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Tratado dos dons do Espirito Santo Questo 68: Dos dons. Em seguida devemos tratar dos dons. E sobre esta questao oito artigos se discutem. Art. 1 — Se os dons se distinguem das virtudes. (Ill Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 1; In Isaiam, cap. XI; Ad Galat,, cap. V lect. VI. 0 primeiro discute-se assim. — Parece que os dons nao se distinguem das virtudes. 1, —Pois, Gregério, expondo aquilo de J6 (16 1, 2) —E nasceram-the sete filhos e trés filhas — diz: Nascem-se sete filhos quando pela concepgao do bom pensamento surgem em nés as sete virtudes do Espirito Santo. E cita aquilo da Escritura (Is 11, 2): E descansaré sobre ele o espirito de entendimento, etc,, onde se enumeram os sete dons do Espirito Santo. Logo, estes sete dons so virtudes. 2. Demais. — Agostinho, expondo aquilo da Escritura (Mt 12, 45) — Ento vai, e ajunta a si outros sete espiritos etc. — diz: Sete vicios sdo contrarios &s sete virtudes do Espirito Santo, i. 6, aos sete dons, Ora, esses sete vicios so contrérios as virtudes consideradas em sentido geral. Logo, os dons ndo se distinguem das virtudes consideradas nesse sentido 3. Demais. — Sujeitos a que convém a mesma defini¢ao séo idénticos. Ora, a definico da virtude convém aos dons; pois, 0 dom é uma boa qualidade da mente, pela qual vivemos retamente, ete. Semelhantemente, a definigo do dom convém as virtudes infusas; pois, 0 dom & uma doacdo irretribuivel, segundo 0 Filésofo. Logo, as virtudes no se distinguem dos dons. 4, Demais. — Alguns dos chamados dons so virtudes. Pois, como jé se disse, a sabedoria, 0 intelecto ea ciéncia so virtudes intelectuais; 0 conselho pertence & prudéncia; a piedade & uma espécie de justica; e por fim, a coragem é uma virtude moral. Logo, as virtudes ndo se distinguem dos dons. Mas, em contrério, Gregério distingue os sete dons, designados, virtudes teologais, representadas pelas trés filhas do mesmo. E noutro lugar, distingue os mesmos sete dons, das quatro virtudes cardeais., representadas, diz, pelos quatro angulos da casa. iz, pelos sete filhos de Jé, das trés SOLUGAO. — Se considerarmos o dom e a virtude, quanto as suas noses, nenhuma oposiglo ha entre esta e aquele. Pois, a virtude, por esséncia, é assim chamada por conferir ao homem a perfeigdo de agir retamente, como ja dissemos; a0 passo que o dom essencialmente é relativo 4 causa de onde procede. Ora, nada impede, que o precedente, como dom, de uma certa causa, confira a quem o recebe a perfeicdo de agir retamente; sobretudo que, como jé dissemos, certas virtudes so infundidas em nés or Deus. Por onde, a esta luz, o dom nio pode ser distinto da virtude. E por isso certos ensinaram nao devem os dons ser distintos das virtudes. — Mas nem por isso deixa de Ihes ser menor a dificuldade, quando se trata de dar a razdo de se considerarem certas virtudes, e no todas, como dons; e de certos dons ndo se contarem evidentemente entre as virtudes, como, p. ex., 0 temor. E dai o dizerem outros que os dons se devem distinguir das virtudes, mas sem darem suficiente causa de distingdo, de tal modo comum as virtudes que de nenhum modo conviesse aos dons, e vice-versa. E ento outros, considerando que, dentre os sete dons, quatro — a sabedoria, a ciéncia, 0 intelecto e 0 conselho —pertencem a razdo; e trés —a coragem, a piedade e 0 temor —a poténcia apetitiva, disseram que dons fortificam o livre arbitrio, enquanto faculdade racional, ¢ as virtudes, enquanto faculdade voluntéria. E isso por descobrirem sé duas virtudes — a fé e a prudéncia — na razéo ou intelecto, pertencendo as outras 4 poténcia apetitiva ou afetiva. Ora, seria necessério, se esta distincso fosse pertinente, todas as virtudes pertencerem 8 poténcia apetitiva, e todos os dons, a razio. Outros ainda, tiveram em vista o lugar de Gregério seguinte: 0 dom do Espirito Santo que forma, na mente que Ihe é obediente, a prudéncia, a temperanga, a justica e a fortaleza, também a mune, pelos sete dons, contra todas as tentagées. E consideraram ento as virtudes como ordenadas a obrar bem e os dons, a resistir as tentacdes. — Mas esta distingo também néo é suficiente. Pois, também as virtudes resistem as tentacdes, que induzem aos pecados e que as contrariam pois cada um resiste ao que Ihe é contrério, como bem vemos suceder com a caridade, da qual se diz (Ct 8, 7): as muitas éguas do puderam extinguir a caridade. Outros, por fim, refletindo que a Escritura nos transmite esses dons como existiram em Cristo, disseram que as virtudes se ordenam, absolutamente, ao bem agir; a0 passo gue os dons nos tornam semelhantes a Cristo, principalmente quanto aos seus sofrimentos, pois os dons de que tratamos resplenderam principalmente na sua paixio. Mas também isto nao é suficiente. Pois, 0 préprio Senhor nos induz precipuamente a nos assemelhar com ele pela humildade e pela mansidgo, conforme est na Escritura (Mt 11, 29}: aprendei de mim, que sou manso e humilde de coragéo; e também pela caridade, conforme aquilo (Jo 13, 34): Que vos amel uns aos outros, assim como eu vos amei. Ora, estas virtudes resplandeceram, precipuamente, na paixio de Cristo. E portanto, para distinguir os dons, das virtudes, devemos seguir 0 modo de falar da Escritura, que no- los transmite, no sob o nome de dons, mas antes, sob o de espiritos. Assim, diz Isaias (11, 2): € descansara sobre ele o espirito de sabedoria e de entendimento etc. Essas palavras dio manifestamente a entender que tal enumeracdo dos sete dons os supée existentes em nés por inspiraco divina; e a inspiragao implica uma mogo externa. Ora, devemos considerar que hd no homem um duplo principio motor: um, interior — a razdo; outro exterior — Deus, como ja dissemos; e 0 Fildsofo também diz 0 mesmo. Ora, como é manifesto, todo o movido deve necessariamente ser proporcionado ao motor; e a perfeicdo do mével, como tal, consiste em ter uma disposigo que o faca bem receber o movimento do motor. Quanto mais elevado porém for o motor, tanto mais necessariamente, e por uma disposicso, mais perfeita, o mével se Ihe ha de proporcionar; assim, vemos ser necessario 0 discipulo dispor-se tanto mais perfeitamente, a receber a doutrina do mestre, quanto mais perfeita ela for. Ora, ¢ manifesto que as virtudes humanas aperfeigoam o homem, ao qual é natural ser movido pela razo, em todos 0s seus atos, interior ou exteriormente. Logo, & necessério existam no homem perfeigées mais altas que o disponham a ser movido por Deus. E tais perfeicées se chamam dons, no s6 por serem infundidos por Deus, mas também por disporem o homem a se deixar facilmente mover pela inspiragdo divina, como diz Isafas (50, 5): 0 Senhor me abriu 0 ouvido, e eu o ndo contradigo; nao me retirei para traz. E 0 Filésofo também diz: quando movidos por inspira¢o divina ndo devemos buscar conselho na azo humana, mas seguir essa inspirago, porque somos movidos por um principio superior & razdo humana. E assim o entendem os que dizem aperfeigoarem os dons 0 homem para atos superiores aos da virtude. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Os dons em questo também se denominam virtudes, conforme a nog comum de virtude. Tem contudo algo de supereminente a essa no¢do, por serem certas virtudes divinas que aperfeigoam o homem, enquanto movido por Deus. E por isso 0 Filésofo introduz, além da virtude comum, uma virtude herdica oudivina, que faz certos serem chamados homens divinos. RESPOSTA A SEGUNDA. — Os vicios sendo contrarios aos bens da razao também contrariam as virtudes; como contrérios, porém, a divina inspiragao, contrariam os dons. Ora, contrariar a Deus é também contrariar a razdo, cujo lume deriva de Deus. RESPOSTA A TERCEIRA. — A definicao em apreco se da da virtude quanto ao seu modo comum de ser. Por onde, se quisermos restringir a definicao as virtudes, enquanto distintas dos dons, diremos que a expresso —pela qual vivemos retamente — deve ser entendida da retido da vida conforme a regra da razo. Semelhantemente, 0 dom, enquanto distinto da virtude infusa, pode ser considerado como 0 dado por Deus para Ihe recebermos a moc3o, que leva o homem a seguir retamente as suas inspiracées. RESPOSTA A QUARTA. — A sabedoria se chama virtude intelectual, enquanto procede do juizo da razdo. Chama-se porém, dom, enquanto obra por instinto divino. E 0 mesmo se deve dizer nos demais casos. Art. 2 — Se os dons sao necessarios a salvacgaéo do homem. O segundo discute-se assim. — Parece nao serem os dons necessérios 8 salvacao do homem. 1. —Pois, os dons se ordenam a uma certa perfeicéo, que ultrapassa @ perfeicSo comum da virtude. Ora, nao necessério a sua salvacdo 0 homem conseguir tal perfeicéo, que ultrapasse o estado comum da virtude, pois tal perfeigo nao é objeto de preceito, mas de conselho. Logo, os dons ndo séo necessérios a salvago do homem. 2. Demais. — Para a sua salvacao basta ao homem proceder bem em relago ao divino e ao humano. Ora, pelas virtudes teologais o homem procede bem em rela¢do a0 divino; e pelas morals, em relago a0 humano. Logo, os dons nao Ihe sto necessérios para a salvagio. 3. Demais. — Gregorio diz, que o Espirito Santo dé a sabedoria, contréria a estulticia; o intelecto, contrério ao embotamento; 0 conselho, contrério precipitagao; a coragem, contréria ao temor; a ciéncia, contréria & ignorancia; a piedade, contrdria & dureza; e, contrério & soberba, 0 temor. Ora, as virtudes constituem remédio suficiente para se extirparem todos esses vicios. Logo, os dons no so necessérios a salvago do homem. Mas, em contrdrio, — O mais elevado dos dons é a sabedoria; e 0 infimo, o temor. Ora, ambos sio necessarios & salvaco, pois da sabedoria diz a Escritura (Sb 7, 28): Porque Deus a ninguém ama sengo a0 que habita com a sabedoria; e do temor (Ecle 1, 28): Porque aquele que est sem temor nao podera ser justificado. Logo, também os dons médios so necessarios a salvacio. SOLUGAO. — Como ja se disse, os dons sdo umas perfeicdes do homem, que o dispdem a seguir facilmente 0 instinto divino. Por onde, quando nao basta o instinto da razo, mas & necessdrio 0 do Espirito Santo, é, por conseqiéncia, também necessério o dom Ora, Deus aperfeicoa a raz do homem de dois modos: naturalmente, i. é, pelo lume da razio natural; © por uma perfeiciio sobrenatural, que sao as virtudes teologais, como ja dissemos. € embora esta segunda perfeicdo seja maior que a primeira, contudo a primeira o homem a tem de modo mais perfeito que a segunda. Pois, aquela ele a tem de posse plena; esta, imperfeitamente, pois amamos e conhecemos a Deus imperfeitamente. Ora, & manifesto que o ser de natureza, forma ou virtude perfeita, pode, por si mesmo, obrar por meio delas, sem excluir contudo a agéo de Deus, que obra interiormente em toda natureza e em toda vontade. Mas o ser de natureza, forma ou virtude imperfeita no pode obrar por si, se no for movido por outro. Assim, 0 sol, perfeitamente licido, pode iluminar por si mesmo; porém a lua, que tem imperfeitamente a natureza da luz, ndo ilumina sengo iluminada. ‘Também 0 médico conhecedor perfeito da arte médica, pode obrar por si; mas, 0 seu discipulo, ainda o plenamente instruido no o pode, se nao for instruido por aquele. Por onde, quanto ao que cai sob 2 algada da razo humana, em ordem ao fim conatural ao homem, este pode obrar pelo juizo da razdo. — Haverd, porém uma bondade superabundante se, mesmo nesse caso, Deus 0 ajudar por um instinto especial. Por onde, segundo os filésofos, nem todos os que tinham virtudes morais adquiridas as tinham herdicas ou divinas. Porém, em relacdo ao fim ultimo sobrenatural, a0 qual a razio nos move enquanto informada, de certo modo e imperfeitamente pelas virtudes teologais, essa mocdo por si mesma nao basta, se ndo Ihe advier do alto 0 instinto e a mogio do Espirito Santo, conforme aquilo da Escritura (Rm 8, 14.17): Porque todos os que so levados pelo Espirito de Deus, estes tals so filhos e herdeiros de Deus; e ainda (SI 142, 10): 0 teu espirito que ¢ bom me conduzira a terra de retidao. Pois, a heranca daquela terra dos bem-aventurados ninguém a pode alcangar se ndo for movido e conduzido pelo Espirito Santo. E portanto, para conseguir esse fim, & necessério ao homem ter o dom do Espirito Santo. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Os dons excedem a perfei¢do comum das virtudes, ndo quanto ao género das obras, do modo pelo qual os conselhos precedem os preceitos; mas quanto a0 modo de obrar, enquanto o homem é movido por um principio mais alto. RESPOSTA A SEGUNDA. — As virtudes teologais e morais nao aperfeigoam 0 homem em ordem ao Ultimo fim, de modo que ele nao precise de ser movido por um certo instinto superior do Espirito Santo, pela razio jé dita. RESPOSTA A TERCEIRA. — A razo humana ndo pode conhecer tudo, nem tudo Ihe é possivel, quer a consideremos como dotada de perfei¢io natural, quer como aperfeicoada pelas virtudes teologais. E por isso no pode livrar-se sempre da estulticia, e do mais que lembra a objeco. Mas aquele, a cuja ciéncia e poder tudo esté sujeito, nos livra, pela sua mocéo, de toda estulticia, ignorancia, embotamento, dureza e demais deficiéncias. Por onde, os dons do Espirito Santo, que nos levam a Ihe seguir docilmente o instinto, se consideram dados contra essas deficiéncias.. Art. 3 — Se os dons do Espirito Santo sao habitos. O terceiro discute-se assim — Parece que os dons do Espirito Santo néo sao habitos. 1. —Pois, 0 habito, sendo uma qualidade dificilmente mutavel, como se disse, qualidade permanente nto homem. Ora, é préprio de Cristo, que os dons do Espirito Santo nele descansem, como diza Escritura (ls 11, 2). E noutro lugar (Jo 1, 33): Aquele sobre que tu vires descer o Espirito, e repousar sobre ele, esse é 0 que batiza. E Gregdrio, expondo este texto diz: O Espirito Santo vem ter com todos 0s figis, mas. permanece singularmente s6 com 0 Mediador. Logo, os dons do Espirito Santo nao sao habitos. 2. Demais. — Os dons do Espirito Santo aperfeicoam o homem, levando-o pelo Espirito de Deus, como ja se disse. Ora, levado por esse Espirito, o homem desempenha o papel de instrumento em relagio a ele. Ora, nao é préprio do instrumento ser aperfeicoado por um habito, sendo do agente principal. Logo, os dons do Espirito Santo nao sao habitos. 3. Demais. — Assim como os dons do Espirito Santo provém da inspiragao divina, assim também o dom da profecia. Ora, este nao é habito, pois o espirito de profecia ndo estd sempre presente ao profeta, como diz Gregério. Logo os dons do Espirito Santo também nao so habitos. Mas, em contrario, o Senhor diz aos discipulos, falando do Espirito Santo (Jo 14, 17): Ele ficara conosco e estard em vés, Ora, 0 Espirito Santo ndo esté no homem sem os seus dons. Logo, estes ficam nos homens e, portanto, ndo so sé atos ou paixdes, mas também habitos permanentes. SOLUGAO. — Como ja se disse, os dons sao certas perfeicdes do homem, que o tornam bem disposto a seguir 0 instinto do Espirito Santo. Ora, é manifesto, pelo sobredito, que as virtudes morais aperfeicoam a poténcia apetitiva, fazendo-a participar, de certo modo, da razdo, pois Ihe & natural ser movida pelo império desta ultima. Por onde, os dons do Espirito Santo estdo para o homem, relativamente a0 Espirito, como as virtudes morais para a poténcia apetitiva, relativamente 2 razo. Ora, as virtudes morais sio habitos que dispSem as poténcias apetitivas a obedecerem prontamente a razo. Por onde, também os dons do Espirito Santo so habitos que tornam apto o homem a obedecer prontamente esse Espirito. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Gregério, no mesmo passo aduzido, solve a dificuldade dizendo:O Espirito Santo permanece sempre em todos os eleitos, quanto aos dons sem os quais ndo podem chegar a vida eterna; mas, quanto aos outros, nem sempre permanece. Ora, os sete dons séo necessérios & salvagdo, como jé dissemos. Logo, quanto a eles, o Espirito Santo sempre permanece nos santos. RESPOSTA A SEGUNDA. — A objecdo procede quanto ao instrumento, que ndo age, mas é somente passivo. Ora, o homem nao ¢ tal instrumento, pois, dotado de livre arbitrio, também assim age quando levado pelo Espirito Santo. Logo, precisa de um habito. RESPOSTA A TERCEIRA. — A profecia é um dos dons que servem a manifestagio do Espirito, e nao é de necessidade para a salvacao. Por onde, nao ha simile, Art. 4 — Se so convenientemente enumerados os sete dons do Espirito Santo. (li2— Ie, g. 8, a, 6; Il Sent,, dist. XXXIV, q. 1, a. 2; In Isaiam, cap. XI). © quarto discute-se assim. — Parece que os sete dons do Espirito Santo sao inconvenientemente enumerados. 1. —Pois, nessa enumeracio se incluem quatro elementos pertencentes as virtudes intelectuais: a sabedoria, o intelecto, a ciéncia e 0 conselho, pertencentes 8 prudéncia; e nela nao se inclui nada relativo 8 arte, a quinta virtude intelectual. Semelhantemente, essa enumeraio inclui a piedade, pertinente a justi¢a; o dom da fortaleza, pertencente a fortaleza, e nada inclui pertinente a temperanca. Logo, os dons esto insuficientemente enumerados. 2. Demais. — A piedade faz parte da justica. Ora, a enumeracdo inclui a fortaleza e no qualquer parte da mesma. Logo, também no devia incluir a piedade, mas, a justica. 3. Demais. — As virtudes teologais se ordenam principalmente para Deus. Ora, como os dons aperfeicoam 0 homem para se mover para Deus, a enumeragio devia incluir também certos dons pertinentes as virtudes teologais. 4. Demais. — Assim como tememos a Deus, também o amamos, nele esperamos, com ele nos comprazemos. Ora, o amor, a esperanga e o prazer so paixGes que entram na mesma diviséo do temor. Logo, se este é considerado como um dom, também dons haveriam de ser as trés paixdes. 5. Demais. — Ao intelecto se acrescenta a sabedoria, que o rege; & fortaleza, 0 conselho; a piedade, a ciéncia, Logo, também ao temor devia ser acrescentado algum dom diretivo; e, portanto, sto Inconvenientemente enumerados os sete dons do Espirito Santo. Mas, em contrario, é a autoridade da Escritura (Is 11, 2-3) SOLUGAO. — Como jé dissemos, os dons séo uns hébitos que tornam o homem apto a seguir prontamente o instinto do Espirito Santo, assim como as virtudes morais aperfeigoam as poténcias apetitivas para obedecerem & razdo. Ora, assim como é natural a estas serem movidas pelo império da razo, assim & natural a todas as poténcias humanas serem movidas pelo instinto de Deus, como por um poder superior. Logo, todas as poténcias, que podem ser principios de atos humanos, i. &, a razio ea poténcia apetitiva, sdo susceptiveis tanto de virtudes como de dons. Ora, a razo ou é especulativa ou pratica, e ambas consideram a apreensio da verdade, conducente a um conhecimento ulterior, e 0 juizo sobre a verdade. — Ora, para aprender a verdade, a razdo especulativa ¢ aperfeicoada pelo intelecto, a prética, pelo conselho. — € para julgar retamente, a especulativa é aperfeicoada pela sabedoria, € a prética, pela ciéncia Por seu lado, a poténcia apetitiva, em nossas relages com outrem, é aperfeigoada pela piedade; no referente a nés mesmos, pela fortaleza, no concernente ao temor dos perigos; e pelo temor, no relativo a0 desejo desordenado dos prazeres, conforme aquilo da Escritura (Pr 15, 27): todo 0 homem evita o mal por meio do temor do Senhor; e (SI 118, 120): Transpassa com o seu temor as minhas carnes, porque tenho temido os teus juizos. Por onde é claro que os dons em apreco tém a mesma extensao que as virtudes, tanto intelectuais como morais. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Os dons do Espirito Santo aperfeigoam o homem no concernente ao bem viver, 0 que nao faz a arte, que se ocupa com as producdes externas, pois ela é a razo reta das coisas factiveis, e no das agées, como se disse. Pode-se contudo dizer que, quanto & infusdo dos dons, a arte pertence ao Espirito Santo, principal motor; e ndo, aos homens, que Ihe server, como de instrumentos, enquanto por ele movidos. A temperanca, por seu lado, responde, de certo modo, a0 temor. Pols, assim como é proprio a virtude da temperanca, por esséncia, fazer-nos preferir 0 bem da razio aos maus prazeres, assim é préprio ao dom do temor fazer-nos preferir 0 temor de Deus a esses maus prazeres. RESPOSTA A SEGUNDA. — A palavra — justi¢a — deriva da retidao da razio; e portanto convém-he mais a denominagiio de virtude que de dom. Ao passo que a piedade implica a reveréncia para com os pals e a patria. E como Deus é Pai de todos os seres, também ao seu culto se chama piedade, como diz ‘Agostinho. E, portanto, chama-se convenientemente piedade ao dom pelo qual, reverenciando a Deus, fazemos 0 bem para com todos, RESPOSTA A TERCEIRA. — A nossa alma ndo é movida pelo Espirito Santo se nao se Ihe estiver unida, de cedo modo; assim como o instrumento no € movido pelo artifice, seno por contato ou por qualquer outra unio. Ora, a primeira forma de unio se dé pela fé, pela esperanga e pela caridade. Por onde, estas virtudes se pressupdem aos dons, sendo-lhes, como as raizes. E portanto, todos os dons pertencem a essas trés virtudes, como derivagées delas. RESPOSTA A QUARTA. — O amor, a esperanca e 0 prazer tem 0 bem como objeto. Ora, o sumo bem & Deus. Por onde, os nomes dessas trés paixdes se transferem as virtudes teologais, pelas quais o homem se une a Deus. Ao passo que 0 objeto do temor é o mal, que em Deus de nenhum modo existe. Logo, ele nao implica unio com Deus, mas antes, afastamento de certas causas, pela reveréncia para com Deus, E portanto, néio denomina nenhuma virtude teologal, mas um dom que nos retrai do mal, de modo mais, eminente que a virtude moral. RESPOSTA A QUINTA. — A sabedoria dirige tanto o intelecto como 0 afeto do homem. E por isso se pSem dois dons diretivos, correspondentes a sabedoria: para a inteligéncia, o dom do intelecto; para o afeto, o do temor. Pois, a razo de temer a Deus se funda precipuamente na consideracao da exceléncia divina, que a sabedoria considera. Art, 5 — Se os dons sao conexos. (i Sent,, dist. XXXVI, a. 3). © quinto discute-se assim. — Parece que os dons nao so conexos. 1. — Pois, diz 0 Apéstolo (1 Cor 12, 8): Porque a um pelo Espirito ¢ dada a palavra de sabedori outra porém a palavra de ciéncia, segundo o mesmo Espirito. Ora, a sabedoria e a ciéncia se incluem entre os dons do Espirito Santo. Logo, esses dons so atribu‘dos a diversos e ndo tem conexio miitua, num mesmo sujeito. 2. Demais. — Agostinho diz, que muitos fiéis, embora possuam a fé, no possuem a ciéncia. Ora, a fé & acompanhada por algum dom, ao menos pelo temor. Logo, os dons no esto necessariamente conexos num mesmo sujeito. 3. Demais. — Gregério diz: a sabedoria ser menor se estiver privada do intelecto, e este sera muito indtil, se n8o subsistir pela sabedoria; vil é 0 conselho a que falta a robustez da fortaleza; e esta sera completamente destruida, se no se apoiar no conselho; a ciéncia serd nula se nao tiver a utilidade da piedade; e esta ser de todo inutil, se carecer do discernimento da ciéncia; e também o préprio temor, sem as virtudes supra enumeradas, deixaré de servir a realizagdo de qualquer boa acdo. Por onde, podemos ter um dom sem ter os outros, Logo, os dons do Espirito Santo ndo séo conexos. Mas, em contrdrio, 0 que antes jé havia dito Gregério: Nesse convivio de filhos, devemos perscrutar como se nutrem mutuamente. Ora, por filhos de J6, de que agora fala, entendem-se os dons do Espirito Santo. Logo, estes so conexos por se alimentarem uns dos outros, SOLUGAO. —A verdade sobre esta questdo pode facilmente presumir-se do jé dito. Pois, como ja dissemos, assim como as poténcias apetitivas se dispdem, pelas virtudes morais, dependentemente do regime da razéo, assim, todas as virtudes da alma se dispdem pelos dons, dependentemente da mocéo do Espirito Santo. Ora, este habita em nés pela caridade, conforme aquilo da Escritura (Rm 5, 5):a caridade de Deus est derramada em nossos coragdes pelo Espirito Santo, que nos foi dado, assim como a nossa razdo se aperfeigoa pela prudéncia. Por onde, assim como as virtudes morais se ligam uras as utras por meio da prudéncia, assim os dons do Espirito Santo, pela caridade, de modo tal que, quem tiver tem todos os dons do Espirito, e ninguém os pode ter sem a caridade. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Num sentido, a sabedoria e @ ciéncia podem ser consideradas gracas dadas gratuitamente; i. 6, de modo tal que tenhamos tanta abundancia do conhecimento das coisas divinas e humanas, que possamos instruir os figis e refutar os adversérios. E esse sentido que o Apéstolo, no passo aduzido, considera a sabedoria e a ciéncia; sendo, por isso que, assinaladamente, se refere & palavra da sabedoria e da ciéncia. — Noutro sentido, essas palavras podem ser tomadas como exprimindo dons do Espirito Santo. E ento, néo significam sendo certas perfeig&es da mente humana que a dispdem bem para seguir o instinto do Es causas divinas e humanas. Por onde é claro que tais dons existem em todos os que tém caridade. 10 Santo, no conhecimento das RESPOSTA A SEGUNDA. — No lugar citado, Agostinho se refere & ciéncia, expondo o passo aduzido do Apéstolo. E por isso, ele a toma no primeiro sentido exposto, i. é, como graca dada gratuitamente. E isso 6 claro pelo que acrescenta: Uma coisa é saber sé 0 que o homem deve crer para alcancar a vida feliz, que no é sendo a eterna; outra, como hé de proporcioné-lo as piedosas e defendé-lo contra os impios, e isto é a0 que o Apéstolo chama propriamente ciéncia. RESPOSTA A TERCEIRA. — Assim como, de um modo, a conexdo das virtudes cardeais se prova por se aperfeigoarem, de certo modo, umas as outras, como jé dissemos, assim também Gregério pretende Provar a conexo dos dons por nao poder um ser perfeito sem o outro. E por isso dissera antes: Cada uma das virtudes desapareceré de todo, se nao se auxiliarem todas entre si: Donde néo se conclui que um dom possa existir sem os outros, mas que o intelecto nao seria dom, se existisse sem a sabedoria, assim como sem a justi¢a, a temperanga ndo seria virtude, Art, 6 — Se os dons do Espirito Santo permanecem na patria. (Ill Sent., dist. XXXIV. a. 3). O sexto discute-se assim. — Parece que os dons do Espirito Santo nao permanecem na patria. 1, —Pois como diz Gregério, o Espirito Santo inspira a mente com os sete dons, contra todas as tentagdes. Ora, na patria nao haverd tentagdes, conforme aquilo da Escritura (Is 11, 9): Eles ndo far3o dano algum, nem mataro em todo o meu santo monte. Logo, na patria ndo haveré dons do Espirito Santo, 2, Demais. — Os dons do Espirito Santo sdo habitos, como jé se disse. Ora, os habitos seriam vos sem a existéncia dos atos; pols, diz Gregério: o intelecto faz-nos penetrar 0 que ouvimos, o conselho impede a precipitagdo, a fortaleza faz-nos no temer a adversidade, e a piedade enche até as visceras do coracso com obras de misericérdia, Ora, tudo isto ndo convém ao estado da patria. Logo, no estado da gléria nao existirdo tais dons. 3. Demais. — Certos dons, como a sabedoria e o intelecto, aperfeicoam o homem, na vida contemplativa; outros, como a piedade e a fortaleza, na vida ativa. Ora, esta ultima se nos acaba com esta vida, como diz Gregorio. Logo, no estado da gléria, no existirdo todos os dons do Espirito Santo. Mas, em contrdrio, diz Ambrésio: A cidade de Deus ou 2 Jerusalém celeste nao seré banhada pelo percurso de nenhum rio terrestre; mas, o Espirito Santo, procedente da fonte da vida, de que nés nos saciamos com um breve hausto, afluiré mais abundante aos espiritos celestes, com uma correnteza plena e intumescida pelas sete virtudes espirituais SOLUCAO. —Podemos considerar os dons 8 dupla luz.— Quanto a esséncia, e entdo existiréo perfeitissimamente na patria, como esté claro no lugar aduzido de Ambrésio. E a razdo é que os dons do Espirito Santo aperfeigoam 2 mente humana para Ihe seguir a moco, o que se dard principalmente na patria, quando Deus for tudo em todos, como diz a Escritura (1 Cor 15, 28), e quando o homem estiver totalmente sujeito a Deus. — De outro modo, quanto a matéria sobre a qual operam; e entéo, na vida atual, operam sobre uma matéria sobre 2 qual nao operardo, no estado da gléria. E portanto ndo permanecero na patria, como jé dissemos a propésito das virtudes cardeais. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — No lugar aduzido, Gregorio se refere aos dons préprios do estado presente, que nos protegem contra o ataque dos males. Mas, no estado da gléria, cessados os males, seremos aperfeigoados no bem pelos dons do Espirito Santo. RESPOSTA A SEGUNDA. — Gregério atribui, a cada um dos dons algo que passa com o estado presente, algo que permanece na vida futura. Pois, diz, que a sabedoria fortifica a mente na esperanca e na certeza das coisas eternas, e desses dois, a esperanca passa, mas a certeza permanece. Do intelecto diz que, penetrando as coisas ouvidas, e fortificando o coragéo ilumina-the as trevas; ora, 0 que é ouvido passa porque, no dizer da Escritura (Jr 31, 34), no ensinaré varo ao seu irmo; mas, a iluminago da mente permanecerd. Do conselho diz, que impede a precipitagao, o que é necessério a vida presente; e, demais, que faz a alma abundar na razdo, 0 que é necessério também na vida futura. Da fortaleza, que ndo teme as adversidades, 0 que é necessério na vida presente; e, demais, que alimenta a confianga, que permanece na vida futura. Da ciéncia s6 diz que elimina 0 jejum da ignorancia, 0 que pertence ao estado presente; mas, 0 que acrescenta—no ventre da mente — pode-se entender, figuradamente, da plenitude do conhecimento, pertencente também ao estado futuro. Da piedade, que enche as visceras do coragao com as obras de misericérdia, 0 que, literalmente entendido, pertence 56 ao estado da vida presente; mas 0 mesmo afeto intimo dos préximos, designado pela expressiio — visceras, pertence também ao estado futuro, em que a piedade nao exibird as obras de misericérdia, mas 0 afeto congratulatério. Do temor, que reprime a mente para que ndo se ensoberbeca com as coisas presentes, o que pertence ao estado atual; e que conforta com o alimento da esperanca, para as coisas futuras, 0 que pertence, quanto a esperanca, ao estado presente; mas pode também pertencer a0 estado futuro, quanto ao conforto relativo ao que aqui esperamos e Id obteremos. RESPOSTA A TERCEIRA. — A objeco colhe quanto & matéria dos dons. Pois as obras da vida ativa no constituirdo a matéria deles. Mas os atos de todas versardo sobre a vida contemplativa, que é a vida feliz. Art. 7 — Se a dignidade dos dons se funda na enumeragio de Isaias, cap. XI. (in saiam. Cap. x), O sétimo discute-se assim. — Parece que a dignidade dos dons nao se funda na enumeracao de Isaias. 1. —Pois, o mais importante dos dons é o que Deus exige, principalmente, do homem. Ora, o que dele Deus exige sobretudo é o temor, conforme a Escritura (Dt 10, 12): Agora, pois, 6 Israel, que é 0 que o Senhor teu Deus pede de ti, sendo que temas o Senhor teu Deus; e ainda (Ml 1, 6): se eu sou vosso Senhor onde estd o temor que se me deve? Logo, o temor, enumerado (Isaias) em ultimo lugar nao ¢ 0 infimo, mas o maximo dos dois. 2. Demais. — A piedade é considerada como bem universal, conforme diz 0 Apéstolo (1 Tm 4, 8):a piedade para tudo é util. Ora, o bem universal tem preferéncia sobre os bens particulares. Logo, a piedade, enumerada em peniiltimo lugar, é o mais importante dos dons. 3. Demais. — A ciéncia aperfeicoa 0 juizo do homem, ao passo que o conselho & préprio a perquiricao. Ora, 0 juizo & superior a esta. Logo, a ciéncia € dom mais importante que conselho, embora venha depois dele na enumeracao. 4, Demais. — A fortaleza reside na poténcia apetitiva, e a ciéncia, na razdo, Ora, esta é mais eminente que a poténcia apetitiva. Logo, também a ciéncia é dom mais eminente que a fortaleza, enumerada contudo em primeiro lugar. Portanto, a dignidade dos dons no depende da ordem da sua enumeracio. Mas, em contrério, diz Agostinho: Parece-me que a septiforme operacao do Espirito Santo, de que fala Isaias, concorda com os graus e as sentengas, mencionados por Mateus, V; Mas, difere na ordem, porque, em Isaias, a enumeragao comega pelos dons mais elevados, e em Mateus, pelos inferiores. SOLUGAO. — A dignidade dos dons pode ser considerada de dois modos: absolutamente, i. é, quanto aos préprios atos, enquanto procedentes dos seus principios, ou relativamente i. 6, quanto a matéria, Ora, considerando absolutamente a dignidade dos dons, com eles sucede o mesmo que com as virtudes, pois os dons aperfeicoam 0 homem para todos os atos das poténcias da alma, para os quais também as virtudes os aperfeicoam, como ja dissemos. Por onde, assim como as virtudes intelectuais tem preeminéncia sobre as morais, e dentre as préprias virtudes intelectuais, as contemplativas, como a sabedoria, o intelecto e a ciéncia, so superiores &s ativas, como a prudéncia e a arte, de modo que a sabedoria tem preeminéncia sobre o intelecto e este, sobre a ciéncia, bem como a prudéncia e a sinese sobre a eubulia; assim também, os dons da sabedoria e do intelecto, da ciéncia e do conselho tem preeminéncia sobre a piedade, a fortaleza e 0 temor, tendo a piedade preeminéncia sobre a fortaleza, € esta sobre o temor, como a justica tem preeminéncia sobre a fortaleza e esta, sobre a temperanca. Mas, quanto & matéria, a fortaleza eo conselho tém preeminéncia sobre a ciéncia e a piedade, porque a fortaleza e 0 conselho supdem o que é érduo, ao passo que a ciéncia e a piedade se exercem nos casos comuns. Assim pois, a dignidade dos dons corresponde a ordem da enumeragio, parte, absolutamente, enquanto a sabedoria e o intelecto tém preeminéncia sobre todos; e parte, quanto a ordem da matéria, enquanto o conselho e a fortaleza tém preferéncia sobre a ciéncia e a piedade. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBIECAO. — 0 temor é exigido, principalmente, como um quase primérdio & perfeicao dos dons, porque o temor do Senhor é principio da sabedoria; e no por ser mais digno que os outros dons; mas, na ordem da geracao, antes de praticarmos o bem, por influéncia dos demais dons, fugimos do mal, por influéncia do temor, como diz a Escritura (Pr 16, 6). RESPOSTA A SEGUNDA. — A piedade no a comparam as palavras do Apéstolo a todos os dons de Deus, mas s6 ao exercicio corporal, sobre o qual jd havia dito, que para pouco é proveitoso. RESPOSTA A TERCEIRA. — Embora a ciéncia, por causa do julzo, tenha preferéncia sobre o conselho, contudo este a tem, quanto 4 matéria. Pais, o conselho sé se exerce quando se trata de coisas arduas, como se disse; ao passo que 0 juizo da ciéncia, em todos os casos. RESPOSTA A QUARTA. — Os dons diretivos, pertinentes a razo, séo mais dignos que os dons executives, se forem considerados em relacdo aos atos, enquanto procedentes das poténcias; pois, a razio tem preeminéncia sobre a poténcia apetitiva, como 0 que regula a tem sobre o regulado. Mas, quanto & matéria, o conselho se anexa & fortaleza como o diretivo ao executivo e, semelhantemente, a ciéncia & piedade; pois, o conselho e a fortaleza se exercem nos casos drduos, a ciéncia e a piedade, nos comuns. E portanto, © conselho, simultaneamente com a fortaleza, é enumerado, em razéo da matéria, antes da ciéncia e da piedade. Art. 8 — Se as virtudes tém preeminéncia sobre os dons. (lll Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 1, ad 5; De Virtut., q. 2, a. 2, ad 17). Ooitavo discute-se assi im. — Parece que as virtudes tém preeminéncia sobre os dons. 1, —Pois, diz Agostinho, falando da caridade: Nenhum dom de Deus é mais excelente que este. € 0 nico que separa os filhos do reino eterno, dos da eterna perdico. Hé ainda outros dons do Espirito Santo, mas de nada servem sem a caridade. Ora, a caridade & uma virtude. Logo, a virtude tem preeminéncia sobre os dons do Espirito Santo. 2. Demais. — O que tem naturalmente prioridade tem também preeminéncia, Ora, as virtudes tem prioridade sobre os dons do Espirito Santo. Pois, Gregério diz: Os dons formam, antes de tudo, na mente que Ihes é décil, a prudéncia, a temperanga, a fortaleza, e a justi¢a. E assim equilibra, em pouco, a mesma mente com as sete virtudes, i. é, dons, opondo, a estulticia, a sabedoria; a0 embotamento, 0 intelecto, & precipitago, o conselho; ao temor, a fortaleza; a ignorancia, a ciéncia; a dureza, a piedade; & soberba, o temor. Logo, as virtudes tm preeminéncia sobre os dons. 3. Demais. — Ninguém pode usar mal da virtude, como diz Agostinho. Ora, é possivel usar mal dos dons; pois, como diz Gregorio, imolamos a héstia da nossa prece para a sabedoria nao ensoberbecer; para 0 intelecto, sutilmente discorrendo, no aberrar; para o conselho, multiplicando-se, nao confundir; para nao se precipitar & fortaleza, gerando a confianca; para a ciéncia néo inchar, conhecendo sem amar; para a piedade no transviar, afastando do caminho reto; para o temor, amedrontando mais do que & justo, no imergir no abismo do desespero. Logo, as virtudes so mais dignas que os dons do Espirito Santo Mas, em contrério, os dons sao conferidos para fortalecer as virtudes contra os defeitos, como é claro pela citacdo aduzida, E assim, parece que aperfeicoam o que as virtudes nao podem aperfeigoar. Logo, tém preeminéncia sobre elas. SOLUCAO. — Como do sobredito resulta, distinguem-se trés géneros de virtudes: umas teologais; outras, intelectuais; outras, morais. As teologais unem a Deus a mente humana; as intelectuais aperfeigoam a razdo; enfim, as morais tornam apta as poténcias apetitivas a obedecer & razdo. Ora, pelos dons do Espirito Santo todas as poténcias da alma se dispdem a submeter-se & mocao divina, Por onde, os dons esto para as virtudes teologais, que unem o homem ao Espirito Santo, que o move, como as virtudes morais esto para as intelectuais, perfectivo da razdo, motora das virtudes morais. Assim, pois, como as virtudes intelectuais tém preeminéncia sobre as morais e as regulam, assim as teologais a tém sobre os dons do Espirito Santo, e os regulam. Donde o dizer Gregério: os sete filhos, i 6, 05 sete dons, ndo chegam a perfeicao da dezena, sendo fizerem tudo com fé, esperanca e caridade. Comparados, porém, com as demais virtudes intelectuais ou morais, os dons tém preeminéncia sobre as virtudes, Pois, aperfeigoam as poténcias da alma, relativamente ao Espirito Santo, que move; ao passo que as virtudes aperfeicoam ou a razdo mesma, ou as demais potencias, relativamente & razdo. Ora, & manifesto que quanto maior o motor, tanto mais perfeitamente disposto deve ser 0 mével. Logo, os dons séo mais perfeitos que as virtudes. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — A caridade é uma virtude teologal, e concedemos tenha preeminéncia sobre os dons RESPOSTA A SEGUNDA. — De dois modos pode-se entender a prioridade. — Primeiro, na ordem da perfeicdo e da dignidade; assim, o amor de Deus tem prioridade sobre 0 do préximo. E deste modo, os dons tém prioridade sobre as virtudes intelectuais e morais; posterioridade, porém, relativamente as virtudes teologais.— De outro modo, na ordem da geracao ou disposi¢ao; assim, o amor do préximo precede, quanto ao ato, 0 amor de Deus. E assim, as virtudes morais e intelectuais precede os dons; pois, estando bem disposto no que respeita sua razdo prépria, 0 homem fica bem disposto no concernente a suas relagdes com Deus. RESPOSTA A TERCEIRA. — A sabedoria, o intelecto, e dons semelhantes, provém do Espirito Santo, enquanto informados pela caridade, que nao obra temerariamente, como diz a Escritura (1 Cor 13, 4). E, portanto, da sabedoria, do intelecto e de dons semelhantes ninguém pode usar mal, enquanto dons do Espirito Santo. Mas para ndo se afastarem da perfeicao da caridade, um é fortificado pelo outro. E ¢ isto que Gregorio quer dizer. Questo 69: Das bem-aventurangas. Em seguida devemos tratar das bem-aventurancas. E sobre esta questo, quatro artigos se discutem: Art. 1 — Se as bem-aventurangas se distinguem das virtudes e dos dons. (Ill Sent., dist. XXXIV, q. 1, a. 4: In Isaiam, cap. XI; In Matth., cap. V). © primeiro discute-se assim. — Parece que as bem-aventurangas nao se di dons. inguem das virtudes e dos 1. —Pois, Agostinho atribui as bem-aventurangas enumeradas em Mat., V, aos dons do Espirito Santo; a0 passo que Ambrésio as atribui as quatro virtudes cardeals. Logo, as bem-aventurangas no se distinguem das virtudes e dos dons. 2. Demais. — A vontade humana sé tem duas regras: a razdo e a lei eterna, como ja se disse. Ora, as virtudes aperfeigoam o homem na ordem da raz; e os dons, na da lei eterna e do Espirito Santo, como do sobredito resulta. Logo, além das virtudes e dos dons, ndo pode haver mais nada concernente & retidao da vontade humana. Logo, as bem-aventurancas nao se distinguem deles. 3, Demais. — Na enumeragdo das bem-aventurancas inclui-se a mansidao, a justica e a misericérdia, consideradas como sendo virtudes. Logo, as bem-aventurangas nao se distinguem dos dons e das virtudes. Mas, em contrério, algumas das consideradas bem-aventurancas ndo so virtudes nem dons; tais a pobreza, 0 pranto e a paz. Logo, as bem-aventurancas diferem das virtudes e dos dons. SOLUGAO. — Como ja dissemos, a bem-aventuranca 0 fim Ultimo da vida humana. Ora, considera-se como jé possuindo o fim quem tem a esperanca de obté-lo. Donde, diz 0 Filésofo que as criangas se consideram felizes por causa da esperanca; e o Apéstolo (Rm 8, 24): na esperanca é que temos sido feitos salvos. Ora, a esperanca de conseguir o fim resulta de nos movermos convenientemente para ele € dele nos aproximarmos, ¢ isso se faz pelo agir. Ora, nés nos movemos para a bem-aventuranca final e dela nos aproximamos, pelos atos virtuosos, e principalmente pela influéncia dos dons, se nos referimos a eterna beatitude, para a qual ndo basta a razo, mas & necessério 0 auxilio do Espirito Santo, para obedecer e seguir a0 qual nos tornam aptos os dons. Logo, as bem-aventurancas distinguem-se das virtudes e dos dons, nao como habitos deles distintos, mas como os atos se distinguem dos habitos. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Agostinho e Ambrésio atribuem as bem-aventurancas aos dons € as virtudes, assim como os atos so atribuidos aos habitos. Os dons porém sao mais eminentes que as virtudes cardeais, como ji dissemos. E por isso Ambrésio, explicando as bem- aventurancas propostas & multidao, as atribui as virtudes cardeais; a0 passo que Agostinho, expondo as propostas aos discipulos no monte, como a mais perfeitos, atribui-as aos dons do Espirito Santo. RESPOSTA A SEGUNDA. — A objecio prova nio haver, além das virtudes e dos dons, outros hibitos retificadores da vida humana RESPOSTA A TERCEIRA. — A humildade é tomada pelo ato de mansidao. E 0 mesmo se deve dizer da justiga e da misericérdia. E embora estas se considerem virtudes, atribuem-se contudo aos dons, pois também estes aperfeicoam os homens em relacdo aos mesmos abjetos que as virtudes, como se disse. Art, 2 — Se os prémios atribuidos as bem-aventurangas pertencem a esta vida. (In Matth, cap.V) © segundo procede-se assim. — Parece que os prémios atribuidos as bem-aventurangas nao pertencem a esta vida. 1. — Pois, como ja se disse, chama-se felizes os que tém a esperanca dos prémios. Ora, 0 objeto da esperanga ¢ a felicidade futura. Logo, esses prémios pertencem a vida futura. 2. Demais. — O Evangelho comina certas penas opostas as bem-aventurancas, quando diz (Le 6, 25): Ai de vés 0s que estais fartos, porque vireis a ter fome. Ai de vos os que agora rides, porque gemereis © chorais. Ora, tais penas ndo as abrange a vida presente, pois freqientemente os homens durante ela do so punidos, conforme aquilo da Escritura (J6 21, 13): Eles passam os seus dias em prazeres. Logo, também os prémios das bem-aventurancas nao pertencem a esta vida 3. Demais. — O reino dos céus, posto como prémio da pobreza, é a beatitude celeste, conforme ‘Agostinho. Ora, @ plena saciedade sé existiré na vida futura, consoante aquilo da Escritura (SI 16, 15): saciar-me-ei quando aparecer a tua gloria. Ora, a visto de Deus e a manifestacao da divina filiacdo pertencem a vida futura, como consta da Escritura (1 Jo 3, 2): Agora somos filhos de Deus, e ndo apareceu ainda o que havemos de ser. Sabemos que quando ele aparecer, seremos semelhantes a ele; porquanto nos outros o veremos bem como ele &. Logo, 0s prémios de que tratamos pertencem a vida futura Mas, em contrério, Agostinho diz: Tais coisas podem por certo existir completamente nesta vida, como cremos terem existido nos Apéstolos. Pois, aquela omnimoda transformagio em forma Angélica, prometida para depois desta vida, no pode ser explicada por nenhumas palavras. SOLUGAO. — Sobre os prémios em questo manifestam-se diversamente os expositores da Sagrada Escritura. Uns, como Ambrésio dizem pertencerem todos & futura beatitude. Agostinho, porém, considera-os pertencentes a vida presente. Criséstomo, por seu lado, nas suas Homilias, diz pertencerem uns a vida futura, e outros, 4 presente. Para evidencié-lo, devemos considerar que a esperanga da futura beatitude pode existir em nés por duas razées: primeiro, por uma certa preparacSo ou disposicdo 8 futura beatitude, e isso se dé pelo mérito; ou, segundo, por uma incoacao imperfeita da futura beatitude, nos vardes santos, j4 nesta vida. Pois, uma é a esperanca na frutificag3o da érvore, quando rondeja viridente, e outra, quando comegam a aparecer os primeiros frutos. Por onde, 0 nas bem-aventurangas concernente 20 mérito, sdéo umas preparades ou disposigées & beatitude, perfeita ou incoada. E 0 concernente nelas aos prémios, pode consistir ou na beatitude perfeita em si mesma, e entdo respeitar & vida futura, ou numa incoacdo da beatitude, como se dé com 05 santos vardes, e ento dizem respeito a vida presente. Pois, quem comeca por progredir nos atos das virtudes e dos dons pode ter esperanca de chegar 8 perfeicio da via e da patria, DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBIEGAO. — A esperanca pode recair sobre a beatitude futura, como sobre o ultimo fim; pode também ter por objeto o auxilio da graca, como os meios, conforme aquilo da Escritura (SI 27, 7): Em Deus esperou o meu coracdo e eu fui ajudado, RESPOSTA A SEGUNDA. — Embora as vezes os maus nao sofram nesta vida penas temporais, as sofrem contudo espirituais: Por isso, diz Agostinho: Conforme mandaste, Senhor, a alma desregrada é para si mesma o seu castigo. E 0 Filésofo, falando dos maus: na alma deles domina a discérdia, que os arrasta, ora para aqui e ora, para Id; depois, conclui: Se a tal ponto é miserével o ser mau, havemos de fugir intensamente a malicia. E semelhante e inversamente, embora os bons ndo recebam as vezes prémios materiais nesta vida, nunca Ihes hdo-de faltar contudo os espirituais, jd nesta vida, conforme aquilo da Escritura (Mt 19, 29 e Mc. 10, 30): recebereis, jd neste século, o céntuplo RESPOSTA A TERCEIRA. — Todos 0s prémios, de que se trata, se consumaro por certo, na vida eterna; mas de certo modo, enquanto Ié no chegamos, comesam jé nesta vida. Pois, o reino dos céus, no dizer de Agostinho, pode ser entendido como o inicio da sabedoria perfeita, por jé comegar a reinar neles 0 espirito. Quanto & posse da terra, ela significa 0 bom afeto da alma repousando pelo desejo na estabilidade da heranga perpétua, que é o significado de terra. Sdo consolados nesta vida, participando do Espirito Santo, denominadoParaclito, i. é, Consolador. Ficam saturados, jé no estado atual, do alimento de que diz o Senhor (lo 4, 34): A minha comida é fazer eu a vontade de meu Pai. Também nesta vida os homens alcancam a misericérdia de Deus. Nela, purificada a visio pelo dom da inteligéncia, Deus pode de certo modo ser visto. Mesmo nesta vida, também os que pacificam os seus movimentos tornando-se mais semelhantes a Deus, sdo chamados seus filhos. Mas, sé-lo-Zo mais perfeitamente, na patria. Art, 3 — Se as bem-aventurangas séo enumeradas convenientemente. (il Sent, dist. XXXIV, q. 1. a, 4; in Matth.,cap.V). © terceiro discute-se assim. — Parece que as bem-aventurancas séo enumeradas inconvenientemente. 1. — Pols, so atribufdas aos dons, como jé se disse. Ora, destes, uns, como a sabedoria ¢ o intelecto, pertencem a vida contemplativa. Ora, ndo se enumera nenhuma bem-aventuranca consistente no ato da contemplacio, mas todas as enumeradas consistem na vida ativa. Logo, so enumeradas insuficientemente. 2. Demais. — A vida ativa pertencem nao somente os dons executives, mas também certos diretivos, como a ciéncia e 0 conselho. Ora, nenhuma das bem-aventurangas enumeradas implica diretamente 0 ato de ciéncia ou de conselho. Logo, sdo enumeradas insuficientemente. 3. Demais. — Na vida ativa, entre os dons executivos, a enumeracdo considera o temor como pertencente & pobreza e a piedade, & bem-aventuranga da misericérdia. E nada inclui que implique diretamente a fortaleza. Logo, as bem-aventurangas so enumeradas insuficientemente 4, Demais. — A Sagrada Escritura se refere a muitas outras bem-aventurangas; assim, um lugar diz (I6 5, 17): Bem-aventurado 0 homem a quem Deus corrige, e ainda (SI 1, 1): Bem-aventurado 0 varao que n3o se deixou ir apés o conselho dos impios e, por fim (Pr 3, 13): Bem-aventurado o homem que achou a sabedoria, Logo, as bem-aventurancas so enumeradas insuficientemente. 5. Mas, em contrdrio. — Parece que a enumeracao € supérflua. Pois, a0 passo que so sé sete os dons do Espirito Santo, enumeram-se oito bem-aventurancas. 6. Demais. — Sao Lucas (Lc 6) enumera s6 quatro bem-aventurancas. Logo, S40 Mateus (Mt 5) enumera sete ou oito superfluamente. SOLUGAO. — As bem-aventurangas estdo convenientissimamente enumeradas. Para cuja evidancia devemos considerar uma triplice opinido a respeito da bem-aventuranca. Assim, uns a fizeram constituir na vida voluptuosa; outros, na ativa; outros por fim, na contemplativa. Ora, estas trés espécies de bem-aventuranca se relacionam diferentemente com a futura beatitude, cuja esperanga ja faz sejamos considerados felizes nesta vida. Pois, a beatitude voluptuosa, sendo falsa e contréria 8 razdo, & obstaculo & futura beatitude. A consistente na vida ativa dispée para a beatitude futura, E a contemplativa, quando perfeita, constitui essencialmente a prépria felicidade futura; se imperfeita, é uma incoacdo desta. E por isso 0 Senhor enunciou, primeiro, certas bem-aventurangas que so quase removentes do impedimento da felicidade voluptuosa. Ora, esta consiste em duas coisas. — Primeiro, na afluéncia dos bens exteriores, quer riquezas, quer honras. Delas 0 homem se retrai, pela virtude, usando-as moderadamente; pelo dom, de modo mais excelente, desprezando-as totalmente. Por isso, Mateus assim enuncia a primeira bem-aventuranca (Mt 5, 3): Bem-aventurados os pobres de espirito, referente a0 desprezo das riquezas ou das honras, por meio da humildade. — segundo, em seguir as paixdes préprias, do irascivel ou do concupiscivel. No primeiro caso, a virtude impede ao homem exceder-se, fazendo-o obedecer & regra da razdo; e o dom, de modo mais excelente, tornando-o totalmente livre delas, por vontade divina. E por isso, a segunda bem-aventuranga anuncia (Mt 5, 4): Bem-aventurados os mansos. No segundo caso, a virtude faz-nos usar moderadamente das paixdes do concupiscivel; € 0 dom leva-nos a rejeité-las totalmente se for necessério; e até mesmo sendo necessério, deixando-se voluntariamente romper em légrimas. E por isso a terceira bem-aventuranca_proclama: Bem- aventurados os que choram. Por seu lado, a vida ativa consiste precipuamente em darmos ao préximo 0 que Ihe devemos ou 0 com que espontaneamente o beneficiamios. No primeiro caso pela virtude da justi¢a damos-Ihe o devido; e, por seu lado, 0 dom nos leva também a fazé-lo com afeto mais abundante, praticando, levados por ardente desejo, os atos de justica, assim como quem tem fome e sede deseja ardentemente, a comida e a bebida. € por isso a quarta bem-aventuranca proclama: Bem-aventurados os que tém fome e sede de justica. Quanto aos dons espontaneos, a virtude da liberalidade nos aperfeigoa para darmos a quem a azo nos manda fazé-la, p. ex., a0s amigos ou a outros que nos so chegados; mas o dom, pela reveréncia para com Deus s6 considera a necessidade nos casos em que so preferiveis os beneficios gratuitos. Donde o dizer Lucas (14, 12): Quando deres algum jantar ou alguma ceia, no chames nem teus amigos, nem teus irmaos, etc.; mas convida os pobres, os aleljados etc.; o que é propriamente ter mmisericérdia. E por isso a quinta bem-aventuranca proclama: Bem-aventurados os misericordiosos. Por fim a vida contemplativa ou constitui a prépria beatitude final ou é dela uma incoacao; e por isso, na enumeracao das bem-aventurangas, ndo € considerada como mérito, mas como prémio. Mas séo considerados méritos os efeitos da vida ativa, que dispdem bem o homem para a contemplativa. Ora, no atinente as virtudes e aos dons, que aperfeigoam 0 homem em si mesmo, os efeitos da vida ativa consistem na pureza do cora¢So, i. ¢, em 0 corago do homem no andar inquinado de paixdes. E por isso a sexta beatitude prociama:Bem-aventurados 0s limpos de cora¢ao. No atinente porém as virtudes e aos dons, que aperfeicoam o homem nas suas relagdes com o préximo, o efeito da vida ativa é a paz, conforme aquilo de Isaias (32, 17): € a paz seré a obra da justica. E por isso a sétima bem-aventuranga promete: Bem-aventurados os pacificos. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Os atos dos dons pertencentes a vida ativa manifestam- se nos préprios méritos; e os dos dons pertinentes a vida contemplativa, nos prémios, pela razao ja dita. Ora, ver a Deus corresponde ao dom do intelecto; e conformar-se com Deus como por uma filiagdo adotiva, ao dom da sabedoria. RESPOSTA A SEGUNDA. — No concernente & vida ativa o conhecimento nao é necessério, em si mesmo, mas em vista da agdo, como também, diz 0 Filésofo. € como a beatitude implica o que é ultimo, entre as. bem-aventurancas ndo se contam os atos elicitos provenientes dos dons dirigentes a vida ativa; assim, aconselhar é ato de conselho e julgar, de ciéncia. Mas se Ihes atribuem os atos operativos, que eles dirigem; assim, a ciéncia, o chorer, e ao conselho, o compadecer-se. RESPOSTA A TERCEIRA. — Duas coisas podem se considerar na atribuico das bem-aventurangas aos dons. — A primeira & a conformidade da matéria. € a esta luz, todas as cinco primeiras bem- aventurancas podem atribuir-se & ciéncia e ao conselho como dirigentes; mas se incluem entre os dons executives. E assim, a fome @ a sede da justica, e mesmo a misericérdia, concernem a piedade, que aperfeigoam 0 homem nas suas relagdes para com os outros; a mansiddo, porém, a fortaleza, conforme ‘Ambrésio, dizendo que é préprio da fortaleza vencer a ira e coibir a indignagdo, pois a fortaleza se exerce sobre as paixdes do irascivel. Por seu lado, a pobreza e as lagrimas concernem ao dom do temor, pelo qual 0 homem se afasta da concupiscéncia e dos prazeres do mundo. —A segunda coisa a considerar so os motivos das bem-aventurangas. E, a esta luz so diversas as atribuigdes que Ihes devemos fazer. Assim, precipuamente, & mansidio move a reveréncia para com Deus, relative 8 piedade. As légrimas, move principalmente a ciéncia, que leva o homem a conhecer os seus defeitos e 05 das coisas mundanas, conforme aquilo da Escritura (Ecle 1, 18): 0 que acrescenta a ciéncia também acrescenta o trabalho. A ter fore das obras da justica move principalmente a fortaleza de alma; e por fim, a ter misericérdia, move precipuamente o conselho de Deus, conforme aquilo da Escritura (Dn 4, 24): segue, 6 rei, o conselho que te dou, e rime os teus pecados com esmolas, e as tuas iniqiidades com obras de misericérdia para os pobres. € este modo de atribuico segue Agostinho. RESPOSTA A QUARTA. — £ necessério admitir que todas as bem-aventurancas constantes da Escritura se reduzem as da enumeraco vertente, quanto aos méritos ou quanto aos prémios; pois, necessariamente, todas hio-de pertencer, de algum modo, a vida ativa ou & contemplativa. Por onde o lugar — Bem-aventurado o homem a quem Deus corrige — pertence a bem-aventuranca das légrimas; 0 outro — Bem-aventurado o homem que achou a sabedoria — ao prémio da sétima bem-aventuranca. E ‘o mesmo se poderd dizer de outros que se possam aduazir. RESPOSTA A QUINTA. —A citava bem-aventuranca & uma confirmagao e manifestacao de todas as precedentes. Pois, quem esta firmado na pobreza do espirito e na mansiddo e nas demais bem- aventurancas, néo se afasta, por isso mesmo, desses bens por nenhuma perseguiao. Por outro, a oltava bem-aventuranca concerne, de certo modo, as sete precedentes. RESPOSTA A SEXTA. — Lucas narra que 0 sermao do Senhor foi feito as turbas. Por isso enumera as bem-aventurancas conforme a capacidade delas, que s6 conheciam a felicidade voluptuosa, temporal e terrena. Por onde, pelas quatro bem-aventurangas, 0 Senhor exclui as quatro coisas incluidas na felicidade de que acabamos de falar. — E destas quatro, a primeira é a abundancia dos bens exteriores excluida pelo dito: Bem-aventurados os pobres, etc. — A segunda é 0 bem estar corpéreo, no que respeita a comida, a bebida e coisas semelhantes. E isto fica excluido pela segunda bem- aventuranga. Bem-aventurados os que tem fome. —A terceira é 0 bem estar do homem quanto aos prazeres do coragéo; 0 que fica excluido pela terceira bem-aventuranca: Bem-aventurados os que choram.—A quarta é 0 favorecimento externo dos homens, excluido pela quarta bem- aventuranga: Bem-aventurados sereis quando os homens vos aborrecerem. £ como diz Ambrésio, a pobreza pertence temperanca, que no busca as seduges; a fome, a justica, porque quem tem fome se compadece e, compadecendo-se, torna-se liberal; as lagrimas, as coisas pereciveis; sofrer 0 ddio dos homens, a fortaleza. prudéncia, da qual é proprio chorar Art. 4 — Se os prémios das bem-aventurangas esto convenientemente enumerados. {Ill Sent., dis. XXXIV, q. 1, a. 4). © quarto discute-se assim. — Parece que os prémios das bem-aventurangas esto inconvenientemente enumerados. 1. —Pois, 0 reino dos céus, que é a vida eterna, contém todos os bens. Logo, ndo era preciso estabelecer outros prémios além deles. 2. Demais. — O reino dos céus é posto como prémio pela primeira e pela oitava bem-aventurancas. Logo, por igual razao, devia sé-lo por todas. 3. Demais. — As bem-aventurangas procedem por ordem ascendente, como diz Agostinho. Ora, os prémios procedem por ordem descendente; assim, a posse da terra é menos que 0 reino dos céus. Logo, esses prémios so enumerados inconvenientemente. Mas, em contraria, é a autoridade do Senhor mesmo, que é quem propée esses prémios. SOLUGAO. — Os prémios em questo esto convenientissimamente assinalados, considerada a condigao das bem-aventurancas relativamente as trés supra-assinaladas. Pols, as trés primeiras bem-aventurangas se fundam no afastamento do em que consiste a felicidade voluptuosa, que nds desejamos naturalmente mas, colocando-a nao em Deus, onde deveriamos colocé- la, Seno nos bens temporais, e caducos. E por isso os prémios das trés primeiras bem-aventurancas s80 relativos ao que muitos buscam na felicidade terrena. — Demais disso, os homens também buscam a exceléncia e a abundancia dos bens exteriores, i. é, das riquezas e das honras. Ora, tudo isso compreende o reino dos céus, onde o homem consegue a exceléncia e a abundancia dos bens, em Deus. E por isso 0 reino dos céus 0 Senhor tornou a prometé-lo aos pobres de espirito. — Alem disso, os homens duros e crugis buscam a seguranca prépria destruindo os inimigos pelas lutas e guerras. Por isso, 0 Senhor prometeu ainda aos pacificos a segura e quieta posse da terra dos vivos, por onde se exprime a solidez dos bens eternos. —Por fim, os homens buscam, na concupiscéncia e nos prazeres do mundo, consolacdo aos trabalhos da vida presente. € por isso 0 Senhor prometeu ainda o consolo da vida aos que choram Em seguida, as duas outras bem-aventurancas concernem as obras da felicidade ativa, que sao as das. virtudes que nos pdem em relagio com o préximo, de cujas obras muitos se retraem pelo amor desordenado dos préprios bens. E por isso 0 Senhor atribui a essas bem-aventurangas aqueles prémios (como bens) por causa dos quais os homens delas se afastam. — Também, muitos abandonam a pratica da justica, ndo s6 no pagando 0 devido, mas até apoderando-se do alheio, para se enriquecerem de bens temporais. Por isso, o Senhor prometeu a saciedade aos que tém fome de justiga. — Também muitos abandonam a prética das obras de misericérdia, para nao se imiscuirem com as misérias alheias. Por isso, o Senhor prometeu misericérdia aos misericordiosos, que os livrard de toda miséria. Por fim, as duas dltimas bem-aventurancas concernem a felicidade ou beatitude contemplativa. E por isso 0s prémios se conferem conforme a conveniéncia das disposigdes incluldas no mérito. — Assim, a pureza dos olhos dispSe a visdo clara por onde, aos puros de coracSo é prometida a viséo de Deus. — Por outro lado, constituir a paz, em si mesmo ou entre os outros, manifesta que o homem ¢ imitador do Deus da unido e da paz. E por isso, como prémio, ihe é dada a gléria da filiacdo divina, consistente na perfeita unio com Deus, pela sabedoria consumada. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBIECAO. — Como Criséstomo diz, todos os prémios em questdo constituem um sé na realidade—a felicidade eterna, que a inteligéncia humana néo pode compreender. E por isso era necessario, pelos diversos bens que conhecemos, se dissesse a quem se faria a distribuicao dos prémios; observada a relac3o com os méritos, RESPOSTA A SEGUNDA. — Assim como a citava bem-aventuranca é quase 0 fundamento de todas, assim, devidos Ihe so 0s prémios de todas. Por onde, ocupa o primeiro lugar e se deve entender, por consequiéncia, que todos os prémios Ihe so atribuidos. Ou, segundo Ambrésio, 0 reino dos céus é prometido aos pobres de espirito, quanto a gléria da alma; e aos que sofreram persegui¢do no corpo, quanto & gloria deste, RESPOSTA A TERCEIRA, — Também os prémios diferem entre si por mais ou menos ricos. Assim, possuir a terra do reino dos céus é mais do que simplesmente té-la; pois temos muitas coisas que ndo possuimos firme e pacificamente. Consolar-se no reino € mais do que té-lo e possul-lo, pois muitas coisas nés as possuimos com dor. Ser saciado é mais que simplesmente consolar-se; pois a sociedade implica a abundancia da consolacdo. Mas a misericérdia ainda excede a sociedade, porque recebernos, por ela, mais do que merecemios ou podemos desejar. E, mais ainda é ver a Deus, assim como maior & quem, na corte, além de sentar-se 8 mesa do rei, vé-lhe a face. Por isso, na casa real, a maior dignidade 6a do filho do rei. Questao 70: Dos frutos do Espirito Santo. Em seguida devemos tratar dos frutos. E sobre esta questo quatro artigos se discutem: Art. 1 — Se os frutos do Espirito Santo, enumerados pelo Apéstolo em Galat. V, sao atos. (Ad Galat., cap. V, lect VI). O primeiro discute-se assim. — Parece que os frutos do Espirito Santo, enumerados pelo Apéstolo, nd siio atos. 1. — Pois, o que produz fruto ndo deve ser considerado como tal, porque entdo iriamos 20 infinito. Ora, hd um fruto proveniente dos nossos atos, conforme aquilo da Escritura (Sb 3, 15):0 fruto dos bons trabalhos & glorioso; e ainda (Jo 4, 36): 0 que sega recebe galardao e ajunta fruto para a vida eterna Logo, os nossos atos ndo podem, em si mesmos ser considerados frutos. 2. Demais. — Como diz Agostinho, gozamos como os objetos conhecidos, como os quais a propria vontade se compraz e neles descansa. Ora, a nossa vontade nao deve descansar nos nossos atos em si mesmos considerados. Logo, estes ndo devem ser considerados frutos. 3, Demais. — Entre os frutos do Espirito Santo so enumeradas pelo Apéstolo certas virtudes, a saber, a catidade, a mansidao, a f8 e a castidade. Ora, as virtudes nao so atos, mas habitos, como ja dissemos. Logo, os frutos nao sdo atos. Mas, em contrério, diz a Escritura (Mt 12, 33): pelo fruto que a érvore se conhece, i. 6, o homem, pelas suas obras, como 0 expdem os Santos Doutores. Logo, os atos humanos em si mesmos chama-se frutos. SOLUGAO. — O nome fruto foi transferido das coisas corpéreas para as espirituais. Ora, corporalmente falando, fruto é 0 produzido pela planta chegada ao seu pleno desenvolvimento, e traz em si uma certa suavidade. E fruto, neste sentido, mantém dupla relagdo: com a drvore produtora e com a pessoa que dela o colhe, Por onde, neste duplo sentido também esse nome pode ser espiritualmente considerado; Primeiro, denominando fruto do homem o que ele produz como se fosse uma arvore; e depois, assim chamando 0 que o homem colhe. Mas, nem tudo 0 que ele colhe pode ser considerado fruto, sendo sé 0 que ¢ ultimo e inclui em si a deleitagao. Pois, pode o homem possuir um campo ou uma drvore, que nao se consideram frutos, sendo 6 0 que ele entende colher deles, como resultado Ultimo. E neste sentido chama-se fruto do homem ao seu Ultimo fim, do qual ele deve fruir. Se porém considerarmos fruto do homem o que ele produz, ento frutos se consideram os seus atos, em si mesmos. Pois, a obra é um ato segundo de quem obra, e traz consigo o prazer, se mantiver conveniéncia com o seu autor. Se pois o ato proceder da faculdade racional do homem, seré chamado fruto da razio. Se porém proceder do homem por uma virtude mais alta, a do Espirito Santo, entéo, chamar-se-4 ao ato do homem fruto do Espirito Santo, procedente de uma quase semente divina, conforme aquilo da Escritura (1 Jo 3, 9):Todo o que é nascido de Deus ndo comete o pecado, porque a semente de Deus permanece nele. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — Como 0 fruto é, de certo modo, o que vem em ultimo lugar e 6 0 fim, nada impede haver fruto de outro fruto, assim como um fim pode se ordenar a outro. Assim pois as nossas obras, enquanto certos efeitos do Espirito Santo, que obra em nés, podem ser consideradas frutos; mas enquanto ordenadas ao fim da vida eterna, séo antes flores. Por isso, diz a Escritura (Ecle 24, 23): as minhas flores so frutos de honra e de honestidade. RESPOSTA A SEGUNDA. — De dois modos podemos entender que a vontade se deleita com um objeto, em si mesmo considerado. A expressdo — em si mesmo ou exprime a causa final, e entdo ninguém se deleita a ndo ser com o Ultimo fim; ou a causa formal, e entéo podemos nos deleitar em tudo o que & formalmente deleitavel. Assim, um enfermo se compraz com a satide em si mesma considerada, como fim; com um remédio suave, ndo como fim, mas como com o que tem sabor deleitavel; e com um remédio desagradavel sé por causa de outro fim e, de nenhum modo em si mesmo. — Por onde, devemos concluir que 0 homem deve se deleitar em Deus, em si mesmo, como Ultimo fim; e com os ates virtuosos, no como fins, mas por causa da honestidade que contém, agradavel aos virtuosos. Por isso Ambrésio diz, que os atos virtuosos se chamam frutos, porque com santa e pura deleitacdo confortam os que os praticam. RESPOSTA A TERCEIRA. — Os nomes das virtudes sio s vezes tomados, pelos atos das mesmas; assim, como diz Agostinho, a fé consiste em crer o que nao vés; e a caridade é o movimento da alma para amar a Deus e ao préximo. E deste modo sao aplicados os nomes das virtudes, na enumeracao dos frutos. Art, 2 — Se os frutos diferem das bemaventurangas. (Ad Galat, cap. V, lect. Vi In salam, cap. x!) segundo discute-se assim. — Parece que os frutos nao diferem das bem-aventurancas. 1, — As bem-aventurancas se atribuem aos dons, como jé se disse. Ora, os dons aperfeigoam o homem, movido pelo Espirito Santo. Logo, as préprias bem-aventurancas so frutos do Espirito Santo, 2. Demais. — 0 fruto da ida eterna esta para a bem-aventuranca futura, que é a da posse, assim como © da vida presente para as bem-aventurangas da vida atual, que so esperadas. Ora, o fruto da vida eterna é a mesma bem-aventuranga futura. Logo, os da vida presente séo as bem-aventurangas mesmas. 3. Demais. — € da esséncia do fruto ser algo de ultimo e deleitével. Ora, isto é também da esséncia da bem-aventuranca, como ja se disse. Logo, fruto e bem-aventuranca tém a mesma esséncia, e portanto no devem ser distintos entre si. Mas, em contrério. —Onde hé espécies diversas hd sujeitos diversos. Ora, os frutos e as bemaventurancas dividem-se em partes diversas, como a enumerago daqueles e destes claramente 0 mostra, Logo, os frutos diferem das bemaventurancas. SOLUGAO. — A nogo de bem-aventuranga tem compreensdo maior que a de fruto. Pois, para a deste basta que venha por Ultimo e seja deleitavel; ao passo que aquela exige, ulteriormente, a perfeicao e a exceléncia, Por onde, todas as bem-aventurancas podem ser consideradas frutos, mas néo inversamente. Assim, so frutos todas as obras virtuosas com que nos deleitamos; ao passo que sio bem-aventurangas s6 as obras perfeitas que também, em razéo mesma da sua perfei¢do, se atribuem mais aos dons que as virtudes, como jé se disse. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — A objecdo prova que as bem-aventurancas sio frutos, do porém que todos os frutos sejam bem-aventurangas. RESPOSTA A SEGUNDA. — 0 fruto da vida eterna é Ultimo e perfeito, absolutamente, e portanto em nada se distingue da futura bem-aventuranca. Os frutos da vida presente, porém, nao so tltimos e perfeitos, absolutamente; e portanto, nem todos os frutos séo bem-aventurancas. RESPOSTA A TERCEIRA. — A bem-aventuranca tem, por esséncia, algo mais que a esséncia do fruto, como se disse. Art. 3 — Se o Apéstolo enumera convenientemente os doze frutos. (lilSent,, dist. XXXIV, q. 1, a. 5; Ad Galat., cap. V. Lect VI. O terceiro discute-se assim. — Parece que o Apéstolo enumera inconvenientemente, os doze frutos. 1, — Pols, noutro lugar, diz que s6 hé um fruto da vida presente (Rm 6, 22): tendes o vosso fruto em santificago. E noutra parte se diz (Is 27, 9): todo este fruto se reduz a que seja tirado 0 seu pecado. Logo, nao se devem enumerar doze frutos. 2. Demais. — 0 fruto nasce da semente espiritual, como jé se disse. Ora, o Senhor enumera um triplice fruto da terra boa nascido da semente espiritual: centésimo, sexagésimo e trigésimo. Logo, no se devem enumerar doze frutos. 3. Demais. — 0 fruto, por esséncia, ver por ultimo e é deleitével. Ora, isto ndo se verifica em todos os frutos enumerados pelo Apéstolo; assim a paciéncia e a longanimidade supdem o que causa pena; e por outro lado, a 8 no ver por ultimo, mas antes por esséncia, o fundamento primeiro. Logo, a enumerago dos frutos, em questo peca por excesso. Mas, em contrério. — Parece que a enumeracao é insuficiente e deficiente. Pois, como ja se disse, todas. as bemaventurancas podem se chamar frutos. Ora, a enumeragio nao as abrange a todas, pois nada compreende pertinente ao ato da sabedoria e de muitas outras virtudes. Logo, essa enumeracio dos frutos é insuficiente. SOLUGAO. — A enumeracio dos doze frutos feita pelo Apéstolo ¢ correta e podem eles ser expressos pelos doze frutos de que fala a Escritura (Ap 22, 2): duma e de outra parte do rio, estava a drvore da vida, que dé doze frutos. Como porém se chama fruto ao procedente de algum principio, como de principio ou de raiz, a distingio dos frutos em questo deve-se fundar nos diversos modos por que procedem em nés os frutos do Espirito Santo. Ora, essa processao implica, primeiro, que 0 coracéo humano se ordene, em si mesmo; segundo, que se ordene para o que Ihe est ao lado; terceiro, para o que Ihe & inferior. Ora, 0 coragéo do homem fica, em si mesmo, bem disposto quando se comporta como deve tanto em relagio ao mal como ao bem. Ora, a primeira disposigdo da mente humana para o bem se opera pelo amor, a primeira e a raiz de todos os afetos, como jd dissemos. E por isso, 0 primeiro enumerado dos frutos do Espirito Santo é a caridade, pela qual ele se dé em prépria semelhanca, sendo Amor; donde o dizer 0 Apéstolo (Rm 5, 5): a caridade de Deus estd derramada em nossos corasées pelo Espirito Santo, que nos foi dado. —Ora, do amor de caridade resulta necessariamente a alegria, pois todo amante se alegra estando unido ao amado. Ora, a caridade tem sempre presente a Deus, a quem ama, segundo aquilo da Escritura (1 Jo 4, 16):Aquele que permanece na caridade permanece em Deus e Deus, nele. Logo, a conseqiiéncia da caridade ¢ a alegria. — Mas, a perfeicdo da alegria é a paz, de dois modos. Primeiro, quanto a tranaulla libertacdo das perturbagées exteriores; pois nao pode gozar perfeitamente do bem amado quem sofre perturbacdo exterior, no gozo do mesmo. E por isso 0 coragéo perfeitamente pacificado num gozo, por nada pode ser molestado, pois considera tudo o mais como quase nao existente; por onde, diz a Escritura (SI 118, 165): Gozam minha paz os que amam a tua lei, e nao hd para ele tropeco, i. é, por ndo serem perturbados pelas causas exteriores, a ponto de ndo gozarem de Deus. Segundo, quanto & satisfacdo do desejo volivel, pois no gozamos suficientemente quando nao nos satisfaz 0 objeto do nosso gozo. Ora, ambos esses casos implicam a paz, de modo que no sejamos perturbados pelas causas externas e descansemos 0s nossos desejos num s6 objeto. Por onde, em terceiro lugar é enumerada a paz, depois da caridade e da alegria. — Por outro lado, 0 coracdo se comporta como deve em relagio a0 mal, de dois modos. Nao se perturbando com os males eminentes, por meio da paciéncia. — Segundo, nao se perturbando com a dilagdo dos bens, por meio dalonganimidade; pois 0 estar privado do bem implica o mal, como se disse. Em seguida, quanto ao que esta ao nosso lado, i. é, quanto 20 préximo, nosso coracao se dispde bem, pelabondade, no atinente a vontade de bem fazer. — Segundo, pela benignidade, no que respeita & execuco da beneficéncia; pois, chamam-se benignos aqueles que a bondade ignea do amor faz arder no beneficiar ao préximo. — Terceiro, quanto a tolerar com equanimidade os males que o atingem, por meio da mansidéio, que colbe a ira. — Quarto, no s6 no fazendo mal ao préximo, pela ira, mas nem pela fraude ou pelo dolo. € isto 0 conseguimos pela fé, tomada em sentido de fidelidade; mas considerada como crenga em Deus, ela nos ordena ao que nos é superior, fazendo-nos sujeitar o intelecto a Deus, ¢ por conseqiléncia tudo o que possul Enfim, em relaco ao que nos ¢ inferior bem nos dispomos: primeiro, quanto aos atos externos, pelamodéstia, observando o comedimento em tudo 0 que dizemos e fazemos.—Quanto & concupiscéncia interna, pela continéncia e pela castidade, distinguindo-se uma da outra, porque esta nos priva do ilcito e aquela, do licito; quer, porque o continente sofre a concupiscéncia sem ser por ela vencida, a0 paso que 0 casto nem a sofre nem é por ela vencido. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJEGAO. — A santificacdo se opera por todas as virtudes que ‘também purificam os pecados. Por isso os lugares aduzidos nomeiam o fruto na sua unidade genérica; Mas ele se divide em muitas espécies, e isso faz considerarmos muitos frutos. RESPOSTA A SEGUNDA. — Os frutos centésimo, sexagésimo e trigésimo no se diversiicam pelas diversas espécies de atos virtuosos, mas pelos diversos graus de perfeicdo, mesmo de uma virtude. Assim se diz que a continéncia conjugal esta expressa no fruto trigésimo; a da viuvez, no sexagésimo; e a virginal, no centésimo. € ainda de outros modos, 0s Santos Doutores distinguem trés frutos evangélicos relativos aos trés graus das virtudes; sendo esses trés graus relativos a perfeico de todas as coisas, que se funda no principio, no meio e no fim. REPOSTA A TERCEIRA.— O mesmo nao se perturbar nas tristezas implica 0 prazer. E a fé, mesmo considerada como fundamento, é algo de Ultimo e deleitavel, por incluir a certeza. Por isso a Glosa expde: A fe. é, acerteza do invisivel RESPOSTA A QUARTA. — Como diz Agostinho, o Apéstolo, no lugar aduzido no quis, ensinar quais so as obras da carne ou os frutos do Espirito Santo, seno mostrar em que género aquelas devem ser evitadas e estes, buscados. Por onde mais ou menos frutos podiam ter sido enumerados. E contudo, todos os atos dos dons e das virtudes podem, com certa conveniéncia, ser reduzidos aos enumerados, enquanto todas as virtudes e dons ho de, necessariamente, ordenar 0 coracdo de algum dos modos preditos. Assim, os atos da sabedoria e de qualquer dos dons, que ordenam para o bem se reduzem 3 caridade, a alegria e @ paz. Mas 0 Apéstolo preferiu esta enumeracéo & outra, por implicar 0 que ela abrange a fruico dos bens ou a quietacdo dos males, o que est incluido na esséncia do fruto. Art. 4 — Se os frutos do Espirito Santo contrariam as obras da carne, que © Apéstolo enumera. (Ad. Galat., cap. V. Lect VI). O quarto discute-se assim. — Parece que os frutos do Espirito Santo no contrariam as obras da carne, que 0 Apéstolo enumera. 1. — Pois, os contrérios pertencem ao mesmo género. Ora, as obras da carne no se chamam frutos. Logo, 0s frutos do Espirito Santo ndo as contrariam. 2. Demais. — A unidade ¢ contraria a unidade. Ora, o Apdstolo enumera mais obras da carne que frutos do Espirito Santo. Logo, os frutos do Espirito e as obras da carne nao se contrariam. 3. Demais. — Entre os frutos do Espirito Santo enumera-se em primeiro lugar a caridade, a alegria e a paz, a que ndo correspondem as obras da carne enumeradas em primeiro lugar, a saber, a fornicacéo, a imundicia e a impudicicia. Logo, os frutos do Espirito Santo no contrariam as obras da carne. Mas, em contrdrio, 0 Apéstolo diz no mesmo lugar (G15, 17): a carne deseja contra 0 espirito e o espirito contra a carne. SOLUCAO. — As obras da came € 0s frutos do Espirito Santo podem ser considerados em dois sentidos. — Primeiro, de um modo geral, e ento os frutos do Espirito Santo so contrérios as obras da carne. Pols, 0 Espirito Santo move o coraggo humano ao que ¢ racional, ou antes, supra-racional; ao passo que © apetite da carne que é sensitivo, arrasta para os bens sensiveis, inferiores ao homem. Por onde, assim como os movimentos para cima e para baixo so contrérios, na ordem da natureza, assim, nas obras humanas, as obras da carne so contrérias aos frutos do Espirito, De outro modo, podemos considerar os frutos enumerados e as obras da carne, em particular. € assim, nao € necessario que cada um daqueles se contraponha a cada uma destas; pois, como ja se disse, 0 Apéstolo nao pretende enumerar todas as obras espirituais nem todas as carnais. — Contudo, fazendo uma certa adaptaco, Agostinho contrapée a cada obra, cada fruto. Assim, a fornicacSo, que é o amor pela satisfaco da sensualidade fora do legitimo conibio, opde-se a caridade pela qual a alma se une com Deus, na qual também consiste a verdadeira castidade. As imundicias que séo perturbagées oriundas da fornicacdo, opde-se a alegria da tranqiilidade. A servidao dos idolos, que faz guerra contra © Evangelho de Deus, opde-se & paz. Aos veneficios, inimizades e contengdes, animosidades, emulagoes e dissencdes opdem-se: a longanimidade, para suportar os males dos homens entre os quais vivemos; a benignidade, para curé-los; a bondade, para perdod-los. As heresias se ope a fé; 8 inveja, a mansidao; & embriaguez e & intemperanca no comer, a continéncia. DONDE A RESPOSTA A PRIMEIRA OBJECAO. — O procedente da drvore, contra a natureza da mesma, nao se Ihe considera fruto, mas corrupgio. Ora, como as obras virtuosas so conaturais, ¢ as viciosas, contrérias 8 azo, as primeiras se chamam frutos, e ndo as segundas. RESPOSTA A TERCEIRA. — O bem s6 existe de um modo, e 0 mal de muitos, como diz Dionisio. Por isso, a. uma mesma virtude se opdem muitos vicios; ndo sendo pois, de admirar se se enumeram mais obras. da carne do que frutos do Espirito Santo. RESPOSTA A QUARTA. — Resulta clara do que foi dito.

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