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E - Paulo Pontes, A Arte Das Coisas Sabidas
E - Paulo Pontes, A Arte Das Coisas Sabidas
Paulo Vieira
Paulo Vieira
Paulo Pontes
A Arte das Coisas Sabidas
Estudos
ISBN:978-65-00-10425-7
3
ÍNDICE
PRIMEIRA PARTE 11
RODÍZIO OU O EXERCÍCIO DA PALAVRA 11
SEGUNDA PARTE 74
PARAÍ-BÊ-A-BÁ OU A LEITURA DE UM DESTINO 74
TERCEIRA PARTE 121
A TELEVISÃO OU A MASSA COMO MEIO 121
QUARTA PARTE 194
TEATRO OU AS COISAS SABIDAS 194
O Desfecho da Festa 360
Bibliografia 377
4
Este trabalho só foi possível graças a algumas ajudas valiosas, às quais
expressamos nossos agradecimentos:
A Jussara, por tudo que acrescentou e por tudo que lhe subtraí nos longos
meses de nossa solidão.
5
Apresentação
6
projeto nacional e popular, no qual, partindo-se de uma ideia de
povo e sua cultura, tenta-se repensar um país e sua história.
Foi sua geração que viu a vitória das forças conservado-
ras em 1964, num momento que parecia - ao menos para eles -
que o país caminhava para um salto qualitativo em termos soci-
ais; foi ela que arcou com o ônus da derrota das forças popula-
res; que viu os seus projetos ruírem como cartas de um jogo tra-
paceado; foi ela que enfrentou as forças repressivas, e desespe-
rou-se nos anos duros do regime autoritário.
Foi sua geração, enfim, que tentou entender nosso país.
Mas, para entender é preciso raciocinar. Daí porque a
cena cede lugar à razão. Daí porque grupos como o Arena, como
o Opinião, formularem projetos nos quais o palco repensaria a
história política brasileira.
Teatro ou pedagogia? Espetáculo ou sociologia? A cena,
como lugar das coisas sabidas, ou como escura aventura sobre o
insólito? Sobre uma ou outra coisa construiu-se a cena brasileira
nos anos difíceis da repressão.
A formação profissional de Paulo Pontes era de comuni-
cador. Dominava a linguagem da comunicação de massa e, por
isso, entendia que o público gosta do que conhece.
7
Paulo Pontes não concordava com um espetáculo cujo
resultado fosse um mergulho no imaginário, nas neuroses ou
fantasias do artista. O seu objetivo, como se fora um pedagogo,
era instruir; o seu resultado, como se fora cientista, era esclare-
cer; o seu meio, para isso, era falar sobre as coisas sabidas pelo
público, e transformá-las em espetáculo.
Um dia ele disse que é preciso ver a história como conti-
nuidade. E porque ele tinha entendimento da história como re-
sultante dos conflitos sociais, entendeu que o melhor espetáculo,
é o espetáculo; que o melhor teatro é o que atrai público; que o
melhor público é o que está no teatro. Política e estética mistu-
ravam-se em seu pensamento: com uma, ele apoiava o seu raci-
onalismo; com outra, pensava o teatro pelo gosto do público. As
coisas sabidas, mas retrabalhadas de modo que o saldo fosse po-
sitivo, para o teatro e para o público.
Somar, era esse o seu desejo; nunca perder a perspectiva,
era essa a sua visão. E nos momentos que o artista de teatro ce-
deu ao desespero e, impotente contra o regime institucionalizado
passou a agredir ao público - embalado por uma vaga ideia de
vanguarda - foi a sua voz, entre outras, que se fez ouvir: teatro
8
não pode prescindir de público. Apontou caminhos e cumpriu os
caminhos que apontou.
Falar de Paulo Pontes é uma maneira de falar de uma ge-
ração e de seu modo peculiar de pensar o teatro brasileiro; é fa-
lar de um tempo ainda tão próximo, mas que parece tão distante;
é fazer um esforço para, como sempre lutou Paulo Pontes, não
se perder a perspectiva da história.
O desenvolvimento deste trabalho parte de dois planos
fundamentais: o primeiro, a biografia de Paulo Pontes; o segun-
do, a história como pano de fundo, delineando um cenário onde
a pessoa de Paulo Pontes se posta em destaque. No cruzamento
da biografia com a história, encontraremos a obra de Paulo Pon-
tes, e aí nos deteremos, objetivando extrair dela todas as infor-
mações que digam respeito a ele e a seu pensamento sobre a his-
tória, a estética e o momento político em que o país vivia, reve-
lando assim, a unidade de sua obra, como também somando
num mesmo universo de significações, estética e ideologia,
como resultante da história.
Dois Pontos a ressaltar: nos prefácios que Paulo Pontes
escrevia apresentando a base teórica de cada obra, está contido o
seu pensamento. Todos os prefácios acompanham o estudo que
9
fizemos dos seus textos para teatro. São partes importantes para
a compreensão da obra e do problema geral em que cada uma
está situada.
Segundo: uma parte dos textos que apresentaremos não
está editada ou é de difícil acesso. Por isso, para que se possa
usufruir melhor a obra de Paulo Pontes, resolvemos transcrever
cada texto citado, inclusive para pôr ao critério do leitor textos
que nunca foram reunidos em estudo.
Por fim, Paulo Pontes escreveu muito em companhia de
outras pessoas. Por isso, para que a essência de seu pensamento
não se perdesse, limitamo-nos a apresentar apenas as obras que
escreveu individualmente, ou em companhia de uma única pes-
soa, em teatro e televisão.
10
PRIMEIRA PARTE
" O n d e c o-
meça a história de um povo?
Em que túmulos, em que
tumultos está ela oculta? O
que está exposto à luz do
sol, o que é subterrâneo?
Qual a verdade dos textos
didáticos? Qual o valor da
cultura acadêmica, universi-
tária, oficial? Qual a história
mal contada, perdida, obscu-
recida? Quem faz a
história?"
Marcos Faerman
11
1. Cena Aberta
12
ba, intrometido. Vê-se que o garoto não era bem visto. Foi
quando, por pura sacanagem juvenil, resolveram, um pouco
também para livrar-se daquele chato de galocha, metê-lo no
fogo: já que ele insistia tanto, concederam ao magricela a graça
de apresentar ao público o espetáculo que ora estreava. O moço,
decidido, atravessou a coxia e, no palco, fez a sua oração. O que
o pessoal do Teatro do Estudante da Paraíba não esperava era
que, dez minutos depois, a plateia aplaudisse o garoto desajeita-
do com tão grande entusiasmo que, eles próprios, antes descon-
fiados, fizessem fila nas coxias para abraçar aquele fenômeno de
magreza e intromissão.
Aquele fenômeno de magreza intromissão foi também
um fenômeno de capacidade de resistência, física e cultural de
alguém que, nascido literalmente pobre, soube enfrentar os desa-
fios de uma vida interioranamente medíocre e transformar a falta
de perspectiva num projeto de vida. Não é à toa que ele, Paulo
Pontes, considerava que um povo como o nosso, que faz da mi-
séria samba, seria um grande povo, se pudesse dispor de um
pouco de feijão no fundo do prato. Paulo Pontes, com o pouco
que tinha, soube semear em seu espírito o fruto de uma cultura
sólida, plena de um saber que ele captou no meio da gente hu-
13
milde: o entender a vida como um eterno exercício de sobrevi-
vência. Sem metafísica. Concreta. Dura como a realidade de al-
guém que não dispõe de outra coisa a não ser a sua capacidade
de trabalho para sobreviver. Difícil como a tarefa que se impôs
de instruir-se sem poder contar com ninguém.
Paulo Pontes, ao mesmo tempo em que lia a vida nos pa-
pos, nas rodas de calçadas, nas ruas, na poética determinista da
gente humilde, lia também o outro lado, o que estava escrito nos
livros guardados na biblioteca pública de João Pessoa, aquele
mundo mágico e distante, mágico e transcendente, como é o
mundo contido nas linhas de um livro.
Paulo Pontes, desde pequeno, era chegado à leitura do
que lhe caísse nas mãos. Talvez o corpo mignon, a saúde peque-
na, os pés tortos de sua infância, não o ajudassem suficiente
quando garoto, que até gostaria de provar a destreza com a bola,
a resistência de um corpo são que corre. Então, restavam-lhe os
livros, a leitura, o refúgio de quem é incapaz de enfrentar, no
músculo, o desafio da existência.
João Pontes, seu pai, no livro que escreveu biografando a
vida de Paulo Pontes, disse que Paulo, quando criança, era um
garoto triste, introvertido, um tanto desligado do mundo e, às
14
vezes, até esquecido; mas, quando adolescente, passou a ser ex-
trovertido, comunicativo, adquiriu inclusive uma enorme capa-
cidade de relacionamento social1. Isto parece absolutamente
verdadeiro, se comparado com o depoimento de pessoas que
conviveram com Paulo Pontes quando adolescente e quando
adulto.
Estas pequenas coisas parecem não significar quando se
trata de estudar um autor. Mas a obra de um homem é como o
seu caráter, que se constrói pela acumulação dos acidentes de
percurso. Os detalhes se somam num conjunto e vão determinar
o perfil do autor e o de sua obra.
Paulo Pontes, em criança, era tímido. Sobre os pés tortos
via o mundo pela moldura de uma janela, e o quadro que via era
a paisagem da pobreza sobre a Serra da Borborema, no interior
da Paraíba, na cidade de Campina Grande, onde nascera, no dia
8 de novembro de 1940. Filho de João Pontes Barbosa, soldado
da então Força Policial da Paraíba, e de Laís Carvalho de Ho-
landa, enfermeira. Por força de necessidade, no ano de 1941/2, a
família transferiu-se para a cidade de Mamanguape, na Paraíba
15
e, posteriormente, foi morar em João Pessoa onde Paulo Pontes
cresceu e descobriu o mundo. O mundo real, vivido nas ruas da
capital, e o mundo virtual, vivido sobre as tábuas do palco do
Santa Roza. Antes, a família morara um tempo na cidade de Rio
Tinto, próxima a Mamanguape, onde o pai conseguira emprego
para si e sua mulher, no hospital da única fábrica existente no
lugar. João Pontes como enfermeiro, desempenhando serviço
externo. Dona Laís, na sala de partos2.
Paulo Pontes já residindo em João Pessoa, ainda peque-
no, sofrera a primeira intervenção cirúrgica de sua vida. Nos
pés. O médico, Dr. Napoleão Laureano, pelo que conta seu pai,
em vista da pobreza da família, deixou de cobrar os honorários
referentes a operação. Paulo Pontes estava livre dos pés tortos,
embora com um pequeno defeito no caminhar3.
Jório Machado, professor da Universidade Federal da
Paraíba, foi amigo de copo e mesa de Paulo Pontes. Jório era
também proprietário do semanário de oposição na Paraíba, o
jornal O Momento. Quando Paulo Pontes morreu, Jório dedicou
16
um número especial do seu jornal à memória do amigo desapa-
recido. No artigo que escreveu para esse número, ele conta
como Paulo virou notícia de jornal aos onze anos de idade. Se-
gundo ele, Paulo, já desde os nove anos, leitor de "grossos vo-
lumes" na Biblioteca do Estado, encontrou num jornal que apa-
nhou entre papéis velhos na rua da Areia, a notícia da campanha
levantada pelo Dr. Napoleão Laureano contra o câncer, sendo ele
próprio, Dr. Napoleão Laureano, vítima da doença, e como tal,
conclamava o povo para um combate sistemático ao câncer.
Paulo Pontes, ao ler a notícia, comovido pela luta de um homem
condenado e que o livrou dos pés tortos, tomou do lápis e papel
e escreveu uma carta ao Diário Carioca exortando a população
para que integrasse a cruzada contra a doença empreendida pelo
médico paraibano4. Mas João Pontes diz que a ideia da carta
partiu dele, João Pontes5, que, naquele ano, por conta da sua
profissão, servia no Rio de Janeiro, enquanto a família permane-
cia em João Pessoa. Chamado às pressas à Paraíba por motivo
4 MACHADO, Jório. "Da rua da Areia a ribalta do Rio". João Pessoa: O Mo-
mento, 31.12.76.
17
de doença de seu outro filho, tivera a ideia de agradecer, publi-
camente, ao Dr. Napoleão Laureano, incentivando o filho a es-
crever a carta que seria publicada no jornal carioca, onde a en-
tregou. A carta teria sido publicada juntamente com duas fotos
de Paulo Pontes, antes e depois da operação. João Pontes diz que
a carta começava com a seguinte frase: "Dizem que sou uma cri-
ança inteligente..."
No ano de 1956, antes ou depois da proeza na estreia da
peça Beata Maria do Egito, não importa, João Pontes teria ma-
triculado Paulo no Colégio Diocesano de Patos, sertão da Paraí-
ba, na 3ª série ginasial, em regime de internato, juntamente com
Ipojuca, seu irmão. Eles não quiseram ficar. Em João Pessoa,
Paulo estudou como interno no Instituto Alice Azevedo, no gru-
po Thomaz Mindelo e no Colégio Solon de Lucena6.
Jório Machado afirma que Paulo, ainda garoto e dono de
um raciocínio ágil e de uma argumentação brilhante, circulava
entre os grupos teatrais da época, onde ia impondo a sua presen-
ça e a paixão pelo teatro. Foi, segundo Jório, sem saber precisar
a data, depois de 1956 que Paulo Pontes fez o seu único papel
18
como ator, numa peça de Hermilo Borba Filho, Apenas Uma
Cadeira Vazia7.
Mas o debate cultural na província, sobretudo para quem
tem ambições mais ousadas, logo se esgota. Jório diz que Paulo,
por volta dos vinte anos (1960), era dono de inegável maturida-
de intelectual, e, por causa disso, adotava um certo ceticismo
com relação aos fatos e a vida numa cidade pequena. João Pon-
tes diz que em 1959, separado da família e morando em Natal,
onde era 1º Sargento do 16º Regimento de Infantaria, recebeu a
visita de Paulo Pontes, que lhe pedia ajuda para morar no Rio de
Janeiro. Conta João Pontes que com enxoval modesto e pouco
dinheiro, Paulo embarcou quase a meia-noite no Aeroporto Par-
namirim, num avião da FAB, em direção ao Rio de Janeiro.
Mas, continua, num dia de 1962, Paulo apareceu em sua casa,
vindo do Rio, dizendo que a sua situação não era a desejada, e
que pretendia voltar ao Rio, "em futuro próximo"8.
A vida de um homem se constrói também por mitos.
19
O espaço que sobra entre os mitos, os fatos e a memória,
para a história, é um espaço de ficção, onde a arte atua refazen-
do o tempo perdido. Depois daquela noite de estreia da peça
montada pelo Teatro do Estudante, em que Paulo Pontes, garoto
de 16 anos de idade, ganhou a admiração dos atores, sobra um
espaço que se segue, e que, por falta de suficiente informação só
poderia ser preenchido pela ficção. Não é o caso. Mas, seguindo
os passos cronológicos de Paulo Pontes, em busca dos seus si-
nais, como um caçador decifrando as marcas da trilha, vamos
dar um salto de seis anos na sua história e encontrá-lo em 1962,
trabalhando na Rádio Tabajara da Paraíba, onde fazia locução,
escrevia e apresentava um programa que obtinha grande audiên-
cia no horário do meio-dia.
20
2. Rodízio
21
Pontes", o Última Hora reproduziu artigo de Paulo Pontes, no
qual ele não só se referia ao seu programa Rodízio, como ainda
falava da influência que recebera, quer dos radialistas que admi-
rava, quer dos autores que amava, deixando transparecer uma
eclética influência de autores, a descoberta das possibilidades do
texto, a mecânica da linguagem narrativa: "A minha formação
profissional é muito esquisita. A minha escola de teatro foi o rá-
dio. Eu via aqueles programas que se faziam aqui no Rio, numa
época muito criadora do rádio brasileiro, a ponto de terem in-
ventado programas de humorismo que eu não conheço em lugar
algum do mundo. Haroldo Barbosa, Max Nunes, Sérgio Porto,
Chico Anísio, Antônio Maria. Eu ouvia essa gente toda. Havia
personagens brasileiras, a favela, o subúrbio, o Nordeste, o cai-
pira, o interior de Minas, e com uma agilidade narrativa encan-
tadora. Eu era vidrado nesse troço e comecei a reproduzir a ex-
periência dessa gente com o pessoal lá na Paraíba. Ao mesmo
tempo eu lia muito Shakespeare, Bernard Shaw, Ibsen, Tchecov,
e me lembro que essa leitura e meu trabalho em rádio tinham
22
como centro um amor muito grande pelo jogo narrativo. Eu lia
Shakespeare dando berro a cada descoberta narrativa"10.
O Brasil é um país de muitos países, já foi dito isso tan-
tas vezes. E hoje, cada vez mais, a despeito do grande avanço
tecnológico que representou a televisão nas comunicações, o
Brasil tornou-se um país de dois países: o do sudeste, rico (ape-
sar dos pesares) e gerador de imagens, e o restante do país, po-
bre (sobretudo norte e nordeste) e receptor da imagem gerada no
sudeste. A televisão, e aqui não vai nenhum preconceito a priori,
destruiu a imagem que o Brasil poderia ter de si, e fez das areias
de Ipanema o espelho onde o "outro" país busca em vão a sua
imagem.
Em 1962, ainda não era assim. O rádio permitia, como
sempre permitiu, que uma emissora numa cidade produzisse
programas para aquela cidade. As rádios locais chegavam muitas
vezes ao ponto de produzirem suas rádio-novelas, como foi o
caso da Rádio Tabajara da Paraíba, em João Pessoa que, na dé-
cada de cinquenta, formou uma significativa geração de atores
que, por muitos anos, tocou para a frente a arte de fazer teatro.
dezembro de 1976.
23
Praticamente, sem outro meio de comunicação para ini-
bi-lo na concorrência, o rádio viveu no Brasil a sua época de
ouro, naquela década. Os cantores do rádio, na Rádio Nacional,
mobilizavam multidões de fãs para os programas de auditório. E
num país como o nosso, em que o analfabetismo é menos do que
uma fatalidade histórica e muito mais um projeto político das
classes dominantes, um país que por isso mesmo pouco podia (e
pode) ler jornais, num país assim, o rádio acabava por ser o
grande veículo de comunicação de massas, mais do que a televi-
são, ainda no seu início, mais do que a imprensa escrita, por
conta do óbvio analfabetismo.
Walter Benjamin, no artigo "Observações básicas sobre
uma radio-peça", afirma que antes do aparecimento do rádio
quase não se conheciam os meios de divulgação que fossem
propriamente populares ou correspondessem a finalidades de
educação popular11. Nem mesmo o teatro, que deve somar um
número razoável de pessoas num mesmo espaço, nem mesmo o
cinema, já tão popular em 1932, ano em que Walter Benjamin
escreveu o seu artigo, conseguiam concorrer em popularidade
24
com o rádio, uma engenhoca que, na sala da sua casa, girava-se
o botão e ele o punha em contato direto com o mundo. O rádio
veio para revolucionar a comunicação, e, consequentemente,
intermediar o saber popularizando o conhecimento. É Walter
Benjamin quem diz: "Existia o livro, existia a palestra, existia o
periódico: todos, no entanto, eram formas de comunicação que
não se distinguiam em nada daquelas através das quais a pesqui-
sa científica transmitia seus progressos para os especialistas. A
popularização se realizava, portanto, dentro das mesmas formas
que a apresentação científica, e por isso estava privada de origi-
nalidade metodológica. Bastava-lhe revestir o conteúdo de cer-
tas áreas do saber de uma forma mais ou menos atraente, talvez
também procurar elementos de motivação na experiência cotidi-
ana, no bom-senso das pessoas: porém, o saber que ela oferecia
era sempre de segunda mão. A popularização era uma técnica
subordinada, o que ficou comprovado pela sua avaliação públi-
ca"12.
O rádio, portanto, abriu caminho para a popularização do
conhecimento. Mas a divulgação do saber tinha as suas leis pró-
25
prias, diferentes em tudo das leis de transmissão de conhecimen-
to científico ou acadêmico. Era preciso descobrir essas leis de
popularização do rádio, muito mais abrangentes, mas também
muito mais intensas, segundo Walter Benjamin. Isso exigia a
reorganização do material comunicativo, do ponto de vista da
popularidade, já que a popularidade, no caso do rádio, orienta o
saber em direção ao público, mas também orienta o público em
direção ao saber.
Para Walter Benjamin, o rádio, antes de ser um instru-
mento de comunicação de massa, é instrumento de divulgação
do conhecimento humano. Sua função seria, antes de mais nada,
educativa.
Paulo Pontes, ainda muito jovem, tinha descoberto o po-
der comunicativo do rádio, e como homem essencialmente co-
municante que era, ouvia o rádio e ouvia os seus ídolos, buscan-
do apreender a especificidade de sua linguagem. Era no rádio,
como posteriormente seria no teatro e na televisão, um autodida-
ta.
Então, qual é a linguagem do rádio? A resposta a esta
pergunta pode trazer elementos que melhor esclareçam o poder
26
comunicativo do rádio e a linguagem que Paulo Pontes aprendeu
a desenvolver no início da sua vida profissional.
É preciso saber que o rádio busca o que há de mais hu-
manamente comum entre as pessoas. O fator determinante para
a comunicação através do rádio é, em primeiro lugar, a necessi-
dade das massas. Mas, apesar disso, nada autoriza a pensar-se
que o rádio seja instrumento de comunicação coletiva, a exem-
plo do cinema que transmite a mesma imagem para todas as pes-
soas que o assistem. O material comunicativo do rádio se com-
põe de som (ruído), de músicas e de palavras. Os ruídos provo-
cados pela sonoplastia, no caso das radio-peças, têm o objetivo
de fazer o ouvinte imaginar a imagem que ele não vê. Nesse sen-
tido, o rádio apela para a capacidade de imaginação do ouvinte,
estabelecendo com ele uma comunicação direta e individual.
Mas a força maior da comunicação através do rádio é a
palavra, que vai direto ao entendimento de quem escuta a voz do
locutor do outro lado, que lado?, o lado de lá. "A palavra é, em
si, a expressão mais imediata e primária do espírito em sua esfe-
ra consciente. É a ponte entre o espiritual e o material, entre o
sujeito do conhecimento, "eu", e o mundo que o circunda. Guia-
da pela vontade, é o estágio criativo prévio, que leva a força da
27
imaginação para as formas materiais de expressão". Quem es-
creveu isto foi Richard Kolb, na Alemanha, no ano de 1931, no
artigo intitulado "O desenvolvimento da peça radiofônica artísti-
ca a partir da essência do rádio"13. E mais: "A palavra - assim
como o ruído - só pode evocar a representação da realidade se
esta for bem conhecida pelo ouvinte por tê-la visto antes. Por
isso, a comicidade causada pela situação exclui-se a si mesma,
pois consiste, em geral, numa situação externa surpreendente,
isto é, inesperada, que quase sempre vai de encontro ao desenro-
lar normal da ação"14.
Paulo Pontes conheceu o rádio em seu melhor momento
no Brasil, e ouvia com admiração os programas de humor que se
fazia. Ouvia e, curioso, tentava apreender o mecanismo dessa
linguagem. Esse tipo de linguagem, segundo Richard Kolb, é,
sobretudo, a palavra que, saída de uma caixa receptora, adquire
um poder de convencimento tamanho, a ponto de, como aconte-
ceu em 1938, Orson Welles parar, e mais do que isso, pôr em
28
pânico a cidade de Nova York com a radiofonização de A Guer-
ra dos Mundos, de H. G. Welles. Palavra e convencimento. Pa-
lavra e realidade. Palavra e comédia. A palavra palavra é um dos
fundamentos básicos do comportamento artístico de Paulo Pon-
tes, sobretudo nos fins dos anos 60, quando ele, combatendo a
vanguarda de 68 e a sua estética agressiva, faz a defesa da pala-
vra, a palavra como antídoto contra o desespero pelo fechamen-
to de um regime político já em si duro.
E não deveria ser difícil para Paulo Pontes, garoto ainda,
a julgar-se pelo episódio com o grupo de Teatro do Estudante,
deixar-se encantar pelo rádio e pela possibilidade de, nele, usar a
sua linguagem, a palavra.
Aceitando a versão de seu pai, João Pontes15, Paulo Pon-
tes, em 1959, teria ido morar no Rio de Janeiro. Em 1962 estava
de volta à Paraíba. É outra vez Jório Machado16 quem diz que
em 1962 a Rádio Tabajara da Paraíba era dirigida por um grupo
de intelectuais e, por causa disso, faziam-se programas de alto
nível cultural e artístico. Paulo Pontes, então com 22 anos, vol-
29
tando do Rio de Janeiro, onde ouviu e curtiu os seus ídolos no
rádio, fora convidado para participar da equipe de criação da
Rádio Tabajara onde, como já foi dito, criou Rodízio, o progra-
ma que monopolizou de segunda a sábado o horário do meio-
dia.
Como era esse programa? Restou um texto que alguém17,
em João Pessoa, fez a gentileza de ceder-nos. Um texto, quando
se trata de rádio, não significa muita coisa porque, nesse caso, é
para ser ouvido. Mas esse é muito curioso, não apenas por for-
necer dados biográficos pelo próprio Paulo Pontes, como tam-
bém por antecipar (em termos) a linguagem teatral que ele mais
tarde desenvolverá.
Em Rodízio é possível perceber um texto inteligente,
embora nos pareça imaturo ainda, o que não é de estranhar-se
num autor iniciante, apesar de já prenunciar grande talento para
esse tipo de escrita, rápida e engraçada. Aqui, Paulo Pontes mis-
tura piadas autobiográficas, histórias populares, o seu ponto de
vista em relação ao rádio, ao jornalismo artesanal da província e,
ainda, a sua preocupação com os movimentos sociais.
30
O texto não tem o que se poderia chamar de "espinha
dorsal", ou seja, a evolução, encadeada, de uma ideia, de uma
personagem. A sua semelhança é de um sketch, no qual piada
lembra piada que se conta para os amigos em roda de bar. A
abertura do texto é uma variação em torno da palavra graça:
31
SPEAK - Como o programa é de graça, o autor se achou com o
direito de fazer autobiografia"18.
32
Um texto que joga com a ideologia subserviente da clas-
se média, com frases de efeito tornadas verdades dogmáticas,
que mal disfarçam o seu conteúdo conservador e, sub-repticia-
mente, incrustam no espírito do homem comum a ilusão, tornada
certeza, de que "tempo é dinheiro", de que "o trabalho engran-
dece o homem", de que "Deus ajuda a quem trabalha", enfim,
uma coleção de anexins da qual é rica a prosódia popular e, em
nível superestrutural, não passam de sofismas que legitimam,
em ideia, a preservação do status quo da classe dominante19.
Desenvolvendo o seu texto por entre esse emaranhado de
frases de efeito, Paulo Pontes vai brincando com essas frases,
conduzindo o ouvinte a pensar que, se a vida começa aos qua-
renta, então não vai começar nunca, porque as oportunidades
estão fechadas e, por isso mesmo, dificilmente alguém poderia
"vencer na vida". Todavia, não deixa de ser uma reflexão de um
jovem de 22 anos, buscando o seu espaço profissional. Mas um
anexim leva a outro, assim como um papo leva a outro:
Vale lembrar, sem querer vincular diretamente uma coisa à outra, que Artur
Azevedo tem uma peça, Amor por Anexins, em que a personagem, Isaías,
tem como mania falar por frases feitas.
33
"LOCUTOR - Mas os habitantes sabidos deste planeta - os que
constroem alegre e sensualmente a sua vitalidade, o seu bem-
estar, às custas da desgraça do próximo - fundaram outra escola
filosófica das mais atuantes nos dias de hoje, que só aparente-
mente contraria a primeira:
VOZ - (JOVEM) O mundo é dos vivos...
VOZ 2 - (GAIATO) E dos muitos vivos!"
34
filosóficas mencionadas. Quer ver uma coisa? Eu vou explicar
melhor. ô doutor, o que significa viver?
DOUTOR - Nosso organismo é uma máquina. Como tal, neces-
sita de combustível para funcionar. Os combustíveis do nosso
organismo são os alimentos: vitaminas, proteínas, sais minerais,
que podem ser encontrados no leite, ovos, carne e verdura...
LOCUTOR - Chega. O senhor, seu advogado. Para o senhor, o
que é que significa viver?
ADVOGADO – É pertencer a uma sociedade cujas leis garan-
tam igual padrão de dignidade humana a todos os seus membros.
LOCUTOR - Dra. Assistente Social, o que é que a senhora en-
tende por viver?
ASSISTENTE - No meu entender, é todo mundo ter uma casa,
com privadinha, água encanada e os filhinhos na escola...
LOCUTOR - Basta. Depois dessas três afirmativas - a do médi-
co, a do advogado e a da assistente social - quando nós quiser-
mos saber em que ramo trabalha um operário, por exemplo, de-
veremos fazer a seguinte pergunta:
VOZ - Escuta, velho, você morre de quê?"
35
Já tinha a base do artista engajado que ele era. Mas o tex-
to segue com piadas curtas, que levam de um assunto a outro
com a tranquilidade de quem conversa uma conversa à-toa. E
como esse é um texto "autobiográfico", Paulo Pontes, curiosa-
mente, conta a sua participação como ator na peça de Hermilo
Borba Filho, confirmando o que Jório Machado dissera no tópi-
co anterior:
36
TÉCNICA - TRANSIÇÃO.
LOCUTOR - Não precisa ser pitonisa para perceber que estava
encerrada a minha carreira de ator".
37
para ele calar a boca, senão os dois perderiam o emprego. Ao
que reza a moral da história: com fome todo homem vira fera.
Paulo Pontes, então, encerra o seu texto:
38
possível. Mas, para a intenção do nosso trabalho, o texto que
temos já nos serve, e muito.
Serve porque nos permite perceber elementos em germi-
nação que, posteriormente, marcarão a personalidade artística de
Paulo Pontes.
Primeiro elemento: o exercício da palavra. O rádio, vi-
mos atrás, tem na palavra a sua linguagem básica. O teatro enga-
jado de Paulo Pontes também. Quando Paulo Pontes, posterior-
mente, passa a defender a volta da palavra ao palco, ele estar
defendendo, mesmo que misturado a um projeto político, o seu
projeto estético, a sua linguagem que o rádio lhe ensinou a pro-
nunciar.
Segundo elemento: a construção do texto. Sem persona-
gem psicologicamente definido, sem trama ou trauma que en-
volva conflitos, mas com episódios curtos e anedóticos. Este as-
pecto formal seria o mesmo que o Grupo Opinião iria desenvol-
ver logo depois em alguns dos seus espetáculos.
Terceiro elemento: a fome como tema de sua obra para
teatro.
39
3. A Palavra que Gera
40
do revolucionário de alfabetização de adultos? Sem descer a de-
talhes, é preciso dizer que o Método buscava no alfabetizando,
em seu imaginário ou no imaginário de sua comunidade, a pala-
vra geradora. Ou seja, as palavras que estavam intimamente li-
gadas ao trabalho do alfabetizando, ao seu mundo, ao modo de
compreender o mundo, a sua linguagem para explicar o mundo.
A partir daí, o trabalho do alfabetizador seria o de estimular a
geração de ideias no sentido de que essas ideias pudessem inter-
ferir no mundo do alfabetizando, pelas suas próprias mãos, e
pudessem, então, conscientizá-lo da possibilidade concreta de
interferir no mundo, modificando-o. Em outras palavras, o edu-
cador não levava ao povo o seu discurso pronto e assimilado,
mas procurava no povo a construção do seu próprio discurso.
Paulo Pontes, por volta de 1962, trabalhava na CEPLAR
(Campanha de Educação Popular), em João Pessoa, onde, se-
gundo Marcus Vinicius, músico e amigo de Paulo Pontes desde
aquele tempo, ele era um dos líderes. A CEPLAR era em João
Pessoa uma reprodução do MCP de Pernambuco. A CEPLAR,
inclusive, a exemplo do MCP, era apoiada pelo governador Pe-
dro Gondim, e tinha os mesmos objetivos básicos do MCP. Mar-
cus Vinícius (em entrevista que nos foi concedida) relembrando
41
a CEPLAR, ressaltou a disponibilidade, a entrega dos jovens
artistas aos trabalhos, a qualquer dia, a qualquer hora; era só su-
bir no primeiro caminhão à disposição e dirigir-se à primeira
comunidade camponesa ou periférica que fosse preciso.
Paulo Pontes, locutor da Rádio Tabajara da Paraíba, era
um jovem ativo, participante, engajado em todo aquele frenesi
que parecia anunciar a aurora de um novo tempo.
Feita a primeira experiência do Método de Alfabetização
do professor Paulo Freire, em Recife, partiram, então, para expe-
riências mais amplas em Angicos e Mossoró, no Rio Grande do
Norte, e em João Pessoa com o pessoal da CEPLAR.
A partir desse momento, Paulo Pontes pode somar ao seu
trabalho em rádio, um outro, mesmo que de passagem, em edu-
cação popular. Ele pode apreender agora duas linguagens: a do
rádio, que organizava de modo que o seu discurso pudesse ser
comunicativo, e a linguagem de uma nova educação que era, por
sua vez, pensada de modo a que o outro fosse o comunicador.
E em tudo estava a preocupação com a palavra geradora,
que de alguma forma, ao ser enunciada, pudesse intervir na prá-
xis do mundo e fosse um instrumento que contribuísse para mo-
dificar a face desse mesmo mundo.
42
4. O Encontro com Vianinha
44
5. O Fio da História
45
inoperantes, tudo isso temperado com a conspiração nos quartéis
para a derrubada do Presidente João Goulart, identificado pelas
forças repressivas, senão como agente, ao menos como simpati-
zante do comunismo internacional.
Para as forças reacionárias que sempre governaram o
país, qualquer postura que não fosse canhestramente retrógrada,
seria imediatamente identificada como comunista. Era o que di-
ziam do Vice-Presidente João Goulart quando da renúncia do
Presidente Jânio Quadros em 25 da agosto de 1961. Para delícia
das forças reacionárias, João Goulart encontrava-se na China,
em visita oficial, quando Jânio Quadros 20 renunciou.
Da China, Jango articulava a sua volta ao país. Os milita-
res não o queriam como Presidente. O Congresso se rebelou
contra os militares e exigiu o cumprimento da norma constituci-
onal. Leonel Brizola, cunhado de João Goulart, preparou-se para
enfrentar o conflito com as forças armadas e, surpreendentemen-
te, recebeu o apoio do III Exército sediado em Porto Alegre. Es-
tava estabelecido o conflito. Os políticos, como de costume, ne-
gociaram com os militares a vigência da ordem constitucional e
47
da; depois, o Oficina e sua busca de uma estética existencial,
após o contato com Sartre (esses nasceram na década anterior).
Isso sem esquecer os CPCs que proliferaram dentro da União
Nacional dos Estudantes, nos quais se fazia de tudo um pouco:
teatro, cinema, poesia, sempre a partir do que eles consideravam
cultura popular. Além das diversas companhias de teatro que se
formaram com atores oriundos do TBC (embora estas não ofere-
cessem nada de inovador, no que diz respeito à linguagem tea-
tral).
Foi um período da história muito rico em inquietações de
toda ordem. A impressão que dá, lendo os depoimentos, é de
que, para os artistas engajados, vivia-se como o amanhecer de
uma nova história no país. As tarefas que eles se impunham e
realizavam, hoje, com a perspectiva da história, dão a sensação
de um trabalho monstruoso, em que uma enorme quantidade de
energia, de força, de juventude, somadas a uma generosa - e ge-
neralizada - utopia, aliavam-se no desejo de projetar um país
que, como eles, era também jovem e que podia ser generoso
com os seus habitantes. Para isso, seria preciso que o homem
ajudasse a natureza, ajudando a si, oferecendo ao outro infortu-
nado um pouco da sua cultura, um tanto do seu conhecimento.
48
Talvez por aí se possa compreender, sem desconsiderar a
causa político-ideológica, a luta que se travou até março de 1964
em prol de uma sociedade moderna, e dessa maneira, mais hu-
mana. Não se pode também alienar a crítica dos erros cometi-
dos. Mas erros, no calor da luta, são comuns. Além do mais, e
isto parece a constatação do óbvio, constrói-se a história com os
instrumentos disponíveis no seu momento. E eles foram, afinal,
usados.
O teatro engajado praticado pelo CPC foi um dos instru-
mentos usados pelos artistas presentes nessa história. E a trajetó-
ria de Paulo Pontes está, por semelhança, paralela à história do
CPC.
49
6. Uma outra republiqueta sul-americana
50
anos antes no Recife22. Todos, no fundo, tinham o mesmo obje-
tivo e trilhavam caminhos mais ou menos parecidos. Fora assim
com outros grupos, que assumiram outros nomes, mas que ti-
nham a mesma finalidade político-cultural, como o Movimento
de Educação de Base - MEB - organizado por um setor menos
ortodoxo da Igreja Católica; assim também fora com a campa-
nha "De pé no chão também se aprende a ler”, realizada pela
prefeitura de Natal. Todos esses organismos, quer tivessem o
apoio dos governos menos conservadores dos Estados, de um
setor mais politizado da Igreja Católica ou da União Nacional
dos Estudantes, todos, sem exceção, misturavam educadores,
estudantes e profissionais de diversas áreas com o objetivo co-
mum de alfabetizar, politizar e comunicar ao povo a sua cultura,
buscando transmitir ao outro a sua visão do mundo, ao outro que
era analfabeto, que era maioria, ao outro que era sem dúvida o
mais oprimido numa sociedade estreita, num país que trata a
massa assalariada como se fosse menos do que escrava, como se
fosse apenas mercadoria.
51
Enquanto os militares se organizavam e conspiravam,
apoiados por uma parcela expressiva da sociedade civil, os artis-
tas que fazem parte dessa história lutavam a sua luta, crentes que
contavam com o apoio da população para os seus projetos chei-
os de uma utopia que não tinha correspondência alguma com a
realidade que o país vivia. E a realidade é que a massa, ao con-
trário do que pensavam, não é revolucionária. A revolução tam-
bém exige uma cultura revolucionária. E esta só a tem quem
dispõe de tempo para adquiri-la. Não é o caso do povo.
Carlos Estevam Martins, primeiro presidente do CPC,
disse que o maior problema que enfrentavam, não era montar
espetáculos que levariam à massa (isto eles faziam com imensa
facilidade). O problema era encontrar "estruturas de conexão
entre o grosso da população e os grupos culturais politizados
que queriam sair fora dos circuitos elitistas"23. O problema que
enfrentavam era entrar em contato com o povo, encontrar qual a
linguagem do povo. Carlos Estevam Martins cita um exemplo
da tentativa de encontro entre o intelectual e o povo: "Uma vez,
fomos com a carreta para o Largo do Machado, estávamos fa-
3, p. 78.
52
zendo um espetáculo em um dos lados da praça, enquanto que
no outro havia um sanfoneiro e um sujeito tocando pandeiro.
Apesar de todo nosso equipamento de som e luz, o sanfoneiro e
o pandeirista juntavam mais gente do que nós"24. Como compre-
ender que um pandeiro atraísse a atenção do povo mais do que
um carro teatralmente aparelhado? O que é mais teatral, o que
resulta melhor na comunicação artística com o povo? O som tí-
mido do pandeiro ou o som potente dos amplificadores? Este,
talvez, fosse um problema para a estética. Mas o teatro do CPC
não estava interessado em estética. O seu interesse era a política
e de como, usando a arte como álibi, fazê-la instrumento da
transformação política que se desejava.
Enquanto não se adquiria a consciência da arte como
mediadora entre mundos opostos25, o CPC tocava o barco à sua
maneira, com os artistas escrevendo peças de teatro em cima de
uma notícia de jornal, por exemplo; apresentando o espetáculo
25 Ferreira Gullar afirmou que Vianinha (só para citar um expoente) compre-
endera (na fase Opinião) que o melhor teatro políZco Znha que ser, ao
mesmo tempo, o melhor teatro. - Apud Sérgio Kraselis. S. Paulo, revista Pro-
blemas nº 9, p. 18.
53
na primeira favela, na primeira esquina, no primeiro sindicato
que aparecesse. Acreditavam que o povo estaria ao lado deles, e
eles, por sua vez, ao lado do povo em marcha para a revolução
que viria. Não tinham consciência da gravidade do momento
que viviam e da dimensão da tragédia que estaria por acontecer
ao país. Carlos Alberto de Oliveira (Caó), que fora Vice-Presi-
dente da UNE no biênio 1962/63, afirmou que tinham eles mui-
tas ilusões quanto à sua própria força política naquele momento
de radicalidade: "imaginávamos que tínhamos muito mais força
do que realmente dispúnhamos /.../ À medida que não soubemos
estabelecer uma aliança firme e sólida com os liberais, nós per-
mitimos que as forças da direita assustassem os liberais e eles
passassem para a direita”26. Então, ele conta o que ouvira de Vi-
aninha, um dia, passados os idos de março de 64: "Eu, no CPC,
falava de operários, escrevia sobre os sentimentos, as aspirações
e valores dos operários e na realidade eu não conheci o
operário"27.
54
Eis, então, o núcleo do problema, o que talvez tenha im-
pedido que os artistas engajados na luta política avançassem na
descoberta da linguagem que intermediasse o universo do inte-
lectual e do operário. Ferreira Gullar, solicitado a fazer a sua
avaliação, falou do problema que impediu o encontro do artista
engajado com o seu objeto de trabalho: o fato de serem eles, do
CPC, artistas, estudantes e intelectuais jovens28. A juventude,
então, teria sido a pedra no meio do caminho.
Paulo Pontes, na Paraíba, realizava o seu trabalho de agi-
tador político na CEPLAR. Um dia, ele teria ido com uma equi-
pe de reportagem da rádio Tabajara fazer cobertura da morte de
um camponês, num desses intermináveis conflitos de terra.
Quando chegou ao lugar, um vilarejo próximo à capital, não
conseguiu resistir à sua indignação, subiu numa pedra próxima
ao corpo do camponês morto, e discursou ao povo, a favor dos
camponeses na luta pela terra, pela reforma agrária.
No outro lado do país, na história que vai continuar a de
Paulo Pontes, o CPC mantinha o seu ritmo de trabalho, agora
55
construindo um teatro dentro do prédio da UNE, na praia do Fla-
mengo, 132.
Nos bastidores do poder, o golpe se armava. Carlos La-
cerda no antigo Estado da Guanabara, juntamente com Maga-
lhães Pinto, no Estado de Minas Gerais, eram os governadores
que mais apoio davam a conspiração militar que dia-a-dia se
tornava mais aberta.
A classe média saía em multidão para rezar na rua, pe-
dindo a Deus que salvasse a Pátria. As esquerdas, concentradas
nos partidos, os intelectuais e estudantes no CPC, acreditavam
que a vitória da democracia estaria próxima, que uma vez unido,
o povo jamais seria vencido.
Segundo Deocélia Vianna, mãe do Vianinha, a inaugura-
ção do teatro da UNE estava marcada para o final do mês de
março de 1964. A festividade de inauguração duraria um mês,
com uma programação variada que iria desde a Noite do Samba,
organizada por Sérgio Cabral, passando pela Noite da Nova Mú-
sica Brasileira, organizada por Carlos Lyra e Sérgio Ricardo, até
56
a exibição de uma peça do próprio Vianinha, Os Azeredos mais
os Benevides29.
A única coisa que não estava programada era o golpe.
Na madrugada do dia 31 de março, as tropas de Minas
saem dos quartéis e marcham em direção ao Rio de Janeiro. Na-
quela madrugada o prédio da UNE foi metralhado. Nesse mo-
mento, começou a morrer o sonho de construir-se um país livre.
O depoimento do sociólogo Luís Werneck Vianna transpira o
clima que se viveu, de medo, de impotência, ante as armas que
atiravam numa fortaleza que, afinal, era de sonhos: "/.../ Mas,
certamente, depois da meia-noite foi que a UNE começou a ser
metralhada. A UNE cheia. Houve um momento de pânico. Mas,
pânico duro, porque nesse momento as pessoas viram inclusive
que a UNE estava desprotegida, que nós estávamos desprepara-
dos para reagir. Ninguém tinha arma. Algo que a gente vinha
acreditando há muito tempo, isto é, a capacidade de avanço e re-
sistência das forças democráticas e populares, não era verdadei-
ra. O que fazia com que esse pânico ainda se alastrasse mais.
Era como se você estivesse diante do desconhecido, do impon-
p. 165.
57
derável, do que você não compreende. A partir desse metralha-
mento, a UNE esvaziou-se bastante e, madrugada alta, já o dia
amanhecendo, Vianna, eu, Armando Costa e algumas pessoas,
saímos /.../ Pelo telefone (ao sogro, comandante da 3ª. Zona Aé-
rea), pela primeira vez, tive uma confirmação de que o que se
passava ali não era coisa comum ao nosso cotidiano, quando o
meu sogro me disse que só poderia mandar três pessoas para
guardar a UNE e que a situação estava muito complicada, que
estavam já sem controle da situação"30. O sogro em questão fa-
zia parte do dispositivo militar de Jango.
No dia seguinte, 1º de abril, a UNE foi invadida e incen-
diada. É o mesmo Luís Werneck Vianna quem continua o seu
depoimento: "/.../ Começou o quebra-quebra, o incêndio. As
pessoas que estavam lá dentro não estavam preparadas nem para
uma reação romântica de barricadas, nem para morrer lá dentro.
Isso não havia. E realmente não fazia o menor sentido imolar
dez pessoas por uma coisa que, do ponto de vista nacional, esta-
va absolutamente perdida. Isso mostrava o despreparo de todos
nós e de como não havia condições de termos um enfrentamento
58
com o país. Não tínhamos uma proposta efetiva para o país dos
anos 60. Isso ficou muito claro"31.
Mas o pior não fora o fato de descobrirem, na última
hora, a sua impotência diante do poder das armas. O pior, talvez,
foi descobrir que o povo aplaudia o golpe, que a cidade do Rio
de Janeiro virara uma festa; fora perceber que o golpe assumira
o papel de "Redentora" no imaginário popular. O golpe, afinal,
viria para livrar o povo da ameaça cruel dos comunistas, os que
bebiam o sangue das criancinhas. Passemos a palavra outra vez
ao sociólogo Luís Werneck Vianna: "/.../ Chego à UNE (no dia
seguinte, 1º de abril). Já muito pouca gente. A UNE vaiada pelas
pessoas do prédio ao lado. As pessoas jogavam coisas, vaiavam.
E todo esse sentimento nosso ainda se complicava porque fomos
percebendo que havia clima de festa, como se a cidade tivesse
sido libertada de um domínio, uma coisa assim que fez com que
a nossa impotência, a nossa sensação de não compreensão das
coisas ainda fosse agravada pelo isolamento político e moral,
que nós víamos que estávamos levantando"32.
59
Só para completar esta imagem de desolação, vamos pe-
dir o reforço do ator Carlos Vereza, ex-membro do CPC: "Aos
poucos foram chegando carros e mais carros em frente a UNE
com rapazes da então classe média da época, bronzeados, co-
mendo cachorro-quente com coca-cola e dizendo que os comu-
nistas haviam sido derrotados, que o Jango já havia fugido /.../ E
nós não sabíamos, ainda, que o movimento militar já era naquele
momento vitorioso"33.
Não houve resistência ao golpe. Em todo o país, o que
aconteceu foi a entrega do poder aos militares, o alívio do povo
que via nas ideias esquerdizantes um martírio. O grande erro das
esquerdas, parece-nos, fora o de acreditar que o povo está sem-
pre ao lado da liberdade, da justiça e da verdade, como se esses
termos não remetessem a conceitos extremamente subjetivos,
longe da compreensão do homem comum.
O fato estava consumado. O projeto esquerdizante, na-
quele momento, derrubado. Restava, então, a saída estratégica.
Carlos Vereza: "Saímos pelos fundos da UNE, e uma imagem
muito forte ficou na minha cabeça. Nós saímos pelo quintal, que
60
era ladeado por dois prédios e dos dois lados pessoas gritavam.
Enquanto um deles dizia: foge que eu quero ver, comunista; do
outro lado diziam: não foge não, menino, nós estamos do lado
de vocês /.../ E nós, enquanto víamos o prédio ser tomado, pu-
lamos o muro dos fundos e saímos numa tinturaria. Pegamos um
táxi, que deu a volta pelo Aterro, e em lágrimas, vimos o nosso
prédio pegando fogo - eu, Vianinha, João das Neves e acho que
Milani - e um verdadeiro piquenique da classe bem alimentada,
dos jovens rapazes da classe média que comemoravam entre ur-
ras o incêndio do CPC e da UNE"34.
Hélio Silva, no livro O Poder Militar, diz que o movi-
mento de 64 marcou o fim do papel tradicional dos militares na
política e o aparecimento de novos padrões. Até então, os milita-
res limitavam-se a derrubar presidentes, mas não ousavam as-
sumir o poder, por não confiarem em sua própria capacidade po-
lítica. Tinham até aí o papel de poder moderador. Diz-se que a
morte de Getúlio Vargas retardou por dez anos o golpe dado em
64. Hélio Silva cita uma palestra do general Castelo Branco em
19 de setembro de 1955, na Escola Superior de Guerra, quando
34 Idem, ibidem.
61
ele aconselhou que não se aceitasse a tese do golpe de Estado
como salvação política para o país (devido a incapacidade das
instituições políticas para resolver os problemas da Nação). Na-
quela ocasião, dizia o general: "As forças armadas não podem,
se são fiéis à sua tradição, fazer do Brasil uma outra republique-
ta sul-americana. Se nós adotarmos esse regime, entraremos nele
pela força, haveremos de mantê-lo pela força e sairemos dele
pela força"35.
No dia 1º de abril de 1964, o general Castelo Branco as-
sumia o poder apoiado pelas forças militares. O Brasil, assim,
continuava a ser uma simples republiqueta sul-americana.
62
7. As Intenções do Opinião
63
João das Neves afirma que Paulo Pontes, para sobrevi-
ver, teria conseguido emprego numa assessoria de Roberto
Campos. Não diz que tipo de assessoria seria esta37.
Mas daquela discussão que os ex-membros do CPC rea-
lizavam, numa tentativa de compreender o momento em que vi-
viam, começava a nascer o grupo Opinião. Armando Costa, jun-
tamente com Oduvaldo Vianna Filho e Paulo Pontes, escrevia o
show de onde sairia o nome do grupo.
O show Opinião estreou no dia 11 de dezembro de 1964,
no teatro do Super-Shopping Center da rua Siqueira Campos, em
Copacabana. Era uma realização conjunta do grupo Opinião e
do Teatro de Arena de São Paulo, com a direção de Augusto
Boal. Na verdade, o Teatro de Arena emprestava a firma para
que o Opinião pudesse, naquele momento, existir.
O grande problema que se colocava para aqueles artistas
era o de como continuar desenvolvendo o seu trabalho. Expulsos
do CPC, marginalizados no processo político, não lhes restava
outra saída senão reconsiderar suas críticas ao teatro empresari-
al. Concluíram que agora tanto fazia falar à classe média quanto
37 Idem, ibidem.
64
ao operariado, uma vez que o regime ditatorial fazia-os todos,
sem exceção, seus inimigos políticos.
Paulo Pontes, em entrevista à Associação Pró-Teatro Ti-
juca, falou desse período: "Era necessário abrir-se uma frente
ampla contra a onda de autoritarismo que existia". E mais adian-
te, na mesma entrevista: "O Opinião precisava encontrar uma
brecha de atuação. E descobriu. Achou, à medida que viu e for-
mulou uma política, onde entendia que a marginalização do pro-
cesso político tinha-se estendido a quase todos os setores da so-
ciedade brasileira. E ao mesmo tempo teve muita habilidade
para procurar seus próprios aliados na sociedade brasileira e na
categoria teatral, sem sectarizar ninguém"38.
Mas não mudou só a clientela do teatro. Mudou também
a sua estética. Agora, não se tratava de fazer proselitismo políti-
co. Mas uma outra preocupação se apresentava, a de que o teatro
deveria ter um certo acabamento estético, algo que o aproximas-
se mais de uma linguagem artística e lhe desse a feição de uma
obra de arte, diferentemente do que se fazia antes, quando o tea-
tro mais parecia tribuna de denúncia ou cartilha de consciência
65
política. Vianinha, em um dos seus muitos momentos de refle-
xão, disse numa entrevista em 1967: "Não é fácil passar de pan-
fletário a artista. Desde 1960 venho escrevendo, são 7 anos de
tentativa. Dentro disso tem cinco anos de sectarismo irascível
dentro do CPC e da UNE"39.
João Das Neves, falando sobre as principais ideias de-
senvolvidas pelo Opinião, disse: "Houve uma maior preocupa-
ção, em primeiro lugar, por um entendimento mais aprofundado
da cultura popular espontânea. Absorver, entendendo suas for-
mas não apenas estratificadoras, mas também o que há de revo-
lucionário nessa forma de cultura. Portanto, uma valorização a
nível de cultura. Em segundo lugar, uma preocupação muito
maior com o acabamento artístico do espetáculo. Quer dizer, o
espetáculo já não seria mais pretexto para veicular ideias políti-
cas, ao contrário, seria um fundamento em si. E as ideias políti-
cas seriam tanto mais eficazmente veiculadas quanto mais artis-
ticamente se realizasse o espetáculo. Em relação ao documento
66
do CPC, representa um giro de 180 graus. E o caminho do Opi-
nião é pautado por essas diretrizes"40.
Só assim se pode compreender melhor um show que mis-
turava três tendências radicalmente diferentes da música popular
brasileira: Nara Leão, ligada a Bossa Nova, trazia para o show
algo semelhante ao gosto da classe média do Rio de Janeiro,
com os seus temas românticos, a sua voz educada e uma certa
boemia bem comportada. Zé Keti era a voz do morro, enquanto
João do Vale completava o quadro, emprestando a sua voz áspe-
ra de retirante nordestino, os seus temas rurais, a poética doloro-
sa de uma gente semi-escravizada pela estrutura fundiária. Eram
estes os três componentes que, misturados e montados, forma-
ram a primeira versão do show Opinião. Pouco depois da sua
estreia, Nara Leão afasta-se, e em seu lugar, aparece Maria Be-
tânia, que a substitui com estrondoso sucesso.
"A música popular - dizia o texto de apresentação – é
tanto mais expressiva quanto mais tem uma opinião, quando se
alia ao povo na captação de novos sentimentos e valores neces-
sários para a evolução social; quando mantém vivas as tradições
67
de unidade e integração nacionais. A música popular não pode
ver o público como simples consumidor de música; ele é fonte e
razão de música"41.
As intenções do Opinião, em suma, eram de continuar,
em outro nível, agora mais abrangente, mais aprofundado, as
discussões sobre cultura popular, como forma de criar-se uma
adequada identidade dos oprimidos contra os seus recém insta-
lados opressores.
41 PONTES, Paulo & outros. Opinião. Rio de Janeiro: Edições do Val, 1965.
68
8. A volta ao lar
69
pesquisas formais, uma vez que nada garantia a vida do espetá-
culo, nem em sua fase de ensaio, nem durante as apresentações.
O poder da Censura tirava um espetáculo de cartaz por qualquer
motivo, ou por motivo nenhum.
Apesar disso, esse curto período do golpe até a sua insti-
tucionalização em 68, foi uma fase de grande inquietação para o
teatro brasileiro, que teve no Arena, Oficina e Opinião, a expres-
são mais vigorosa desse período. Esses três grupos foram res-
ponsáveis por espetáculos antológicos, em que a criatividade, a
força de vontade de realizar o seu trabalho e a recusa sistemática
em concordar com um regime embrutecedor, somavam-se para
um saldo estético qualitativo, a cada passo aprofundando a sua
diferença com o regime que, em consequência, também fechava
o cerco. O teatro, naquele momento que os partidos políticos
dissolvidos reduziam-se a duas siglas criadas pela ditadura, em
que alguns idealistas procuraram, na clandestinidade, lançar as
bases de uma guerrilha que pudesse desestabilizar o regime, o
teatro transformou-se num dos poucos canais que aglutinavam
os insatisfeitos, sobretudo os estudantes.
No espaço do teatro eram realizados debates, palestras,
cursos ou simplesmente concentrações políticas animadas por
70
uma massa estudantil crescente cada vez mais. Luiz Carlos Ma-
ciel relatou uma dessas reuniões, logo após a morte do estudante
Edson Luís no restaurante Calabouço, em 1968: "Logo na pri-
meira assembleia, realizada a partir de meia-noite do dia que o
estudante Edson Luís foi morto, no Teatro Opinião, o pau que-
brou. Os participantes dividiam-se, a grosso modo, em três gru-
pos principais: o pessoal do Partidão, que era muito organizado;
os chamados "representativos", artistas e intelectuais de renome,
sem compromissos ideológicos, contrários aos métodos do go-
verno; finalmente, os porra-loucas ou meninos de Marcuse,
como os outros os chamavam, isto é, a esquerda jovem e inde-
pendente que, disposta a levar a imaginação ao poder, ficava
sempre tumultuando tudo, com suas ideias e propostas desvaira-
das"43.
Em outros teatros também eram realizadas reuniões em-
baladas pelo mesmo calor e revolta contra o regime. Luiz Carlos
Maciel fala da vocação política da sua geração, que atuou forte-
mente na década de 60. Segundo ele, o impulso para a rebelião
43 MACIEL, Luiz Carlos. Anos 60. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 83.
71
tinha na política apenas um canal externo. E o canal interno,
qual seria? - o inconformismo existencial44.
João das Neves45 informou que, apesar do trabalho diário
e constante, o grupo Opinião, num determinado momento, já
não conseguia se pagar. Outro problema era a concentração,
como ele disse, de muitas "cabeças pensantes" num mesmo es-
paço, que, por mais que fizessem, não conseguiam dar vazão a
tudo o que queriam fazer, além da censura e dos conflitos inter-
nos do grupo, somados à crescente tensão social e até mesmo,
quem sabe, não ao inconformismo nos termos empregados por
Luiz Carlos Maciel, mas ao desencontro de pessoas que liam a
vida pela cartilha da razão, da racionalidade (num tempo que a
racionalidade perdia espaço para as emoções explosivas), resul-
tou, nesse imbróglio de coisas conflitantes, a necessidade de al-
guns membros do grupo parar um pouco, repensar o caminho do
seu trabalho.
Paulo Pontes volta para a Paraíba. Três anos em contato
íntimo com o grupo Opinião, cuja formação era essencialmente
44 Idem, ibidem, p. 8.
45 Entrevista citada.
72
teatral, participando de todas as montagens, ou como co-autor
dos textos, ou como produtor, divulgador ou qualquer coisa que
fosse necessário fazer, lhe deu uma visão do palco e da possibi-
lidade de trabalho nele, que o marcou para sempre. Ao sair do
Opinião, em 1967, estava completa a sua formação profissional.
Era, enfim, um homem de teatro.
73
SEGUNDA PARTE
“Construía por
cima da morte uma
ponte de palavras,
como se a formu-
lação nítida e lúci-
da do futuro pu-
desse iludir o
abismo. Deixá-lo
para trás”.
Antônio Callado
74
deixa uma pista sobre o sentimentalismo de Paulo: “Era um pa-
raibano nostálgico de pessoas e de lugares /.../ Ele tinha especial
predileção por bares da barra pesada, principalmente por um, o
Tabajara, onde certamente encontrava algumas das figuras popu-
lares da cidade. Então, ficava sabendo dos últimos “causos”, das
últimas histórias e das últimas anedotas sobre aquelas figuras”46.
Voltando para a Paraíba, Paulo Pontes retornou ao berço
de sua profissão, o rádio. É Bibi Ferreira quem fala: “Depois de
sua saída do grupo Opinião em 1967, Paulinho voltou ao Nor-
deste. Começou a fazer uma série de trabalhos no rádio lá na
Paraíba. Era um trabalho simples, didático, que aproveitava mui-
to do que ele tinha aprendido nos anos passados no Rio. Scripts
de programas cômicos”47.
O importante era que a experiência acumulada no Opi-
nião o fazia enxergar a possibilidade de se expressar através do
teatro, mesmo que fosse numa cidade como João Pessoa, que
tinha (e tem) um público muito limitado, por uma série de ra-
ro de 1977.
75
zões que Paulo Pontes passou a compreender muito bem. Inclu-
sive razões de mercado.
E o teatro, todos sabem, não pode prescindir do público.
Paulo Pontes compreendeu esse problema no seu tempo de Opi-
nião, e entendeu que é possível também, em cidade de porte me-
nor, a existência de um público razoável. O problema, para ser
solucionado, precisava ser encarado de frente: “E falava-nos da
grande necessidade de fazermos um teatro baseado, antes de
tudo, na realidade que se conhecia. Surgiu, então, não se sabe
quem deu a ideia, a possibilidade de fazermos um espetáculo
sobre aquilo que mais conhecíamos, o tema que estava mais ao
alcance da nossa mão: a realidade do lugar onde vivíamos. Foi
daí que surgiu Paraí-bê-a-bá /.../ Paulo arregaçou as mangas,
assumindo plenamente as precárias condições de trabalho vigen-
tes no ambiente teatral da província. Convocou uma equipe de
escritores, poetas e músicos e, com eles, roteirizou e escreveu o
espetáculo. Com sua extraordinária vocação de liderança e seu
notável senso de observação do real, realizou um trabalho que
constituiu verdadeiro marco no teatro nordestino. E dizia: eu
aposto com vocês que o público daqui não vem ao teatro porque
o teatro não está falando de coisas que ele conhece ou pelas
76
quais se interessa. Se a gente numa peça falar do Ponto de Cem
Réis48, tenho certeza de que esse teatro vai lotar”.
Continua o depoimento: “E lotou. Paraí-bê-a-bá foi a
única produção teatral da Paraíba que conseguiu ficar em cartaz
durante toda uma temporada - e sempre mantendo cheia a pla-
teia do velho Teatro Santa Roza”49.
Além do sucesso de público que foi, Paraí-bê-a-bá ser-
viu para Paulo Pontes como um primeiro e decisivo teste de sua
dramaturgia, do amadurecimento das coisas aprendidas nos seus
anos com o Opinião.
77
1. Por que um espetáculo sobre a Paraíba?
do autor. Daqui para a frente todas as citações desse texto terão apenas a
indicação de página.
78
E são duas as razões; ou como quer Paulo Pontes, são
dois os impasses nesta comunicação.
O primeiro impasse: o público não vai ao teatro. E ele se
pergunta: “Como fazer com que um público pouco acostumado
a ver teatro, um público cuja vontade e necessidade de emocio-
nar-se é inteiramente consumida pela cultura glamourosa e de
ótimo nível de acabamento industrial dos grandes veículos de
comunicação de massas, como fazer com que esse público se
sinta atraído pelo espetáculo teatral?” (p. V).
Lançada a questão, Paulo Pontes aponta imediatamente o
segundo impasse: “Como realizar um espetáculo de teatro cujo
nível seja capaz de interessar ao público, num Estado onde não
há escolas de arte dramática, não se editam livros de teatro, onde
não há técnicos etc?” (p. V).
Posto o problema em termos especificamente regionais,
Paulo Pontes, logo a seguir, o amplia com o intuito de torná-lo
nacional. Ou seja: os impasses por ele detectados em João Pes-
soa, estão muito além dela, são problemas estruturais do país,
problemas de política cultural, ou até, brincando com as pala-
vras, de cultura política: “Na verdade, a cultura e, particular-
mente o teatro, do ponto de vista do interesse social, enfrenta
79
problemas, hoje no Brasil, que só podem ser resolvidos pela
ação governamental. Nenhum governo, no entanto, poderá in-
vestir na qualidade da cultura antes de investir na sua extensão;
nós somos um país metade analfabeto. A composição de Poder
que tiver interesse político em investir maciçamente na cultura,
ao atacar os seus problemas básicos, está ajudando a solucionar
os problemas específicos de cada atividade cultural” (p. VI).
A partir da constatação de que o problema da cultura é
muito mais abrangente, ele volta a polarizar a discussão especi-
ficamente no teatro feito na província e de como pode esse tea-
tro oferecer uma resposta adequada ao problema de sua subsis-
tência num lugar de poucos recursos. É quando, no prefácio, ele
oferece a resposta que é o fundamento do impasse inicialmente
proposto: “Como fazer o público ter interesse pelo espetáculo
teatral? Consultando o público; se o homem para quem o nosso
teatro se destina é paraibano, façamos do homem paraibano o
espetáculo” (p. VI).
E justifica: “O que resulta de uma peça de Garcia Lorca
montada por um grupo despreparado é sempre um espetáculo
incompleto, no qual as intenções não chegam à plateia, as per-
sonagens não adquirem contornos nem força. Aí o público - que
80
é o dado fundamental da questão, que não fruiu o espetáculo,
entre outras razões porque as relações da peça não lhe foram
mostradas com clareza, passa a confundir cultura com chatice,
teatro passa a ser linguagem de gente muito culta, música vira
soporífero. E, temeroso de ofender a cultura, o homem médio
atribui à sua ignorância o diálogo dos surdos que travou com o
teatro. E foge das casas de espetáculo” (p. VII).
Ou ainda: “O teatro da província que tiver a consciência
de que a capacidade perceptiva do seu público é pouco exercita-
da /.../ terá de ir buscar na consciência coletiva da comunidade
para a qual representa os motivos, os elementos de sua drama-
turgia” (p. VII).
Mas é preciso esclarecer que para Paulo Pontes não se
trata de desprezar Lorca ou Molière (os autores tomados como
exemplo no prefácio). O que importa mesmo é que, qualquer
que seja o texto, qualquer que seja o autor, seja bem dito, e esta-
beleça comunicação com o público, uma vez que, segundo ele,
ao público ninguém engana.
Então, qual seria a solução para o impasse criado por um
teatro que, do ponto de vista técnico está defasado e cujo públi-
co está culturalmente despreparado? Paulo Pontes diz: “Se o que
81
eu sei - e posso - fazer é contar bem uma piada, então que eu
conte a piada, e o público, em resposta, vai gostar da piada, e do
teatro” (p. VIII).
Paulo Pontes se dá ao trabalho de esclarecer que essa
postura não pode ser tomada como um critério para a criação
artística, uma vez que, segundo ele, qualquer artista tem o direi-
to e o dever de tentar uma formulação cada vez mais complexa,
cada vez mais rica e profunda de sua obra. Ele então considera
que, do ponto de vista estético, corre um risco calculado. Mas
avisa que faz assim porque respeita demais o público, e porque
estabeleceu também, como centro de sua atividade, a comunica-
ção com ele, e não o exercício da expressão pura. Avisa ainda
que quem fizer como ele estará duplamente certo, porque “só é
verdadeiramente expressivo, nos diversos níveis em que se dá a
criação artística, o que comunica” (p. VIII).
82
2. O Texto
83
textos. Paraí-bê-a-bá é uma colagem. E o principal texto colado
é A Bagaceira, de José Américo de Almeida. Por isso, aparecem
personagens com nome como “Dagoberto”, “Soledade”, “Xena-
ne”, que são personagens do romance.
Mas esta mistura de textos, ao invés de comprometer o
corpo da peça, envolve-a em um organismo novo que é capaz,
inclusive, de redimensionar a obra colada, de arrancá-la de um
contexto geral de um romance sobre a seca, por exemplo (no
caso de A Bagaceira), para particularizá-la em outro contexto (a
investigação antropológica do homem paraibano), sem que a
obra do outro autor perca a sua característica. Com isto Paulo
Pontes consegue, quando menos, o efeito de, atomizando cada
cena, ressaltar com mais nitidez o perfil do homem paraibano
que ele se propõe a desvendar. E o consegue até com certa dialé-
tica quando, na soma das diferenças apresentadas, há, subjeti-
vamente, não um homem, uma personagem, mas o caráter de um
povo e a sua cultura específica.
Para chegar a esse resultado, Paulo Pontes lançou mão
do que as ciências humanas pode oferecer-lhe, tudo o que pu-
desse lançar luzes sobre o tema e clarificá-lo, a ponto de torná-lo
84
límpido, sem subterfúgios, sem dubiedades, sem dúvidas. Para
isso fez constar em seu texto um pouco de cada coisa, a saber:
2.1 História
85
landeses, o caboclo sorumbático da roça, curvado ao cabo da
enxada” (p. 1).
2.2 Economia
86
o espectador será informado sobre a geração de riquezas no Es-
tado:
87
“ATOR - Em 1935, o algodão, um dos principais produtos da
Paraíba, custava /.../52. Em 1967 foi vendido a NCr$ 1,80.
ATOR 2 - Em 1950, o sisal, outro grande produto da Paraíba,
custava NCr$ 3,60. Em 1967 foi vendido a NCr$ 0,23.
ATOR 1 - Os compradores industrializados lançam-se, atual-
mente, à fabricação de fibra sintética, que substituirá, gradati-
vamente, o sisal da Paraíba no mercado.
ATOR 3 - A economia paraibana se baseia na produção agrícola
para exportação. Por isso é uma economia permanentemente su-
jeita às oscilações do mercado externo. Como os produtos agrí-
colas têm caído de preço, a Paraíba tem vendido cada vez mais
para alcançar a mesma renda real. Por outro lado, voltada para o
comprador externo, a agricultura especializa-se em alguns pro-
dutos que monopolizam as melhores terras e os escassos recur-
sos financeiros e humanos disponíveis. As pequenas proprieda-
des e as terras semi-áridas são as que ficam para a produção de
alimentos” (p. 24).
88
O texto acima, a fala específica do Ator 3, é um trecho
do relatório do então Secretário de Agricultura, José Joffily.
Paraí-bê-a-bá é um texto sem situação dramática defini-
da. Nesse sentido, lembra Rodízio, sendo que no caso de Paraí-
bê-a-bá há um texto seguro, de um autor maduro que, no engen-
dramento de uma obra sem ação dramática, à maneira de uma
peça ideal para teatro, os temas básicos que interessam a Paulo
Pontes discutir, são introduzidos logo no início, diluído dentro
de outros assuntos para voltarem à luz em outro plano, em outro
nível de percepção da plateia.
A ação imediatamente após o discurso de José Joffily é
uma sequência de cenas curtas, ágeis e engraçadas, capaz de
desfazer a sensação de este ser um texto pesado pelo seu dida-
tismo:
89
ATOR 1 - O que é que o senhor acha do desenvolvimento?
ATOR 2 - Acho que do jeito que as coisas estão, a gente tem de
correr um bocado para ficar no lugar onde está” (p. 25).
90
deitado a eternidade. Os senhores que ficam, boa noite, obrigado
pela atenção dispensada e sigam meu exemplo” (p. 28 e ss).
91
Segue o diálogo sobre aquela situação sem saída, quando
alguém resolve tirar o homem do sol. Pegam a rede, levam-na
para a sombra, quando alguém se lembra:
92
2.3 Sociologia
93
DAGOBERTO - O que é isto, Manuel Broca? Quem mandou
ocupar retirante? O que eu disse está dito. VAI SE RETIRAN-
DO. Mande esse pessoal embora.
SOLEDADE - A UM CANTO, TÍMIDA. Se o senhor pudesse
me arranjar um copo d'água... eu estou morrendo de sede...
DAGOBERTO - PARA, VOLTA-SE, FITA A MOÇA. UM
TEMPO. EXAMINA-A. Broca, manda dar água a essa gente. A
SOLEDADE. Estes dois homens que estão com você são seus
irmãos? SOLEDADE BAIXA A CABEÇA. O PAI RESPONDE
ENVERGONHADO.
PAI - Não senhor. Mas são como se fosse.
DAGOBERTO - VOLTA-SE. FITA A MOÇA. UM TEMPO.
VAI EM SUA DIREÇÃO. Quem é esse homem?
SOLEDADE - Meu pai.
DAGOBERTO - Bom, depois da água não quero ver mais nin-
guém aqui. AO SAIR CHAMA O FEITOR. Broca, arranche a
moça com os dois” (p. 9 e ss.).
94
rador de nome Xenane de suas terras, para abrigar a família de
Soledade, que acabara de chegar ao engenho:
95
“ATOR - Esta cena se reproduz nos círculos mortais das secas: o
retirante faz o marginal do brejo e este se transforma, por sua
vez, em marginal das cidades”.
2.4 O Épico
96
particularmente no mundo atual, não se deixam meter nas for-
mas clássicas”53.
O fim principal do teatro épico, em sua formulação bre-
chtiana, é a revelação de que as desgraças humanas não são
eternas e sim históricas. Esta revelação é o móvel que também
incentiva Paulo Pontes, particularmente no texto em questão, a
debruçar-se sobre o tema da imobilidade e dele extrair, usando
como recursos textos já existentes, um painel sobre o homem
tragicamente abandonado à sua própria sorte, vitimado por uma
prática social imobilista. Mas Paulo Pontes cortou e costurou o
tema até descobrir o que dentro do tecido cultural forma aquela
sociedade:
97
cançar o nervo mais sensível desse homem, ele procurou-o não
em sua subjetividade, mas nas relações sociais que o homem
paraibano for capaz de engendrar, por bem ou por mal:
98
3. O Palco da Crise
de fevereiro de 1987.
99
ria busca justificar um fato tão complexo, um fenômeno de in-
quietação internacional que, quase simultaneamente, explodiu
em países os mais variados e cujas histórias são as mais desse-
melhantes. Todo o mundo de repente fora agitado por uma onda
de protesto. As barricadas, na sua já gloriosa luta contra o Levia-
tã do Estado, voltaram às ruas de Paris, armadas por uma multi-
dão de jovens estudantes que exigiam a devolução ao cidadão de
um bem que não se sabe com certeza se algum dia existiu: liber-
dade.
Toda a inquietação do mundo; todo o repúdio contra o
poder que erige a morte como culto num tempo pulsante de
vida; todas as injustiças sociais postas a nu por uma horda de
jovens que, quase num átimo, perceberam que era a sua força e a
sua juventude que o Estado exigia para poder perpetuar a morte;
a contradição interna dos regimes Capitalistas e Comunistas que
não conseguiam fazer da felicidade (uma ideia utópica) um valor
social possível de ser conquistado com o trabalho e com a justi-
ça; as ideias de pensadores como Marcuse, Marx, Freud, Sartre,
além de Reich; os exemplos de líderes como Mao Tsé Tung e
Che Guevara, morto na Bolívia; as ditaduras. Todas essas coisas
somavam-se no espírito dos jovens naquele ano de 1968, crian-
100
do ao mesmo tempo a resposta impulsiva da revolta e as teorias
que se traduziam em palavras de ordem: é proibido proibir: frase
inscrita nos muros de Paris.
No Brasil (desde abril de 1964), a repressão ia estabele-
cendo um espaço de liberdade cada vez menor. As inquietações
dos estudantes marchavam para as ruas, e nas ruas se transfor-
mavam em pedras e coquetéis molotovs sobre a polícia.
O General Castelo Branco esperava que após noventa
dias do direito governamental de cassar mandatos e suspender
políticos, depois da vitória de abril de 1964, viesse uma pacifi-
cação relativa. Mas o que aconteceu foi diferente, e vieram as
medidas restritivas: Ato Institucional nº 2, a extinção dos parti-
dos políticos, recesso no Congresso, eleições indiretas para Pre-
sidente, Vice-Presidente e Governadores de Estados, a Lei de
Segurança Nacional, a Lei de Imprensa, a compressão salarial, a
proibição de greves, a intervenção nos sindicatos etc. Todo um
elenco de medidas que caracterizava a ditadura que, por fim, se
institucionalizaria em 13 de dezembro de 1968, com o Ato Insti-
tucional de número 5 e Ato Complementar de número 38. Por
eles, o Congresso Nacional fora posto em recesso por tempo in-
determinado e ficava assegurado ao Presidente a possibilidade
101
de sanções políticas, independente de qualquer controle judiciá-
rio. E o que motivou o governo militar a tomar essas medidas?
Aparentemente o discurso do deputado carioca Márcio Moreira
Alves, no qual protestava contra a invasão da Universidade de
Brasília por tropas do Exército e da Polícia, na manhã do dia 29
de agosto. Dizia o deputado: “Quando pararão as tropas de me-
tralhar nas ruas o povo? Quando uma bota, arrebentando uma
porta de laboratório, deixará de ser a proposta de reforma uni-
versitária do Governo? Quando teremos, como pais, ao ver nos-
sos filhos saírem para a escola, a certeza de que eles não volta-
rão carregados em uma padiola, esbordoados ou metralhados?
Quando poderemos ter confiança naqueles que devem executar e
cumprir as leis? Quando não será a polícia um bando de facíno-
ras? Quando não será o Exército um valhacouto de torturadores?
Quando se dará o Governo Federal a um mínimo de cumprimen-
to do dever, como é para o bem da República e para a tranquili-
dade do povo brasileiro?”55. A linha dura do Exército reclamava
punições contra o deputado. Mas, na verdade, o discurso can-
dente e emocionado do deputado Márcio Moreira Alves estava
102
mergulhado na mais pura realidade, na mais monótona rotina de
tensão e medo que acompanhou a vida do país naqueles meses.
Esse ano - 1968 - marcou a crise na qual se evidenciava a
falência do Estado e de todas as teorias salvacionistas. As velhas
regras de comportamento não importavam mais e, como con-
sequência, diante da recusa do mundo (ou das forças políticas
permanecerem obstinadas em seu medo de mudanças), a juven-
tude procurou uma nova forma de libertar o imaginário: as via-
gens. Em gotas de ácido ou pelas estradas; com os cabelos lon-
gos e desalinhados como estatuto de uma nova tribo; seu corpo
como dádiva primeira e última da liberdade, altar de todos os
prazeres e fonte de todos os desejos, a juventude encontrou no
psicodelismo a forma alternativa com a qual se poderia lutar
contra as ditaduras políticas, contra o acomodamento burguês às
regras do jogo social, e contra também o american way of life, o
sistema de vida americano. Contra a caretice, somente éter na
mente. Acreditavam nas flores vencendo canhões.
Claro que esse comportamento psicodélico não era regra
geral na juventude. No Brasil, por exemplo, existiam dois tipos
de jovens: o hippie, tido como alienado, e o engajado na luta
política. A propósito, vem-nos à lembrança a peça do Vianinha,
103
Rasga Coração, cujo painel da vida brasileira mostra, no fim de
tudo, aqueles dois jovens em pólos opostos.
A Linguagem artística, de comum acordo com as mudan-
ças de comportamento, também passou a exprimir-se de forma
pouco racional, em que a experiência estética adquiriu valor em
si, e não mais uma forma programática de intervir no mundo.
Não foi à toa que Caetano Veloso fora pesadamente vaiado
quando cantava, refletindo os anseios da rebeldia de 1968, “É
proibido proibir”, pelo público de Geraldo Vandré, aquele de
“Pra não dizer que não falei das flores”.
A postura sintonizada com a rebeldia pertencia a arte de
vanguarda. A sintonizada com a resistência pertencia aos já co-
nhecidos artistas engajados.
Entre um e outro grupo pairava, na sociedade e no campo
da arte, profunda crise de valores.
104
4. A crise no Palco
281.
105
Citando Ionesco, Berthold deduz que a nossa época per-
deu a consciência profunda do seu destino57. Esse fenômeno
moderno, em termos formais, tratando-se de linguagem especifi-
camente teatral, traduz-se em textos cuja organização é profun-
damente hermética, chegando mesmo a constituir-se como uma
espécie de código para iniciados. Muitas vezes esses textos, re-
fletindo as conquistas do teatro do Absurdo, são uma soma de
referências culturais as mais diversas do que exatamente texto
previamente organizado para o palco. A esse tipo de texto, her-
mético, muitas vezes até incompreensível, dá-se o nome de
“vanguarda”. O curioso, atualmente, é que as “vanguardas” per-
deram seu papel histórico, esvaziaram-se de conteúdo e passa-
ram a repetir fórmulas já consagradas de outras vanguardas. O
nosso tempo perdeu a noção do novo e, consequentemente, do
revolucionário.
Mas se chegamos a uma crise, especificamente em ter-
mos de linguagem teatral, a raiz desse problema, para nós, no
Brasil, já se delineava desde meados da década de 60, quando
parte do teatro eliminou do palco a palavra e instituiu a agressão
106
como a linguagem capaz de atingir o público como uma bofeta-
da. Aliás, “Dar uma, duas, três, muitas bofetadas” é o título do
artigo de Tite de Lemos (um dos encenadores do chamado Tea-
tro Agressivo), na Revista Civilização Brasileira, de julho de
1968, na qual consta um famoso artigo de Vianinha, “Um pouco
de pessedismo não faz mal a ninguém”, no qual ele analisa a po-
sição do teatro brasileiro naquele momento, a postura dos dois
“setores” - como ele bem frisa: o “engajado” e o “desengajado”,
ou simplesmente “esteticista”, que é o teatro que vê com ceti-
cismo a participação concreta na vida social e política do país:
“Os desacertos e a descontinuidade estéticos - diz Vianinha -
parecem-lhe produto de uma posição a priori, de uma parciali-
dade, de uma posição doutrinária, estranha à arte. Prefere pes-
quisar e trabalhar no sentido de cada vez mais dominar os segre-
dos da fluidez estética, sem se preocupar com o mundo signifi-
cativo que elaboram”58.
Vianinha, como todo o teatro engajado, estava profun-
damente preocupado em elaborar uma linguagem que falasse
com clareza ao público.
58 VIANNA FILHO, Oduvaldo. “Um pouco de pessedismo não faz mal a nin-
107
Anatol Rosenfeld, analisando a posição das vanguardas
naquele momento, publicou um artigo intitulado “Teatro Agres-
sivo”, em que, procurando entender os motivos estéticos da
agressividade, disse: “Quando a tensão entre as metas e a reali-
dade, entre a verdade e a retórica, entre a necessidade de trans-
formação e a manutenção do status quo, entre a urgência de ação
e o conformismo geral torna-se demasiado dolorosa, é inevitável
a “ira recalcada” e a violência das manifestações artísticas”59.
Comentando o artigo de Vianinha, Fernando Peixoto dis-
se que aquele foi “um instante marcado por certa radicalização
do pensamento e projeto e/ou por um anárquico e desenfreado
espírito de negação, de auto-destruição”. E completou: “Parte do
teatro acompanha a radicalização do único público que lhe per-
manecia razoavelmente fiel: estudantes secundários e principal-
mente universitários. As manifestações e lutas de protesto estão
nas ruas, a violência da repressão faz vítimas. Alguns encenado-
res não aceitam a aparente passividade do espetáculo enquanto
108
ato de contemplação: a impaciência e o impulso de revolta atin-
gem a própria linguagem cênica”60.
Nesse debate, entra Paulo Pontes, naturalmente que ao
lado da corrente “engajada”, para fazer a defesa da palavra, da
racionalidade contra o desespero, enfim, a defesa do bom-senso
como arma de luta contra uma situação agravantemente opressi-
va.
Analisando esse problema, Anatol Rosenfeld reconheceu
que a agressividade precisava de uma tradução estética adequa-
da para cumprir o seu fim, caso contrário, seria inócua: “A vio-
lência pode certamente funcionar - e tem funcionado - no caso
de peças e encenações excelentes ou ao menos interessantes /.../
Mas fazer da violência o princípio supremo, afigura-se contradi-
tório e irracional. Contraditório porque uma violência que se
esgota na “porrada” simbólica e que /.../ tendo de limitar-se ao
lançamento de palavrões e gestos explosivos, é em si mesma,
como princípio abstrato, perfeitamente inócua. Contraditório
ainda porque a violência em si, transformada em princípio bási-
109
co, acaba sendo mais um clichê confortável que cria hábitos e
cuja força agressiva esgota-se rapidamente”61.
O Brasil - como de resto, o mundo - vivia momentos de
extremada violência. Os estudantes, a sociedade civil, enfrenta-
vam com pedras e slogans a força dos urutus. A revolta provo-
cada por uma ditadura que sufocava os anseios e as reivindica-
ções populares, acrescentava a agressividade no espírito de um
tempo já perturbado por tantas radicalizações repentinas e es-
pontâneas. A força da ditadura é capaz de provocar o medo, o
sentimento de impotência, mas, ao mesmo tempo, não é capaz
de destruir certo sentimento utópico de liberdade e, juntamente
com esse sentimento, a reação contra as forças que o oprimem.
O ser humano precisa ter a ilusão da liberdade. A ditadura des-
trói esta ilusão. Então, só resta lutar contra a ditadura.
Paulo Pontes era daqueles que pensava que essa luta ne-
cessitava de clareza. Daí por que fazia a defesa da palavra. É
preciso entender que ele nunca fora contra a forma das vanguar-
das que, até mesmo por tradição, subverte a linguagem já assi-
110
milada por outra a ser (ou não) assimilável. Algumas vezes ele
próprio se considerava vanguarda.
A luta contra o chamado “teatro agressivo”, em nome da
“defesa da palavra”, muitas vezes se confundiu como se fora
contra as vanguardas, mesmo porque o “teatro agressivo” pro-
clamava-se de vanguarda, assim como o “engajado” também se
proclamasse. Esse foi um período em que a palavra “vanguarda”
esteve em moda. E essa vanguarda tanto podia ser
“estética” (como se dizia das “vanguardas”), como ser “política”
(como se dizia da turma da “palavra”). Tudo era uma questão de
interpretação.
João das Neves, num artigo relembrando Paulo Pontes,
marcou datas precisas em que ocorreram a luta “contra” versus
“pela palavra”: “Quando a cultura brasileira nada pode dizer, ela
voltou-se contra si mesma, contra o ato de dizer. Entre 68 e 76,
no teatro brasileiro, há um brutal combate à palavra”62.
Tânia Brandão, num artigo publicado pela revista Ensaio,
já tinha uma visão bastante negativa do valor da palavra no pal-
co: “Gerada a partir desta base histórica, a “estética da palavra”
111
eclodiu após a grande crise teatral iniciada em 1968, marcada
pela necessidade institucional de erigir um sistema oficial de
teatro. A essência da crise é o desejo de estabilização do trabalho
artístico, consolidação mínima das conquistas de linguagem efe-
tuadas a partir dos anos cinquenta. Crise cultural em que o sis-
tema teatral brasileiro revelou-se incapaz para sustentar o apro-
fundamento de suas questões específicas. É o momento da “di-
luição”, em que desaparecem os grandes grupos, surgem as
montagens por ator, e não se compreende mais (ou não se deseja
mais) qualquer questionamento do palco. Iniciou-se uma luta
declarada contra a inquietude - não importa definir-se o que,
neste quadro de caricatura, “inquietude” significa. A cena em
que a palavra predomina é um objeto de eleição cômodo. Pensa-
va-se que aí estaria mesmo a possibilidade de construir um Tea-
tro do Brasil”63.
Esse texto da Tânia Brandão colocava o teatro diante de
pelo menos três problemas:
Primeiro: consolidação mínima das conquistas de lin-
guagem efetuadas a partir dos anos cinquenta.
112
Segundo: não se compreendia mais (ou não se desejava
mais) qualquer questionamento do palco.
Terceiro: a cena em que a palavra predomina é um objeto
de eleição cômodo.
Não é bem assim. A conquista de linguagem efetuada a
partir dos anos cinquenta já estava absolutamente concretizada
pela própria história. Ninguém pode negar a importância que
grupos como Arena, Oficina e Opinião, além dos CPCs e sem
esquecer o TBC (e é possível juntá-los todos aqui, porque todos,
de diferentes modos, à sua maneira, contribuíram profundamen-
te com a consolidação da cena nacional), e outros tantos grupos
menores que a história mal registra, tiveram fundamental papel
na construção da cena, da escritura do texto e numa interpreta-
ção muito própria. Em 1968, as linguagens adquiridas na década
anterior e ao longo da década de 60, já estavam perfeitamente
estabilizadas, e a luta travada dentro do teatro com a sua lingua-
gem não passava naquele momento pela consolidação de coisa
nenhuma, mas sim, e isto é o que nos parece importante, pela
permanência da cena aberta. A luta era pela existência do teatro
e contra a sua destruição, contra a sua morte, uma vez que esta-
va o teatro totalmente cercado pela ditadura e pela pressão
113
econômica, que, aliás (não mencionada por Tânia Brandão), foi
o que conseguiu destruir a experiência do Arena, do Oficina e do
Opinião, os três grupos mais importantes da década de 60. Para
só ficarmos em alguns poucos exemplos, vale a pena lembrar
que Augusto Boal, líder do Arena, teve que se exilar do país, de-
pois de preso e torturado; José Celso Martínez Correa, líder do
Oficina, teve que se exilar do país e o Opinião, entre outros pro-
blemas, não suportou a pressão econômica e houve, então, uma
ruptura no seu elenco, inclusive com o exílio de Ferreira Gullar.
São apenas alguns poucos exemplos da pressão com a qual o
regime ditatorial fechava o cerco contra o teatro. A luta travada
era pela sobrevivência do artista no seu lugar de trabalho: o pal-
co. E, para isso, era preciso estabelecer alianças. A luta pela “pa-
lavra” significava solidariedade com o público pelo momento
difícil que todos atravessavam, e não seria agredindo o público
que se conseguiria a necessária solidariedade, mesmo porque,
um espectador agredido é um espectador a menos no teatro. É
sabido também que o “Teatro Agressivo”, o teatro supostamente
influenciado pelas vanguardas internacionais, era agressivo com
o público, e não com as forças opressivas da sociedade. Era lu-
tando contra um comportamento que dividia o teatro, afastava o
114
público e enfraquecia a resistência contra a opressão, que Paulo
Pontes e tantos outros se debatiam.
Foi pensando nisso que ele falou a Márcia Guimarães:
“A nossa história parece que se dá aos saltos. Parece que a gente
não tem memória. É difícil a gente ver em desenvolvimento, por
exemplo, a história do teatro brasileiro. E por quê? Porque em
consequência dessa dependência cultural, aparecem sempre
fenômenos de fora, exógenos, que perturbam, que fincam uma
cunha, que seccionam um momento do outro. E o processo nun-
ca se faz, nunca se completa. Então, são raros os momentos que
a gente tinha realmente condição de ver um século de vida brasi-
leira /.../ É preciso aprender a perceber em cada instante da his-
tória aquilo que ela tem de permanente. Aprender a ver o passa-
do de uma forma histórica. Aprender a tirar do passado aquilo
que ele pode dar. Aprender a fazer com que o passado se conten-
te no presente. A história não é um constante nascer do nada. É
desenvolvimento. É acrescentar alguma coisa ao que já foi feito.
É assim que o processo se desenrola e se enriquece. Se você es-
tiver permanentemente derrubando o passado e inventando o
novo, você não está fazendo história. Está fazendo um jogo de
quebra-cabeças. Então, porque não tivemos direito à nossa histó-
115
ria, de repente, não tivemos meio de evitar que o nosso teatro se
desligasse de seu povo”64.
Os outros dois pontos problemáticos destacados do texto
de Tânia Brandão pecam também pelo excesso da afirmação.
Recorremos outra vez a Paulo Pontes para conflituar com o se-
gundo ponto: “Porque o que não é possível é continuarmos
como estávamos há um ano: ou o teatro meramente comercial, o
vaudeville importado ou o teatro bem intencionado, combativo,
mas esteticista, formalista, transplantando para cá, erroneamen-
te, o vanguardismo americano ou europeu, que não tem nada a
ver com nossa vanguarda. A vanguarda de um país subdesenvol-
vido tem que sair das consultas às necessidades mais profundas
da sua sociedade”65.
Finalmente, o terceiro ponto. Outra vez recorremos a
Paulo Pontes, num texto muito interessante em que o autor apre-
senta o seu material de trabalho, o aparentemente “cômodo” que
vai à cena, como quer Tânia Brandão: “Tudo o que eu escrevo é
65 Apud Sérgio Fonta, “O teatro não vai ao povo nem o povo ao teatro”. in
116
muito simples. O material que eu uso é de lixo, é a rua, é o ma-
terial pobre. Agora, o que é sofisticado é a elaboração do con-
teúdo. Demoro meses e meses nessa elaboração, tomando co-
nhecimento da complexidade do fenômeno. Mas só trabalho
com a temática da maioria. A dramaturgia confessional das per-
sonagens de exceção não me interessa. Acho que o teatro não é a
arte da perplexidade. O teatro é a arte das coisas sabidas”66.
dezembro de 1976.
117
5. A volta ao Rio
118
herdeira da racionalidade do realismo, ou, como quer Tânia
Brandão, do materialismo dialético. Só não é verdade que ope-
rando a palavra no nível do saber, esta segunda corrente empo-
breceria qualquer poesia, como afirmou Tânia Brandão.
O que nos parece importante assinalar é que, para aquela
geração de artistas formados dentro do CPC - ou de movimentos
semelhantes - continuava a prevalecer a arte como princípio di-
dático. Não é por acaso que Boal, ao estruturar o seu método, o
chame precisamente de Teatro do Oprimido, título tirado do li-
vro em que Paulo Freire demonstra o funcionamento do seu mé-
todo de alfabetização, Pedagogia do Oprimido.
Nem é preciso dizer que Paulo Pontes também via a arte
com o mesmo propósito. Paraí-bê-a-bá foi a sua primeira peça,
a rigor, sendo que ele um ano antes se desligara do grupo Opi-
nião.
Bibi Ferreira conta que em 1968, depois da estreia de
Paraí-bê-a-bá, Nadia Maria, voltando de uma viagem pelo Nor-
deste, conversou com Almeida Castro, então diretor artístico da
TV Tupi, sobre “um rapaz muito novo que tinha feito alguns tra-
balhos no Opinião do Rio e estava trabalhando numa rádio em
João Pessoa. Fazendo uma programação muito inteligente. Al-
119
meida Castro decidiu conhecer esse “fenômeno” que havia tro-
cado o Rio pelo Nordeste. Viajou até João Pessoa. Ouviu um
programa ao vivo realizado pelo rapaz. No dia seguinte, trazia
Paulo ao Rio, para a equipe de criação da TV Tupi”68.
Paulo Pontes, então, apontou outros nomes de pessoas
com as quais trabalhara no Opinião, e que poderiam, juntamente
com ele, dinamizar a equipe de criação da Tupi: Vianinha e Ar-
mando Costa.
120
TERCEIRA PARTE
“O mais
importante que eu
aprendi com ele
foi exatamente
lutar. E uma luta
difícil contra o
comodismo”.
Chico Buarque
121
“Quem pretende visitar Itamaracá (Pernambuco) deve
incluir em seu roteiro turístico, para meditar alguns minutos, an-
tes ou depois de atravessar a ponte que une o continente à ilha
onde se encontra o Forte Nassau, uma rápida parada num estra-
nho santuário. Está localizado num ponto de fácil acesso; no
centro da pequena vila de poucas ruas. Um santuário que, aliás,
existe, sob diferentes aspectos, em inúmeras vilas e pequenas
cidades do interior do Nordeste brasileiro. É constituído por uma
estaca, tendo em cima uma pequena caixa, cor-de-rosa no caso,
fechada com um cadeado. Nesta vila em frente à ilha de Itama-
racá, região histórica marcada pela invasão dos holandeses, o
novo invasor está escondido dentro da caixa: à noite todos os
moradores vem para a praça trazendo cadeiras ou sentando no
chão, o cadeado é aberto e dentro está um aparelho de
televisão”69.
122
Fernando Peixoto não foi o primeiro e nem provavel-
mente será o último a lamentar que a televisão, com o seu olho
mágico, enfeitice a consciência rural do país e sub-repticiamente
vá decalcando a velha cultura tradicional uma outra que lhe é
estranha; ao velho pensamento patriarcal - um outro que lhe é
diferente. Sem dúvida esse fenômeno existe. Cacá Diegues, há
alguns anos atrás, realizou Bye Bye Brasil, um filme que aponta
para as “espinhas de peixe” (as antenas dos aparelhos de televi-
são) e as identifica como inimigas da cultura popular, quando
mostra uma companhia de artistas mambembes que cada vez
mais busca as pequenas vilas do interior brasileiro, lugares onde
as antenas não estejam presentes, e não constituam, portanto, o
impedimento para que seu espetáculo se realize.
A televisão muda o comportamento. Muda também o
pensamento. Molda uma outra cultura; revela outro universo;
amplia a visão do mundo; acrescenta novos valores; ao mesmo
tempo que pode tudo aumentar, pode também reduzir: mudar o
comportamento sem mudar o pensamento; moldar outra cultura
sem revelar outro universo; ampliar a visão do mundo sem
acrescentar novos valores. A televisão é apenas um instrumento,
e, assim sendo, a sua eficiência para melhor ou pior só depende
123
dos interesses em jogo. Não é a besta eletrônica do Apocalipse,
como às vezes aparenta, diante dos depoimentos dos que querem
“salvar” (embora não se duvide das boas vontades) a cultura po-
pular. Não é também um anjo de candura, inocente e desinteres-
sado. É um instrumento e, como tal, submetido às leis de merca-
do, às ideologias e, no Brasil em particular, ao controle do Esta-
do que a transformou numa espécie de sesmaria moderna, trans-
formando-a em “latifúndios”.
A televisão é uma realidade presente na vida cotidiana de
milhões de pessoas. Ou como já o notou Umberto Eco, a televi-
são é um serviço70. E como serviço, presumivelmente à popula-
ção, o seu problema primordial não é o que ela exibe, mas - dis-
se Vianinha - o que ela deixa de exibir: “A revista TV Guide
(americana, com tiragem de 6 milhões de exemplares) fez uma
análise da programação mundial de televisões. Chegou à conclu-
são de que, praticamente em todo o mundo, no chamado horário
nobre, predomina a produção americana, as séries para TV: a
mentalidade do policial, de um perseguindo o outro. A revista
notava, porém, com indulgente estranheza que, num país da
335.
124
América do Sul, a televisão não seguia essas normas mundiais.
Era o Brasil. No Brasil, das 6 da tarde até 10 e meia da noite -
uma faixa bem mais extensiva do que o “horário nobre” - só
existe produção de autor nacional, só produção nacional. The
novels, como eles dizem. Será que este simples fato não justifica
a participação de um homem de cultura na TV brasileira, ou o
preconceito exige mais justificativas? Nada tenho contra o que é
exibido na TV. O problema da TV não é o que ela exibe, mas o
que ela deixa de exibir. Esse problema foge a alçada decisória da
própria TV. A emissão fatual da grande realidade é uma constan-
te de todos os meios de comunicação. No plano da informação,
portanto, a televisão não é criadora - é extensiva, é democratiza-
dora, difusora de valores vigentes socialmente e também difuso-
ra de valores espirituais conquistados pela humanidade ao longo
de sua grande aventura espiritual”71.
No momento que fala da televisão como democratizado-
ra dos valores conquistados pela humanidade, Vianinha toca
num ponto que é também muito caro a Umberto Eco, quando
estudou o assunto da cultura de massa, da qual a televisão é um
125
braço. Ele considera que a nossa época é de alargamento da área
cultural, na qual se realiza, a nível mais amplo, a circulação de
uma arte e de uma cultura popular72, com o que concorda Paulo
Pontes. Ele mantém-se sempre obstinado em encontrar a lingua-
gem adequada para falar à massa: “Televisão é por natureza um
veículo democrático. Interessa a milhões de pessoas, pode ser
ligada por qualquer um. O grande tema da TV é aquele que diz
respeito à maioria da população /.../ O autor não pode escolher
um tema que só interessa a uma minoria, como também não
pode usar, para a maioria, uma linguagem de minoria. Seria des-
truir a própria natureza da televisão: democrática, ampla, social,
feita para milhões. Isso não quer dizer que haja qualquer contra-
dição entre qualidade e TV. Existe contradição entre linguagem
aristocrática e TV”73.
Mas se o fator positivo da televisão é alargar o domínio
da informação e da cultura para uma ampla camada da popula-
ção, existe, por outro lado, o fator negativo de, num país como o
126
nosso, dotado de uma diversidade cultural acentuada, receber a
imagem de apenas um lado, uma região, menos do que isso,
duas cidades de um país, conforme já frisamos anteriormente74.
A televisão, em princípio, é um veículo democrático de difusão
da informação e cultura, mas não num país como o nosso, cujos
canais de televisão são concessões do governo, atendendo a inte-
resses de grandes grupos econômicos que disputam, agressiva-
mente, todo o território nacional. A televisão brasileira não ex-
pressa a imagem do Brasil, mas sim de dois centros produtores,
até mesmo quando põe no ar programas que buscam retratar a
vida ou a cultura interiorana, por exemplo, ou de outras regiões
do país. Frequentemente, o interior é apenas cenário, e a fala do
apresentador (ou dos atores), macaqueamento da fala regional,
transformando em ridículo o que é específico de uma cultura, ou
de uma região.
Nesse sentido, tem razão Fernando Peixoto quando afir-
ma: “A televisão produzida no sul, invade o norte, levando ima-
gens que, pouco a pouco, passam a determinar o comportamento
e os valores sociais e éticos de populações desprotegidas. O ví-
127
deo mata os valores regionais e a cultura popular, ao mesmo
tempo em que entrega a esta população um mundo de sonho e
fantasia, mentira e ilusão. As perspectivas da vida em pequenas
cidades e vilas do interior de Pernambuco ou da Paraíba não são
radicalmente alteradas. Padrões morais e condicionamentos co-
letivos são fundamentalmente modificados. Em certo nível exis-
te uma modernização dos costumes que pode ter uma dose de
elementos positivos. Mas o preço pago é bastante alto. Atual-
mente, folhetos de cordel analisam fatos mostrados pela televi-
são. E muitos heróis populares do sertão do Nordeste passam a
ser substituídos pelos “ídolos” fabricados nos estúdios de São
Paulo e Rio”75.
A cultura é fruto da existência da sociedade. E como tal
também se submete a modificações, cujos resultados podem ser
positivos ou negativos. Não se pode esquecer de que a televisão
existe e exerce enorme poder sobre o comportamento dos grupos
sociais. De certa forma, lamentar que o comportamento, a cultu-
ra, a visão de mundo de determinada comunidade esteja sendo
modificada pela imagem projetada na telinha, significa um certo
128
conservadorismo, algo assim como lamentar a morte de velhas
civilizações com as suas culturas, seus exotismos aos olhos de
hoje.
Qualquer cultura que nos seja estranha é vista com certo
exotismo. Passamos a vê-la com os olhos do estrangeiro que
pensa descobrir naquilo que lhe é diferente uma aura perdida.
Não foi à toa que Fernando Peixoto descobriu naquele lugar um
“santuário” ameaçado pelo invasor eletrônico. Mas a televisão,
assim como a cultura de massa (que ao vulgarizar a fruição do
produto cultural possibilitou o acesso dos bens de cultura a um
maior número de pessoas), é conquista definitiva dos nossos
tempos. É inútil lamentar. Melhor é compreender que a cultura,
assim como as pessoas, assim como as civilizações, morrem e
são substituídas por outras. É a vida. É a fome de Cronos, o
Tempo, devorando os seus filhos. É a dialética da natureza. É a
aventura humana: “Talvez a TV nos esteja levando unicamente
para uma nova civilização da visão, como a que viveram os ho-
mens da Idade Média diante dos portais das catedrais. Talvez
passemos a impregnar, gradativamente, os novos estímulos visu-
ais de funções simbólicas, e nos encaminhemos para a estabili-
129
zação de uma linguagem ideográfica”, conforme Umberto Eco,
prenunciando o surgimento de um novo tempo76.
Mas nada disso resolve o problema daquela vila em Ita-
maracá, Pernambuco. O problema daquela vila é político. E é
anterior a instalação da caixa cor-de-rosa no centro da praça.
Aquela vila, talvez, precisasse de uma emissora sua, assim como
outras vilas possuem os seus jornais e as suas emissoras de rá-
dio. Mas parece que ao poder interessa mostrar a vida como uma
vitrine, onde a felicidade está quase ao alcance da mão, do outro
lado da redoma de vidro. E como uma vitrine, a felicidade dese-
jada não se conquista, se compra. Do outro lado da vitrine há a
vida pseudamente glamourosa dos artistas e as suas roupas im-
pecáveis, seus carros do ano, seus dramas sentimentais, e uma
grande cidade aconchegante. A televisão, já alertava Umberto
Eco, tem a capacidade de tornar-se um instrumento eficaz de
pacificação e controle social, garantindo a conservação da or-
dem estabelecida77. Tem ainda o poder sugestivo de uma hipno-
130
se, como ele próprio demonstrou, a propósito de uma pesquisa
realizada na cidade de Chicago78.
O homem daquela vila, hipnotizado pela felicidade es-
tampada no vídeo, emigra para a cidade grande. Vai compor a
imensa mão-de-obra reserva necessária ao capitalismo, a manu-
tenção dos baixos salários. O seu problema, com certeza, não é a
perda de uma cultura aurática (aos olhos de quem é estrangeiro).
O problema é outro. E já que os grupos econômicos são
poderosos, e o governo (e todas as forças sociais que o apóiam)
é o governo desses grupos, fica difícil quebrar o monopólio das
concessões de canais de TV. Mas sempre é possível trabalhar a
sua linguagem no interesse contrário ao dos grupos dominantes.
Vianinha depõe: “Como linguagem técnica ou artística, a televi-
são não é boa nem má. Depende do uso que se faz dela. A servi-
ço de interesses econômicos e políticos de uma cultura emanci-
pada, é contestatória. A televisão torna-se, como acontece diari-
amente, um tóxico incontrolável que atua diretamente no cére-
bro do espectador, moldando consciências e entravando o racio-
cínio criativo, impedindo a reflexão crítica, promovendo com
131
violência e agressividade um tipo de massificação que resulta
útil e necessário à dominação cultural e outras dominações. Mas
nada existe sem contradições internas. Produzida por homens, a
televisão existe em função do que os homens pensam e da postu-
ra que estes assumem diante do trabalho que realizam. Depende
portanto do nível de astúcia de alguns, capazes de encontrar bre-
chas numa parede aparentemente intransponível”79.
Umberto Eco, por outros caminhos, chegou à mesma
conclusão: “Por trás de toda direção da linguagem por imagens,
sempre esteve uma elite de estrategos da cultura, educados pelo
símbolo escrito e pela noção abstrata. Uma civilização democrá-
tica só se salvará se fizer da linguagem da imagem uma provo-
cação à reflexão crítica, não um convite à hipnose”80.
132
1. Bibi - Série Especial
133
sou de repetir o caminho que atrairia o público: “Se você não
representa a temática da multidão, você representa uma temática
abstrata, e aí você não tem a cara do público, as tendências do
público reveladas para pesquisar em torno delas. Quando o tea-
tro brasileiro era das massas, apesar de termos uma dramaturgia
pobre, tínhamos comediantes populares aos montes, de extraor-
dinária qualidade. Por quê? Porque representavam para a multi-
dão que respondia com seu aplauso, seu silêncio, seu riso, sua
emoção, sua cara e sua temática /.../ Se você tira essa humanida-
de variada, complexa e buliçosa do artista, tira a sua fonte de
pesquisa. Então, vai pesquisar em torno do quê? De coisas abs-
tratas. Vamos fazer laboratórios sofisticados, burilados, requin-
tados e cada vez menos eficazes, porque não há base social”81.
Impressionou-o muito quando uma comédia como A
Gaiola das Loucas, de Jean Poiret, conseguiu levar um público
de trezentas mil pessoas ao teatro. Ele não gostava da peça, mas
não deixou de observar que um público enorme telefonou, fez
reserva, saiu de casa, enfrentou trânsito e fila para assistir a um
espetáculo teatral. Era um fenômeno que não podia passar em
134
branco. Era preciso estudar o comportamento daquele público, a
sua motivação para assistir a um espetáculo teatral. E com tenaz
persistência, consegui-o, sendo sempre fiel a si mesmo, ao seu
pensamento, ao seu ponto de vista, à sua consciência sobre o que
é teatro e sobre a matéria que o alimenta.
Adotava, para a televisão, o mesmo critério que tinha
para o teatro. Certa vez, ele declarou como são suas persona-
gens: “Nunca criei um tipo abstrato. Nunca usei apenas os recur-
sos da minha imaginação para as personagens. Todos os tipos
quase sempre eu vi, conversei com eles, conhecendo bem a to-
dos. Das características da personagem na vida real é que seleci-
ono as características que vão fazer o tipo”82.
Com a observação dos tipos reais, do homem comum da
rua, Paulo Pontes compunha a galeria das suas personagens, que
ia ao ar pelas antenas da TV Tupi. Junto com Vianinha, conse-
guiu realizar alguns belos momentos para o programa Bibi - Sé-
rie Especial. São obras que se caracterizam pela ação compacta,
pelo denso conflito, pela tensão que se instala desde a primeira
sequência.
82 Idem, ibidem.
135
Os temas giram em torno do medo e da injustiça, bem de
acordo com a época em que foram escritos. No resultado final
de cada trabalho está contido um indisfarçável humanismo, uma
certa solidariedade com a dor que era de todos. São como de-
poimentos sobre o terror e a miséria da ditadura, sob o ponto de
vista do homem comum, o que vive o terror e a miséria sem se
dar conta de que a sua causa está instalada no poder de plantão.
Carmelinda Guimarães, no livro sobre Vianinha, apresen-
tou a relação das peças que eles criaram juntos naquele perío-
do83. Daquela relação selecionamos alguns textos, o suficiente
para ter-se um painel mais amplo sobre a visão de Paulo Pontes
nessa fase de sua vida. Carmelinda cometeu um pequeno engano
quando disse que as obras foram ao ar pela TV Globo. As obras
foram apresentadas pela TV Tupi84.
136
1.1 - Sem Saída
137
colar de umbanda - ou quimbanda. Raimundão, naquela situa-
ção, e antes de Nelsinho aparecer, tenta se impor:
138
Assim Raimundão vai bebendo sucessivos copos de cer-
veja, até não suportar mais. Ainda assim, Nelsinho obriga-o a
beber um último copo.
Esta sequencia inicial tem uma dupla finalidade: apresen-
tar Nelsinho e a sua vontade implacável, como também o seu
poder sobre a área. Raimundão foi levado à sua presença porque
cobrou aluguel em barraco de favela, coisa que só Nelsinho se
permite fazer. Nelsinho poderia, se quisesse, matá-lo. Mas como
aquele era o dia de Omulu, seu protetor, ele o perdoaria desta
vez. Para reforçar o poder de vida e morte de Nelsinho, em outra
sequência mais adiante, aparece uma outra personagem satélite,
de nome Sujeito:
139
Apresentada a personagem e a sua vontade poderosa, na
continuidade da sequência do Raimundão (alternada por cortes
que mostram a mãe de Terezinha em casa, preocupada com a
demora da filha, detida em casa de Nelsinho), é posto em foco o
conflito representado pela fragilidade de uma moça diante do
desejo do bandido:
140
TEREZINHA - Me trouxeram à força aqui, quero ir embora
(TENTA SAIR. NELSINHO A SEGURA FORTE).
NELSINHO - Não entendo. Não entendo uma mulher se recusar
querer ser rainha! Com abajur de cetim! Pensa Terezinha, mas
pensa depressa. Quero me casar no mês que vem no dia de São
Bento. Quero a resposta daqui a dois dias, nessa mesma hora. Te
espero sozinho aqui na nossa casa daqui dois dias.
TEREZINHA - Se eu disser que não quero?...
NELSINHO - Nem me fale assim, Terezinha. Foi meu pai de
santo que disse que você é a mulher da minha vida. Já avisei os
amigos. Nem pense em dizer que não, Terezinha, se você quer
sossego pra você... E pra sua família...”
141
“POLÍCIA - Não posso fazer nada com o Nelsinho, dona. Que-
rer casar com sua filha não é crime.
AMÁLIA - O senhor não diga pra ninguém, por favor.
POLÍCIA - Digo não. Não gosto de me meter também com coi-
sas do Nelsinho Bicheiro.
AMÁLIA - Vocês não podem prender esse sujeito? Ele é contra-
ventor. Todo mundo sabe.
POLÍCIA – É difícil pegar prova, dona. Bem que eu queria. Ele
já pegou um irmão meu. Matou.
AMÁLIA - E vocês não podem pegar ele?
POLÍCIA - Ele tem muita costa quente, dona. Muita amizade.
Muita trança.”
142
os em suas necessidades. Esta é a sua outra base de apoio. O
bandido que protege a favela é protegido por ela.
Há todo o tempo dentro da ação uma personagem muda:
o avô de Terezinha. Se esta esconde do pai o conflito colocado
por Nelsinho, quando fala com a mãe não se preocupa de escon-
dê-lo do avô, figura enigmática, calada, que testemunha tudo o
que acontece com a neta. O avô se dirige à casa do bicheiro e
pede duzentos contos. Nelsinho percebe que o avô não fala. Lê o
bilhete que o velho lhe apresenta.
Enquanto isso, Terezinha, percebendo que a situação não
tem saída, resolve ceder para salvar a família. Sua mãe resiste.
Mas ela sabe que não há outra solução.
O avô, de posse do dinheiro dado pelo bicheiro, compra
um revólver, volta à casa do bandido. Nelsinho está se perfu-
mando, preparando-se para sair com Terezinha. O avô toca a
campainha. Nelsinho vai atender. O velho descarrega no bichei-
ro o revólver que comprara com o dinheiro que ele lhe dera, jul-
gando que seria para compra de remédios.
O velho avô, no seu mutismo, também percebeu que a
situação era sem saída.
143
O texto é curto, como todos os outros dessa série. Mas
tem uma sequência de corte e montagem da ação muito ágil,
muito rápida, definindo em pouco tempo personagens, situação
e conflito, e no caso deste, cumprindo, ironicamente, uma situa-
ção que o título já diz sem saída.
1.2 - O Justiceiro
144
texto não apresenta imediatamente os pólos de conflito, mesmo
porque aqui não há conflito algum, não entre personagens. O
que acontece neste texto é uma expectativa gerada pela presença
do Justiceiro na cidade. Expectativa que se avoluma à medida
que as diversas personagens vão se definindo. Em contraposição
ao movimento das demais personagens, o Justiceiro passa todo o
tempo impassível, imobilizado, concentrado na sua função de
justiceiro. Mas é exatamente esta posição de repouso, do ponto
de vista dramatúrgico, em que ele se encontra, que gera, não o
conflito de objetivos ou ideias, mas o medo entre as diversas
personagens que pensam que o Justiceiro está ali para matá-las.
Esse medo é o eixo da ação.
Na abertura da peça, a câmera abre sobre o interior de
um pequeno hotel de uma pequena cidade. É um bar, com mesas
e balcão velho. Há pessoas no lugar. Entra um homem correndo,
fala com o dono do estabelecimento, e este se assusta. O homem
fala com outras pessoas que estão no local. Todos se assustam.
Esse homem, que entra correndo no bar, será a personagem en-
carregada de juntar os vários pontos do texto, diversas persona-
gens a quem ele, correndo como sempre, noticia o que está
acontecendo na cidade. A câmera mostra a entrada do Justiceiro
145
no bar, acompanhado por uma mulher vestida de preto e um me-
nino, filho da mulher. Ao entrar no bar, clima de Western: todos
param, imóveis. A mulher de preto dirige-se ao balcão, preenche
ficha de entrada no hotel. Sai. O Justiceiro senta e pede, não um
uísque, mas um café. Enquanto se desenvolve essa sequência
muda, uma voz faz a narração da cena, pondo o telespectador
diante do clima de medo vivido pelas personagens no bar, e,
consequentemente, diante do clima da peça, já devidamente am-
bientada.
146
das. Esta é uma das suas inúmeras estórias. Seu nome: Estrela.
Seu apelido entre o povo: O Justiceiro.”
147
sem que a personagem até então tenha pronunciado uma única
palavra:
148
Além disso, porém, o coronel, a exemplo da mãe de Te-
rezinha em Sem Saída, busca a autoridade policial. Em vão. O
policial em Sem Saída não tem condições de enfrentar o bicheiro
porque há uma rede de corrupção que o apoia. Mas aqui não é o
caso. O Justiceiro não se envolve com corrupção e, principal-
mente, não mata qualquer um, mata justamente os corruptos.
149
O Delegado tem, portanto, medo. O Justiceiro, ao contrá-
rio de Nelsinho, se impõe pelo seu caráter.
Mas os autores conduzem a narrativa para outro ponto,
em um corte rápido: a mulher de preto, ninando o garoto, seu
filho, conta-lhe uma história pouco infantil, uma verdadeira his-
tória de horror, que é o ponto central do texto, o núcleo da narra-
tiva que coloca todas as outras personagens sob suspeição, so-
bretudo quando se sabe que, dentre eles, alguém matou o seu
marido. Esta é justamente a história que a mulher conta ao filho,
enquanto o garoto adormece:
150
um homem”. Aí, São Pedro falou pra teu pai: “Acredito na sua
história. Você vai ficar aqui no céu e o teu filho lá na terra vai
ficar contente de saber que você está aqui no céu...”
151
ticeiro em casa. O Justiceiro provoca o juiz, mostrando-lhe pe-
daços de roupa de sua filha, a namorada do Doutor. O Juiz, que
sabia que ia morrer, esperava ao menos que o crime fosse inicia-
tiva do Justiceiro, para que ele pudesse ser preso. Diante da pro-
vocação do Justiceiro, perde a calma, tenta matá-lo com a sua
espingarda. O Justiceiro atira primeiro, só que para o alto. O ve-
lho Juiz morre do coração. O Justiceiro cumpriu sua função.
152
mortos em vida: os lugares para onde são mandados os párias,
os criminosos ou os indesejados sem crime.
O quadro é ainda mais sombrio quando um homem cha-
mado 320 vem, não de um lugar qualquer, mas de um manicô-
mio judiciário.
Eis tudo o que é possível saber sobre ele.
Qual o seu crime? Não se sabe. Por que enlouqueceu?
Não se sabe. Um homem que se chama 320 não possui identida-
de, portanto, não pode ter história.
Este parece ser o problema a priori desse texto. Como
sempre, por economia de ação, a situação é posta logo na abertu-
ra. A rubrica diz que um garoto brinca com um carrinho, en-
quanto come doce de leite na lata. Um rádio está ligado e o locu-
tor avisa que a polícia está interditando toda a área do Alto da
Boa Vista e Barra da Tijuca, para tentar localizar alguns evadi-
dos do manicômio judiciário. Um corte é dado, e a avó do garo-
to aparece na mercearia fazendo suas compras. Outro corte. 320
surge no apartamento do garoto, pedindo um copo d'água. A avó
volta para casa. Encontra a porta fechada. O garoto denuncia a
presença do homem estranho. A avó retorna à mercearia. Lá, já
se encontra a polícia. A babá do garoto, adoecida, dorme. A avó
153
liga. Ela atende. Diz para a avó não se preocupar. Seu pai tam-
bém terminara num manicômio judiciário. Enquanto isso 320 e
o garoto brincam na sala. O garoto não esconde o medo daquele
estranho invasor. 320, como se fora um menino, simplesmente
brinca com o carrinho de bombeiro do outro. Fragmento de diá-
logo entre eles:
154
go, tudo que mandavam fazer eu fazia... A Sandra caçoava de
mim... Eu não ligava...”
155
para que o menino ria dele, com o objetivo de afugentar o seu
medo, de afastar a distância entre eles.
É quando entra a empregada, babá do garoto. Ele tenta
correr para ela. 320 o segura. Em alguns momentos a sensação é
de que alguma coisa grave vai acontecer. Nada acontece. O lou-
co é verdadeiramente manso. A babá sabe lidar com ele e ganha
a sua confiança. 320 percebe que a multidão lá embaixo era si-
nal de sua captura próxima. A babá lhe diz que não; a multidão
procura-a porque ela teria roubado remédio na farmácia. A polí-
cia invade o apartamento.
156
“320 - Sandra... Por quê, Sandra? Eu estava protegendo você...
Por que você fez isso comigo... Por que?
BABÁ - Desculpe, 320... Desculpe, meu amigo... Eu...
320 - Você é malvada, dona Sandra... A senhora é malvada...”
157
1.4 - A Ferro e Fogo
158
também gosto mais do Eliseu... Está bem... Fui eu que mudei de
ideia... O Eliseu é mais moderno...”
159
Não. A mulher era mãe de um garoto que sonhava viver
de sua música. Viajou para o Rio de Janeiro, bateu na porta de
Eneida, procurou, insistiu, esperou, ficou sem dinheiro, deixou a
música gravada num cassete, se desiludiu, voltou para Minas, e
um dia, comprando o último disco de Eneida, de quem era fã,
escutou a sua música, mas o crédito no disco era de outro:
160
berba anterior que Eneida demonstrava. Mas a mulher puxa o
gatilho e, afinal, o revólver está descarregado.
O motivo que levou Dolores a propor aquele problema
para Eneida: ela queria que Eneida sofresse em cinco minutos a
dor que o seu filho sofrera em duas semanas antes de matar-se.
Eneida, arrependida, corre atrás da mulher que se vai
sem querer ouvir a sua desculpa e a sua promessa de reparar o
dano. Em cinco minutos uma postura feita de máscaras vai ao
chão.
E o que diz a canção do garoto?
“A ferro e fogo
você vai pagar
cada pedaço de mim
que você me fez roubar.”
161
1.5 - Balanço parcial: uma justiça moral
163
cem flashes da vida real sob o intuito de ressaltar a dignidade
necessária ao exercício da existência.
164
RÚBIS - Me solta devia dizer eu. Você nunca me largou! Todo
dia no jornal, provocando, rindo, não é? Vim aqui acabar com
você, mulher, sou um ladrão, sou assassino, mato! Sou de matar
gente!”
165
até capa de pele pra ela. O sujeito é casado e oferecia o mundo e
fundo pra minha Carmosa... Aí ela leu a notícia do anel... Não
adiantou eu roubar, levar ela pra comprar vestido em Copacaba-
na... Ela foi embora com o sujeito que é casado.”
“RÚBIS - /.../ Ela te adorava muito... Ela me largou por tua cau-
sa, porque você é feliz, entende? Porque você ri nas fotografias.”
166
meiro convidado, desconfiado, chama a polícia, Rúbis explica
para Milena, como se fora um professor aplicando a lição:
167
Rúbis, assim como a mãe do garoto em A Ferro e Fogo,
teria condições de realizar a sua vingança. Mas não o fez. Ele,
assim como a mãe do garoto, preferiu submeter à personagem
oponente a uma forte humilhação que geraria, no final, o seu
gesto de correção “moral”. Embora, no caso de Milena, ela não
tenha culpa da mulher de Rúbis tê-lo abandonado. A sua culpa
não é individual, é de classe.
1.7 - A Testemunha
168
Já existe um suspeito do crime: Paulo Mãozinha, rei da
Baixada, e que perdera uma mão num tiroteio entre marginais,
em 1958.
O marido sente medo de deixar Célia sozinha. Mas pre-
cisa sair. É médico e tem duas operações marcadas no hospital.
Antes, avisa que irá passar no Distrito Policial e pedir para um
soldado montar guarda em sua casa, até a sua volta. Sai.
Entra um homem vestido de policial. Muito gentil, pede
para que Célia examine algumas fotografias, a fim de identificar
o criminoso. Célia se recusa. Só o faria diante de testemunhas. O
policial insiste. Toca o telefone. É o marido dizendo que só ago-
ra teria chegado ao Distrito, que ela ficasse tranquila, um polici-
al já iria para lá. Célia tenta comunicar-se batendo com um lápis
no fone. Célia volta para a sala. Aponta para o policial o homem
que ele lhe mostra, entre outras fotos. O policial tem um couro
preto envolvendo o seu punho. Célia compreende tudo: aquele é
Paulo Mãozinha, rei da Baixada, que mandara matar o jornalista
por causa de umas reportagens que ele fizera.
Célia corre para o quarto. Tranca a porta. Liga para a po-
lícia. Só consegue bater com o lápis no fone. Paulo Mãozinha
força a porta. Célia com muito esforço consegue encostar à porta
169
um pesado móvel. Paulo Mãozinha aos poucos força a abertura
da porta. Célia está desesperada. Do lado de fora, o policial que
veio a mando, bate à porta. Célia está acuada em sua angústia
muda. Paulo Mãozinha consegue abrir a porta do quarto onde
Célia se refugiara. Célia grita. O policial ouve o grito de Célia, e
força a porta. Célia tenta enfrentar Paulo Mãozinha, atraca-se
com ele numa luta corporal. O policial ouve os gritos de Célia,
tira o revólver, atira na fechadura, entra na casa, vai ao quarto,
vê Célia numa luta impotente contra Paulo Mãozinha. O polici-
al, com a coronha do seu revólver, acerta na cabeça do bandido,
que cai desfalecido. Célia corre ao telefone, liga para o hospital,
chama o marido. Célia, no desespero de sua luta, perde o trauma
da fala. Conta ao marido o que acabara de acontecer.
170
“HOMEM 1 - (FALA BAIXO, DEVAGAR, SOMBRIO) Alô?...
ANA MAURA - (UM POUCO SURPRESA) Alô... Dr. Walter
está?...
HOMEM 1 - (CONTINUA COMO SE NADA TIVESSE
ACONTECIDO) Alô... (MAIS ALTO) Alô?...
HOMEM 2 - (VOZ BONITA, CIVILIZADA) Alô.
HOMEM 1 - Sou eu, pode falar.
ANA MAURA - Alô... Alô... Quem está falando? Qual é o nú-
mero aí?
HOMEM 1 - (CONTINUA. NÃO OUVIU NADA) Olha. O de-
senlace é hoje. O desenlace é hoje.
HOMEM 2 - Entendido.
HOMEM 1 - Onde está você?
HOMEM 2 - Não estou longe do lugar. Num telefone público...
HOMEM 1 - Você tem o endereço... Vai haver movimento mai-
or... Hoje tem ensaio da escola de samba... Onze e quinze... Vai
haver muita gente... Espero num carro naquele ponto às 11 e
20... Lembra do ponto a três quarteirões...
HOMEM 2 - Perfeito.
171
HOMEM 1 - Vai haver muito barulho para o caso de haver gri-
tos... Mas é melhor não haver gritos, não é colega?
HOMEM 2 - Tenho um estilete. Aço fino. É muito rápido.
HOMEM 1 - Não esqueça de apanhar as joias. Todas as joias
que você encontrar por perto. O nosso cliente quer que tudo fi-
que parecendo que foi um roubo.”
172
Ana Maura é uma mulher carente. Casada há vinte anos e
paralítica há dez, vive na casa que herdou da família, em Ipane-
ma. O marido tem problemas financeiros na sua indústria e quer
vender a casa para cobrir os déficits de caixa. Vender a casa e
um asilo de menores. Ana Maura não concorda. Mas naquela
noite, pressionada pelo marido, resolve vender a casa, não o asi-
lo, obra de sua mãe. Liga para o marido insistentemente naquela
noite. Inclusive para dizer do crime que se planeja.
Tenta dormir. Não consegue. Encontra o Registro de
Identidade do marido. Ligar para uma amiga, para pedir que o
marido dela, homem influente, tente junto à polícia evitar que o
crime aconteça. A mulher diz-lhe que o marido viajou, e ela pró-
pria teria viajado, se não tivesse esquecido sua Identidade em
casa.
Um rapaz que trabalha no escritório do marido de Ana
Maura liga para ela, dizendo que o Dr. Walter viajou a negócios
para São Paulo, não irá dormir em casa naquela noite.
Ana Maura se angustia com a sua impotência por não
poder evitar o crime. Já está quase na hora marcada. Uma escola
de samba começa a entrar na Vieira Souto. Ana Maura, que não
sabia do desfile, liga o rádio para confirmar esse desfile em sua
173
rua. Confirmou. Ela pensa no marido que viajou para São Paulo.
Mas como, se ele esqueceu a sua Identidade em casa, e a sua
amiga lhe dissera que sem a identidade não se pode viajar.
Ana Maura começa a desconfiar que ela é a vítima mar-
cada para morrer naquela noite. Tenta falar com a polícia. Está
ocupada a linha. Liga para a empresa telefônica. Fala com a tele-
fonista. Pede que a moça entre em contato com a polícia. Está
ocupada a linha. Ela desliga. Toca o telefone. É o marido. Dr.
Walter pede que ela saia correndo dali. Ela é paralítica. Ele está
arrependido. Está na hora marcada para o sacrifício. Ela lhe diz
que já tinha concordado em vender a casa. Ele insiste para que
ela corra. A escola de samba entra na avenida. Um homem surge
na casa. Ela grita. O fone fica pendurado. O homem pega o fone
e ouve o marido insistindo: “Ana... Ana... Levanta... Ana... Le-
vanta...” O homem muito cortês responde: “Ligação errada, ca-
valheiro. Desculpe”.
Esse texto, como também A Testemunha, apresenta uma
situação de suspense que se mantém com uma intensidade em
crescendo, embora Célia tenha uma trajetória mais simples,
mesmo porque pode resistir ao agressor, quando foi necessário;
Ana Maura, mesmo que quisesse, não poderia.
174
Mas na morte de Ana Maura há qualquer coisa de ironi-
camente trágico: ao querer evitar o crime, ela foi sendo conduzi-
da cada vez mais para dentro do crime que gostaria de evitar.
Todas as evidências levavam a concluir-se que não havia solu-
ção para ela. A sua vida, como diz o título, estava por um fio:
pelo fio do telefone, sua única forma de se comunicar com o
mundo e de evitar sua morte, como também, metaforicamente,
no fio de um novelo que ela acabaria por tecer, ao desvendar.
175
Juventude se opõe. Tem dezessete anos e não quer outro
crime, apesar de sua vida bandida. Miguelão insiste. Brigam.
Juventude leva a melhor. Miguelão consente em esperar algum
tempo, para que Juventude reveja sua posição. Na briga, Migue-
lão perdeu seu talão de cheque. A estenografa, Edite, o recolhe.
Um pouco antes da briga dos dois bandidos, eles falam sobre a
possibilidade de fuga, para evitar a morte da moça.
Miguelão sai. Vai montar guarda na parte de cima da
casa. A estenografa conversa com Juventude. Ela tem irmão na
polícia e sabe o mecanismo da malandragem: como os bandidos
lançam mão de garotos como Juventude; como os envolvem em
crimes; como passam a explorá-los depois de iniciados. Juven-
tude não acredita: Miguelão é o seu amigo. Pelo menos é isso o
que Miguelão lhe diz.
Noite alta. Edite está presa numa cadeira. No sofá Juven-
tude dorme. Miguelão entra sorrateiro. Esfaqueia Juventude.
Mas não era Juventude. Edite o avisara de que Miguelão iria
eliminá-lo. Juventude previne-se. Arma uma arapuca para Mi-
guelão. Ele cai. Os dois brigam outra vez. Juventude mata-o.
Depois solta Edite e aceita o conselho dela: o de entregar-se à
176
polícia, cumprir alguns anos de pena e, depois, livre, arranjar
uma profissão. Edite prometera depor a seu favor.
177
Esse salto qualitativo (em sentido positivo) das persona-
gens, faz-nos pensar que, por volta de 1971, quando esses textos
foram escritos, o medo e o negror da vida no Brasil sufocado
pela ditadura fosse desesperador. Nos faz pensar que Paulo Pon-
tes e Vianinha procuravam incentivar a esperança de que as coi-
sas podem mudar. O que não devia ser fácil de imaginar-se, na-
quele momento, quando a ditadura, em tudo vitoriosa, dava iní-
cio a campanha do “Brasil: ame-o ou deixe-o”; em que as oposi-
ções estavam totalmente silenciadas, pela morte, pelo medo,
pelo exílio ou pela censura. E a luta armada agonizava: sem
apoio popular, não poderia ir longe.
Era preciso ter esperança em alguma coisa. Pelo menos,
quando não resta mais nada, isto ainda pode servir como capital
para manter-se o ânimo. Não foi em vão que Paulo Pontes por
essa época escreveu um show, montado com Paulo Gracindo e
Clara Nunes cujo título não poderia ser mais revelador: Brasilei-
ro, Profissão Esperança.
Essa esperança da qual o brasileiro faz profissão de fé,
parece-nos que Paulo Pontes e Vianinha apresentavam-na pela
televisão para todo o Brasil, do modo como era possível trans-
miti-la. A mudança de comportamento das personagens, do pon-
178
to de vista dramatúrgico parece sem sentido. Paulo Pontes e Vi-
aninha, muitas vezes, sacrificaram o encadeamento formalmente
lógico, em função de algo que lhes parecia maior, a qual os seus
textos, os seus trabalhos, deveria servir. A arte posta a serviço da
vida. Ou pelo menos da esperança. Apesar da arte.
179
tos os dados básicos de sua identidade, a polícia entra em ação:
localiza o apartamento, arromba a porta e salva a moça da morte
no instante final.
Como resolução, este texto assemelha-se com A Teste-
munha, com a polícia invadindo o apartamento e salvando a
moça.
180
bo, por exemplo, é de um bom gosto, de um tim-tim-tim, de um
rosinha, de um empacotadinho, de um bonitinho, e de tudo gra-
vadinho, tudo assexuadozinho, tudo muito asséptico, é aquela
coisa tão de bom gostinho, que eu já não reconheço na televisão
brasileira um veículo de comunicação de massa”86.
Ao lado da mudança qualitativa em processo, percebida
por Paulo Pontes, existia, como elemento de complicação, a
censura, que impedia a veiculação de uma imagem diferente da
vitrine em que então se transformava a televisão brasileira. Wal-
ter Avancini, no mesmo debate, explicou o que a censura não
permitia que se levasse ao ar: “O código é explícito: não se pode
colocar conflito de gerações, não pode colocar pais e filhos con-
flitando, não se pode colocar nenhuma menção de adversário,
não se pode colocar nenhum descontentamento social, não se
pode colocar nenhum conflito religioso, nenhum conflito racial.
A verdade é que há uma série de limitações impostas por esse
181
código de censura, que nos impossibilita um exercício maior
dentro do veículo”87.
É possível que em tão pouco tempo, isto é, do início de
1968 (quando Paulo Pontes começou a escrever para a
televisão), até 1975 (quando aconteceram os debates sobre cul-
tura brasileira no teatro Casa Grande), a TV tenha mudado radi-
calmente, a ponto de diminuir o trabalho que gente como Paulo
Pontes desenvolvia tão bem.
Mas enquanto isso não aconteceu, a televisão brasileira
viveu dias de conquista de uma linguagem tão bela quanto dra-
mática, como a que vimos em fragmentos nos textos apresenta-
dos. E no caso do nosso autor, profundamente inserida no con-
texto da cultura de massa que, afinal, é por excelência o fenô-
meno cultural do nosso século.
128.
182
2.1 - A Violência
184
Nesse sentido, A Vida Por Um Fio tem alguma seme-
lhança com o texto O Justiceiro. A diferença está em O Justicei-
ro apresentar outro tipo de assassino, mas não do tipo qualquer,
e sim uma espécie de herói, cheio de bom-mocismo e de senso
de justiça que transcende a lei ordinária. Não esquecer que Es-
trela, o Justiceiro, não é um pistoleiro que mata na surpresa da
tocaia, sem chance para o adversário. Ele provoca o adversário.
Lembrar também que o Juiz, o oponente que o Justiceiro deveria
matar, morreu não de bala, mas de susto, uma morte espetacu-
larmente épica. Também este tipo de outsider está previsto no
código da cultura de massas que Paulo Pontes manejava tão
bem. Sobre essa personagem, fala Edgar Morin: “O herói do
Western é o Zorro, o justiceiro que age contra uma falsa lei cor-
rupta, e prepara a verdadeira lei, ou o xerife que, soberano, ins-
taura, de revólver em punho, a lei que assegurará a liberdade.
Essa ambiguidade opera uma verdadeira síntese entre o tema da
lei e o tema da liberdade aventurosa. Ela resolve existencialmen-
te o grande conflito entre o homem e o interdito, o indivíduo e a
lei, aberto desde o Prometeu de Ésquilo e a Antígona de Sófo-
cles. A isso se acrescenta o tema do herói fundador - Rômulo
moderno - que opera a passagem do caos à ordem. A riqueza mi-
185
tológica em estado nascente do Western explica sua ressonância
universal”89.
Charles J. Rolo, no ensaio “A Metafísica do Assassínio
para Milhões”, tratando de assunto semelhante ao de Edgar Mo-
rin, diz, num determinado momento, que, talvez, a mais profun-
da frustração do nosso tempo “seja exatamente a sensação de
que o indivíduo encontra-se reduzido à impotência num mundo
em que o princípio da organização em larga escala impregnou
irremediavelmente os assuntos humanos, legítimos ou ilegíti-
mos”90. No caso da cultura de massa, interessam muito os assun-
tos ilegítimos. E para resolvê-los, já que o homem comum para
isto é impotente, somente o herói, o homem estranho, o justicei-
ro.
Edgar Morin, ao concluir o capítulo que trata da violên-
cia no nosso tempo, o tempo da neurose, diz que a cultura de
massa, embora nos entorpeça, nos embriague com barulhos e
186
fúrias, não nos cura de nossas fúrias fundamentais. E o que são
essas fúrias? - Mistérios.
2.2 - Mistérios
187
se. Mas não percebe que a música que roubou já anunciava a sua
humilhação.
Em Um Homem Chamado 320, o mistério permanece na
figura do louco que chega e sai sem se revelar, mas deixando
dados impossíveis de resolver, tais como: quem é Sandra (al-
guém de importância em sua ação anterior ou simplesmente um
nome de referência para configurar a sua confusão mental)?
Quem é ele, o louco? A expectativa gira em torno da violência
que se insinua, mas não acontece.
Em A Testemunha, o clima é dado inicialmente pelo ma-
rido de Célia, quando confessa o seu temor de deixá-la só, sa-
bendo que ela é a única testemunha do crime ocorrido em frente
ao seu apartamento. Depois, a entrada do mandante do crime,
Paulo Mãozinha, disfarçado de policial, gera o mistério que só
se desfaz quando ela puxa a capa que esconde o braço manieta-
do do bandido.
Em A Vida Por Um Fio, o mistério é a própria trama da
obra. Ana Maura, paralítica, tentando evitar um crime que de-
pois descobre ser contra ela.
Em Uma Noite de Terror não há propriamente mistério,
porém, o fato da ação desenrolar-se à noite, numa rua deserta,
188
numa casa invadida por dois bandidos, já cria um clima algo
semelhante.
De modo direto, o mistério só é parte intrínseca da ação
em A Vida Por Um Fio. Em A Testemunha, ele faz parte da ação
até o momento em que Célia descobre a identidade do pseudo-
policial. Com exceção de Um Homem Chamado 320, cujo ano-
nimato deixa algo a desejar da personagem, além do fato de
sabê-lo louco, e de A Ferro e Fogo, os demais textos têm como
suporte de mistérios elementos extrínsecos ao texto, não neces-
sariamente ligados ao seu tema. Eis os elementos:
O silêncio da noite: A Testemunha, A Vida Por Um Fio e
Uma Noite de Terror.
A vida solitária, ou a solidão de um apartamento: A Tes-
temunha, A Vida Por Um Fio, e até mesmo Uma Noite de Ter-
ror, embora Edite, no princípio, não estivesse só, mas trabalhan-
do com o seu patrão, o clima indicado é o da mais completa so-
lidão.
A solidão é tema de outro texto: Por Favor, Moça, Não
Morra. Não há propriamente mistério, mas um quebra-cabeça
para desvendar-se, à feição de uma novela policial, em que os
189
dados do quebra-cabeça conduzem a novela policial: a solução
visa evitar a morte por suicídio.
O mistério compõe um forte elemento para prender a
atenção do telespectador (ou do leitor), nesses textos. De alguma
forma, está presente na maioria deles.
Pensando a linguagem da televisão e os padrões da cultu-
ra de massa, T. W. Adorno chega ao ponto em que o mistério
torna-se um álibi da linguagem televisiva: “Todo espectador de
programa de mistério da televisão sabe exatamente, com absolu-
ta certeza, como é que ele vai acabar. A tensão se mantém ape-
nas superficialmente e já não é provável que exerça um efeito
sério. Pelo contrário, o espectador sente que está pisando chão
firme durante o tempo todo. Esse anseio de “sentir-se em chão
firme” - que reflete uma necessidade infantil de proteção, muito
mais do que o seu desejo de um frêmito de emoção - é satisfeito.
Só ironicamente se preserva o elemento da excitação”91.
Charles J. Rolo diz que a história de mistério é um jogo
cheio de suspense em que o espectador não pode perder. Se o
espectador imagina a resposta, sente-se diabolicamente inteli-
190
gente, e se não a imagina, encontrará a satisfação de uma agra-
dável surpresa92. E se T. W. Adorno considera que há alguma
“necessidade de proteção familiar” no fato de mistérios em his-
tórias gerarem tensão superficial no espectador, a conclusão de
Charles J. Rolo, em contraposição, é surpreendente: a solução
para o mistério do fascínio das histórias de mistério terá de apli-
car-se a todos os tipos em todos os tempos. Terá de ser alguma
coisa muito fundamental para explicar uma atração que se tem
mostrado tão persistente, tão vigorosa e tão difundida: “Essa al-
guma coisa, cremos nós, tem escassa relação com a concatena-
ção das pistas ou acúmulo de cadáveres, e profunda relação com
o maior de todos os temas de ficção - a explicação do destino do
homem. Segundo nossa hipótese, a história de mistério, na es-
sência, é uma história metafísica de sucesso”93.
Muniz Sodré revela os mecanismos da comunicação de
massa: quanto menor é a taxa matemática de informação de uma
mensagem, maior a sua capacidade de comunicação: “Quanto
mais o signos da mensagem (os elementos culturais de um pro-
191
grama de televisão, por exemplo) forem familiares ao público,
por já constarem de seu repertório, maior será o grau de comu-
nicação”94.
Muniz Sodré fala-nos de teoria da comunicação: os sig-
nos da mensagem são decifráveis segundo o repertório de quem
os recebe. No caso dos textos que vimos mapeando até aqui, os
signos básicos são a violência e o mistério, alternados ou com-
postos no mesmo texto. A decifração pode-se dar em vários ní-
veis: sociológico, político, psicológico, como insinua T. W.
Adorno, ou metafísico, como o quer Charles J. Rolo.
63.
192
Para Paulo Pontes, o trabalho na televisão foi profunda-
mente estimulante. Alguns desses textos se constituíram em mo-
tivos para outros textos maiores que ele faria posteriormente
para o teatro. Texto como Sem Saída, com a vida ambientada no
morro, já traz em ideia a raiz do que será o Gota D'água. A Fer-
ro e Fogo e Por Favor, Moça, Não Morra, a nosso ver, juntos,
são o gérmen do Dr. Fausto da Silva. Um Homem Chamado 320
apresenta, pela figura do louco, a profunda simpatia de Paulo
Pontes pelos desvalidos, como a personagem Eugênio, na peça
Em Nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que ele escrever
em companhia de Alfredo Zemma, como também O Homem de
la Mancha, de Dale Wasserman, que ele traduziu e produziu em
1972.
Ainda uma última palavra: Paulo Pontes ganhou, em
1969, o primeiro prêmio do Festival Internacional de Cultura de
Tóquio com um programa de alfabetização de adultos pela TV
Tupi. Setenta países concorreram ao Festival.
193
QUARTA PARTE
“L'ultime heros
tragigue est tout
simplemente le
peuple brésilien”.
Richard Roux
“Triste, o povo
brasileiro não é,
por mais desgraça-
do que seja”.
Chico Buarque
194
1. Teatro
195
Segundo: esse público carece ser conquistado.
Terceiro: para isso, o teatro precisa falar uma linguagem
de fácil compreensão.
Quarto: essa linguagem tem, necessariamente, de estar
adequada ao momento histórico que o país vivia.
Quinto: finalmente, ligada à tradição do teatro brasileiro,
ou seja, à comédia de costumes, ou de sua tendência em lidar
com o conhecido.
A montagem de Paraí-bê-a-bá serviu como ensaio para
formulação de sua teoria, ou de seus princípios básicos. Aconte-
ce que aquela peça fora montada em 1968 e na Paraíba. Paulo
Pontes vivia no Rio de Janeiro, e era aí que se encontrava, con-
sideravelmente, o grande público que ele ambicionava para o
teatro e, em particular, para o seu teatro.
A oportunidade aconteceu quando Milton Morais foi
procurá-lo para encomendar uma peça. Milton Morais, depois de
uma marcante atuação em Pedro Mico, de Antônio Callado, es-
tava há algum tempo parado. Mas tinha ideia sobre um texto que
gostaria de ver escrito, um tema muito em moda o qual pensava
apresentar. Foi a Paulo Pontes e aí nasceu Um Edifício Chamado
200.
196
2. Um Edifício Chamado 200
197
O ponto de partida para a criação de Um Edifício Cha-
mado 200 era o mesmo do seu programa de rádio, o mesmo do
Paraí-bê-a-bá, o mesmo de Bibi - Série Especial, enfim, o
mesmo de sempre: a busca exaustiva de uma linguagem clara,
direta, mas sem abrir mão da qualidade, em primeiro lugar e, em
segundo, sem esquecer a reflexão como ponto de apoio à per-
cepção da vida, do cotidiano. O seu, era o teatro das coisas sabi-
das, e não tinha outra pretensão. Mas as coisas sabidas como
ponto de luz na consciência, e como tal, instrumento crítico para
um corte dialético na apreensão da realidade: “parece que vive-
mos em uma sociedade, ou em um país, em que as coisas sabi-
das já foram levadas à prática, e já são dominadas porque parti-
mos então para sondar o desconhecido. Eu acho que a posição
política do homem de teatro, de arte, de cultura é, ao contrário,
esfregar as coisas sabidas na cara do mundo para que a socieda-
de as conquiste na prática. E a gente tem uma porção de coisas
sabidas mas não postas em prática para revelar, para fazer disso
o conteúdo permanente do nosso produto cultural. Assim, nós
conseguimos fazer com que a nossa arte tenha uma identificação
preliminar, que passa a ser a experiência comum do artista e do
198
povo. Mas, por incrível que pareça, não é isto que tem aconte-
cido”97.
2.1 - O Texto98
199
ele defende a vida, é o investimento no futuro, antes de qualquer
coisa, inquestionável: ele vai acertar na Loteria Esportiva.
Karla, a companheira de Gamelão, também está desem-
pregada. Mas, ao contrário do companheiro, tenta conseguir em-
prego. Os dois não têm dinheiro para nada. Por isso, apesar do
desejo de Karla de arranjar emprego, os dois vivem trancados
num apartamento, abandonados a mais completa lassidão, numa
vida cuja monotonia cria barreira de difícil transposição: Alfredo
Gamela sonha com a Loteria e Karla, diante da impossibilidade
de mudar o quadro, aceita o sonho do companheiro, embora dele
não participe.
Para mudar essa situação, entra Ana, namorada do Ga-
melão.
Karla e Ana se conheciam pelo que Alfredo Gamela fala-
va de uma para a outra. Uma julgava que a outra fosse milioná-
ria. Alfredo Gamela mentia para as duas. Mas, diferentemente
do que diz o velho ditado popular, onde não comem dois não
comem três. Por isso, com a mesma indiferença com que vivem
Karla e Gamelão recebem Ana em casa, ela que tinha acabado
de chegar de sua cidade e que vinha pedir abrigo no apartamento
de Gamelão.
200
Esta é a situação inicial. O desenvolvimento é muito
simples: Ana tem cinquenta contos. Os outros dois não têm
nada. Ela é aceita na casa e Gamelão ainda festeja o aparecimen-
to inesperado daquele dinheiro, o seu “capital de giro” para o
negócio de jogar na Loteria.
Surge outra personagem. Uma voz que se identifica
como Byh2 Barra 29.530 e que vinha de outra galáxia muito dis-
tante. Gamelão imediatamente o batiza de Bororó. Esta persona-
gem só aparece em off, uma voz que dá a Gamelão o jogo do
próximo fim de semana da Loteria Esportiva. É com a introdu-
ção desta personagem off que Paulo Pontes conduz o espectador/
leitor ao núcleo do seu texto:
201
teria Esportiva... Um jogo primário, qualquer criança do meu
planeta faria os treze ponto com um cálculo simples...
GAMELÃO - Leva o papo, Bororó, tou sentindo...
VOZ - E esse jogo tão primário está desviando as energias de
um povo...
GAMELÃO - Segue...
VOZ - Calma, Alfredo: eu tenho uma missão a cumprir. Exami-
nar o que se passa na mente de um ganhador da Loteria Esporti-
va. Quero registrar cada uma de suas emoções. Descobrir o mo-
tivo de tanta ambição...
GAMELÃO - Falou e disse. Eu estou solidário com a sua mis-
são. Vamos marcar juntos aqui o teste 59. A gente racha...
VOZ - Um momento, Alfredo, calma. Você vai acertar na Lote-
ria Esportiva. Eu o escolhi. Acertarei os treze pontos para você e
em troca...
GAMELÃO - Dou tudo, absolutamente tudo. Construo uma
igreja, passo a me chamar Sebastiana amanhã, o que Bororó qui-
ser...
VOZ - Só quero que você comporte-se tal qual um ganhador da
Loteria. Fique descontraído. Jogue pra fora todas as suas emo-
ções. Eu o estarei examinando.
202
GAMELÃO - Bororó, você caiu do céu. Venha cá, meu anjinho,
diga lá o jogo número um, Fluminense e Botafogo.”
203
de sua vida um sonho atrás de Loteria, uma mentira, ao invés de
enfrentar a realidade dos fatos:
204
tudo com arame farpado e joga dentro de um fogo de papel de
faturas, projetos que irão queimar mais energias, mais sonhos,
mais vontades. Depois abre a cela da prisão, o ponto registra,
cadastra, e prova pra quem duvidar que você, naquele dia, mor-
reu a quantidade prevista pelos códigos e regulamentos que go-
vernam a vida dos homens. Recolhe o que sobrou de humano no
teu corpo e entra no cinema, onde lhe vão oferecer numa tela
uma fatia de vida cor-de-rosa, amarela, azul, que eles recolhe-
ram não sei onde, mas que vai reconciliar o nego de novo com o
sonho, de novo com a vontade, de novo com o dia seguinte, de
novo com a escravidão. E eu sabendo disso tudo, vou perder
meus dezenove bilhões? Vou não. Não vou de jeito nenhum...”
205
2.2 - Um texto de autorreferência
2.2.1 - Rodízio
99 Vide Rodízio.
206
Karla discutem. O autor expõe a situação das duas personagens.
Karla tem contato para arranjar emprego. Gamelão, notório re-
belde contra o trabalho, lhe aconselha a desistir do emprego, que
ela fosse ler, já que queria fazer alguma coisa:
207
modo como ele está organizado. A personagem de Rodízio dizia-
se esperançosa, ainda tinha 22 anos, faltando-lhe 18 para “ven-
cer na vida”, ou por outra: para não viver a vida de rotineira me-
diocridade que Gamelão descreve no seu delírio por não levar o
prêmio da Loteria. A personagem de Rodízio ainda tinha espe-
rança de que o jogo na bolsa de valores poderia redimi-la da
vida massacrante do homem comum. Gamelão tem 38 anos e
expressa a mesma ideia. Só que, no caso, sua fé está posta na
Loteria Esportiva.
A postura irônica e malandra de Gamelão, nessa primeira
fala, cede lugar à desolação, quando ele toma consciência de que
não levará o prêmio, já nas últimas cenas da peça:
208
trinta e oito, mais setenta são cento e oito. Quer dizer, quando eu
ganhar de novo já tou pra lá de brocha e o que é que adianta?”
209
mo. A contradição é negar a possibilidade de consumo à maioria
da população.
2.2.2 - Paraí-bê-a-bá
210
dormindo. Gamelão sonha ser o goleador da seleção tricampeã.
Acerta alguns chutes na sua companheira:
211
Os comunistas vivem dizendo que o problema da humanidade é
a fome... Eu sou contra. A humanidade está morrendo de comi-
da. Os maiores inimigos do homem são esses caras que vivem
dando injeção aos frangos...”
212
rando-a com uma pitada de investigação sobre a condição do
homem brasileiro. Eis a receita básica desse texto.
Mas há uma outra cena em Um Edifício... que é citação
de uma cena já apresentada no Paraí-bê-a-bá100: é a do homem
que, cansado de trabalhar para comer, e cansado de comer para
trabalhar, resolve estender a rede no chão e morrer.
A citação dessa cena em Um Edifício... acontece logo
depois que Gamelão toma conhecimento de que as mulheres não
fizeram o jogo milionário:
213
ANA - Não morra, Gamela...
KARLA - Gamelão... Você foi o melhor homem que eu conheci
em minha vida... Você não existe, meu Gamela... Olhe... Game-
la, você é bom paca... Você tem um corpo tão lindo... Uma
cara... Sei lá, você tem o coração bom... É bom de cama, Game-
la. É ou não é, Aninha?...
ANA - É...
KARLA - Como é que você pode dar uma de morrer, meu Ga-
mela. Escuta uma coisa. Fui eu a culpada... Eu que não deixei
Aninha jogar tudo... Foi uma besteira da minha parte, tá certo,
mas veja o seguinte: você fica o tempo todo a sonhar. Sonhar é
bacana, Gamela... Eu gosto das coisas que você sonha... Não é te
pixando não... Eu gosto... Tá aqui minha bunda, pra você ganhar
a copa... Mas olhe... Tem uma hora que sonhar é ruim, Gamela.
A gente estava há quase dois dias sem comer direito... Ana apa-
receu... A gente tinha que escolher entre comer e sonhar... Tá
ouvindo, Gamela? Falei certo? Hein?...
ANA - Perdoe a gente, Gamela...
KARLA - (UM TEMPO. MUDA O TOM). Deixa de charme,
homem. Morrer porra nenhuma. Levanta, vamos, levanta, Ga-
214
mela, dá a volta por cima, cara... Olhe aqui, quer desabafar? Dá
uma surra na gente, não é Aninha...
ANA - Isso, boa ideia, a gente merece... (APANHA O CINTO)
Tá, Gamela, bate na gente, bate, a gente merece... Bate... (GA-
MELA LEVANTA O OLHO. UM TEMPO. MOSTRA O CAR-
TÃO).
GAMELÃO - Pela última vez... é mentira?
KARLA - Não, homem. Mete na cabeça...
GAMELÃO - Então segue o enterro...”
101 O {tulo da peça era Barata Ribeiro 200. Paulo Pontes foi obrigado pela
216
Paulo Pontes tinha certeza de que havia alguma possibi-
lidade de contornar-se o policiamento estético, ideológico e
econômico que a ditadura exercia sobre o teatro. Vianinha, ten-
tando equacionar o mesmo problema, teria dito: “Ainda que eu
passe anos buscando o que pode ser dito, escrito, não pretendo
parar. É uma decisão, um compromisso que assumi responsa-
velmente. Ainda é possível falar de alguns problemas contempo-
râneos /.../ Ainda existem possibilidades de se batalhar contra a
opressão e contra a injustiça. Agora, é claro que fica cada vez
mais difícil. Pode ser que um dia não seja mais possível e aí eu
não sei que posição vou tomar. Mas escrever para a gaveta ou
outro lugar qualquer, isso eu sei que não farei”104.
Para conseguir encontrar a solução para o problema, Vi-
aninha buscava os temas mais próximos ao gosto popular. Paulo
Pontes também. Daí porque preferia os temas ligados à vida de
todo dia, ou, como preferia dizer, à multidão: “A temática tem
que ser extraída da vida das pessoas - e ela desapareceu do tea-
tro brasileiro. De tal forma que, de repente, quando você se pro-
punha a tratar um tema da multidão, isso já parecia vulgar. Ora,
217
um tema não é vulgar só por interessar a maioria. Pode tornar-se
vulgar se servir para mistificação desses problemas”105.
Pensando assim, Paulo Pontes escolheu a comédia de
costumes como o estilo que marcaria Um Edifício Chamado
200. Tinha certeza de que a sua pesquisa de linguagem para
equacionar o momento difícil do teatro, no começo dos anos 70,
encontraria resposta do público: “Eu escolhi esta linguagem de
comunicação com o público, tenho as condições básicas para me
comunicar com ele, graças ao que aprendi em rádio, em televi-
são e em teatro mesmo. Pode ser que haja alguém que torça o
nariz, ache que eu estou sendo servil ao gosto do público, mas
eu tenho muita certeza das razões que fazem do meu tipo de ex-
periência teatral uma experiência importante, inquestionável e,
sobretudo, digna”106.
E não se enganara. O sucesso de público e crítica apon-
tava como correto o raciocínio de Paulo para aquele momento.
Yan Michalski, por exemplo, após a morte de Paulo Pontes, co-
mentou: “Como autor ele explodiu em Um Edifício Chamado
218
200, e acho que foi uma abertura muito significativa, pois levan-
tou o nível da comédia de costumes carioca, aprofundou o seu
alcance. É curioso que em tão pouco tempo e em tão pouco texto
ele tenha conseguido inserir tantas informações sobre as perso-
nagens, a sua vida, as suas aspirações. A peça durava uma hora.
Eu tenho uma vaga lembrança de que na época, a peça, apesar
de eu ter gostado muito, deixava-me com apetite, ela acabava
muito bruscamente: e que o próprio Paulo reconheceu esta defi-
ciência, tanto assim que desenvolveu mais a parte final da
peça”107.
Marco Aurélio Borba e Osvaldo Mendes, em introdução
a uma matéria publicada na revista Manchete, observaram entu-
siasmados: “Nem o cinema, nem o rádio, nem a televisão (com
suas novelas), conseguiram apagar as luzes da ribalta. O Espetá-
culo teatral continua empolgando as plateias culturais das gran-
des cidades. No Rio e em São Paulo, três peças - Tango, Um
219
Edifício Chamado 200 e A Capital Federal, batem recordes de
bilheteria”108.
Claro que os autores da matéria desviavam o foco da cri-
se no teatro. Ao invés de centralizá-la na política de destruição
das oposições, implantada pelo regime militar, eles a conduzi-
ram para o campo das linguagens da televisão, rádio e cinema,
em oposição à linguagem teatral. Esse erro durou muito tempo,
sempre quando se tratou de questionar a crise teatral no Brasil
dos anos 70/80. Mas o entusiasmo dos autores da matéria vale
para dar uma ideia de como a peça fora bem recebida pelo pú-
blico. Tanto que na sua re-estreia carioca, já com o texto melho-
rado, Paulo Pontes conseguiu uma das maiores bilheterias do
momento, coisa que ele vinha buscando há muito tempo, pacien-
temente estudando os dados do problema que enfrentavam (que
era a conquista de um público amplo), inclusive, por uma ques-
tão de sobrevivência, lutando pela manutenção do autor brasilei-
ro em cartaz. Era tão grande esse problema que Plínio Marcos,
um dos dramaturgos mais censurados do Brasil, alardeava (em
relação a TV) que Rin-tin-tin (um cão pastor de um seriado de
108 Apud Paulo Melo. “Um arZsta chamado Paulo Pontes”. In Jornal da Pa-
220
televisão americana) trabalhava muito mais no Brasil do que ele,
Plínio Marcos.
Manter em cartaz o autor nacional, como queriam Paulo
Pontes e Vianinha, era um dos pontos fundamentais na luta con-
tra a ditadura. Isso por uma razão bem simples: quem melhor do
que o homem brasileiro para conhecer a sua própria realidade? -
Por isso, os órgãos censórios eram duros com os autores brasi-
leiros. Produzir a montagem de uma peça era um risco que se
corria de ver perdido o capital empatado. Isso porque a censura
poderia impedir a estreia da peça, ou mesmo retirá-la de cartaz,
se lhe conviesse, em plena temporada, sem maiores explicações.
Ou mesmo, impedir o espetáculo em outra cidade, já que o ser-
viço de vigilância era mantido por cidade, sendo que a liberação
dada numa cidade não valia para outra. Isso dificultava enor-
memente as tournées das companhias ou dos grupos.
Policiado como era o autor nacional foi desinteressando
ao empresário teatral. Não eram poucos os problemas enfrenta-
dos pelo dramaturgo brasileiro.
Primeiro: encontrar um tema adequado.
Segundo: escrevê-lo de forma que pudesse ser aprovado
pelo gosto policial.
221
Terceiro: conseguir comunicação com o público, já que o
teatro brasileiro, durante a ditadura, viveu um longo período de
metáforas, de imagens cifradas, de códigos de comunicação par-
cos e específicos, pela impossibilidade de fazer de um modo que
não fosse dizendo fingindo que não dizia.
Um Edifício Chamado 200 não foge a regra. O texto fora
escrito para três atores, limite de segurança num eventual prejuí-
zo de produção. Esse prejuízo não aconteceu, e a peça ainda
conseguiu levantar o entusiasmo da crítica: “Num momento que
o teatro brasileiro - através de várias correntes - busca novos
caminhos para sua afirmação, é com grande júbilo que observa-
mos a experiência montada no Teatro Senac, na Guanabara, com
direção de José Renato e interpretação de Milton Morais, Tânia
Scher e Vera Bhrahim. O texto de Paulo Pontes é excelente sob
todos os aspectos, e pode-se até afirmar que há muito tempo não
surgia nada semelhante no gênero... Dificilmente um texto re-
montado (como é o caso de Um Edifício...) consegue lotar todas
as noites uma casa. No caso presente, chega a haver fila de espe-
rançosos, como na ponte-aérea, à espera de uma desistência”109.
222
Ao mesmo tempo que a peça estava sendo relançada no
Rio, em São Paulo preparava-se a sua estreia, com Juca de Oli-
veira no papel de Alfredo Gamela.
Gilberto Gumscitz, no jornal O Globo, também era entu-
siasta do texto: “Além da acuidade para criticar tipos e costu-
mes, na linha de Millôr, Silveira Sampaio, Gláucio Gil e João
Bethencourt, Paulo Pontes parece ter guardado de sua experiên-
cia no Opinião, o dom de enveredar, com clareza e inteligência,
pelos amargos caminhos da crítica social. Com dialogação flu-
ente e artesanato seguro, construiu uma comédia de grande ape-
lo popular”110.
Um Edifício Chamado 200 valeu a Paulo Pontes o prê-
mio de Autor Revelação em São Paulo, no ano seguinte à sua
montagem, 1972.
223
2.4 - A Palavra de Paulo Pontes
224
visão tecnocrática que procura conciliar a pobreza do subdesen-
volvimento com o modelo gerado pelo máximo grau de desen-
volvimento da economia capitalista, descobriu uma maneira in-
fernal de institucionalização do sonho: a Loteria Esportiva”111.
Esse é o parágrafo básico do seu texto, em que ele expõe
o quadro geral do qual parte o seu pensamento para equacioná-
lo através de uma personagem padrão. Na segunda parte, ele
concentra em Alfredo Gamela a perspectiva geral do homem que
aposta na Loteria: “Como milhões de pessoas que têm de seu
apenas a capacidade de trabalhar, Alfredo Gamela joga na Lote-
ria Esportiva. Com uma diferença. Milhões trabalham e jogam.
Gamela, apenas joga. E se ele ganhar? Todos os sonhos de Ga-
mela serão realizados. E sua experiência de ganhador - será en-
trevistado na rádio, na TV, primeira página dos jornais - estimu-
lará ainda mais o sonho de milhões de pessoas que, por enquan-
to, são donos, apenas, de seu próprio corpo, dotado da capacida-
de de trabalhar”.
Por fim, Paulo Pontes não consegue esconder a sua sim-
patia de autor pela personagem, mesmo que não concorde com
111 PONTES, Paulo. “Um Edi}cio Chamado 200”. In Arte em Revista/6. São
225
as posições assumidas por ela. Num jogo pirandelliano, Paulo
Pontes aceita que Alfredo Gamela seja um tipo independente de
sua vontade: “Enquanto escrevia a peça, fui tomado de uma tal
simpatia por Alfredo Gamela, que, apesar das falhas do seu cará-
ter, torci muito pra ele ganhar na Loteria Esportiva. O público,
com sua extraordinária capacidade de ficar do lado certo, tam-
bém vai torcer, espero”.
226
3. Check-up
112 PONTES, Paulo. “Autor não pode viver só de teatro”. Rio de Janeiro, Úl-
227
dentro, no hospital da Lagoa, no Rio, ele escreveu uma peça
chamada Chek-up”113.
Paulo Pontes disse que a peça discute “talvez os proble-
mas mais candentes que afetam a vida do brasileiro hoje”114,
embora não diga quais problemas seriam esses.
A linha geral do texto é muito simples: um ator que é in-
ternado em um hospital para tratar de uma úlcera no duodeno. O
tempo passa. A operação nunca é realizada por causa de uma
suspeita de tuberculose; enquanto isso, o ator incomoda a rígida
norma hospitalar com os seus conceitos racionalistas, sua ironia,
sua capacidade de perceber as contradições entre a instituição e
o seu fim.
Paulo Pontes, para a imprensa, não disse quais são os
problemas candentes que afetam a vida do brasileiro, mas, anali-
sando o seu texto, conhecendo sua história e, particularmente, a
história que o país vivia, é possível perceber que Check-up é
uma peça escrita contra a censura.
228
A história da luta travada entre os artistas de teatro e a
censura está fartamente documentada pelos trabalhos de Yan Mi-
chalski, de Tânia Pacheco e, em perspectiva histórica, por Sônia
Salomão Khéde115.
Paulo Pontes, em 1976, disse a Sérgio Gomes, que o tea-
tro, premido pela censura, fora obrigado a buscar nova sintaxe
do espetáculo, de forma que pudesse continuar falando, mas em
uma linguagem que não fosse detectada pela censura116.
Em 1975, falando a Sérgio Fonta, ele apontou qual o
problema que trás para o teatro a tal sintaxe que engana a censu-
ra: “Impede que vá para os palcos aquilo que o teatro tem de
vantajoso sobre a dramaturgia estrangeira, que são a personagem
e o problema brasileiro. Na medida em que os temas que mais
interessam, que estão mais ligados à vida de todo o mundo, na
medida em que as personagens mais reconhecíveis pela consci-
115 MICHALSKI, Yan. O Palco Amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir, 1979 & O
116 GOMES, Sérgio. “Paulo Pontes, a Gota D'água contra a maré”, in Folha
229
ência pública não estão podendo ser escritos, fica empobrecida a
capacidade de diálogo do autor brasileiro com o seu público”117.
Eis, então, o grande problema que a censura lançava na
dramaturgia brasileira: era preciso escrever em linguagem cifra-
da. Acontece que linguagem não compreensível pelo censor
também não é compreensível pelo público, mesmo porque de
teatro os censores (treinados pelo então Serviço Nacional de Te-
atro - hoje Funarte) entendiam o suficiente.
Check-up é um texto cuja linguagem precisou de signos
obscuros para alcançar o público: Zambor, a personagem cen-
tral, a todo momento, por qualquer motivo, é impedido de fazer
o que deseja. E o que deseja é muito simples, lógico, racional.
Mas há sempre uma ordem superior, um regulamento qualquer
do hospital que o impede.
Mas aí uma pergunta se impõe: quem é Zambor? - um
ator, ou por outra, um homem capaz de construir em si os signos
de uma cultura, e de torná-la viva como a expressão de um
povo. Por esse motivo Zambor vive de citar trechos de peças a
230
propósito de qualquer coisa. Zambor, a personagem, é a repre-
sentação imagética do setor cultural de uma sociedade.
Check-up é uma volta metafórica, um jogo onde o tema -
censura está presente e ausente ao mesmo tempo. Foi assim que
Gilberto Tumscitz percebeu a peça, quando de sua estreia no dia
6 de setembro de 1972: “Num primeiro nível, a peça coloca o
conflito de um homem inteligente - habituado a raciocinar, a to-
mar decisões, a optar pelo que lhe parece certo - com uma insti-
tuição cheia de contradições - o hospital, reflexo de uma socie-
dade despreparada /.../ Num nível profundo, para os espectado-
res sensíveis, a fraqueza do próprio Zambor, fera acuada, seu
medo da morte em contraste com seu pavor à vida. Tudo nos é
servido na mais perfeita carpintaria de teatro realista, de que
Pontes só escapa uma vez, por alguns minutos do segundo ato,
para compor uma cena belíssima em que Zambor, a partir de
uma discussão com o médico, se interroga e nos interroga sobre
a própria essência do teatro”118.
No clima policial que se vivia, nada podia ser dito clara-
mente, nem pelo autor nem pela crítica. Quem escrevia era obri-
118 TUMSCITZ, Gilberto. “O voo mais alto de Paulo Pontes”. Rio de janeiro, O
231
gado a falar alusivamente sobre assunto que fosse passível de
censura. E tudo o era. Os trabalhos de Tânia Pacheco e de Yan
Michalski estão repletos de casos ridículos de censura, mas, para
exemplificar, sem sair de Paulo Pontes, o sem-limite despótico
da censura, é bastante lembrar um caso contado por Paulo Pon-
tes numa conferência dada em Fortaleza: dizia Paulo que no
show que escreveu para Elizete Cardoso havia uma rubrica no
texto: “Canhão Móvel”. Ou seja: em algum momento um poten-
te refletor móvel deveria criar um círculo de luz em torno da
cantora. Diz Paulo que a censura percebeu a periculosidade da
indicação e, simplesmente, cortou a rubrica, que é a parte do
texto não falada119.
Paulo Pontes não se conformava com a existência da
censura. Eis o que ele disse a Sérgio Fonta, a propósito da cria-
ção do Conselho Superior de Censura, em 1975: “No momento
que há o impasse e diz-se que vai ser criada uma instância supe-
rior de censura, eu, como pessoa ligada diretamente ao proble-
ma, não posso dizer que estou a favor do Governo. Se disser que
estou, ele faz o Conselho que quiser e depois diz que foi o que
119 Jornal O Povo, “Paulo Pontes e o novo movimento teatral do Rio”. Forta-
232
nós quisemos. Digo sempre: em relação à censura tenho uma
posição de princípio. Acho que a obra de arte, de pagamento,
não deve receber nenhum tipo de censura. Está aí a história da
cultura para demonstrar que a censura sempre foi maléfica. Não
me importa se o propósito do Governo é melhorar ou atenuar o
problema criando um Conselho Superior. O que me importa é
que quanto à censura eu sou contra e faria uma besteira crassa se
dissesse que estou a favor, pois não está em mim criar um Con-
selho de Censura. Como não sou eu que vou fazer, não posso
avalizar, na qualidade de pessoa prejudicada, uma proposta so-
bre a qual não tenho controle. Sou contra a criação de qualquer
instância de censura, seja feita por policial ou por intelectual,
não me interessa”120.
Sônia Salomão Khéde, examinando o problema da cen-
sura, fala de sua ilegalidade como norma jurídica, já que na ope-
ração jurídica a proibição fundamenta-se na lei que, por sua vez,
está ligada a um sistema penal. A lei, enquanto interdição, prevê
o crime e pune depois do crime ocorrido. No caso da lei de cen-
sura, o procedimento é diferente, porque ela se constitui, ao
233
mesmo tempo, na proibição e punição, impedindo que ocorra o
“crime” previsto121.
Paulo Pontes lutou como foi possível contra a censura.
Uma das formas que encontrou foi a de escrever sobre ela, já
que era de escrever que ele vivia. Check-up é a sua contribuição,
embora alusiva, ao problema. É como se fosse a radiografia de
um tempo doente, um tempo sem liberdade.
Em relação à peça, a sua estrutura, Paulo acreditava que
ela suportava o que era discutido: “É bem armada como narrati-
va e os golpes teatrais que são apresentados a cada instante fa-
zem com que o público esteja permanentemente atento. Por isso
é que apesar de - vou usar uma expressão que não gosto - mais
séria, o público sai do Check-up com a mesma simpatia que sai
do 200”122.
234
3.1 - Um Manifesto Pela Razão
235
Em seguida, ele particulariza o problema, sob a ótica de
como se pode enfrentar o irracionalismo subdesenvolvimentista:
pela lente da razão: “Colocar um instrumento racional de conhe-
cimento diante da pobreza planejada, da calculada transferência
da renda da maioria para as mãos da minoria, é simplesmente
pôr em confronto a razão e o irracionalismo. Nesse confronto, o
irracionalismo tem armas poderosas: é pedante, autoritário, in-
transigente, livre-atirador e, se o apertarem muito, inescrupulo-
so. A razão é apenas racional. Sua única arma é o movimento
incessante e permanente da experiência social: seu único ali-
mento é o fenômeno novo que a experiência social revela a cada
momento de sua trajetória; sua única certeza: a dúvida; seu ali-
mento: o real; sua estrada: a História”.
Determinado o ponto de conflito entre a irracionalidade
do subdesenvolvimento planejado e a razão como arma de con-
fronto, Paulo Pontes transfere a discussão para a personagem
central, Zambor, concentrando nela todo o problema anterior-
mente proposto. Para Paulo, Zambor é o homem de infatigável
apetite pela razão. “A luta dentro do hospital - diz Paulo - modi-
fica Zambor diante do público. A trajetória de Zambor, como
personagem, dá conteúdo ao seu racionalismo. Zambor entra no
236
“hospital” com sua inteligência extraordinariamente bem prepa-
rada, do ponto de vista metodológico, para pensar o mundo; ele
articula com muita desenvoltura as categorias de organização do
pensamento. Mas, suas categorias de pensamento não deixam de
ser esquemas, ele as usa de maneira especulativa, ele reduz a
realidade aos seus métodos. No entanto, sua luta dentro do
“hospital” lhe ensina a primeiro conhecer, concretamente, os
fenômenos da realidade e, só depois, aplicar sua monumental
capacidade de apreender e ordenar o significado de cada um de-
les. As lutas do “hospital” dão concretude à lógica infernal de
Zambor. Ele deixa de ser um especulador formalista e passa a
ser um homem que influía nos acontecimentos à sua volta. Zam-
bor aprende a respeitar a realidade e, por isso, aprende a modifi-
cá-la”.
Paulo Pontes faz sua personagem descobrir que na luta
contra a irracionalidade, Zambor tem um aliado (que está pre-
sente simbolicamente na figura de dois enfermeiros): o povo:
“Zambor descobre que entre as mais legítimas aspirações do
homem e a realidade, ainda existe um pequeno escondido nexo:
o povo (a que ponto chegamos: chamar o povo de pequeno e
escondido). Zambor ainda se salva da loucura. A arma que ele
237
descobre é desesperadoramente frágil. Mas disso eu tenho certe-
za, é preferível um povo derrotado a nenhum povo. Ao povo
derrotado, restam as cinzas da malandragem. Ele renascerá de-
las”.
3.2 - O Texto124
238
ZAMBOR - Faz muito barulho.
VILMA - Mas não pode. Tem que ficar aberta...(ESCANCA-
RANDO A PORTA) - Bem aberta... Pra todo mundo ver que está
aberta.
ZAMBOR - E por que é que tem de ficar aberta?”
239
Assim ele conduz toda a peça. Questiona, por exemplo, a
proibição de fumar seus cigarros, a proibição de visita a partir
das 22 horas, sempre em pontos espalhados no texto, de tal for-
ma que cada questão surge após o esgotamento da anterior. A
peça é curta exatamente para que Zambor não possa perder-se
em sua argumentação, e para que, também, o seu constante
questionamento não canse a plateia, pelo seu racionalismo, e por
ser o único vetor da ação.
As personagens dividem-se em dois grupos: o Médico e
Sílvia, a Enfermeira-chefe, de um lado; de outro, Vilma, enfer-
meira, e um ajudante de enfermagem de nome Meu Filho. Zam-
bor, postado entre os dois grupos, conquista, com a sua irreve-
rência, o grupo composto por Vilma e Meu filho. Este chegando,
inclusive, no fim da peça, a roubar, com a anuência de Vilma,
um remédio que não constava em sua papeleta. Mas se Zambor
consegue conquistar o grupo mais frágil de personagens, não
conquista, por sua vez, o grupo mais forte.
Esse grupo de personagens frágeis seria, como já dito, a
representação do povo. Eis o que Vilma diz para Zambor, no
momento que eles se reencontram, após o incidente da porta fe-
chada:
240
“VILMA - A gente tem que cumprir ordens. A Enfermeira-chefe
diz: doente, a gente dá o pé e ele quer a mão... O hospital não
pode... Se for dando regalias daqui a pouco todo mundo quer
tudo...”
ZAMBOR - Ahnnn. Quer dizer que você está com raiva de
mim?
VILMA - Agora... O senhor vê: eles dão ordens... a gente cum-
pre. De repente não é mais. Irmã Sílvia veio falar com o senhor,
terminou deixando a porta fechada. Eu não sabia que o senhor
era importante. Pra mim... era tudo igual... (TIRA O TERMÔ-
METRO) - No fim quem paga é o pequeno.”
241
“MÉDICO - Se alimenta bem?
ZAMBOR - Eu detesto comida.
MÉDICO - Não gosta de comer?
ZAMBOR - Por que o espanto?
MÉDICO - Sem comer o senhor morre.
ZAMBOR - Comendo morro também.
MÉDICO - Aí é outro problema.
ZAMBOR - Nada disso. Existem dois tipos de fome hoje, dou-
tor. A constitucional e a institucional. A constitucional é a do su-
jeito que passa fome porque não tem o que comer. A Institucio-
nal é a do sujeito que passa fome exatamente porque come.”
242
Todas as proibições constam do regulamento. Isso forne-
ce a Paulo Pontes o gancho necessário para ele voltar com o
tema que lhe é mais caro, do ponto de vista filosófico: raciocinar
sobre o que é o homem, o homem e a vida, o homem e os regu-
lamentos que proíbem a vida, em mais um desenvolvimento do
tema já contido em Rodízio.
“ZAMBOR - Não pode, não pode, não pode, não pode... Posso!
Posso o que eu quiser Dr. Estranguilove... (PARA A PLATÉIA) -
Vocês sabem o que é um homem? O que é que vocês conhecem
de um homem? Nada mais do que aprenderam de anatomia nas
suas faculdades. Um homem é muito mais do que a sua anato-
mia. Você vai abrir o cadáver de todos os homens que já nasce-
ram, examinar cada membrana, e não vai descobrir o que é um
homem. Me mostre aí na sua anatomia onde fica o nervo do
ódio. Não, não... Eu sei que você vai mostrar um pedaço da par-
te antero-posterior do cérebro que gera e transmite o ódio pras
vísceras. Mas essa chuva de articulações, que vai do córtex às
vísceras é feita com a corda de que não sei que violino que só o
homem é que tem; e se você experimentar reconstruir uma répli-
243
ca desse instrumento... Se quiser, vamos valer... Ele não vai sen-
tir ódio nenhum. Assim era muito fácil... Você pega um ho-
mem... esse troço que extrai de si um mistério a cada segundo,
só para no minuto seguinte sentir o prazer de uma nova revela-
ção... E diz pra ele: “Não pode”... Não pode nada. Não pisa na
grama, não cuspa no chão, não faça pipi nas calças, não faça má
criação, não cruze esta porta, não diga palavrão... Por que, Dou-
tor?... Pra dizer que o homem não pode, vai ter que rebolar mui-
to. O homem pode. “Há muitas coisas maravilhosas na natureza,
mas a maior delas é o homem...” Sófocles. Quer saber mais do
que Sófocles, Doutor de Merda? E agora? O homem pode. Eu
afirmo que pode...”
244
e dentro desse espectro conceitual, busca no campo da poesia, a
poesia teatral, a palavra posta em ação, capaz de gerar diversi-
dade de emoções e sentimento:
245
acender o refletor em cima de uma voz para ela gritar num palco
que a aventura humana tem sentido... Doutor, eu tinha um eletri-
cista chamado Elias... O senhor não sabe como é que ilumina o
teatro. A gente numera os refletores e joga eles em cima do pal-
co conforme o movimento dos atores. Eu gritava: Elias, dá o de-
zoito, pra aquela hora que Woyzeck olhar pro horizonte... Joga o
vinte em cima de mim pro velho Ifraim dizer que não vai raste-
jar... Dá toda luz nos mendigos de Górki... Quando O'Neill mos-
trar que o ser humano tem coragem de até cheirar sua podridão,
você baixa a luz, Elias... Não, Elias, essa não. A luz da Velha
Senhora é aquela da gelatina barro-escuro... Dá um close na cara
do Papa, quando ele forçar Galileu a abjurar... Olha, Elias, e
presta atenção na minha silhueta. Quando eu for terminando a
frase você entra em resistência, assim: “apaga-te, débil facho. A
vida não é mais do que um sombra passageira, um pobre ator
pavoneando-se e excitando-se uma hora sobre o palco, e que de-
pois se deixa de ouvir...” Vai escurecendo e apaga, Elias. Apaga
porque isso era o que dizia Macbeth, que confundiu o seu desti-
no com o da humanidade. Agora, dê toda a luz, até a da plateia,
pra fala de Fortinbrás no final do Hamlet. (PAUSA. GEMEN-
DO) - Meus nervos não suportam mais...”
246
Zambor termina por morrer. O interessante é que se trata
de um artista com veleidades intelectuais. Apesar de todo o seu
racionalismo, do seu ceticismo, ele afirma que a vida tem senti-
do, que tem sentido a aventura humana, mesmo que o homem
sofra restrição de sua liberdade, tem sentido viver e lutar. O
mesmo conceito de crença na aventura humana será emitido
pelo casal de velhinhos na peça Em nome do Pai, do Filho e do
Espírito Santo, que Paulo Pontes escreveria em companhia de
Alfredo Zemma.
Mesmo considerando que o texto tenha sido escrito sob
encomenda para Ziembinski, e que de alguma forma o nome
Zambor da personagem central lembre o nome de Ziembinski,
247
Zimba125, como era chamado, não é possível esquecer que
Check-up é a obra de um homem que conhecia a rotina dos hos-
pitais e, por isso, tivesse o pressentimento de que a vida é tênue,
que a vida do modo que era, sem liberdade, é um vazio, um fio
estendido sobre o abismo.
Check-up, em 1972, ganhou o prêmio Governador do
Estado da Guanabara.
125 O professor Dr. Fausto Fuser, durante a apresentação deste nosso traba-
248
4. Dr. Fausto da Silva
249
Mas não um tipo qualquer: um apresentador de programa
de televisão. Portanto, alguém especializado em comunicação de
massa. Alguém capaz de manter alto o índice de Ibope no horá-
rio nobre.
Alguém que, como o próprio Paulo Pontes, conhecia pro-
fundamente os segredos, os “macetes” da linguagem telecomu-
nicativa. Paulo Pontes refletia mais uma vez sobre o fenômeno
da televisão. Em Dr. Fausto da Silva, criou um texto cuja ação é
condensada em movimentos diferentes, que concorrem para um
mesmo fim, sinestesicamente articulada por um autor já pleno
em seu domínio da linguagem teatral. Seu Fausto é, a seu modo,
a exemplo do velho Fausto de Marlowe ou Goethe, um texto
filosófico.
Como de hábito, Paulo Pontes teoriza sobre o problema
que o motivou a escrever, no texto de apresentação da peça. É
muito curioso o modo como Paulo encontrou na personagem
Fausto (da Silva) o artifício que exemplificaria a miséria do ho-
mem comum. Paulo Pontes escreveu: “O subdesenvolvimento é
um lençol curto: se cobre os pés, descobre a cabeça; se cobre a
cabeça, os pés ficam de fora. Subdesenvolvimento é sinônimo
de escassez: não há o bastante para todos. Isso coloca o país
250
subdesenvolvido diante de duas alternativas: ou todos comem
pouco, ou uma parte come tudo e a outra fica lambendo os bei-
ços. O modo de produção capitalista opta pela segunda alterna-
tiva para gerir a pobreza do subdesenvolvimento - e tem lançado
mão de um impressionante repertório de fórmulas para conse-
guir a façanha. A última, uma mágica diabólica, consiste em
concentrar a renda nas mãos de uma parte da população para que
esta leve ao paroxismo o consumo de bens duráveis e mantenha
em expansão o processo produtivo. É uma necessidade desse
modelo importar uma tecnologia cada vez mais sofisticada por-
que ele tem de colocar no mercado uma diversidade cada vez
maior de produtos; e estimular os beneficiários da concentração
de renda a não parar de consumir. A regra é criar novas necessi-
dades de consumo na única faixa que consome. A propaganda é
o grande instrumento de criação de hábitos de consumo - ela es-
timula o furor aquisitivo (nos 20% da população que adquiriram
poder de compra), sem o que esse sistema perde sua capacidade
de expansão”126.
126 PONTES, Paulo. “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Prefácio e tex-
251
O que tem a ver o subdesenvolvimento com o tema de
Fausto ou mesmo com a peça Dr. Fausto da Silva? Paulo Pontes
vai explicar os meandros do seu raciocínio logo adiante. Antes, é
preciso lembrar que no ano de 1972 o país estava mergulhado
em plena ditadura Médici, e o Ministro Delfim Netto manipula-
va os dados da economia, auxiliado pelo silêncio imposto à im-
prensa, com o objetivo de apresentar à classe média o “milagre
econômico”, que viria redimi-la e presenteá-la, finalmente, pelo
apoio dado ao golpe de 64. Com o “milagre” operado na eco-
nomia, a classe média poderia consumir cigarros de filtro cada
vez mais sofisticados, televisão a cores, e com um pouco de es-
forço, um fusquinha.
Paulo Pontes estava atento para o engodo que se deno-
minava “milagre”, como convém a um país católico. Por isso, o
seu Dr. Fausto da Silva, uma peça que, lançando mão de um
tema antigo, apresenta a situação de um homem (ou de uma
classe social) que pactuou com o inimigo para garantir status
quo.
Vejamos, enfim, o que tem a ver, na concepção de Paulo
Pontes, o Dr. Fausto da Silva com o tema do subdesenvolvimen-
to: “É uma comédia que se passa na televisão, mas a televisão, o
252
instrumento mais eficaz de mudança de hábitos de consumo, é,
para mim, nesta peça, apenas o ambiente através do qual se tenta
revelar como uma sociedade planejada para entregar o produto
do trabalho social às mãos de uma minoria pode deformar o que
há de mais legitimamente humano nas pessoas. Isso porque não
apenas os inteiramente marginalizados desse sistema aqui ex-
posto estão pagando caro. O processo é tão seletivo que os que
estão disputando uma vaga no clube tem um preço humano mui-
to grande a pagar. “Vender a alma” é a metáfora precisa para ex-
plicar o dano causado ao homem bem sucedido pela diabólica
aventura de conseguir status de minoria privilegiada num país
subdesenvolvido. O meio mais contundente que eu encontrei
para exemplificar os danos humanos, éticos e sociais que esse
sortilégio desenvolvimentista vem causando no caráter do ho-
mem brasileiro, foi criar uma personagem que é levada a hipote-
car as últimas fibras de humanidade que tem dentro de si para
continuar sendo um homem bem sucedido, num país de pobres
miseráveis” (p. 54).
Vendendo a alma ao Demônio, Fausto, no poema de Go-
ethe, é condenado às penas infernais, do mesmo modo que, no
Brasil, vendendo sua capacidade de produção, a classe média se
253
vê, ao final do dito “milagre”, mais empobrecida; do mesmo
modo que o Dr. Fausto da Silva, ao se vender aos índices do
Ibope, vê-se fracassado, ridicularizado.
O ridículo de Fausto da Silva, a personagem, começa
pelo próprio título que ela se dá: “Doutor”. Na disputa pela con-
quista de status, qualquer pobre coitado que ascendeu social-
mente um pouquinho, recebe o título de “doutor”, indistintamen-
te: de advogado de porta de cadeia a delegado de polícia: de
médico residente a engenheiro ou deputado, o título precede o
nome como se fora marca de sua “superioridade” hierárquica. O
título, aliás, é socialmente aceitável como registro de ascensão.
Por isso, Fausto da Silva chamar-se Doutor. Por isso também o
sobrenome popular da Silva acrescentado ao nome Fausto: o
tema do homem que se vende, somado ao drama de uma classe
que se deixa vender, resulta numa trama de profunda ironia.
Mas em Paulo Pontes a ironia é antes compaixão. Assim
foi com Alfredo Gamela (Um Edifício Chamado 200), é assim
com o Dr. Fausto da Silva: “É inevitável que sua alma escorre-
gue do seu corpo na subida. Dr. Fausto está nos escritórios, nas
fábricas, nas cátedras, nos púlpitos. Foi por isso que, compreen-
dendo que Dr. Fausto são milhares de homens que não podem,
254
sozinhos, quebrar uma regra do jogo que os desumaniza, não
procurei tratá-lo como réu. Ele é agente e vítima. A miséria ma-
terial é o preço que se exige da imensa maioria posta à margem;
a miséria moral é o preço que a minoria é obrigada a pagar” (p.
55).
4.1 - O Texto
255
apresentador de um programa de televisão, sabe-o muito bem o
Dr. Fausto da Silva, significa dinheiro, significa poder: e sua
ambição última não é outra.
No livro que trata do tema fáustico, Haroldo de Campos
afirma que a perspectiva da humanidade, para o Fausto de Go-
ethe, coincide com o da burguesia capitalista127.
Se na época de Goethe o pensamento burguês se estrutu-
rava, e se o seu Fausto espelhava toda a contradição refletida na
modernidade burguesa, na época de Paulo Pontes, e num país
vilipendiado pela corrupção, o seu Dr. Fausto da Silva refletia
um velho lema que é apanágio de todos os corruptos: levar van-
tagem em tudo. E para isso, ele não mede esforços: se para re-
conquistar os índices de audiência perdidos fosse necessário
apresentar a sua própria mãe morrendo, ele não hesitaria em
levá-la à frente das câmeras e apresentá-la moribunda.
A imagem do Dr. Fausto da Silva é degradante na mesma
proporção (embora inversos de natureza) que é grandiosa a ima-
gem do velho Fausto. Se Fausto é um filósofo hedonista, o Dr.
Fausto da Silva é um canalha fundamental.
127 CAMPOS, Haroldo de. Deus e o Diabo no Fausto de Goethe. São Pau-
lo: Perspectiva, 1981, p. 120.
256
A canastrice da personagem Dr. Fausto da Silva é o bási-
co da peça. A sua luta para conseguir maior índice de audiência
é o problema proposto pelo texto, que se desenvolve em três dis-
tintos movimentos sinestésicos:
257
“THIAGO - A história que eu quero lhes contar é a trajetória do
tipo mais fantástico que eu conheci nos meus dezesseis anos de
profissão. Eu não me sinto muito bem contando essa história,
mas vamos lá. Esse cara que eu falo fez uma sacanagem comigo
que eu nem sei como ainda pronuncio o nome dele. Há oito anos
eu produzi um programa dele em São Paulo. Estava casado de
pouco, meu filho tinha um ano por aí. Eu estava vivendo uma
fase difícil, minha casa virou um inferno, uns colunistas de fofo-
ca começaram a noticiar que minha mulher tava saindo com um
cantor. Eu briguei com ela, queria dar tiro, essas coisas. Um dia,
na hora do programa entrar no ar, minha úlcera tava quase estou-
rando, tive uma crise de vômito, a entrada do programa atrasou
uns sete minutos. No outro dia, quando veio o Ibope, o primeiro
quadro do programa foi muito baixo por causa do atraso - e esse
cara, mesmo sabendo que minha úlcera estava estourando (e es-
tourou, depois eu tive que operar), foi pra direção e pediu minha
cabeça. Ele era a maior audiência da estação - me botaram pra
fora e ainda alegaram justa causa. Sacanagem como esta ele fez
com muita gente. Pois bem. É a história desse cara que eu quero
contar aos senhores esta noite. Apesar do ódio que sinto por ele,
258
não posso deixar de dizer que foi o mais fascinante personagem
que eu conheci na televisão. Vamos começar a história dele
como começam os shows da TV. Minhas senhoras e meus se-
nhores, eu lhes apresento o Dr. Fausto da Silva” (p. 59).
259
anunciadas vão entrando em cena gradativamente no tempo do
programa, ao passo que as cenas que compõem o terceiro mo-
vimento da peça vão elastecendo o tempo compacto do progra-
ma, dando a ideia de que o público não está assistindo a um, mas
a vários programas do Dr. Fausto da Silva.
260
por ser não a sua imolação, mas o espetáculo de sua mãe mor-
rendo com o programa no ar. Esta morte, por sua vez, foi o que
Thiago, ao ser convidado pelo Diretor para mudar os índices do
Ibope, tramou, com o objetivo de vingar-se da traição do Dr.
Fausto da Silva.
Assim, Paulo Pontes consegue somar tempos diferentes
de diferentes ações para o mesmo ponto comum ao final da
peça. Por exemplo: se o tempo do segundo movimento é com-
pacto (a apresentação do programa), o tempo do terceiro movi-
mento é extenso: os vários contatos do Diretor com Thiago, pro-
pondo-lhe assumir a produção do programa, Thiago recusando,
aceitando, e criando a ideia de destruir o apresentador Fausto da
Silva. Estes dois movimentos se intercalam em várias cenas es-
palhadas ao longo da peça. Sendo que o segundo e o terceiro
movimentos estão contidos no primeiro, que é a história do Dr.
Fausto da Silva, contada por Thiago. A peça termina no terceiro
movimento, quando Fausto da Silva apresenta sua mãe mori-
bunda diante das câmeras. Ao final do terceiro movimento, já
morta a mãe de Fausto, Paulo Pontes faz o texto retornar ao pri-
meiro movimento, desta vez com Thiago apresentando o seu
programa Thiago de Almeida, naquela noite entrevistando o ex-
261
animador de TV Dr. Fausto da Silva. E do mesmo modo que
Fausto da Silva anunciava a grande atração da noite, prometida
desde a semana anterior, Thiago de Almeida anuncia a sua gran-
de atração da noite, divulgada desde a semana anterior: a entre-
vista com o Dr. Fausto da Silva.
262
“DIRETOR - Estou há vinte anos nisso, rapaz, já comecei dire-
tor de estação. Público gosta disso128, mas tem de ter a tempera-
tura dele na mão. Essa linha de programa corre o risco de virar
poço sem fundo. É como viciado em cocaína - o cara precisa
cada vez de uma dose maior pra obter o mesmo efeito da dose
anterior. Chega o limite que ou você recua ou toma a dose defi-
nitiva e não tem mais quem levante. O descrédito na imagem de
Dr. Fausto está assim. Ainda dá tempo de recuar. Mais uma
dose...” (p. 64).
263
blema, sabe Thiago, não é o que ela exibe, mas o que ela deixa
de exibir, como já dissera Vianinha sobre a televisão.
No momento que Thiago resolve pôr a mãe de Fausto
para morrer em frente às câmeras, entrega ao Diretor um artigo
que sairia publicado no dia seguinte, supostamente escrito por
um conhecido crítico de televisão. O Diretor não aceita a ideia, a
princípio, para depois perceber que é uma boa ideia, embora ar-
riscada, para aumentar o índice de Ibope. Na discussão com o
Diretor, Thiago termina por fazer um longo monólogo teorizan-
do sobre a televisão, no qual a ideia da dose definitiva de cocaí-
na está presente como uma enorme ambiguidade: seu objetivo é
destruir o Dr. Fausto, mas seu discurso é no sentido de acabar na
televisão programas como o do Dr. Fausto da Silva, que iludem
o senso da realidade, distorcendo assim o que ele (e também
Paulo Pontes) imagina que seja a linguagem televisiva.
264
situação que chegou a sua estação - pique de sete às 9:45 - res-
ponde! Agora, quer saber porque só restam essas duas alternati-
vas?
DIRETOR - Ai, meu saco. Não me vem com essa teoria imbecil,
Thiago.
THIAGO - Dr. Celso, sua estação precisa de um pouco de teoria.
Televisão é uma telinha pequena, com pouca definição visual.
Está numa sala, o sujeito assiste em casa, com gente entrando e
saindo. Ele liga, desliga, toca o telefone, a antena treme, borra a
imagem. Então, Dr. Celso, pro nego sentar o rabo e ficar vendo
aquela telinha, é preciso que ela lhe mostre um troço muito di-
reto. Uma paulada forte, um negócio que lhe chame a atenção,
ou porque diz respeito à sua vida ou porque é um acontecimento
fora do comum. Mas tem que ser mostrado de maneira direta,
porque o veículo é pobre visualmente, não resiste a muita elabo-
ração. Qual foi o produtor que bolou a Copa do Mundo, a Guer-
ra do Vietnam, a ida do homem à Lua, ou o desabamento do vi-
aduto? Nenhum. Mas por que esses acontecimentos deram índi-
ces tão altos de audiência? Porque a única coisa que difere a te-
levisão dos outros veículos é que ela é capaz de mostrar imagens
e sons de um acontecimento na hora em que ele está acontecen-
265
do. Televisão é só isso. E isso é maravilhoso. A definição visual
é baixa, a antena treme, o escambau! Mas dê um acontecimento
real a uma câmera de televisão e ela fará o que nenhum outro
veículo pode fazer129 /.../ Tire a realidade da televisão, a realida-
de crua e nua /.../ e restará apenas naquela telinha pequena dois
equívocos. As duas alternativas que eu acabei de lhe mostrar /.../
Na falta de problemas reais, a televisão forja problemas e dis-
cussões com a aparência de reais. O Dr. Fausto não entende, mas
ele tem uma profunda intuição da verdadeira natureza da televi-
são. Na falta de um debate sobre um problema real, ele produz
uma briga em torno de uma besteira. Aquela briga, aquela troca
de insultos que os trouxas estão pensando em casa que é pra va-
ler, é uma tentativa de dar aparência natural a um acontecimento
manufaturado num estúdio! Mas o Dr. Fausto não sabe que não
basta a briga - é preciso que a briga tenha um motivo verdadeiro.
Quem mente em televisão é trouxa! Se queres audiência, não
mentirás! Porque ninguém ilude o olho de uma câmera. Ele é
frio. E porque a briga é falsa, sem conteúdo, o Dr. Fausto precisa
certeza valia para o seu tempo. Porém, a tecnologia demonstra que a televi-
são suporta algo mais do que simplesmente uma câmera aberta sobre um
acontecimento real.
266
toda semana de uma briga mais escandalosa para conseguir o
mesmo efeito da briga anterior. É preciso uma dose cada vez
maior de cocaína pra conseguir o efeito da dose anterior...” (p.
73).
267
“FAUSTO - /.../ E vocês amanhã vão dizer que tiraram o meu
programa do ar por quê? Quero ver ter peito. Pensa bem, Celso,
como é que vai justificar tirar o meu programa do ar com minha
mãe morrendo. Vai dizer que eu estava apelando? Experimenta,
safadão. Eu vou lavar a roupa suja desta merda. Vão acreditar
em mim porque, eu não sei se você sabe, eu sou o Dr. Fausto da
Silva. Cadê tua pesquisa que botou a estação pra trabalhar pra
classe C? “Teu programa tá muito alto, Fausto, precisamos falar
pra classe C”. Estou falando pra classe C, urubu. Estou venden-
do as minhas tripas, os meus nervos, o meu sono, a minha alma
pra classe C. Estou vendendo a minha alma em troca de audiên-
cia para a tua estação porque você me disse que ela precisava
faturar /.../ Eu ganhei de vocês todos. Vão ver amanhã a minha
audiência. Vão ver amanhã se a mãe do palhaço morta não es-
tourou. Computa aí, vê se eu não ganhei em tudo quanto é clas-
se. Vão ver se não tinha de mendigo a grã-fino esperando um
canalha arrancar um pedaço de sua própria carne. Vê minha au-
diência amanhã, Thiago de merda. Thiago do bom gosto equivo-
cado. Parasita da falta de escrúpulos alheia, quanto é que você
ganhou para acabar de vender a minha alma ao Diabo? Eu ga-
268
nhei muito dinheiro, mas a alma era minha. E eu ganhei de você
porque eu vendi a minha alma e você vende a dos outros...” (p.
77).
269
absurdo. Como forma, disse Flávio Rangel, também é ambiciosa
e nova, “pois mistura desde elementos da comédia musical até a
tentativa de uma catarse, através do verdadeiro striptease psi-
quiátrico que seu protagonista realiza ao final” (p. 55).
Dr. Fausto da Silva pode ser uma mistura de vários esti-
los, sem dúvida. Mas é, antes de tudo, um texto resultante da
maturidade de um autor que caminhou lento e seguro para o
domínio da linguagem teatral.
270
5. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo
272
transgride a letra da lei. Em Paulo Pontes e Alfredo Zemma, a
lei é o direito e, diante dela, o homem não é nada, refletindo o
instante em que a ditadura tinha estabelecido a sua lei e o seu
direito.
Por fim, a quarta referência: o próprio texto de Paulo
Pontes, Um Edifício Chamado 200. A situação do casal Eugênio
e Eugênia é idêntica à do casal Alfredo Gamela e Karla: presos
dentro de um apartamento, sem emprego, sem perspectiva, Eu-
gênio e Eugênia sonham com a vida que viveram, sem forças
para transformar a vida que vivem, enquanto os credores levam
do apartamento tudo o que lhes é caro: a coleção completa dos
discos de Caruso, os choros de Ernesto Nazareth, além dos mó-
veis, do piano, tudo. Só lhes restando o filho completamente pa-
ralítico e mudo, dentro de uma cesta.
273
5.1 - O texto130
274
“MENDIGO - Você não pode exigir nada! Aqui, agora, só quem
exige sou eu. E vou começar a exigir tudo o que eu quiser... Já...
Neste momentinho... (PROCURA NOS SEUS BOLSOS) - eu
tenho lápis e papel... Ah, estão aqui... (COLOCA O PAPEL SO-
BRE A CAMA DO VELHO. A VELHA AGARRA A CAIXA
ONDE ESTÁ O FILHO. O MENDIGO AGARRA O VELHO
PELO COLARINHO, E O OBRIGA A SENTAR NA CAMA E
APANHAR O LÁPIS PARA ESCREVER. Agarra o lápis... Es-
creve...
EUGÊNIO - Está bem, escrevo... Mas, antes, me solta, senão eu
não posso escrever (O MENDIGO O SOLTA).
MENDIGO - Escreva... Nós, Eugênio Cavalcanti de Albuquer-
que e Eugênia Cavalcanti de Albuquerque /.../ em plena liberda-
de e consciência de nossos atos, firmamos o presente contrato:
primeiro, cedemos nosso inválido filho a nosso inquilino, para
ser explorado comercialmente durante cinco anos...
EUGÊNIO - Quatro...
MENDIGO - /.../ Quatro e meio e fim de papo /.../ Para cujo
efeito lhe outorgamos a posse do supracitado inválido. Segundo:
da referida exploração comercial, nosso inquilino perceberá a
quantia de quarenta por cento da renda bruta, nós, os cedentes,
275
quarenta por cento, e os vinte por cento restante serão gastos em
despesas de manutenção” (p. 60).
276
tornou-se, entre o casal e o Mendigo, o ponto de conflito. Invá-
lido é só um modo de dizer: para o casal, há a esperança da sua
recuperação; para o Mendigo, há ali uma fonte de renda.
E tem razão o Mendigo: no segundo movimento da peça,
após firmarem o contrato de exploração comercial da criança, os
móveis e objetos que tinham sido confiscados pela justiça, vol-
tam para a casa dos velhos artistas. Agora, eles já têm dinheiro.
Agora, podem cuidar da operação do garoto.
Acontece que o tempo que resta de exploração ainda é
longo. O terceiro movimento da peça é o desaparecimento do
menino do ponto onde ele é habitualmente colocado. O Mendi-
go, como de costume, tem acesso de fúria. Eugênio aproveita a
notícia que o Mendigo lhe traz, e pede que ele deixe a casa. Ao
fim do quadro, o Mendigo descobre que Eugênio tinha raptado o
garoto, marcado operação e, óbvio, desrespeitado o contrato
firmado entre eles.
O movimento seguinte é o julgamento. O juiz apresenta
os caminhos tortuosos do seu pensamento, num longo discurso
pleno de nonsense, no qual cita desde Charles Darwin até o Cor-
cunda de Notre Dame; desde Incitatus, o famoso cavalo-senador
de Calígula, até o Tio Patinhas, numa busca falsamente erudita
277
de encontrar a solução para o caso da criança. O discurso do juiz
lembra os enormes discursos que a máscara do Dottore da
Commedia dell'Arte costumava fazer. O Dottore, assim como o
juiz de Paulo Pontes e Alfredo Zemma, por qualquer motivo era
capaz de pronunciar um longo e absurdo discurso, com a empá-
fia de quem está emitindo a sentença definitiva sobre qualquer
assunto:
278
zada. Mesmo com esforço, não pude classificá-lo em nenhuma
das categorias que definem a pessoa: humana, jurídica, moral,
psicológica, gramatical, teological, física etc. Meu esforço era
pra encontrar uma fórmula que nos permitisse concluir que o
fenômeno em causa é capaz de alguma modalidade de obrigação
e exercer alguma forma de direito. Foi em vão. A dificuldade,
meus senhores, estava em que só se pode ser uma pessoa de di-
reito se se é uma pessoa de fato. Era necessário primeiro desco-
brir se nós estamos diante de uma pessoa humana, do ponto de
vista biológico. Saímos então do terreno do direito. Mas a Justi-
ça não vive de fórmulas jurídicas. Era necessário procurar aga-
salho conceitual em todos os setores da cultura humanista,
mesmo os mais subjetivos. Recordei a obra de Darwin... E não
descobri em nenhuma fase da evolução da espécie uma que, de
longe, se aproximasse das características do fenômeno em cau-
sa. Repassei, em minha memória, o admirável estudo de Cousin
sobre a humanidade do Corcunda de Notre Dame, e não encon-
trei nada que me valesse por que - ora, senhores - o Corcunda de
Notre Dame era apenas corcunda, mas trabalhava tocando aque-
le sinão de igreja, tinha braços, pernas e - pasmem, senhores -
era um apaixonado, cheio de intensos sentimentos. O meu esfor-
279
ço investigatório me levou até ao decreto através do qual Calí-
gula deu status político, portanto jurídico, ao seu cavalo Incita-
tus. Mas, ora senhores, diferentemente do fenômeno em causa,
Incitatus não sofria por falta de membros; ao contrário, tinha as
quatro patas regulamentares, quatro magníficas patas. Não satis-
feito, saí do terreno dos fatos tangíveis e percorri o reino da fan-
tasia. É sabido que Walt Disney deu status humano aos bichos.
Me lembrei de todos os heróis de Disney que eu tanto li em mi-
nha infância - o esperto Pernalonga, o enfezado Popeye, o ava-
rento Patinhas e tantos outros - mas não encontrei nenhum bi-
chinho que, nem de leve, se assemelhasse com o fenômeno em
causa. Senhores, a nossa Justiça atribui capacidade de direito,
mesmo às pessoas que não têm capacidade de fato. Mas não é
capaz de transformar em pessoa de direito quem não é de fato.
Graças a isso é que o Jockey Clube pode ter cavalos, o fazendei-
ro pode ter bois e a madame pode ter cachorros. Ora muito bem,
considerando o que foi dito; considerando que estamos diante de
um dos mistérios da natureza, de um indecifrável desígnio do
Criador, resolvo que: para salvaguardar a ordem das coisas, o
que é planta continue a ser planta, coisa, coisa, gente,
gente...” (p. 77).
280
Talvez o aproveitamento da retórica caudalosa do Dotto-
re como recurso cômico não tenha sido consciente por parte de
Paulo Pontes. Por isso, não a enumeramos como a quinta refe-
rência encontrável neste texto, como fizemos páginas atrás. Sem
desconsiderar que Paulo poderia conhecer essa particularidade
da máscara do Dottore, parece-nos que o texto do juiz, antes de
qualquer referência erudita sobre comédia, em Paulo Pontes, foi
gerado, principalmente, pela sua vivência e observação do gosto
popular pela prosódia abundante - mesmo que eivada de nonsen-
se. Em 1976, em entrevista a Márcia Guimarães, ele disse: “O
povo brasileiro tem muito apreço pela destreza verbal. Eu sou
um homem vindo das classes populares, e eu sei o que significa
um júri na Paraíba, onde eu nasci. A praça se enchia de gente.
Ficavam horas ouvindo os advogados falar”131.
Não seria talvez pelo apreço popular à destreza verbal
que a máscara do Dottore fizesse tanto sucesso? Se a resposta
correta for sim, Paulo Pontes terá provado mais uma vez o seu
agudo senso de observação da alma popular.
281
5.2 - A arte do povo em oposição à arte de consumo
282
ninguém tem a tranquilidade pra viver sua gentileza, sua doçura,
pra chorar suas dores... Aí, pimba! - os fazedores de novidades
bolaram o barulho, porque no barulho fica tudo igual, tudo ator-
doado... Eugênia, eles não querem que ninguém pense. Neste
século estamos feitos bicicleta, quem parar, cai. Mas eu bolei,
Eugênia... Não é mais a grande sinfonia: pra colher aquele bo-
tãozinho embutido na sensibilidade das pessoas nós vamos ca-
merizar a música de toda gente... Canta alguma coisa, Eugênia,
qualquer coisa simples que você canta quando está fazendo uma
sopa...
EUGÊNIA - Como?
EUGÊNIO - Qualquer coisa.
EUGÊNIA - Uma música... (CANTA) Un bell di vedremo...
EUGÊNIO - Não, Madame Butterfly, não... Uma coisa que você
canta espanando os móveis.
EUGÊNIA - (CANTANDO) - Ai, iê, iê...
EUGÊNIO - Isso... Espera... (APANHA O VIOLINO) - Não diz
a letra, só cantarola... (COM O VIOLINO ELE FAZ UM CON-
TRAPONTO CAMERÍSTICO, ENQUANTO ELA CANTA-
ROLA. OS DOIS SE ABRAÇAM AO FINAL) - É isso, minha
283
velha, é isso. Nós vamos camerizar as músicas que saem da
alma do povo...” (p. 63).
284
A conclusão desta cena central, e fundamental no texto,
beira o patético, numa exacerbação de sensibilidade do casal,
como se a cena quisesse preencher, como o seu pranto fácil, a
insensibilidade que os autores pré-determinam no mundo:
285
julga ele, são mais fortes que a opressão, que a injustiça, que a
letra morta da lei. Eugênio acredita que a aventura humana tem
sentido. É isso o que ele tenta dizer ao juiz, no movimento final
do texto, quando do julgamento sobre o direito de exploração
comercial do garoto:
286
velho artista. Por isso, ao final do julgamento, também final da
peça, é ao Mendigo que é dado o direito de explorar comercial-
mente a criança, contra a vontade dos pais de operá-la, recuperá-
la, como ser humano, para a vida.
287
6. Gota D'água
288
falar da peça que queria escrever, um musical, baseado na Me-
deia que fizera sucesso na televisão133.
Chico Buarque, em entrevista a Lisa Oliveira-Joué, disse
que a ideia de Vianinha era, em parceria com Paulo Pontes, es-
crever Medeia para o teatro134.
Deocélia, em seu livro, apresenta Paulo Pontes como
usurpador da obra de Vianinha135.
289
diminui o valor da obra de Vianinha. Ao contrário. Vianinha diz
no seu texto: “Atualização da tragédia de Medeia, da Mitologia
Grega”136.
Vianinha sabia (embora Deocélia não parecesse saber)
que um tema, profundo ou não, não se esgota numa obra. Nem
mesmo num único autor. Goethe, ao escrever o seu Fausto, não
esgotou o tema. Mesmo porque, antes de Goethe, Marlowe, na
Inglaterra, escreveu Fausto, cuja fonte de inspiração deita raízes
na Idade Média. Shakespeare, exemplo clássico, não tem uma
única obra cuja ideia original tenha sido sua.
Um tema não pertence a um homem. A obra, sim. Repetir
um tema não significa plágio. É preciso saber que um tema tem
o seu próprio desenvolvimento básico, a sua estrutura, a sua
concepção do mundo enfocado. Várias obras sobre um tema dia-
letizam o problema que ele traz consigo.
Um tema é um instigamento. A obra a sua resposta. O
tema do amor desvairado, do amor total, sequioso, ensandecido,
do amor que só enxerga para sua satisfação o ser amado, do
amor tão grande, tão absoluto, tão completo quanto incapaz de
290
viver sem o seu objeto, a ponto de, à falta do ser amado, se
transformar eloquentemente em seu contrário; transformar-se em
ódio desvairado, total, sequioso, ensandecido, absoluto, a ponto
de, sofrendo por querê-lo vivo, não pode deixar de sofrer por
querê-lo morto; o tema do amor assim é com certeza mais antigo
do que Eurípides. Mas a sua Medeia tratou-o com perfeição.
Vianinha, reescrevendo Medeia, não perdeu de vista o
seu ponto central: o amor tão cego que é incapaz de distinguir,
quando rompe o seu equilíbrio, o amado do odiado. Mas da peça
de Eurípides, Vianinha atentou para um ponto e o atualizou:
nela, Jasão deixa a casa de Medeia pela casa de Creonte, o rei.
Em Vianinha, Jasão deixa a casa de Medeia pela de Creonte, o
capitalista.
Paulo Pontes manteve a base do tema: a loucura que do-
mina Joana, ao ser abandonada. Mas Paulo atenta para um ponto
no texto de Vianinha e o aprofunda: a traição de Jasão serve de
gancho para que apresente um painel sobre a luta de classes.
Uma obra está profundamente baseada em outra, embora
sejam diferentes.
Dizer que o texto de Paulo Pontes é a mesma coisa da
obra de Vianinha é tão falso quanto dizer que a peça de Vianinha
291
é igual à de Eurípides. O tema é o mesmo; o tratamento é dife-
rente.
Em arte, diz uma frase popular, nada se cria, tudo se co-
pia.
292
grama, nem nos cartazes”138. A vizinha não lera o programa.
Nem Deocélia.
Sábato Magaldi perguntou a Chico Buarque: “Eu gosta-
ria de saber qual a dívida a essa concepção (a do Vianinha) e
onde é que a Gota D'água se afasta dela?”139
Como fora dito, Chico Buarque acredita que a dívida é
maior do que ele poderia imaginar, mas não respondeu a segun-
da parte da pergunta, que trata do afastamento da obra deles em
relação à do Vianinha.
Um pouco antes, Chico disse ao próprio Sábato: “Nós
lemos a Medeia de Eurípides, discutimos bastante o texto e tra-
çamos o roteiro. Foi feito o roteiro de algumas poucas páginas
com a adaptação para teatro. A partir daí, separamo-nos. O Paulo
Pontes ia escrevendo e mandando, paulatinamente, o material
para mim. mandava, assim, de 5 a 10 páginas, eram lotes que
chegavam. Eu pegava o texto dele cru e transformava em versos.
A ideia de se fazer em versos o texto da peça era dele também.
de setembro de 1985.
293
Eu, muito disciplinadamente, fazia em versos com a métrica,
ajeitando a métrica, a rima, tudo certinho e devolvia tudo para
ele”140.
Chico dá a dica de por onde se pode analisar as obras:
somando a Vianinha e Paulo o autor antigo, Eurípides.
294
mos manter a noção da ação das peças, e assim, ao final, estabe-
lecermos o que há de igual entre os textos, e o que há de diferen-
te.
295
Em Eurípides, a personagem Aia relata brevemente o
passado de Medeia, e o que lhe acontece no presente:
“AIA - Jasão traiu os filhos e minha ama para entrar num tálamo
real: desposa a filha de Creonte, que cinge a coroa do país /.../
Deprimida, sem se alimentar, abandona o corpo às dores; con-
some dias inteiros em pranto desde que conheceu a perfídia do
marido; já não alça a vista nem desprende do chão o olhar; pare-
ce uma rocha ou uma onda do mar quando ouve as consolações
dos amigos /.../ É uma alma violenta, não suporta afrontas” (p.
14).
296
perto o olhar que encara a gente/ e pelo jeito dela olhar de fren-
te,/ quando explodir, não quero estar por perto” (p. 4).
297
“JOANA - Não quero consolo nem vaselina/ Eu quero ajuda
mesmo, tá falado?/
CORINA - O que é?...
JOANA - Haja o que houver, você jura/ que você e Egeu ficam
com os pequenos?/.../ Eu tenho braço pra ser operária/ e tenho
peito pra ser marafona/ Mas os filhos, onde é que vão ficar?/.../
Por enquanto eu preciso que você/ mais Egeu tomem conta das
crianças” (p. 86).
298
uma bala no escuro. Quero a morte dela, Ganga. Quero meu Ja-
são vivo para sofrer” (Primeira Parte).
299
criaturas a mais sanguinaria/.../ Eu quero sua vida passada a
limpo,/ Creonte. Conta co'a Virgem e o Padre Eterno,/ todos os
santos, anjos do céu e do inferno,/ eu conto com todos os orixás
do Olimpo!/ Saravá” (p. 90).
300
“EGEU - Joana, pode contar sempre comigo/ pro que precisar.
Sabe que afilhado/ meu não passa fome. Não tem perigo/ Mas o
lugar dos guris é aqui/
JOANA - Mas, mestre, eu não posso ficar cuidando.../
EGEU - Eles não vão se desligar de ti/ Enquanto você tá lá se
ajeitando/ Corina vem, dá banho, faz comida,/ com prazer, mas
você, onde estiver,/ na máquina, na fábrica, na vida,/ lembre que
eles tão em casa, mulher,/ precisando de você para viver” (p.
99).
301
“MEDEIA - Eu sei que a presença da pessoa traída incomoda
muito os traidores. Mas, fora eu ter sido traída, que crime come-
ti?
CREONTE - Ainda nenhum, mulher, fora as promessas!
MEDEIA - Mas o que é que eu fiz, homem?
CREONTE - Medo. Me dá medo. Quem gosta de sentir medo?
O inimigo sibilando por perto? /.../
MEDEIA - Por favor, Creonte... por favor... então, pelo menos
me dá mais um dia... não posso ir agora, às duas da manhã, sem
destino...
CREONTE - Você quer tempo para fazer uma maldade.
MEDEIA - Casa tua filha, homem, ela é linda, é jovem, é eleita.
Casa tua filha, derrama tua festa, teu chope, soa os taróis... me
deixa com a minha raiva, não é permitido ter?... Me dá um dia
só. Você tem medo de um dia, de mim, mulher? /.../
CREONTE - /.../ Um dia só, Medeia, nem um minuto mais. Um
dia” (Segunda Parte).
302
“CREONTE - É a ti que eu falo Medeia de olhar soturno, que te
irritas contra teu marido. Troca este país pelo desterro, leva con-
tigo os teus dois filhos, e sem demora! Eu é que farei executar a
ordem e não voltarei ao palácio antes de te haver lançado fora
das fronteiras do país.
MEDEIA - Ai de mim! Estou aniquilada! Infeliz! Estou perdida!
Os meus inimigos desfraldam todas as velas e já não tenho porto
seguro onde me abrigue da maldição. Entretanto, far-te-ei uma
pergunta, Creonte, apesar da minha desgraça: por que motivo
me expulsas, Creonte?
CREONTE - Tenho medo de ti... por que ocultá-lo? /.../
MEDEIA - Só um dia! Deixa-me ficar apenas o dia de hoje para
acabar de resolver quanto ao lugar do nosso exílio e reunir os re-
cursos para os meus filhos, uma vez que o pai não considerou a
forma de lhos proporcionar. Piedade para eles! Tu também tens
filhos, és pai: é natural que sejas benevolente. Pois não é de mim
que me inquieto, nem do meu desterro, mas choro a sua sorte e o
seu infortúnio.
CREONTE - A minha vontade não será, de certo, a de um tirano,
mas a benevolência tem-me sido funesta. Bem vejo, mulher, que
303
mesmo hoje cometo um erro: no entanto, obterás esse favor. Pre-
vino-te, porém, de que se amanhã a tocha dos deuses te tornar a
ver, a ti e a teus filhos, dentro destas fronteiras, tu, Medeia, mor-
rerás. Disse, e não terei mentido. E agora, se hás-de ficar, fica,
mas um dia, um dia só: não poderás realizar nenhum dos male-
fícios que temo” (p. 24 e ss).
304
JOANA - Não! Pelo menos/ me dê um dia... Um dia só, que é
para eu saber/ pra onde é que eu posso ir...
CREONTE - Não dá...
JOANA - Não vou/ poder sair sem destino com dois filhos pe-
quenos/ Eu ia embora mesmo. Não quero ficar/ nesta desgraça
de lugar. Só quero um dia/ pra me orientar, se não não dá...
CREONTE - Eu não devia/ nem ouvir...
JOANA - Um dia...
CREONTE - Não devia levar/ em consideração, porque tenho
certeza/ de estar fazendo besteira quando te atendo...” (p. 149 e
ss).
305
“MEDEIA - Ah, peço-te encarecidamente. Faço-me tua supli-
cante. Piedade, tem dó do meu infortúnio! Não deixes que me
expulsem! Acolhe-me no teu país, na tua casa, no teu lar. /.../
EGEU - Por muitas razões estou disposto, mulher, a outogar-te
essa mercê /.../ Eis então as minhas decisões: vem para o meu
país, tratarei de te oferecer hospitalidade, como é meu dever” (p.
44).
306
derramados/ ao mesmo tempo em cima do inimigo/ Numa luta
dessas, conte comigo/ Mas inda não dá pra brigar agora,/ é bo-
bagem brigar justo na hora/ que o inimigo quer. Sozinha, fraca,/
assim é dar murro em ponta de faca” (p. 112).
307
fortuna sorriu um pouco e agora vai ganhar uma casa de Creon-
te, as influências de Creonte! Um fraco merece desprezo, mas
um desamado merece castigo, sim!” (Segunda Parte).
308
Eis, em Paulo Pontes , o lamento de Joana:
“JOANA - Pois bem, você/ vai escutar as contas que eu vou lhe
fazer:/ te conheci moleque, frouxo, perna bamba,/ barba rala,
calça larga, bolso sem fundo/ Não sabia nada de mulher nem de
samba/ e tinha um puto dum medo de olhar pro mundo/ As mar-
cas do homem, uma a uma, Jasão,/ tu tirou todas de mim. O
primeiro prato,/ o primeiro aplauso, a primeira inspiração,/ a
primeira gravata, o primeiro sapato/ de duas cores, lembra?/ O
primeiro cigarro, a primeira bebedeira, o primeiro filho,/ o pri-
meiro violão, o primeiro sarro,/.../ Fabriquei energia que não era
tua/ pra iluminar uma estrada que eu te apontei/ E foi assim, en-
fim, que eu vi nascer do nada/ uma alma ansiosa, faminta, buli-
çosa,/ uma alma de homem. /.../ Assim que bateu o primeiro pé-
de-vento,/ assim que despontou um segundo horizonte,/ lá se foi
meu homem-orgulho, minha obra/ completa, lá se foi pro acervo
de Creonte...” (p. 76).
309
entre outras coisas, largou o velho marido que lhe dava todos os
confortos, inclusive um Simca Chambord.
310
“MEDEIA - Ai! Por que voltai para mim o olhar, filhos meus?
Por que me endereçais esse último sorriso? Infortúnio! Que fa-
zer? Falta-me a coragem, mulheres, quando vejo o olhar brilhan-
te dos meus filhos. Não, não poderia. Adeus, antigos projetos.
Levarei as crianças para longe do país. Que necessidade haver
para lhes torturar o pai com a sua própria desgraça, de redobrar
as minhas desditas? Não, não, eu não. Adeus, meus projetos.
Mas quê? Ofereço-me ao escárnio deixando os meus inimigos
impunes? Vamos, audácia! Ah, que covardia entregar o coração
a tais fraquezas! Reentrai no palácio, filhos” (p. 59).
311
corpo está fechado/ Você só tem, pra ser apunhalado/ duas meta-
des de alma: essas crianças” (p. 156 e ss).
“MEDEIA - Vim aqui para dizer que quero que você seja feliz,
Jasão.
JASÃO - Eu sabia, Medeia, minha amiga, eu sabia que um dia ia
ouvir isso da sua boca... um grande amor não pode terminar em
rancor, não é? Senão, não foi um grande amor...” (Terceira Par-
te).
Em Eurípides:
312
Em Paulo Pontes não é no segundo encontro dos dois
que Joana se finge derrotada. É no terceiro, diferentemente das
outras Medeias:
313
JASÃO - Não, Medeia, acho que não fica bem meus filhos
irem...
MEDEIA - São crianças, Jasão. Crianças não incomodam nin-
guém. Todos gostam de crianças. Elas não sabem reclamar às
injustiças. Vai ser o meu gesto de paz para Creonte. Ele vai en-
tender” (Terceira Parte).
314
Em Paulo Pontes:
315
morre. Creonte fica inválido, como consequência do poderoso
veneno com o qual Medeia preparou os seus doces.
Em Eurípides, a tragédia é relatada a Medeia pelo Men-
sageiro. A descrição que ele faz da morte de Creonte e sua filha
é terrível. Primeiro ele conta a repulsa aos filhos de Medeia pela
noiva de Jasão. Depois, o encanto da noiva ao receber os presen-
tes, a sua felicidade ao experimentá-los, para logo depois cair
em agonia:
316
levantar um joelho e não pode. Se puxa com força, a carne sepa-
ra-se dos ossos. Finalmente renuncia e dá a alma, pobre homem,
pois o mal é mais forte do que ele. Jazem mortos, a filha e o ve-
lho pai, lado a lado” (p. 62 e ss).
317
M) Nas Medeias, mortos Creonte e sua filha, Medeia
completa a sua vingança contra Jasão, matando também os fi-
lhos.
Em Vianinha, antes do infanticídio, ela tem um minuto
de hesitação, contemplando as crianças brincando no campo,
para logo em seguida retomar o seu propósito destruidor:
318
“MEDEIA - Amigas, está decidido o meu ato: o mais depressa
possível matarei os meus filhos e fugirei para longe deste país, a
fim de não expor, com demoras, as crianças a perecerem por
mãos hostis. É absolutamente necessário que eles morram. E,
sendo assim, eu é que os devo matar, eu que os lancei a este
mundo. Vamos, pois, coração, arma-te de força! Para que tardar?
Quem recua diante destas ações tremendas mas imprescindíveis?
Vai, calamitosa mão, tomar o gládio e aproxima-te dos limites
de uma existência acerba. Não sejas covarde. Não hei-de lem-
brar-me deles, que tanto adoro e dei à luz. Vamos! Por agora, ao
menos, esquece os filhos. Depois, geme. Porque, se os matas,
eram-te no entanto queridos; quanto a mim, serei uma mulher
infortunada” (p. 65).
319
seria paz, harmonia, gentilezas. Cai em si. Dá um bolinho enve-
nenado para cada criança:
“MEDEIA - Não aguento mais, Egeu, não aguento. Não vou su-
portar tudo o que fiz. Fui longe demais. Sou um ser humano - a
vingança realizada deixa mais vazia a vida, porque os obstáculos
continuam em todas as esquinas... a vingança só é suportável se
é dividida... Egeu, vou me matar também... mas por favor, por
320
favor, atira meu corpo no mar, esconde meu corpo... que eles
nunca me achem... que eles pensem que eu fiquei sem castigo...”
(Quinta Parte).
321
Medeia de Vianinha: “Na década de 60 os jornais cariocas noti-
ciam e mobilizam a opinião pública em torno de um crime pas-
sional em que uma amante abandonada - “a fera da Penha” - se-
questra e mata com requintes de perversidade, Tânia, de 5 anos,
filha predileta de seu amásio. O episódio acaba por despertar a
atenção de Oduvaldo Vianna Filho que vê aí, uma presença viva
do mito de Medeia”142.
Paulo Pontes e Chico Buarque também encontraram na
realidade do povo brasileiro a matéria-prima com que construir a
sua obra: “A nossa tragédia é uma tragédia do Dia e da Luta
Democrática. Não se pode imaginar quantas mulheres matam os
filhos na Luta Democrática. Posso falar porque nós lemos muito
a Luta quando estávamos escrevendo a peça. Existem de cinco a
seis tragédias gregas por dia nesse país. O crime faz parte da mi-
tologia do povo brasileiro”143.
Mas não foi para contar uma história de crime que Paulo
Pontes convidou Chico Buarque. Sua pretensão era falar sobre a
322
luta de classes no Brasil. Falar sobre como a classe dominante
coopta os melhores quadros das classes populares, e como os
utiliza para a manutenção de controle social. Perguntados se a
discussão proposta em Gota D’água obteve resposta na medida
esperada, Paulo Pontes afirmou que não, que, do seu ponto de
vista, o problema da habitação popular, na peça, é de segunda
importância: “O que existe de substantivo é uma visão do que é
o poder. Gota D'água está discutindo que é impossível tomar-se
o poder à força sem o respaldo dessa sociedade que aí está. E o
que se passou na sociedade civil nesses últimos tempos, avali-
zou a permanência no poder de determinadas forças políticas.
Há um mecanismo na sociedade civil, que põe e tira do poder. É
isto que existe de substantivo em Gota D'água. E a resposta dis-
so não veio”144.
Essa amostra de como o poder exerce o seu domínio, em
Gota D'água, constitui a segunda ação da peça, e corre paralela
à ação da vingança desesperada de Medeia/Joana que vimos
atrás.
323
Há em Gota D'água dois grupos de personagens: o mas-
culino e o feminino. Os dois grupos compõem o que seria na
tragédia grega o coro. O discurso de Joana, como Medeia, a
amante abandonada, faz-se em Gota D'água através do grupo
feminino. É esse grupo que se preocupa com as dores amorosas
de Joana, a sua reação desesperada ante a atitude de Jasão. En-
quanto o discurso político, o conteúdo ideológico que constitui a
segunda ação, está posto no grupo masculino. São eles que ava-
lizam ideologicamente o comportamento de Jasão. São eles que
conduzem, inclusive, a passagem do discurso amoroso, proble-
ma de Joana, para o preço extorsivo que pagam pelas casas em
que moram, problema de todos. São eles que fazem o contrapon-
to entre o tema eterno, o amor, e o tema em permanência: a ne-
cessidade de sobreviver a qualquer custo.
Para fundir os dois grupos e fazê-los coincidir numa
mesma grande ação, Paulo Pontes atribuíu a Egeu o papel de
pivô entre os dois grupos. Egeu põe-se todo o tempo entre os
grupos feminino e masculino. Compartilha a dor de Joana e a
ajuda. Divide com os homens o sentimento de injustiça diante
dos preços abusivos, das prestações reajustadas, do plano de pa-
324
gamento das casas próprias que nunca termina, e, igualmente,
ajuda-os.
Egeu é o mentor intelectual e do conflito ideológico, na
Vila do Meio-dia. Ele, juntamente com Corina e Joana, carre-
gam a dignidade do oprimido, formando o núcleo central de per-
sonagens que estabelecem o conflito com o outro núcleo: Creon-
te, Jasão e Alma.
Entre esses dois núcleos de conflito se posta uma única e
quase despercebida personagem: Boca Pequena. O nome não
poderia ser mais revelador da ação que essa personagem realiza:
ela é o dedo-duro, a que delata para Creonte o que acontece na
Vila do Meio-dia. Por ela, Creonte fica sabendo do perigo que
representa Egeu para o seu domínio. E como verdadeiro dedo-
duro, sabe ser anódino, a ponto de nem ser levada a sério pelos
grupos masculino e feminino, nem tão pouco pelo núcleo de
Egeu, que equaciona a luta ideológica.
Visto por esse prisma, Gota D'água é mais do que a tra-
gédia amorosa de Medeia. É isso. Mas é também um retrato do
Brasil resultante da ditadura. Por exemplo: Joana, com a sua
ação suicida, pode ser lida como a imagem da guerrilha que
buscou tomar o poder sem o apoio expressivo da sociedade.
325
Egeu, o intelectual de esquerda que não conseguiu sublevar as
massas na medida necessária. Jasão, o homem que veio do povo,
e que conhece do povo cada gesto, vende seu saber em troca de
status quo diferenciado no quadro social dominado por Creonte,
o déspota. Assim como a classe média em relação à ditadura.
Eis, então, passo a passo, a segunda ação contida em
Gota D'água, que a diferencia das outras Medeias:
326
vendo,/ vou acabar devendo oitenta e um.../ Que matemática fi-
lha-da-puta/
EGEU - Todo mundo está igual a você/
XULÉ - Não dá É todo mês a mesma luta/ Tem que falar pro ho-
mem resolver/ baixar um pouco essa mensalidade/ senão vou
morar debaixo da ponte/ Não é fácil, mestre Egeu...
EGEU - É verdade/
XULÉ - Alguém tem que falar com seu Creonte/ A gente vive
nessa divisão/ Se subtrai, se multiplica, soma,/ no fim, ou come
ou paga a prestação/ O que posso fazer, mestre Egeu?” (p. 8).
327
Nem São Cosme e Damião/ Por que é que eu vou pagar sem ter?
Não pago não/
EGEU - É fogo...
AMORIM - Mas será que eu vou ter que perder/ os dois anos
que já paguei de prestação?/ O corno velho do Creonte vai sa-
ber/ que não pago e me bota na rua.../
EGEU - Então/ me escuta...
AMORIM - Mestre Egeu, você pode dizer/ o que pensa, já que é
dono de teto e chão/ Dono do seu nariz, não tem nada a perder/
Tem a oficina e tudo o que está dentro dela/ Então fala correto,
justo, dá conselhos/ Mas eu devo tijolo, cal, porta e janela/ acho
que não sou dono nem dos meus pentelhos/
EGEU - Você tem razão...
AMORIM - Mestre Egeu, por caridade/ me responda...” (p. 13).
328
fica a coisa? Fica diferente/ Fica provado que é demais a presta-
ção/ Então o seu Creonte não tem solução/ Ou fica quieto ou
manda embora toda a gente/ Cachorro, papagaio, velho, viúva,
filha.../ Creonte vai dizer que é tudo vagabundo?/ E vai escorra-
çar, sozinho, todo mundo?/ Pra isso precisava ter outra virilha/
Não é?...
AMORIM - Tem boa lógica...
EGEU - Falei?...
AMORIM - Sei não” (p. 16).
329
BOCA - Que merda, mestre...
EGEU - Merda sim ou merda não?” (p. 18).
“BOCA - Espere aí, tenho uma boa: mestre Egeu,/ quando estive
na oficina, me perguntou:/ a prestação da casa, Boca, já pagou?/
Eu disse: é claro. E sabe o que ele rebateu?/ Que a prestação é
uma cobrança exagerada.../
CACETÃO - Que nova...
BOCA - E quem paga a casa é um bom calhorda!/
XULÉ - A gente já discutiu o caso e concorda -/ menos Galego,
que o gringo não é de nada -/ que mestre Egeu está por dentro da
questão” (p. 22).
330
Alma, sua noiva. Creonte entra em cena, e numa longa fala para
Jasão, apresenta a sua cadeira, símbolo do poder:
331
“CREONTE - /.../ Aquele mestre Egeu.../ Já que vamos dividir
este assento,/ um trabalhinho já apareceu/ pra você demonstrar o
seu talento/ Aquele Egeu, parece até que é seu/ compadre... /.../
Você gosta muito desse sujeito?/
JASÃO - Mas claro...
CREONTE - /.../ Escute um momento/ Egeu, faz muito tempo
que eu conheço/ e está fazendo muito movimento/ contra mim.
Você acha que eu mereço?/ Está mandando o povo sonegar/ as
prestações da casa. E eu fico quieto?/ Acha que é certo esse
povo ficar/ me enganando debaixo do meu teto?/ Acha certo mo-
rar e não pagar?/ Diga, rapaz, acha que está correto?” (p. 36 e
ss).
332
ela é mãe dos teus filhos... Talvez/ seja até mesmo um exagero
meu/ Mas tem coisas que não é bom brincar/.../ Minha filha não
vai casar tranquila/ co'essa mulher tomando ela de ponta/ En-
fim... Vou mandá-la embora da Vila” (p. 39).
333
dívida que nunca é amortecida. Jasão irrita-se: “Por que com-
prou?” É a pergunta que faz para o mestre Egeu. Vencido pelos
argumentos de Egeu, Jasão tenta se justificar:
334
EGEU - Por que fizeram isso contigo?/ Creonte te desse um bo-
fetão/ na cara, desse o pior castigo,/ mas não te entregasse essa
missão...” (p. 57).
335
É interrompido por Boca Pequena, que não o deixa con-
tinuar a reclamação.
336
Mas Jasão sabe que essa é uma visão falsa do ser brasi-
leiro. Sabe que essa é a visão que a classe dominante vende do
povo, inclusive para perpetuar as formas de dominação político/
econômica. E ele que veio do povo, oferece a visão real:
“JASÃO - Não, ele não é isso, seu Creonte/ O que tem aí de pe-
dra e cimento,/ estrada de asfalto, automóvel, ponte,/ viaduto,
prédio de apartamento,/ foi ele quem fez, ficando co'a sobra/ E
enquanto fazia, estava calado,/ paciente. Agora, quando ele co-
bra/ é porque já está mais do que esfolado/ de tanto esperar o
trem que não vem...” (p. 95 e ss).
337
na sua marmita,/ eu sei pelo bafo do seu sovaco/.../ permita-me
então discordar de novo,/ que o senhor não sabe nada de povo,/
seu coração até aqui de mágoa/ E povo não é o que o senhor diz,
não/ Ceda um pouco, qualquer desatenção,/ faça não, pode ser a
gota d'água.
CREONTE - Muito bem. É com esse capital,/ seu Jasão, que
você quer ser meu sócio?
JASÃO - Não fique pensando que o povo é nada,/ carneiro, boi-
ada, débil mental,/.../ Não. Tem que produzir uma esperança/.../
Chegou a hora de regar um pouco/ Ele já não lhe deu tanto? Em
ações, prédios, garagens, carros, caminhões,/ até usinas, negóci-
os de louco.../ Pois então? Precisa saber dosar os limites exatos
da energia/ Porque sem amanhã, sem alegria,/ um dia a pimen-
teira vai secar/ Em vez de defrontar Egeu no peito,/ baixe os lu-
cros um pouco e vá com jeito/.../ Com os seus ganhos, o senhor
é que tem/ que separar uma parte e fazer/ melhorias/.../ Encha a
fachada de pastilhas/ que eles já acham bom. /.../ Ao terminar,/
reúna com todos, sem exceção/ e diga: ninguém tem mais pres-
tação atrasada. /.../ Está com medo de mestre Egeu? /.../ Egeu
vai ficar falando sozinho/ enquanto o povo está jogando
bola! /.../ O senhor vai tomando/ essas providências que reacen-
338
de a chama. Vai ver que o trabalho rende/ mais, daí eles ganham
confiança,/ alimentam uma nova esperança,/ o moral se eleva, a
tensão relaxa.../ Aí é que o senhor aumenta a taxa/ Com as me-
lhorias eles vão ter/ energia bastante pra mais dez anos. /.../ Ago-
ra, se quiser ver, por acaso,/ quem ganhou nesta simples transa-
ção/ é só contar. Eles lhe dão dez anos,/ o senhor dá um só pelos
meus planos.../ Fica com nove, a parte do leão” (p. 102 e ss).
339
“EGEU - A gente só avança quando é mais forte/ do que o nosso
inimigo. A sua sorte é ligada à sorte de todo mundo/ na Vila. /.../
Então, cada passo tem que ser dado/ por todos. Se você avançar
só,/ Creonte te esmaga sem dor nem dó/ Compreendeu, comadre
Joana?” (p. 111).
340
JOANA - Eu sei, Jasão/ Estou e nunca mais pago um tostão/ O
preço que constava na escritura/ eu já paguei” (p. 121).
“JOANA - Só que essa ansiedade que você diz/ não é coisa mi-
nha, não, é do infeliz/ do teu povo, ele sim, que vive aos tran-
cos,/ pendurado nas quinas dos barrancos/ Seu povo é que é ur-
gente, força cega,/ coração aos pulos, ele carrega/ um vulcão
amarrado pelo umbigo/ Ele então não tem tempo, nem amigo,/
nem futuro /.../ tem u'a coisa que você vai perder,/ é a ligação
que você tem com sua/ gente, o cheiro dela, o cheiro da rua,/
você pode dar banquetes, Jasão,/ mas samba é que você não faz
mais não,/ não faz e aí é que você se atocha/ porque vai tentar e
sai samba brocha,/ samba escroto, essa é a minha maldição/
“Gota D'água”, nunca mais, seu Jasão” (p. 126 e ss).
341
O) Quando as ações já correm unidas, a trama da peça
caminha para a sua resolução. Nesse momento Egeu consegue
juntar os moradores da Vila em torno dos objetivos que ele se
propõe: ajudar Joana e ao mesmo tempo unir o povo contra o
déspota:
342
P) O povo da Vila, liderado por Egeu, vai ao confronto
com Creonte. Porém, não esperavam que Creonte os recebesse,
perdoasse as dívidas, anunciasse melhorias no conjunto habita-
cional (tudo como lhe dissera Jasão), e ainda os convidasse para
trabalhar na festa de casamento de Jasão e Alma. Com essa ma-
nobra, Creonte desmobiliza a revolta, desmantela a liderança de
Egeu:
343
“CREONTE - Atenção, pessoal, vou falar rapidamente/ Jasão...
vem cá... Meus caros amigos, agora,/ aproveitando a ocasião e
aqui na frente de todo mundo, quero anunciar que de ora/ em
diante a casa tem novo dono. A cadeira/ que foi de meu pai e foi
minha vai passar/ pra quem tem condições, e que é de minha
inteira/ confiança, para poder continuar a minha obra” (p. 168).
344
A) Em Vianinha, Medeia está ambientada num conjunto
residencial pobre, de nome Guadalupe.
Em Paulo Pontes, Gota D'água está ambientada num
conjunto residencial igualmente pobre, de nome Vila do Meio-
dia.
345
quanto poeta, é uma espécie de filósofo popular, capaz de enten-
der e condensar em poucas imagens a diversidade da existência,
o conflito humano e a opressão social.
346
tragédia. A falha de Jasão foi querer ascender sozinho, trair a sua
origem, a sua gente, não prestar atenção aos seus próprios ver-
sos.
347
6.5 - Alguns breves comentários
zembro de 1976.
348
sensível que elas começavam a se desiludir com o “milagre”
brasileiro. Talvez dois anos antes a problemática da peça fosse
considerada absurda, porque se vivia a era do pleno “milagre”.
Mas em 75, por exemplo, estourou o problema da casa própria.
Aliás, a peça trata um pouco disso e não de maneira aleatória,
pois procuramos informar-nos junto a advogados e a organiza-
ção de mutuários. Quisemos falar de pessoas dos extratos mais
baixos da sociedade que embarcaram no “milagre” e confiaram,
por exemplo, no sonho da casa própria”147.
Macksen Luiz soma em seu depoimento as ideias conti-
das no de Sábato e Chico ao mesmo tempo: “Em forma de ver-
sos, integrando as melodias uma verdadeira procura da lingua-
gem musical. Gota D'água alcança uma comunicação popular
insuspeitada. As personagens falam poeticamente, muitas vezes,
mas nunca se tornam eruditas ou falsamente impostadas. São
reais, e respondem como seres humanos brasileiros identificados
com o seu meio. O texto seria populista? Certamente que não, já
que procura ampliar a análise do meramente impressionista para
levá-la a um plano quase sociológico. Gota D'água não é apenas
349
mais uma peça sobre esta classe, mas um mergulho até as raízes
profundas de suas contradições, angústias e aspirações”148.
Em outro texto, Sábato Magaldi voltou a falar sobre a
peça: “Atualizadas as linhas gerais da tragédia grega pelas re-
gras da verossimilhança moderna, com um sentido de crítica à
realidade brasileira, Gota D'água impõe-se principalmente pela
beleza da linguagem teatral. Desse ponto de vista, a peça inova o
estilo de Paulo Pontes e anuncia uma dramaturgia mais exigen-
te”149.
Sábato Magaldi, sempre atento ao que acontece no cená-
rio teatral brasileiro, sentia o salto evolutivo que Paulo Pontes
realizava a cada nova obra. Talvez Gota D'água fosse a anuncia-
ção de uma dramaturgia mais exigente. Mas o tempo de vida de
Paulo Pontes não esperou para ver.
148 LUIZ, Macksen. “Gota D'água não é só uma música do Chico”. Isto é, 29
dezembro de 1976.
350
6.6 - Uma reflexão sobre a sociedade brasileira
dezembro de 1976.
351
O prefácio de Paulo Pontes à Gota D'água constitui-se
numa das mais lúcidas reflexões sobre a sociedade brasileira,
sendo ainda hoje de grande validade, não só porque condensa
em poucas e claras linhas o conflito vivido pela sociedade du-
rante as décadas de 60 e 70, como também reflete, com notável
precisão, o desenvolvimento, nos anos 80, do quadro social cri-
ado pelo regime ditatorial151.
São três os pontos básicos do seu raciocínio:
352
se puder medir o nível de desgaste a que foram submetidas as
classes subalternas, nós vamos descobrir que a revolução indus-
trial inglesa foi um movimento filantrópico, comparado com o
que se fez para acumular o capital do milagre” (p. xi).
Esse é o quadro geral no qual se fundamenta a sua refle-
xão. O desenvolvimento dele surge agora: “É indiscutível que o
autoritarismo foi condição necessária à implantação de um mo-
delo de organização social tão radicalmente antipopular. A auto-
ridade rigidamente centralizada permitiu que se pusesse em prá-
tica o elenco de medidas (política salarial, monetária, tributária
etc.) que modernizaram, à feição capitalista, uma parte da socie-
dade brasileira, enquanto se intensificava o processo de empo-
brecimento da parte maior” (p. xii).
Com base na concentração de riqueza e no autoritarismo
como forma de consolidar essa concentração, emerge a classe
média como beneficiária menor do sistema: “No movimento que
redundou num avanço tão grande dos interesses das classes do-
minantes sobre os das classes subalternas, as camadas médias
têm desempenhado um papel fundamental. Elas, ao lado do au-
toritarismo, e de forma mais profunda, têm legitimado o mila-
gre. Seria ingênuo, a partir daí, fazer qualquer julgamento moral
353
da classe média brasileira. Se a raiz do problema fosse moral,
viver não dava trabalho nenhum. A verdade é que o capitalismo
caboclo atribuiu uma função, no tecido produtivo, aos setores
mais qualificados das camadas médias. Não apenas como com-
pradores, beneficiários do desvario consumista, mas, sobretudo,
como agentes da atividade econômica” (p. xii).
A partir dessa constatação, Paulo Pontes concluiu que o
capitalismo, então, passou a atribuir função mais dinâmica aos
segmentos médios da sociedade. Mas, antes de receberem essa
atribuição, havia (num outro ponto de seu raciocínio) uma certa
tradição de rebeldia nos setores intelectualizados da pequena
burguesia: estavam presos, assim como a sua classe, a uma es-
trutura social rígida, quase imóvel, dando vez para que a intelec-
tualidade nascida na camada média vivesse a sua rebeldia tradu-
zida em ironia, deboche, boemia, fascínio pela utopia e “um cer-
to orgulho da própria marginalidade”. De todo modo o incon-
formismo, “e a disponibilidade ideológica de setores da pequena
burguesia forma em muitos momentos de nossa história, instru-
mentos de expressão das necessidades das classes
subalternas” (p. xiv). Havia, então, entre o povo e a intelectuali-
354
dade pequeno-burguesa, um canal de expressão, de comunica-
ção.
Paulo Pontes acreditava que o movimento de ascensão
das camadas médias, somado ao processo altamente seletivo que
o capitalismo impõe, provocou o afastamento da comunicação
que havia entre intelectuais e povo: “As classes dominantes pro-
duziram o corte que seccionou a base dos segmentos superiores
da hierarquia social. Isoladas, às classes subalternas restou a
marginalidade abafada, contida, sem saída. Individualmente, ou
em grupo, um homem capaz, ou uma elite das camadas inferio-
res pode ascender e entrar na ciranda. Como classe, estão redu-
zidas à indigência política” (p. xiv).
Gota D'água, segundo Paulo Pontes, é “uma reflexão
sobre esse movimento que se operou no interior da sociedade,
encurralando as classes subalternas. É uma reflexão insuficiente,
simplificadora, ainda perplexa, não tão substantiva quanto ne-
cessário, pois o quadro é muito complexo e só agora emerge das
sombras do processo social para se constituir no traço dominante
do perfil da vida brasileira atual” (p. xv).
355
6.6.2 - O povo como identidade nacional
356
permite uma avaliação, fica cada vez mais claro que nós temos
que tentar, de todas as maneiras, a reaproximação com nossa
única fonte de concretude, de substância e até de originalidade:
o povo brasileiro. /.../ É preciso, de todas as maneiras, tentar fa-
zer voltar o nosso povo ao nosso palco. Do jeito que estiver ao
alcance de cada criador: com o show, a comédia de costumes, a
revista, com a dramaturgia mais ambiciosa, como se puder” (p.
xvii).
357
criação teatral. Era improvável que se tratasse de uma crise da
razão, num país como este, com tudo por ser feito, e estruturado
de forma tão irracional que a lógica mais estreitamente cartesia-
na tem eficácia como instrumento de percepção” (p. xviii) - Eis,
então, o que de verdade aconteceu, segundo Paulo Pontes: “As
transformações foram se acumulando no interior da sociedade
sem que a cultura, posta à margem, se desse conta. Até um ponto
em que o processo social ficou muito mais complexo do que a
cultura era capaz de entender e formular. E este passou a ser o
centro da crise da cultura brasileira: criou-se um abismo entre a
complexidade da vida brasileira e a capacidade de sua elite polí-
tica e intelectual de pensá-la” (p. xviii).
Paulo Pontes considerava que a “estreiteza dos limites
impostos à criação cultural”, ou por outra, a ação da censura, foi
a grande responsável pela crise que se abateu sobre o teatro bra-
sileiro, mas, mesmo assim, “nós nos iludimos se não reconhe-
cemos que, a partir de determinado momento, houve incapaci-
dade real de pensar nossa realidade” (p. xviii).
De todo modo, Paulo Pontes diz que já no ano de 1975,
esse quadro de incapacidade de pensar a realidade estava mu-
dando, sobretudo em outras áreas, com o surgimento de coisas
358
novas e estimulantes, tais como o jornalismo político, os ciclos
de debate do teatro Casa Grande e, inclusive, a tese de doutora-
mento. Mas isso só não bastava: “Não foi a razão quem fracas-
sou no nosso caso; quem fracassou foi nossa racionalidade es-
treita. Agora é preciso reinstrumentalizá-la. A linguagem, ins-
trumento do pensamento organizado, tem que ser enriquecida,
desdobrada, aprofundada, alçada ao nível que lhe permita captar
e revelar a complexidade de nossa situação atual. A palavra, por-
tanto, tem que ser trazida de volta, tem que voltar a ser nossa
aliada” (p. xix).
359
O Desfecho da Festa
“Quem tem um
sonho não dança”
Cazuza
360
A necessidade de recuperar a palavra objetivava melhor
racionalizar o ser nacional, lançar luz sobre quem somos nós, os
brasileiros. Só assim seria possível determinarmos o nosso des-
tino.
Por isso, a sua constante preocupação com os problemas
da cultura: “A visão unilateral do popular ou do nacional (confu-
são que tem sido feita por muita gente que escreve sobre arte e
cultura popular) leva, inevitavelmente, a uma posição estreita,
por mais sincera que seja. Há cultura nacional e popular na luta
do Pe.Ventura, do ator Vasques, em Martins Penna, na comédia
dos anos trinta, em Humberto Mauro, no estilo de representar de
Jaime Costa, de Oscarito, em tantos filmes do Cinema Novo, na
antológica música carnavalesca dos anos 30-40, na dramaturgia
do Arena, no Glauber, em Zé Celso, em Chico Buarque, em Cae-
tano, em Paulinho da Viola etc.”152.
Era preciso quebrar o conceito de elite, de uma cultura
fechada, aurática, dominada por uns poucos, praticada por uns
tantos, refugiada em recintos pequenos, afastados, distantes da
sensibilidade inquieta do grande público: “Nós escrevemos e
361
representamos, hoje, sem referência concreta diante de nós. En-
cerrado em boutique de Zona Sul, fazendo teatro para o mesmo
público, sempre, e um público altamente homogeneizado, nossa
pesquisa vai ficando cada vez mais abstrata. Se você tem um
público diversificado, com responsabilidades sociais, um públi-
co que tem interesses e quer lutar por eles, e representa para ele
num teatro grande, você passa a ter uma referência concreta em
torno da qual realiza sua pesquisa. Esse público dá, ao mesmo
tempo, concretude e racionalidade à sua pesquisa, à sua experi-
ência. Esse é um público que pode popularizar a narrativa teatral
e, ao mesmo tempo, dar concretude e racionalidade (porque esse
público é a própria realidade) ao repertório do teatro brasileiro.
O fato é que está provado que há, em todas as camadas, muito
mais gente interessada em ver teatro do que o teatro que nós fa-
zemos é capaz de atingir. Então só resta uma saída: ajustar a
nossa capacidade criadora à sensibilidade desse grande público.
Fora disso, é ficar na boutique, recebendo todo dia aquela meia
dúzia de pessoas, numa sala pequena, que coagula a sensibilida-
de do público. Público grande e diverso numa sala de espetáculo
ampla - isso dará ao teatro brasileiro mais concretude, mais
substância social, mais ajustamentos aos grandes temas da vida
362
brasileira, dará ao teatro brasileiro, sobretudo, mais
teatralidade”153.
Fernando Peixoto, em artigo publicado no jornal Correio
das Artes, disse que, até aquela data, Gota D'água tinha realiza-
da mais de 300 apresentações, recebendo um público de cerca de
250 mil espectadores: “Uma cifra espantosa, que fascinava Pau-
lo porque era a prova, na prática, de tudo que ele defendia com
paixão e confiança: existe um público imenso para o teatro des-
de que este abandone o subjetivismo e o elitismo, aproximando-
se da construção de uma cultura nacional-popular. Toda sua obra
como escritor e toda sua incansável participação como intelectu-
al consciente de suas responsabilidades, fiel a seus compromis-
sos, combativo e corajoso, coerente e lúcido, generoso e inflexí-
vel, foi esta procura”154.
Mesmo doente, como sempre, Paulo Pontes não descan-
sava, e nos últimos meses que lhe restavam de vida, debruçou-se
sobre teses de sociologia e política, direcionando o seu trabalho
1976.
154 PEIXOTO, Fernando. ArZgo depois transcrito para o livro Teatro em Pe-
363
para análises, estruturação de seminários e debates: “Sua preo-
cupação era estudar a defasagem entre o pensamento crítico do
intelectual progressista brasileiro e uma realidade que se trans-
formou, mas que ele, sentindo-se impotente e alimentando esta
impotência, insiste em querer estudar a partir dos mesmos valo-
res, dos mesmos conceitos, não revisado. Uma proposta crítica
que tentaria fazer uma sondagem em profundidade em proble-
mas vividos cotidianamente por todos. Inclusive por ele”155.
Paulo queria, entre outras coisas, dar continuidade ao
ciclo de debates realizados no teatro Casa Grande. Desta vez,
pelos planos, o novo ciclo seria chamado Projeto Popular de
Cultura e teria como base quatro peças que fariam um aprofun-
damento epistemológico do Brasil. Das quatro peças, uma se
chamaria Luna Bar - que seria escrita pelo próprio Paulo Pontes
-, pretendendo analisar o comportamento da classe média. A ou-
tra seria escrita por Antonio Callado, dessa vez enfocando o tra-
balho no campo. Haveria ainda espetáculos sobre o trabalhador
urbano, por Fernando Peixoto e Guarnieri e, finalmente, um tra-
balho que focasse a marginalidade - provavelmente por Chico
364
Buarque. Com Chico Buarque, ainda existia um outro plano:
escrever uma peça que seria intitulada O dia em que Frank Sina-
tra veio ao Brasil.
Mas nada disso foi possível. Não houve tempo suficien-
te. Fernando Peixoto relata os instantes finais de sua vida: “Nos
últimos dias, sobretudo nas últimas horas, foi a luta de um cére-
bro vigoroso contra um corpo já esquelético que se destruía por
dentro. Paulo falava sem parar, palavras desencontradas, mas
evidência de uma dilacerante batalha na ânsia de viver contra
uma morte que se aproximava inevitável. Pouco antes de falecer,
às 11:50 h. do dia 27, teve um dramático instante de lucidez:
chamou o médico, disse que ia morrer e queria ser salvo. Mas já
era o fim”156.
Era o dia 27 de dezembro de 1976.
Sábato Magaldi relata: “A morte não foi uma surpresa
para os amigos mais chegados. Todos já a esperavam desde os
últimos 15 dias, com o agravamento de seu estado de saúde. O
paraibano Paulo Pontes morreu no Hospital Samaritano, no Rio,
onde estava internado desde setembro. E foi sepultado esta ma-
nhã, segundo sua vontade expressa, no Cemitério São Francisco
365
Xavier (do Caju), ao lado do seu amigo e também teatrólogo
Oduvaldo Vianna Filho, morto há dois anos e também de câncer,
como Pontes”157.
No dia 28 de dezembro, dia do sepultamento de Paulo
Pontes, foi lido um texto em sua homenagem, em cena aberta,
por todos os espetáculos encenados no Rio: “Nós somos artistas
de teatro, e ao longo do tempo temos nos acostumado a repre-
sentar diante de quaisquer condições. Mas hoje é um dia particu-
larmente triste para nós e para todo o teatro brasileiro; porque é
o dia que marca o sepultamento de um dos mais expressivos
nomes de nossa arte. Paulo Pontes /.../ era, além de um drama-
turgo talentoso, uma das pessoas que melhor pensaram o fenô-
meno cultural brasileiro. Sua influência se espalhou por todos
nós, já que exercia uma liderança natural, graças à sua poderosa
inteligência e rara lucidez /.../ Paulinho amava o teatro e amava
o povo, que sonhou livre e no exercício de suas potencialidades.
Lutou pela liberdade de expressão, por uma cultura nacional e
popular, pela regulamentação de nossa profissão, e foi incansá-
vel em todas essas atividades /.../ Também lutou para que os tea-
tros permanecessem abertos, acima de quaisquer pressões ou
366
dificuldades; e por isso não cancelaremos o espetáculo desta
noite”158.
Tarso de Castro, depois de relatar seus últimos encontros
com Paulo Pontes, inclusive no hospital, onde, internado, Paulo
não sabia se devia fazer a operação que resultou inútil, Tarso
confessa: “Não tenho muito a dizer em público sobre Paulo Pon-
tes. Nós, entretanto, perdemos um cara preocupado na criação,
na liberdade, no homem. E a censura perdeu um cliente”159.
Comovida, Tânia Pacheco se faz perguntas irrespondí-
veis, mesmo pela metafísica, sobre o sentido que envolve a exis-
tência humana: “O que é que mata um homem? O que é que en-
terra um homem? Decididamente, não é o automático gesto dos
coveiros vedando com cimentos as gretas das lápides brancas.
Um homem pode ser aparentemente vencido pelo câncer. Pode
desaparecer da nossa visão, encerrado numa caixa. Mas um ho-
mem é maior do que isso. E permanece. Em tudo o que criou,
158 Carta sem assinatura, lida nos teatros do Rio. Jornal do Brasil, 29 de de-
zembro de 1976.
159 CASTRO, Tarso de. “Algumas coisas de Paulo Pontes”. Folha de São Pau-
367
em tudo o que defendeu, na memória dos amigos, no remorso
dos inimigos. Um homem, mesmo calado, fala. Mesmo amorda-
çado, fala. Mesmo morto e enterrado, fala”160.
Paulo Pontes, nos últimos instantes de sua vida, sentiu a
proximidade do fim e queria ser salvo. Tinha trinta e seis anos,
vividos de esperança, como brasileiro que era - como no título
do seu show. E foi com a esperança que lutou. Uma esperança
racional, lógica, uma arquitetura de ideias que projetava um des-
tino justo para um país como o nosso. Por isso lutou. E lutou
contra a morte que sempre o perseguiu de perto. Mas não conse-
guiu evitar que, mais cedo do que esperava, as mãos do abismo
envolvessem a sua existência num aperto fraterno.
160 PACHECO, Tânia. “Paulo Pontes e Gota D'água”. O Globo. Rio de Janeiro,
29 de dezembro de 1976.
368
Cronologia
370
- Cria, escreve e apresenta o programa Rodízio, na Rádio Tabaja-
ra da Paraíba. O programa monopolizava diariamente o horário
do meio-dia. Suas histórias e personagens começavam a ser co-
mentadas na cidade.
371
1964 - Março: Na condição de participante da CEPLAR, viaja
ao Rio de Janeiro para participar de reunião no CPC.
- Escreve Paraí-bê-a-bá.
372
1968 - Janeiro, 29: Paraí-bê-a-bá estreia no Rio de Janeiro, no
Teatro Nacional de Comédia, representando a Paraíba no IV
Festival Nacional de Teatro do Estudante.
373
1971 - Escreve Um Edifício Chamado 200. O título dessa peça
era inicialmente Barata Ribeiro 200, mas por pressão dos mora-
dores do condomínio - e da censura federal - Paulo mudou o tí-
tulo.
- Escreve Check-up.
374
1973 - Prêmio “Governador do Estado da Guanabara” pela peça
Check-up.
375
1976 - Fevereiro: Participa do I Festival de Arte de Areia, Paraí-
ba, onde ministra curso sobre dramaturgia brasileira.
376
Bibliografia
I - Bibliografia Específica
377
Morra, É Preciso Salvar Neusinha Também. Rio de Janeiro: Bi-
blioteca do Inacen (Ibac).
378
- “Algumas palavras sobre Fausto da Silva”. Rio de Janeiro: Re-
vista da SBAT, nº 405, maio/junho de 1975.
- “O depoimento dos autores”. Programa da peça Gota D'água.
Depois prefácio à edição da obra. Rio de Janeiro: 8 de dezembro
de 1975.
379
4 - Textos de referência para Paulo Pontes escrever algumas
de suas obras:
380
- CHRISTINA, Helena. “A comédia redescoberta”. Rio de Ja-
neiro: Jornal do Brasil, 19 de setembro de 1972.
- CORREIA NETO, Alarico. “Paulo Pontes queria ver o povo no
palco”. Recife: Diário de Pernambuco, 4 de janeiro de 1977.
- FABIANO, Ruy. “Paulo Pontes - A gota d'água que há de virar
torrente”. Rio de Janeiro: Luta Democrática, 30 de dezembro de
1976.
- FARIAS LIMA, Rodrigo. “Um exemplo a perpetuar”. Rio de
Janeiro: Boletim da ACET, 10 de fevereiro de 1981.
- GOMES, Sérgio. “Paulo Pontes - Gota d'água contra a maré”.
Folha de S. Paulo: 21 de dezembro de 1976.
- GUIMARÃES, Márcia. “Em vez do banquete, a gota d'água”.
Rio de Janeiro: Última Hora, 28 de novembro de 1976.
- GUZIK, Alberto. “Morte triste e temporã”. Rio de Janeiro: Úl-
tima Hora, 8 de janeiro de 1977.
- JOFFILY, José. “Paulo Pontes, 10 anos depois”. Recife: Diário
de Pernambuco, 13 de fevereiro de 1987.
- LEVI, Clóvis. “Vamos todos ao Carlos Gomes homenagear
Paulo Pontes”. Rio de Janeiro: O Globo, 7 de fevereiro de 1977.
- LUIZ, Macksen. “Paulo Pontes”. Rio de Janeiro: Jornal do
Brasil, 9 de fevereiro de 1977.
381
- MACHADO, Jório & outros. “Paulo Pontes: a escalada do su-
cesso”. João Pessoa: jornal O Momento, 31 de dezembro de
1976.
- MAGALDI, Sábato. “Paulo Pontes”. O Estado de S. Paulo: 28
de dezembro de 1976.
- MELO, Paulo. “Um artista chamado Paulo Pontes”. João Pes-
soa: Correio da Paraíba, 2 de junho de 1972.
- MELO, Paulo. “O Patrono Paulo Pontes”. Areia: Programa do
Festival de Verão, 30 de janeiro de 1977.
- MENDES, Oswaldo. “A difícil arte da resistência”. Rio de Ja-
neiro: Última Hora, 2 de março de 1977.
- MICHALSKI, Yan. “Empresários criam o prêmio Paulo Pon-
tes”. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 18 de junho de 1984.
- PACHECO, Tânia. “Paulo Pontes e Gota D'água”. Rio de Ja-
neiro: O Globo, 29 de dezembro de 1976.
- PACHECO, Tânia. “Vamos respirar a noite de Paulo Pontes”.
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7 - Diversos:
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política. Org. Fernando Peixoto. S. Paulo: Brasiliense, 1983.
393
Paulo Vieira
Contatos:
394
Obras do Autor publicadas pela Galharufas
O Peregrino - romance - O jovem de Carvalho é enfor-
cado, decapitado e tem a cabeça exposta, por ter lide-
rado a revolução de 1817. A cabeça é roubada e a busca
por ela vai conduzir o Coronel Amaro Gomes CouZnho
para a entranha de uma cidade até então insuspeita.
O voo da borboleta negra - romance - O amor de Sadi e
Ágaba enfrenta os interditos morais, mas a supersZção
pode ser mais forte.
395
Confissões - dramaturgia - Santo AgosZnho recebe a
visita inesperada de um ator que vai discuZr o senZdo
teleológico do teatro.
396
Cartaz de Cinema - dramaturgia - Uma fesZnha numa
Escola Pública na década de 50 é a ação principal que
interliga os diversos quadros que se alternam ao longo
do texto.
397