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revisão: E. Bonumá
Para que servem as teorias 7
capa: A. M. Goldberger
Um caminho para o romance do futuro 13
t:.,;; , m
iL º" ~z r nr ~ zw= , zznr _, 1 Z'U?XZ?T?t717 ?777f1SW "f17f?SS?"'ZW
uanto os
a ia1s, a azer a gumas re exoes cn icas s re os ivros que escrevi,
sôbre aquêles que lia,: sôbre aquêles a~nda que planejava escrever.
Na maior parte do tempo, essas reflexões eram inspiradas por
certas reações - que me pareciam shrpreendentes ou despropo-
sitadas - suscitadas na imprensa por meus próprios livros.
1
~YW'
) ) ,
todos os escritores que não se sabia onde pôr. "Escola do olhar'', ponto, não era um paradoxo aquilo que J.-L. Borges desenvolvia
"Romance objetivo", "École de Minuit'',"' os rótulos variavam; em Fictions: o romancista do século XX que copiasse Don Quixote
quanto às intenções que me atribuíam eram com efeito delirantes: palavra por palavra escreveria com isso uma obra totalmente dife-
escorraçar o homem do mundo, impor meu próprio estilo aos rente da de Cervantes.
outros romancistas, destruir tôda a ordem na composição dos livros, Aliás, ninguém teria a idéia de elogiar um músico por com-
etc. ,"' por, em nossos dias, algo parecido com Beethoven, ou por pintar
Em novos artigos, eu tentava melhorar a situação, esclare- à la Delacroix, ou de elogiar um arquiteto por conceber uma
cendo ainda mais os elementos mais negligenciados pelos críticos, catedral gótica. Felizmente muitos romancistas sabem que o
ou aquêles mais distorcidos. Desta vez acusaram-me de contra- mesmo acontece com a literatura, que também ela é algo vivo
dizer a mim mesmo, de me renegar. . . Assim, levado alternada- e que o romance, desde que existe, sempre foi nôvo. Como poderia·
mente por minhas pesquisas pessoais e por meus detratores, de o estilo do romance ter permanecido imóvel, fixo, quando tudo·
ano em ano eu continuava, irregularmente, a publicar minhas re- · evoluía ao seu redor - bem ràpidamehte, na verdade - no de-
flexões sôbre a literatura. É o conjunto dêsses escritos que está correr dos últimos cento e cinqüenta anos? Flaubert escrevia o
agora reunido no presente volume. nôvo romance de 1860, Proust escrevia o nôvo romance de 1910.
Estes textos não constituem em absoluto uma teoria do ro- O escritor deve aceitar carregar sua própria ·data com orgulho,
mance; tentam apenas isolar algumas linhas de evolução que me sabendo que não existem obras-primas na eternidade, mas apenas
parecem fundamentais na literatura contemporânea. Se em mui~ obras na história; e que elas só sobrevivem na medida .em que
tas páginas emprego conscientemente o têrmo Nôvo Romance, deixaram o passado a1rás de si e que anunciaram o futuro.
não o faço com .o intuito de designar uma escola, nem mesmo Entretanto, há algà em particular que os críticos acham di-
um grupo definido e constituído por escritores que trabalhariam fícil de suportar: é o fato. de os artistas se explicarem. Dei-me
num mesmo sentido; trata-se a enas de um róh1lo cômodo ue conta disso quando? ap?s ter manifestado estas evidências e al-
eng o a o os aque es que procuram novas ormas e romance,. ) .
capazes de exprimir (ou de criar) novas relações entre o homem livro não apenas desagradou e foi considerado como um absurdo
e o mundo, todos aquêles que se decidiram a inventar o romance, atentado contra as belas letras, como ainda demonstraram como
isto é, a inventar o homem. :ítsses sabem que a repetição siste- era. normal que fôsse a tal ponto execrável,· uma vez que con-
fessava ser o produto da premeditação: seu autor - oh escân-
"' "École de Minuit": designação derivada do nome da editôra ( Les dalo! ...;; permitia-se ter opiniões sôbre seu próprio trabalho. ·
Éditions de Minuit) que lançou Robbe-Grillet e outros novos autores. Aqui ainda se constata que os mitos do século XIX. conser-
(N. do T.). vam tanto seu poder: o grande romancista, o "gênio", é uma es-
.9
(
pécie de monstro inconsciente, irresponsável e fatal, e mesmo Assim, não é muito interessante procurar pôr em contra-
li~eiramente i~becil, do qual partem "mensagens" que apenas o dição as reflexões teóricas e as obras. A única rela ão ue )ode
mais ou menos a mitido como favo- cordfuicias e de oposições. Portanto, não é tampouco surpreen-
obra. O alcoolismo, a desgraça, as dente constatar evoluções de um ensaio para outro, nos que serão
drogas, a paixão mística e a loucura atulharam de tal modo as lidos aqui. Bem entendido, não se trata das grosseiras renegações
biografias mais ou menos romanceadas dos artistas que a partir errôneamente denunciadas por leitores um pouco desatentos - ou
de então parece absolutamente natural ver nesses fatos necessi- mal-intencionados -, mas sim de retomadas dos mesmos pontos
dades essenciais de sua triste condição; em todo caso arece na- num lano diferente· trata-se de reexames da s n
10 11
· Tôda a consciência crítica do romancista ·só lhe pode ser UM CAMINHO
útil ao nível das escolhas, não ao nível da ·ustifica ão destas.
. ' . . . .. . . -. -
. s Ja se oça com um pouco mais e c areza possível. · As inúmeras . ~en~ativa~, que se s1:1cedem ~á 1~1ai_s de
do que os outros. De Flaubert a Kafka é tôda uma filiação que trinta anós, de fazer a fwçao sair de seus tnlhos habituais rnsul-
se impõe à nossa mente, uma filiação que exige um devenir. taram, na melhor das hipóteses, apenas nalgumas obras isoladas.
Esta paixão por descr;ever, que anima todos ós dois, é exatamente E - isto é sempre repetido· - nenhuma dessas obras; fôsse qual
aquela que encontramos no nôvo rorriance de hoje. Para além do fôsse seu interêsse, conseguiu a adesão de um público compa-
naturalismo de um e do onirismo metafísico do outro, esboçam-se rável ao do romance burguês. A única concepção de romailce
os primeiro elementós de um . estilo realista de um gên. ero des....."" que hoje tem curso livre é, coin- efeito, a de Balzac.
conhecido, que no momento está surgindo para a luz do dia. O
que esta coletânea tenta fazer é exatamente descrever alguns Sem. exagêro, seria possível mesmo remontar até Mme. d6:
contornos dêsse nôvo realismo. La Fayette. A sacrossanta análi$e p~icológica constituía, já nessa
época, a base de tôda a prosa: era éla que presidia à concepç_ão
do livro, à descrição dos personagens, ao desdobramento da m-
triga .. A partir de então, um "bom" romance passou a ser o estudo
de uma paixão - ou de um conflito de paixões" ou de uma au-
sência de paixão - num determinádo meio. A maioria de nossos
romancistas contemporâneos do tipo tradicional --:- isto é, exata~
mente aquêles que recebem a aprovaç~o dos consu,midores -
poderia recopiar longas passagens da Prmcesse de Cleves ou do
Pere Goriot sem despertar suspeitas por parte .do. amplO público
que devora sua produção .. Para tanto bastaria apenas substituir
Uma ou outra frase, ou simplificar ceitas constrnções, dar aqui e
ali o tom partfoular de .cada um por meio de uma palavra, de .
uma iriaagem atrmddn; do ITW ri*mo sh krse Uns 'õ@iilo!l iii!lft
fossam, .sem ver nisso ;nada de anormal, que suas preocupações
de escritores datam de. vários séculos já.
Por que surpreender-se com isso? .é o que se diz. O material
- a . língua francesa - sofreu· apenas· modificações bem leves
nestes trezentos anos; e se a sociedade se transformou pouco a
pouco, se as técnicas industriais tiveram consideráveis progressos,
nossa civilização mental - com efeito - continua a mesma. Vive-
12 13
mos :pràti~amente com ~s. mesm_gs hábitos e as mesmas proibições Pois, se as normas do passado servem para medir o pre-
morais, alimentares, reh 10sas, sexuais hi iênicas familiares etc. sente, servem também par~ construí-lo .. O próprio e~crito~·, a des-
Tudo já foi dito e chegamos tarde demais, etc., etc. c1v1 izaçao men a , numa I era ura que so po e ser a o passa o.
O risco de semelhantes respostas aumenta ainda mais se se É-lhe impossível escapar de um dia para o outro dessa tradição
ousa pretend_~r q~e essa nova literatura não só é possível, dora- em que se originou. Às vêzes, mesmo, os elementos que êle mais
van~e, como Jª esta aparecendo, e que ela irá representar _ ao se tentou combater parecerão, pelo contrário, desabrochar mais vigo-
realizar - uma revolução mais total do que aquelas das quais rosamente do que nunca na mesma obra com a qual êle acredi-
nasceram · · · tava assestar-lhes um golpe decisivo; e, bem entendido, será feli-
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pretendíamos ter dominado. A nossa -~olta, -desafiandó a matilha Em lugar dêsse universo das "sígnifícações" (psicológicas, so-
de nossos adjetivos animistas ou protetores, as coisas estão- aí. ciais funcionais seria necessário ortanto tentar construir urn
ou transparencias. · ,To a a nossa literatura ainda -não cónseguill por sua presença que os objetos e os gestos se imponham, e que
preencher o menor dos cantos dessas coisas, nem atenuar sua esta presença continue a seguir, a predominar, acima de tôda te01ia
menor curva. explicatíva que tentasse encerrá-los num sistema qualquer de refe-
Os inúmeros romances filmados que enchem nossas telas nos rência, sentimental, sociológico, freudiano, metafísico ou outro.
oferecem a ocasião de reviver à vontade essa curiosa experiência. Nas futuras construções Iomane:cas, gest~s e _objeto~ estarão
O cinema herdeiro êle também da tradi ão sicoló ica e nat ·a-
inalteráveis
ª rnao momemo & qüé ª Mnmnu tmlfaaa Iid§ arn &e HO§SB CbH-
frases comentavam -a seu modo rmra o leitor. :tvlas o que acontece
fôrto interior para êsse ·mundo oferecido, con1 ·uma viólência que
aJJ§ ~"" fonpp n
'
deljJ?erndarneptv
humana superior que ali está expressa, para logo rejeitar para o
esquecimento, para as trevas, êsse auxiliar incômodo.
procuraríamos em vão no texto escrito corre·spondente, romance
ou roteiro. · Doravante, pelo !;;ontrário, os objetos pouco a pouco perderão
Todos podem perceber a natureza da mudança i·ealizada. No sua instabilidade e seus segredos, renunciarão a seus falsos mis-
romance inicial, os objetos e os gestos que serviam de apoio à téríos, a esta interioridade suspeita que um ensaísta chamou de
intriga desaparecem completamente para dar lugar apenas ão seliF "alma romântica das coisas". Estas não serão mais o vago reflexo
significado: a cadeira vazia não era mais do que uma ausência ou da vaga alma do herói, a .imagem de seus tormentos, a sombra
urna espera, a mão que pousa no ombro não era mais do que um de seus desejos. Ou antes, se ainda acontecer de servirem as
s~nal de sirnJ?atia, as ~rades da janela eram apenas a irnpossibi~ coisas, por un1 instante apenas, de apoio às paixões humanas, isso
hdade de sair. . . E eis que agora vemos a cadeira, o movimento sucederá apenas temporà1iarnente, e elas não aceitarão a tirania
da mão, a forma das grades. O significado delas contínua fla- das significações a não ser aparentemente - corno por troça - a
grante, mas em lugar de açambarcar nossa atenção, êie nos é fim de melhor mostrar a que ponto elas permanecem estranhas ao
dad? corno al~~ a mais; demais, n;e~mo; pois o que nos atinge, homem.
aquilo que persiste em nossa mernona, o que surge como essen- Quanto às personagens do romances, elas mesmas poderão
cial e. irredutível a vagas noções mentais são os próprios gestos, ser ricas em múltiplas ínterpretações possíveis; poderão, conforme
os ob1etos,. os deslocamentos e os contornos, aos quais a imagem as preocupações de cada uma, dar lugar a todos os comentários,
restituiu de uma só vez (sem o desejar) a realidade que tinham. psicológícos, psiquiátricos, religiosos ou políticos. Logo se per-
Pode parecer bizarro que êsses fragmentos de realidade bruta, ceberá sua indiferença em relação a essas pretensas riquezas. En-
que a narração cinematográfica não pode impedir-se de nos ofe- quanto que o herói tradicional é constantemente solicitado, açam-
recer à sua revelia, nos atinjam a tal ponto enquanto que cenas barcado, destruído por essas interpretações que o autor propõe,
idênticas, na vida quotidiana, não seriam suficientes para nos rejeitado incessantemente para um alhures imaterial e :instável,
fozer rnir de nossa 00
gudr? k'O& lilÍOÍtil; atào B8 J_iJlilliH !HlHIO B@ ce112pre nvais distante sen1;pre ]pais üupreçi5q o herói fpt11rq
as convenções da fotografia (as duas dimensões, o prêto e branco, pelo contrário - continuará ali. São os comentários que serão
a enquadração, as diferenças de escala entre os planos) -contri- deixados alhures; em face de sua presença irrefutável, aparecerão
buíssem para nos libertar de nossas próprias convenções. O as- como inúteis, supérfluos, e mesmo desonestos.
pecto pouco habitual dêsse mundo reproduzido nos revela, ao As peças incriminadoras do drama policial nos dão, parado-
mesmo tempo, o caráter não habitual do mundo que nos cerca: xalmente, uma imagem bastante justa dessa situação. Os elei11entos
não 11abitual, também êle, na medida em que se recusa a dobrar- colhidos pelos inspetores - objeto a\)andonado no local do crime,
se ante nossos hábitos de arreensão e ante nossa ordem:. movimento fixac1o numa fotografia, frase ouvida por uma teste~
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mu.nha - .parec~n: sobr~tudo, inicialmente, pedir uma explicação, vertigem que então invadia o leitor, longe de engendrar a an-
parecem nao existir .ª nao ser em função de seu papel num caso gústia ou a náusea, pelo contrário, tranq:1iliza:a-o quanto ao seu
ue os su era. .· · /
ílil....lllllllll•lel_lllllllllllllllllt..liitlltllJ..1iJl[ll....~.."l!llltl-.!l!l;llfl!tllllifl~lllJll11i~llJllllllll~
11
ce~sária entre as coisas; acredita-se que tudo vai se resolver num
feixe banal de causas e de conseqüências, de intenções e de Nessas condições, não é surpreendente que o fenômeno lite-
acasos ... rário por excelência tenha residido no adjetivo global e único,
Mas a história começa a aumentar de volume de maneira que tentava reunir tôdas as qualidades internas, tôda a alma
inquietante: as testemunhas contradizem, o acusado multi lica oculta das coisas. A_ palavra funcionava assim como uma arma-
I • •
deiro. , tl:sses elementos, que bem podem esconder um mistéri~: como ainda por cima não acreditamos. mais nessa profundidade.'
o~ . trai-1?, que t;oçam dos sistemas, têm apenas uma qualidade Enquanto que as concepções essencialistas do homem viam sua
sena, evidente: e a de estarem ali. ruína, com a idéia de "condição" substituindo a partir de então
O mesmo atcmtece com o mundo que nos cerca. Acreditou- a de "natureza", a superfície das coisas deixou de ser para nós
se dominá-lo ao clhe atribuir um sentido, e tôda a arte do ro- a máscara que ocultava seu âmago, sentimento êste que levava
mance, em particular, parecia destinada a essa tarefa. Mas isso .,_::. a tôda espécie de "aléns" da metafísica.
era. uma ~implificação ilusória; e longe de se achar mais claro, Portanto, é tôda a linguagem literária que deveria mudar,
11;ais p~·óx1mo, o mundo com isso apenas perdeu, pouco a pouco, que já está mudando. Dia a dia constatamos a crescente repug-
toda vida. ~ma vez que, acima de tudo, é em sua presença que nância daqueles mais conscientes, diante da palavra de caráter
reside a realidade, trata-se agora; portanto, de construir uma lite- visceral, analógico ou encantatório. Enquanto que o adjetivo
ratura que preste contas dêle. óptico, descritivo, aquêle que se contenta com medir, com situar,
Tudo isso parecerá talvez bastante teórico, bastante ilusório limitar, definir, mostra provàvelmente o caminho difícil de uma
se exatamente alguma coisa não estivesse se transformando - ~ nova arte do romance.
mesmo de uma maneira total, sem dúvida defínitiva - nas rela-
ções que mantemos com o universo. Assim, entrevemos agora
a resposta a esta pergunta cheia de ironia: "Por que agora?".
Com efeit~, existe hoje um nôvo elemento que desta vez nos
separa radicalmente de Balzac, bem como de Gide ou de Mme.
de La Fayette: é a derrubada dos velhos mitos da "profundi-
dade".
Sabemos que ·tôda a literatura romanesca re ousava
, pape o escritor consistia tra-
dicionalmente em cavar_ n~ N.atureza, aprofundá-la, a fim de atingir
camadas. cada vez mais mtimas e de acabar por trazer para a
luz do drn algum pedaço de um segredo perturbador. Tendo des-
cido ao abismo das paixões humanas, êle enviava para o mundo
aparentemente tr~nciü_ilo (o <l<: superfície) mensagens de vitória
descrevendo os rnistenos que tmha tocado com a mão. E a sacra
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SôBRE ALGUIVIAS NOÇÕES OBSOLETAS sentados"; escreveu sem nenhuma malícia o muito sério · Henri
iF emir 1!morren
Clouard.
(1957)
Ni ifi'Wlr~íl ô lcrrfüi
ll!iilf h 1 ln_ E Ei lt\ "' ."Ili
de iorti nr-
se agora está apodrecendo. Bastaria a todos aquêles que se agar-
ram a êsse aalho levantar os olhos uma única vez para o cume da
árvore para0 constatar que novos galhos, verde:, vigorosos, bem
vivos, estão crescendo já faz muito tempo. Uhsses e O Castelo
já passaram dos trinta anos. Le Bruit et Ia Fureur apareceu em
Jfü8BÔB hi liflOÍS ilo Hirto anos Sg~Jirow mJ?itos outros Pen
se
20 21
êsse ·caráter que, um dia, êle legará sett nome a um tipo humano um rosto num universo onde ·a personalidade representava ao
que aguardava, seria possível dizer, a consagração dêsse batismo. o meio e o fim de tôda ~recura.
i a e mm a
!~articularidade para se t~rnar insubstituível, e suficiente genera- mas também mais ambicioso, uma vez. que olha para além. O
lidade para se tornar umversal. Variando um pouco, a fim de culto exclusivo do "humano" cedeu lugar a urna tomada de cons-
dar, ~1ma- certa impressão de liberdade, seria possível escolher um ciência mais ampla, menos antropocentrista. O romance parece
hero1 que parece transgredir uma dessas regms: uma criança vacilar, tendo perdido seu melhor sustentáculo de outrora, o herói.
achada, um desocupado, um louco, um homem cujo caráter in- Se não consegue pôr-se de pé novamente é porque sua vida
e~rto 01m1,1 li!l a.,ai o ali smpd!Sii... l!iíliefahto,
matéría do romance, à imagem da realidade, deve parecer ines- da narrativa. As exigências da anedota sao, sem duvida alguma,
gotável. menos constrangedoras para Proust do que para Flaubert, para
Sen1elhante à vida e5pqntânea sen1 ljipjte5 a bjstóri ªºH?;
Faullmer do que para Proust, para Beckett do que para Faulk-
iiéi. . . DóiãVãiité, tiãtã-§8 à:e diiiã Odlíã CO!Sã. euncat lóliiüd-Sê
2
..3
:~ numa palavra, ser natural. Infelizmente, mesmo admitindo-se que
literalmente impossível.
haja ainda alguma coisa de "natural" nas relações do homem com
' o mundo, verifica-se que o estilo, corno qualquer outra forma de Entretanto, é um êrro pretender que nos romance.: modernos
arte, é - pelo contrário - uma intervenção. O que faz a fôrça não acontece mais nada. Da mesma forma como nao se deve
do romancista é yxatamcnte aquilo que ele inventa, que êle concluir pela ausência do homem _sob o pretext? ~e qtw o p~r
inventa em plena liberdade, sem nenhum modêlo. O romance sonagem tradicional desapareceu, nao se deve ass.imilar a pesqm.:a
moderno tem isso de notável: êle afirma propositadamente êste de novas estiuturas da narrativa a uma tentativa de supressao
pura e simples de todo acontecimento, de tôda paixão, de tôda
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coisa (quer seja mostrar a miséria do b6mem se.1;-i J:?eus, explicar
fazer com ue sur·am consciencias de classe,
, , , esenvo v1mento os
temas e suas múltiplas associações h·ansformam tôda a cronologia,
a ponto de soterrar outra vez, de afogar, no decorrer do romance,
aquilo que a narrativa acabou de revelar. No próprio Beckett
não faltam acontecimentos, mas êstes estão incessantemente con-
testando a si mesmos, pondo-se em questão, destruindo-se, de tal
h-.a !Jtte ama mesma frase püt'té Córnêr uma constatação e sua
A •
1 c , e ur
f 1 Ef $ 2 ff?? 22
greve, de uma revolta, de um grito de uma vítima que
denm1cia seus carrascos, no final das contas representa um des-
serviço à Arte e à Revolução. Muitas dessas confusões foram
cometidas, nestes últimos anos, em nome do realismo socialista.
A total indigência artística das obras que insistem em seus con-
ceitos não é, sem dúvida alguma, mero efeito de um acaso: é
a própria noção de uma obra criada para a expressão de um con-
teúdo social, político, econômico, moral, etc. que se constitui numa
mentira.
Portanto, devemos agora, de uma vez por tôdas, deixar de
levar a sério as acusações de gratuidade, deixar de temer "a arte
pela arte" como se isso fôsse o pior dos males, recusar todo êsse
aparelho terrorista que era brandido à nossa frente logo que
falávamos de outra coisa que não fôsse da luta de classes ou da
guerra anti-colonialista.
Entretanto, nem tudo era a priori condenável nessa teoria
soviética do chamado "realismo socialista". Também na literatura,
por exemplo, não se tratava· de reagir contra um acúmulo de
falsa filosofia que aca~ara invadindo tudo, da poesia ao romance?
Opondo-se às alegorias metafísicas, lutando tanto contra as abs-
tratas "redomas de marfim" que essas alegorias supunham quanto
eonna o delírio verbal scn1 objetivo ou conlia o vago scnthncnta
lismo das paixões, o realismo socialista podia ter uma sadia in-
fluência.
Aqui não têm mais lugar as ideologias enganosas e os mitos.
A literatura simplesmente expõe a situação do homem e do uni-
verso com que está às voltas. Ao mesmo tempo em que desa-
pareceram os "valores" terrestres da sociedade burguesa, desa-
pareceram também os recursos mágicos, religiosos ou filosóficos
29
mais na a.
Observemos agora o resultado disso tudo. Que nos oferece Que sobra então do engagement? Sartre, que viu od perigo
o realismo socialista? Evidentemente, desta 'vez, os bons são os dessa literatura moralizadora, tinha pregado em fa~~r . e u~;i
bons e os maus são os maus. Mas, exatamente, a insistência de literatura moral, que pretendia apendas despertar ?ºdn:~~en~~~ Pqºu~
~~:: :r~a ªr~e~~~í:~oº~a
que isto é óbvio não tem nada a ver com aquilo que observamos t problemas e .nossa socie ,
propaganda iao restabelecer o leitor. em
no mundo. Que progresso há nisso, se para escapar ao desdohta-
ua Plena liberdade. A experiência ruóstrou que se tratava, ainda
mento das aparências e das essências caímos num maniqueísmo
s .P de uma utopia: a partir do instante em que1 ~urge a preo-
aqm, ~ d e s"gnificar
entre o bem e o mal?
cupaçao i alguma coisa .!(algo
, ·de extenor à arte), a
Há algo mais grave ainda. Quando, nas narrativas menos literatura começa a recuar, a desapan~cer. . , .
ingênuas, encontramo-nos diante de homens verossímeis, num
Portanto atribuamos à noção de! compromisso o umco se~
mundo complexo e dotado de uma existência sensível, logo nos tido ue ela' ode ter para nós. Em }ugar de ser na~~ez~ po 1-
apercebemos, apesar de tudo, de que êste mundo· e êstes homens . qo compromiss
P . o é' para o escritor' a plena · consciencrn dos
tica ~ da extrema
foram construídos face a uma determinada interpretação. Aliás, problemas atuais de sua própria linguagem, a convilç~ol r
seus autores não escondem êsse fato: para êles, trata-se ,antes de . o tância dêsses problemas, a vontade de reso ve- os a par ir
tudo, de ilustrar, com a maior exatidão possível, comportamentos
históricos, econômicos, sociais, políticos.
~:Pla~o interno. Reside aí, para êle, a {mie~ i;ossibilidade de con-
tinuar a ser um artista e também, sem duv1.da, por. uma conse-
Ora, do ponto de vista da literatura, as verdades econômicas, qüência obscura e distante, a de~ talvez servir um dia a alguma
as teorias marxistas sôbre a mais-valia e a usurpação também são coisa _ talvez mesmo à revoluçao.
"redomas de marfin:/'. Se os romances progressistas só devem ter
uma realidade relacionada a essas explicações funcionais do mun-
do visível, antecipadamente preparadas, experimentadas, reconhe- A forma e o conteúdo
cidas não çgpsef§nimoo ~01eek1 dfietLO qual podena ser o poder
de descoberta ou de invenção que teriam; e, sobretudo, isso seria Uma coisa deveria incomodar os .adeptos do realismo socia-
mais uma vez uma nova maneira de recusar ao mundo sua quali- lista. é a perfeita semelhança de seus argumentos, de s~u voca-
dade mais certa: o simples fato. de que êle existe. Uma explicação, bulá~io de seus valores, com os dos críticos burgueses ~fa1s er;,c~-
niçados. Por dexemp ?.' o~~eúdo" isto é quando se tratar de opor
seja qual fôr, só pode ser demais frente à presença das coisas. ' 1 ando se trata de separar a arma e
Uma teoria de sua função social, se essa teoria presidiu a des- um romance e seu e ' .' · - A dos tem-
crição dessas coisas só pode confundir seus perfis, falsificá-las, da o estilo (escolha das palavras e sua dispos1çao, ei~prego ) à ane-
pos gramat.ica1s
. e .das pessoas' estrutura
· • da narrativa, etc.
30
31
restre a Felicidade futura ou a eterna Verdade. Enquanto que,
na vé~·dade se a arte é alcruma coisa, ela é tudo, que por conse-
34 35
NATUREZA, HUMANISMO, TRAGÉDIA
1958
quilizador, de me ia or; e con enavam-me em no e
Enfim eu era muito ingênuo, diziam-me, para pretende~
negar essa' profundidade: meus próprios _livros só· ~~eressa:ram, so
eram legíveis na medida em que - medida. esta, ahas, mmt~ con-
trovertida _ eram a expressão, à minha revelia, dessa profundidade.
A tragédia é apenas um meio de se recolher a .... J.. • k a1 s1 israe wuito fraco epti·e qs três rq . .:
~dê So cx±scc &Ili p1:r.,.1el!l!!I!
!!PJ!'911!11 • , •
misér·i.a hiimana, de classificá.la, portanto de fusU-
possível resumi-la em duas frases; se eu disser: "O mundo ~ o om e eito, a meta ora nao e nunca uma 1gura mocen e.
Dizer que o tempo é "caprichoso" ou que a montanha é "majes-
h?mem":, semr;re cc:_nseguire! a absolvição; e~quanto que, se eu
disser: ~s coisas s~o as coisas, e o homem e apenas o homem", tosa", falar do "coração" da floresta, de um sol "impiedoso'', de
logo serei reconhecido culpado de crime contra a humanidade. uma aldeia "escondida" no fundo do vale, é, numa certa medida,
fomecer indicações sôbre as próprias coisas: forma, dimensões, si-
_? crime é afirmar que existe alguma coisa, no mundo, que tuação, etc. Mas a escolha de um vocabulário analógico, ainda
PªOeOb0 Pªm;
1
e o"'~ o,
'!ngpõlíiliíHiilliil!Jil!!I!@ '1 ao na à: a l Chi 6lii Cu111u1u
com êle. Sobretudo, o crime é na ó tica A
.! 38 39
i 1
altura. . . E isso algumas vêzes é verdadeiro, mas sempre com- para tôdas as intenções e propósitos digna de atrair minha
porta
• ~
um avêsso da coisa mais perigoso: é justamente essa parti- atenção.
r 'PffW"WWJ>'fW~
rrr z '"~., " 1 r ·- i'.ibçifi:frm;:~Jl$~@$ZJnJi$$Z,\&;zg!Jt;>!: p;Y!~!~P . i uma vez que o acor o en re o 1omem e as coisas aca ou por ser
vagena. . . A ideia de uma natureza leva infalivelmente à idéia r' .. t a a . s
~º .ama nmmaa wmam u LGGJ§ m e&&M, ma e, süp&HOf. x , • , ; 1 • • 1 •
bat.e uma estaca que quer cravar. Enquanto está utilizando-o conteúdo, de uma profundidade, de uma alma - que logo me
a~srm, o ~artelo (ou o p:~aço de madeira) é apenas forma e maté- remete à minha própria. A distância entre meu grito, aos meus
na: s~u peso, :ua superficie de contato, sua outra extremidade que próprios ouvidos, e o interlocutor mtido (talvez surdo) ao qual
P,e~i.mt~ que ele.º segi:re .. O homem, a seguir, repousa 0 uten- êle se dirige, torna-se uma angústia, minha esperança e minha
s1ho diante de s1; se nao tiver mais necessidade dêle o martelo desesperança, um sentido para minha vida. Doravante, nada mais
não é mais do que uma coisa entre as coisas: fora de seu uso importa para mim a não ser êsse falso vazio e os problemas que
não tem significado. ' êle me apresenta. Devo chamar durante mais tempo? Devo
gritar mais alto? Devo pronunciar ciptras palavras? Tento de
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Tudo está contaminado. Entretanto, parece que o setor esco-
nôvo. . . Logo compreendo que ninguém responderá; mas a pre- lhido pela tragédia seja o da narra?va, o ''.r~n;ianesco". Desde
sença invisível que continuo a criar com meu aaêlo me obij[IJ
que êle produz começa a me
E
atordoar. Como que
l
enfeitiçado,
i!ttBf l!I' 211 rt/Yflfi)nftrr. \tU~Jtr•, rn ZJl'WPWPUC
alma pura, os justos coagidos à m1usti9a, por suas co;,isciencrns, o~
chamo de nôvo. .. . e mais uma vez. Minha solidão, exacerbada, sádicos por amor, os dementes por logica, o b?m . perso~agem
transmuta-se no fim, para minha consciência alienada, numa ne- de romance deve ser antes de tudo duplo. A mti·iga sera tanto
cessidade superior, promessa de minha redenção. E me vejo na mais humana quanto mais equívoca fôr. Finalme:it;, o livro será
obrigação, para que esta se realize, de me obstinar até a morte tanto mais verdadeiro quanto forem as contradiçoes que apre-
em ritar
. '
natµreza ~@j§ llmª Ytl'Z
obra importante, na ·
ao mesmo tempo a afirmação
gico". de seu abandono.
Duas grandes obras pelo menos, nas últ~as décadas, nos
ofereceram duas novas f01was da fatal cumplicidade: o absurdo
e a náusea.
Albert Camus, como se sabe, chamou de absurdo o abismo
intransponível que, ~xiste entre o h~mem e. o mundo, entre as
aspirações do espmtõ humano e a mcapacidade do mundo . em
satisfazê-las. O absurdo estaria não no homem, nem nas coisas,
mas na impossibilidade de estabelecer entre êles uma outra re-
lação que não seja a de estranheza. ,.
Não obstante, todos os leitores observaram que o heroi de
O Estrangeiro mantinha com o mundo uma conivência obscura,
feita de rancor e de fascinação. As relaçõe~ dêste homem com os
objetos que o cercam não são ~m nada in_oc;ntes: o absurdo ~ons~
tantemente acarreta a decepçao, a dem1ssao, a revolta. N ao e
exagêro pretender que são exatamente as coisas que. aca?ai:n por
levar êste homem até o crime: o sol, o mar, a areia cmtilante,
a faca que brilha, a fonte entre os rochedos, o revólver. . . Como
de direito, entre essas coisas, o principal papel é representado pela
tância entre o homem e os outros homens, distância entre o Da mesma forma o livro não ·é escrito na linguagem tão
homem e êle mesmo, entre o homem ·e o mundo, entre o mundo e lavada que as primeiras páginas poderiam fazer acr~ditar. Com
êle mesmo, nada permanece intato: tudo se dilacera, se fende, efeito, apenas os objetos já carregados com um con~eudo hu_mano .
se cinde, se desloca. No interior dos objetos mais homogêneos, flagrante são neutralizados, com cuidado, e p~or razoe~ morais (tal
bem como das situações menos ambíguas, aparece uma espécie como o caixão da velha mãe, do qual nos sao descntos os pars.-
de distância secreta. Mas é exatamente uma distfuicia interior, fusos, sua forma e quanto penetraram na ,madei~a}. Ao lado diss<;>
uma falsa distância, que na realidade é um caminho aberto, isto descobrimos, cada vez mais numerosas a medida que se apro-
é, já uma reconciliação.
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xima o instante do assassinato, as metáforas clássicas mais reve- a mão do Autodidata. A cada vez, é o contato físico com a mão
!adoras, denominando o homem ou subentendidas por sua oni- do narrador q~e nêle P..r~voca um choque.~ Sabe~os que o tato
lllllllllll1l·e1slelníial:lolÍclalmiioileisitiáill"aiiliiiiiiliiilii1"11ÍIÍliiii11i'1'•'iiij1i1íillllllllllllllllJll!l\ll!~""~IJ!i11i1fl
o ue ., , .
a terra é "côr de sangue", o sol é giosa só pelo fato de olhar para um doente. O olfa:o Jª e mais
reflexão sôbre uma ostra é "uma suspeito: implica numa penetra9ão do corpo J?ela coisa est~anha.
De resto o setor da vista tambem comporta diferentes qualidades
de apree~são: uma forma, por exemplo, é geralmente mais segura
do que uma côr, que muda com a iluminação, com o fundo que
a acantpanlia, catn o SU]éltü que a considera.
;
o mesmo efeit.o que a mesri íiiile1tJfilft181 11·!,TIJl Ui?Jlf oumfil ;JlffiilWl?f[fJéJthFll 1n11bi t@idldd, foi
entendido) do objeto, uma espécie de insistência vergonhosa que "vida estragada", o lúgubre e risível destino do Autodidata, tôda
é, ao mesmo tempo, queixa, desafio e negação. "Os objetos ... essa maldição do mundo terrestre: nestas condições não nos ve-
êles me tocam, é insuportável. Tenho mêdo de entrar em con- mos incitados a levar tôdas essas coisas para a categoria de urna
tato com êles, como se fôssem animais vivos." A côr muda, por- necessidade superior? Onde está, então, a liberdade? Uma vez
tanto vive; é isso que Roquentin descobriu: as coisas são vivas, que aquêles que não desejam essa maldição estão muito bem
tal çpmg êle
ãíliéãÇãdõ§ iJélã CülldéliãÇâó iiióiãl
Os sons também lhe
Semelhante i· nada a uilo ue ha nas cmsas, mas sim aqmlo que o homem pode
' d r IS vado certos comportamentos, com maior ou menor rigo:. essas
e o e uma consciência preocupada com compreender-se e
reformar-se. Ao longo de tôdas essas páginas sutis, 0 menor seixo aparências inspiram-lhe analogias humanas, e Ponge poe-se a
o menor pedaço de· madeira incessantemente lhe dá lições a~ falar do homem, sempre do homem, apoiando-se negligen~e
mesmo .tempo o ~xprime e o julga, mostra-lhe um progres~o a mente sôbre as coisas. Pouco lhe importa que o caracol nao
ser realizado. Assim, a contemplação do mtmdo é para 0 homem "coma" terra, ou que a função clorofiliana seja uma absorção e
'' - " r A • • f ""'
onam.os o ponto ~e vi~ta moral do aperfeiçoamento, o parti-pris A mineralogia, a botânica ou a zoologia, pelo contrário, rea-
das c~1sas nao ?ºs e mai~ de nenhuma ajuda. E se, em particular, lizam o conhecimento dás texturas (tanto internas como externas),
prefen~os a liberdade. a sabedor~a, somos obrigados a quebrar de sua organização, de seu funcionamento e de sua gênese. Mas,
todos esses espelhos dispostos artisticamente por Francis Ponae fora de seu domínio, essas disciplinas não servem para mais nada
p~ra po~ermos achar os objetos duros e secos que estão por trás a não ser para um enriquecimento absti'.ato de nossa inteligência.
deles, nao perfurados, tão estranhos quanto antes. ,,,.=- O mundo à nossa volta torna-se uma superfície lisa, sem signifi-
Fran?ois Mauriac, que - dizia êle - outrora lera o O Cêsto cado, sem alma, sem valores, sôbre a qual não temos mais ne-
de Francis Ponge, ·por recomendação de Jean Paulhan deve ter nhuma ascendência. Tal como o operário que largou o martelo
conser,va~? muito ~ouco dêsse texto na memória quando chamou de que não precisa mais, encontramo-nos uma vez mais diante das
· .de Tecn~ca. do .Cesto a descrição dos objetos preconizada em coisas.
meus propnos livros. Ou então fui eu que me expressei muito Portanto, descrever essa superfície é apenas isso: constituir
mal neles.
essa exterioridade e essa independência. ]?rovàvelmente não tenho
Com efeito, ~escrever as coisas é deliberadamente colocar-se mais a dizer "sôbre" a caixa de meu tinteiro do que "com'' ela;
do lado de fora, a frente delas. Não se trata mais de apropriar-se se escrevo que ela é um paralelepípedo; não pretendo com isso
delas, º~u de yrojetar algo sôbre elas. Apresentadas, de saída, isolar daí uma essência qualquer; mends ainda tenho a intenção
como nao senao o homem, elas permanecem constantemente fora
de entregá-la ao leitor para que sua ill1aginação se apodere dela
de alcance e por fim não são nem compreendidas numa aliança
e a ornamente com múltiplas colorações: desejaria sobretudo
n~tt:ral,, nei:u recuperadas por um sofomento. Limitar-se à des-
cnçao e ev1.denteme~1te r~cusar todos os outros modos de aborda- impedi-lo de fazer isso.
g~m do ob1eto: a simpatia por ser irrealista, a tragédia por ser As censuras mais habituais feitas a semelhantes informações
alienante, a compreensão por depender apenas do setor da ciência geométricas - "Isso não diz nada a nossa mente'', "Uma fotô-
Sem dúvida, êste último onto de · t rafia ou um dia rama teriam mostrado melhor sua fonna", etc.
. 1 . e o umco meio onesto de que o homem dispõe para - são 1zarras censuras: como nao pensei msso an e
tirar p~rbdo .do mundo que o cerca, mas é um partido material· dade, trata-se de coisa bem diferente. A fotografia ou o desenho
por mais .desmteress~da que fôr a ciência, ela só se justifica pel~ visam apenas reproduzir o objeto, e têm tanto mais sucesso em
est~belec1mento, mais cedo ou mais tarde, de técnicas utilitárias. sua missão quanto puderam dar lugar a interpretações tão nume-
A literatura tem outros objetivos. Em compensação, só a ciência rosas (e aos mesmos erros) quanto as permitidas pelo modêlo.
po.de prete?der conhecer o interior das coisas. A interioridade do A descrição formal, inversamente, é antes de tudo uma limitação:
seixo, da arvore ou do caracol que Francis Ponge nos oferece quando diz "paralelepípedo'', ela sabe que não está atingindo
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nenhum além, mas ao mesmo tempo está cortando rente ti)das
as possibilidades de procurar um dêles. . á-la,, Antes já houvera a "ma1va" d os suspens6rios e
nem 1ecus · . ,, d de cerveja.
Regish·ar; a distância entre eu e o ob "eto a "trans arência sus eita o copo
as istancias Cl
••• ililil••••••il•ll .
. os obi"etos entre êles, e insistir ainda no fato de olhar contmua ª ser noss.,
.
, l'111h ª.8 ·_ Quanto
a melhor anila, sobretudo se se ativer
a sua
" b" ti" 'dade" _ principal argu-
que são apenas distâncias (e não dilaceramentos), isso vem a ser apenas as . mo tem su
ela ieassim
VI seu valor diminm'do.?
estabelecer o fato de que as coisas estão aí e que não são mais mento da oposiçao - co d s6 · ode se tratar do mundo
do que coisas, cada uma limitada a si mesma. O problema não Evidentemente, de qualqyer mo o, to Pde vista· nunca poderei
é mais o de escolher enh·e um aci)rdo feliz e uma solidariedade tal como é orienta~o pe ºA meu /~~bjetjyjdade 'relativa de meu
1- 7
de importancia em menor. ao
que Joe Bousquet tem .seus aspectos bem superados, e que Godot
está muito na moda, e que muitas vêzes não foram as obras mais
bem realizadas que foram escolhidas para representar os autores
escolhidos. ·
Tudo isso é verdade. É que os cinco ensaios aqui reprodu-
zidos são para mim sobretudo exemplos, que me permitirão tor-
nar mais nítidos alguns temas e formas característicos desta lite-
ratura que ainda está sendo feita. Os primeiros dêsses exemplos
remontam já há mais de cinqüenta anos, os últimos pertencem a
nosso após-guerra. Todos oferecem, no meu modo de ver, alguma
coisa de p·rofundamente atual; é esta alguma coisa que procuro
isolar aqui, e que não seria difícil de encontrar na maioria das
pesquisas contemporâneas:
ENIGMAS E TRANSPARÊNCIA
EM RAYMOND ROUSSEL
' (1963)
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pode ser aplicada às séries de objetos, de gestos e de aconteci- coisa descrita, isto é, como nenhuma sôbre-natureza se esconde
mentos que constituem, desde logo, seu universo. atrás dela, nenhum simbolismo (ou então é um simbolismo que
. . _ , e e em e nos contar a guma anedota ga o a parar na propna super icie Ctas coisas: uma máquina de
ps1col?g1ca, ou entao algum costume religioso imaginário, uma funcionamento engenhoso e inútil, um cartão postal de uma es-
narrativa de usos primitivos, uma alegoria metafísica. . . Mas êsses tação balneária, uma festa de desenrolar mecânico, uma demons-
e~ementos não têm nunca nenhum "conteúdo", nenhuma profun- tração de feitiçaria infantil, etc. Uma transparência total, que
didade, em caso algum podem constituir o mais modesto apoio deixa subsistir nem somb:rns, nem reflexos, vem a dar de
ao estudo dos caracteres humanos ou das aix:ões a menor c numa pintura trom e-l'ocil. Quanto acumulam os
Com efeito;
JMtJ!ftflC'bJQ§IJQ[)IlI ftJTlltfi iBlff'!'.f@ue 'Ilos Úvar ao IJ11ilffilf ÜllbdJnJi(lfiiCffiJít1ii i .· irsas pásmas folcloncas
e~pe.t~culo puro de um gesto sem sentido. Uma vez mais, 0 Quais são então essas formas que nos a~a~1wn~m~ E cor:io
significado transparente demais se junta à total opacidade. agem sôbre nós? Qu~ seu sig~if~cado? Sen: duvida e amda mmto
_ Mais, al.ém, começa-se por propor uma colagem de palavras cedo para responder as duas ultim~s 9.uesto~s. As_ formas rou~se
1
tao, heterochta quanto possivel - colocada por exemplo sob uma lianas ainda não se tornaram academicas; amda nao foram dige-
estatua, esta mesma carregada de múlti las articularidades des- ridas pela cultura; ainda não passaram para o est.ad~ de valores.
I
Esta investigaçao, ,
amcs dó tmlis ar "'· ; spjebe Jé9jn Que Jeye
~en~e .. c?~plex:s, engen~osas e "puxad~s pelos cabelos" parecem determinado estado a um outro - qµe se assemelha muito ao
tao Irnsona.s, tao decepc10nantes, que e como se o mistério per- primeiro, ainda que seja atingid~ depois de um lo~go desvio.
rr:anecesse mtato. Mas doravante já é um mistério lavado esva- Podemos ter um nôvo exemplo dele - e que tem amda ~ van-
ziado, que se to~·nou in_ominável. A opacidade não ocult~ mais tagem suplementar de se situar ihte!ramente no .setor, da. lingua-
nada. Tem-se a impressao de ter encontrado uma gaveta fechada gem- nos breves textos póstumo~ CUJO arca~ouço o propno Rous-
depois uma chave; e esta chave abre a gaveta de maneira impe~
cável. . . e a gaveta está vazia.
sel explicou: duas frases que sao pronunciadas .da roes.ma
neira, com apenas uma diferença mm~ma, mas CUJOS_ sentidos na_o
m:-
. O próprio Roussel parece ter-se enganado um pouco a res- têm relação alguma, por causa das diferentes a~epço,es na~ qu~1s
peito desse ~sl2,ecto de sua obra, êle que pensava poder fazer com são empregadas as palavras semelhantes. O tra1eto e aqm a hi~
que as multidoes corressem ao Châtelet para assistir a uma tor- tória, a anedota que permite reunir · as duas frases que, c~nsti
rente .dêsses - _acreditava êle - palpitantes enigmas e à sua tuirão, uma, as primeiras palavras do texto, e a óutra, as ultim~s.
~uce~siva resoluçao por um herói paciente e sutil. A experiência, Os episódios mais ab~urdos serã? assim j~st.ificados por sua funçao
mfe~izmente, logo o desenganou. Era fácil prever isso. Pois na de utensílios, de veiculas, de mtermedrnnos; a anedota, aberta-
realidade trata-s~ .de adi~rinhações fe~tas no vazio,. de pesquisas mente não tem mais conteúdo, mas sim um movimento, uma
concretas mas teoncas, privadas de acidentes e que por essa razão ordem', uma composição; ela também não é m~is do , qu~ uma
não podem ."emboscar" ninguém. Entretanto, em cada página há mecânica: simultâneamente máquina de reproduzir e maquma de
uma armadilha, mas faz-se apenas com que elas caminhem à modificar.
noss~, ~.rente, mos_trand.o-n?s. tôdas as saí~as ·~ dizendo-nos, pelo Pois é preciso insistir na importância que Roussel atribui a
contiano, como nao cair vitima delas. Ahas, ainda que não tenha esta modificação de som muito tênue que separa as duas ~r'ases
um longo hábito das operações rousselianas e da necessária de- chave, sem se falar na modificação geral do sentido. Debaixo de
cepção que se segue à sua realização, qualquer leitor ficará desde nossos olhos, a narrativa realizou, de um lado, uma profunda mu-
/\ º • li 1 • . - e a lin ua em - sü:rnifica,e or
total gratu.idade -, ~los mistérios propostos. Ainda aqui se trata outro lado, uma ínfima defasagem super eia a e ra a era ;
ou do vaz10 dramahco completo, ou do drama de panóplia com o texto "morde o próprio rabo'', porém com uma pequena irregu-
todos seus acessórios convencionais. E, neste caso, quer as his- laridade, uma pequena entorse. . . que muda h1do.
tór~as co~t~das ultr~passem ou não todos os limites da estupe- Freqüentemente também encont~·~mos a simples reprodução
façao, a un;ca rr:aneira pela qual são apresentadas, a ingenuidade ,ª
plástica, como êsse mosaico que já cit~~a b_::'1te-estacas desenha.
com que sao feitas as perguntas (no gênero: "Todos os especta- Os exemplos dessas imacrens de toda especie sao abundantes: está-
dores estavam muito intrigados pela ... ", etc.), o estilo enfim, tão tuas, gravuras, quadrot ou mesmo grosseiros desenhos sem ne-
58 59
'Ili
, . ; f s a o. SS& cm Gc _
nstica se torna ainda mais provocante pelo fato de que se trata
de um~ reprodução._ Ro;issel prefere descrever, como ressaltamos,
~~m umverso que nao e apresentado como real, mas sim como
p representado. Gosta de pôr um artista intermediário entre êle Zeno Cosini, rico negociante triestino (o Trieste austríaco de
n,esmo e o mundo dos homens. O texto que nos é proposto é antes da guerra de 14), redige para um psicanalista os fatos prin-
uma .relação que diz respeito a uma duplicidade. O desmedido . ._ cipais de sua existência passada. Estudos universitá1ios incertos,
crescimento de certos elementos distantes ou minúsculos assume..,. morte do pai, paixão voluntàriamente sentida por uma jovem,
aí um valor p~1ticular; pois o observador não pôde se aproximar casamento com a irmã desta, vida de família feliz e confortável,
para olhar mais perto o detalhe que atrai sua atenção. Evidente- amantes, negócios comerciais mais ou menos arriscados e geral-
mente, êle também inventa, à semelhanca dêsses inúmeros cria- mente deficitários, aparentemente nada disso tem sérias conseqüên-
dor~s _- de máquinas ou de métodos - que povoam tôda a obra. cias para êle: a espôsa zela com amor pelo seu lar, um conselheiro
A visao é aqui uma visão imaginária. de investimentos gere sàbiamente a maior parte de sua fortuna.
. Uma outra . ~aracterística surpreendente dessas imagens é De resto, o Zeno que envelhece não atribui a ê·sses acontecimentos
aqmlo ~ue podenamos chamar de sua instantaneidade. A onda bastante ordinários um interêsse excessivo; êle só os ressuscita e
qu~ est~ prestes ,ª estourar, a criança que roda o arco na praia, comenta com uma única finalidade: provar que está doente e des-
ª
mais alem .. esta~a de um personagem no ato de realizar um crever sua doença. Apesar de seu aspecto, que se supõe ser bas-
gest? eloquente (amda que inicialmente o sentido dêsse gesto tante bom, o nome de doente imaginário não lhe. convém de
es~eia ausente, um enigma), ou o objeto representado a meio ca- modo algum; êle sabe que a medicina tem poucos podêres sôbre
mmho entre o solo e a mão que acaba de soltá-lo tudo nos é seus males, acaba sempre por brigar com os médicos e seus diag-
dado como que em pleno movimento, porém imobili~ado no meio nósticos só servem para lhe provocar novas perturbações; se cole-
dêsse movimento, imobilizado pela representação que deixa em ciona remédios - ou mesmo os ingere algumas vêzes - não é com
sus enso todos o ·e - uma inten ão ro riamente falando tera A tic ' t '
na iminencia de seu fim e privando-os de seu sentido. ê e troça tanto a psicaná ise quanto dos tratamentos por eletro- 1 ~'
choques ou através da ginástica. Desde as primeiras páginas en-
.. ~nig.mas vazios, te~pos parados, signos que se recusam a sig-
contramos sua profissão de fé: "A doença é uma convicção e eu
mficai, gi~antes?o crescimento do detalhe minúsculo, textos que se .fl
nasci com essa convicção." Em suma, algo com uma graça.
f~cham sobre si mesmos, estamos num universo chato e descon-
O que sua narrativa tenta esclarecer em trezentas e cinqüenta
tínuo em que cada objeto só nos remete a êle mesmo. Universo
páginas formato grande é a natureza exata e a importância exclu-
da imobilid~de, da repetição, da evidência absoluta, que encanta siva dessa convicção. O universo no qual êle nos mergulha, ao
e desencoraia o explorador ...
mesmo tempo grotesco, fantástico e absolutamente quotidiano,
60
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amante à casa de seu sogro que o estima, seguimos àvidamente
as perambulações dêsse caçador que persegue a si mesmo sem
piedade. E sem hesitar nós o situamos ao lado de seus irmãos:
é bem o caso de Michael Kohlhaas à procura de seus cavalos
indevidamente confiscados, do abatimento entrecortado
, de .repen-
.
pare es e seu q~arto - de modo que, com as paredes cobertas situação, Zeno declara: "A situação era tão clara que eu não
por ~s.sas datas, ele logo deve mudar-se. Mas no meio dessa compreendia mais nada." Depois de ter acumulado os indícios
paral~sia, a ;norte atinge, ao seu redor, amigos e parentes, e tôda de um clássico complexo de Édipo com múltiplas transferências,
vez ele esta despreparado, compreendendo repentinamente que fica furioso com o médico que não pôde evitar de observar essa
nunca lhes poderá provar sua boa vontade e sua inocência. situação; depois êle acrescenta de propósito, em apoio a essa tese,
Zeno não áprecia sua doença. Tenta não falar dela tenta alguns falsos elementos. Atua de maneira semelhante em suas
comportar-se como todo mundo na medida do possível. Na ver- relações com os amigos ou a família: "Se eu não tivesse desfi-
62 63
gurado tudo, acharia inútil abrir a bôca." No fim, descobre que JOE BOUSQUET, O SONHADOR
sua análise é capaz de converter a saúde em doença; que não •. (1953)
se1a êsse º ebsfá?!Jw. 1P?i1? 'f'i? T!7 t PYUiT ?Fif F d
Esta boa saúde de que êle quer cuidar - ou está má saúde -
esta consciência, como indica o título da obra, acaba por ser por
êle chamada apenas de "vida", que "diversamente das outras doen-
ças, é sempre mortal".
Estoura a guerra entre a Itália e a Áustria. Paradoxalmente,
Um homem se conhecia como sendo o produto
mesmo mtmdo.
nlsesré um I1 • ] E p J lm dada dC&CGllliCCl@IG il6 6@11Lfó .. •• ]. E.
da terra. "Uma formidável explosão que ninguém ouvirá - e a
terra, voltando ao estado de nebulosa, continuará seu caminho
através dos céus libertados da presença dos homens - sem para-
sitas, sem doenças."
Tempo doente, linguagem doente, libido doente, empreendi-
mento. doente, vida doente, consciência doente. . . evidentemente'
não se deve ver aí uma vaga alegoria ao pecado original, ou
qualquer outra lamentação metafísica. Trata-se da vida quoti-
diana e. da experiência direta do mundo. O que Italo Svevo assim
nos diz é que, na nossa sociedade moderna, nada mais é natural.
E nem mesmo .há razão para se afligir por isso. Podemos perfei-
tamente ser alegres, falar, amar, fazer negócios, fazer guerra, es-
crever romances; mas nada disso continuará a ser feito sem que
se pense no que se está fazendo, assim como se respira. Cada
uma de nossas, ações reflete-se em si mesma e se carrega de
perguntas. Sob; nosso olhar, o simples gesto que fazemos para
estender a mão. torna-se bizarro, sem jeito; as palavras que ou-
vimos ser por nós pronunciadas logo soam falsas; o tempo de
nossa mente não é mais o dos relógios; e o estilo de um romance,
por sua vez, não pode mais ser inocente.
~~;~ ~~ :::Jnh~~.~'
foª;~ :~~~;nhece
~~~~e a~~:~b~l~nd1~d~
Al que tivesse a poss1 i ia e
i
~:~n~:~;~h:t~ê~~=
d
como sendo a mais preciosa, a mais profun a,
provàvelmente a úniêa a ser real ...
64
!.·.
.
.
ou a lembrança, a matéria para a qual êle deve emprestar sua "de coerência e de densidade imóveis", pertence apenas a um novo
imaginação a fim de salvá-la do nada. lt um prisioneiro em seu mundo desta vez encontrado para s~mpre. Esta Neve de uma
quarto, está condenado à inação pela bala que recebeu, mas no outra ~ra não se fundirá ao primeiro ··raio de sol.
fi1:1 _das, c~ntas é êle quem dá uma existência organizada à sua "Nas minhas lembranças de Ma'.rceillens, ou da aldeia em
pnsao, e ele quem resgata do acaso e do caos essa bala perdida que cresci, a referência à lembrança se .acr~scenta como uma cm:~
que o paralisou. Depois do fato realizado, não se trata mais aqll'i- cessão cada vez mais frouxamente ~tnbmda ... ~ e a.d~ ;ez mais
de despertar uma consciência para os fenômenos que já têm sua me parece que nada nessa operação e,. d~ fa~o, t~o ficticio ,e. con-
vida própria: sem essa criação, a matéria não poderia ter forma vencionado quanto a resolução de atribm-la a mmha memoria· · ·
algum~; Bousquet descobre finalmente que êle mesmo se infligiu
sua mutilação. "Minha experiência de prisioneiro me edificou: livre, eu. ge-
rava a extensão onde acreditava me deslocar cor:_io u:r_n ob1e~o.
No Le Meneur de Lune seguimos a progressão página a Imobilizado, percebi que as batidas de Ameu cora~ªº. cnavam m-
página: cessantemente o espaço onde tantas vezes acreditei reconhecer
"O acidente que mutila um homem não toca nas fôrças de 0 cenário estereotipado de minha infância. Tivesse eu conservado
sua existência; só é mortal para os seus hábitos. O infortúnio minhas pernas, há muito tempo atrás já teri~ mo~ilizado as Aen-
físico só con-ompe aquilo que seria corrompido. costas cheias de árvores de um caminho e dissolvido no esforço
Dêsse modo, depois de ser jogado em seu leito de doente, da escalada a sensação cujas qualidades as batidas .de meu co-
você viu sua vida vir até você?
ração distribuíam pela suave subida de meu c~mpo visual. Agor~
- Infelizmente! Que foi que eu mais encarnei a não ser o apreendo melhor a operação que permanece ii;acabada. Acre?i-
acidente de que fui vítima?"
tando reviver antigas lembranças, crio a partir ~e um n;iodelo
E mais longe: "Faça sua vida à imagem daquilo que você de outrora uma paisagem na qual não tenho mais os me10s de
tem de melhor dentro de si. Se ela lhe impuser uma lei que
você não concebeu, não se separe dela com êsse pretexto Ambos Penetrar, mas onde faço o tempo chover, às vêzes avar:çando ~m~
pAglna l.
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tam aquêles que po/eia;~~o n!;1~dcida e c?n\a a qual se revol- 26Iii8 11@§§&§ &Vé11llllcl§ h᧠Qllài§ Mil qttàiLO C'!é HOLél coma hifo
ao mesmo tempo de deQe· mg1 os - amda_ que não defa:em gralmente um crime que a imaginação policial é incapaz de rein-
realização definitÍva ("se" aJª;nfªra da, sua pr6pr~a desgraça um~ ventar de pronto. E, lendo histórias policiais, ou páginas de Ray-
qual a morte é simultaAnamepnt s f~u es~emos deitar raízes!"), da mond Roussel, sentimos o frisson do homem que entrou, ah·avés
e o im a 1mag · f de oblíquas relações fictícias, na mais necessária e mais exata de
a zomba1·1·a. ,e em mais per eita - e suas funções."
. :se apenas minha existência como a d
fixaçao , ,,,.- Assim, trata-se inicialmente, ao que parece, de um universo
de um lucrar 0 '_ e uma arvore, fôsse a significante; o absurdo e o crbratuito são aí colocados em seus
u entao com 0
apagar de todos os lu ares
b · · .
' ª d e meu espmto, o lugares, o lugar de signos ainda não elucidados que, para o
embaix"o; observem-no ~amú~h-~Ias s.ou como êsse transeunte, lá policial que revista o quarto do hotel, se transformarão pouco a
um carro E:l ' 'l m, paiece estar correndo atrás de iJouco em indícios. Ainda por cima, tudo é aí revelado, obi'etivado,
pássaro." · e e e e mesmo ' assim como a pena que vôa é um .t
quer sob a aparência de matéria palpável (os utensílios do "crime")
H, ou de vestígios teàricamente mais fugitivos. As palavras e as
ma - a também o falso sono d o sonl10, que nos dá uma a . frases, por exemplo, também se tornam objetos, cuja forma po-
' çao menos assustadora do estado ideal · , . proxi- derá dar lugar mais tarde às mesmas análises. Todos puderam
s1vel, em todo caso · - provisona e rever-
- e ao mesmo tempo · f experimentar - muitas vêzes mesmo sem atiibuir importância a
muitos de seus amigos surrealistas B mais e icaz. ?orno isso - a anormal nitidez com que surgem, nos sonhos mais anó-
seus_, sonhos;
. _ gosta da "so b erana
êle , so oul~q~et anota
idao do sonhcom ". cmdado " dinos, uma cadeira, um seixo, uma mão, a que d a d e um d etrito
angustia que o ªIJrisiona no · t t d 0 ' teme ª qualquer (que deixa essa impressão esquisita de que irá nova-
d 'l ins an e e acordar" " , .
e o aue nos penetra até 0 ''d d . ' angustia mo- mente se reproduzir tantas vêzes quanto quisermos, como se o
-'- me o oentio por todo 0
estamos perdendo" Ass· ''l . - espaco que fragmento isolado tivesse se eternizado no momento da queda)
AI . im, e e 1ocro atinge o IJO t d ,
e e mesmo seus sonhos; esforca-s /?
rnirn iil!l '1ao e por
_. n ° e suscitar ou, exatamente do mesmo modo, duas ou três palavras (pronun-
!ili J•
se ttlz liiiddflíário , A '1 enb:ar
b Çílheca. o ereta ;BBO ilillil . _J_
21auas por nas- 1-
ao soco .
a101s f!ue2nyJ ºHJR
. •
ur213A?P cor t'1nuou na
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11iélllé6§ Objélb§ emt21ss11 qas pd . 1 ]] j e edmirbd
nitidez ainda há pouco entrevista durànte um instante na reali-
dade é a nitidez dêsses objetos. . . Pelo menos deve ser. É para
obtê-la que êsses objetos pedem nosso auxílio.
"Não imite o real, colabore com êle. Ponha seus pensa-
mentos e seus dons de expressão ao serviço dos dias e dos fatos
que os distinguem, ponha-se a serviço da existência das coisas,
se você não fôr aquilo que lhes falta, v.ocê não é nada, você enri-
quecerá aquilo que existe com aquilo que, dentro de você, era
o pressentimento dessas coisas."
O sonho é apenas isso: o "pressentimento" daquilo que será
o mundo real quando nosso espírito tiver dado sua forma defi-
nitiva à matéria. Infelizmente, êsses fragmentos entrevistas não
bastam para convencer o homem da necessidade em que êle se
encontra de ser aquilo que falta às coisas, se bem que, por levian-
dade ou por falta de imaginação, na maioria das vêzes êle prefere
ignorar as revelações parciais de que é testemunha. Sua situação
no mundo aumenta ainda mais sua cegueira.
"A mediocridade do mundo reside na imperfeição de nossa
visão, na nossa incapacidade de atenção. Nossa visão dos fatos
continua vaga e nebulosa, idêntica à perspectiva" cavada dentro
da noite pelos faróis de um carro, e tão imperfeita que a imagi-
nação elo 111eteristia @lo o iti:oossortomspte jptwpretar e parafrasear
"Concordo, escreve êle q .nh os sinais percebidos. De noite, só se vê bem uma estrada ao nos
tório um home d" . , ue em seu cam1 o para o escri- afastarmos daquilo que dela vemos."
m iga a s1 mesmo que tinha sonhado com os passos
que estava dando naquele momento. Mais grave do que "a incapacidade de interpretar os sinais"
"M as eu, que não me movo é o estado de má vontade em que essa exigência nos encontra.
. d d
como poderia adotar seus modos mais acor. a o do q.ue dormindo, Se não podemos é sobretudo. porque não queremos. A imper-
dois estados?" ' meus amigos, de distinguir êsses feição dos fenômenos que constituem nosso universo nos choca,
mas nos persuadimos de que ela não nos diz respeito. Com a
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vinte anos poderia nos tornar tão emocionante e tão explícita
semelhante lição?
morrer." veem
do l~?mem, dêste homem que está "por vir". Breton.) Cad~ ~bjet?, cada ~co_:itecipiento, cad~ fo1ma e com
efeito seu propno simbolo: Na~ diga <itue ~nstem cruzes ~e
O homem-nebulosa deve ser tornado verdadeiro ... " madeira e o sinal da cruz. Havena um smal irreal e uma cmsa
Os fatos são dificilmente penetráveis. Não obstante pouco significada, que seria real. Um e outra são, ao mesmo tempo,
a l?OllCQ dmcobrünos nôhi 8 oalsSçu àt no.,sa vldâ. F mando da realidades e sirnos." , .. .
su,a,. Bousquet - cuja existência parecia ter sido rompida por uma O universo de Bousquet o nosso e um umverso de signos.
tragica sor~e - . escreve: "Na minha vida não se produz um só Ali tudo é signo; e não signo de alguma outra coisa, al~uma cois~
fato que nao seia um tr~~o de minha alma." E mais longe: "Sou de mais perfeito situada fora de nosso alcance, mas signo de s1
ao mesmo tempo o su1eito e a obra de minha vontade. . . O mesmo, dessa realidade que apenas pede para ser revelada.
homem. exist'e por ,sua ;<lesão aos acontecimentos, por sua maneira
de realizar, al.Taves ~eles,. o. acontecimentos que êle teria sido." Dispomos para tant? de uma arma singu~ar, que é o corpo
Quem melhor que esse fendo de guerra pregado à carna há da fala e da escrita, a lmguagem. Mesmo assim, a palavra arma
convém apenas pela metade para designar aquilo que nos· surge
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t.
ao mesmoA
por excelencia representaça~o
tempo(a como um meio de com
t d um fi m.. sendo. o signo
. ·
1·
sempre leva mais ou menos diretamente à' idéia de verdade abso- ,'\!
'i!
tém. "A. . Hnguagem
A experiência não da
e<tá
lingconUda na conscrencra,
., . ela a con- t Ili se 1tenha tomado• claro
que não • que essa operação ser> 1 1 mann~11
Depois de ter escrito a uma :i~~~:. ·e~~err~ tôdas a~ outras. . . [ na escala humana e só será importante par.a o homem, que êle
braços", não tenho mais d . ·f u e tomarei em meus ' não atingirá assim nenhuma essência das coisas, e que a criação
, 0 que seu antasma para pegar " t enfim, para a qual somos convidados, deverá ser sempre recome-
~011\eIstom:itioSe R&ela.
b em que a1em da lin
O 2
"
5
guagem ,,na~.
~ existe . ...
provàvel- ·!l•.
1
çada, por nós mesmos e depois por aquêles que virão depois
a1avra" a ala mamw so r&ZÓ".. vui u " e;
..
~v l.:VlU]J1éfa p ê f a 8 el '
!!t06
Com efeito, é então que a invenção do mundo pode ãsslllilfi
Hubamm füeªo a
a fôrça organiza ora cte nossa vld!i, d@ hb§W mands. il J 1
os sonhos". s
"Tenhamos a córagem de admif . . . , roem, por sua vez, deve :reinventar as coisas ao seu redor. Essas
fora dêle mesmo êle é a e u i~to. O homem so existe são as verdadeiras coisas, nítidas, duras ·é brilhantes, do mundo
para êle um ro 'resso m ~ nas o negativ~ ~a existência e seria real. Nãq nos remetem a nenhum outro mundo. Não são o
paradoxo par~ce ~er bem a1 can~e se se suprnmsse inteiramente. O signo de nada além delas mesmas. E o único contato que o
conquistada? Francament~ra~cr:di~eve nos~a existência ser ainda homem pode ter com elas é imaginá-las.
estado de queda, no exíli; tão di que srm. . Somos o ser ep;1
mortal ao qual pertence ~ntretant~ta~tesrie~/~da quant~ .º frio
atmosfera e dar coerência e l'd P g10 de punf1car a
. ' so 1 ez a uma massa de á
preend r. Quero recolher meu nad .
e
gua. om-
dade düma da luz e fo . a p~rn a sombra de uma reali- SAMUEL BECKETT
o rpr com mmhas mãos b.
apague meus vestígios." . um o 1eto que OU A PRESENÇA NO PALCO
" Um texto "cerrado e irredutív l" t- rf . \1953 e 1957)
ter sido tocado" um ob'et t- e ' Jº.Pe eito que parece não
vestígios. . . Não' reconh~ce~osªº P~ eito ~ue apagaria nossos
todo escritor? aqm ª mais alta ambição de
A condição do homem, diz Heidegger, é a de estar ali. Pro-
Ê sem dúvida por essa -const t fl - A vàvelmente é o teatro, mais do que qualquer outro modo de
literária (ou de t1m mod . an le re exao sobre a criação representação do real, que reproduz mais naturalmente essa si-
' o mais gera art' r )
Joe Bousquet continua a ser para , i- e is rc.a que a obra de tuação. O personagem do teatro está em cena, é essa sua primeira
dela, deve-se passar por cima d nys ao prec10sa. E, por causa qualidade: êle está ali.
podem ter de incômodo: que~ f:l~uà 0 ,9-ue Js,~as pái?,inas às vêzes O enconh·o de Samuel Beckett com essa exigência apresenta,
pauH !!l'lt!t , o t à f l
. . s rn por o o à : I
e que a e do ser no exílio"
! a piioii, m EllólJR~donal jpterêsSA' enfim ia-se ver o homem de
usar contra êle 0 freqüent u u i UAV J:'"°'·;c' U Ul guiá • lYfê§ilió sem Beckett, ía-se ver O Homem. Pois o romancista, por fôrça de se
1 quando a palavra imaginaç:o ~i:~r~gº.J.ue fa~ ~a palavra "alma", extenuar na sua procura, conseguia apenas reduzir cada vez mais,
! propósitos, não podemos re rim. VI a .co~vir;a m~lhor para seus a cada página que passava, nossas possibilidades de apreender êsse
f. pécie de misticismo (aliás Bere. ~r) nossabirr~açao diante dessa es- mesmo homem.
de Bousquet Mais ra d J que an a todo o pensamento Murphy, Molloy, Malone, Mahood, ,Worm, o her6i dos textos
"salvacão" ~te) ex1·gsteve AI o que um vocabulário suspeito ("alma"
t • ' ·, ne e essa tentat·
do universo através do espírito h
d -
iva Ae .re,c;uperaçao global
umano. ideia de totalidade
' de Beckett se degrada de livro para livro, e cada vez mais rá-
pido. Doente, mas ainda capaz de se deslocar em bicicleta, ràpi,
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r em
guarda: o homem ainda não é isso.
t
ca ça os sapa os, come m r
próp1ia êxistência, ter vindo a êste lugar.
Voltam Pozzo e Lticky: Lucky está mudo, Pozzo está cego
Mas, agor'a, estamos no teatro. Sobem as cortinas e não se lembra de nada. O mesmo jovem volta trazendo a
D" O cen~r/o não representa nada, ou quase nada. u~1~~ estrada? mesma mensagem: "O senhor Godot não virá hoje; virá amanhã."
_ig~mos,. Y uma man,eira mais geral: fora. O único detalh~ Não, a criança não conhece os dois vagabundos, nunca. os viu
p~ec1so digno de nota e constituído por uma árvore débil ";m em nenhum lugar.
aibustob apenas, e sem a menor fôlha; digamos: o e;quelet~ de Novamente é noite. Gago e Didi tentaram se enforcar - os
um ar usto. galhos da árvore talvez sejam bem sólidos -, mas infelizmente
Dois homens estão em cena sem idade sem ·of · - não têm corda. . . Decidem ir embora, para voltar no dia se-
"tu - f ·1· ' ' p1 issao sem guinte. Mas não se movem. Descem as coh·inas.
si açao . a~i iar. Tam~ouco sem domicílio; portanto: dois ~a a-
~undos. F1s1camente, tem a aparência de estarem · t t ug Isso se chama: "Esperando Godot". A encenação dura perto
tira os sa at t f 1 d m ac os. m
N- , p ~, o o~ ro a a os Evangelhos. Comem uma cenoura. de 3 horas.
ªº. tâm nada a ~1ze1: u_m para o outro. Dirigem-se mlituamente Só sob êste ponto de vista já existe· aí algo que surpreende:
servm o-se .e d01s dimrnutivos que parecem nã d" · durante essas três horas, a peça resiste, sern uma só lacuna quando
a nenhum nome "d tif" , 1 e' ogo e Didi.
I en icave :
o izer respeito
• na verdade ela é feita só de vazios, sem uma interrupção quando
O~lrnm p~ra a direita e para a esquerda, dão a impressão de . pareceria que ela nunca tem motivos para continuar ou acabar.
que
d vao par?r ~e que vão se deixar, e logo voltam um ao pé Do comêço ao fim os espectadores seguem o desenrolar da peça,
1o outro
, 1no • meio do palco . Al"' - po d em partir: esperam
ias, nao podem perder a cabeça às vêzes .mas ficam como que agarrados a
a gi:em c 1amado Godot, do qual tampouco se sabe coisa al uma êsses dois sêres, que não fazem nada, que não dizem quas.e nada,
a1n_ao ser que êle não virá; desde o comêço pelo menos iss~ est~ que não têm outra qualidade além da de estarem presentes.
c a10 pai:a to~o mundo. Desde o rimeiro es etáculo, a crítica uase unânime ressal-
D"d" d" ., A . um rapaz a as tava o carater pu ico o espe acu o. om e ei o, as pa avras
I 1 acre ita p te-lo visto na véspera) que lhes traz esta ' "teatro de laboratório" não convêm mais aqui: trata-se apenas de
sagem· "O h . G d - . , . men-
.· sen 01_ o ot nao vira ho1e, virá amanhã sem falt " teatro, que todo mundo. pode ver, do qual cada um tira seu pró-
~~pois, a luz baixa de intensidade, ràpidamente· é noite ~ · prio proveito.
;/,is va_gabundos decidem ir embora, para voltar n~ dia seg~intes É preciso dizer que ninguém faz juízos errôneos a respeito da
as nao se movem. As cortinas descem ·
peça? É claro que não. Em relação a Godot, todos fazem juízos
d Anteriormente, dois outros personagen~ tinham aparecido cri- errôneos a respeito de tudo, exatamente como cada um se engana
an o um pouco ·. de diversão: Pozzo ' de aspecto· prospero,
' ' que a respeito de sua próp1ia miséria. Explicações não faltam, expli-
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cações estas que nos são oferecidas de ambos os lados, da es- por situações picantes, prendê-lo nas engrenagens de uma intri~a,
querda e da direita, cada uina mais fútil ue a outra: ou então fazê-lo sair violentamente de si mesmo por uma 111-
empres a C:, e sua mgua materna, o inglês? Apesar de tudo rio ou o insmo poe ico. .
ror que nao? Godot - da mesma fonna, por que não? _ é ; Que nos propõe Esperando Godot? Dizer que não acontece
ideal ·terresh·eIhde uma ordem social melhor· N-a o esperamos sem- nada nessa peça é dizer pouco. O fato de não haver nem engre-
pre v1~er ~e or, come~ ~elhor, vestir melhor, da mesma forma nagens, nem intriga de espécie alguma já foi presenciado em
:orno esperamos a poss1b1hdade de não sermos mais batidos? E outros palcos. Neste caso se deveria escrever menos que nada:
este Pozzo, que recisamente não é Godot n- ' como se assistíssemos a uma de regressão para além do
78 79
H;e estende a mão, perde 0 equilíbrio e Não há mais um pois não têin. sentié\.o l1en\1\.1n1; a {mica coisa q_ue conta e a situa-
so personagem de pé. No só há
se remexe e eme no êsse monte que ção atual: as malas estão largadas, como sempre estiveram.
"Nós somos 110rnensl" roll ou em Jarry. Bec ett az me or: .. e e nos mos ra seu pen-
sador especializado, Lucky; sob a coaç~o de seu senhor ("Pense!
. Já se conhecia, o teatro de idéias. Era um ~adio exercício Seu porco!") êle começa: "Dada a exitêncía tal como ela jorra
mtelectual que tinha seu P.úblic_? (ainda que em~ algumas oca- dos recentes trabalhos públicos de Poinçon e de Wattmann de
siões êle tenha tratado as srt uaçoe~
- e a progressão dramática de um Deus pessoal quaquaquaqua de barba branca quaqua fora do
uma maneira tem o do es a o ue do alto de sua divina a atia sua divina
ivma a asia nos ama com poucas exceçoes n
ifab léfa 611&681 s~rvmdo de mÁscara a temadamente para as idéias ill@iílé @llGài, mm me o llià@é&. @sms JIE um dos Jel& csm
ou para a ausenc1a delas! padres: "Pensar não é o pior".
Aqui, não existe mal-entendido· em Godot - h' Nunca se insiste 9emaís a respeito da seriedade de seme-
mento · - , · nao a pensa- lhantes reflexões. Setenta séculos, e mais, de análise e de meta-·
f' , assim como nao ha linguagem bonita; um e outra só
igudram ndo' texto sob a forma de paródia, de avêsso uma vez mais física tendem, em lugar de nos tornar mais modestos, a nos dissi-
ou e ca aver. ' mular a fraqueza de nossos recursos quando se trata do essencial.
O discurso é êsse "crepúsculo" descrito por Pozzo· anunciadõ"' De fato, tudo se passa como se a real importância de uma
coi:no um trecho escolhido com grande refôrço de Úm adas de questão fôsse medida, exatamente, pela impossibilidade em que
f~~~anta e de estalos de; chicote, recheado de expressges esco- nos encontramos de lhe aplicar um pensamento honesto, a não
s . e d~ gestos dramaticos, mas paralelamente sabotado Jor ser para fazê-la retroceder.
rdep~ntiI~as :nterrupções, exclamações familiares grotescas bai~as É êste movimento - esta regressão tão perigosamente conta-
e mspuaçao: ' giosa - que marca tôda a obra de Beckett. Os dois companheiros,
Lucky e Pozzo, degradam-se assim de um ato para outro, tal
h " (...II (Sua vozl ' .torna-se cantante ·) Ha' mais· ou menos meia ·
d ora o d1a oAbre og1?, prosaico), (novamente lírico) depois de ter como Murphy, Molloy, Malone, etc. As cenouras se reduzem a
errama o so re nos desde (hesita o tom ba' ) d' d rabanetes. A canção cíclica sôbre o cão ladrão, cuja meada Didi
horas da h- ( t 1 ' ixa igamos ez acaba mesmo por perder. E isto acontece com todos os outros
man a <?, om se ,e Aeva) sem esmorecer torrentes de luz
ver~elha e branca , etc., ate este final em forma de rabo de eixe acessórios da peça.
cuspido P.ºr uma voz morna, depois de um sílêncio: "É ~ssi~ Mas quanto aos dois vagabundos, êles permanecem intactos,
que as coisas acontecem nesta puta desta terra (LonCJ'o ·1A · )" não mudados. Assim, estamos certos, desta vez, que não são
E e· ag ' · b s1enc10.
is ora o pensamento. Os dois vagabundos fizeram uma apenas simples marionetes cujo papel se limitaria a ocultar a au-
per~nt~. a Pozzo, m,as ninguém consegue se lembrar qual. Todos sência do protagonista. Não é êste Godot, que êles supostamente
os tres t:rnm o ch_apeu no mesmo instante, levam a mão à cabeca es eram, quem tem "de ser", mas sim êles, Didi e Gogo.
ela a AI , ". . pen e, OCJ'O ex- os apreen emos, ime ia amen e? ao o ar para e es,
m , e e encontrou: Por que êie não larga as malas?" b função maior da representação teatral: mostrar no que consiste
. Trata-se de Lucky. É de fato a pergunta que foi feita al uns o fato de estar ali. Pois era exatamente isso que ainda não tínha-
mmutos antes, mas nesse invervalo o criado já tinha largadog
bagagem;A tanto que Didi conv~nce todo mundo ao concluir:
~eJ que ele l~gou_ as malas, e ,~mpossível que tenhamos pergun-
"u:: mos visto num palco, ou em todo caso, que não tínhamos visto
com tanta nitidez, com tão poucas concessões e com tanta evi-
dência. O personagem de teatro, na maioria das vêzes, não faz
a o por 9.ue e e nao as largava. O que é a lógica personificada mais do que representar um papel, como o fazem à nossa volta
Nesse umverso. onde o tempo não corre, as palavras antes e de~ aquêles . que se furtam à sua própria existência. Na peça de
80 81
' · realiza ainda
que elas caem}, Ainda estão li continuam a esperar Com efeito, o papel do companheiro aca a: nao
i;lada de nôvo; e novamente apªesanod segundo ato, que não traz biscoitos, não há mais calmante, não há mais nada a ser dado
e es ao doente. Clov não pode fazer outra coisa além de ir embora.
. co n t'muam ·.em cena quand
' r e sua . part'di a ser anunciada,
ah ;manhã, depois de amanhã oe as ~ortinas se fecham. Estarão Faz isso. . . ou pelo menos decide fazê-lo mas, chapéu na cabeça
to ay, to-morrow and to mo assim por diante. . . from da e mala na mão, enquanto que Hamm o chama inutilmente e acre-
, . ' - rrow and t Y dita que êle está longe talvez, Clov continua ali, perto da porta
:ow. . sozmhos em cena d ' . ~ . o-morrow, and to-mor~
irremediàvelmente prese~te~ pe, muteis, sem passado nem futunr aberta, os olhos fixos em Hamm que esconde seu rosto debaixo
Mas eis que o pró rio. ho~ '
de ~ossos olhos, acaba ~or se d e~, daquele que está ali, diante
'
de um pano ensangüentado, enquanto descem as cortinas.
Assim, até nesta última imagem, tornamos a encontrar o tema
c.ortmas no comêço de uma egrn ar P?r sua vez. Sobem as essencial da presença: tudo aquilo que existe está aqui, fora do
fim de jôgo perdido", declar~º~: peça: Fim de jôgo, um "velho palco só há o nada, o· não-ser. Não basta que Clov, montado
Assim como seus redecesso mm,. º. protagonista. num escabelo a fim de alcançar as minúsculas aberturas que dão
tem a possibilidade Ee partir res, Difi e Gogo,tampouco Hamm para o pseudo mundo exterior, nos informe com uma só frase a
razão disso tornou-se a ora .l~ra a gum, outro lugar. Mas a respeito da "paisagem": um mar vazio e cinzento, de um lado, um
sado, sentado numa pol~o tiagica~ente foica: êle está parali- deserto do outro. Na realidade êste mar e êste des.erto, aliás invi-
sua vo lta h'a apenas altas pa
na dno me10 do palco, e esta, cego A' síveis para o espectador, são inabitáveis no sentido mais estrito do
es nuas. ' se~ nen h uma janela aces-
s'ive1. Clov, uma espécie dereenfer . têrmo: tanto quanto poderia ser um pano de fundo sôbre o qual
tente, ocupa-se do moribundo ~euo, ele também meio impo estivessem pintadas a água ou a areia. Donde êste diálogo: "Por
fuisa de passeio, arrastar a p~l~oen~º~ que pode: pode, apenas, ~ que você fica comigo? - Por que cuida de mim? - Não há
ninguém mais. - Não há outro lugat." Hamm, aliás, não deixa
ongo das paredes. e Hamm, em cuculos, ao
de ressaltar: "Fora daqui, é a morte~', "Longe daqui você estaria
Em relação aos dois va ab d morto" "Longe de mim, é a morte'', etc.
esta lfüer_?ade irrisório u 1fo un os, Hamm perdeu portanto
Da mesma forma, fociO êfül ptésmtc no to~o; ossim comp
1
escolhe nao partir. Qua~do eJe i;staca. iiffo é iiia±s êlê quem
tudo está presente no espaço. A êste aqui, inelutável, resr,onde um
eterno agora: "Ontem! Quer quer dizer isso: ontem?' Hamm
exclama diversas vêzes. E a conjunção entre o espaço e o tempo
oferece apenas, em relação a um terceiro personagem eventual,
esta certeza: "Se êle existe, virá aqui."
Sem passado, sem outro lugar, sem outro futuro a não ser a
morte, o universo assim definido está necessàriamente privado de
83
"Nunca estive aq_ul', à.iz 1:lamn1, e à.iante à.essa conhssão naà.a
mais importa, pois é. imp?ssível ouvi-la. a não ser em sua forma
A
E se, e1?ois e o O· e im e e )O ,
peça, será 1?rovàvelmente de nôvo O 1nomll.1.ável, terceiro painel
da trilogia de romances. Ramm )á nos deixa imaginar o tom dessa
peça, através do romance que êle gradativamente inventa, criando
peripécias fictícias e fazendo agir fantasmas de personagens. Uma
vez ue êle mesmo não está ali, não lhe resta outra coisa além
e con ar 11s onas par s1 , ,
}?irirrjt.#v1iztok" r;êiu:~:u ºnX:Pi;rnaAw ~~gs ;::: Sai:uel
UM ROMANCE
QUE INVENTA A SI MESMO
(1954)
86 87
NôVO ROMANCE,, HOMEM NôVO
11961.
"
'
fora de dúvi:lus
,
----
vida desde a metade do século XIX corno na verdade ela começou
'
esgotadas que lhes procuravam impor? As formas vivem e mor- existir um apêgo em se querer procurar nêles vestígios de elemen-
rem, em, todos setores da arte, e em tôdas as épocas tiveram de tos que desapareceram ·há vinte, trinta ou quarenta anos, de todos
s~r contmuamente ren.ov~das: a composição do romance do tipo os romances vivos, ou que pelo menos simplesmente se esboroa-
~ecul~ XIX, qt1e conshtuia a própiia vida há cem anos atrás, não ram: os pfüsonagens, a cronologia, os estudos sociológicos, etc.
e n;a~s do 9.üe uma fórmula vazia, boa apenas para servir a Em todo caso, o Nôvo Romance terá sempre o mérito de ter feito
parodias tedió~as. ..,.'"' com que um público bastante amplo (e que ainda aumenta)
Assim, ~onge de ditar regras, teorias, leis, nem para os outros tomasse consciência de urna evolução geral do gênero, enquanto
nem para nos mesmos, foi pelo contráiio na luta contra lei rígidas persistiam em negar essa mesma evolução, por .princípio rele-
d~mai~ que nos encontramos rr:utuamente. Havia, ainda há, espe- gando Kafka, Faulkner e todos os outros para duvidosas zonas
cial~ente na França, uma teona do romance implicitamente reco- marginais, quando êles são simplesmente os maiores 'romancistas
nhecida por todo i:mndo ou quase, e que era oposta como um do comêço dêste século.
rr:uro ~ todos os hvros que publicávamos. Diziam-nos: "Vocês E há uns vinte anos, sem dúvida, as coisas se aceleram, mas
nao criam personagens, portanto vocês não escrevem romances não apenas no setor da arte, todos estarão de acôrdo a respeito
verdadeiros'', "vocês não contam uma história, poitanto vocês não dêste ponto. Se o leitor às vêzes sente dificuldade em se loca-
escrevem romances verdadeiros", "vocês não estudam um caráter lizar no romance moderno, é da mesma maneira como às vêzes
n:m um meio, vocês não analisam as paixões, portanto você~ êle St; perde no próprio mundo' em que vive, quando tudo cede
nao escrevem romances verdadeiros" etc à sua volta, velhas construções e velhas normas.
~~s nós, _que somos acusados de se~ teóricos, nós - pelo
contrano - nao sabemos o que deve ser um romance um ro- O Nôvo Romance só se interessa pelo homem e pela sua si-
ma~ce verda~eiro! sabemos apenas que o romance de hoje será tuação no mundo
aquilo que dele fiz;ermos, e que não temos de cultivar sua seme-
lhança com aquilo que ontem existiu, mas, sim, ue temos de
tido tradicional da palavra, logo se conclui, um pouco depressa
demais, que nêles i1ão era possível enÇontrar homem algum. O
O Nôvo Romance não faz outra coisa além de prosseguir na pro- que significa que êsses livros eram mtl.ito mal lidos. O homem
cura de uma constante evolução do gênero do romance ali está presente em cada página, cada linha, cada palavra. Ainda
que nêles se encontrem muitos ol:;>jetos, e descritos com minúcias,
. ?. êrro está em acreditar que o "verdadeiro romance" se existe sempre e em primeiro lugar o ·olhar que os vê, o pensa-
nnobihzou de uma vez por tôdas, na época de Balzac, em regras mento que os revê, a paixão que os deforma. Os objetos de nossos
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romances não têm nunca presença fora das percepções humanas, se coloca em todo lugar ao mesmo tempo, que vê simultânea-
reais. ~u ima~nárias; são objetos comparáveis aos de nossa vida mente o avêsso e o direito das coisas, ue se ue ao mesmo tem o
se ornarmos a pa avra o jeto em seu sentido geral (Objeto, mesmo tempo o presente, o passado e o futuro de tôda aventura?
diz o dicionário: tudo que afeta os sentidos), é normal que só Só pode ser um Deus.
existam objetos em meus livros: também existem, em minha vida,
É só êsse Deus que pode pretender ser objetivo. Enquanto
os móveis do quarto, as palavras que ouço, a mulher de que gosto,
um gesto dessa mulher, etc. E, numa acepção· ainda maior (objeto, que em nossos livros, pelo contrário, é. um homem que vê, que
diz ainda o dicionário: tudo ue ocu a a mente aind er- sente? .que imagina, um ~o:11em situado no espaço e no tempo,
9.3
que reconhecem o mtmdo em que vivem, e seu próprio pensa- Para o escritor, o único compromisso possível é com a literatura
n1ento, os quais, em vez de .en aná-las a res eito de uma re~
caro. servir a uma causa política, mesmo um~· causa que nos pareça
justa, ainda que em nossa· vida política: militemos em favor de
seu triunfo. A vida política faz com que incessantemente supo-
O Nôvo Roman<;!e não propõe nenhuma significação feita a nhamos conhecidas certas significações: significações sociais, signi-
priori ficações históricas, significações morais. A arte é mais modesta -
illJ mais ambiciosa. para efa pada é cgnhecido antecipadamente.
? Antes da obra não há nada, nenhuma certeza, nenhuma tese,
3 ]o â l 'f L
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O melhor método possível é ainda o de exh·apolar, e é exata-
TEMPO E DESCRIÇÃO mente isso que a crítica se esforça vivamente por ~az~~· Basean-
A afttca t ama cct3& dlfíeil, 11mn eens senado btm ums qae
a ªrte· Enmwptg °! o rnmapçjsta . nm ewmplq POd@ rnpfiar tores, ainda que naturalmente nao sepm mais i umma os, tragam
§d& eonmsmç&o tcona parn csea pcsqztsa.
Diversas vêzes foi observado, e com justa razão, o grande
lugar ocupado pelas descrição naquilo que se convei;ici~nou. cha-
mar de Nôvo Romance, em particular nos meus propnos livros.
Ainda que essas descnções - objetos imóveis ou fragmentos de
cenas - tenham em geral atuado sôbre os leitores de maneira
satisfatória, o juízo que muitos especialistas fazem sôbre elas con-
tinua a ser bem pejorativo; são tidas por inúteis e confusas;
inúteis porque sem relaçãn real com a ação, confusas porque não
cumprem aquilo que, supostamente, deveria ser seu papel funda-
mental: fazer ver.
Já se disse mesmo, refeiindo-se ' às supostas intenções dos
autores, que êsses romances contemporâneos eram apenas filmes
abortados e que a câmera deveria substituir o estilo faltoso. Por
um lado, a imagem cinematográfica mostraria desde logo, em
alguns segundos de projeção, aquilo que a literatura }º?tilmente
se esforça por representar ao longo de dezenas de pagmas. Por
outro lado, os detalhes supérfluos seriam forçosamente postos em
seus devidos lugares, o pepino no assoalho não corrreria mais o
risco de invadir todo o cenário em que a ação se desenrola.
E tudo isso seria verdade se assim não se estivesse correndo
0 risco de desconhecer justamente aquilo que pode constituir o
· · - . ho · realizadas no romance. Uma vez
obrigado a julgar as obras contemporâneas servindo-se de cri- mais, parece que é bem em re erência ao passa o que se es a
té1ios que, na melhor das hipóteses, nfo lhe dizem respeito. O julgando (e condenando) as pesquisas atuais. . _ _ ,
que faz com que o artista tenha razão em ficar descontente com Antes de mais nada, reconheçamos que a descnçao nao e
a crítica, mas que esteja errado ao acreditar que haja, por parte uma invenção moderna. O grande romance francês do século
desta, maldade ou cretinice. Uma vez que êle está naquele mo- XIX, particularmente, com Balzac à frente, regorgita de casas,
mento criando um nôvo mundo, e novas medidas, deve admitir mobílias roupas longamente, minuciosamente desqritas, sem con-
que é difícil, senão mesmo impossível, êle mesmo medir êsse tar os r~stos, os corpos, etc. É certo que essas descrições têm por ·
mundo e estabelecer um justo balanço de seus méritos e erros. finalidade fazer com que as coisas sejam vistas, e que conseguem
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isso. Na maioria das vêzes trata-se então de plantar um cenário, existente; agora, ela afirma sua função ·criadora. Enfim, ela fazia
.·de definir o enquàdra~ento da a~ão, de ap~esentar a aparência com que as coisas fôssem vistas, e agorà parece destruí-las, como
A '
ro~ancista parecia es!ar apenas reproduzindo, copiando, trans- do desenho 1se acumulam,se sobrecarregam, se negam, se deso-
mitmdo, como se estivessemas lidando com uma crônica com uma cam, se bem que a imagem seja posta em dúvida à medida. e;n
biografia, com um documento qualquer. ' que é construída. Alguns par~graf~s ainda e, qu~ndo a ~escnçao
~sse ~mndo ?o romance vivia. a mesma vida levada por seu acaba, percebe-se que ela nao deixou nada atras de si: ela se
modelo: nele podia-se mesmo segmr o desenrolar dos anos. Não completa num duplo movimento de e.dação e ~es1:1'rição, que ~
apell:as ?e um capítulo pa;~ o outro, mas freqüentementei desde ,,"" aliás encontrado em todo o livro em todos os mve1s e em parti-
o pri;n~iro encontro, era facil reconhecer no mais modesto objeto cular em sua estrutura global - e é daí que provém a decepção
domestico, no menor traço do rosto, a pátina trazida pelo uso, inerente às obras atuais.
o gasto p~ovocado pelo tempo. A preocupaç~o co:n a precisã.o, que às "v~ze.s ~stá pró~a do
Dessa forma, êsse cenário já era a imagem do homem: cada delírio (essas noçoes tao pouco visuais de drreita e de esquer-
uma das paredes ou dos móveis da casa representava um alter da", essas contagens, essas medições, êsses pontos de refe-
ego do. personag~m que m~rava nela - rico ou pobre, austero rência geométricos) não conseguem impedir o mundo de ser
ou glonoso - e amda por cima estava submetido ao mesmo des- algo móvel até em seus ~spec~?s os mais .ma~eriais, e mesm.o
t'i~o~ .à meism~ fatalidade. o. leitor apressado e;m conhecer a no seio de sua aparente imobilidade. Aqm nao se trata mais
1
histona podena mesmo acreditar-se autorizado a pular as des- do tempo que corre, uma vez que paradoxalmente os . gestos, ~ó
cnç~es: _tr~ta;a-se, apenas de uma moldura, que aliás tinha um são dados como fixados naquele momE;nto. É a própna matena
sentido identico ao do quadro que ela ia conter. que é ao mesmo tempo sólida e instável, ao mesmo tempo pre-
Eviden~emente, quan~o êsse mesmo leitor pula as deiscrições, sente e sonhada, estranha ao homem e· incessantemente inventan-
em nossos livros, corre o nsco de se encontrar, tendo virado tôdas do-se a si mesma na mentei do homem. Todo o interêsse das
1
as pá9inas uma após . out~:a ràpidamente~ ao fim do volume cujo páginas descritivas - isto é, o lugar do homem nessas páginas
c.onteudo lhe escapou mteiramente; acreditando que até ali estivera - não está mais na coisa descrita, mas' no próprio movimento da
lidando apenas com a moldura, continuará a rocurar o uadro. descrição.
nçao mu aram m euamen e. e
Enquanto que as preocupações de ordem descritiva invadiam todo tende para a fotografia ou para a imagem cinematográfica.
o romance, ao mesmo tempo perdiam seu sentido tradicional. imagem, tomada isoladamente, só pode fazer ver, a exemplo .
P;ara elas, não se trata mais de definições preliminares. A descri- descrição de Balzac, e assim, pelo contrário, poderia parecer feita
~º servia para situar as linhas gerais de um cenário depois para para substituir esta última, coisa de qlfe, aliás, o cinema natura·
esclarecer alguns elementos particularmente reveladores· só fala lista não se priva.
agora d.e ~bj~t?s insignificantes~ ou daqueles que ela se 'dedica a A atração indubitável que a criação cinematográfica exerce
tornar msigmficantes. Pretendia reproduzir uma realidade pre- sôbre muitos dos novos romancistas peve ser procurada noutro
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lugar. N~o. ~ a objetividade da câmera que os apaixona, mas sim
s~as possibilidades no domínio do subjetivo, do imaginário. :E:Ies
. m o que mais c ama sua atenção e, natura mente, ro ava o i me, nem m .
o que mais escapava aos poderes de literatura: isto é, não tanto espectadores ávidos de "realismo'' é .que aqui não se t~t~ mais
a imagem quanto a trilha sonora - o. som das vozes os ruídos fazer com que creiam nalguma c01sa - eu q~ase dma. pelo
os sons l.ocais, ~s músicas - e sobretudo a possibilid~de de agi; contrário. . . O verdadeiro, o falso e o fazer acreditar tomaram-se
sôbre dois sentí?os ao mesmo tempo, a visão e a audição; final- mais ou me.nos 0 assunto de tôda obra moderna; esta, em lugar
mente, tanto na imagem como no som, a ossibilidade de a resentar de ser um pretenso pedaço da realidade, desenvolve-~e enquanto
· r . : , a gs prnscnes. m rnpmrn;
da montagem, as r.epeti9?es de cenas, as contradições, os perso- assim tratada (quanto aos atores, ao cenário, à m?ntagem, nas
n~gens de repente imobih~ados ;orno em fotografias de amadores, suas relações com o som, etc.) impede que se a~r~dit.e ao r_nesm<;>
d~o a esta presença perpetua toda sua força, tôda sua violência. tempo naquilo que ela afirma, tal como a descnçao rmped1a que
Nao se trata I?ª!s, po~tanto, da ;iatureza das imagens, mas sim se visse aquilo que ela mostrava. . . .
de sua. compos1çao, e. ~ apenas a1 que o romancista pode encon- É êsse mesmo movin1ento paradoxal (construn destrumdo)
trar, .ainda que modificadas, alguns de suas preocupações com .~"' que é encontrado no tratamento do tempo. O fime ~ o romance
o estilo. · inicialmente se apresentam sob a forma, de desenvolv~mentos tem-
Essas novas estruturas fílmicas, êsse movimento das imagens porais _ contràriamente, por exemplo, as obra~ plásticas, quadros
e dos .so!ls revelam-se diretamente sensíveis ao espectador des- ou ·esculturas. O filme, a exemplo da obra musical, te:? seu t~mpo
pre:erudo; parece mesmo que, para muitos, o poder destas é muito marcado de maneira definitiva (enquanto que a duraçao da le~tur~
mais ~orte qu~ .º da li~e~atura. Mas ao mesmo tempo suscitam, pode variar ao infinito, de uma página para outra e de um. md1-
no se10 da cntíca trad1c10nal, reações de defesa ainda maiores. víduo para outro). Em compensação, como disse~o~, º. cmema
Pud~ ter a experiência pessoal disso quando saiu meu se- conhece apenas um tempo verbal: o presente do mdicatívo. Em
gundo filme (A Im?rtal). Bem entendido, não há por que se todo caso, atualmente o filme e o romance se ~ncontram na con~
surpreend~r com os Julgam~ntos desfavoráveis que sôbre êle fize- trução de instantes, de intervalos e de suc~s~oes que nada mais
ram a ma10r parte dos cromstas; mas pode ser interessante obser- têm a ver com os do relógio ou do calendano. Tentemos tomar
var al~u1?as de s.uas cen_sura~, muitas vêzes mais reveladoras que um pouco mais nítido o papel que desempenham.
seus e og1os. A~s1m, ª9:m estao os.Pontos sôbre os quais incidiram Já se repetiu muito, nestes últimos anos, que o tempo era
os ;ta9-ues n;;a1s fre9-uent~s e violentos: em primeiro lugar, a
0 principal "personagem" do romance contemporâneo. Desde
au~encia . d.e. naturahdad~ .na ~epresentação dos atôres, depois Proust desde Faulkner, o. retômo ao passado, as rup1'.1-ras na
a im:çioss1b1hd~de de se d1stmgmr claramente aquilo que é "real" cronol~gia parece1?" com efeito con.stitui.r a base da própna or~a-
da uilo ue e mental embran a ou fantasma · ·
a en encia que em os e ementas e orte carga emocional de
se transformarem em "cartões postais" (turísticos para a cidade evidentemente, com~ cinema: tôda ~bra cinematográfíc~ moderna
de Istambul, eróticos para a heroína, etc.). seria uma meditação sôbre a memoria humana, suas mcertezas,
Percebe-se que no fundo essas três censuras são apenas sua obstinação, seus dramas, etc.
uma: a estrutura do filme não permite muita confiança na ver- Tudo isso foi dito um pouco depressa demais. Ou antes, se
dade objetiva _das coisas. Em relação a ês,sei ponto, impõem-se 0 tempo que passa é de fato o personagem essencia~ de muitas
duas observaçoes. Por um lado, Istambul e uma cidade verda- obras do comêco do século e daquelas que as segmram, como
deira, e é bem ela que se vê do comêço ao fim da projeção; aliás jcft. era das ,obras do século passado, as pesquisas atuais, pelo
100 101
elevem estar acontecendo na cabeça de alguém. Mas de q_uem?
Fl
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l L. 1re
r1'tirmumrtrnJ 1115515pli J'·bIli c9eca_ dosi dois
~ 11
senti o fo1 sempre falseado pela grande crítica. assim como o único tempo que importa ·.é o do filme, o único
O ano passado em Marienbald, por causa de seu título or "personagem" importante é o espectador; é em sua cabeça que se
ca?s.a .t~mbem das ·obras que Alain Resnais tinha antes reali~a~o desenvolve tôda a história, que é exatamente imaginada por êle.
f~1 . 1111c18;_lmente interpreta~o como uma dessas variações psico~ Mais uma vez, a obra não é um testemunho sôbre uma rea-
1og1cas sobre o amor perdido, o esquecimento a lembrança As lidade exterior, mas ela é sua própria realidade. Assim, é impos-
ri;;ie5g;pp*o Q lill lO !!I !l .
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~ '• ' .e~ .:.1. ' •
~c1eas 111a1s tãthliitlllé éiãlli. ꧧé liófilém e
BÍ rol !'ª'ª o gutor tronçpüHzar êstg ou aquêle espectador ins+uietg
----
l5
essa mulher se encontraram
as co~sas claramente: essas perguntas não têm sentido al- Da mesma arma, era a sur o acr l ar que no rvu•~··""
gum. o, u~1verso no qual se desenrola todo o filme é, de maneira Jalousie, publicado dois anos antes, existia uma ordem dos aconte-
caractenstica, o de um presente eterno que toma impossível qual- cimentos, clara e unívoca, e que não era a das frases do livro,
qu~r recurso a mell1;Ória. É um mundo sem passado que se basta como se eu tivesse me divertido em embaralhar um calendário
a s1 mesmo a cada mstante e que se apaga gradativamente. f:sse preestabelecido, assim como se embaralham as cartas de jogar.
homem e essa 1?ul~er apenas começam a existir quando aparecem Pelo contrário, a narrativa estava construída de tal maneira que
n~ tela pela pnmeira vez ;antes, não eram nada· e uma vez ter- , _... tôda tentativa de reconstituição de uma cronologia exterior levava
m;nada a projeção, não são mais nada novame~te'. A existência mais cedo ou mais tarde a uma sé1ie de contradições, portanto
deles dur~ apenas o que dura o filme. Não pode haver realidade a um impasse. E isso não com a finalidade estúpida de desnortear
fora da~ imagens q'!e são vistas, das palavras que se ouvem. a Academia, mas sim porque exatamente não havia para mim
Assrm, a duraçao da obra moderna não é de modo nenhum nenhuma ordem possível além daquela do livro. li:ste não era
~m r,?sumo, ui:ia condensação de uma duração mais ampla e mais uma narração misturada a uma simples anedota que lhe era exte-
r?~l que sena a da anedota, da história contada. Há, pelo con- rior, mas, ainda aqui, o próprio desenrolar de uma história que
tra:10, absolu~a identidade entre as duas durações. Tôda a his- não tinha outra realidade além daquela da narrativa, de!:.enrolar
tó;ia ·?e Manenbad não se passa nem em dois anos, nem em que não se realizava em nenhum outro lugar a não ser na cabeça
t:es dias,. mas exat~mente, .em uma hora e meia. E quando no do narrador invisível, isto é, do escritor e do leitor.
~1m do filme os d01s her~1~ se encontram para partirem juntos, Como é que essa concepção atual da obra poderia permitir
e c?m~ se a mulher admitisse que de fato houve alguma coisa que o tempo fôsse o personagem principal do livro, ou do filme?
enhe eles no ano passado em Marienbad, mas compreendemos Não seria antes ao romance tradicional, ao romance balzaqueano
que durante tô~a a projeção ~ratava-se exatamente do ano pas- por exemplo, que essa definição se aplicaria melhor? Ali o tempo
sado, e que estavamas em Manenbad. Essa história de amor que desempenhava um papel, e o primeiro dêles: êle realizava o ho-
nos era contada como uma coisa passada estava de fato se desen- mem, era o agente e a medida de seu . destino. Quer se trate
rofond0 diante à:o MUU a 011100,
11
ª'!M' o agu1a. :.;;,
ruis, ' -*
cviacntcn1Bi±Lé tilo ?Mil? OSQºPÇÕP OJJ de uma queda ê~e rgaljzaya J]ID deyenir,
ao mesmo tempo penhor do triunfo de uma sociedade à conquista
do mundo, e fatalidade de uma natureza: a condição mortal
do homem. As paixões, assim como os acontecimentos, só podiam
ser encarados num desenvolvimento temporal: nascimento, cres-
cimento, paroxismo, declínio e queda.
Enquanto que, no romance moderno, seria possível dizer que
o tempo se acha separado de sua temporalidade. Não corre mais.
102 i03
Não nada. DO REALISMO À REALIDADE
(1955 e 1963)
con ança nas coisas escritas, esses erois sem naturalidade bem ban eira so a qua
como sem identidade, êsse presente que se inventa incessante- totalidade - dos romancistas de hoje. E sem dúvida, a respeito
mente, bem como o fio da meada do estilo, que se repete, se dêste ponto, deve-se confiar em todos êles. É o mundo re~l que
desdobra, se modifica, se desmente, sem nunca se acumular a fim os interessa; todos se esforçam muito por criar o "reaf'. ·
de constituir um passado - portanto uma "história" no sentido Mas, se se reúnem debaixo dessa bandeira, não é para travar
tradicional - tudo isso só pode convidar o leitor (ou o espectador) um combate comum; é para se pegarem mutuamente. O rea-
a um outro modo de participação que não aquêle ao qual estava ..,.- lismo é a ideologia que todos brandem contra seu vizinho, a quali-
habituado. Se êie é por vêzes levado a condenar as obras de dade que todos acreditam possuir só para si. Sempre foi assim:
sua época, isto ,é, aquelas que .mais diretamente se dirigem a é em nome do realismo que cada nova escola literária quis abater
êle mesm0, se êle se queixa mesmo por ser deliberadamente aban- a que a precedia; era a palavra de ordem dos românticos contra
donado, mantido de lado, desdenhado pelos autores, é unicamente os clássicos, depois a dos naturalistas contra os românticos; e os
porque se obstina em procurar um gênero de comunicação que próprios surrealistas afirmavam só se preocupar com o mundo real.
há muito tempo não é mais aquêle que lhe propõem. Assim, o realismo parece :estar tão distribuído enh·e os escritores
Pois, longe de negligenciá-lo, o autor de hoje proclama a quanto o "bom sensó' segundo Descartes.
absoluta necessidade que tem de seu concurso, um concurso ativo, E, ainda aqui, temos de concluir que todos têm razão. Se
consciente, criador. Aquilo que o autor lhe pede não· é mais não se entendem é porque cada um tem idéias diferentes sôbre
que êle receba um mundo acabado, pleno, fechado sôbre si a realidade. Os clássicos pensavam que a realidade era clássica,
mesmo; pede, pelo contrário, que participe numa criação, que os românticos, que ela era romântica, os surrealistas, que era
por sua vez invente a obra - e o mundo - e aprenda assim a supra-real, Claudel pensava que ela era de natureza divina, Ca-
inventar sua própria vida. mus pensava que era absurda, os "engagés" pensam que ela é
acima de tudo econômica e que se dirige para o socialismo. Todos
falam do mundo tal como o vêem, mas ninguém o vê do mesmo
104 105
as fórmulas mortas e que é a base de novas formas, capazes de uma foice. Atendo-nos a essa imagem da ferramenta, ninguém
substituírem as ·primeiras e continuar a corrida. A descoberta da considerará um debulhadoT a óleo diesel como sendo um aper~
~-füüida~só cq_nt~~~rá ~.
ª· ara f.:. illilifltliiiili.Í~,JioirlwM·ª•··si.'*'i································•'ll.lii•li
•...
mente descobeTto (e, neste caso, a coisa mais sábia a fazer seria
parar de escrever), a única coisa que se pode fazer é ir mais
com a do trigo:
Mas há algo mais grave. Como já tivemos ocasião de afirmar
adiante. Não se trata de "fazer melhor", mas sim de avançar em no decorrer desta obra, o romance não é de modo algum uma
caminhos ain~a desconhecidos, onde um nôvo estilo se toma ne- fenarnenta. Não é concebido tendo-se em vista um trabalho ante-
cessário.
eipadamente definido. Não serve traduzir
..ser a mesma" coisa que perguntar pür -que vivei·, uma vez que se
deve morrer e deixar lu ar ara r . ' · .L '
i. no o v o as 0 a v e o ,
de fazer uma curta viagem à costa bretã. No caminho eu me
dizia: aqui está uma boa ocasião i;,ara observar as coisas "ao
vivo" e de "refrescar minha memória'. . . Mas, desde o primeiro
pássaro do mar avistado, compreendi meu êrro: por um lado, as
importância, ?esta perspe~tiva, dos romances de Raym~nd Que·-
~'''"''"'''' "
!
se tinham transfonnado, como que tomando-se ao".' mesmo tempo aquêles que lhe surgiram como que separados de seu significado
mais reais, porque agora eram imaginárias. ' · - portanto separados de sua verossimilhança - desde a pedra
Algumas vêzes também, aborreciao pelas objeções do gênern: abandonada sem que se saiba por que no meio de uma rua, até
"As coisas não acontecem assim na vida", "Não existe um hotel o gesto estranho de um transeunte, gesto i~acaba~o, de~ajeitado,
como aquêle de Mai-ienbad", "Um marido ciumento não se com- que não parece responder a nenhuma funçao ou mtençao d~ter
po1ta como aquêle de Jalousie", "As aventuras turcas de se'!,._ minada. Objetos parciais ou separados de seu uso, instantes nno-
francês, em L'Immortelle, são inverossímeis", "Seu soldado per~ bilizados, palavras separadas de seu contexto ou então conv~rsas
<lido Dans le Labyrinthe não carrega suas insígnias militares no misturadas, tudo aquilo que soa um pouco falso, tudo aqmlo a
lugar· correto", etc., eu mesmo tento situar meus argumentos num que falta naturalidade, é exatamente isso que oferece ao ouvido
plano realista e falo da existência subjetiva dêsse hotel, ou da do romancista o som mais adequado possível.
verdade psicológica direta (portanto não confonne à ·análise) dêsse Trata-se aí daquilo que se chama de absurdo? Certamente
marido inquieto, fascinado pelo comportamento suspeito (ou de- que não. Pois um elemento inteiramente raci,o~al e com~r:i í1:11-
masiadamente natural) de sua mulher. E sem dúvida espero que põe-se repentinamente com a mesma caractenstica de evidencia,
meus romances e filmes sejam defensáveís também a partir dêsse de presença sem motivo, de necessidade sem razão. Isso é, e é
ponto de vista. Mas sei muito bem que minha intenção está tudo. Mas há um risco para o escritor: com a suspeita de absur-
noutro lugar. Eu não transcrevo, eu construo. Essa já era a velha do, volta à tona o perigo metafísico O non-sense, ~ a-causalidade,
ambição de Flaubert: construir alguma coisa a partir do nada, que o vazio atrai in-esistlvelmente as redomas de marfim e as supra.-
fica de pé sem ter de se apoiar seja no que f6r do mundo exterior naturezas.
à obra; isso constitui hoje a ambição de todo o romance. A desventura de Kafka neste setor é exemplar. Esse· autor
Pode-se aquilatar a que ponto o "verossímil" e o ."conforme realista (na nova acepção que tentamos definir: criador de um
ao tipo" estão ainda longe de poder servir de c1itérios. Tudo mundo material, de presença visionária) também foi aquêle mais
acontece como se o falso -:-- isto é, ao mesmo tem o o ossível, o e ado em sentidos - sentidos " rofundos" - or seus admira·
imposs1ve , a ipo ese, a men U"a, e c. - se IVesse or a o um dores e exegetas. Bem r pi amente e e se tomou, aos o os o
dos temas privilegiados da ficção moderna; uma nova espécie público e antes de mais nada, o homem que parecia nos falar
de narrador nasceu aí: não é mais apenas um homem que des- das coisas dêste mundo com o único objetivo de nos fazer entrever
creve as coisas que vê, mas sim, e ao mesmo tempo, aquêle que a existência problemática de um além. Assim, êle nos descreve
inventa as coisas ao seu redor e que vê as coisas que inventa. A as atribulações de seu (falso) agrimensor obstinado entre os habi-
partir do instante em que êsses heróis-narradores começam a se tantes da aldeia; mas seu romance não teria outro interêsse além
assemelhar, ainda que pouco, a "personagens", logo se transfor- do de nos fazer sonhar com a vida próxima e distante de um
mam em mentirosos, esquizofrênicos Oll alucinados (ou mesmo es- misterioso castelo. Quando nos mostra os escritórios, as escadas e
l.08 109
os corredores onde Joseph K. procura justiça, seria apenas para Sobra portanto esta significacão imediata das coisas (des-
nos envolver na noção teológica de "graça". E o mais se critiva, p~rcial, sem' re contestada), ,isto é, a que se coloca aquém
Os textos de Kafka se1iam assim simples alegorias. Não ape- funda (transcendente) se situa a em. E so re e a que inc1 ira ora-
nas exigiriam uma explicação (que os resumiria de um modo per- vante o esfôrço de pesquisa e de c1iação. Com efeito, não h.á
feito, a ponto de esgotar-lhes todo o sentido), como êsse signi- como desembaraçar-se dela, sob pena de ver a anedota assumir
ficado teria ainda como efeito o de destruir radicalmente o uni- o plano principal, e logo mesmo a transcendência (a metafísica
verso tangível que contitui sua trama. A literatura, aliás, consis- gosta do vazio e mergulha nêle tal como a fumaça numa cha-
tiria sem re e de uma maneira sistemátic em fal miné · ois a uém da si ifica ão imediata, encontra-se o absur-
coi~a. H~ver~a l,lm mundo presente e um mundo real; só o pri-
Ora, pelo contrário, aquilo de que uma leitui·a não prevenida lavras.
nOs convence é a realidade absoluta das coisas descritas por Kafka. Mas os diferentes níveis de signi~icação da linguagem que
O mundo visível,. de seus romances é, para êle, exatamente o mun- acabamos de assinalar mantêm, entre ~i, múltiplas interferências.
do real, e o que está por trás dêle (se houver alguma coisa) Ê prováve~ que o· n?vo realismo "!Aá qestruir algm:~1as dessas . op~o
parece sem nenhum valor, face à evidência dos objetos, gestos, sições teóricas. A vida atual, a cienciq. atu~l realiza a s_upei~çao
1 palavras, etc. O efeito alucinatório provém de sua extraordinária-.."" de muitas antinomias categóricas estabelecidas pelo racionalismo
! dos sé.culos passados. É normal que ó romance, que come: tôda
nitidez, e não de incertas flutuações e neblinas. Definitivamente,
1 arte pretende adiantar-se aos sisl;emas do pensamento e nao se-
nada é mais fantástico do que a exatidão. Talvez as escadas de
1 Kafka dêem nalgum outro lugar, mas estão ali, e nós as vemos; gui-los, já esteja fundindo· num ~ó. os dois ~ê1:n?s de o;ür?~ pa:es
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1969
112
POR UM NôVO ROMANCE j
Alain Robbe-Gri11et 1
o ma10r e"l?o.ei1te
cse· eonvenclonon · fràõallio, conthiua
resultado
java escrever."
Apesar dos têrmos dessa declaração inicial, aquilo que Robbe-Grillet nos pro-
'porciona aqui é um estudo profundo e bem claro dos problemas da literatura
contemporânea, da literatura da era da reificação. Rebatendo as acusações de "for-
malista", "ilegível" e "descompromissado", o autor esclarece aqui as novas relações
que se instituíram entre os homens e os objetos e como o romance dessa nova
época apreende a nialidade que nos envolve. Declarando não ser um escritor
reificante ou alienante, Robbe-Grillet mostra as ·razões do lugar ocupado pela
descrição nos romances modernos e a nova posição assumida pelas coisas, pelos
objetos, em relação ao homem.
Explicando por que o Nôvo Romance é uma Utemtm·a do olhai", o autor ataca
especificamente as teorias do realismo socialista, por êle qualificado de acadêmico,
reh·ógrado e mesmo prejudicial aos interêsses do homem. Explicitando as relações
entre a literatUl'a e a política, Robbe-Grillet esboça o papel da literatlli'a do mundo
moderno, e isto através dos textos teóricos e das análises de obras de Sartre,
Beckett, !talo Svevo e outros.
O resultado de seu h·abalho constitui, sem dúvida, a mais importante obra
sôbre a teoria da literatUl'a moderna publicada nos últimos anos.
Nova Crítica