigao brasileira; André Gide, Os subterrdineos do Vaticano. Sio Paulo: Victor Civita 1982. (N.E.} © STENDHAE, Do amor, 2. ed. Sio Paulo, Martins Fontes, 1999, p.4 20 Jean Prévost, La création chez Sterdhai. Paris: Gallimard, 1996. (N.E.) 44 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA ITEC -— mesmo nos herdis menos impuros ¢ menos complexes que Julien. Em Lucien Leuwen, 0 pensamento do mitico coronel Busant da Sicilia faz recair sobre a sra. de Chasteller um desejo vago, um vago desejo de desejar que teria podido fixar-se indiferentemente em qualquer outra jovem mulher da aristocracia de Nancy. A prépria sra. de Rénal tem citime de Elisa, tem citime também do desconhecido cujo retrato Ju- lien esconde, pensa cla, em seu catre. O terceiro esté sempre presente no nascimento do desejo, E preciso admitir-se 9 Sbvio. No iiltimo Stendhal nao ha mais desejo espontineo. Toda anidlise “psicolégica” é anélise da vaidade, isto é, re- velagdo do desejo triangular. A paixdo verdadeira sucede a essa loucura nos melhores herdis stendhalianos. Ela se confunde com a serenidade dos cumes que alcangam esses herdis nos momentos supremos. A paz da agonia, em © Vernelho ¢ 0 Negro, se contrapée & agitacaéo morbida do periodo anterior. Fabricio ¢ Clélia experimentam um bem-aventurado descanso na Torre Farnese, acima dos desejos e da vaidade que os ame- acgam em permanéncia sem nunca os ferir. Por que Stendhal continua falando em paixdo quando o desejo j4 desapa- receu? Talvez porque esses instantes de xtase séo sempre fruto de uma mediagaéo feminina. A muther, em Stendhal, pode vir a ser mediadora de paz ¢ de serenidade apés ter sido mediadora do desejo, da angtistia € da vaidade. Como em Nerval, nao se trata tanto de uma oposic¢ado entre dois tipas de mutheres, mas de duas fungGes antinémicas com que arca o elemento feminino na existéncia e na criagdo de romancista. Nas grandes obras a passagem da vaidade & paixao € insepardvel da {e- licidade estetica. Ea voldpia criadora saindo vencedora contra o desejo e a angtistia. Essa superacao realiza-se sempre sob o signo da falecida Mathilde e como que por efeito de sua intercessio. Nao se pode com- preender a paixio stendhaliana sem fazer intervir os problemas da cria- cao estética. Ea plenae total revelacao do desejo triangular, isto é, a sua 45 CAPITULO | ~ 0 DESEJO “TRIANGULAR” propria liberacdo, que o romancista deve esses instantes de felicidade. Recompensa suprema do romancista, a paixdo mal continua pertencen- do ao romance. Ganhando altura, ela escapa a um mundo romanesca todo ele entregue & vaidade € ao desejo. Ea transfiguragao do objeto desejado que define a unidade da media- Gao externa ¢ da mediagdo interna. A imaginaco do heroi ¢ a mae da ilusdo, mas essa crianga precisa ainda de um pai ¢ esse pai 6 0 mediador. A obra de Proust também nos torna testemunhas desse casamento ¢ desse trabalho de parto. A formula triangular vai nos permitir resgatar a unidade do génio romanesco que Marcel Proust, precisamente, nio receara afirmar, A ideia da mediago instiga as aproximagies num nivel que n3o é mais o da critica “de género”. Ela elucida as obras umas pelas outras; cla as compreende sem destrui-las, ela as une sem desconsiderar sua irredutivel singularidade. As analogias entre a vaidade stendhaliana e 0 desejo proustiano impres- sionam o leitor mais desavisado. Mas impressionam téo somente a ele pois a rellexao critica nao se exerce nunca, ao que parece, a partir destas intuig6es elementares, Para certos intérpretes ateigoados ao “realismo" a semelhanga é ébvia: o romance & a fotografia de uma realidade exterior 20 romancista; a observagao alcanga um fundo de verdade psicolégica que esté fora do tempo e¢ do espago. Para a critica de tendéncia “exis- tencialista”, pelo contrario, a “autonomia” do mundo romanesco é um dogma intangivel, é indecoroso sugerir o menor ponto de contato entre seu proprio romancisia ¢ o do vizinho. Esta claro, no entanto, que os tragos da vaidade stendhaliana reapare- cem, realgados e reforgados, no desejo proustiano. A metamorfose do objeto descjado € mais radical aqui do que ld, 0 citime ea inveja sao mais 46 MENTIRA ROMANTIC E VERDADE ROMANESCA frequentes € mais intensos ainda. Nao é exagero dizer que, em todas as personagens de Em busca do tempo perdido”, o amor esté estreitamente subordinado ao cidme, isto é, & presenga do rival. O papel privilegiado que desempenha o mediador, na génese do desejo, fica pois mais evi- dente do que nunca. A cada instante, 0 narrador proustiano define em linguagem clara uma estrutura triangular que permanece com frequéncia implicita em © Vermelbo ¢ 0 Negro: Fm amor, 0 rival feliz. ou, por outra, o inimigo, é 0 nosso benfeitor. A um ser que n3o nos provocava vendo um breve desejo fisico, acrescenta imediatamente um valor imenso, mas que com ele confundimos. Se nao tivéssemas Tivais, se no 05 julgdssemos ter... Pois ndo € necessdria que existam de fato™. A estrutura triangular nao € menos aparente no esnobismo mundano do que no amor-citime. O esnobe também é um imitador. Ele copia servilmente 0 ser de quem ele inveja a origem, a fortuna ou o estilo chic. O esnobismo proustiano poderia se definir come uma caricatu- ra da vaidade stendhaliana; ele poderia também se definir como uma exagerac3o do bovarismo flaubertiano. Jules de Gaultier qualifica este defeito de “hovarismo triunfante” e é com razdo que ele The dedica um trecho de seu livro. O esnobe nao ousa confiar etm seu juizo pessoal, ele sé deseja os objetos desejados por outrem. Eis o motivo pelo qual ele € 0 escravo da moda. Pela primeira vez, aliés, nos deparamos com um termo da linguagem comum: esvobisme, que nao trai a verdade do desejo triangular. Basta 2) Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, obra composta dos volumes: No caminbo de Swann {v.1), A sombra das raparigas em flor 'y.2), O caminho de Guermantes (97.3), Sodoma ¢ Go- morra iv.4; A prisioneira (v.5), A fugities (y.6), O tempo redescoberio (v.7), cujas referéncias bibliograficas se encontram no final deste livro. (N.E.} =? PROLST, 0 tempo redescoberta iv.7%. p.i80 (NE AF CAPITULO 1 - G DESEIO “TRIANGULAR" chamar um desejo de estebe para trazer A tona seu carater imitativo. O mediador nao fica mais encoberto; 0 objeto se encontra relegado ao segundo plano pelo préprio fato de que o esnobismo, como 0 cit- me por exemplo, nao incide sobre uma categoria particular de desejos. Pode-se ser esnobe no prazer estético, na vida intelectual, no modo de se vestir, na alimentagio, etc. Ser esnobe no amor é entregar-se ao citime. O amor proustiano coincide plenamente com 0 esnobismo e é suficiente dar-se ao termo um pouco mais de amplidao do que se da comumente para apreender-se nele a unidade do desejo proustiano. O mimetismo do desejo é tamanho, na obra Em busca do tempo perdido, que as personagens ser3o consideradas ciumentas ou esnobes conforme seu mediador seja apaixonado ou mundano. A concepgdo triangular do desejo nos da acesso ao lugar proustiano por exceléncia, isto é,a0 ponto de intersecgao entre o amor-citime e 0 esnobismo. Proust afirma continuamente a equivaléncia desses dois “vicios". "O mundo, escreve ele, nao passa de um refleso do que acontece no amor.” Temos af um exemplo destas “leis psicolégicas" as quais o romancista refere-se cons- tantemente mas que ele nem sempre conseguiu formular com clareza suficiente. A maioria dos eriticos quase nao presta atencdo a essas leis. Fles as incluem em meio a teorias psicolégicas fora de moda que teriam influenciado Marcel Proust. Peasam que a esséncia do génio romanesco €alheia as leis, pois é comprometida com a liberdade. Temos para nos que 0s criticos se enganam. As leis proustianas se confundem com as leis do desejo triangular. Elas definem um novo tipo de mediago interna que aparece quando a distancia entre mediador ¢ sujeito desejante € ainda inferior a existente em Stendhal. Objetar-se-4 que Stendhal celebra a paixio, enquanto Proust a denuncia. F verdade. Mas a oposicéo € puramente verbal. O que Proust denuncia sob o nome de paixiio, Stendhal o denuncia sob o nome de vaidade. Eo que Proust celebra sob o nome de Tempo redescoberto nao é sempre muito di- ferente do que festejam os herois stendhalianos na solidao dos cdrceres a8 MENTIRA ROMANTICA E VERDADE ROMANESCA

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