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NOVA

ensaios sõbre .......


uma literatura do olhar CRITICA
POR UM NôVO ROMANCE
/\
Os textos que formam êste volume não
coestitn'Piem ahsowto 1;a f~wiª do
l
de evolução que me parecem fundamentais
ro- P0 R I ª4 bU?'U? EE?)"f o ) 165
na literatura contemporânea. Se emprego, e1n
inúmeras páginas, o têrmo Nôvo Romance,
não é para designar uma escola, nem mesmo Alain Rcibbe-Grillet
um grupo definido e formado por escritores
que estariam trabalhando num mesmo senti-
do; há aqui apenas lll1.1. rótulo cômodo que

ventar o romance, isto é, a inventar


tica das formas do passado é, não apenas
absurda e vã, como pode mesmo tornar-se pre-
judicial: fechando-nos os olhos sôbre nossa
situação real no mundo atual, essa atitude
nos impede, afinal de contas, de construir o
mundo e o homem de amanhã.
ALAIN ROBBE-GRILLET

Lançamentos recentes

FREUD - J. "B. Pontalis, J. Laplanche.


O retôrno às teorias de Freud à luz das novas
aquisições das ciências humanas.
O DIREITO À CIDADE - Henri Lefebvre.
O fenômeno urbano: sentido e finalidade da
industrialização. O principal direito do
homem.

Lançamentos anterio1·es

ARTE CONTEMPORÂNEA: CONDIÇÕES


DE AÇÃO SOCIAL - A. M. Goldberger
e C. Netto.
SARTRE HOJE - J. :tvI. Lé Clézio, P. Tro-
ti non . P. Sartre.
T
TICA - Luc de Heusch, Jean Pouillon,
Lévi-Strauss.
DEBATE SôBRE O ESTRUTURALISMO -
Lucien Goldmann, Henri Lefebvre.
IDEOLOGIA E CLASSES SOCIAIS - Adam
Schaff, Norman Birnbaum, Mauro Fotia,
Rudi Supek.
A IRRUPÇÃO: A REVOLTA DOS JOVENS
NA SOCIEDADE INDUSTRIAL - Henri
Lefebvre, Lucien Goldmann. NOVA CRÍTICA
do original francês:
POUR UN NOUVEAU ROMAN

copyright 1963 by Les tditions de Minuit

revisão: E. Bonumá
Para que servem as teorias 7
capa: A. M. Goldberger
Um caminho para o romance do futuro 13

Sôbre algumas noções obsoletas 29


coleção NOVA CRÍTICA, vol. 1
O personagem 21
uma edição DOCUMENTOS
A história 23
O compromisso 26
A forma e o conteúdo 31

Natureza, humanismo, tragédia 36

Elementos de uma a11tologia moderna 55


Enigmas e transparências em Raymond Roussel 55
A consciência doente de Zeno 61
Joe Bousquet, o sonhador 65
Samuel Beckett, ou a presença no palco 75
Um romance que inventa a si mesmo 85

Nôvo Romance, homem nôvo 89

Tempo e descrição no romance atual 96


1969
Do realismo à realidade 105
direitos para a língua portuguêsa adquiridos por:
EDITôRA DOCUMENTOS LTDA.
Jargo do aí-ouél~e, 418 - 13. 0 and. - s/ 131 - ~ão paulo - sp
PARA QUE SERVEM AS TEORIAS

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iL º" ~z r nr ~ zw= , zznr _, 1 Z'U?XZ?T?t717 ?777f1SW "f17f?SS?"'ZW

uanto os
a ia1s, a azer a gumas re exoes cn icas s re os ivros que escrevi,
sôbre aquêles que lia,: sôbre aquêles a~nda que planejava escrever.
Na maior parte do tempo, essas reflexões eram inspiradas por
certas reações - que me pareciam shrpreendentes ou despropo-
sitadas - suscitadas na imprensa por meus próprios livros.
1

Quando surgiram, meus romancéjs não foram acolhidos com


uma aprovação unânime; é o mínimo que se pode dizer. Do
semi-silêncio reprovador no qual caitf o primeiro (Les Gommes)
ao repúdio maciço e violento que a grande imprensa opôs ao
segundo (Le Voyeur) não houve mu~to progresso; a não ser em
relação à tiragem, que aumentou sensivelmente. Sem dúvida, sur-
giram alguns elogios, aqui e ali, mas que por vêzes me desnor-
teavam mais ainda. O que mais me• surpreendia, tanto nas cen-
suras quanto nos elogios, era encontra!r quase por 1:ôda parte uma
referência implícita - ou mesmo explfoita - aos grandes romances
do passado, que eram sempre apresentados como o modêlo para
o qual o jovem escritor devia manter os olhos voltados.
Nas revistas literárias eu freqüentemente encontrava uma
acolhida mais séria. Mas não consegtúa me satisfazer com ser
reconhecido, apreciado, estudado apenas pelos mesmos especia-
listas que me tinham ,encorajado desde o princípio: estava persua-
' r
um autor "difícil". Minhas surprêsas; minhas impaciências eram
provàvelmente tanto mais vivas quan~ó, por minha formação, eu
ignorava tudo dos meios literários e ide seus hábitos. Assim eu
publicava, num jornal político-literário de grande tiragem (L'Ex-
press), uma série de breves artigos nos quais expunha algumas
idéias que me pareciam bem óbvias:• dizia, por exemplo, que as
formas romanescas devem evoluir para pem1anecerem vivas, que
-·· os heróis de Kafka têm pouca relação com os personagens de
Balzac, que o realismo socialista ou e engagement sartreano difi.-
, ,,
mática das formas do passado é não apenas· absurda e vã co1ho
pode mesmo tornar-~e prejudicial: fechando-nos os olhos sôbre

a ma e contas, e construir o mune o e o ornem e aman ã.


Elogiar um jovem escritor de hoje pelo fato de êle "escrever
como Stendhal" representa uma dupla desonestidade. Por um
lado, essa proeza nada teria de admirável, como acabamos de
ver; por outro lado, trata-se de algo absolutamente impossível:
ara escrever como Stendhal antes de mais nada seria reciso

~YW'

) ) ,
todos os escritores que não se sabia onde pôr. "Escola do olhar'', ponto, não era um paradoxo aquilo que J.-L. Borges desenvolvia
"Romance objetivo", "École de Minuit'',"' os rótulos variavam; em Fictions: o romancista do século XX que copiasse Don Quixote
quanto às intenções que me atribuíam eram com efeito delirantes: palavra por palavra escreveria com isso uma obra totalmente dife-
escorraçar o homem do mundo, impor meu próprio estilo aos rente da de Cervantes.
outros romancistas, destruir tôda a ordem na composição dos livros, Aliás, ninguém teria a idéia de elogiar um músico por com-
etc. ,"' por, em nossos dias, algo parecido com Beethoven, ou por pintar
Em novos artigos, eu tentava melhorar a situação, esclare- à la Delacroix, ou de elogiar um arquiteto por conceber uma
cendo ainda mais os elementos mais negligenciados pelos críticos, catedral gótica. Felizmente muitos romancistas sabem que o
ou aquêles mais distorcidos. Desta vez acusaram-me de contra- mesmo acontece com a literatura, que também ela é algo vivo
dizer a mim mesmo, de me renegar. . . Assim, levado alternada- e que o romance, desde que existe, sempre foi nôvo. Como poderia·
mente por minhas pesquisas pessoais e por meus detratores, de o estilo do romance ter permanecido imóvel, fixo, quando tudo·
ano em ano eu continuava, irregularmente, a publicar minhas re- · evoluía ao seu redor - bem ràpidamehte, na verdade - no de-
flexões sôbre a literatura. É o conjunto dêsses escritos que está correr dos últimos cento e cinqüenta anos? Flaubert escrevia o
agora reunido no presente volume. nôvo romance de 1860, Proust escrevia o nôvo romance de 1910.
Estes textos não constituem em absoluto uma teoria do ro- O escritor deve aceitar carregar sua própria ·data com orgulho,
mance; tentam apenas isolar algumas linhas de evolução que me sabendo que não existem obras-primas na eternidade, mas apenas
parecem fundamentais na literatura contemporânea. Se em mui~ obras na história; e que elas só sobrevivem na medida .em que
tas páginas emprego conscientemente o têrmo Nôvo Romance, deixaram o passado a1rás de si e que anunciaram o futuro.
não o faço com .o intuito de designar uma escola, nem mesmo Entretanto, há algà em particular que os críticos acham di-
um grupo definido e constituído por escritores que trabalhariam fícil de suportar: é o fato. de os artistas se explicarem. Dei-me
num mesmo sentido; trata-se a enas de um róh1lo cômodo ue conta disso quando? ap?s ter manifestado estas evidências e al-
eng o a o os aque es que procuram novas ormas e romance,. ) .
capazes de exprimir (ou de criar) novas relações entre o homem livro não apenas desagradou e foi considerado como um absurdo
e o mundo, todos aquêles que se decidiram a inventar o romance, atentado contra as belas letras, como ainda demonstraram como
isto é, a inventar o homem. :ítsses sabem que a repetição siste- era. normal que fôsse a tal ponto execrável,· uma vez que con-
fessava ser o produto da premeditação: seu autor - oh escân-
"' "École de Minuit": designação derivada do nome da editôra ( Les dalo! ...;; permitia-se ter opiniões sôbre seu próprio trabalho. ·
Éditions de Minuit) que lançou Robbe-Grillet e outros novos autores. Aqui ainda se constata que os mitos do século XIX. conser-
(N. do T.). vam tanto seu poder: o grande romancista, o "gênio", é uma es-

.9
(
pécie de monstro inconsciente, irresponsável e fatal, e mesmo Assim, não é muito interessante procurar pôr em contra-
li~eiramente i~becil, do qual partem "mensagens" que apenas o dição as reflexões teóricas e as obras. A única rela ão ue )ode

mais ou menos a mitido como favo- cordfuicias e de oposições. Portanto, não é tampouco surpreen-
obra. O alcoolismo, a desgraça, as dente constatar evoluções de um ensaio para outro, nos que serão
drogas, a paixão mística e a loucura atulharam de tal modo as lidos aqui. Bem entendido, não se trata das grosseiras renegações
biografias mais ou menos romanceadas dos artistas que a partir errôneamente denunciadas por leitores um pouco desatentos - ou
de então parece absolutamente natural ver nesses fatos necessi- mal-intencionados -, mas sim de retomadas dos mesmos pontos
dades essenciais de sua triste condição; em todo caso arece na- num lano diferente· trata-se de reexames da s n

eu ongem corno que a reve ia, essas maravilhas nao premed1-


' p -
fôrça superior que as ditou. O romancista, mais do que um criador meiras. Um romance que não fôsse mais do que o exemplo de
no sentido próprio, seria então um simples mediador entre o gramática que ilustra· uma regra - ainda que acompanhada de
comum dos mortais e um poder obscuro, um além da humani- sua exceção - seria naturalmente inútil: bastaria o enunciado da
dade, um espírito eterno, um deus ... regra. Exigindo para o escritor o direito à inteligência de sua
· Na realidade, basta ler o diário de Kafka, por exemplo, ou criação, e insistindo sôbre o interêsse · que a consciência de sua
a correspondência de Flaubert, para logo nos darmos conta da +"" própria pesquisa representa para êle mesmo, sabemos que é sobre-
parte primordial ocupada, já nas grandes obras do passado, pela tudo ao nível do estilo que esta pesquisa se realiza, e que no
consciência criativa, pela vontade, pelo rigor. O trabalho paciente, instante da decisão nada está claro. : Assim, após ter indisposto
a construção metódica, a arquitetura longamente meditada de cada os críticos ao falar da literatura com ·a qual sonha, o romancista
frase bem como do conjunto do livro, isso sempre representou se sente repentinamente desarmado quando êsses mesmos críticos
seu devido papel. Depois dos FalstMos, depois de Joyce, depois lhe pedem: "Explique-nos portanto por que você escreveu êsse
da Náusea, parece que caminhamos cada vez mais na direção de livro, o que significa, o que você pretendia fazer, com que in-
uma época da ficção em que os problemas de estilo serão enca- tenção você empregou esta palavra, por que construiu esta frase
ra·dos lucidamente pelo romancista, e na qual as preocupações dêsse modo?" ·
críticas, longe de esterilizar a criação, poderão - pelo contrário - Diante de semelhantes pergunta~, seria possível dizer que
servir-lhe de motor. sua "inteligência" não lhe serve para friais nada. O que êle quis
Não se trata, como vimos, de estabelecer uma teoria, um fazer foi apenas aquêle livro mesmo.. Isso não quer dizer que
molde preliminar a fim de forjar aí os livros futuros. Cada roman- êle está sempre satisfeito com êsse livro; mas a obra continua
cista, cada romance deve inventar sua própria forma. Nenhuma a ser, em todos os casos, a melhor e· a única expressão possível
receita pode substituir essa reflexão contínua. Só o livro cria suas de seu projeto. Se o escritor tivesse tido a faculdade de dar uma
próprias regras. Na verdade, o movimento do estilo deverá fazer definição mais simples de seu projeto, ou de reduzir suas du-
com que freqüentemente essas rt;gras sejam postas em perigo zentas OU trezeptgg pÁ@;iPPS O UWº WCPSQg)@m Otm: }íRguagom o}ara~
em cheque talvez e deverá mesmo explodi-las. Longe de respeitar de explicar o funcionamento de seu projeto palavra por palavra,
formas imóveis, cada nôvo livro tende a constituir suas leis de em suma, de dar a razão de seu projeto, não teria sentido a
fúncionamento ao mesmo tempo em que produz a destruição necessidade de escrever o livro. Pois a função da arte não é
delas mesmas. Uina vez acabada a obra, a reflexão crítica do nunca a de ilustrar uma verdade - ou mesmo uma interrogação
escritor lhe servirá ainda para manter suas distâncias em relação - antecipadamente conhecida, mas sim trazer para a luz do dia
a ela, logo alimentando novas pesquisas, um nôvo ponto de par- certas interrogações (e talvez também, a seu tempo, as respostas)
tida. que ainda não se conhecem nem a si mesmas.

10 11
· Tôda a consciência crítica do romancista ·só lhe pode ser UM CAMINHO
útil ao nível das escolhas, não ao nível da ·ustifica ão destas.

este a jetivo, e construir êste parágrafo dêste modo. Dedica


tôda sua atenção à lenta procura da palavra exata e de sua justa
colocação. Mas não pode oferecer nenhuma prova dessa neces·
sidade (a não ser, às vêzes, depois do fato). Suplica que acre~
ditem nêle, que confiem nêle. E quando lhe perguntam por que
escreveu seu livro só tem uma res s · " · ·

. ' . . . .. . . -. -
. s Ja se oça com um pouco mais e c areza possível. · As inúmeras . ~en~ativa~, que se s1:1cedem ~á 1~1ai_s de
do que os outros. De Flaubert a Kafka é tôda uma filiação que trinta anós, de fazer a fwçao sair de seus tnlhos habituais rnsul-
se impõe à nossa mente, uma filiação que exige um devenir. taram, na melhor das hipóteses, apenas nalgumas obras isoladas.
Esta paixão por descr;ever, que anima todos ós dois, é exatamente E - isto é sempre repetido· - nenhuma dessas obras; fôsse qual
aquela que encontramos no nôvo rorriance de hoje. Para além do fôsse seu interêsse, conseguiu a adesão de um público compa-
naturalismo de um e do onirismo metafísico do outro, esboçam-se rável ao do romance burguês. A única concepção de romailce
os primeiro elementós de um . estilo realista de um gên. ero des....."" que hoje tem curso livre é, coin- efeito, a de Balzac.
conhecido, que no momento está surgindo para a luz do dia. O
que esta coletânea tenta fazer é exatamente descrever alguns Sem. exagêro, seria possível mesmo remontar até Mme. d6:
contornos dêsse nôvo realismo. La Fayette. A sacrossanta análi$e p~icológica constituía, já nessa
época, a base de tôda a prosa: era éla que presidia à concepç_ão
do livro, à descrição dos personagens, ao desdobramento da m-
triga .. A partir de então, um "bom" romance passou a ser o estudo
de uma paixão - ou de um conflito de paixões" ou de uma au-
sência de paixão - num determinádo meio. A maioria de nossos
romancistas contemporâneos do tipo tradicional --:- isto é, exata~
mente aquêles que recebem a aprovaç~o dos consu,midores -
poderia recopiar longas passagens da Prmcesse de Cleves ou do
Pere Goriot sem despertar suspeitas por parte .do. amplO público
que devora sua produção .. Para tanto bastaria apenas substituir
Uma ou outra frase, ou simplificar ceitas constrnções, dar aqui e
ali o tom partfoular de .cada um por meio de uma palavra, de .
uma iriaagem atrmddn; do ITW ri*mo sh krse Uns 'õ@iilo!l iii!lft
fossam, .sem ver nisso ;nada de anormal, que suas preocupações
de escritores datam de. vários séculos já.
Por que surpreender-se com isso? .é o que se diz. O material
- a . língua francesa - sofreu· apenas· modificações bem leves
nestes trezentos anos; e se a sociedade se transformou pouco a
pouco, se as técnicas industriais tiveram consideráveis progressos,
nossa civilização mental - com efeito - continua a mesma. Vive-
12 13
mos :pràti~amente com ~s. mesm_gs hábitos e as mesmas proibições Pois, se as normas do passado servem para medir o pre-
morais, alimentares, reh 10sas, sexuais hi iênicas familiares etc. sente, servem também par~ construí-lo .. O próprio e~crito~·, a des-

Tudo já foi dito e chegamos tarde demais, etc., etc. c1v1 izaçao men a , numa I era ura que so po e ser a o passa o.
O risco de semelhantes respostas aumenta ainda mais se se É-lhe impossível escapar de um dia para o outro dessa tradição
ousa pretend_~r q~e essa nova literatura não só é possível, dora- em que se originou. Às vêzes, mesmo, os elementos que êle mais
van~e, como Jª esta aparecendo, e que ela irá representar _ ao se tentou combater parecerão, pelo contrário, desabrochar mais vigo-
realizar - uma revolução mais total do que aquelas das quais rosamente do que nunca na mesma obra com a qual êle acredi-
nasceram · · · tava assestar-lhes um golpe decisivo; e, bem entendido, será feli-

, . ,~ . . e comen a a pe o coniun o a cntíca


- que e. dif1cil imagmar que essa arte possa sobreviver por muito Mesmo o observador meno~ condicionado não consegue ver
~empo amda sei?1 af&urr_ia mudança radical. A solução que surge com olhos livres o mundo que o cerca. Esclareçamos de imediato
a mente de mmtos e Slillples: essa mudança é impossível, a arte que não se trata aqui da ingênua preocupação com a objetivi-
d? , romance está morrendo. Isso não é verdade. A história dade, da qual os analistas da alma (subjetiva) acham fácil troçar.
dira, nalgumas dezenas de anos, se os diversos sobressaltos aO"ora A objetividade no sentido corrente do têrmo - impersonalidade
registrados são indícios da agonia ou da renovação. 0 .,_=-- total do olhar - é evidentemente uma quimera. Mas é a liber·
. . . De qualquer modo, não nos devemos iludír a respeito das dade que, pelo menos, devia ser possível, e que, também ela, não
~ificul~ades a~res~nt~das i:_or uma tran_sformação dêsse gênero. o é. A todo momento franjas de cultura (psicologia, moral, meta-
Elas sao c~nsideraveis. Toda a orgamzação literária existente física, etc.) vêm se acrescentar às coisas, dando-lhes um aspecto
(desde o ~~itor a5é o mais modesto leitor, passando pelo livreiro menos estranho, mais compreensível, mais tranqüilizador. Por
e fcelo cntico) nao pode fazer outra coisa além de lutar contra vêzes a camuflagem é completa: um gesto se apaga de nossa
ª, o~m~ ?e~:onhecida que tenta se impor. Os espíritos mais favo- mente em proveito de supostas emoções que teriam dado origem
raveis a ideia de uma transformação necessária, aquêles mais dis- a êle, lembramos que uma paisagem é "austera" ou "calma" sem
post~s a reconhecer o valor de uma pesquisa, apesar de tudo poder citar nenhum traço dela, nenhum de seus elementos prin-
contmuam a ser os herdeiros de uma tradição. Ora, inconsciente- cipais. Ainda que pensemos logo: "Isso é literatura'', não tenta-
mente julgada em comparação àf formas consagradas, uma nova mos nos revoltar. Estamos . habituados a que essa literatura (a
fo:m~ sempre pai~ecerá, mais ou menos, uma ausênsia de forma. palavra tornou-se pejorativa) funcione coµ1o uma tela, munida
Nao e o que se le num de nossos mais célebres dicionários enci- com vidros diversamente coloridos que decompõem nosso campo
clopé~icos, no verbete dedicado a Schonberg: "Autor de obras de percepção em pequenas facetas assimiláveis.
auda.cwsas, sem preocu~aç~o corr; i:egra a!guma"! :ltsse julgamento E se alguma coisa resiste a essà apropriação sistemàtica, se
conciso acha-se sob a rubnca Musica, evidentemente redigido por um elemento do mundo quebra o vidro, sem encontrar lugar na
pm espegjgljsf'g tela de jpterpretacão ainda temos à 11 ossa rlispqsição ª çômqda
categoria do absurdo, que absorverá êsse acabrunhado resíduo.
O balbuciante recém-nascido será sempre considerado como
um m?nstr~, ~11esmo po~ aquêles apaixonados pela experiência. Ora, o mundo não é nem significante nem absurdo. :Ele é,
Havera cunos1dade, m~v1me~ltos de interêsse, reservas quanto ao simplesmente. Em todo caso, é isso que êle tem de mais notável.
futu;~· Entre os elog10s smceros, a maioria será dirigida aos E de repente essa evidência nos atinge com uma fôrça contra a
v~stig10: do~ tempos yassados, a todos êsses liames que a obra qual não podemos mais nada. De um só golpe tôda a bela cons-
ainda nao tiver rompido e que a puxam desesperadamente para trução se esboroa: abrindo os olhos para o imprevisto, experi-
trás. mentamos, mais uma vez, o choque dessa realidade obstinada que

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pretendíamos ter dominado. A nossa -~olta, -desafiandó a matilha Em lugar dêsse universo das "sígnifícações" (psicológicas, so-
de nossos adjetivos animistas ou protetores, as coisas estão- aí. ciais funcionais seria necessário ortanto tentar construir urn
ou transparencias. · ,To a a nossa literatura ainda -não cónseguill por sua presença que os objetos e os gestos se imponham, e que
preencher o menor dos cantos dessas coisas, nem atenuar sua esta presença continue a seguir, a predominar, acima de tôda te01ia
menor curva. explicatíva que tentasse encerrá-los num sistema qualquer de refe-
Os inúmeros romances filmados que enchem nossas telas nos rência, sentimental, sociológico, freudiano, metafísico ou outro.
oferecem a ocasião de reviver à vontade essa curiosa experiência. Nas futuras construções Iomane:cas, gest~s e _objeto~ estarão
O cinema herdeiro êle também da tradi ão sicoló ica e nat ·a-
inalteráveis

ª rnao momemo & qüé ª Mnmnu tmlfaaa Iid§ arn &e HO§SB CbH-
frases comentavam -a seu modo rmra o leitor. :tvlas o que acontece

fôrto interior para êsse ·mundo oferecido, con1 ·uma viólência que
aJJ§ ~"" fonpp n
'
deljJ?erndarneptv
humana superior que ali está expressa, para logo rejeitar para o
esquecimento, para as trevas, êsse auxiliar incômodo.
procuraríamos em vão no texto escrito corre·spondente, romance
ou roteiro. · Doravante, pelo !;;ontrário, os objetos pouco a pouco perderão
Todos podem perceber a natureza da mudança i·ealizada. No sua instabilidade e seus segredos, renunciarão a seus falsos mis-
romance inicial, os objetos e os gestos que serviam de apoio à téríos, a esta interioridade suspeita que um ensaísta chamou de
intriga desaparecem completamente para dar lugar apenas ão seliF "alma romântica das coisas". Estas não serão mais o vago reflexo
significado: a cadeira vazia não era mais do que uma ausência ou da vaga alma do herói, a .imagem de seus tormentos, a sombra
urna espera, a mão que pousa no ombro não era mais do que um de seus desejos. Ou antes, se ainda acontecer de servirem as
s~nal de sirnJ?atia, as ~rades da janela eram apenas a irnpossibi~ coisas, por un1 instante apenas, de apoio às paixões humanas, isso
hdade de sair. . . E eis que agora vemos a cadeira, o movimento sucederá apenas temporà1iarnente, e elas não aceitarão a tirania
da mão, a forma das grades. O significado delas contínua fla- das significações a não ser aparentemente - corno por troça - a
grante, mas em lugar de açambarcar nossa atenção, êie nos é fim de melhor mostrar a que ponto elas permanecem estranhas ao
dad? corno al~~ a mais; demais, n;e~mo; pois o que nos atinge, homem.
aquilo que persiste em nossa mernona, o que surge como essen- Quanto às personagens do romances, elas mesmas poderão
cial e. irredutível a vagas noções mentais são os próprios gestos, ser ricas em múltiplas ínterpretações possíveis; poderão, conforme
os ob1etos,. os deslocamentos e os contornos, aos quais a imagem as preocupações de cada uma, dar lugar a todos os comentários,
restituiu de uma só vez (sem o desejar) a realidade que tinham. psicológícos, psiquiátricos, religiosos ou políticos. Logo se per-
Pode parecer bizarro que êsses fragmentos de realidade bruta, ceberá sua indiferença em relação a essas pretensas riquezas. En-
que a narração cinematográfica não pode impedir-se de nos ofe- quanto que o herói tradicional é constantemente solicitado, açam-
recer à sua revelia, nos atinjam a tal ponto enquanto que cenas barcado, destruído por essas interpretações que o autor propõe,
idênticas, na vida quotidiana, não seriam suficientes para nos rejeitado incessantemente para um alhures imaterial e :instável,
fozer rnir de nossa 00
gudr? k'O& lilÍOÍtil; atào B8 J_iJlilliH !HlHIO B@ ce112pre nvais distante sen1;pre ]pais üupreçi5q o herói fpt11rq
as convenções da fotografia (as duas dimensões, o prêto e branco, pelo contrário - continuará ali. São os comentários que serão
a enquadração, as diferenças de escala entre os planos) -contri- deixados alhures; em face de sua presença irrefutável, aparecerão
buíssem para nos libertar de nossas próprias convenções. O as- como inúteis, supérfluos, e mesmo desonestos.
pecto pouco habitual dêsse mundo reproduzido nos revela, ao As peças incriminadoras do drama policial nos dão, parado-
mesmo tempo, o caráter não habitual do mundo que nos cerca: xalmente, uma imagem bastante justa dessa situação. Os elei11entos
não 11abitual, também êle, na medida em que se recusa a dobrar- colhidos pelos inspetores - objeto a\)andonado no local do crime,
se ante nossos hábitos de arreensão e ante nossa ordem:. movimento fixac1o numa fotografia, frase ouvida por uma teste~

16 1'1
mu.nha - .parec~n: sobr~tudo, inicialmente, pedir uma explicação, vertigem que então invadia o leitor, longe de engendrar a an-
parecem nao existir .ª nao ser em função de seu papel num caso gústia ou a náusea, pelo contrário, tranq:1iliza:a-o quanto ao seu
ue os su era. .· · /
ílil....lllllllll•lel_lllllllllllllllllt..liitlltllJ..1iJl[ll....~.."l!llltl-.!l!l;llfl!tllllifl~lllJll11i~llJllllllll~
11
ce~sária entre as coisas; acredita-se que tudo vai se resolver num
feixe banal de causas e de conseqüências, de intenções e de Nessas condições, não é surpreendente que o fenômeno lite-
acasos ... rário por excelência tenha residido no adjetivo global e único,
Mas a história começa a aumentar de volume de maneira que tentava reunir tôdas as qualidades internas, tôda a alma
inquietante: as testemunhas contradizem, o acusado multi lica oculta das coisas. A_ palavra funcionava assim como uma arma-
I • •

deiro. , tl:sses elementos, que bem podem esconder um mistéri~: como ainda por cima não acreditamos. mais nessa profundidade.'
o~ . trai-1?, que t;oçam dos sistemas, têm apenas uma qualidade Enquanto que as concepções essencialistas do homem viam sua
sena, evidente: e a de estarem ali. ruína, com a idéia de "condição" substituindo a partir de então
O mesmo atcmtece com o mundo que nos cerca. Acreditou- a de "natureza", a superfície das coisas deixou de ser para nós
se dominá-lo ao clhe atribuir um sentido, e tôda a arte do ro- a máscara que ocultava seu âmago, sentimento êste que levava
mance, em particular, parecia destinada a essa tarefa. Mas isso .,_::. a tôda espécie de "aléns" da metafísica.
era. uma ~implificação ilusória; e longe de se achar mais claro, Portanto, é tôda a linguagem literária que deveria mudar,
11;ais p~·óx1mo, o mundo com isso apenas perdeu, pouco a pouco, que já está mudando. Dia a dia constatamos a crescente repug-
toda vida. ~ma vez que, acima de tudo, é em sua presença que nância daqueles mais conscientes, diante da palavra de caráter
reside a realidade, trata-se agora; portanto, de construir uma lite- visceral, analógico ou encantatório. Enquanto que o adjetivo
ratura que preste contas dêle. óptico, descritivo, aquêle que se contenta com medir, com situar,
Tudo isso parecerá talvez bastante teórico, bastante ilusório limitar, definir, mostra provàvelmente o caminho difícil de uma
se exatamente alguma coisa não estivesse se transformando - ~ nova arte do romance.
mesmo de uma maneira total, sem dúvida defínitiva - nas rela-
ções que mantemos com o universo. Assim, entrevemos agora
a resposta a esta pergunta cheia de ironia: "Por que agora?".
Com efeit~, existe hoje um nôvo elemento que desta vez nos
separa radicalmente de Balzac, bem como de Gide ou de Mme.
de La Fayette: é a derrubada dos velhos mitos da "profundi-
dade".
Sabemos que ·tôda a literatura romanesca re ousava
, pape o escritor consistia tra-
dicionalmente em cavar_ n~ N.atureza, aprofundá-la, a fim de atingir
camadas. cada vez mais mtimas e de acabar por trazer para a
luz do drn algum pedaço de um segredo perturbador. Tendo des-
cido ao abismo das paixões humanas, êle enviava para o mundo
aparentemente tr~nciü_ilo (o <l<: superfície) mensagens de vitória
descrevendo os rnistenos que tmha tocado com a mão. E a sacra

18
19
SôBRE ALGUIVIAS NOÇÕES OBSOLETAS sentados"; escreveu sem nenhuma malícia o muito sério · Henri

iF emir 1!morren
Clouard.
(1957)
Ni ifi'Wlr~íl ô lcrrfüi
ll!iilf h 1 ln_ E Ei lt\ "' ."Ili
de iorti nr-
se agora está apodrecendo. Bastaria a todos aquêles que se agar-
ram a êsse aalho levantar os olhos uma única vez para o cume da
árvore para0 constatar que novos galhos, verde:, vigorosos, bem
vivos, estão crescendo já faz muito tempo. Uhsses e O Castelo
já passaram dos trinta anos. Le Bruit et Ia Fureur apareceu em
Jfü8BÔB hi liflOÍS ilo Hirto anos Sg~Jirow mJ?itos outros Pen
se

se proíba muito a si mesma de fazer incidir julcramentos sistemá-


eom&no,
MCOS &8b26 a lit@l&Lt11& (pfttClfd@lidb, p@16 §Mfal IM@-
mente desta oü daquela obra segundo critérios "naturais": o bom
sentido, o coração, etc.), basta ler com um pouco de atenção suas O personagem
análises para logo ver surgir urna rêde de palavras-chave, que
traem completamente a existência de um sistema.
Quanto já ouvimos sôbre o "personagem"! E infelizmente isso
Mas estamos tão habituados a ouvir falar de "personagem", não l!arece estar perto de acabar. Cinqüenta anos de doença, .ª
de "atmosfera", de "forma" e de "conteúdo", de "mensagem", do.,."' constatação de seu óbito registrado inúmeras vêzes pelos mais
"talento de contador", dos "verdadeiros romancistas", que nos é sérios ensaístas, nada disso conseguiu ainda fazer com que o
necessário um esfôrço para nos libertarmos dessa teia de aranha personagem caísse do pedestal onde o século XIX o tinha colo-
e para compreender que ela representa uma idéia sôbre o romance cado. É agora uma múmia, mas que continua se pavoneando com
(idéia já feita, que todos admitem sem discussão, portanto idéia a mesma majestade - ainda que postiça - no meio dos valores
morta) e não essa pretensa "natureza" do romance na qual que- que a crítica tradicional venera. É exatamente através dêsse ponto
riam nos fazer acreditar. que ela reconhece o "verdadeiro" romancista: "êle cria perso-
Talvez ainda mais perigosos são os têrmos correntemente nagens ... "
empregados para qualificar os livros que escapam a essas regras Para justificar o fundamento dêsse ponto de visla, utiliza-se
convencionadas. A palavra "vanguarda", por exemplo, apesar de o raciocínio habitual: Balzac deixou-nos Pere Goriot, Dostoievski
seu ar de imparcialidade, na maioria das vêzes serve para alguém aerou os Karamazov, portanto escrever romances não pode ser
ver-se livre - como com um dar de ombros - de tôda obra que ~utra coisa além disso: acrescentar algumas figuras modernas à
corre o risco de fazer com que a literatura de grande consumo oaaleria de retratos que
. constitui nossa história literária.
fiqll.'tl com a consciência pesada. A partir do instante em que o Um personagem, todo mundo sabe o que a palavra significa.
escritor renuncia às fórmulas usadas a fim de tentar forjar seu Não é um êle qualquer, anônimo e translúcido, simples sujeito
próprio estiloª logo vê colar-se a êle a etiguêta; "yanguarda" da ação expressa pelq yerbo TI-m personagem deve ter JJW pqmy
Em princípio, isso significa apenas que êle está um pouco próprio, composto se possível: nome de família e prenome. Deve
adiànte de sua época e que êsse estilo será utilizado amanhã pelo ter parentes, uma genealogia. Deve ter uma profissão. Se tiver
grosso da tropa. Mas na verdade o leitor, advertido por um piscar bens, melhor ainda. Enfim, deve possuir um "caráter", um rost0
de olhos, logo pensa nalguns jovens hirsutos que vão, um sor- que exprime êsse caráter, um passado que tenha modelado êste
riso no canto da bôca, colocar petardos debaixos das poltronas e aquêle. Seu caráter dita suas ações, faz com que reaja de uma
da Academia, com o único objetivo de fazer barulho ou de "épater determinada maneira a cada acontecimento. Seu caráter permite
les bomgeois". mes querem serrar o galho sôbre o qual estamos que o l_eitor o julgue, que goste dêle ou o odeie. É graças a

20 21
êsse ·caráter que, um dia, êle legará sett nome a um tipo humano um rosto num universo onde ·a personalidade representava ao
que aguardava, seria possível dizer, a consagração dêsse batismo. o meio e o fim de tôda ~recura.

i a e mm a
!~articularidade para se t~rnar insubstituível, e suficiente genera- mas também mais ambicioso, uma vez. que olha para além. O
lidade para se tornar umversal. Variando um pouco, a fim de culto exclusivo do "humano" cedeu lugar a urna tomada de cons-
dar, ~1ma- certa impressão de liberdade, seria possível escolher um ciência mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece
hero1 que parece transgredir uma dessas regms: uma criança vacilar, tendo perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói.
achada, um desocupado, um louco, um homem cujo caráter in- Se não consegue pôr-se de pé novamente é porque sua vida
e~rto 01m1,1 li!l a.,ai o ali smpd!Sii... l!iíliefahto,

p as ssnsspsm e &s ilblfmt§ dcl Ellde&. &afifo§


leitores ainda se lembram do nome do narrador em A Náusea ou A história
no Estrangeiro? Há aí tipos humanos? Pelo contrário, não seria
o maior absurdo considerar êsses livros como sendo estudos de Um romance, para a maioria dos amadores - e dos críticos ~
caráter? E Voyage at~ bout de la nuit descreve um personagem? é antes de mais nada uma "história". Um verdadeiro romancista
Por outro lado, acredita-se que foi por acaso que êsses três ro- é aquêle que sabe "contar uma história". A alegria de contar,
manc~s. foram es5ritos i~~ primeira pessoa? Beckett muda o nome+"'" que o leva de um extremo ao outro de sua obra, se identifica
e a fmma de seu hero1 no decorrer de uma mesma narrativa. com sua vocação de escritor. Inventar peripécias palpitantes, co-
Faulkner, de propósito, dá o mesmo nome a duas pessoas dife- movedoras, dramáticas, constitui ao mesmo tempo sua felicidade
rentes .. ,Quanto :ao K. do Castelo, êle se contenta com uma e sua justificação.
inicial, não possrii nada, não tem família, não tem rosto; provà- Da mesma forma, fazer a crítica de um romance freqüen-
velmente não é nem mesmo agrimensor. temente vem a ser contar a anedota que êle contém, mais ou
Seria possível multiplicar os exemplos. De fato,· os criadores menos brevemente, conforme o espaço de que se dispuser fôr
de personagens, no sentido tradicional da palavra, só conseguem de seis ou duas colunas, estendendo-se ·mais ou menos sôbre as
n?s propor fantoches em que êles mesmos já deixaram de acre- passagens essenciais: os nós e desenlaces da intriga. O julgamento
ditar. O rom~nce de P,ersonagens pertence inteiramente ao pas- que incindirá sôbre o livro consistirá sobretudo numa apreciação
s~do, caractenza uma epoca: a que marcou o apogeu do indi~ de sua coerência, de seu desenrolar, de seu equilíbrio, das expec-
v1duo. tativas ou das surprêsas que apronta para o leitor arquejante. Um
buraco na narrativa, um episódio mal concluído, urna quebra no
Talvez isto não seja um progresso, mas está fora de dúvida interêsse, uma demora no desenrolar da ação, serão os defeitos
que a época atual é antes a era do número de matrícula. Para maiores do livro; a vivacidade e a espontaneidade, suas mais altas
nós, o destino do mundo deixou de se identificar com a ascensão qualidades.
ou com a queda de alcruns homens, de al umas famílias. O ró-
nao e mais essa propne a e pnvac a, 1ereditária e elogiado apenas por se exprimir em linguagem correta, de ma-
conversível em dinheiro, essa espécie de prêsa que se tratava neira agradável, colorida, evocativa. . . Desta forma, o estilo não
menos de conhecer do que de conquistar. Ter um nome era será mais do que um meio, uma maneira; o fundo do romance,
sem dúvfda muito. importante no tempo da burguesia de Balzac. sua razão de ser, o que está dentro dêle, seria simplesmente a
Um carater era importante, tanto· maís importante quanto era história que êle conta.
sobretudo a arma de um corpo a corpo, a esperança de um su- Entretanto, desde as pessoas sérias (aquêles que admitem
cesso, o. exercício de um domínio. Representava alguma coisa ter que a literatura não deve ser uma simples distração) até os ama-
22
dores das píores asneiras sentimentais, policiais ou exóticas, todo caráter, a tal ponto mesmo que a invenção e a imaginação tor-
mundo tem o há.bíto de exigir da anedota uma qualidade y~r~i­ nam-se, em suma, o assunto do livro.
cular. Não lhe basta

sário ainda conseguir persuadir o leitor de que as aventuras que


lhe estão contando aconteceram de fato a personagens reais, e
gue o romancista se limíta a contar, a transmitir os acontecimentos
ele que foi testemunha. Estabelece-se uma convenção tácita entre
o leitor e o autor: êste faz ?~ conta que acredita no que conta,

em Jª pron a que em a rea i a e. ,


a confiança numa lógica justa e universal das coisas.
Assim, sejam quais forem o imprevisto das situações, os aci--
Todos os elemei1tos técnicos da narrativa - en:prêgo siste-
rlentes, as reações fortuitas, será necessário que a narrativa se
desenrole sem sobressaltos, como por si mesma, com êsse élan mático do passado perfeito e da terceira fe~soa ?-o ~mgul~r, a~o­
irreprimível que de imediato consegue nossa adesão. A menor ção incondicional do desenro~ar cronolog1c?,, i~1tngas . !m~ares,
hesítação, menor estranheza (por exemplo, dois elementos que~~e curva regular das paixões, tensa~ de cad~ episod10 na dueç~o ~e
contradigam, ou que não se encadeiam direito) e eis que a 011da um fim etc. - tudo objetivava impor a imagem d~ u;n umverso
romanesca deixa de levar o leitor, que de repente se pergunta estável 'coerente, contínuo, unívoco, inteiramente decifravel. Co~o
se não lhe estão "contando histórias", e que ameaça voltar aos
a intelÍgibilidade do mundo não estava nem mesmo em questao,
restemunhos autênticos, em relação aos quais, pelo menos, não contar não apresentava problema algum. O estilo do romance
terá d12 se fazer perguntas sôbre a verossimilhança das coisas. podia ser inocente. . · .
l\lais do que distrair, trata-se aqui de tranqüilizar. Mas eis que, a partir de Flaubert, tudo co_meça a vacilar. Cem
Enfim, se quiser que a ilusão seja completa, o romancista anos mais tarde, o sistema inteiro não é mais do que uma lem-
deve ser tído sempre como sabendo mais do que conta; a noção brança· e é a esta lembrança, a êste sistema morto, que se pre-
de "trecho da vida" demonstra bem a extensão dos conhecimentos tendia 'por tôda fôrça manter aprisionado o romance., No entanto,
que se supõe serem os do autor a respeito daquilo que aconteceu aqui ainda, basta ler os grandes r~mances _do co~e?.o de_ nos~o
antes e depois. No próp1io interíor da duração que descreve, século para constatar que, se a desmtegraçao da mt;i~a nao fez
deverá dar a impressão de fornecer apenas o principal, mas po- mais do que tornar-se mais nítida no decorrer ?o~ ultimas anos,
dendo sempre, se o leitor assim exigisse, contar bem mais. A há muito tempo ela já tinha deixado de_ consht111r ~ arcabouço
1

matéría do romance, à imagem da realidade, deve parecer ines- da narrativa. As exigências da anedota sao, sem duvida alguma,
gotável. menos constrangedoras para Proust do que para Flaubert, para
Sen1elhante à vida e5pqntânea sen1 ljipjte5 a bjstóri ªºH?;
Faullmer do que para Proust, para Beckett do que para Faulk-
iiéi. . . DóiãVãiité, tiãtã-§8 à:e diiiã Odlíã CO!Sã. euncat lóliiüd-Sê
2
..3
:~ numa palavra, ser natural. Infelizmente, mesmo admitindo-se que
literalmente impossível.
haja ainda alguma coisa de "natural" nas relações do homem com

' o mundo, verifica-se que o estilo, corno qualquer outra forma de Entretanto, é um êrro pretender que nos romance.: modernos
arte, é - pelo contrário - uma intervenção. O que faz a fôrça não acontece mais nada. Da mesma forma como nao se deve
do romancista é yxatamcnte aquilo que ele inventa, que êle concluir pela ausência do homem _sob o pretext? ~e qtw o p~r­
inventa em plena liberdade, sem nenhum modêlo. O romance sonagem tradicional desapareceu, nao se deve ass.imilar a pesqm.:a
moderno tem isso de notável: êle afirma propositadamente êste de novas estiuturas da narrativa a uma tentativa de supressao
pura e simples de todo acontecimento, de tôda paixão, de tôda

25
coisa (quer seja mostrar a miséria do b6mem se.1;-i J:?eus, explicar
fazer com ue sur·am consciencias de classe,
, , , esenvo v1mento os
temas e suas múltiplas associações h·ansformam tôda a cronologia,
a ponto de soterrar outra vez, de afogar, no decorrer do romance,
aquilo que a narrativa acabou de revelar. No próprio Beckett
não faltam acontecimentos, mas êstes estão incessantemente con-
testando a si mesmos, pondo-se em questão, destruindo-se, de tal
h-.a !Jtte ama mesma frase püt'té Córnêr uma constatação e sua

A •

ou e 0 comprormsso , engagemer:, ; ?I o cas? . ªn;, em, a


Voyeur comportam, tanto um quanto outro, uma "ação" das mais com côres mais ingênu;is, do reahsmo sociahsta .
facilmente discerníveis, e ainda por cima rica em elementos geral-
mente considerados como dramáticos. Se no comêço pareceram Sem dúvida, a idéia de uma possível, ?onjunçã~ ~ntre, uma
desconexos a certos leitores, não foi simplesmente porque nessas novação artística e uma revolução · poht1co-econom1ca e da-
r:elas que vêm 0 mais naturalment«1 possível .à nossa. mente.
obras o movimento do estilo é mais importante do que o das
paixões e dos crimes? Mas posso imaginar fàcilnente que em ~sta idéia, desde. logo sedutora sob o ponto d~ v1st~ sentimenta,l,
ainda por cima parece encontrar apoio na mais evidente ~as l_?-
algumas dezenas de anos - talvez mais cedo - quando êste
gicas. Entretanto, os problemas levantados ~or s~m~lhante hgaçao
estilo, assimilado, em vias de se tomar acadêmico, por sua vez
passar despercebido, e quando sem dúvida nenhuma os jovens são graves e difíceis, urgentes, mas talvez msoluveis.
De início, a relação parece simp~e~. Por um lado, as fo~mas
escritores deverão estar procurando fazer outra coisa, a crítica
artísticas que se sucederam na ~istona dos. povos ,nos sm ge~
da época, achando uma vez mais que nada acontece nos livros.
como ligadas a êste ou aquêle tipo de sociedad~, a prep~onde
d~sses jovens, irá censurá-los por sua falta de imaginação e lhes
rância desta ou daquela classe, ao exercício · de uma opressao ou
mostrará nossos romances como exemplo: "Vejam, dirão, como
nos anos cinqüenta se sabia inventar uma história!". à eclosão de uma liberdade. Na França, po~ exempl~, no setor
da literatura, não é gratuito ver uma estreit.a relaç~o enti;_e. a
tra édia de Racine e 0 desabrochar de uma anstoc~·acrn da corte,
O compromisso en~e 0 romance de Balzac e o triunfo da burguesia, etc.
Como, por outro lado, admite-se. com .boa vontade, n;esmo
entre ós conservadores, que os grandes artistas contemporaneos,
Uma vez que contar para distrair é fútil e que contar para
fazer com· que creiam naquilo que se conta tornou-se suspeito, escritores ou pintores, na maioria das vêzes pert~ncem (ou pe~ten­
º. romancista pensa en~rever um outro caminho: contar para en- ceram na época de suas maiores obras); aos :partidos progre.ss~s;as,
eixamo-nos levar ela constru ão do. ;se umte es uema 1dihco:
zerem, com condescendência, que: "Eu não leio mais romances, a Arte e a Revolução avançam e mãos • a as, utan o pe a mesma
já passei .da idade, isso é bom para as mulheres (que não têm causa, experimentando as mesmas provações, enfrentado .ºs mes·-
nada a fazer), prefiro a realidade ... " e outras asneiras do tipo, mos perigos, realizando pouco a pouco as mesmas conqmstas, al-
o romancista vai se inclinar sôbre a literatura didática. Aqui, çando-se finalmente à mesma apoteose. .
pelo menos, êle espera reconquistar sua vantagem: a realidade Infelizmente, a partir do momento em que se passa pa~a a
é muito desnorteante, ambígüa demais para que cada um de nós prática as coisas mudam de figura. O menos que se pode dizer,
possa extrair dela uma lição. Quando se trata de provar alguma atualm~nte, é que os dados do problema não são t~o sin:ples
assim. Todos conhecem as comédias e os dramas que impediram
26
27
1 tinq~erita anos, e. que impedem ainda, tôdas as tentativas de
?á da causa revolucionária; não serão mais do que instrumentos,
. ma 1zaçao .do maravilhoso casamento que se supunha ser ao comparáveis aos exércitos motorizados, às ferramentas mecaniza-
mesmo iilii?
! 'lit0CD t arnntt,
E
iliir , iíHlili 1 @ , , '
as Âisputas retumbantes as
trh@J' illXFfi tiífilU e Mia nm ?l!? trpprtrrt m't rw
âxcomunho~s, as pnsoes, os suicídios? Como poderíamos deÍxar
e, ver aqm o que a pintura se tornou, para citar a enas ela nos
paises ond~ a revolução triunfou? Como deixar d! sorrir dÍante
das acusaçoes de "decadência" de "gratuidade" de "f l' "
aplicada ' , orma ismo
.1 s ao acaso pe1os mais zelosos dos revolucionários a tud~
~qm d'f'.19 tliiU tiÓJ hüpb±Lá é 1iiditó na arte Contemporânea?
0

1 c , e ur
f 1 Ef $ 2 ff?? 22
greve, de uma revolta, de um grito de uma vítima que
denm1cia seus carrascos, no final das contas representa um des-
serviço à Arte e à Revolução. Muitas dessas confusões foram
cometidas, nestes últimos anos, em nome do realismo socialista.
A total indigência artística das obras que insistem em seus con-
ceitos não é, sem dúvida alguma, mero efeito de um acaso: é
a própria noção de uma obra criada para a expressão de um con-
teúdo social, político, econômico, moral, etc. que se constitui numa
mentira.
Portanto, devemos agora, de uma vez por tôdas, deixar de
levar a sério as acusações de gratuidade, deixar de temer "a arte
pela arte" como se isso fôsse o pior dos males, recusar todo êsse
aparelho terrorista que era brandido à nossa frente logo que
falávamos de outra coisa que não fôsse da luta de classes ou da
guerra anti-colonialista.
Entretanto, nem tudo era a priori condenável nessa teoria
soviética do chamado "realismo socialista". Também na literatura,
por exemplo, não se tratava· de reagir contra um acúmulo de
falsa filosofia que aca~ara invadindo tudo, da poesia ao romance?
Opondo-se às alegorias metafísicas, lutando tanto contra as abs-
tratas "redomas de marfim" que essas alegorias supunham quanto
eonna o delírio verbal scn1 objetivo ou conlia o vago scnthncnta
lismo das paixões, o realismo socialista podia ter uma sadia in-
fluência.
Aqui não têm mais lugar as ideologias enganosas e os mitos.
A literatura simplesmente expõe a situação do homem e do uni-
verso com que está às voltas. Ao mesmo tempo em que desa-
pareceram os "valores" terrestres da sociedade burguesa, desa-
pareceram também os recursos mágicos, religiosos ou filosóficos

29
mais na a.
Observemos agora o resultado disso tudo. Que nos oferece Que sobra então do engagement? Sartre, que viu od perigo
o realismo socialista? Evidentemente, desta 'vez, os bons são os dessa literatura moralizadora, tinha pregado em fa~~r . e u~;i
bons e os maus são os maus. Mas, exatamente, a insistência de literatura moral, que pretendia apendas despertar ?ºdn:~~en~~~ Pqºu~
~~:: :r~a ªr~e~~~í:~oº~a
que isto é óbvio não tem nada a ver com aquilo que observamos t problemas e .nossa socie ,
propaganda iao restabelecer o leitor. em
no mundo. Que progresso há nisso, se para escapar ao desdohta-
ua Plena liberdade. A experiência ruóstrou que se tratava, ainda
mento das aparências e das essências caímos num maniqueísmo
s .P de uma utopia: a partir do instante em que1 ~urge a preo-
aqm, ~ d e s"gnificar
entre o bem e o mal?
cupaçao i alguma coisa .!(algo
, ·de extenor à arte), a
Há algo mais grave ainda. Quando, nas narrativas menos literatura começa a recuar, a desapan~cer. . , .
ingênuas, encontramo-nos diante de homens verossímeis, num
Portanto atribuamos à noção de! compromisso o umco se~­
mundo complexo e dotado de uma existência sensível, logo nos tido ue ela' ode ter para nós. Em }ugar de ser na~~ez~ po 1-
apercebemos, apesar de tudo, de que êste mundo· e êstes homens . qo compromiss
P . o é' para o escritor' a plena · consciencrn dos
tica ~ da extrema
foram construídos face a uma determinada interpretação. Aliás, problemas atuais de sua própria linguagem, a convilç~ol r
seus autores não escondem êsse fato: para êles, trata-se ,antes de . o tância dêsses problemas, a vontade de reso ve- os a par ir
tudo, de ilustrar, com a maior exatidão possível, comportamentos
históricos, econômicos, sociais, políticos.
~:Pla~o interno. Reside aí, para êle, a {mie~ i;ossibilidade de con-
tinuar a ser um artista e também, sem duv1.da, por. uma conse-
Ora, do ponto de vista da literatura, as verdades econômicas, qüência obscura e distante, a de~ talvez servir um dia a alguma
as teorias marxistas sôbre a mais-valia e a usurpação também são coisa _ talvez mesmo à revoluçao.
"redomas de marfin:/'. Se os romances progressistas só devem ter
uma realidade relacionada a essas explicações funcionais do mun-
do visível, antecipadamente preparadas, experimentadas, reconhe- A forma e o conteúdo
cidas não çgpsef§nimoo ~01eek1 dfietLO qual podena ser o poder
de descoberta ou de invenção que teriam; e, sobretudo, isso seria Uma coisa deveria incomodar os .adeptos do realismo socia-
mais uma vez uma nova maneira de recusar ao mundo sua quali- lista. é a perfeita semelhança de seus argumentos, de s~u voca-
dade mais certa: o simples fato. de que êle existe. Uma explicação, bulá~io de seus valores, com os dos críticos burgueses ~fa1s er;,c~-
niçados. Por dexemp ?.' o~~eúdo" isto é quando se tratar de opor
seja qual fôr, só pode ser demais frente à presença das coisas. ' 1 ando se trata de separar a arma e
Uma teoria de sua função social, se essa teoria presidiu a des- um romance e seu e ' .' · - A dos tem-
crição dessas coisas só pode confundir seus perfis, falsificá-las, da o estilo (escolha das palavras e sua dispos1çao, ei~prego ) à ane-
pos gramat.ica1s
. e .das pessoas' estrutura
· • da narrativa, etc.
30
31
restre a Felicidade futura ou a eterna Verdade. Enquanto que,
na vé~·dade se a arte é alcruma coisa, ela é tudo, que por conse-

nao ífere tanto quanto uns e outros pretendem. Em todo caso


Pi?) Qlk , 22l li fÍYI iLe iliEnni Q'if
i. "tHII _ E ii l
nada além dela.

a históri~ que .é ~ontada (segundo sua óptica comum) continua ~


s~r a co1s~ m,a1s rmportante entre tôdas as outras; 0 bom roman-
cista contmua a ser aquêle que inventa lindas histórias ou que
ª,s ~onta melhor; o "grande" romance enfim, tanto aqui como
h; e 2pel??11 . il~ ôle s&j& signifi:caçào Sttpéiã ã clüMüfa que a etê JUS4Cat vas. 11 zca±a e roa , 11obatt a 1 ;
· ual uer sentido. O mesmo

que a acusaçao seja


pm@
1d
ªuA' d
arnzms ??? ) A l d 15
SS6!63 6 Mil OS 6§
a os.. :n a d~sta vez, a12e3ar ?o
qi;e dizem, aquilo que essa
p~lavrn 1evela e um~ dec1sao s1stematica sôbre o romance; e,
amd~ desta vez, debaixo de seu aspecto natural, o sistema esconde
as p101:es abstrações - para não dizer os piores absurdos. Além
?o ~~1s, po~e-se descobrir aí um certo desprêzo pela literatura,
rmphc1to pore.~ ~lagrante, que surpreende tanto ao provir de sel.l,3-
defensores of1cia1s - os. conservadores da arte e da tradição _
quanto daqueles que fizeram da cultura de massa seu cavalo
de batalha predileto.
Que .entendem ao certo por formalismo? A coisa está bem
clara: sena uma preocupação muito acentuada pela forma _ e
neste. ca~~, pela técnica do romance - às custas da história e d~
A

seu s1gmficado. Será que esse velho barco furado _ a oposição


escolar entre a forma e o fundo - ainda não naufragou?
Seria. possível dizer, na verdade, que acontece exatamente
o c.ontráno, e que esta idéia formada grassa com uma virulência
ma10r do que nunca. Se encontramos essa censura de formalismo
sob a pena dos p~ores inimigos aqui reconciliados (amadores das
belas-artes e servidores de Jdanov), isto não é evidentemente 0
resultado de um encontro fortuito; êles estão de acôrdo pelo
meno~ n;nn. ponto. essencial: recusar à arte sua principal condição
de epstencrn a· liberdade Uns só ~noram. 01 na l't t
Donde, o mal-estar que sentimos diante dos romances "en-
gagés" que se pretendem revolucionários P.ºr9-ue põem em c~na
a condição operária e os problemas do socialismo. A forma lite-
rária que apresentam, que freqüentemente data de antes de 1848,
fazem dêles os mais atrasados dos romances burgueses: sua real
significação, perfeitamente sensível à leitura, os valores que dêles
se extraem são exatamente idênticos aos de nossos séculos XIX
32 33
; d m se darem conta disso, é mantida
frem na maior Pª!-Je d o ~~m~r~t:;a a começar pela crítica de uma
pela quases totaldi
er a a uee re tende , em todos os outros setores, lutar

i men e. ar e não o e ece a nenhuma servidão dêsse


gênero, nem aliás a nenhuma outra função pré-estabelecida. Não gradar ou surpreender: exatamente aqueA1es que . a atam uma
d - tôda
se apóia em nenhuma verdade que existiria antes dela; e pode-se - um molde - que já foi provado ma~ que per eu
dizer que não mqnime nada além de si mesma. Ela mesma cria ff%~çaª tôda vida. São formalistas pC>tque aceitarafi;i umlaª efoprmorª
' esclerosada, que nao- e, mais· do que uma ormu , -
seu próprio equilíbrio e seu próprio sentido. Fica de pé sozinha, já feita
tal como a zebra; caso contrário, cai. , .""- ue se' agarram a essa carcaça descarnada. -
Compreende-se assim o absurdo desta expressão favorita de q O , blico por sua vez facilmente associa a preocupaçao pela
pu ' .' - - , dade a partir do momento
nossa crítica tradicional: "Fulano tem alguma coisa a dizer e o forma com a frieza. M~,s iss? nao ~ ver - 't E a frieza
diz bem." Não poderíamos adiantar, pelo contrário, que o ver- em ue a forma se toma mvençao e nao recei a. . ,
dadeiro escritor não tem nada a dizer? Tem apenas uma maneira .q o formalismo, está inteiramente do lado do res~eito
de dizer. Deve criar um mundo, mas isto a partir de nada, do assrm como . E rela ão a todos os grandes romancistas
pó ... pelas regras mortas. m ç diários e sua correspon-
das últimos cem anos, sabemos Pº~ose;: seu trabalho, aquilo que
Então, é a acusação de "gratuidade" que nos é oposta, sob dência que a constante preocuraAç ·a mai's espontânea tôda sua
o pretexto de que afirmamos nossa não dependência. A arte pela . . · ões sua exigenci '
arte não tem bom público: isso faz com que se pense em jôgo,
constitum suas paix ' f t , da qual suas obras sobre-
vida, foi justamente essa arma, a raves
impostura, diletantismo. Mas a necessidade, que a obra de arte viveram.
reconhece, nada tem a ver com a utilidade. É uma necessidade
absolutamente interna, que evidentemente surge como gratuidade
quando o sistema de referência é fixado a partir do exterior: face
à revolução, por exemplo, como dissemos, a arte mais elevada
pode parecer um empreendimento secundário, irrisório mesmo.
É aqui que reside a difiçuldad 2
csta1ia 1rontaào d CSCICVCI
impossibilidade - da criação: a obra deve se impor como ne-
cessária, mas necessária para nada; sua arquitetura não tem ne-
nhum emprêgo; sua fôrça é uma fôrça inútil. Se hoje essas
evidências passam por paradoxos, quando se trata do romance, en-
quanto todos as admitem sem problema para a música, é apenas
por causa daquilo que se deve chamar de alienação da literatura
no mundo moderno. Esta alienação, que os próprios escritores so-

34 35
NATUREZA, HUMANISMO, TRAGÉDIA
1958
quilizador, de me ia or; e con enavam-me em no e
Enfim eu era muito ingênuo, diziam-me, para pretende~
negar essa' profundidade: meus próprios _livros só· ~~eressa:ram, so
eram legíveis na medida em que - medida. esta, ahas, mmt~ con-
trovertida _ eram a expressão, à minha revelia, dessa profundidade.
A tragédia é apenas um meio de se recolher a .... J.. • k a1 s1 israe wuito fraco epti·e qs três rq . .:
~dê So cx±scc &Ili p1:r.,.1el!l!!I!
!!PJ!'911!11 • , •
misér·i.a hiimana, de classificá.la, portanto de fusU-

;. '=mx a ~:wwr·r · · · r rTm·~·· ·rat"


rocurar os meios técnicos de não sucumbir
r içoeu·amen e a isso nac a e mais msi ioso que a artigo de dez páginas apenas; e em to os ente~ erao que
tragédia) constitui hoje um empreendimento neces- mais fácil indicar urna nova direção do que segm-la, sem. c_lUe
sárfo. um fracasso _ parcial ou mesmo total -; seja uma prova declSlva, .
Roland BARTHES definitiva, do êrro cometido logo de saida.
Finalmente, é preciso acrescentar que o próprio d? hm~1a­
nismo, cristão ou não, é exatamente ,tudo recuperar, ~cluswe.
aquilo que tenta esboçar limites para esse mesmo humamsmo, e.
mesmo aquilo que 0 recusa em seu conjunto. Na verdade, esta
Há já dois anos, tentando definir as direções de uma pes- é mesmo uma das fontes de seu funcionamento.
quisa do romance ainda hesitante, eu admitia como sendo ponto Não se trata de querer· justificar-m~ a ~odo custo: procuro
pacífico "a destituição dos velhos mitos da profundidade". As simplesmente enxergar mais claro no me10 disso t:ido. A,s toma-
re::rções muito vivas e quase unânimes da crítica, as objeções de das de posição acima citadas ajudam-me de maneira notavel. O
inúmeros leitores aparentemente de boa fé, as reservas formuladas que hoje empreendo é menos refutar seus argumentos do q;ie
por vários amigos sinceros demonstraram-me que eu estava indo tornar preciso seu alcance, esclarec~ndo ~o mesmo. t~U:Pº aqu:lo
longe demais muito depressa. Exceção feita a alguns já compro- que me separa de tais. pontos de vista. E sempre. mut~l, compr~~
metidos em pesquisas semelhantes - artísticas, literárias ou filo- meter-se numa polêmica; porém, se um verdadei:? dialo~o f~r.
sóficas - ninguém queria admitir que semelhante afirmação não possível não se deve perder a ocasião. E se o dialogo nao for
acarretava necessàriamente a negação do homem. Com efeito, a possível' é preciso saber por quê. De qualquer modo, todos
fidelidade aos velhos mitos se revelava muito tenaz. temos 1~uito interêsse por êsses problemas, e vale a pena falar·
O fato de escritores tão diferentes quanto François Mauriac dêles novamente, sem reservas.
e André Rousseaux, por exemplo, concordarem em denunciar na Antes de mais nada, não haveria nesse tênno humano que
dororiçii@ mrnhsin1 dos "0 lfllll!lfü1i11s" rma HH~HaçitJ g"Ittbittt, cana llõ§ jõgãnt na caia a111a e~± ~ araa
! @l@? bo FJÕO
? fôr uma pa 1avrª
cegueira de jovens revoltados, uma espécie de desespêro estéril vazia de sentido, que sentido tem ao certo.
que levava à . destruição da arte, parecia apesar de tudo estar Parece que aquêles que o usam o tempo t?do, aquêles. que
perfeitamente inscrito na ordem das coisas. Mais inesperada, mais
inquietante era a posição - idêntica, sob muitos pontos de vista -
fazem dêle o único critério tanto para os elog10s como p~ra
censuras confundem - voluntàriamente, talvez - a meditaçao
:s
de certos materialistas que, para julgar meu trabalho, se referiam exata (e' limitada) sôbre o homem, sua situação no mundo, os
a "valores" notàvelmente idênticos aos valores tradicionais da cris- fenômenos de sua existência, com uma certa atmosfera antropo-
tandade. Entretanto, para êles não se tratava de um parti pris con- cêntrica, vaga, mas que banha tôdas as coisas, dando a tudo sua
36 37
pretensa significação, isto é, investindo tudo No setor literário, a expressão dessa solidariedade surge so-
do interior bretudo como a procura, erigida em sistema, das relações analó-
com uma rêde mais ou menos sorrat ·

possível resumi-la em duas frases; se eu disser: "O mundo ~ o om e eito, a meta ora nao e nunca uma 1gura mocen e.
Dizer que o tempo é "caprichoso" ou que a montanha é "majes-
h?mem":, semr;re cc:_nseguire! a absolvição; e~quanto que, se eu
disser: ~s coisas s~o as coisas, e o homem e apenas o homem", tosa", falar do "coração" da floresta, de um sol "impiedoso'', de
logo serei reconhecido culpado de crime contra a humanidade. uma aldeia "escondida" no fundo do vale, é, numa certa medida,
fomecer indicações sôbre as próprias coisas: forma, dimensões, si-
_? crime é afirmar que existe alguma coisa, no mundo, que tuação, etc. Mas a escolha de um vocabulário analógico, ainda
PªOeOb0 Pªm;
1
e o"'~ o,
'!ngpõlíiliíHiilliil!Jil!!I!@ '1 ao na à: a l Chi 6lii Cu111u1u
com êle. Sobretudo, o crime é na ó tica A

Por w1 re in,.:i~ qF? pds l D!I am221aPP J!liii


particular, como é que poderia um romance que trata de um nossa literatura contemporânea, essas analogias antropomodistas
homem e que se apega de página em página a cada um de seus repetem-se com muíta insistência, demasiada c~rência, de :r;i~do
~ass?s, d~screvendo apenas o que êle faz, aquilo que vê, ou que que não consegue deixar de revelar :1 todo um sistema metaflSlco.
ele imagma, ser acusado de se desviar do homem? E não é o Mais ou menos conscientemente, só pode se tratar, para os
próprio personagem, ressaltemos de imediato êste ponto, que está escritores que usam semelhante tern;iinologia, de estabelecer ?m
~m. ~ansa n~ste julgamento. Enquanto "personagem", enquantõ constante relacionamento entre o universo e o ser que o habita.
mdividuo ammado por tormentos e paixões, ninguém jamais o Assim, os sentimentos do homem par~cerão alternadamente nascer
censurará por ser inumano, ainda que seja um louco sádico e um de seus contatos com o mundo e encontrar neste sua correspon-
criminpso - muito pelo contrário, diriam. dência natural, se não mesmo seu desabrochar.
Mas eis qve o olhar dêsse homem pousa sôbre as coisas com A metáfora, que se presume não exprimir mais do que uma
uma inquebraritável insistência: êle as vê, mas recusa apropriar-se comparação sem seg~mdas intençõ~s, na verda.de tr~z à tona um.a
delas, recusa-se a manter com elas um entendimento suspeito, não comunicacão subterranea un1 movimento de simpatia( ou de anti-
quer ter com elas nenhuma conivência; não lhes pede nada; em patia) qu~ é sua verdad~ira razão de ser. Pois, enquanto compa-
relação a elas não sente nem concordância nem dissentimento de ração, ela é quase sempre uma comp~ração in~1til, que nada ti·az
espécie alguma. Pode, talvez, fazer delas o suporte para suas de nôvo para a descrição. Que perdena a aldeia por estar apenas
paixões, bem como de seu olhar. Mas seu olhar contenta-se com "situada" no fundo do vale? A palavra "escondida" não nos for-
tomar as medidas dessas coisas; e sua paixão, da mesma forma, nece nenhuma informação complementar. Em compensação, trans-
coloca-se à superfície delas, sem desejar penetrá-las, uma vez rorta o leitor (depois do autor) para a suposta alma da aldeia;
que nada há em seu interior, sem ousar fazer o menor apêlo, se aceito a palavra "escondida" não sou mais apenas um espec-
pois elas não responderiam. tador; eu mesmo me tomo a aldeia, durante a duração de uma
Condenar, em nome do humano, o romance que põe em cena frase, e o fundo do vale funciona como uma cavidade na qual
um tal 1101110111 é po1ra11to adota± o pouca etê Vl§lã Hüffiãn1sia, prntenél:o él:es1tp1t1eee1.
segundo o qual não basta mostrar o homem ali onde está: é Baseando-se nesta possível adesão, os defensores da metá-
preciso ainda proclamar que o mundo está em tôda parte. Sob fora responderão que ela possui assim uma vantagem: ~ de t~mar
o pretexto de que o homem só pode ter do mundo um conheci- sensível um elemento que não o era. Tornando-se aldeia - dizem
mento subjetivo, o humanismo decide escolher o homem como - o leitor participa da situação desta última, e portanto c~mpr~­
justificação de tudo. Verdadeira ponte das almas lançada entre ende-a melhor. O mesmo em relação à montanha: tomarei mais
o homem e as coisas, o olhar do humanismo t$1 acima de fudo, fácil o ato de ver a montanha dizendo que ela é majestosa do
o penhor de uma solidariedade. que medindo o ângulo aparente pelo. qual meu olhar regish·a sua

.! 38 39
i 1
altura. . . E isso algumas vêzes é verdadeiro, mas sempre com- para tôdas as intenções e propósitos digna de atrair minha
porta
• ~
um avêsso da coisa mais perigoso: é justamente essa parti- atenção.

ciência servin o-nos as coisas como e um ma ena , a mesma


Deve-se ainda acrescentar que o acréscimo de valor descri- forma como podemos construir ~ma ca~an~ c~m toros de ma-
tivo é aqui apenas um álibi: os verdadeiros amadores da metá- deiras. Confundir desta maneira mmha propna tnsteza com aquela
fora visam apenas impor a idéia de uma comunicação. Se não por mim atribuída a uma paisagem, admitir essa ligação com?
dispusessem do verbo "esconder-se", nem mesmo falariam da pos- sendo não superficial é com isso rec?nhecer u_m~ certa prede~tí~
si ão da aldeia. alt ra · ' a ã ara minha vida atual: essa a1sa em existia antes de mim,

r 'PffW"WWJ>'fW~

que trazem ao recém-nascido, cada uma delas e como presente,


um dos traços de seu futuro caráter. Assim, a montanha talvez
me teria comunicado, em primeiro lugar, o sentimento do majes-
toso - isso é o que me insinuam. A seguir, êsse sentimento se
teria desenvolvido em mim e, por crescimento natural, teria en-
gendrado outros sentimentos: magnificência, prestígio, heroísmq.
nobreza, orgulho. Por minha vez, eu os carregaria para outrôs
objetos, ainda que de porte mais medíocre (falaria de um car-
valho orgulhoso, de um vaso de linhas cheias de nobreza ... ) e o
mundo se tornaria o depositário de tôdas as minhas aspirações à
grandeza, seria ao mesmo tempo a imagem e a justificação dessas
aspirações, por tôda a eternidade.
O mesmo aconteceria em relação a cada sentimento, e nessas
incessantes trocas, multiplicadas ao infinito, eu não conseguiria
mais encontrar a origem de coisa alguma. Inicialmente, a majes-
tade se situava em mim ou à minha frente? A própria pergunta
perderia seu sentido. Apenas haveria entre eu e o mundo uma
sublime comunhão.
Depois, com o hábito, eu iria facilmente muito mais longe
ainda. Uma vez admitido o princípio dessa comunhão, eu falaria
da tristeza de uma paisagem, da indiferença de uma pedra, da
fatai@laàc àc arn balde àc ca1vau. I!:SbdS iiUVãS liiétãfdf㧠iiãó
mais fornecem apreciáveis ensinamentos sôbre os objetos subme- bem como provàvelmente em todo ~umams~~· No fn;i .da~ co:i-
tidos a meu exame, mas o mundo das coisas estaria tão conta- tas, é· apenas levar às suas cons·eqüencias log1cas a reivmd1caçao
minado por meu espírito que doravante êle seria suscetível de de minha liberdade.
não importa que emoção, de não importa que traço de caráter. Assim nada deve ser esquecido na operação de limpeza.
Eu esqueceria; que sou só eu quem 'experimenta a tristeza ou a Olhando de mais perto, percebe-se que as analogias antropoce~­
solidão; êsses. elementos afetivos logo serão considerados como tristas (mentais ou viscerais) não são as únicas qu~ se deve por
a realidade profunda do universo material, a única realidade - em causa. Tôdas as analogias são igualmente pengosas. Talvez
40 41
E o homem de hoje (ou de amanhã ... ) não sente mais essa

ftlâJi' dtlfiFfftrº131fff2td lltú}'tg[ftsf8EfüJ,tít1BilI


1

nenhuma vertigem. Seu coração não tem mais necessidade de


levar a consequencia alguma. Mas falar do "galope" de uma
nuvem, ou de sua "crina desgrenhada" já não é mais absoluta- um abismo onde se ocultar.
me?te inoce~te. Poi~ se uma nuvem (ou uma onda, ou uma Pois se êle recusa a comunhão, recusa também a tragédia.
;olma) possm,,uma crma, se mais longe a crina de um garanhão A tragédia pode ser definida aqui como uma tentativa de
1ança flechas , se a flecha. . . etc. o leitor de tais ima · ' recuperação da distância que existe entre o homem e as coisas,
o umverso as ormas para se encontrar mergulhado num uni-

rrr z '"~., " 1 r ·- i'.ibçifi:frm;:~Jl$~@$ZJnJi$$Z,\&;zg!Jt;>!: p;Y!~!~P . i uma vez que o acor o en re o 1omem e as coisas aca ou por ser
vagena. . . A ideia de uma natureza leva infalivelmente à idéia r' .. t a a . s
~º .ama nmmaa wmam u LGGJ§ m e&&M, ma e, süp&HOf. x , • , ; 1 • • 1 •

diato uma nova forma de solidariedaqe, com o próprio divórcio


idéia de uma interioridade leva sempre à de uma superação.
tornando-se um caminho maior para a redenção.
E a tarefa se amplia passa a passo: do arco ao cavalo do
É ainda quase uma comunhão, porém dolorosa, perpetua-
cavalo à onda - e do mar ao amor. A natureza comum ~ma
mente em dúvida e sempre adiada, cuja eficácia é proporcional
vez mais, não po~e. ?eix~r de ser ª. e~erna resposta à únic~ per- ao caráter inacessível. É um avêsso, é uma armadilha - e é uma
gunta ~e nossa CIV1hzaçao greco-cnsta; a Esfinge está à minhª
frente, mte:-roga-me, nã? tenho nem mesmo de tentar compre: falsificação.
ender os termos do emgma que ela me propõe, só existe uma Vê-se com efeito a que ponto essa espécie de união é per-
resposta possível, uma única resposta para tudo: o homem. vertida: em lugar de ser a procura de um bem, ela é desta vez
Póis bem, não. a bênção de um mal. A desgraça, o fracasso, a solidão, a culpa,
a loucura, tais são os acidentes de nossa existência que gostariam
Existem perguntas, e respostas. O homem é apenas, de seu que .acolhêssemos como os melhores penhores de nossa salvação.
próprio ponto de vista, a única testemunha. Acolher, não aceitar: trata-se de alimentá-los às nossas custas en-
O homem olha o mundo, e o mundo não lhe devolve o olhar quanto continuamos a lutar contra êles. Pois a tragédia não com-
O homem ~ê. as coisas e percebe, ,agora, que pode escapar a~ porta nem verdadeira aceitação, nem recusa verossímil. Ela é
pacto. metafis.1co que outros conclmram por êle, outrora, e que a sublimação de uma diferença.
com isso pode escapar também à sujeição e ao mêdo. Que êle Tracemos outra vez, a título de exemplo, o funcionamento
pode. . . que poderá um dia, pelo menos. da "solidão". Chamo. Ninguém me responde. Em vez de con-
, . Nem por i~s? recusa todo contato com o mundo; pelo con- cluir que não há ninguém - coisa que poderia ser uma consta-
trano; .aceit~ utilizá-lo para fins m~teriais: um utensílio, enquanto tação pura e simples, datada, localizada no espaço e no tempo -
utensílio, nao tem nunca profundidade; um utensílio é inteira- decido agir como se houvesse alguém mas que, por uma ou outra
mente forma e matéria - e finalidade. razão, não respondesse. A partir de então, o silêncio que se segue
/\ ,.., ' • • A ' '

bat.e uma estaca que quer cravar. Enquanto está utilizando-o conteúdo, de uma profundidade, de uma alma - que logo me
a~srm, o ~artelo (ou o p:~aço de madeira) é apenas forma e maté- remete à minha própria. A distância entre meu grito, aos meus
na: s~u peso, :ua superficie de contato, sua outra extremidade que próprios ouvidos, e o interlocutor mtido (talvez surdo) ao qual
P,e~i.mt~ que ele.º segi:re .. O homem, a seguir, repousa 0 uten- êle se dirige, torna-se uma angústia, minha esperança e minha
s1ho diante de s1; se nao tiver mais necessidade dêle o martelo desesperança, um sentido para minha vida. Doravante, nada mais
não é mais do que uma coisa entre as coisas: fora de seu uso importa para mim a não ser êsse falso vazio e os problemas que
não tem significado. ' êle me apresenta. Devo chamar durante mais tempo? Devo
gritar mais alto? Devo pronunciar ciptras palavras? Tento de
42
43
Tudo está contaminado. Entretanto, parece que o setor esco-
nôvo. . . Logo compreendo que ninguém responderá; mas a pre- lhido pela tragédia seja o da narra?va, o ''.r~n;ianesco". Desde
sença invisível que continuo a criar com meu aaêlo me obij[IJ
que êle produz começa a me
E
atordoar. Como que
l
enfeitiçado,
i!ttBf l!I' 211 rt/Yflfi)nftrr. \tU~Jtr•, rn ZJl'WPWPUC
alma pura, os justos coagidos à m1usti9a, por suas co;,isciencrns, o~
chamo de nôvo. .. . e mais uma vez. Minha solidão, exacerbada, sádicos por amor, os dementes por logica, o b?m . perso~agem
transmuta-se no fim, para minha consciência alienada, numa ne- de romance deve ser antes de tudo duplo. A mti·iga sera tanto
cessidade superior, promessa de minha redenção. E me vejo na mais humana quanto mais equívoca fôr. Finalme:it;, o livro será
obrigação, para que esta se realize, de me obstinar até a morte tanto mais verdadeiro quanto forem as contradiçoes que apre-
em ritar

. '
natµreza ~@j§ llmª Ytl'Z
obra importante, na ·
ao mesmo tempo a afirmação
gico". de seu abandono.
Duas grandes obras pelo menos, nas últ~as décadas, nos
ofereceram duas novas f01was da fatal cumplicidade: o absurdo
e a náusea.
Albert Camus, como se sabe, chamou de absurdo o abismo
intransponível que, ~xiste entre o h~mem e. o mundo, entre as
aspirações do espmtõ humano e a mcapacidade do mundo . em
satisfazê-las. O absurdo estaria não no homem, nem nas coisas,
mas na impossibilidade de estabelecer entre êles uma outra re-
lação que não seja a de estranheza. ,.
Não obstante, todos os leitores observaram que o heroi de
O Estrangeiro mantinha com o mundo uma conivência obscura,
feita de rancor e de fascinação. As relaçõe~ dêste homem com os
objetos que o cercam não são ~m nada in_oc;ntes: o absurdo ~ons~
tantemente acarreta a decepçao, a dem1ssao, a revolta. N ao e
exagêro pretender que são exatamente as coisas que. aca?ai:n por
levar êste homem até o crime: o sol, o mar, a areia cmtilante,
a faca que brilha, a fonte entre os rochedos, o revólver. . . Como
de direito, entre essas coisas, o principal papel é representado pela
tância entre o homem e os outros homens, distância entre o Da mesma forma o livro não ·é escrito na linguagem tão
homem e êle mesmo, entre o homem ·e o mundo, entre o mundo e lavada que as primeiras páginas poderiam fazer acr~ditar. Com
êle mesmo, nada permanece intato: tudo se dilacera, se fende, efeito, apenas os objetos já carregados com um con~eudo hu_mano .
se cinde, se desloca. No interior dos objetos mais homogêneos, flagrante são neutralizados, com cuidado, e p~or razoe~ morais (tal
bem como das situações menos ambíguas, aparece uma espécie como o caixão da velha mãe, do qual nos sao descntos os pars.-
de distância secreta. Mas é exatamente uma distfuicia interior, fusos, sua forma e quanto penetraram na ,madei~a}. Ao lado diss<;>
uma falsa distância, que na realidade é um caminho aberto, isto descobrimos, cada vez mais numerosas a medida que se apro-
é, já uma reconciliação.
45
44
xima o instante do assassinato, as metáforas clássicas mais reve- a mão do Autodidata. A cada vez, é o contato físico com a mão
!adoras, denominando o homem ou subentendidas por sua oni- do narrador q~e nêle P..r~voca um choque.~ Sabe~os que o tato
lllllllllll1l·e1slelníial:lolÍclalmiioileisitiáill"aiiliiiiiiliiilii1"11ÍIÍliiii11i'1'•'iiij1i1íillllllllllllllllJll!l\ll!~""~IJ!i11i1fl
o ue ., , .
a terra é "côr de sangue", o sol é giosa só pelo fato de olhar para um doente. O olfa:o Jª e mais
reflexão sôbre uma ostra é "uma suspeito: implica numa penetra9ão do corpo J?ela coisa est~anha.
De resto o setor da vista tambem comporta diferentes qualidades
de apree~são: uma forma, por exemplo, é geralmente mais segura
do que uma côr, que muda com a iluminação, com o fundo que
a acantpanlia, catn o SU]éltü que a considera.

e novo, por quatro vezes. era diz êle -


golpes curtos que eu dava na porta da desgraça." uma côr m~l definida que provoca nêle a náusea. Lembramo-
O absurdo, portanto, é bem uma forma de humanismo trá- nos da importância assumida, desde o comêço do livi_:o, pelos sus-
gico. Não é uma constatação ô.e separação entre o homem e as pensórios do primo Adolphe, que mal se destacam sobre o fundo
coisas. É uma briga de amor, que leva ao crime passional. O azul da camisa: êles são "côr de malva ... enfiados no azul, mas
mundo é acusado de cumplicidade num assassinato. com falsa humildade. . . como se, tendo começado a se tornarem
violeta tivessem se detido a meio caminho sem abandonar suas
Quando Sartre escreve (em Situations I) que O Estrangeirô"" preten~ões. Tem-se vontade de lhes dizer: "Vamos, tomem-se
"recusa o antropomorfismo'', êle nos está dando, como o demons- violeta e não falemos mais nisso." 1'.fas não, êles p~rmanecem
tram as citações anteriores, uma visão incompleta da obra. Sem em suspenso, obstinados por seu esfôi'ço inacabado. As vêzes. o
dúvida Sartre notou essas passagens, mas êle acredita que Camus, azul que os cerca desliza sôbre êles ~ os cobre totalmente: f~co
"infiel a seu próprio princípio, faz poesia". Não seria possível um instante sem os ver. Mas isso é apenas uma onda passageua,
dizer, pelo contrário, que essas metáforas constituem justamente logo vejo o azul empalidecer nalgun's lugares e. vejo r~aparecer
a explicação do livro? Camus não recusa o. antropomorfismo, pequenas ilhas de malva, hesi,:antes, q~e se amJ?ham; se }untam e
serve-se dêle com economia e sutileza a fim de lhe dar mais reconstituem os suspensorios. E o leitor continuara a ignorar a
pêso. forma que êstes têm. Mais longe, no jardim público, a famosa
Tudo está na ordem das coisas, uma vez que se trata, no raiz do castanheiro acaba por concentrar todo seu absurdo e sua
final das contas, tal como Sartre ressalta, de nos mostrar, con- hipocrisia na sua côr negra: "Negra?. S~nti a palavra qu~ se
forme a frase de Pascal, "a desgraça natural de nossa condição". desenchia, que se esvaziava de seu, . sentido com uma rapidez
E o que A Náusea nos propõe? Evidentemente, trata-se de extraordinária. Negra? A raiz não era negra, não era o prêto
relações estritamente viscerais com o mundo, deixando de .lado que recobria êsse pedaço de madeira ... mas antes o esfôrço c01~­
todo esfôrço de descrição (declarada inútil) em proveito de uma fuso ~e al~uém que nunca tivesse vi~to a côr preta e que qm-
intimidade sus eita aliás a r '··
narrador não imagina que possa evitar de se enti·egar. A seus '
que teria imaginado um ser amb iguo, al'em d as cores. E o pr~o-
A " ·'
olhos, o importante seria mesmo ceder a ela o mais possível, a prio Roquentin comenta: "As côres, os sabores, os odores nao
fim de chegar à consciência de si mesmo. eram nunca verdadeiros, nunca verdadeiramente êles mesmos e
É significatiyo que as três primeiras percepções registradas nada mais que êles mesmos."
no princípio do 'livro passem tôdas pelo sentido do tato, e não De fato, as côres lhe porporci_;mam sensaçõ~s análogas às d?
pelo olhar. Os três objetos que provocam a revelação são, com tato: representam para êl~ um ape}o, logo segm~o po~ l!;r1ª reti-
efeito, respectivamente, o seixo na praia, o trinco de uma porta, rada, depois um nôvo apelo, etc.; e um contato suspeito que se
46 47
acompanha por impressões inomináveis, que exigem uma adesão distâncias. O "sorriso cúmplice das coisas" acaba num ricto:
e que ao mesmo tempo a recusam. A côr tem sôbre seus olhos "Todos os objetos que me cercavam eram feitos da mesma ma-

;
o mesmo efeit.o que a mesri íiiile1tJfilft181 11·!,TIJl Ui?Jlf oumfil ;JlffiilWl?f[fJéJthFll 1n11bi t@idldd, foi
entendido) do objeto, uma espécie de insistência vergonhosa que "vida estragada", o lúgubre e risível destino do Autodidata, tôda
é, ao mesmo tempo, queixa, desafio e negação. "Os objetos ... essa maldição do mundo terrestre: nestas condições não nos ve-
êles me tocam, é insuportável. Tenho mêdo de entrar em con- mos incitados a levar tôdas essas coisas para a categoria de urna
tato com êles, como se fôssem animais vivos." A côr muda, por- necessidade superior? Onde está, então, a liberdade? Uma vez
tanto vive; é isso que Roquentin descobriu: as coisas são vivas, que aquêles que não desejam essa maldição estão muito bem
tal çpmg êle
ãíliéãÇãdõ§ iJélã CülldéliãÇâó iiióiãl
Os sons também lhe

ao seu mais a o grau


estas. ~0 emautg ffJe' pm §jW ; l . .
lhes novas fôrças.
Mergulhado na profundeza das coisas, o homem acaba por
não as perceber mais; seu papel se limita a sentir, em nome delas,
impressões e desejos - totalmente humanizados. "Em resumo,
trata-se menos de observar o seixo do que de instalar-se em seu
âmago e ver o mundo com seus olhos ... "; é a propósito de Fran-
cis Ponge que Sartre escreve essas palavras. E fazia com que o
Roquentin de A Náusea dissesse: "Eu era a raiz do castanheiro."
As duas posições não deixam de estar relacionadas: trata-se, nos
dois casos, de pensar "com as coisas" e não sôbre elas.
Na verdade, também Ponge não está preocupado com des-
crever. ltle sabe muito bem, sem dúvida, que seus textos não
representariam ajuda algun;a para o futuro arq.u~?log,.? que J?ro-
curasse descobrir o que pode ser, em nossa civ1hzaçao perdida,
um cigarro ou uma vela. Sem a prática quotidiana que temos
dêsses objetos, as frases de Ponge a êles relacionadas são apenas
lindos poemas herméticos. Em compensação, lemos que o balaio
está "aborrecido por estar numa posição desajeitada'', que as ár-
vores, na primavera, "gostam de serem enganadas" e "despejam
um vômito verde", e que a borboleta "vinga sua longa humilhação
amorfa de quando era lagarta".
Ê isso de fato tomar o " artido" das coisas e re resentá-las
, , i o cas a euo que sucessi- so seu proprio ponto e vista . Evi entemente Ponge não se
vamente se torna "unha preta", "couro fervido", "bolor", "serpente pode enganar a êsse ponto. O antropomorfismo mais aberta-
morta'', "garra de abutre'', "grande pata'', "pele de foca'', etc., mente psicológico e moral que êle não deixa de praticar só pode
até a náusea.
ter por objetivo, pelo contrário, o estabelecimento de uma ordem
. • Sem qu~rer limitar o livro a êste ponto de vista particular humana, geral e absoluta. Afirmar que êle fala para as coisas,
(ainda que importante), pode-se dizer que a existência é nêle com elas, no âmago delas, nestas condições vem a ser negar a
caracterizada pela presença de distâncias internas, e que a náusea realidade que elas têm, sua presença opaca: neste universo po-
é uma inclinação visceral infeliz que o homem sente por essas voado de coisas, estas são para o homem apenas espelhos que lhe
48 49
devolvem eternamente sua própria ima9'em. Tranqüilas, dome~ti- troca da ciência, bem entendido (e mais do que Sartre parece
cadas, elas olham o homem com o proprio olhar dêste. · pe:ri.sar); de qualqu er forro~, essa int~riorid~de não representa em
1

Semelhante i· nada a uilo ue ha nas cmsas, mas sim aqmlo que o homem pode
' d r IS vado certos comportamentos, com maior ou menor rigo:. essas
e o e uma consciência preocupada com compreender-se e
reformar-se. Ao longo de tôdas essas páginas sutis, 0 menor seixo aparências inspiram-lhe analogias humanas, e Ponge poe-se a
o menor pedaço de· madeira incessantemente lhe dá lições a~ falar do homem, sempre do homem, apoiando-se negligen~e­
mesmo .tempo o ~xprime e o julga, mostra-lhe um progres~o a mente sôbre as coisas. Pouco lhe importa que o caracol nao
ser realizado. Assim, a contemplação do mtmdo é para 0 homem "coma" terra, ou que a função clorofiliana seja uma absorção e
'' - " r A • • f ""'

onam.os o ponto ~e vi~ta moral do aperfeiçoamento, o parti-pris A mineralogia, a botânica ou a zoologia, pelo contrário, rea-
das c~1sas nao ?ºs e mai~ de nenhuma ajuda. E se, em particular, lizam o conhecimento dás texturas (tanto internas como externas),
prefen~os a liberdade. a sabedor~a, somos obrigados a quebrar de sua organização, de seu funcionamento e de sua gênese. Mas,
todos esses espelhos dispostos artisticamente por Francis Ponae fora de seu domínio, essas disciplinas não servem para mais nada
p~ra po~ermos achar os objetos duros e secos que estão por trás a não ser para um enriquecimento absti'.ato de nossa inteligência.
deles, nao perfurados, tão estranhos quanto antes. ,,,.=- O mundo à nossa volta torna-se uma superfície lisa, sem signifi-
Fran?ois Mauriac, que - dizia êle - outrora lera o O Cêsto cado, sem alma, sem valores, sôbre a qual não temos mais ne-
de Francis Ponge, ·por recomendação de Jean Paulhan deve ter nhuma ascendência. Tal como o operário que largou o martelo
conser,va~? muito ~ouco dêsse texto na memória quando chamou de que não precisa mais, encontramo-nos uma vez mais diante das
· .de Tecn~ca. do .Cesto a descrição dos objetos preconizada em coisas.
meus propnos livros. Ou então fui eu que me expressei muito Portanto, descrever essa superfície é apenas isso: constituir
mal neles.
essa exterioridade e essa independência. ]?rovàvelmente não tenho
Com efeito, ~escrever as coisas é deliberadamente colocar-se mais a dizer "sôbre" a caixa de meu tinteiro do que "com'' ela;
do lado de fora, a frente delas. Não se trata mais de apropriar-se se escrevo que ela é um paralelepípedo; não pretendo com isso
delas, º~u de yrojetar algo sôbre elas. Apresentadas, de saída, isolar daí uma essência qualquer; mends ainda tenho a intenção
como nao senao o homem, elas permanecem constantemente fora
de entregá-la ao leitor para que sua ill1aginação se apodere dela
de alcance e por fim não são nem compreendidas numa aliança
e a ornamente com múltiplas colorações: desejaria sobretudo
n~tt:ral,, nei:u recuperadas por um sofomento. Limitar-se à des-
cnçao e ev1.denteme~1te r~cusar todos os outros modos de aborda- impedi-lo de fazer isso.
g~m do ob1eto: a simpatia por ser irrealista, a tragédia por ser As censuras mais habituais feitas a semelhantes informações
alienante, a compreensão por depender apenas do setor da ciência geométricas - "Isso não diz nada a nossa mente'', "Uma fotô-
Sem dúvida, êste último onto de · t rafia ou um dia rama teriam mostrado melhor sua fonna", etc.
. 1 . e o umco meio onesto de que o homem dispõe para - são 1zarras censuras: como nao pensei msso an e
tirar p~rbdo .do mundo que o cerca, mas é um partido material· dade, trata-se de coisa bem diferente. A fotografia ou o desenho
por mais .desmteress~da que fôr a ciência, ela só se justifica pel~ visam apenas reproduzir o objeto, e têm tanto mais sucesso em
est~belec1mento, mais cedo ou mais tarde, de técnicas utilitárias. sua missão quanto puderam dar lugar a interpretações tão nume-
A literatura tem outros objetivos. Em compensação, só a ciência rosas (e aos mesmos erros) quanto as permitidas pelo modêlo.
po.de prete?der conhecer o interior das coisas. A interioridade do A descrição formal, inversamente, é antes de tudo uma limitação:
seixo, da arvore ou do caracol que Francis Ponge nos oferece quando diz "paralelepípedo'', ela sabe que não está atingindo
50 51
nenhum além, mas ao mesmo tempo está cortando rente ti)das
as possibilidades de procurar um dêles. . á-la,, Antes já houvera a "ma1va" d os suspens6rios e
nem 1ecus · . ,, d de cerveja.
Regish·ar; a distância entre eu e o ob "eto a "trans arência sus eita o copo

as istancias Cl
••• ililil••••••il•ll .
. os obi"etos entre êles, e insistir ainda no fato de olhar contmua ª ser noss.,
.
, l'111h ª.8 ·_ Quanto
a melhor anila, sobretudo se se ativer
a sua
" b" ti" 'dade" _ principal argu-
que são apenas distâncias (e não dilaceramentos), isso vem a ser apenas as . mo tem su
ela ieassim
VI seu valor diminm'do.?
estabelecer o fato de que as coisas estão aí e que não são mais mento da oposiçao - co d s6 · ode se tratar do mundo
do que coisas, cada uma limitada a si mesma. O problema não Evidentemente, de qualqyer mo o, to Pde vista· nunca poderei
é mais o de escolher enh·e um aci)rdo feliz e uma solidariedade tal como é orienta~o pe ºA meu /~~bjetjyjdade 'relativa de meu
1- 7

08Udl Qiiit7 iii J


tro a roo
.
ser esse •
- definir
... -·--·-·---- . .- no mun-
minha s1tuaçao

is 1un os , recusa en im ordem preestabelecida. venção abstrata, do a


Nesta perspectiva, o olhar logo surge como o sentido privi- mana", não obstante ela continua a ser, entre eu e o mun '
legiado, e particularmente o olhar aplicado aos contornos (mais do operação mais eficaz. d M d· . distâncias
que às c6res, aos brilhos ou às transparências). Com efeito, a . ' d ficácia que estamos tratan o. e II as .
de~scrição ótica é aquela que mais fàcilmente realiza a fixação das Pois e a et' arado sem lamentações inúteis, sem rawa,
distâncias: o olhar, se deseja permanecer como simples olhar, deb.@ entre o qu~ es ª sep . ·i· . .d ntifícar aquilo que não está se-
as coisas em seu respectivo lugar. sem desesp~ro, dev~ ~:~c~~s~
parado, aqmlo que e

urna vez que é falso que tudo
, rovis6rio. Provisório em rela-
Mas também comporta seus riscos. Detendo-se de impre- sei·a duplo - falso, ou pelo menos P_ a Ja' falso em relação às
visto num detalhe, êle o isola, o extrai, gostaria de poder levá-lo h é a nossa esperanç ·
adianté, constata seu fracasso, obstina-se, não consegue mais nem çã? ao uma
coisas: vez el~msapas
ornem, i , s6 remeterão a elas mesmas, sem êrro em
levá-lo nem devolvê-lo a seu lugar ... ; a relação "de absurdo" ue ossarnos incorrer, sem tremores. ' , . ?
não está longe. Ou então é a contemplação que se intensifica q P . er nta· é possível escapar a tragedia.
tanto a ponto de tudo se pi)r a vacilar, a se mover, a se fundir ... , Persiste uma P gu · Ab todos os meus senti-
começa então .a "fascinação", e a "náusea''. Atualmente, seu reino se este~d~ s~lar~e condiciona de alto
t dos os meus pensamen o '
No entanto, êsses riscos estão entre os menores existentes, e mentos. e º.
Me corpo po d e es t ar. sat'sfeito
i , meu coração contente,
. f
o próprio Sartre reconheceu o poder de limpeza do olhar. Per- b
a aixo. u .A . . . f l'z Asseguro que essa m e-
turbado por um contato, por uma impressão tátil suspeita, Ro- mas minha consciencia contmua m e i . t 1 como ti)da infeli-
quentin abaixa os olhos até sua mão: "O seixo era chato, sêco licidade está situada rio tempâ_ e ~ss~i:r~o,qt:e um dia o homem
num lado, úmido e lamacento do outro. Eu o segurava pelas cidade, como tudo neste m~ o. rova al uma dêsse futuro.
pontas, com os dedos bem separados, para não me sujar", não se libertará dela: ~as nao te~ho P a osta~ "O homem é um
compreende mais o que foi que o emocionou; da mesma forma, Também para mim es~e Ufuturo e u~ase!timento trágico da vida;
um ou ·' . animal doente" escrevia namuno n
arei de repe.qte, porque sentia em minha mão um objeto frio a aposta esta em pensar que se l N- tenho nada
. · ' · errá lo em seu ma · ao ,
que atraía minHa atenção por uma espécie de personalidade. Abri sena mepcia enc - . tância é a única razoave1.
a mão, olhei: estava apenas segurando o trinco da porta." A Esta aposta em qua1quer cHcuns , , f' 'l
seguir Roquentin volta-se para as côres e o olhar não consegue . ' - . ha rova alguma. Entretanto, e-me ~c1
Disse que nao tin p 'f. -o do muvers·o em que vwo
b 'stemática traa1 icaça d B t
mais realizar sua ação deslocadora: "A raiz negra não passava perce er que a ~1 lt d d una vontade delibera a. as a
mais, permanecia ali nos meus olhos, assim como um pedaço muito freqüentemente e o r:s~ ª ~ r: l u·:tl uer roposição que tenda
grande fica atravessado na garganta. Não podia nem aceitá-ln, isso para lançar a duvida sob q '1 q d j 'fva Ora a partir
a apresentar a tragédia como natura e e im i '. '
52
53
do !ns~ante em que surge a dúvida, não posso fazer outra
senao 1r rocurar mais lon .e. coisa

de importancia em menor. ao
que Joe Bousquet tem .seus aspectos bem superados, e que Godot
está muito na moda, e que muitas vêzes não foram as obras mais
bem realizadas que foram escolhidas para representar os autores
escolhidos. ·
Tudo isso é verdade. É que os cinco ensaios aqui reprodu-
zidos são para mim sobretudo exemplos, que me permitirão tor-
nar mais nítidos alguns temas e formas característicos desta lite-
ratura que ainda está sendo feita. Os primeiros dêsses exemplos
remontam já há mais de cinqüenta anos, os últimos pertencem a
nosso após-guerra. Todos oferecem, no meu modo de ver, alguma
coisa de p·rofundamente atual; é esta alguma coisa que procuro
isolar aqui, e que não seria difícil de encontrar na maioria das
pesquisas contemporâneas:

ENIGMAS E TRANSPARÊNCIA
EM RAYMOND ROUSSEL
' (1963)

Raymond Roussel descreve; e além· daquilo que descreve não


há nada, nada daquilo que tradicionalmente pode ser chamado
de uma mensagem. Para empregar uma das expressões favoritas
da crítica literária acadêmica, Roussel não parece "ter alguma coisa
a dizer". Nenhuma transcendência, nenhuma superação humanista

55
54
pode ser aplicada às séries de objetos, de gestos e de aconteci- coisa descrita, isto é, como nenhuma sôbre-natureza se esconde
mentos que constituem, desde logo, seu universo. atrás dela, nenhum simbolismo (ou então é um simbolismo que

. . _ , e e em e nos contar a guma anedota ga o a parar na propna super icie Ctas coisas: uma máquina de
ps1col?g1ca, ou entao algum costume religioso imaginário, uma funcionamento engenhoso e inútil, um cartão postal de uma es-
narrativa de usos primitivos, uma alegoria metafísica. . . Mas êsses tação balneária, uma festa de desenrolar mecânico, uma demons-
e~ementos não têm nunca nenhum "conteúdo", nenhuma profun- tração de feitiçaria infantil, etc. Uma transparência total, que
didade, em caso algum podem constituir o mais modesto apoio deixa subsistir nem somb:rns, nem reflexos, vem a dar de
ao estudo dos caracteres humanos ou das aix:ões a menor c numa pintura trom e-l'ocil. Quanto acumulam os
Com efeito;

· un o, nao 1a na a essas super icies,


11emmm u~rMo, naem M;gganmrn mmnçaM.
senso absoluto e o sentido esgotado só restam, ainda uma vez Entretanto,· por um movimento de contradição freqüente nos
as próprias coisas, objetos, gestos, etc. '
estilos modernos, o mistério é um dos temas formais mais prazei-
Tan;poúc.o , n~ . campo , ~a lingt~age~ Roussel corresponde rosamente utilizados por Roussel: procura de um tesouro oculto,
melhor as ex1gencias da cntica. Mmtos ja ressaltaram êsse fato origem problemática dêste ou daquele personagem, ou de tal
naturalmente para se queixarem dêle: Raymond Roussel escrev~ objeto, enigmas de tôda espécie apresentados a todo instante
mal. Seu estilo é momo e neuti·o. Quando sai da ordem ·~i:la tanto ao leitor quanto ao herói sob a forma de adivinhações, de
constatação - isto é, da chateza confessada: o domínio do "há" charadas, de colagens aparentemente absurdas, alusões, caixas de
e do "está colocado a uma certa distância" - é sempre para cair fundo falso, etc. Saídas muradas, subterrâneos que comunicam
na in;rngem banal, na metáfora mais batida, oriunda esta também dois lugares sem relação visível, revelações repentinas sôbre as
de algum arsenal de convenções literárias. Enfim, a organização origens de uma filiação contestada balizam êsse mundo raciona-
sonora das frases, o ritmo das palavras, sua música não parece lista à imagem dos romances policiais da melhor tradição, trans-
apresentar nenhum problema de audição para o seu autor. O formando por um instante o espaço geométrico das situações e
resultado é qüase continuamente sem interêsse do ponto de vista das dimensões num nôvo Castelo dos Pirineus. . . Mas não, o
d~s ?elas letras: uma prosa que passa de uma monotonia mono- mistério é aqui controlado incessantemente e muito bem. Não
cordia para engenhosos emaranhados cacofônicos, para versos que apenas êsses enigmas são expostos com muita clareza, analisados
devem ser contados nos dedos para se perceber que os alexan- bastante objetivamente, e se afirmam muito como enigmas, como
drinos têm de fato doze pés.
ainda, ao fim de um discurso mais ou menos longo, a solução
Eis-no~ portanto na presença do avêsso perfeito daquilo que para êles será descoberta e demonstrada, e também desta vez
se convenc10nou chamar de um bom escritor: Raymond Roussel com a maior simplicidade, considerando-se a extrema complicação
não tem nada a dizer e o diz mal... E no entanto sua obra dos diversos fios. Após. ter lido a descrição da máquina desnor-
começa a ser reconhecida por todos como uma das mais impor- teante, ternos direito à descrição rigorosa de seu funcionamento.
tantes da Jjte5ahzr9 francesa ào · oo :" àê t ó l tl Dcpoís das cl1a1cu:ias sc111p1e Véiii a explicaçao, e cada Vóltti a
ordem.
É neste ponto que a explicação por sua vez se torna inútil.
Ela responde tão bem às perguntas feitas, esgota tão completa-
mente o assunto que, no fim das contas, parece fazer duplo em-
prêgo com a própria máquina. E, mesmo quando a vemos fun-
cionar e sabemos qual a sua finalidade, a máquina continua algo
abracadabrante: tal como a famosa bate·estacas que serve para
56
57
comp?r mosaicos decorativos com dentes humanos, utilizando a distante quanto possível das ~·egras ~leínentar:is do boi;i susrense,
energia do sol e dos ventos! .A decomposição do conjunto em bastariam para destacar o leitor mais bem dispost~ desses ~".en-

JMtJ!ftflC'bJQ§IJQ[)IlI ftJTlltfi iBlff'!'.f@ue 'Ilos Úvar ao IJ11ilffilf ÜllbdJnJi(lfiiCffiJít1ii i .· irsas pásmas folcloncas
e~pe.t~culo puro de um gesto sem sentido. Uma vez mais, 0 Quais são então essas formas que nos a~a~1wn~m~ E cor:io
significado transparente demais se junta à total opacidade. agem sôbre nós? Qu~ seu sig~if~cado? Sen: duvida e amda mmto
_ Mais, al.ém, começa-se por propor uma colagem de palavras cedo para responder as duas ultim~s 9.uesto~s. As_ formas rou~se­
1

tao, heterochta quanto possivel - colocada por exemplo sob uma lianas ainda não se tornaram academicas; amda nao foram dige-
estatua, esta mesma carregada de múlti las articularidades des- ridas pela cultura; ainda não passaram para o est.ad~ de valores.
I

Esta investigaçao, ,
amcs dó tmlis ar "'· ; spjebe Jé9jn Que Jeye
~en~e .. c?~plex:s, engen~osas e "puxad~s pelos cabelos" parecem determinado estado a um outro - qµe se assemelha muito ao
tao Irnsona.s, tao decepc10nantes, que e como se o mistério per- primeiro, ainda que seja atingid~ depois de um lo~go desvio.
rr:anecesse mtato. Mas doravante já é um mistério lavado esva- Podemos ter um nôvo exemplo dele - e que tem amda ~ van-
ziado, que se to~·nou in_ominável. A opacidade não ocult~ mais tagem suplementar de se situar ihte!ramente no .setor, da. lingua-
nada. Tem-se a impressao de ter encontrado uma gaveta fechada gem- nos breves textos póstumo~ CUJO arca~ouço o propno Rous-
depois uma chave; e esta chave abre a gaveta de maneira impe~
cável. . . e a gaveta está vazia.
sel explicou: duas frases que sao pronunciadas .da roes.ma
neira, com apenas uma diferença mm~ma, mas CUJOS_ sentidos na_o
m:-
. O próprio Roussel parece ter-se enganado um pouco a res- têm relação alguma, por causa das diferentes a~epço,es na~ qu~1s
peito desse ~sl2,ecto de sua obra, êle que pensava poder fazer com são empregadas as palavras semelhantes. O tra1eto e aqm a hi~­
que as multidoes corressem ao Châtelet para assistir a uma tor- tória, a anedota que permite reunir · as duas frases que, c~nsti­
rente .dêsses - _acreditava êle - palpitantes enigmas e à sua tuirão, uma, as primeiras palavras do texto, e a óutra, as ultim~s.
~uce~siva resoluçao por um herói paciente e sutil. A experiência, Os episódios mais ab~urdos serã? assim j~st.ificados por sua funçao
mfe~izmente, logo o desenganou. Era fácil prever isso. Pois na de utensílios, de veiculas, de mtermedrnnos; a anedota, aberta-
realidade trata-s~ .de adi~rinhações fe~tas no vazio,. de pesquisas mente não tem mais conteúdo, mas sim um movimento, uma
concretas mas teoncas, privadas de acidentes e que por essa razão ordem', uma composição; ela também não é m~is do , qu~ uma
não podem ."emboscar" ninguém. Entretanto, em cada página há mecânica: simultâneamente máquina de reproduzir e maquma de
uma armadilha, mas faz-se apenas com que elas caminhem à modificar.
noss~, ~.rente, mos_trand.o-n?s. tôdas as saí~as ·~ dizendo-nos, pelo Pois é preciso insistir na importância que Roussel atribui a
contiano, como nao cair vitima delas. Ahas, ainda que não tenha esta modificação de som muito tênue que separa as duas ~r'ases­
um longo hábito das operações rousselianas e da necessária de- chave, sem se falar na modificação geral do sentido. Debaixo de
cepção que se segue à sua realização, qualquer leitor ficará desde nossos olhos, a narrativa realizou, de um lado, uma profunda mu-
/\ º • li 1 • . - e a lin ua em - sü:rnifica,e or
total gratu.idade -, ~los mistérios propostos. Ainda aqui se trata outro lado, uma ínfima defasagem super eia a e ra a era ;
ou do vaz10 dramahco completo, ou do drama de panóplia com o texto "morde o próprio rabo'', porém com uma pequena irregu-
todos seus acessórios convencionais. E, neste caso, quer as his- laridade, uma pequena entorse. . . que muda h1do.
tór~as co~t~das ultr~passem ou não todos os limites da estupe- Freqüentemente também encont~·~mos a simples reprodução
façao, a un;ca rr:aneira pela qual são apresentadas, a ingenuidade ,ª
plástica, como êsse mosaico que já cit~~a b_::'1te-estacas desenha.
com que sao feitas as perguntas (no gênero: "Todos os especta- Os exemplos dessas imacrens de toda especie sao abundantes: está-
dores estavam muito intrigados pela ... ", etc.), o estilo enfim, tão tuas, gravuras, quadrot ou mesmo grosseiros desenhos sem ne-

58 59
'Ili

, . ; f s a o. SS& cm Gc _
nstica se torna ainda mais provocante pelo fato de que se trata
de um~ reprodução._ Ro;issel prefere descrever, como ressaltamos,
~~m umverso que nao e apresentado como real, mas sim como
p representado. Gosta de pôr um artista intermediário entre êle Zeno Cosini, rico negociante triestino (o Trieste austríaco de
n,esmo e o mundo dos homens. O texto que nos é proposto é antes da guerra de 14), redige para um psicanalista os fatos prin-
uma .relação que diz respeito a uma duplicidade. O desmedido . ._ cipais de sua existência passada. Estudos universitá1ios incertos,
crescimento de certos elementos distantes ou minúsculos assume..,. morte do pai, paixão voluntàriamente sentida por uma jovem,
aí um valor p~1ticular; pois o observador não pôde se aproximar casamento com a irmã desta, vida de família feliz e confortável,
para olhar mais perto o detalhe que atrai sua atenção. Evidente- amantes, negócios comerciais mais ou menos arriscados e geral-
mente, êle também inventa, à semelhanca dêsses inúmeros cria- mente deficitários, aparentemente nada disso tem sérias conseqüên-
dor~s _- de máquinas ou de métodos - que povoam tôda a obra. cias para êle: a espôsa zela com amor pelo seu lar, um conselheiro
A visao é aqui uma visão imaginária. de investimentos gere sàbiamente a maior parte de sua fortuna.
. Uma outra . ~aracterística surpreendente dessas imagens é De resto, o Zeno que envelhece não atribui a ê·sses acontecimentos
aqmlo ~ue podenamos chamar de sua instantaneidade. A onda bastante ordinários um interêsse excessivo; êle só os ressuscita e
qu~ est~ prestes ,ª estourar, a criança que roda o arco na praia, comenta com uma única finalidade: provar que está doente e des-
ª
mais alem .. esta~a de um personagem no ato de realizar um crever sua doença. Apesar de seu aspecto, que se supõe ser bas-
gest? eloquente (amda que inicialmente o sentido dêsse gesto tante bom, o nome de doente imaginário não lhe. convém de
es~eia ausente, um enigma), ou o objeto representado a meio ca- modo algum; êle sabe que a medicina tem poucos podêres sôbre
mmho entre o solo e a mão que acaba de soltá-lo tudo nos é seus males, acaba sempre por brigar com os médicos e seus diag-
dado como que em pleno movimento, porém imobili~ado no meio nósticos só servem para lhe provocar novas perturbações; se cole-
dêsse movimento, imobilizado pela representação que deixa em ciona remédios - ou mesmo os ingere algumas vêzes - não é com
sus enso todos o ·e - uma inten ão ro riamente falando tera A tic ' t '
na iminencia de seu fim e privando-os de seu sentido. ê e troça tanto a psicaná ise quanto dos tratamentos por eletro- 1 ~'
choques ou através da ginástica. Desde as primeiras páginas en-
.. ~nig.mas vazios, te~pos parados, signos que se recusam a sig-
contramos sua profissão de fé: "A doença é uma convicção e eu
mficai, gi~antes?o crescimento do detalhe minúsculo, textos que se .fl
nasci com essa convicção." Em suma, algo com uma graça.
f~cham sobre si mesmos, estamos num universo chato e descon-
O que sua narrativa tenta esclarecer em trezentas e cinqüenta
tínuo em que cada objeto só nos remete a êle mesmo. Universo
páginas formato grande é a natureza exata e a importância exclu-
da imobilid~de, da repetição, da evidência absoluta, que encanta siva dessa convicção. O universo no qual êle nos mergulha, ao
e desencoraia o explorador ...
mesmo tempo grotesco, fantástico e absolutamente quotidiano,
60
61
amante à casa de seu sogro que o estima, seguimos àvidamente
as perambulações dêsse caçador que persegue a si mesmo sem
piedade. E sem hesitar nós o situamos ao lado de seus irmãos:
é bem o caso de Michael Kohlhaas à procura de seus cavalos
indevidamente confiscados, do abatimento entrecortado
, de .repen-
.

toca~· b.em o violino - ao invés de dêste extrair apenas gemidos


falou dos cinqüenta e quatro músc os uti iza os ao se camm ar,
;f
h~rnveis, tal c?mo o resto da existência. Aliás, o homem sadio ou dores num dos lados porque alguém o representou numa cari-
~ao se aproveita desses dons para levar uma vida desenfreada: catura sendo atravessado por um guarda-chuva), e das quais êle
~le se apega, ·.P~r ex~mplo, a uma monogamia estrita. Isso não a seguir sofre para o resto de seus dias, são parentes próximas
e uma, contradiçao, pois se para uns tudo é boa saúde, para outros das do capitão Achab, que perdeu sua perna na luta contra a
tudo e doença. +;;;;;...
baleia branca, ou das de Molloy cuja paralisia o conquista grada-
tivamente a partir do pé. Zeno conhece sua morte antecipada-
É' o que acontece com as r·elações com o tempo. o tempo de mente: ela começará pela gangrena dos membros inferiores.
Zeno ~ um t~mpo_ doente. É. por êsse motivo que, entre outras Mesmo essa cidade de Trieste, "não redimida", onde não se fala
~alamidade~, ele. nao pode tocar bem nenhum instrumento musical:
O ser mais baixo, quando sabe que se trata das terceiras das o italiano mas sim um dialeto misto de alemão e de croata, faz-
quartas, das sextas, sabe tamb~m como passar de uma a out;a ... nos lembrar da ·Praga tcheco-germânica de Kafka e da Dublin
Mas _eu, quando produzo uma dessas figuras, não consigo mais anglo-irlandesa de Joyce - pátrias de todos aquêles que não se
sentem à vontade em sua próp1ia língua. "Uma confissão escrita é
me libertar ~~la; ela adere a mim, contamina a figura seguinte
sempre mentirosa, e nós (os triestinos) mentimos a cada palavra
e ~ d~forma. • Quando numa conversa pronuncia uma frase, a
toscana que pronunciamos!"
mais simples que seja, no mesmo instante se esforça por lembrar
uma out~a frase_ que êle disse um pouco antes dessa. Se só lhe Ainda por cima, o narrador está, de má fé. Ao apresentar
res:am cinco mmutos r:ara r~alizar um ato importante, êle os sua narrativa, o psicanalista ressalta que ela contém uma boa
perde calculando que nao tena necessidade de mais do que isso quantidade de mentiras. O próprio Zeno indica algumas de pas-
para fazer o que tem a fazer. Decide não fumar mais porque sagem. Mas como pode alguma coisa 'aqui ser chamada de men-
o, ta?~c~ é a causa de todos os seus males: logo seu t~mpo se tirosa, uma vez que todo acontecimento é acompanhado por uma
ve div1d1do e devorado pelas datas sucessivas e cada vez mais re- longa análise que o desacredita e o nega? Um dia em que êle
., f!l!l!li! eA~ o &nteapa eamonto usem vc nas
. d do
m1adas d ''ú 1tiwo SiaiBIJiO))
o • nõo onseguiu, QOP? ê55e método embrulhar suficientemente a
0

pare es e seu q~arto - de modo que, com as paredes cobertas situação, Zeno declara: "A situação era tão clara que eu não
por ~s.sas datas, ele logo deve mudar-se. Mas no meio dessa compreendia mais nada." Depois de ter acumulado os indícios
paral~sia, a ;norte atinge, ao seu redor, amigos e parentes, e tôda de um clássico complexo de Édipo com múltiplas transferências,
vez ele esta despreparado, compreendendo repentinamente que fica furioso com o médico que não pôde evitar de observar essa
nunca lhes poderá provar sua boa vontade e sua inocência. situação; depois êle acrescenta de propósito, em apoio a essa tese,
Zeno não áprecia sua doença. Tenta não falar dela tenta alguns falsos elementos. Atua de maneira semelhante em suas
comportar-se como todo mundo na medida do possível. Na ver- relações com os amigos ou a família: "Se eu não tivesse desfi-

62 63
gurado tudo, acharia inútil abrir a bôca." No fim, descobre que JOE BOUSQUET, O SONHADOR
sua análise é capaz de converter a saúde em doença; que não •. (1953)
se1a êsse º ebsfá?!Jw. 1P?i1? 'f'i? T!7 t PYUiT ?Fif F d
Esta boa saúde de que êle quer cuidar - ou está má saúde -
esta consciência, como indica o título da obra, acaba por ser por
êle chamada apenas de "vida", que "diversamente das outras doen-
ças, é sempre mortal".
Estoura a guerra entre a Itália e a Áustria. Paradoxalmente,
Um homem se conhecia como sendo o produto

mesmo mtmdo.
nlsesré um I1 • ] E p J lm dada dC&CGllliCCl@IG il6 6@11Lfó .. •• ]. E.
da terra. "Uma formidável explosão que ninguém ouvirá - e a
terra, voltando ao estado de nebulosa, continuará seu caminho
através dos céus libertados da presença dos homens - sem para-
sitas, sem doenças."
Tempo doente, linguagem doente, libido doente, empreendi-
mento. doente, vida doente, consciência doente. . . evidentemente'
não se deve ver aí uma vaga alegoria ao pecado original, ou
qualquer outra lamentação metafísica. Trata-se da vida quoti-
diana e. da experiência direta do mundo. O que Italo Svevo assim
nos diz é que, na nossa sociedade moderna, nada mais é natural.
E nem mesmo .há razão para se afligir por isso. Podemos perfei-
tamente ser alegres, falar, amar, fazer negócios, fazer guerra, es-
crever romances; mas nada disso continuará a ser feito sem que
se pense no que se está fazendo, assim como se respira. Cada
uma de nossas, ações reflete-se em si mesma e se carrega de
perguntas. Sob; nosso olhar, o simples gesto que fazemos para
estender a mão. torna-se bizarro, sem jeito; as palavras que ou-
vimos ser por nós pronunciadas logo soam falsas; o tempo de
nossa mente não é mais o dos relógios; e o estilo de um romance,
por sua vez, não pode mais ser inocente.

. . - f'r a que a agitação de seu corpo a e en a~ n ,


o umverso oÇ 1 d E esta vida que ele ela-
sem dúvida, desviado, ou ocu ta o. s_e d to de substituicão -

~~;~ ~~ :::Jnh~~.~'
foª;~ :~~~;nhece
~~~~e a~~:~b~l~nd1~d~
Al que tivesse a poss1 i ia e
i
~:~n~:~;~h:t~ê~~=
d
como sendo a mais preciosa, a mais profun a,
provàvelmente a úniêa a ser real ...

64
!.·.
.
.

ou a lembrança, a matéria para a qual êle deve emprestar sua "de coerência e de densidade imóveis", pertence apenas a um novo
imaginação a fim de salvá-la do nada. lt um prisioneiro em seu mundo desta vez encontrado para s~mpre. Esta Neve de uma
quarto, está condenado à inação pela bala que recebeu, mas no outra ~ra não se fundirá ao primeiro ··raio de sol.
fi1:1 _das, c~ntas é êle quem dá uma existência organizada à sua "Nas minhas lembranças de Ma'.rceillens, ou da aldeia em
pnsao, e ele quem resgata do acaso e do caos essa bala perdida que cresci, a referência à lembrança se .acr~scenta como uma cm:~­
que o paralisou. Depois do fato realizado, não se trata mais aqll'i- cessão cada vez mais frouxamente ~tnbmda ... ~ e a.d~ ;ez mais
de despertar uma consciência para os fenômenos que já têm sua me parece que nada nessa operação e,. d~ fa~o, t~o ficticio ,e. con-
vida própria: sem essa criação, a matéria não poderia ter forma vencionado quanto a resolução de atribm-la a mmha memoria· · ·
algum~; Bousquet descobre finalmente que êle mesmo se infligiu
sua mutilação. "Minha experiência de prisioneiro me edificou: livre, eu. ge-
rava a extensão onde acreditava me deslocar cor:_io u:r_n ob1e~o.
No Le Meneur de Lune seguimos a progressão página a Imobilizado, percebi que as batidas de Ameu cora~ªº. cnavam m-
página: cessantemente o espaço onde tantas vezes acreditei reconhecer
"O acidente que mutila um homem não toca nas fôrças de 0 cenário estereotipado de minha infância. Tivesse eu conservado
sua existência; só é mortal para os seus hábitos. O infortúnio minhas pernas, há muito tempo atrás já teri~ mo~ilizado as Aen-
físico só con-ompe aquilo que seria corrompido. costas cheias de árvores de um caminho e dissolvido no esforço
Dêsse modo, depois de ser jogado em seu leito de doente, da escalada a sensação cujas qualidades as batidas .de meu co-
você viu sua vida vir até você?
ração distribuíam pela suave subida de meu c~mpo visual. Agor~
- Infelizmente! Que foi que eu mais encarnei a não ser o apreendo melhor a operação que permanece ii;acabada. Acre?i-
acidente de que fui vítima?"
tando reviver antigas lembranças, crio a partir ~e um n;iodelo
E mais longe: "Faça sua vida à imagem daquilo que você de outrora uma paisagem na qual não tenho mais os me10s de
tem de melhor dentro de si. Se ela lhe impuser uma lei que
você não concebeu, não se separe dela com êsse pretexto Ambos Penetrar, mas onde faço o tempo chover, às vêzes avar:çando ~m~
pAglna l.
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09

são, você e ela, o produto da mesma vontade."


Essa descoberta é fundamental, ela marca o advento da arte
Mais longe ainda, porém: "Você já tinha desejado aquilo que que liberta a literatma da preocupação de transcrev~r o~ de tes-
lhe aconteceu ... "
temunhar. A reportagem exige de seu autor consciencioso ~n:1ª
Inicialmente, são as lembranças da juventude que se decom- deslocação física, onde o essencial é •sempre ii;ais º1: mei:o~ dis-
p~em em cenas e acontecimentos livres de sua auréola, doravante solvido no esfôrço da escalada"; , tal como . e_ aqm defimda, a
modelados numa massa menos frágil. A operação não tem nada criação é, pelo contrário, inseparavel da pnsao - com a qual
de empobrecedora, pelo contrário; não é uma maquete esque- aliás a ornamenta a imaginação popular: o poeta na sua tôrre
66 67
v1sao dêsse imóvel repentinamente aberto para o invisível e para
o nada. Essa palavra é: ausência."

b e 1 1 j a ;n51 t.Ls· rx str'

tam aquêles que po/eia;~~o n!;1~dcida e c?n\a a qual se revol- 26Iii8 11@§§&§ &Vé11llllcl§ h᧠Qllài§ Mil qttàiLO C'!é HOLél coma hifo
ao mesmo tempo de deQe· mg1 os - amda_ que não defa:em gralmente um crime que a imaginação policial é incapaz de rein-
realização definitÍva ("se" aJª;nfªra da, sua pr6pr~a desgraça um~ ventar de pronto. E, lendo histórias policiais, ou páginas de Ray-
qual a morte é simultaAnamepnt s f~u es~emos deitar raízes!"), da mond Roussel, sentimos o frisson do homem que entrou, ah·avés
e o im a 1mag · f de oblíquas relações fictícias, na mais necessária e mais exata de
a zomba1·1·a. ,e em mais per eita - e suas funções."
. :se apenas minha existência como a d
fixaçao , ,,,.- Assim, trata-se inicialmente, ao que parece, de um universo
de um lucrar 0 '_ e uma arvore, fôsse a significante; o absurdo e o crbratuito são aí colocados em seus
u entao com 0
apagar de todos os lu ares
b · · .
' ª d e meu espmto, o lugares, o lugar de signos ainda não elucidados que, para o
embaix"o; observem-no ~amú~h-~Ias s.ou como êsse transeunte, lá policial que revista o quarto do hotel, se transformarão pouco a
um carro E:l ' 'l m, paiece estar correndo atrás de iJouco em indícios. Ainda por cima, tudo é aí revelado, obi'etivado,
pássaro." · e e e e mesmo ' assim como a pena que vôa é um .t
quer sob a aparência de matéria palpável (os utensílios do "crime")
H, ou de vestígios teàricamente mais fugitivos. As palavras e as
ma - a também o falso sono d o sonl10, que nos dá uma a . frases, por exemplo, também se tornam objetos, cuja forma po-
' çao menos assustadora do estado ideal · , . proxi- derá dar lugar mais tarde às mesmas análises. Todos puderam
s1vel, em todo caso · - provisona e rever-
- e ao mesmo tempo · f experimentar - muitas vêzes mesmo sem atiibuir importância a
muitos de seus amigos surrealistas B mais e icaz. ?orno isso - a anormal nitidez com que surgem, nos sonhos mais anó-
seus_, sonhos;
. _ gosta da "so b erana
êle , so oul~q~et anota
idao do sonhcom ". cmdado " dinos, uma cadeira, um seixo, uma mão, a que d a d e um d etrito
angustia que o ªIJrisiona no · t t d 0 ' teme ª qualquer (que deixa essa impressão esquisita de que irá nova-
d 'l ins an e e acordar" " , .
e o aue nos penetra até 0 ''d d . ' angustia mo- mente se reproduzir tantas vêzes quanto quisermos, como se o
-'- me o oentio por todo 0
estamos perdendo" Ass· ''l . - espaco que fragmento isolado tivesse se eternizado no momento da queda)
AI . im, e e 1ocro atinge o IJO t d ,
e e mesmo seus sonhos; esforca-s /?
rnirn iil!l '1ao e por
_. n ° e suscitar ou, exatamente do mesmo modo, duas ou três palavras (pronun-
!ili J•
se ttlz liiiddflíário , A '1 enb:ar
b Çílheca. o ereta ;BBO ilillil . _J_
21auas por nas- 1-
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68
69
11iélllé6§ Objélb§ emt21ss11 qas pd . 1 ]] j e edmirbd
nitidez ainda há pouco entrevista durànte um instante na reali-
dade é a nitidez dêsses objetos. . . Pelo menos deve ser. É para
obtê-la que êsses objetos pedem nosso auxílio.
"Não imite o real, colabore com êle. Ponha seus pensa-
mentos e seus dons de expressão ao serviço dos dias e dos fatos
que os distinguem, ponha-se a serviço da existência das coisas,
se você não fôr aquilo que lhes falta, v.ocê não é nada, você enri-
quecerá aquilo que existe com aquilo que, dentro de você, era
o pressentimento dessas coisas."
O sonho é apenas isso: o "pressentimento" daquilo que será
o mundo real quando nosso espírito tiver dado sua forma defi-
nitiva à matéria. Infelizmente, êsses fragmentos entrevistas não
bastam para convencer o homem da necessidade em que êle se
encontra de ser aquilo que falta às coisas, se bem que, por levian-
dade ou por falta de imaginação, na maioria das vêzes êle prefere
ignorar as revelações parciais de que é testemunha. Sua situação
no mundo aumenta ainda mais sua cegueira.
"A mediocridade do mundo reside na imperfeição de nossa
visão, na nossa incapacidade de atenção. Nossa visão dos fatos
continua vaga e nebulosa, idêntica à perspectiva" cavada dentro
da noite pelos faróis de um carro, e tão imperfeita que a imagi-
nação elo 111eteristia @lo o iti:oossortomspte jptwpretar e parafrasear
"Concordo, escreve êle q .nh os sinais percebidos. De noite, só se vê bem uma estrada ao nos
tório um home d" . , ue em seu cam1 o para o escri- afastarmos daquilo que dela vemos."
m iga a s1 mesmo que tinha sonhado com os passos
que estava dando naquele momento. Mais grave do que "a incapacidade de interpretar os sinais"
"M as eu, que não me movo é o estado de má vontade em que essa exigência nos encontra.
. d d
como poderia adotar seus modos mais acor. a o do q.ue dormindo, Se não podemos é sobretudo. porque não queremos. A imper-
dois estados?" ' meus amigos, de distinguir êsses feição dos fenômenos que constituem nosso universo nos choca,
mas nos persuadimos de que ela não nos diz respeito. Com a
70
71
vinte anos poderia nos tornar tão emocionante e tão explícita
semelhante lição?

morrer." veem

a passive izer que e es se


cnt6212í&ià2ii as p20cmm e, amcgandc sc a lsts ffsl?ctS, lciié
116&
.xq&Hb tjue voce chamava por êsse nome não era nem mesmo a de nós já se arranjaram à maneira de um sonho.,, Enfim, foram
~agem dessa mesma coisa. A verdadeirn matéria está encoberta. nossa lembranca antes de serem nossa aventura.
E p~eciso q~1~ sua alma se misture com ela para que ela se Sem dúvida a mais séria conquista do surrealismo foi a de
mostie a voce. Da mes:na forma, o tempo e o espaço· são a obra
devolver, por uma 1 p~squisa sis~emá~ica, aos. :milagres apar~nte~
d~ h~mem: ou antes"s,erao sua obra. Aquilo que há para se salvar que lançam uma duvida bem ~1va sobre "a v1sao co:rnum do real
nao e voce mesmo, e a terra, o seixo, a cinza. Seu dever é rea- todo 0 . seu valor e todo o seu peso: os de penhor evide.nte de uma
lizar o ,salvamento do espaço e do tempo." Na vontade de s~
ordem desconhecida"· é despistando-os sem esmorecimento que
tor~ar esse. salvador. existe ao mesmo tempo muito orgulho e a entraremos '\1.0 castelo de cada instante''. Em compensação, é
ma10r hm:mldade, pois a pessoa humana aí desaparece totalmente
em proveito de uma criação problemática que é a única a dever inútil usar suas fôrças para "aproximar arbitràr~~m~nt~ u:rn ferr?
de passar roupa e um colarinho falso de celulmde ; a impossi-
ser. Mas, por uma vaidade desajeitada, o homem antes de mais
bilidade de nunca encontrar algo gratuito nas relações mais oca-
nada quer "ser", e é isso justamente que constitui o seu nada.
sionais" nos dispensa dessas brincadeiras, o mundo quotidiano ofe-
':Você não é... Você nem mesmo é um maldito. A maldição
rece suficientes riquezas para que possamos nos manter afastados
e apenas o lugar de tua inisória e monstruosa liberdade."
das ·extravagâncias. Os fenômenos mais ordinários serão, no fim
A mais alta qualidade de nosso espírito é apenas a facul-
dade (e em tênnos de moral: o dever) de conceber uma forma das contas os mais maravilhosos.
que possa dar unidade ao mundo e "criá-lo à nossa seme1hanca". Devem~s enfim evitar construções alegóricas e simbolismos.
:f:ste será, por uma justa inversão das coisas, o verdadeiro adve~1to (Também aqui encontramos uma idéi~ cara aos amigos de André 1

do l~?mem, dêste homem que está "por vir". Breton.) Cad~ ~bjet?, cada ~co_:itecipiento, cad~ fo1ma e com
efeito seu propno simbolo: Na~ diga <itue ~nstem cruzes ~e
O homem-nebulosa deve ser tornado verdadeiro ... " madeira e o sinal da cruz. Havena um smal irreal e uma cmsa
Os fatos são dificilmente penetráveis. Não obstante pouco significada, que seria real. Um e outra são, ao mesmo tempo,
a l?OllCQ dmcobrünos nôhi 8 oalsSçu àt no.,sa vldâ. F mando da realidades e sirnos." , .. .
su,a,. Bousquet - cuja existência parecia ter sido rompida por uma O universo de Bousquet o nosso e um umverso de signos.
tragica sor~e - . escreve: "Na minha vida não se produz um só Ali tudo é signo; e não signo de alguma outra coisa, al~uma cois~
fato que nao seia um tr~~o de minha alma." E mais longe: "Sou de mais perfeito situada fora de nosso alcance, mas signo de s1
ao mesmo tempo o su1eito e a obra de minha vontade. . . O mesmo, dessa realidade que apenas pede para ser revelada.
homem. exist'e por ,sua ;<lesão aos acontecimentos, por sua maneira
de realizar, al.Taves ~eles,. o. acontecimentos que êle teria sido." Dispomos para tant? de uma arma singu~ar, que é o corpo
Quem melhor que esse fendo de guerra pregado à carna há da fala e da escrita, a lmguagem. Mesmo assim, a palavra arma
convém apenas pela metade para designar aquilo que nos· surge
72
73
t.
ao mesmoA
por excelencia representaça~o
tempo(a como um meio de com
t d um fi m.. sendo. o signo
. ·

sempre leva mais ou menos diretamente à' idéia de verdade abso- ,'\!

l•••~êlJ~l~BP~fl~PJ~i)~JQ~l~Rlmli•!!JM~l~1f-!tf~.P~ir~i~?t~t~P~Z~?F~st?0~fs~P~r~f~fl),~f~ªmlplº~uclº•~ll1"-~;v~ta~tJ~W~fü~1Íifn~srq~pe~ri~Ji~i~ º~ t~i r~ r1n·~~g~~º:;~~!~u~~~~~;


j 0
d;!iv!~d~'~,~;ard~f;~~·f~a~~s~--~·
!,

'i!
tém. "A. . Hnguagem
A experiência não da
e<tá
lingconUda na conscrencra,
., . ela a con- t Ili se 1tenha tomado• claro
que não • que essa operação ser> 1 1 mann~11
Depois de ter escrito a uma :i~~~:. ·e~~err~ tôdas a~ outras. . . [ na escala humana e só será importante par.a o homem, que êle
braços", não tenho mais d . ·f u e tomarei em meus ' não atingirá assim nenhuma essência das coisas, e que a criação
, 0 que seu antasma para pegar " t enfim, para a qual somos convidados, deverá ser sempre recome-
~011\eIstom:itioSe R&ela.
b em que a1em da lin
O 2
"
5
guagem ,,na~.
~ existe . ...
provàvel- ·!l•.
1
çada, por nós mesmos e depois por aquêles que virão depois
a1avra" a ala mamw so r&ZÓ".. vui u " e;
..
~v l.:VlU]J1éfa p ê f a 8 el '
!!t06
Com efeito, é então que a invenção do mundo pode ãsslllilfi

Hubamm füeªo a
a fôrça organiza ora cte nossa vld!i, d@ hb§W mands. il J 1
os sonhos". s
"Tenhamos a córagem de admif . . . , roem, por sua vez, deve :reinventar as coisas ao seu redor. Essas
fora dêle mesmo êle é a e u i~to. O homem so existe são as verdadeiras coisas, nítidas, duras ·é brilhantes, do mundo
para êle um ro 'resso m ~ nas o negativ~ ~a existência e seria real. Nãq nos remetem a nenhum outro mundo. Não são o
paradoxo par~ce ~er bem a1 can~e se se suprnmsse inteiramente. O signo de nada além delas mesmas. E o único contato que o
conquistada? Francament~ra~cr:di~eve nos~a existência ser ainda homem pode ter com elas é imaginá-las.
estado de queda, no exíli; tão di que srm. . Somos o ser ep;1
mortal ao qual pertence ~ntretant~ta~tesrie~/~da quant~ .º frio
atmosfera e dar coerência e l'd P g10 de punf1car a
. ' so 1 ez a uma massa de á
preend r. Quero recolher meu nad .
e
gua. om-
dade düma da luz e fo . a p~rn a sombra de uma reali- SAMUEL BECKETT
o rpr com mmhas mãos b.
apague meus vestígios." . um o 1eto que OU A PRESENÇA NO PALCO
" Um texto "cerrado e irredutív l" t- rf . \1953 e 1957)
ter sido tocado" um ob'et t- e ' Jº.Pe eito que parece não
vestígios. . . Não' reconh~ce~osªº P~ eito ~ue apagaria nossos
todo escritor? aqm ª mais alta ambição de
A condição do homem, diz Heidegger, é a de estar ali. Pro-
Ê sem dúvida por essa -const t fl - A vàvelmente é o teatro, mais do que qualquer outro modo de
literária (ou de t1m mod . an le re exao sobre a criação representação do real, que reproduz mais naturalmente essa si-
' o mais gera art' r )
Joe Bousquet continua a ser para , i- e is rc.a que a obra de tuação. O personagem do teatro está em cena, é essa sua primeira
dela, deve-se passar por cima d nys ao prec10sa. E, por causa qualidade: êle está ali.
podem ter de incômodo: que~ f:l~uà 0 ,9-ue Js,~as pái?,inas às vêzes O enconh·o de Samuel Beckett com essa exigência apresenta,
pauH !!l'lt!t , o t à f l
. . s rn por o o à : I
e que a e do ser no exílio"
! a piioii, m EllólJR~donal jpterêsSA' enfim ia-se ver o homem de
usar contra êle 0 freqüent u u i UAV J:'"°'·;c' U Ul guiá • lYfê§ilió sem Beckett, ía-se ver O Homem. Pois o romancista, por fôrça de se
1 quando a palavra imaginaç:o ~i:~r~gº.J.ue fa~ ~a palavra "alma", extenuar na sua procura, conseguia apenas reduzir cada vez mais,
! propósitos, não podemos re rim. VI a .co~vir;a m~lhor para seus a cada página que passava, nossas possibilidades de apreender êsse
f. pécie de misticismo (aliás Bere. ~r) nossabirr~açao diante dessa es- mesmo homem.
de Bousquet Mais ra d J que an a todo o pensamento Murphy, Molloy, Malone, Mahood, ,Worm, o her6i dos textos
"salvacão" ~te) ex1·gsteve AI o que um vocabulário suspeito ("alma"
t • ' ·, ne e essa tentat·
do universo através do espírito h
d -
iva Ae .re,c;uperaçao global
umano. ideia de totalidade
' de Beckett se degrada de livro para livro, e cada vez mais rá-
pido. Doente, mas ainda capaz de se deslocar em bicicleta, ràpi,
75
74
r em
guarda: o homem ainda não é isso.
t
ca ça os sapa os, come m r
próp1ia êxistência, ter vindo a êste lugar.
Voltam Pozzo e Lticky: Lucky está mudo, Pozzo está cego
Mas, agor'a, estamos no teatro. Sobem as cortinas e não se lembra de nada. O mesmo jovem volta trazendo a
D" O cen~r/o não representa nada, ou quase nada. u~1~~ estrada? mesma mensagem: "O senhor Godot não virá hoje; virá amanhã."
_ig~mos,. Y uma man,eira mais geral: fora. O único detalh~ Não, a criança não conhece os dois vagabundos, nunca. os viu
p~ec1so digno de nota e constituído por uma árvore débil ";m em nenhum lugar.
aibustob apenas, e sem a menor fôlha; digamos: o e;quelet~ de Novamente é noite. Gago e Didi tentaram se enforcar - os
um ar usto. galhos da árvore talvez sejam bem sólidos -, mas infelizmente
Dois homens estão em cena sem idade sem ·of · - não têm corda. . . Decidem ir embora, para voltar no dia se-
"tu - f ·1· ' ' p1 issao sem guinte. Mas não se movem. Descem as coh·inas.
si açao . a~i iar. Tam~ouco sem domicílio; portanto: dois ~a a-
~undos. F1s1camente, tem a aparência de estarem · t t ug Isso se chama: "Esperando Godot". A encenação dura perto
tira os sa at t f 1 d m ac os. m
N- , p ~, o o~ ro a a os Evangelhos. Comem uma cenoura. de 3 horas.
ªº. tâm nada a ~1ze1: u_m para o outro. Dirigem-se mlituamente Só sob êste ponto de vista já existe· aí algo que surpreende:
servm o-se .e d01s dimrnutivos que parecem nã d" · durante essas três horas, a peça resiste, sern uma só lacuna quando
a nenhum nome "d tif" , 1 e' ogo e Didi.
I en icave :
o izer respeito
• na verdade ela é feita só de vazios, sem uma interrupção quando
O~lrnm p~ra a direita e para a esquerda, dão a impressão de . pareceria que ela nunca tem motivos para continuar ou acabar.
que
d vao par?r ~e que vão se deixar, e logo voltam um ao pé Do comêço ao fim os espectadores seguem o desenrolar da peça,
1o outro
, 1no • meio do palco . Al"' - po d em partir: esperam
ias, nao podem perder a cabeça às vêzes .mas ficam como que agarrados a
a gi:em c 1amado Godot, do qual tampouco se sabe coisa al uma êsses dois sêres, que não fazem nada, que não dizem quas.e nada,
a1n_ao ser que êle não virá; desde o comêço pelo menos iss~ est~ que não têm outra qualidade além da de estarem presentes.
c a10 pai:a to~o mundo. Desde o rimeiro es etáculo, a crítica uase unânime ressal-
D"d" d" ., A . um rapaz a as tava o carater pu ico o espe acu o. om e ei o, as pa avras
I 1 acre ita p te-lo visto na véspera) que lhes traz esta ' "teatro de laboratório" não convêm mais aqui: trata-se apenas de
sagem· "O h . G d - . , . men-
.· sen 01_ o ot nao vira ho1e, virá amanhã sem falt " teatro, que todo mundo. pode ver, do qual cada um tira seu pró-
~~pois, a luz baixa de intensidade, ràpidamente· é noite ~ · prio proveito.
;/,is va_gabundos decidem ir embora, para voltar n~ dia seg~intes É preciso dizer que ninguém faz juízos errôneos a respeito da
as nao se movem. As cortinas descem ·
peça? É claro que não. Em relação a Godot, todos fazem juízos
d Anteriormente, dois outros personagen~ tinham aparecido cri- errôneos a respeito de tudo, exatamente como cada um se engana
an o um pouco ·. de diversão: Pozzo ' de aspecto· prospero,
' ' que a respeito de sua próp1ia miséria. Explicações não faltam, expli-
76
77
cações estas que nos são oferecidas de ambos os lados, da es- por situações picantes, prendê-lo nas engrenagens de uma intri~a,
querda e da direita, cada uina mais fútil ue a outra: ou então fazê-lo sair violentamente de si mesmo por uma 111-

empres a C:, e sua mgua materna, o inglês? Apesar de tudo rio ou o insmo poe ico. .
ror que nao? Godot - da mesma fonna, por que não? _ é ; Que nos propõe Esperando Godot? Dizer que não acontece
ideal ·terresh·eIhde uma ordem social melhor· N-a o esperamos sem- nada nessa peça é dizer pouco. O fato de não haver nem engre-
pre v1~er ~e or, come~ ~elhor, vestir melhor, da mesma forma nagens, nem intriga de espécie alguma já foi presenciado em
:orno esperamos a poss1b1hdade de não sermos mais batidos? E outros palcos. Neste caso se deveria escrever menos que nada:
este Pozzo, que recisamente não é Godot n- ' como se assistíssemos a uma de regressão para além do

lhante a êsse ozzo que vo a pnva o


L&Ckj pmaàs da fala JJ ; f?!
1
'
esta vez, talvez, serei eu, finalmente." · cenoura que no segundo ato não é mais do que um rabanete ...
Mas estas imagens, ~~smo as mais ridículas, que tentam assim "Isto se torna verdadeiramente insignificante'', diz a propó-
o m~lhor, que po;JeI? hm1~ar os danos, não apagam do espírito sito um dos compadres. "Não o suficiente aindá', diz o outro.
de mnguem .ª propna realidade do drama, esta parte ao mesmo E um longo silêncio pontua sua resposta.
t~mpo, a ~ais profunda e a mais superficial, a respeito da qual Torna-se evidente, depois dessas duas réplicas, a que dis-
na.o ha mais nada a ser dito: Godot é êsse personagem ue dõis tância nos encontramos do delírio verbal mencionado mais acima.
vagabundos B"f peram à b~ir~ ~e uma estrada, e que não ~em. Do princípio ao fim, o diálogo está moribundo, extenuado, situa-
Quanto ai Gogo e D1d1, eles recusam ainda mais obstinada- do constantemente nessas fronteiras da agonia em que se movem
:nent~ qual~uer outra significação a não ser a mais banal, a mais todos os "heróis" de Beckett, sôbre os quais, na maioria das
imediata:_ sao home~s. E sua situação se resume nesta sim les vêzes, nem mesmo podemos afirmar que estão dêste lado da
~ onstatasao, .~ara_ alem da qual não parece possível progre~ir:
1 morte. No meio dos silêncios, das repetições e das frases feitas
e es estao ah,. ,estao no palco. (do gênero: "A gente é aquilo que é. O que está ipor dentro
não muda muito"), um ou outro dos dois vagabundos propõe de
. Sem dúvida já tinha havido algumas tentativas há alg vez em quando, para matar o tempo, conversar, ou "arrepende-
tempo, de recusa~ o movimento cênico do teatro burguês. Ent~~ rem-se", enforcarem-se, contar histórias, injuriarem-se mutuamente,
tanto, Godot assmala neste setor, uma espécie de ponto culmi- brincar de "Pozzo e Lucky", mas tôda vez as tentativas acabam
~ante. Em ~~nhum outro lugar o risco tinha sido tão grande, pois logo e se perdem depois de algumas mudanças incertas nos pontos
desta vez trata-se bem, sem nenhuma ambiguidade, do essencial; de suspensão, das renúncias, dos fracassos.
t~mpo:ico em nenhum outro lugar os meios empregados tinham Quanto ao argumento, resume-se em três palavras - "Esta-
sido tao pobres; ora, nunca, afinal de contas a margem ara mos esperando Godot" - que se repe,tem incessantemente, como
o rr:al-entendido foi tão desprezível. A tal ponto que nos v!mos um refrão. Mas como um refrão estúpido e cansativo, pois essa
obn ados a dar meia volt a · · ' · es era não interessa a nin ém; enquanto espera, não tem o
reza. menor va or cernco. ao e nem um ,
Parecia razoável pensar, até os últimos anos, que se 0 ro- nem mesmo· um desespêro. É simplesmente um álibi.
mance, ,P.ºr exe:r~wlo, :podia se libertar de muitas de suas re ras Nessa desagregação geral, há algo como um ponto culmi-
e acessonos tradic10na1s, o teatro pelo menos devia mostra g · nante -isto é, no caso, o contrário de um ponto culminante:
Prudê .
, _nem.
eom ef eito,
. b r mais
a o ra dramática só alcança sua vida um bas-fond, uma masmorra. Lucky e Pozzo, doentes, caíram
pr?pna '?ºn: a condição de estabelecer uma entente com 0 ú- um sôbre o outro no meio da estrada; não podem mais se le-
bhco, seLa este qual fôr; era preciso assim cercar êste púbtco vantar. Depois de um longo regateio, Didi vai auxiliá-los, mas
de atençoes: apresentar-lhe personagens fora de série, interessá-lo tropeça e cai sôbre êles; por sua vez, tem de pedir ajuda. Gogo

78 79
H;e estende a mão, perde 0 equilíbrio e Não há mais um pois não têin. sentié\.o l1en\1\.1n1; a {mica coisa q_ue conta e a situa-
so personagem de pé. No só há
se remexe e eme no êsse monte que ção atual: as malas estão largadas, como sempre estiveram.

"Nós somos 110rnensl" roll ou em Jarry. Bec ett az me or: .. e e nos mos ra seu pen-
sador especializado, Lucky; sob a coaç~o de seu senhor ("Pense!
. Já se conhecia, o teatro de idéias. Era um ~adio exercício Seu porco!") êle começa: "Dada a exitêncía tal como ela jorra
mtelectual que tinha seu P.úblic_? (ainda que em~ algumas oca- dos recentes trabalhos públicos de Poinçon e de Wattmann de
siões êle tenha tratado as srt uaçoe~
- e a progressão dramática de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do
uma maneira tem o do es a o ue do alto de sua divina a atia sua divina
ivma a asia nos ama com poucas exceçoes n

ifab léfa 611&681 s~rvmdo de mÁscara a temadamente para as idéias ill@iílé @llGài, mm me o llià@é&. @sms JIE um dos Jel& csm
ou para a ausenc1a delas! padres: "Pensar não é o pior".
Aqui, não existe mal-entendido· em Godot - h' Nunca se insiste 9emaís a respeito da seriedade de seme-
mento · - , · nao a pensa- lhantes reflexões. Setenta séculos, e mais, de análise e de meta-·
f' , assim como nao ha linguagem bonita; um e outra só
igudram ndo' texto sob a forma de paródia, de avêsso uma vez mais física tendem, em lugar de nos tornar mais modestos, a nos dissi-
ou e ca aver. ' mular a fraqueza de nossos recursos quando se trata do essencial.
O discurso é êsse "crepúsculo" descrito por Pozzo· anunciadõ"' De fato, tudo se passa como se a real importância de uma
coi:no um trecho escolhido com grande refôrço de Úm adas de questão fôsse medida, exatamente, pela impossibilidade em que
f~~~anta e de estalos de; chicote, recheado de expressges esco- nos encontramos de lhe aplicar um pensamento honesto, a não
s . e d~ gestos dramaticos, mas paralelamente sabotado Jor ser para fazê-la retroceder.
rdep~ntiI~as :nterrupções, exclamações familiares grotescas bai~as É êste movimento - esta regressão tão perigosamente conta-
e mspuaçao: ' giosa - que marca tôda a obra de Beckett. Os dois companheiros,
Lucky e Pozzo, degradam-se assim de um ato para outro, tal
h " (...II (Sua vozl ' .torna-se cantante ·) Ha' mais· ou menos meia ·
d ora o d1a oAbre og1?, prosaico), (novamente lírico) depois de ter como Murphy, Molloy, Malone, etc. As cenouras se reduzem a
errama o so re nos desde (hesita o tom ba' ) d' d rabanetes. A canção cíclica sôbre o cão ladrão, cuja meada Didi
horas da h- ( t 1 ' ixa igamos ez acaba mesmo por perder. E isto acontece com todos os outros
man a <?, om se ,e Aeva) sem esmorecer torrentes de luz
ver~elha e branca , etc., ate este final em forma de rabo de eixe acessórios da peça.
cuspido P.ºr uma voz morna, depois de um sílêncio: "É ~ssi~ Mas quanto aos dois vagabundos, êles permanecem intactos,
que as coisas acontecem nesta puta desta terra (LonCJ'o ·1A · )" não mudados. Assim, estamos certos, desta vez, que não são
E e· ag ' · b s1enc10.
is ora o pensamento. Os dois vagabundos fizeram uma apenas simples marionetes cujo papel se limitaria a ocultar a au-
per~nt~. a Pozzo, m,as ninguém consegue se lembrar qual. Todos sência do protagonista. Não é êste Godot, que êles supostamente
os tres t:rnm o ch_apeu no mesmo instante, levam a mão à cabeca es eram, quem tem "de ser", mas sim êles, Didi e Gogo.
ela a AI , ". . pen e, OCJ'O ex- os apreen emos, ime ia amen e? ao o ar para e es,
m , e e encontrou: Por que êie não larga as malas?" b função maior da representação teatral: mostrar no que consiste
. Trata-se de Lucky. É de fato a pergunta que foi feita al uns o fato de estar ali. Pois era exatamente isso que ainda não tínha-
mmutos antes, mas nesse invervalo o criado já tinha largadog
bagagem;A tanto que Didi conv~nce todo mundo ao concluir:
~eJ que ele l~gou_ as malas, e ,~mpossível que tenhamos pergun-
"u:: mos visto num palco, ou em todo caso, que não tínhamos visto
com tanta nitidez, com tão poucas concessões e com tanta evi-
dência. O personagem de teatro, na maioria das vêzes, não faz
a o por 9.ue e e nao as largava. O que é a lógica personificada mais do que representar um papel, como o fazem à nossa volta
Nesse umverso. onde o tempo não corre, as palavras antes e de~ aquêles . que se furtam à sua própria existência. Na peça de
80 81
' · realiza ainda

ue nao de elo ztit ~9 possuía· um 8J;Jito para


· or êle odia se servir para des-

que elas caem}, Ainda estão li continuam a esperar Com efeito, o papel do companheiro aca a: nao
i;lada de nôvo; e novamente apªesanod segundo ato, que não traz biscoitos, não há mais calmante, não há mais nada a ser dado
e es ao doente. Clov não pode fazer outra coisa além de ir embora.
. co n t'muam ·.em cena quand
' r e sua . part'di a ser anunciada,
ah ;manhã, depois de amanhã oe as ~ortinas se fecham. Estarão Faz isso. . . ou pelo menos decide fazê-lo mas, chapéu na cabeça
to ay, to-morrow and to mo assim por diante. . . from da e mala na mão, enquanto que Hamm o chama inutilmente e acre-
, . ' - rrow and t Y dita que êle está longe talvez, Clov continua ali, perto da porta
:ow. . sozmhos em cena d ' . ~ . o-morrow, and to-mor~
irremediàvelmente prese~te~ pe, muteis, sem passado nem futunr aberta, os olhos fixos em Hamm que esconde seu rosto debaixo
Mas eis que o pró rio. ho~ '
de ~ossos olhos, acaba ~or se d e~, daquele que está ali, diante
'
de um pano ensangüentado, enquanto descem as cortinas.
Assim, até nesta última imagem, tornamos a encontrar o tema
c.ortmas no comêço de uma egrn ar P?r sua vez. Sobem as essencial da presença: tudo aquilo que existe está aqui, fora do
fim de jôgo perdido", declar~º~: peça: Fim de jôgo, um "velho palco só há o nada, o· não-ser. Não basta que Clov, montado
Assim como seus redecesso mm,. º. protagonista. num escabelo a fim de alcançar as minúsculas aberturas que dão
tem a possibilidade Ee partir res, Difi e Gogo,tampouco Hamm para o pseudo mundo exterior, nos informe com uma só frase a
razão disso tornou-se a ora .l~ra a gum, outro lugar. Mas a respeito da "paisagem": um mar vazio e cinzento, de um lado, um
sado, sentado numa pol~o tiagica~ente foica: êle está parali- deserto do outro. Na realidade êste mar e êste des.erto, aliás invi-
sua vo lta h'a apenas altas pa
na dno me10 do palco, e esta, cego A' síveis para o espectador, são inabitáveis no sentido mais estrito do
es nuas. ' se~ nen h uma janela aces-
s'ive1. Clov, uma espécie dereenfer . têrmo: tanto quanto poderia ser um pano de fundo sôbre o qual
tente, ocupa-se do moribundo ~euo, ele também meio impo estivessem pintadas a água ou a areia. Donde êste diálogo: "Por
fuisa de passeio, arrastar a p~l~oen~º~ que pode: pode, apenas, ~ que você fica comigo? - Por que cuida de mim? - Não há
ninguém mais. - Não há outro lugat." Hamm, aliás, não deixa
ongo das paredes. e Hamm, em cuculos, ao
de ressaltar: "Fora daqui, é a morte~', "Longe daqui você estaria
Em relação aos dois va ab d morto" "Longe de mim, é a morte'', etc.
esta lfüer_?ade irrisório u 1fo un os, Hamm perdeu portanto
Da mesma forma, fociO êfül ptésmtc no to~o; ossim comp
1

escolhe nao partir. Qua~do eJe i;staca. iiffo é iiia±s êlê quem
tudo está presente no espaço. A êste aqui, inelutável, resr,onde um
eterno agora: "Ontem! Quer quer dizer isso: ontem?' Hamm
exclama diversas vêzes. E a conjunção entre o espaço e o tempo
oferece apenas, em relação a um terceiro personagem eventual,
esta certeza: "Se êle existe, virá aqui."
Sem passado, sem outro lugar, sem outro futuro a não ser a
morte, o universo assim definido está necessàriamente privado de
83
"Nunca estive aq_ul', à.iz 1:lamn1, e à.iante à.essa conhssão naà.a
mais importa, pois é. imp?ssível ouvi-la. a não ser em sua forma
A

E se, e1?ois e o O· e im e e )O ,
peça, será 1?rovàvelmente de nôvo O 1nomll.1.ável, terceiro painel
da trilogia de romances. Ramm )á nos deixa imaginar o tom dessa
peça, através do romance que êle gradativamente inventa, criando
peripécias fictícias e fazendo agir fantasmas de personagens. Uma
vez ue êle mesmo não está ali, não lhe resta outra coisa além
e con ar 11s onas par s1 , ,
}?irirrjt.#v1iztok" r;êiu:~:u ºnX:Pi;rnaAw ~~gs ;::: Sai:uel

UM ROMANCE
QUE INVENTA A SI MESMO
(1954)

"Não posso deix~· de pensar nisso, um livro - num sentido,


que pretensão, mas que extraordinária maravilha se fôr um fra"
casso em seus limites mais amplos." É assim que Robert Pinget
nos previne a respeito de suas ambições, e êste esc1itor honesto
(a espécie não é muito difundida), que emprega tôda sua atenção,
há já alguns anos, para fazer seus livros fracassarem em seus
limites mais amplos, está passando mais ou menos despercebido -
mesmo dos especialistas, por profissão afogados na onda quoti-
diana dos textos lineares e bem sucedidos - enquanto que êsses
livros (os de Pinget), aparentemente sem pé nem cabeça já são
talvez aquelas "extraordinárias maravilhas" anunciadas.
É preciso tentar esboçar-lhes, senão as anedotas que se
ãfogarn ·é se à:1ssolcc111 cn1 co11t±aàiçõoa tt 008:0 págirs 5 ena ua
riantes e em salto perigosos depois dos quais aterrisamos mais
nos obrigados a confessar n~~~~1\ I~o ~~~rdadeiro homem, vemo- de cabeça do que sôbre os pés - pelo menos o movimento que,
era sem dúvida isso que Ih ~no. ' i I era apenas uma ilusão se às vêzes é difícil de ser apreendido no meio dessa permanente
balanceio de um perna s'b e ava esse aspecto dansante êss~
palhaço... Também Alo r~ a outra, essa roupa ligeiramei~te de sabotagem, no fim das contas não é nunca ocasional nem con-
e e eia apenas · vencional.
em tod o caso provisória qu 1 ª . uma c;iatura de mentira,
sonho e da ficção. ' e obo cam de novo no domínio do Mahu ou o Material, êsse título já é, um programa.· Os per-
sonagens dêsse romance não pertencem nem ao domínio ·da· psico.z1.
84
85·
apreendidas, não é mais do que um devenir sem projeto submetido
de frase em frase às mais extravagantes mutações, à mercê do
menor pensamento que atravessa o espírito, da menor palavra no
ar ou da mais fugidia suspeita. No entanto, êles se fazem a si
mesmos, mas em lugar de ser cada um dêles que cria sua própria
reaHdade é o copjpptg que se taz, ta 1 coma uat tooilio :i:o às
qual cada célula borbulha e escul e as células vizinhas· êsses

e mo. c aro que esse mo o


em estado bmto, rev_es tre~ sºos qeuarnto tudo aquilo que os pre-
faz com que se pense mais nalguma proliferação patológica do 1 elo menos tao cuno s d '
que no desenvolvimento do. grão- de trigo orientado sem desvios reve aro P . - . antes· alavras que caem o ceu
cedeu, tão nco;,. tao .apaixon . f~la~ ;,ao avêsso", um pequeno
na direção da espiga a ser produzida. A história, em relação a sem deixar vestig10, cnanças q.ue t perto de uma coluna numa
êste ponto, não pode fazer mais do que dar voltas sôb1'e si mesma,
a menos que venha se chocar de repente com o fundo de um ""' ped~~o d~bhelha q~0 ::v:~~1~:i~~-se impossível dizer se Robert
reumao pu ca. . . . d m''uci'oso em seu laboratório ou um
bêco sem saída, para voltar para trás sem se incomodar com isso;"' P . t ' m pesqulSa or rn t
noutro lugar ainda ela se bifurca em duas ou várias sédes· para- mge e u d d. A narrativa se encerra com es a
'd t q e abusa e sua roga. d d'
lelas, que logo reagem uma sôbre a outra destmindo-se mutua- v1 en e. u - "A' t' Não tenho mais na a a izer,
enigmática conclusao: . i es a. . . anhei."
mente ou se reunindo numa síntese inesperada.
Há o romancista Lattirail, a senhorita Lorpailleur, também
uma romancista, o carteiro Sinture que desvia e falsifica a corres-
não ~~';;,~lu~~~l~::,u;e,~~~:nr~:~;.;:,~ ~is aqb~s~t~
recomeça. Desta vez o negocio s:s;écie de sombra cinzenta, ao
pondência, Petite-Fiente, garôta perversa que faz histórias, Juan O nôvo romance começa numa ', eis erram elos cantos - vidas
Simon, o patrão de Mahu, o filho Pinson, Julia, etc. Já não se despertar, como de costur;ie;. poss1vUm roma!ce dizem-nos, deve
consegue mais saber em que medida alguns dêles foram inven- passíveis, literatur~~ pos.sive~,s · · · alguma coi~a diferente tenta
tados pelos outros. Que dizer então da multidão de contrace- a P or um Nasci. .. ' mas A • "P'
começ r . deia volta com insistencia: ica-
nantes mais ou menos espisódicos, materializações dos pensa~ deslizar para baixo d~hpena~, r~ pr~ciso ser mais claro: "O nasci-
rnentos dêste ou daquele protagonista, que surgem e desaparecem,
se transformam, se multiplicam, desabrocham e por sua vez criam ram-tmedcom~lr:~J·~~~ ~~· .mais acontece hoje, observei, hbá um
men o e u ede de mostrar a ca eça e
movimento ~o redor de1e qbe o im)Ie existe. Por conseguinte,
A •
novas ficções qüe se misturam à intriga e que logo se voltam A
contra a realidade de que saíram.
O próprio Mahu é de fato urna testemunha dessa fantas-
• I I •
~oi!i~o~~~~;ii~~;~ied~ser~~g~nius:ria começar p~r ~:~~~~é d~
'
uma das ficções de um destino esquisitamente trágico que assom-' inte sem fazer nenhuma pergunta, part1-
bram .essa região entre Agapa e Fantoine, subúrbio irracional do n:omento ernh9.~~ .º ,?u~ ex~tamente o que acontece aqui; pouco
c1pe de sua is ona. . _ . das uedas uma mancha aver-
a pouco, no .roei~ das d~~â_~~oe~seherói; de A Rapôsa pjntam, tal
real? Inicialmente, Mahu emerge penosamente de seu sono e de
uma .série de quatorze irmãos da mesma idade; p<?nsa que precisa melhada se rmpoe no q ( M hu) Esta massa inicialmente
encontrar um escritório onde possa ir para frente, corno os outros. como escreviam romances em ª · Asa ue se desdobra
Leva consigo apenas a fotografia que ornamentava a parede de indistinta logo assume ª forma de u;na :~~o' éq senão David, o
seu quarto: alguns figos - que "fazem um buraco" nêle quando em vários personagens, entre os quais u

86 87
NôVO ROMANCE,, HOMEM NôVO
11961.

lizavam e também, muitas vêzes, enti·e os elo ias, havia tantas


a ica, sao nota os notados é tudo " ' '
E do modo mais natural do mundo Ren~rd que há al ·
)
uma espécie de mito monstruoso acabou por se constituir na
tempo já se confundiu com o narrador '(chamad~ John T' tgu~1 mente do grande público, para o qual, ao que parece, o Nôvo
Porridge) h F . m oum Romance é doravante exatamente o ccintrá1io daquilo que êle é
, ' se ac a em antome. Mahu e os outros censuram-no
Ji'ºr te-1.os abandonado p~r um momento. Não gostava mais dêles? para nós.
M~s snn, J~osto de. voces, estamos ligados para tôda a vida ... Será suficiente passar em revista as principais dessas· absur-
~qm estou .. No meio d~s aperitivos e das perambulações lodos~ das idéias que circulam de pena a bôca para se dar uma boa visão
J \volta, smge. a ,senhonta Lc:rpailleur, a romancista; pergunta a de conjunto. do real empreendimento de nosso movimento: cada
. q n onde quena e,le chegar. Ele se lembra vagamente que lane... vez que o rumor público ou que tal crítico especializado, que
iava l)lll estudo sobre Maria Stuart falou das or1'gens "P ·
. w
isso " ' ' d~~
urcou-se .' E então ela lhe dá o seguinte conselho: .sem re
simultâneamente reflete e alimenta essa idéia geral, nos atribui
uma determinada intenção, pode-se afirmar sem muito• mêdo de
se. começa ;1m livro com: "Nasci ... " E, paradoxalmente êsse fur- errar que a nossa intenção é exatamente contrária à que êles
mma em toda uma coleção de comêços possíveis, que ·;e iniciam fonnulam.
tod?s com essa palavra mas que no fim degeneram numa caco-
foma de frases sem seqüência de gritos de balb · Isto quanto às intenções. Sem dúvida, existem as obras, e
"ruídos da b'oca" . ' , uc1os e outros são elas que de fato contam. :tvias, evidentemente, os próprios
.Mais u,m~ vez, tt:do está por ser refeito. Entretanto, num escritores não são os juízes dessas obras. Além do1 mais, é sempre
sentido (o umco que importa para nós), Robert Pinget "ganhou" por causa de nossas intenções que nos condenam: os detratores
mais uma vez. de nossos romances pretendem que êstes são o resultado de nossas
teorias perniciosas, e os outros afirmam que os romances são bons,
mas justamente porque. foram escritos contra aquelas intenções!
Eis ortanto a CÓnstitui ão do Nôvo Romance tal como a
opmiao pu ica a enten e: ovo omance co icou as eis
do romance futuro. 2) O Nôvo Romance fêz tabula rasa do pas-
sado. 3) O Nôvo Romance quer escorraçar o homem do mundo.
4) O Nôvo Romance visa a objetividade perfeita. · 5) O Nôvo
Romance, dificilmente legível, só se dirige aos especialistas.
E agora, tomando exatamente o sentido inverso de cada uma
dessas frases, aqui está aquilo que seria mais razoável dizer:
88
89
O Nôvo Rornance não é uma teoria, é uma pesquisa.
estritas e definitivas. Não apenas foi considerável a evolução ha-
Portanto,. não codificou lei alguma. O ue faz com

os p~meiros a sa. er q~e existem entre nossas respectivas obras


-; er;itre. a çle. Claude Simon e a minha, por exemplo - conside-
:avei~ diferenç~.s, e acham.os que está tudo muito bem assim. Que
mteresse podena ter aquilo que ambos escrevemos, se escrevês-
semos a mesma coisa?
ue não

"
'

fora de dúvi:lus
,

----
vida desde a metade do século XIX corno na verdade ela começou
'

que a batalha de '"Waterloo, tal como nos é des-


crita por Stendhal, já não pertence mais à ordem balzaqueana.
E, depois disso, a evolução não deixou de se acentuar: Flau-
bert, Dostoievsky, Prcust, Kafka, Joyce, Faulkner, Beckett. .. Longe
Mas será que essas de fazer tabula rasa do passado, foi a respeito dos nomes de
. \ . .

esgotadas que lhes procuravam impor? As formas vivem e mor- existir um apêgo em se querer procurar nêles vestígios de elemen-
rem, em, todos setores da arte, e em tôdas as épocas tiveram de tos que desapareceram ·há vinte, trinta ou quarenta anos, de todos
s~r contmuamente ren.ov~das: a composição do romance do tipo os romances vivos, ou que pelo menos simplesmente se esboroa-
~ecul~ XIX, qt1e conshtuia a própiia vida há cem anos atrás, não ram: os pfüsonagens, a cronologia, os estudos sociológicos, etc.
e n;a~s do 9.üe uma fórmula vazia, boa apenas para servir a Em todo caso, o Nôvo Romance terá sempre o mérito de ter feito
parodias tedió~as. ..,.'"' com que um público bastante amplo (e que ainda aumenta)
Assim, ~onge de ditar regras, teorias, leis, nem para os outros tomasse consciência de urna evolução geral do gênero, enquanto
nem para nos mesmos, foi pelo contráiio na luta contra lei rígidas persistiam em negar essa mesma evolução, por .princípio rele-
d~mai~ que nos encontramos rr:utuamente. Havia, ainda há, espe- gando Kafka, Faulkner e todos os outros para duvidosas zonas
cial~ente na França, uma teona do romance implicitamente reco- marginais, quando êles são simplesmente os maiores 'romancistas
nhecida por todo i:mndo ou quase, e que era oposta como um do comêço dêste século.
rr:uro ~ todos os hvros que publicávamos. Diziam-nos: "Vocês E há uns vinte anos, sem dúvida, as coisas se aceleram, mas
nao criam personagens, portanto vocês não escrevem romances não apenas no setor da arte, todos estarão de acôrdo a respeito
verdadeiros'', "vocês não contam uma história, poitanto vocês não dêste ponto. Se o leitor às vêzes sente dificuldade em se loca-
escrevem romances verdadeiros", "vocês não estudam um caráter lizar no romance moderno, é da mesma maneira como às vêzes
n:m um meio, vocês não analisam as paixões, portanto você~ êle St; perde no próprio mundo' em que vive, quando tudo cede
nao escrevem romances verdadeiros" etc à sua volta, velhas construções e velhas normas.
~~s nós, _que somos acusados de se~ teóricos, nós - pelo
contrano - nao sabemos o que deve ser um romance um ro- O Nôvo Romance só se interessa pelo homem e pela sua si-
ma~ce verda~eiro! sabemos apenas que o romance de hoje será tuação no mundo
aquilo que dele fiz;ermos, e que não temos de cultivar sua seme-
lhança com aquilo que ontem existiu, mas, sim, ue temos de
tido tradicional da palavra, logo se conclui, um pouco depressa
demais, que nêles i1ão era possível enÇontrar homem algum. O
O Nôvo Romance não faz outra coisa além de prosseguir na pro- que significa que êsses livros eram mtl.ito mal lidos. O homem
cura de uma constante evolução do gênero do romance ali está presente em cada página, cada linha, cada palavra. Ainda
que nêles se encontrem muitos ol:;>jetos, e descritos com minúcias,
. ?. êrro está em acreditar que o "verdadeiro romance" se existe sempre e em primeiro lugar o ·olhar que os vê, o pensa-
nnobihzou de uma vez por tôdas, na época de Balzac, em regras mento que os revê, a paixão que os deforma. Os objetos de nossos
90
91
romances não têm nunca presença fora das percepções humanas, se coloca em todo lugar ao mesmo tempo, que vê simultânea-
reais. ~u ima~nárias; são objetos comparáveis aos de nossa vida mente o avêsso e o direito das coisas, ue se ue ao mesmo tem o
se ornarmos a pa avra o jeto em seu sentido geral (Objeto, mesmo tempo o presente, o passado e o futuro de tôda aventura?
diz o dicionário: tudo que afeta os sentidos), é normal que só Só pode ser um Deus.
existam objetos em meus livros: também existem, em minha vida,
É só êsse Deus que pode pretender ser objetivo. Enquanto
os móveis do quarto, as palavras que ouço, a mulher de que gosto,
um gesto dessa mulher, etc. E, numa acepção· ainda maior (objeto, que em nossos livros, pelo contrário, é. um homem que vê, que
diz ainda o dicionário: tudo ue ocu a a mente aind er- sente? .que imagina, um ~o:11em situado no espaço e no tempo,

ocm d&ctda, tmm nas foclim maL ss ettms a csm cndtnua


para se perceber que nossos livros estão ao alcance de todo leitor,
desde que êle aceite se livrar das idéias já feitas, tanto na litera-
tura como na vida.

O Nôvo Romance se dirige a todos os homens de boa vontade

Pois trata-se aqui da experiência vivida, e não de esquemas


tranqüilizadores - e ao mesmo tempo desesperantes - que tentam
limitar os danos e atribuir uma ordem convencional à nossa exis-
tência, a nossas paixões. Por que procurar reconstituir o tempo
O N ôvo Romance visa apenas uma subjetividade total dos relógios numa narrativa que não se.preocupa com outra coisa
além do tempo humano? Não é mais ~ábio pensar em nossa pró-
Como houvesse muitos objetos em nossos livros, e como vis- pria memória, que não é nunca cronológica? Por que obstinar-se
sem nêles algo de insólito, logo se atribuiu um significado espe- em descobrir como se chama um indivíduo num romance que
cial à palavra "objetividade'', utilizada em relação a êles por certos não diz qual é seu nome? Todos· os dias encontramos pessoas
críticos ainda que num sentido muito especial: orientado para o cujo nome ignoramos e podemos falar tôda uma noite com um
objeto. Tomada em seu sentido habitual - neutro, frio, impar- desconhecido, quando na verdade não prestamos nenhuma atenção
cial - a palavra se tornava um absurdo. Não apenas é um ho- às apresentações feitas pela dona da casa.
mem que, em meus romances por exemplo, descreve tôdas as Nossos· livros são escritos com as palavras, com as frases de
coisas, como ainda é. o menos neutro, o menos imparcial dos todo mundo de todos os dias. Não a resentam nenhuma ifi
, V n-
dade particular de leitura para aquêles que não procurem colar
tura passional das mais obsedantes, a ponto de freqüentemente
sôbre êles uma tela de interpretação fora de uso, que já não serve
deformar sua visão e produzir nêle imaginações próximas do de-
lírio. há quase cinqüenta anos. Seria mesmo possível perguntar-se se
uma certa cultura literária não é aquilo que justamente atrapalha a
Assim, é fácil demonstrar que meus romances - bem como compreensão dessas pessoas: aquela cultura que se deteve em 1900.
todos os de meus amigos - são mais subjetivos mesmo que os Enquanto que pessoas muito simples, que talvez não conheçam
de Balzac, por .exemplo. Quem descreve o mundo nos romances Kafka, mas que não se deixaram obnubilar pelas formas balza-
de Balzac? Qüem é êsse narrador onisciente, onipresente, que, quianas, acham-se perfeitamente capacitadas a lidar com livros em

9.3
que reconhecem o mtmdo em que vivem, e seu próprio pensa- Para o escritor, o único compromisso possível é com a literatura
n1ento, os quais, em vez de .en aná-las a res eito de uma re~

caro. servir a uma causa política, mesmo um~· causa que nos pareça
justa, ainda que em nossa· vida política: militemos em favor de
seu triunfo. A vida política faz com que incessantemente supo-
O Nôvo Roman<;!e não propõe nenhuma significação feita a nhamos conhecidas certas significações: significações sociais, signi-
priori ficações históricas, significações morais. A arte é mais modesta -
illJ mais ambiciosa. para efa pada é cgnhecido antecipadamente.
? Antes da obra não há nada, nenhuma certeza, nenhuma tese,

3 ]o â l 'f L

recisam ente êsse "como"


eram be~s, propriedades, em relação às quais tratava-se apenas essa maneira e izer que sons I UI seu proie o e escn o·r, pro-
de possmr, de conservar ou de adquirir. Havia uma identidade jeto obscuro entre todos, e que será mais tarde o conteúdo
constante entre êsses objetos e seu proprietário: um simples colete duvidoso de seu livro. Talvez seja, afinal de contas, êsse con-
já representava um caráter, e ao mesmo tempo uma posição so- teúdo de um. obscuro projeto de forma aquêle que melhor serve
cial. O homem era a razão de• tôdas as coisas a chave do uni- à causa da liberdade. Mas em que prazo?
verso, e por direito divino, seu senhor natural. '. . ,,.,,.
Atualmente não resta muita coisa disso tudo. Enquanto a
classe burguesa perdia pouco a pouco tôdas as suas justificativas e
prerroga~vas, o pensamento abandonava seus fundamentos essen-
cialistas, a fenomenologia ocupava progressivamente todo o campo
das pesquisas filosóficas, as ciências físicas descobriam o império
do descontínuo, a 'própria psicologia sofria - de modo paralelo
- uma transformação também total.
. . As sig~i~i~ações do n:u;i~o, à nossa volta, são apenas par-
c1rus, provisonas, contraditonas mesmo, e sempre contestadas.
Como poderia a obra de arte pretender ilustrar uma significação
antecipadamente conhecida, fôsse qual fôsse? O romance mo-
derno, como dizíamos ao começar, é uma pesquisa, mas uma pes-
quisa que cria pa.ra si mesma suas próprias significações, à medida
em que avança. A realidade tem um sentido? O a1tista contem-
porâneo não pode responder a esta pergunta: não sabe nada a
1tspeHo. 'f'm1o qae pode dliêi ê qttê ê§fa Iêãlldaae tfilvez fora
um sentido depois de ter passado, isto é, uma vez acabada a obra.
Po7 que ver nisso um pessimismo? Em todo caso, é a posição
contrána ao abandono. Não acreditamos nas significações fixas,
já feitas, que .a antiga ordem divina entregava ao homem, e de-
poi:; dela, a ordem racionalista do século XIX, mas atribuímos
ao hom(:X{Il tôda nossa esperança: são as formas que êle cria que
podem trazer significações para êste mundo.

94 95
O melhor método possível é ainda o de exh·apolar, e é exata-
TEMPO E DESCRIÇÃO mente isso que a crítica se esforça vivamente por ~az~~· Basean-

romance acidenta por exemp o, e a po e en ar imagmar aqm o


que serão as signif~cações de amanhã, e ~mitir ~ seguir um julga-
mento provisório sobre as formas que ho1e o artista lhe apresenta.
Compreende-se o que semelhante métod~ pode ter de peri-
goso, pois supõe 1:1ma evoluçã? que. se rea~iza segundo regras
revisíveis. E as coisas se com hcam ainda mais uando se trata de

A afttca t ama cct3& dlfíeil, 11mn eens senado btm ums qae
a ªrte· Enmwptg °! o rnmapçjsta . nm ewmplq POd@ rnpfiar tores, ainda que naturalmente nao sepm mais i umma os, tragam
§d& eonmsmç&o tcona parn csea pcsqztsa.
Diversas vêzes foi observado, e com justa razão, o grande
lugar ocupado pelas descrição naquilo que se convei;ici~nou. cha-
mar de Nôvo Romance, em particular nos meus propnos livros.
Ainda que essas descnções - objetos imóveis ou fragmentos de
cenas - tenham em geral atuado sôbre os leitores de maneira
satisfatória, o juízo que muitos especialistas fazem sôbre elas con-
tinua a ser bem pejorativo; são tidas por inúteis e confusas;
inúteis porque sem relaçãn real com a ação, confusas porque não
cumprem aquilo que, supostamente, deveria ser seu papel funda-
mental: fazer ver.
Já se disse mesmo, refeiindo-se ' às supostas intenções dos
autores, que êsses romances contemporâneos eram apenas filmes
abortados e que a câmera deveria substituir o estilo faltoso. Por
um lado, a imagem cinematográfica mostraria desde logo, em
alguns segundos de projeção, aquilo que a literatura }º?tilmente
se esforça por representar ao longo de dezenas de pagmas. Por
outro lado, os detalhes supérfluos seriam forçosamente postos em
seus devidos lugares, o pepino no assoalho não corrreria mais o
risco de invadir todo o cenário em que a ação se desenrola.
E tudo isso seria verdade se assim não se estivesse correndo
0 risco de desconhecer justamente aquilo que pode constituir o
· · - . ho · realizadas no romance. Uma vez
obrigado a julgar as obras contemporâneas servindo-se de cri- mais, parece que é bem em re erência ao passa o que se es a
té1ios que, na melhor das hipóteses, nfo lhe dizem respeito. O julgando (e condenando) as pesquisas atuais. . _ _ ,
que faz com que o artista tenha razão em ficar descontente com Antes de mais nada, reconheçamos que a descnçao nao e
a crítica, mas que esteja errado ao acreditar que haja, por parte uma invenção moderna. O grande romance francês do século
desta, maldade ou cretinice. Uma vez que êle está naquele mo- XIX, particularmente, com Balzac à frente, regorgita de casas,
mento criando um nôvo mundo, e novas medidas, deve admitir mobílias roupas longamente, minuciosamente desqritas, sem con-
que é difícil, senão mesmo impossível, êle mesmo medir êsse tar os r~stos, os corpos, etc. É certo que essas descrições têm por ·
mundo e estabelecer um justo balanço de seus méritos e erros. finalidade fazer com que as coisas sejam vistas, e que conseguem

96 97
isso. Na maioria das vêzes trata-se então de plantar um cenário, existente; agora, ela afirma sua função ·criadora. Enfim, ela fazia
.·de definir o enquàdra~ento da a~ão, de ap~esentar a aparência com que as coisas fôssem vistas, e agorà parece destruí-las, como
A '

. . i um i;ruverso es ave e seguro, ao as 1as, a oma-


. qual a segmr podia-s~ fa~,er refer.encias, e que por sua seme- reçam totalmente.
lhança com o mundo real garantia a autenticidade dos aconte- De fato não é raro, nesses romances modernos, encontrar
cimento~·'· das palavras, dos gestos que o romancista ali colocaria. uma descrição que não parte de coisa aiguma; ela não dá inicial-
A tranquila segur~nça co~ a . qual se impunham a disposição dos mente uma visão de conjunto, parece; nascer de um pequeno
·lugares, a decoraçao dos mtenore:s, a forma das roupas, bem como fragmento sem importância - algo que mais se assemelha a u~
OS htrlfctos SOClãfS OU faiãCLêi1Sti66§ cOfmdOs cada elemento püfitü ã pmm ao qmrl .ela fmcnta finhtés, pl&nss, 18!lil 11110 or'ru

ro~ancista parecia es!ar apenas reproduzindo, copiando, trans- do desenho 1se acumulam,se sobrecarregam, se negam, se deso-
mitmdo, como se estivessemas lidando com uma crônica com uma cam, se bem que a imagem seja posta em dúvida à medida. e;n
biografia, com um documento qualquer. ' que é construída. Alguns par~graf~s ainda e, qu~ndo a ~escnçao
~sse ~mndo ?o romance vivia. a mesma vida levada por seu acaba, percebe-se que ela nao deixou nada atras de si: ela se
modelo: nele podia-se mesmo segmr o desenrolar dos anos. Não completa num duplo movimento de e.dação e ~es1:1'rição, que ~
apell:as ?e um capítulo pa;~ o outro, mas freqüentementei desde ,,"" aliás encontrado em todo o livro em todos os mve1s e em parti-
o pri;n~iro encontro, era facil reconhecer no mais modesto objeto cular em sua estrutura global - e é daí que provém a decepção
domestico, no menor traço do rosto, a pátina trazida pelo uso, inerente às obras atuais.
o gasto p~ovocado pelo tempo. A preocupaç~o co:n a precisã.o, que às "v~ze.s ~stá pró~a do
Dessa forma, êsse cenário já era a imagem do homem: cada delírio (essas noçoes tao pouco visuais de drreita e de esquer-
uma das paredes ou dos móveis da casa representava um alter da", essas contagens, essas medições, êsses pontos de refe-
ego do. personag~m que m~rava nela - rico ou pobre, austero rência geométricos) não conseguem impedir o mundo de ser
ou glonoso - e amda por cima estava submetido ao mesmo des- algo móvel até em seus ~spec~?s os mais .ma~eriais, e mesm.o
t'i~o~ .à meism~ fatalidade. o. leitor apressado e;m conhecer a no seio de sua aparente imobilidade. Aqm nao se trata mais
1

histona podena mesmo acreditar-se autorizado a pular as des- do tempo que corre, uma vez que paradoxalmente os . gestos, ~ó
cnç~es: _tr~ta;a-se, apenas de uma moldura, que aliás tinha um são dados como fixados naquele momE;nto. É a própna matena
sentido identico ao do quadro que ela ia conter. que é ao mesmo tempo sólida e instável, ao mesmo tempo pre-
Eviden~emente, quan~o êsse mesmo leitor pula as deiscrições, sente e sonhada, estranha ao homem e· incessantemente inventan-
em nossos livros, corre o nsco de se encontrar, tendo virado tôdas do-se a si mesma na mentei do homem. Todo o interêsse das
1
as pá9inas uma após . out~:a ràpidamente~ ao fim do volume cujo páginas descritivas - isto é, o lugar do homem nessas páginas
c.onteudo lhe escapou mteiramente; acreditando que até ali estivera - não está mais na coisa descrita, mas' no próprio movimento da
lidando apenas com a moldura, continuará a rocurar o uadro. descrição.
nçao mu aram m euamen e. e
Enquanto que as preocupações de ordem descritiva invadiam todo tende para a fotografia ou para a imagem cinematográfica.
o romance, ao mesmo tempo perdiam seu sentido tradicional. imagem, tomada isoladamente, só pode fazer ver, a exemplo .
P;ara elas, não se trata mais de definições preliminares. A descri- descrição de Balzac, e assim, pelo contrário, poderia parecer feita
~º servia para situar as linhas gerais de um cenário depois para para substituir esta última, coisa de qlfe, aliás, o cinema natura·
esclarecer alguns elementos particularmente reveladores· só fala lista não se priva.
agora d.e ~bj~t?s insignificantes~ ou daqueles que ela se 'dedica a A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce
tornar msigmficantes. Pretendia reproduzir uma realidade pre- sôbre muitos dos novos romancistas peve ser procurada noutro

98 99
lugar. N~o. ~ a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim
s~as possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário. :E:Ies

. m o que mais c ama sua atenção e, natura mente, ro ava o i me, nem m .
o que mais escapava aos poderes de literatura: isto é, não tanto espectadores ávidos de "realismo'' é .que aqui não se t~t~ mais
a imagem quanto a trilha sonora - o. som das vozes os ruídos fazer com que creiam nalguma c01sa - eu q~ase dma. pelo
os sons l.ocais, ~s músicas - e sobretudo a possibilid~de de agi; contrário. . . O verdadeiro, o falso e o fazer acreditar tomaram-se
sôbre dois sentí?os ao mesmo tempo, a visão e a audição; final- mais ou me.nos 0 assunto de tôda obra moderna; esta, em lugar
mente, tanto na imagem como no som, a ossibilidade de a resentar de ser um pretenso pedaço da realidade, desenvolve-~e enquanto

· r . : , a gs prnscnes. m rnpmrn;
da montagem, as r.epeti9?es de cenas, as contradições, os perso- assim tratada (quanto aos atores, ao cenário, à m?ntagem, nas
n~gens de repente imobih~ados ;orno em fotografias de amadores, suas relações com o som, etc.) impede que se a~r~dit.e ao r_nesm<;>
d~o a esta presença perpetua toda sua força, tôda sua violência. tempo naquilo que ela afirma, tal como a descnçao rmped1a que
Nao se trata I?ª!s, po~tanto, da ;iatureza das imagens, mas sim se visse aquilo que ela mostrava. . . .
de sua. compos1çao, e. ~ apenas a1 que o romancista pode encon- É êsse mesmo movin1ento paradoxal (construn destrumdo)
trar, .ainda que modificadas, alguns de suas preocupações com .~"' que é encontrado no tratamento do tempo. O fime ~ o romance
o estilo. · inicialmente se apresentam sob a forma, de desenvolv~mentos tem-
Essas novas estruturas fílmicas, êsse movimento das imagens porais _ contràriamente, por exemplo, as obra~ plásticas, quadros
e dos .so!ls revelam-se diretamente sensíveis ao espectador des- ou ·esculturas. O filme, a exemplo da obra musical, te:? seu t~mpo
pre:erudo; parece mesmo que, para muitos, o poder destas é muito marcado de maneira definitiva (enquanto que a duraçao da le~tur~
mais ~orte qu~ .º da li~e~atura. Mas ao mesmo tempo suscitam, pode variar ao infinito, de uma página para outra e de um. md1-
no se10 da cntíca trad1c10nal, reações de defesa ainda maiores. víduo para outro). Em compensação, como disse~o~, º. cmema
Pud~ ter a experiência pessoal disso quando saiu meu se- conhece apenas um tempo verbal: o presente do mdicatívo. Em
gundo filme (A Im?rtal). Bem entendido, não há por que se todo caso, atualmente o filme e o romance se ~ncontram na con~­
surpreend~r com os Julgam~ntos desfavoráveis que sôbre êle fize- trução de instantes, de intervalos e de suc~s~oes que nada mais
ram a ma10r parte dos cromstas; mas pode ser interessante obser- têm a ver com os do relógio ou do calendano. Tentemos tomar
var al~u1?as de s.uas cen_sura~, muitas vêzes mais reveladoras que um pouco mais nítido o papel que desempenham.
seus e og1os. A~s1m, ª9:m estao os.Pontos sôbre os quais incidiram Já se repetiu muito, nestes últimos anos, que o tempo era
os ;ta9-ues n;;a1s fre9-uent~s e violentos: em primeiro lugar, a
0 principal "personagem" do romance contemporâneo. Desde
au~encia . d.e. naturahdad~ .na ~epresentação dos atôres, depois Proust desde Faulkner, o. retômo ao passado, as rup1'.1-ras na
a im:çioss1b1hd~de de se d1stmgmr claramente aquilo que é "real" cronol~gia parece1?" com efeito con.stitui.r a base da própna or~a-
da uilo ue e mental embran a ou fantasma · ·
a en encia que em os e ementas e orte carga emocional de
se transformarem em "cartões postais" (turísticos para a cidade evidentemente, com~ cinema: tôda ~bra cinematográfíc~ moderna
de Istambul, eróticos para a heroína, etc.). seria uma meditação sôbre a memoria humana, suas mcertezas,
Percebe-se que no fundo essas três censuras são apenas sua obstinação, seus dramas, etc.
uma: a estrutura do filme não permite muita confiança na ver- Tudo isso foi dito um pouco depressa demais. Ou antes, se
dade objetiva _das coisas. Em relação a ês,sei ponto, impõem-se 0 tempo que passa é de fato o personagem essencia~ de muitas
duas observaçoes. Por um lado, Istambul e uma cidade verda- obras do comêco do século e daquelas que as segmram, como
deira, e é bem ela que se vê do comêço ao fim da projeção; aliás jcft. era das ,obras do século passado, as pesquisas atuais, pelo

100 101
elevem estar acontecendo na cabeça de alguém. Mas de q_uem?
Fl
'.}....
\' ~J

Do her6i narrador? Ou da heroína hipnotizada? Ou então, por ~,,

l L. 1re
r1'tirmumrtrnJ 1115515pli J'·bIli c9eca_ dosi dois
~ 11
senti o fo1 sempre falseado pela grande crítica. assim como o único tempo que importa ·.é o do filme, o único
O ano passado em Marienbald, por causa de seu título or "personagem" importante é o espectador; é em sua cabeça que se
ca?s.a .t~mbem das ·obras que Alain Resnais tinha antes reali~a~o desenvolve tôda a história, que é exatamente imaginada por êle.
f~1 . 1111c18;_lmente interpreta~o como uma dessas variações psico~ Mais uma vez, a obra não é um testemunho sôbre uma rea-
1og1cas sobre o amor perdido, o esquecimento a lembrança As lidade exterior, mas ela é sua própria realidade. Assim, é impos-
ri;;ie5g;pp*o Q lill lO !!I !l .
-:r
~ '• ' .e~ .:.1. ' •
~c1eas 111a1s tãthliitlllé éiãlli. ꧧé liófilém e
BÍ rol !'ª'ª o gutor tronçpüHzar êstg ou aquêle espectador ins+uietg

----
l5
essa mulher se encontraram

as co~sas claramente: essas perguntas não têm sentido al- Da mesma arma, era a sur o acr l ar que no rvu•~··""
gum. o, u~1verso no qual se desenrola todo o filme é, de maneira Jalousie, publicado dois anos antes, existia uma ordem dos aconte-
caractenstica, o de um presente eterno que toma impossível qual- cimentos, clara e unívoca, e que não era a das frases do livro,
qu~r recurso a mell1;Ória. É um mundo sem passado que se basta como se eu tivesse me divertido em embaralhar um calendário
a s1 mesmo a cada mstante e que se apaga gradativamente. f:sse preestabelecido, assim como se embaralham as cartas de jogar.
homem e essa 1?ul~er apenas começam a existir quando aparecem Pelo contrário, a narrativa estava construída de tal maneira que
n~ tela pela pnmeira vez ;antes, não eram nada· e uma vez ter- , _... tôda tentativa de reconstituição de uma cronologia exterior levava
m;nada a projeção, não são mais nada novame~te'. A existência mais cedo ou mais tarde a uma sé1ie de contradições, portanto
deles dur~ apenas o que dura o filme. Não pode haver realidade a um impasse. E isso não com a finalidade estúpida de desnortear
fora da~ imagens q'!e são vistas, das palavras que se ouvem. a Academia, mas sim porque exatamente não havia para mim
Assrm, a duraçao da obra moderna não é de modo nenhum nenhuma ordem possível além daquela do livro. li:ste não era
~m r,?sumo, ui:ia condensação de uma duração mais ampla e mais uma narração misturada a uma simples anedota que lhe era exte-
r?~l que sena a da anedota, da história contada. Há, pelo con- rior, mas, ainda aqui, o próprio desenrolar de uma história que
tra:10, absolu~a identidade entre as duas durações. Tôda a his- não tinha outra realidade além daquela da narrativa, de!:.enrolar
tó;ia ·?e Manenbad não se passa nem em dois anos, nem em que não se realizava em nenhum outro lugar a não ser na cabeça
t:es dias,. mas exat~mente, .em uma hora e meia. E quando no do narrador invisível, isto é, do escritor e do leitor.
~1m do filme os d01s her~1~ se encontram para partirem juntos, Como é que essa concepção atual da obra poderia permitir
e c?m~ se a mulher admitisse que de fato houve alguma coisa que o tempo fôsse o personagem principal do livro, ou do filme?
enhe eles no ano passado em Marienbad, mas compreendemos Não seria antes ao romance tradicional, ao romance balzaqueano
que durante tô~a a projeção ~ratava-se exatamente do ano pas- por exemplo, que essa definição se aplicaria melhor? Ali o tempo
sado, e que estavamas em Manenbad. Essa história de amor que desempenhava um papel, e o primeiro dêles: êle realizava o ho-
nos era contada como uma coisa passada estava de fato se desen- mem, era o agente e a medida de seu . destino. Quer se trate
rofond0 diante à:o MUU a 011100,
11
ª'!M' o agu1a. :.;;,
ruis, ' -*
cviacntcn1Bi±Lé tilo ?Mil? OSQºPÇÕP OJJ de uma queda ê~e rgaljzaya J]ID deyenir,
ao mesmo tempo penhor do triunfo de uma sociedade à conquista
do mundo, e fatalidade de uma natureza: a condição mortal
do homem. As paixões, assim como os acontecimentos, só podiam
ser encarados num desenvolvimento temporal: nascimento, cres-
cimento, paroxismo, declínio e queda.
Enquanto que, no romance moderno, seria possível dizer que
o tempo se acha separado de sua temporalidade. Não corre mais.

102 i03
Não nada. DO REALISMO À REALIDADE
(1955 e 1963)

belas das obras contemporâ~eas nos deixa~ vazios, desconcer-


tados. Não apenas elas não aspiram a nenhuma outra realidade
além daquela da leitura, ou do espetáculo, como ainda parecem
estar sempre se contestando, pondo-se em dúvida a si mesma
à medida em que se constróem. Aq~i, _o espaço desh·ói o tempo

con ança nas coisas escritas, esses erois sem naturalidade bem ban eira so a qua
como sem identidade, êsse presente que se inventa incessante- totalidade - dos romancistas de hoje. E sem dúvida, a respeito
mente, bem como o fio da meada do estilo, que se repete, se dêste ponto, deve-se confiar em todos êles. É o mundo re~l que
desdobra, se modifica, se desmente, sem nunca se acumular a fim os interessa; todos se esforçam muito por criar o "reaf'. ·
de constituir um passado - portanto uma "história" no sentido Mas, se se reúnem debaixo dessa bandeira, não é para travar
tradicional - tudo isso só pode convidar o leitor (ou o espectador) um combate comum; é para se pegarem mutuamente. O rea-
a um outro modo de participação que não aquêle ao qual estava ..,.- lismo é a ideologia que todos brandem contra seu vizinho, a quali-
habituado. Se êie é por vêzes levado a condenar as obras de dade que todos acreditam possuir só para si. Sempre foi assim:
sua época, isto ,é, aquelas que .mais diretamente se dirigem a é em nome do realismo que cada nova escola literária quis abater
êle mesm0, se êle se queixa mesmo por ser deliberadamente aban- a que a precedia; era a palavra de ordem dos românticos contra
donado, mantido de lado, desdenhado pelos autores, é unicamente os clássicos, depois a dos naturalistas contra os românticos; e os
porque se obstina em procurar um gênero de comunicação que próprios surrealistas afirmavam só se preocupar com o mundo real.
há muito tempo não é mais aquêle que lhe propõem. Assim, o realismo parece :estar tão distribuído enh·e os escritores
Pois, longe de negligenciá-lo, o autor de hoje proclama a quanto o "bom sensó' segundo Descartes.
absoluta necessidade que tem de seu concurso, um concurso ativo, E, ainda aqui, temos de concluir que todos têm razão. Se
consciente, criador. Aquilo que o autor lhe pede não· é mais não se entendem é porque cada um tem idéias diferentes sôbre
que êle receba um mundo acabado, pleno, fechado sôbre si a realidade. Os clássicos pensavam que a realidade era clássica,
mesmo; pede, pelo contrário, que participe numa criação, que os românticos, que ela era romântica, os surrealistas, que era
por sua vez invente a obra - e o mundo - e aprenda assim a supra-real, Claudel pensava que ela era de natureza divina, Ca-
inventar sua própria vida. mus pensava que era absurda, os "engagés" pensam que ela é
acima de tudo econômica e que se dirige para o socialismo. Todos
falam do mundo tal como o vêem, mas ninguém o vê do mesmo

Aliás, compreende-se facilmente por que as revoluções lite-


rárias sempre foram realizadas em nome do realismo. Quando
um certo estilo perdeu sua vitalidade original, sua fôrça, sua vio-
lência, quando se tomou uma receita vulgar, um academicismo
que os escritores seguintes só respeitam por rotina ou por pre-
guiça, sem mesmo se perguntar a respeito de sua necessidade, é
um retômo ao real que constihü a acusação que é feita contra

104 105
as fórmulas mortas e que é a base de novas formas, capazes de uma foice. Atendo-nos a essa imagem da ferramenta, ninguém
substituírem as ·primeiras e continuar a corrida. A descoberta da considerará um debulhadoT a óleo diesel como sendo um aper~

~-füüida~só cq_nt~~~rá ~.
ª· ara f.:. illilifltliiiili.Í~,JioirlwM·ª•··si.'*'i································•'ll.lii•li
•...
mente descobeTto (e, neste caso, a coisa mais sábia a fazer seria
parar de escrever), a única coisa que se pode fazer é ir mais
com a do trigo:
Mas há algo mais grave. Como já tivemos ocasião de afirmar
adiante. Não se trata de "fazer melhor", mas sim de avançar em no decorrer desta obra, o romance não é de modo algum uma
caminhos ain~a desconhecidos, onde um nôvo estilo se toma ne- fenarnenta. Não é concebido tendo-se em vista um trabalho ante-
cessário.
eipadamente definido. Não serve traduzir

..ser a mesma" coisa que perguntar pür -que vivei·, uma vez que se
deve morrer e deixar lu ar ara r . ' · .L '

, es a gan o e maneira e 1111 va. ao po e


existir sem êsse permanente pôr-se em questão. O movimento quando o escritor entra em cena. Dessa forma, ela considera que
dessas evoluções e revoluções realiza o seu eterno renascimento. o p~pel do escritor ·se limita a ser o de "explorar" e "exprimir" a
E, além do mais, o próprio mundo se transforma. Por um ieahdade de sua época. ·
lado, objetivamente não é ·mais o mesmo, em inúmeros pontos, Sob êsse ponto de vista, o realismo apenas exigiria da parte
que era há cem anos, por exemplo; a vida material, a vida inte- do romance um respeito à verdade. As qualidades do autor se-
lectual, a vida política modificaram-se consideràvelrnente, "bem riam sobretudo a perspicácia na observação e a constante preo-
como o aspecto físico de nossas cidades, de nossas casas, de cupação com a franqueza (frequentemente aliada ao falar fran-
nossas aldeias, de nossas estradas, etc. Por outro lado, o conhe- camente). Deixando de lado a repugnância absoluta do realismo
cimento que temos daquilo que está em nós e daquilo que nos socialista pelo adultéri~ e pelos des;vios sexuais, tratar-se-ia ror-
cerca (conhecimento científico, quer se trate de ciências da ma- tanto da pintura sem veus de cenas puras ou penosas (sem 1:1edo,
téria ou de ciências do homem) expe1irnentou, de maneira aná- oh ironia, de chocar o leitor!), naturalmente com uma particular
loga, extraordinárias modificações. Por causa disto e daquilo, as atenção para os problemas da vida material e principalmente para
relações subjetivas que mantemos com o mundo mudaram intei- as dificuldades domésticas das class~s pobres. A fábrica e a fa-
ramente. vela seiiam assim, por natureza, mafs "realistas" que a ociosidade
As modificações objetivas da realidade, somadas ao "pro- ou o. luxo, a adversidade mais realista que a felicidade. Em suma,
gresso" de nossos conhecimentos físicos, ressoaram profundamente trata-se apenas de dar ao mundo côres e significações desprovi-
- continuam a ressoar - no seio de nossas concepções filosóficas, das de fraquezas, segundo uma fórmula mais ou menos abas-
de nossa metafísica, de nossa moral. Portanto, mesmo que o ro- tardada de Emile Zola.
mance não fizesse ouh·a coisa além de reproduzir a realidade, Ora, tudo isso não tem mais sentido a partir do momento
não seria normal que as bases de seu realismo não evoluíssem em que se percebe que não apenas todos vêem no mundo a sua
paralelamente a essas transformações. Para prestar contas do própria i:ealidade, . como ainda o r~rn~ce .é justamente aquilo
. ' .
a "boa ferramenta" da qual o Nôvo Romance, conforme a cons- faz a crônica, o testemunho ou a relação científica, êle constitui
tante acusação da crítica soviética - que a faz com urna segu- a realidade. Nunca sabe o que procura, ignora o que tem a dizer;
rança ainda mais tranqüila que a crítica burguesa - estaria con- é invenção, invenção do mundo e do homem, invenção constante
tinuamente querendo se afastar, quando (assim nos dizem) êle e eterno pôr-se em questão. Todos aquêles - políticos ou ou-
ainda poderia servir para mostrar ao povo os males do mundo tros - que pedem do livro apenas estereótipos, e que ainda J?ºr
atual e os remédios em moda, se necessário com alguns pequenos cima temem todo o espírito de contestação, só podem desconfiar
melhoramentos, corno se se tratasse de aperfeiçoar um martelo ou da literatura.
106 107
Aconteceu-me, como a todo mundo, ser vítima por um mo- critores, que criam sua própria história). Deve-se ressaltar aqui a
mento da ilusão realista. Na época.em que escrevia Le Voyeur,

i. no o v o as 0 a v e o ,
de fazer uma curta viagem à costa bretã. No caminho eu me
dizia: aqui está uma boa ocasião i;,ara observar as coisas "ao
vivo" e de "refrescar minha memória'. . . Mas, desde o primeiro
pássaro do mar avistado, compreendi meu êrro: por um lado, as
importância, ?esta perspe~tiva, dos romances de Raym~nd Que·-

na ma10na as vezes, e CUJO


mente os da imaginação.
Nesse n6vo realismo, portanto, não se trata mais de verossi-
milhança. O pequeno detalhe que "soa verdadeiro" não atrai mais
a atenção do romancista, nem no espetáculo do mundo, nem na
--
gaivotas que eu agora via tinham apenas confusas relações com literatura; o que o choca - e que encontramos em muitos ava-
as que eu estãVk aese1evena:u 0111 111eu 11010, e pm onero lado, fares de seu foxfo §e±lã ãiiléS, pêlo Cólitúhlü, ó peqaeao à:c

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!

se tinham transfonnado, como que tomando-se ao".' mesmo tempo aquêles que lhe surgiram como que separados de seu significado
mais reais, porque agora eram imaginárias. ' · - portanto separados de sua verossimilhança - desde a pedra
Algumas vêzes também, aborreciao pelas objeções do gênern: abandonada sem que se saiba por que no meio de uma rua, até
"As coisas não acontecem assim na vida", "Não existe um hotel o gesto estranho de um transeunte, gesto i~acaba~o, de~ajeitado,
como aquêle de Mai-ienbad", "Um marido ciumento não se com- que não parece responder a nenhuma funçao ou mtençao d~ter­
po1ta como aquêle de Jalousie", "As aventuras turcas de se'!,._ minada. Objetos parciais ou separados de seu uso, instantes nno-
francês, em L'Immortelle, são inverossímeis", "Seu soldado per~ bilizados, palavras separadas de seu contexto ou então conv~rsas
<lido Dans le Labyrinthe não carrega suas insígnias militares no misturadas, tudo aquilo que soa um pouco falso, tudo aqmlo a
lugar· correto", etc., eu mesmo tento situar meus argumentos num que falta naturalidade, é exatamente isso que oferece ao ouvido
plano realista e falo da existência subjetiva dêsse hotel, ou da do romancista o som mais adequado possível.
verdade psicológica direta (portanto não confonne à ·análise) dêsse Trata-se aí daquilo que se chama de absurdo? Certamente
marido inquieto, fascinado pelo comportamento suspeito (ou de- que não. Pois um elemento inteiramente raci,o~al e com~r:i í1:11-
masiadamente natural) de sua mulher. E sem dúvida espero que põe-se repentinamente com a mesma caractenstica de evidencia,
meus romances e filmes sejam defensáveís também a partir dêsse de presença sem motivo, de necessidade sem razão. Isso é, e é
ponto de vista. Mas sei muito bem que minha intenção está tudo. Mas há um risco para o escritor: com a suspeita de absur-
noutro lugar. Eu não transcrevo, eu construo. Essa já era a velha do, volta à tona o perigo metafísico O non-sense, ~ a-causalidade,
ambição de Flaubert: construir alguma coisa a partir do nada, que o vazio atrai in-esistlvelmente as redomas de marfim e as supra.-
fica de pé sem ter de se apoiar seja no que f6r do mundo exterior naturezas.
à obra; isso constitui hoje a ambição de todo o romance. A desventura de Kafka neste setor é exemplar. Esse· autor
Pode-se aquilatar a que ponto o "verossímil" e o ."conforme realista (na nova acepção que tentamos definir: criador de um
ao tipo" estão ainda longe de poder servir de c1itérios. Tudo mundo material, de presença visionária) também foi aquêle mais
acontece como se o falso -:-- isto é, ao mesmo tem o o ossível, o e ado em sentidos - sentidos " rofundos" - or seus admira·
imposs1ve , a ipo ese, a men U"a, e c. - se IVesse or a o um dores e exegetas. Bem r pi amente e e se tomou, aos o os o
dos temas privilegiados da ficção moderna; uma nova espécie público e antes de mais nada, o homem que parecia nos falar
de narrador nasceu aí: não é mais apenas um homem que des- das coisas dêste mundo com o único objetivo de nos fazer entrever
creve as coisas que vê, mas sim, e ao mesmo tempo, aquêle que a existência problemática de um além. Assim, êle nos descreve
inventa as coisas ao seu redor e que vê as coisas que inventa. A as atribulações de seu (falso) agrimensor obstinado entre os habi-
partir do instante em que êsses heróis-narradores começam a se tantes da aldeia; mas seu romance não teria outro interêsse além
assemelhar, ainda que pouco, a "personagens", logo se transfor- do de nos fazer sonhar com a vida próxima e distante de um
mam em mentirosos, esquizofrênicos Oll alucinados (ou mesmo es- misterioso castelo. Quando nos mostra os escritórios, as escadas e

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os corredores onde Joseph K. procura justiça, seria apenas para Sobra portanto esta significacão imediata das coisas (des-
nos envolver na noção teológica de "graça". E o mais se critiva, p~rcial, sem' re contestada), ,isto é, a que se coloca aquém

Os textos de Kafka se1iam assim simples alegorias. Não ape- funda (transcendente) se situa a em. E so re e a que inc1 ira ora-
nas exigiriam uma explicação (que os resumiria de um modo per- vante o esfôrço de pesquisa e de c1iação. Com efeito, não h.á
feito, a ponto de esgotar-lhes todo o sentido), como êsse signi- como desembaraçar-se dela, sob pena de ver a anedota assumir
ficado teria ainda como efeito o de destruir radicalmente o uni- o plano principal, e logo mesmo a transcendência (a metafísica
verso tangível que contitui sua trama. A literatura, aliás, consis- gosta do vazio e mergulha nêle tal como a fumaça numa cha-
tiria sem re e de uma maneira sistemátic em fal miné · ois a uém da si ifica ão imediata, encontra-se o absur-
coi~a. H~ver~a l,lm mundo presente e um mundo real; só o pri-

Ora, pelo contrário, aquilo de que uma leitui·a não prevenida lavras.
nOs convence é a realidade absoluta das coisas descritas por Kafka. Mas os diferentes níveis de signi~icação da linguagem que
O mundo visível,. de seus romances é, para êle, exatamente o mun- acabamos de assinalar mantêm, entre ~i, múltiplas interferências.
do real, e o que está por trás dêle (se houver alguma coisa) Ê prováve~ que o· n?vo realismo "!Aá qestruir algm:~1as dessas . op~o­
parece sem nenhum valor, face à evidência dos objetos, gestos, sições teóricas. A vida atual, a cienciq. atu~l realiza a s_upei~çao
1 palavras, etc. O efeito alucinatório provém de sua extraordinária-.."" de muitas antinomias categóricas estabelecidas pelo racionalismo
! dos sé.culos passados. É normal que ó romance, que come: tôda
nitidez, e não de incertas flutuações e neblinas. Definitivamente,
1 arte pretende adiantar-se aos sisl;emas do pensamento e nao se-
nada é mais fantástico do que a exatidão. Talvez as escadas de
1 Kafka dêem nalgum outro lugar, mas estão ali, e nós as vemos; gui-los, já esteja fundindo· num ~ó. os dois ~ê1:n?s de o;ür?~ pa:es

l1 degrau por degr~u, seguindo o detalhe das grades e da rampa.


Talvez suas .pa~edes cinzentas escondam alguma coisa, mas é.
nelas que a memória se detém, em seu rebôco partido, em )Suas
de contrários: fundo-forma, objet1v1dade-sub1etiv1dade, s1gnificaçao-
absurdo, construção-destruição, memória-presente, imaginação-rea-
lidade, etc. . ,
Vive-se repetindo, da extrema direita à exti"ema esquerda,
brechas. Mesmo' aquilo que constitui a procura do herói desa-
que essa nova arte não é sadia, é decadente, desumana e negra.·
parece diante da obstinação com que realiza sua busca, seus
Mas a boa saúde a que êsse ju~o alude é a das ol~e~as e. do
1 trajetos e seus movimentos, as únicas coi.sas sensíveis, as únicas formol, a da morte. Sempre se e decadente em relaçao as. c?1sas
!1 coisas verdadeiras . Na obra tôda, .as relações do homem com o
mundo, longe d~ ter um caráter simbólico, são constantemente
do passado: o concret~ armado ~m relação à pedra, :;> socialismo
em relação à monarqma patemahsta, Proust em relaçao a Balzac.
diretas e im~diatas. E não é desumano querer construir uma nova vida par.a o h~mem;
O mesmo é: verdade a respeito das profundas significações esta vida só parece negra se - sempre chorando as antigas cores -
metafísicas, beri1 como das significações políticas, psicológicas ou_ não se procurar ver as novas belezas que a iluminam. Aquilo que
morais. Tomar aquelas que j~ são conhecidas, a fim de exprimi- a arte atual ro õe ao leitor, ao es ectador, é, em todo caso, um
' b modo de viver no mun o presente, e participar na cnaçao perma-
que, mais tarde, serão trazidas ao mundo futuro pelo romance, nente do mundo de amanhã. Para conseguir isso, o nôvo romance
a coisa mais. sábip. que se tem a: fazer (ao mesmo tempo a mais pede apenas ao público que a~nda. confie ~o poder da lit~ratura,
honesta e a mais certa)_ é não se .preocupar com elas hoje. Desde e pede ao romancista que nao smta mais vergonha por fazer
há. uns vinte anos. pode-se julgar aquilo. que restava do universo êsse mesmo romance.
kafkeano nas ,obras de, seus pretensos descendentes, ·quando .êstes Uma idéia muito aceita em relação ao "Nôvo Romance" - e
não ~aziam mai~ : do que reproduzir o conteúdo metafísico e es- isto desde que começa,~am a lhe consagrar ,~rtigos na~ ~~vistas -
queciam . o reahsrno do mestre. . . _. . é que se trata de uma moda que vaie passar . Esta opmiao, desde
llO lll
que se reflita um pouco sôbre ela, surge como duplamente ridí-
cula. Mesmo assimilando-se êste ou a uêle estilo a uma moda

e copiam formas modernas sem sentir a necessidade delas, sem


mesmo com:rreender o seu funcionamento e, bem entendido, sem
ver que seu manejo exige pelo menos um certo rigor), o Nôvo
Romance seria, na pior das hipóteses, o movimento das modas,
que quer que' elas se destruam uma após a outra para que conti-
nuamente se ·am eradas novas modas. E a uilo ue o o-

mo ..as. ijU~ ~assam. s


retôrno à sadia tradição
) ' '
"no fundo, nada muda" e que "nunca há nada e nôvo sob o sol",
quando na verdade tudo muda incessantemente e que sempre há
algo nôvo. A crítica acadêmica gostaria mesmo de fazer o pú-
blico acreditar que as novas técnicas vão ser simplesmente absor-
vidas pelo romance "eterno" e vão servir para se aperfeiçoar al-
.gum detalhe do personagem balzaqueano, da intriga cronológica
e do humanismo transcendental.
Com efeito, é possível que êsse dia chegue, e mesmo bastante
depressa. Mas a partir do momento em que o N ôvo Romance
começar a "servil' a alguma coisa", quer seja à análise psicológica,
ao romance cat6lico ou ao realismo socialista, êsse será o sinal
para os inventores de que um Nôvo Romance· está pedindo para
ver a luz do dia, e ninguém saberá ainda ao que poderá êle ser-
vir - a não ser à literatura.

:Este livro

e rmpresso na
GMFICA
URUP:ES
Rua Cadiriri, 1161
Fones 92-9729
92-3748
Caixa Postal 30.174
São Paulo - Brasil
1969

112
POR UM NôVO ROMANCE j
Alain Robbe-Gri11et 1

o ma10r e"l?o.ei1te
cse· eonvenclonon · fràõallio, conthiua
resultado

java escrever."
Apesar dos têrmos dessa declaração inicial, aquilo que Robbe-Grillet nos pro-
'porciona aqui é um estudo profundo e bem claro dos problemas da literatura
contemporânea, da literatura da era da reificação. Rebatendo as acusações de "for-
malista", "ilegível" e "descompromissado", o autor esclarece aqui as novas relações
que se instituíram entre os homens e os objetos e como o romance dessa nova
época apreende a nialidade que nos envolve. Declarando não ser um escritor
reificante ou alienante, Robbe-Grillet mostra as ·razões do lugar ocupado pela
descrição nos romances modernos e a nova posição assumida pelas coisas, pelos
objetos, em relação ao homem.
Explicando por que o Nôvo Romance é uma Utemtm·a do olhai", o autor ataca
especificamente as teorias do realismo socialista, por êle qualificado de acadêmico,
reh·ógrado e mesmo prejudicial aos interêsses do homem. Explicitando as relações
entre a literatUl'a e a política, Robbe-Grillet esboça o papel da literatlli'a do mundo
moderno, e isto através dos textos teóricos e das análises de obras de Sartre,
Beckett, !talo Svevo e outros.
O resultado de seu h·abalho constitui, sem dúvida, a mais importante obra
sôbre a teoria da literatUl'a moderna publicada nos últimos anos.

Nova Crítica

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