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Educagio profissional para surdos: uma vivéncia politico-pedagdgica no centro Federal de Educagio Tecnolégica de Santa Catarina Resumo Este artigo tem por objetivo analisar pontos de ruptura na trajetdria do Nuicleo de Educagio Profissional pata Surdos (NEPS) durante os seus primeiros oito anos de trabalho - 19922 2000 - no Centro Federal de Educacio Tecnolégica de Santa Catatina (CEFET/SC), mais precisamente, na Uni- dade de Ensino de Sto José (UNED/S)), a partit de um estudo de caso histérico-institucional. Para tanto, estabeleci ‘uma aproximagio entre a Educagio Profissional numa pers- pectiva critica ¢ os Estudos Surdos em Educacio, tendo como ponto de convergéncia as relagdes de poder no ambi- to da educagao profissional. Palavras chaves Surdos- Educasio, Ensino profissional. Educagéo parao trabalho, Vilmar Silva Professor do Centro Federal de Educagio ‘Tecnolégica de Santa Catarina - CEFET/SC, Mestre em Educagio pela UFSC. Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 Professional education for the deaf: a political- pedagogical experience at the Federal Center of Technology Education in Santa Catarina Abstract The purpose of this article is to analyze disruptions in the trajectory of the Professional Education Center for the Deaf (NEPS) during its first eight years of work from 1992 — 2000/at the Federal Center of Technology Education of Santa Catarina (CEFET/SQ), more precisely at the Educational Unit of Sao José (UNED/S)). It is based on a historical-institutional case study. An approximation was established between Professional Education through a critical perspective and Deaf Studies in Education, with a point of convergence the power relations in the realm of professional education. Key words Deaf Education. Profissional education. Career education. Ponto de Vista, Florianépolis, n.05, p. 151-178, 2003 182 _Elucagio profissional para surdos: uma vivéncia politico pedagégica no Centro Federal. Introdugio Para investigar os pontos de ruptura na trajetdria do Niicleo de Educagio Profissional para Surdos (NEPS) no Centro Federal de Fducagio Tecnolégica de Santa Catarina (CEFET/SC),' optei por realizar um estudo de caso histérico- institucional? a partir da fala de alunos e egressos do NEPS. Na primeira etapa do estudo fiz uma leitura dos principais documentos que orientaram as atividades do NEPS no periodo de 1992 a 2000, tanto no imbito do CEFET/SC (Projeto Experiencial para 0 Desenvolvimento Cognitivo e da Linguagem, Contextualizacio do Curso Psé-Técnico Especial, Projeto de Educacio Profissional de Nivel Basico para Surdos) como do Ministétio da Educagio (LDB 9.394/96, Decreto n° 2.208/97, Diretrizes Curriculares Nacio- nais para Educagio Profissional de Nivel Médio), que estavam associados as recentes mudancas que ocorreram na educasio profissional brasileira. A leitura desses documentos foi de fundamental importincia para identifi- car as principais mudangas que ocotreram no NEPS durante os seus oito anos de existéncia, o que me permitiu levantar quatro temas a serem discutidos: a) 0 surdos no Curso Técnico de Refrigeragio ¢ Ar-Condicionado ¢ no Pro- jeto Experiencial para 0 Desenvolvimento Cognitivo e da Linguagem; b) os surdos no Curso Pré-Técnico Especial; ©) os surdos nos cursos de Educagao Profissional de Nivel Basico; d) os surdos no Niicleo de Educagio Profissional pata Surdos. A partir dos temas formei os grupos de discussio com alunos ¢ egressos do NEPS, onde cada grupo correspondia a um dos temas identificados anterior- mente, Para discutit os temas os sujeitos da pesquisa deveriam dominar a lingua brasileira de sinais, participar dos movimentos surdos da Grande Florianépolis e ter estudado, no minimo, em um dos cursos ja tealizados pelo NEPS. Durante o processo de discussio de cada grupo, para garantir a fide- dignidade das informagées coletadas, estabeleci que na conversa com os egtessos ¢ alunos apenas situatia o tema ¢ o objetivo da pesquisa, deixan- do-os, em seguida, sozinhos para que a discussao se desenvolvesse a partir dos préprios surdos. Além disso, todas as discussées em Libras foram registradas em filmes. Porém, a tradugio para a lingua portuguesa de cada grupo foi feita por mim, pelos prdprios sujeitos pesquisados ¢ pelo pro- fessor surdo do NEPS, pois a principal preocupagio nessa etapa da pes- quisa era garantir a fidedignidade da tradugio. Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 153 Vilar Silva Na formacio de cada grupo também se acordou que niio seriam utilizados ‘os nomes dos sujeitos pesquisados, mas o cédigo §,, §..... S,, pois muitos relatos eram confidenciais, envolvendo fatos e pessoas do cotidiano escolar. Para sistematizar os dados efetuei uma categorizacio preliminar, tendo como ctitério o tema em discussio, isto é, Educagao Profissional para Surdos, subdividido em duas categorias que envolvem diretamente esse tema: educagao de surdos ¢ trabalho. Essa categorizacio preliminar, bem como as posteriores, foram organizadas a partir de cada grupo de discussio separadamente, pois tinha-se por objetivo analisar 0s movimentos de rupturas que o NEPS realizou em cada etapa de sua trajetdria. Foi esse estudo de caso que me permitiu visibilizar analisar os principais pontos de ruptura na trajetoria do NEPS no Centro Federal de Educacaio Tecnolégica de Santa Catarina’. Os surdos no Curso Técnico de Refrigeracio e Ar-Condicionado e no Projeto Experiencial para o Desenvolvimento Cognitivo e da Linguagem: 0 inicio de uma trajetéria O Curso Técnico de Refrigeracio e Ar-Condicionado (RAC), até a implan- tagao da reforma da educagio profissional brasileira, materializada no Decteto n° 2,208/97, tinha em sua proposta curricular uma articulacao entre os conheci- mentos técnicos ¢ os de cultura geral. Em 1988, na estrutura técnico-pedagégica do curso de RAC, tinha-se que: agrade curricular é composta das matérias de Portugués, Estu- dos Sociais, Matematica, Ciéncias ¢ as disciplinas do artigo (7), [-J. © curso inicia desde sua 1* fase com disciplinas profissionalizantes como é 0 caso de Desenho Técnico, Materi- ais ¢ Elementos de Maquinas ¢ Solda Elétrica ¢ Oxi- Acetilénica.' (UNED/SJ, 1998, p. 10). A articulacao entre teoria ¢ pratica nas grades curticulares dos cursos técni- cos da Unidade de Ensino de Sao José, desde a primeira fase, permitia uma formagao profissional na qual o trabalho manual no estava desvinculado do trabalho intelectual. A jungio entre teoria e pritica provavelmente foi uma das varidveis que possibilitou o alto nivel de qualidade no ensino que as Escolas Téc- nicas Federais vinham desenvolvendo até 1997, quando o governo federal apro- vou o Decreto n° 2.208/97, desvinculando o ensino médio do ensino técnico, Além disso, de acordo com Frigotto (1997), nas duas ultimas décadas, até 0 momento em que 0 MEC encaminhou ao poder legislativo 0 Projeto Lei n° Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 154 Elucagio profissional pa surdos: uma vivéncia politco-pecagrigica no Centro Federal 1.603/96, as Escolas Técnicas Federais vinham tendo “avangos significativos no processo de democratizacio e na estruturacao de projetos politico-pedagdgi- cos” que buscavam “a perspectiva de uma educagio unitiria”. Nesse perfodo, mais precisamente em 1988, 0 primeiro surdo da Grande Florianépolis passou a freqientar 0 Curso Técnico de RAC. Porém, mesmo que participe desse processo de democratizacio interna das Escolas Técnicas Federais, s6 apés 0 quarto ano de sua permanéncia no curso é que a escola oficialmente propde uma alternativa pedagégica para amenizat as suas dificuldades em sala de aula. E elabotado, entio, o Projeto Experiencial para o Desenvolvimento Cognitive ¢ da Linguagem* com o objetivo de “desenvolver a fala de alunos surdos através da linguagem ¢ da cognicao com o intuito de garantir a perma- néncia dos mesmos nos cursos técnicos e facilitar o seu ingresso no mercado de trabalho.” (SACENTI, 1992, p. 4). A fala oral, que limitou no passado a organizacio politica e social dos sur- dos, no inicio da década de 90 do século XX ¢ 0 embriio do Nucleo de Educa- cio Profissional para Surdos no Centro Federal de Educagiio Tecnolégica de Santa Catarina, mais precisamente na Unidade de Ensino de Sao José (UNED/ SJ). Portanto, o ponto de partida dessa trajetoria de certa forma coincide com 0 que Amman (1669 - 1724)° e Heinicke (1729 - 1784)’ propunham. Isto é, a transformagao dos surdos em ouvintes mediante a oralizacio. Para “desenvolver a fala” oral os alunos deveriam participar do processo educativo nos mesmos moldes dos ouvintes, porém, com o suporte pedagdgico do Projeto. Isto se evidencia nos préprios objetivos especificos, entre os quais enumero: a) Estabelecer procedimentos individuais para reeducagio da comunicagio oral e escrita; b) Desenvolver a comunicasio oral do portador de deficiéncia auditiva atra- vés de processos fonolégicos e fonéticos da lingua oral, aperfeigoando as- sim sua dic¢io, entonagio e ritmo para conquistar a auto-confianga ¢ consequentemente a integracao social. Para 0 Projeto, nesse momento o que prevalece sio os pressupostos do Congrtesso de Milio, Em outras palavras, o processo educativo adotado é o corretivo, em que o desenvolvimento dos alunos surdos deveria se dar preferen- cialmente através da modalidade oral ¢ de forma individualizada, para que eles pudessem adquirir uma boa “dicgiio, entonacio e ritmo” em sua fala, Se assim ocorresse, os alunos surdos cstariam mais proximos do modelo ouvinte, 0 que lhes facilitaria interagir nas atividades pedagégicas e na sua insergdo no mercado de trabalho, segundo tal concepgio. Ponto de Vista , Florianépolis, 7.05, p. 151-178, 2003 185 Vilmat Silva Essa abordagem oralista adotada pelo Projeto concebia o surdo a par- tir de uma deficiéncia que deveria ser minimizada mediante a estimulacio auditiva ¢ 0 uso de técnicas fonoatticulatérias para a aprendizagem da lingua portuguesa em sua modalidade oral, o que o levasia a integrar-se na comuni- dade de ouvintes. O objetivo era fazer uma “reabilitago” do aluno surdo em diregio 4 “normalidade”. Além dessa concepgio de surdo apresentada no Projeto, também se per- cebe um conceito bastante simplificado de lingua. Nesse caso, a lingua parecia ser usada de forma artificial, enquanto um conjunto de regras gramaticais ¢ fonoarticulatorias que propiciaria a comunicacao entre surdos e ouvintes. Entretanto, o processo de apropriago de uma lingua nao pode ser visto apenas como um conjunto de regras gramaticais ¢ fonoatticulatorias, pois uma caracteristica essencial de uma lingua € o sistema conccitual hierdrquico. A formagio deste sistema nfo é uma tarefa simples para a crianca, ela nfio pode construir um sistema conceitual mais complexo se nio estiver interagindo através de uma lingua,® com pessoas de sua comunidade (GOLDFELD, 1997, p. 87). Ainda em relago aos objetivos, o Projeto deveria facilitar a permanéncia dos alunos surdos no curso técnico, Portanto, seria pertinente que o préprio Projeto fosse construido também com a participago dos alunos surdos. Po- rém, isto nao se sucedeu. Eo que se evidencia na fala de (S,), quando questiona OS seus ex-colegas de curso: = "Como vooés se sentiam em saladeaula?" ,)- "Quando eu cheguei aqui me senti mal, Pais os professores nao sabia como ensinar os surdos" (S,)- "Na época eu tinha que ter muita paciéncia, pois muitas vezes eu tentava perguntar para os alunos ouvintes 0 que o (professor tinha falado, s6. que eles néo tinham como responder, porque nfo compreendiam aminha voz enem conheciama lingua de sinais" (S,). A necessidade que os alunos tinham de conversar através da lingua de sinais no se justificava para o Projeto, tendo em vista que o objetivo era essen- cialmente o desenvolvimento da fala oral. Essa premissa forgava a um tnico movimento, ou seja, a aproximagao dos surdos aos padrdes de normalidade estabelecidos pelos ouvintes. Portanto, nao tinha sentido considerar 0 descon- tentamento dos surdos quanto ao uso da lingua de sinais por parte dos profes- sores no desenvolvimento das atividades pedagégicas. Ponto de Vista , Floriandpolis, 05, p. 151-178, 2003 156 Educagio profissional pam surdos: uma vivéncia politice-pedageigica no Centro Federal. Porém, mesmo que 0 objetivo fosse o desenvolvimento da fala oral, para os alunos sutdos a abordagem oralista em sala de aula era insuficiente. Essa insa- tisfagio pode ser verificada nas seguintes falas: - "Eu sempre perguntava pata os professores, mas eles s6 respondiam oralmentee eu nao compreendia nada" 6). ~ "Quando euentravaem sala deaula viaos professores sé oralizando cu ficava nervosae nao entendia nada" (S,). = "Bles x6 explicavam paras ouvintes" S)). As atitudes dos professores cm sala de aula, expressas nos relatos, de- monstram que os alunos surdos “no aprendiam nada”, pois eles s6 “respon- diam oralmente” ou “sé explicavam para os ouvintes”. Por um lado, tais atitu- des podem ser vistas como displicentes, mas, pot outro lado, também podem ser entendidas como um teflexo da falta de preparo dos professores, na sua formacio profissional, quanto & melhor forma de comunicagao entre surdos € ouvintes. Contudo, nao se justifica a acomodagio frente as diversas situagdes- problema que a presenga dos alunos surdos provocavam em sala de aula, evi- denciadas através da manifestagao (S,): - "Euconversei com os ptofessores que nao estava compreendendo, porém eles niio me- Jhoraram sua postura pedagdgica em sala de aula. Entio, eu conversei coma supervisora daescola, sé que ela também no resolveuo problema". Entretanto, esse descontentamento nao se vetifica quando os alunos sutdos se manifestam em relagio a Projeto, mesmo que o seu objetivo fosse o desen- volvimento da lingua oral. O que se observa é que, na maioria das vezes, os alunos sutdos se sentiam satisfeitos com as atividades pedagogicas desenvolvidas pelos professores no Projeto, contrapondo-se as atividades desenvolvidas em sala de aula. Esse grupo de discussio comenta que: = "No Projetoem bem melhor queem sala de aula" 6,)- "No Projeto eumelhorei tantoem redagio comoem Matematica" (S,)- "Oensinoem dirigido eas perguntas eram respon- didas. Mas os professotes sabiam poucos sinais" (S,). As atividades desenvolvidas no Projeto demonstram que, para os alunos surdos, a questo nao estava no desenvolvimento da fala oral, mas na possibilida- de de estatem interagindo no campo educacional pata superar barreiras até entio intransponiveis, como a leitura de textos, a melhoria na redagio e em Matemiati- ca, a possibilidade de.as perguntas serem respondidas, mesmo que os professo- res conhecessem “poucos sinais”. Ponto de Vista , Floriandpolis, 0.05, p. 151-178, 2003 187 Vilmar Silva Uma possibilidade dessa aprendizagem descrita pelos alunos surdos, prin- cipalmente no campo da leitura ¢ da escrita, pode estar vinculada a uma das ages do proprio Projeto, que além de desenvolver a comunicagio oral também pretendia levar os alunos surdos a lerem e a escreverem vocibulos, frases ¢ textos “através de técnicas que dessem énfase a pistas visuais, tais como: desenho, ilus- trades, dramatizacio, video ¢ informatica” (SACENTI, 1992, p. 5). Através dessa acao se tém os primeiros resultados positivos na trajetéria do NEPS, indicadores da relevancia da experiéncia visual para os surdos no proces- so de ensino e aprendizagem. Entretanto, os resultados nao podem ser vistos como os primeiros indicios de uma educacio bilingiie, mas como uma estratégia para compensar as dificuldades da comunicacio feita através da audicao. Vieira (2000) afirma que o treinamento da comunicagio visual numa abordagem oralista multi-sensoria? objetiva aumentar a quantidade de informacio, familiarizando o surdo quanto ao papel exercido pela visio para desenvolver a oralidade. Uma outra possibilidade pode estar no fato de que, no Projeto, o ensino era individualizado, o que exigia uma aptoximagio entre professor e aluno, permitindo a construgio de estratégias pedagdgicas que facilitavam a leitura labial, bem como os escritos dos professores ¢ alunos. Dessa forma, a compreensio das petguntas ¢ respostas era facilitado tanto aos alunos surdos como aos professores. Apesar de os alunos surdos se sentirem satisfeitos quanto as atividades pedagégicas desenvolvidas no Projeto, mesmo que este privilegiasse os pressu- postos tedricos do oralismo, ele nao foi suficiente para manter no Curso Téc- nico RAC os alunos surdos que nao oralizavam, Para os alunos (§,) ¢ (S,), que sé conversavam mediante a lingua brasileira de sinais ou através da lingua portuguesa na modalidade esctita, a postura dos professores ¢ dos alunos ou- vintes nfo contribuiu para a sua petmanéncia na escola, o que pode ser obser- vado em algumas falas durante a discussio em grupo: - "No laboratdrio eu ficava perto da professora quando ela estava explicando, mas eu niio compreendia nada do que ea dizia. Para minha infélicidace ela avaliava oralmente, pedin- do aos alunos para falarem o que tinham compreendido, Ela também pedia para cu explicar, mas o que podia fazer, se eu niio entendia nada e além disso, s6 falava em LIBRAS, Como eu nio conseguia falar eu sé tirava zero nas minhas avaliagdes" (S,). = "Vocés conseguiam conversar com os ouvintes" (S,)?- "..] Eu nfo conseguia conversa, pois sé falavaem LIBRAS" (S,)- "[..] Depende, as vezes eu tentava oralizar, mas ema muito dificil, es vezes eu procurava falar em LIBRAS, mas era mais dificil do que oralizar, porque os professores¢ os alunos niio compreendiam nach"). Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 188 Educagio profissional para surdos: uma vivénca politico pedagdgica no Centro Federal . Os alunos sé se comunicavam com proficiéncia em LIBRAS, o que nio era estimulado no ambiente escolar, pelo menos no espago em que al- gum profissional da instituicio estivesse presente. Porém, via-se na clandesti- nidade algumas maos em constante movimento, principalmente no rectcio € no ponto de énibus. Embora esses alunos surdos fizessem emergir a insuficiéncia da aborda- gem oralista, a expectativa dos professores tanto de sala de aula quanto do Projeto era que, com o decorrer do tempo, eles se adaptassem ao mundo oralista. Nio havia questionamentos quanto as mudangas e movimentos que os ouvintes deveriam realizar frente 4 diferenga. Tal pratica pedagégica exigiu dos alunos resultados que nao podiam das, como por exemplo a fala oral, e comecou a gerar um sentimento de insatisfagio e incompeténcia, refletindo negativamente no desenvolvimento escolar, 0 que, provavelmente, motivou-os a sair do Curso Técnico de RAC. - "Como os ptofessores daqui nao me ensinavam eu conversei com a minha maee resolvi sair"S,. - "Bu reproveina primeira séxie c entio resolv sair da Escola Técnica" (S,). Entretanto, a UNED/SJ acreditava que através do Projeto estaria “abrindo a primeira porta”, na Grande Florianépolis, “para estes cida- dios poderem obter uma formagao com qualidade, permitindo o seu ingresso no mercado de trabalho.” (SACENTI, 1992, p. 5). Nesta frase observa-se a vinculagio entre cidadania, formacio ¢ mercado de traba- Iho, ou seja, a cidadania do sudo dependia de sua adaptabilidade ao pro- cesso produtivo. Portanto, pode-se inferir que a escola estaria “abrindo a primeira porta” para formar profissionais surdos que atendessem direta- mente as necessidades do capital. Essa visio unilateral de educacio pro- fissional, que se reduz ao preparo do trabalhador para um emprego, pro- vavelmente nio permite reflexdes no processo educativo sobre o traba- Iho enquanto categoria que pode explicar as relagdes sociais de domina- Gao a que esta submetida a classe trabalhadora. Além disso, mesmo den- tro da légica do capital essa concepcio unilateral de educagio profissio- nal nfo tinha como garantir 0 emprego ao futuro trabalhador surdo, pois 0 desenvolvimento da ciéncia e da tecnologia tem provocado cada vez mais a substituigio do trabalho vivo pelo trabalho moto, e o préptio governo federal, 4 época (1992), comegava a substituir em seu discurso o conceito de “pleno emprego” por “empregabilidade”. Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 159 Vilmar Silva Em 1994 0 Projeto quase se extinguiu, pois nfo se via a perspectiva de ingresso de outros alunos surdos nos cursos técnicos. Para se certificar dessa realidade os profissionais do Projeto, nesse mesmo ano, rcalizatam um levanta- mento junto as escolas publicas na Grande Florianépolis, buscando verificar quantos alunos surdos estariam potencialmente preparados para freqiientar os cursos técnicos oferecidos pela UNED/SJ. O resultado demonstrou que a mai- oria dos alunos surdos nao eram oralizados e que eram raros os que concluiam o ensino fundamental, o que gerou, inicialmente, uma situaco de incerteza quanto 4 continuidade do Projeto. A partir dos resultados da pesquisa, o sentimento de resisténcia se refletiu positivamente estimulando os professores a uma “re-visio” no Projeto Experiencial para o Desenvolvimento Cognitivo e da Linguagem. Os surdos no Curso Pré-Técnico Especial: um desvelar da surdez e do mundo surdo A partir do levantamento realizado nas escolas puiblicas quanto 4 possibili- dade de se ter alunos surdos oralizados nos cursos técnicos da UNED/SJ e das reflexdes desencadeadas ao longo dos trés anos de trabalho do Projeto Experiencial para o Desenvolvimento Cognitivo ¢ da Linguagem, optou-se por efetuar algu- mas mudangas na forma do trabalho que vinha sendo desenvolvido. A principal delas foi a criagéo em 1995 do Curso Pré-Técnico Especial com quatro anos de duracio, destinado exclusivamente a oito alunos surdos que estivessem cursando, no minimo, a quinta série do ensino fundamental em uma escola publica da Grande Floriandépolis e que demonstrassem interesse em estudar num dos cursos técnicos oferecidos pela UNED/S}. Entretanto, o Curso Pré-Técnico Especial manteve a mesma proposta pe- dagégica do Projeto, ou seja, “desenvolver a fala de alunos surdos através da linguagem e da cognicao com o intuito de facilitar o seu ingresso e a sua perma- néncia nos cursos técnicos oferecidos pela UNED/SJ.” A expectativa do grupo de trabalho era de que, durante os quatro anos do curso Pré-Técnico Especial, os alunos surdos pudessem desenvolver a lingua oral, o que facilitaria o seu ingresso ¢ permanéncia nos cursos técnicos. Entretanto, a fala dos alunos surdos demonstra justamente 0 contrario: ~ "Ooralismo fai muito nim no Curso Pré-Técnico Especial, porque cu nao entendia nada doqueos professores fava" S,) "Bu acho que quando a professora ensinavaa falar em sala era uma perda de tempo, porqueeu tinha outras coisas mais importantes para aprender" (S,). Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 160 Porém, ao mesmo tempo que 0 oralismo foi inadequado para os surdos, a criacio do Curso Pré-Técnico Especial foi positiva, a0 propor um curso voltado para alunos surdos. O convivio e a interagio em sala de aula permitiram a iden- tificagio de uma diversidade lingiifstica entre os oitos alunos surdos que estavam freqiientando 0 curso. O ambiente pedagdgico era composto de surdos bilin- giies, surdos que dominavam parcialmente o portugués oral ¢/ou escrito, surdos que dominavam apenas a lingua de sinais e surdos que nio dominavam nem a lingua de sinais e nem o portugués escrito ou oral. Entretanto, no decorrer das atividades pedagégicas, verificou-se que os alunos surdos bilingiies compreendi- am as orientagées dos professores quando estas se davam no campo escrito ou parcialmente, quando o aluno fazia a leitura labial, Porém, durante o proceso de mediacio, as dificuldades eram resolvidas sem grandes problemas "Em 1995 comecei a estudar na UNED/SJ gostei, porque comecei a aprender as ‘matétias que os professores explicavam. Além do Portugués eda Mateméitica eu quetia aprender outras disciplinas para aumentaro meu conhecimento" (S)). Os que dominavam apenas a lingua de sinais eram mediados pelos sur- dos bilingiies ¢ também desenvolviam as atividades propostas. Como pode ser visto através de (S,): ~ "Quando a professora passava os exercicios os meus amigos me ensinavam os sipnificados das palavras em LIBRAS". Os que conheciam parcialmente o portugués escrito e/ou oral solicitavam com freqiiéncia técnicas fonoarticulatérias para facilitar a leitura labial durante os didlogos realizados em sala de aula. - "No Curso Pré-Téenico Especial tinha pouco tempo para os alunos treinarema leitura labial"(S,). Os que naio dominavam a lingua de sinais nem o portugués ficavam atoni- tos com os movimentos das mios dos colegas € dos labios dos professores, que para cles, provavelmente, tinham pouca significacao. O surdo, nesse ambiente, comegou a revelar seu mundo quando pas- sou a se expressar com as maos, ainda que aquele falar de gestos tao rapi- dos ¢ expressivos fosse incompreensivel para os professores, ao mesmo tempo que era tio natural para a maioria deles. O desvelar dessa nova lingua trouxe consigo a possibilidade de se construir uma comunicago mais efetiva entre professores ¢ alunos, 0 que forcou o Curso Pré-Técnico Especial a reorientar suas atividades pedagégicas, nao desprezando a oralidade, mas ampliando para outras formas de comunicasio, entre clas os sinais utilizados pelos préprios surdos. Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 161 Vilmar Silva Assim, em 1996 0 Curso Pré-Técnico Especial ampliou o numero de vagas para quatorze alunos ¢ também modificou a sua abordagem metodoldgica. O curso continuou com o mesmo objetivo: ensinar a lingua oral. Porém, passou a utilizar no processo pedagégico simultaneamente a fala, o aparelho de amplifica- 4o sonora, a leitura labial, a escrita, os sinais da lingua brasileira de sinais, o alfabeto datilolégico, 0 desenho, a linguagem corporal, entre outros procedi- mentos. Na realidade todas essas possibilidades de comunicagio tinham como objetivo fazer com que os surdos € os ouvintes se entendessem no processo educativo. Para Goldfeld (1997), esses procedimentos metodolégicos se coadu- nam com a abordagem pedagégica da comunicacio total. Nesse ambiente comunicativo, a exposi¢io dos contetdos era feita de for- ma simultinea entre 0 portugués oralizado e sua representacao em sinais, acom- panhando a linearidade da estrutura da lingua portuguesa, na expectativa de que esse procedimento pudesse facilitar o seu aprendizado, = "Em 19%balguns professores do Curso Pré-Técnico Especial usavam ao mesmo tempo sinaise fala" (S,)- "[..] Para mim o portugués oral nao pode estar junto com sinais, porque fica tudo confaso"(S,). = "No Pré-Técnico Especial os proféssores ensinavam com o oralismo ou LIBRAS?"S,) As afirmacées “fica tudo confuso” quando se usa “‘ao mesmo tempo sinais ¢ fala” e “eu nao entendia nada” quando “eles usavam sinais e falavam ao mesmo tempo” encontram ressonincia em autores como Lacerda (1996) ¢ Goldfeld (1997). Para Lacerda (1996), a comunicagio simultiinea (fala/sinais) s6 é possivel pelo faro de os cédigos manuais seguirem a estrutura gramatical da lingua majo- ritétia, pois as linguas de sinais possuem estruturas proprias ¢ bem distintas das linguas faladas, Nao se pode falar e sinalizar simultaneamente duas linguas, A construgio de uma frase na lingua de sinais no segue a mesma seqiiéncia de uma lingua falada. A estrutura frasal é uma das caracteristicas que nao permitem a sobreposicao entre uma lingua falada e a lingua de sinais. Para Goldfeld (1997, p. 41), “a lingua de sinais nao pode ser utilizada simul- taneamente com o portugués, pois néo temos capacidade neuroldgica de pro- cessar simultaneamente duas linguas com estruturas diferentes.” Nesse novo contexto de comunicagio do Curso Pré-Técnico Especial os embates pedagogicos entre alunos ¢ professores passaram a scr uma constante, principalmente quanto a utilizagio do portugués sinalizado, Para os alunos, a Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 162 Educagio profissiona pam surdos: uma vivénca politco-pedagrigica no Centro Federal. frase na lingua portuguesa, ao ser traduzida para o portugués sinalizado, nao permitia sua compreensio, como vimos anteriormente. Além disso, a morosida- de dos professores quando se expressavam por sinais ¢ pelo alfabeto dactilolégico provocava muitas diferencas entre a velocidade da articulacio da fala ¢ dos sinais. Para eles as informagdes se tornavam confusas ¢ de dificil compreensio. Por um lado, o tempo foi demonstrando que os procedimentos da co- munica¢io total, apesar de terem facilitado a comunica¢ao entre surdos e ouvin- tes, no estavam propiciando o desenvolvimento da lingua portuguesa confor- me o esperado, tanto na modalidade oral como na esctita. Potém, por outro lado, mesmo que os embates entre surdos ¢ ouvintes estivessem caminhando para o reconhecimento da lingua brasileira de sinais enquanto primeira lingua da comunidade surda no contexto escolar, 0 dois objetivos principais do Curso Pré-Técnico Especial nao estavam se concretizando. Isto é, os alunos nio esta- vam se otalizando ¢ nem concluindo o ensino fundamental nas escolas publicas ¢, conseqiientemente, nao estavam ingressando no ensino técnico. Essa problematica forgou a um redirecionamento nos trabalhos que o Cur- so Pré-Técnico Especial vinha desenvolvendo ¢ a pergunta que se fazia na época era: qual o futuro escolar e profissional para os alunos surdos que no concluem 0 ensino fundamental na Grande Florianépolis? Educacio Profissional de Nivel Bésico: uma aproximacio com os movimentos surdos da Grande Florianépolis Em 1996, os professores do Curso Pré-Técnico Especial, em parceria com os da dtea técnica, elaboraram um projeto envolvendo alguns cursos de Educagio Profissional de Nivel Basico para surdos, com 0 objetivo de qualifica- los para o mercado de trabalho na regio da Grande Florianépolis. Legalmente o projeto foi executado porque a Secretaria de Educacio Mé- dia e Tecnolégica do Ministério da Educagio (SEMTEC/MEC) passou a esti- mular cursos de Educacio Profissional de Nivel Basico, que até entio eram de responsabilidade exclusiva do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A ampliagao de vagas para esse nivel de educacio profissional deu-se a partir da reforma da educagio profissional brasileira empreendida pelo governo federal, cujo objetivo era o de permitir ao trabalhador uma formacio profissional “per- manente”, voltada nao mais para o emprego, mas para a “empregabilidade”, O inicio da materializagio dessa proposta se deu quando a SEMTEC encaminhou ao Congtesso Nacional 0 Projeto de Lei n° 1.603/96, determinando que: Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 163 Vilmar Silva as instituigdes federais ¢ as instituigdes publicas e privadas, apoiadas financeiramente pela Unio, que ministram Educa- 40 Profissional deverao oferecer cursos de nivel basico em sua programacio regular, abertos a alunos das redes puiblicas e privadas de educagio basica, assim como a trabalhadores com qualquer nivel de escolaridade. Entretanto, os cursos s6 se concretizaram através de um convénio firma- do entre o Sistema Nacional de Empregos de Santa Catarina (SINE/SC) ¢ a UNED/SJ, pois de acordo com as orientacées da propria SEMTEC os cur- sos deveriam acontecer em patcetias, preferencialmente com as instituigocs privadas, para que nao houvesse a necessidade de investimentos humanos e financeiros por parte das Escolas Técnicas. Nesse sentido, os cursos profissionalizantes para surdos" oferecidos em 1997 pela UNED/S] convergiam em alguns aspectos com as proposicées da SEMTEC. Eram cursos de Educacio Profissional de Nivel Basico cujos re- cursos financeiros nao eram oriundos da Secretaria do Ministério da Educagio, mas do Fundo de Amparo do Trabalhador (FAT), ¢ cujo foco da aprendiza- gem estava no “fazer”, isto é, eram cursos direcionados exclusivamente ao aptendizado de uma ou mais tarefas. Diante da necessidade emergencial de qualificar quase dois tercos da for- ga de trabalho - cerca de 70 milhées de pessoas - que nfo possuiam sequer trés anos e meio de escolaridade, os cursos para clientelas especificas, como os surdos, deixam de ser vistos como assistenciais 4 parte, e se integram a0 contexto da profissionalizagao dos trabalhadores. Isto é, para a instituicdo cs- colar, os surdos nao mais se enquadrariam no rol de enfermos, poderiam in- gressar no mundo do trabalho - ¢ serem explotados - em igualdade de condi- 6es profissionais com os demais trabalhadores brasileiros, Porém, ao mesmo tempo que tais cursos correspondiam a ldgica gover- namental e, portanto, do capital, também se aproximavam em outros aspectos dos pressupostos teéricos da escola publica de jovens ¢ adultos surdos de Paris'' A estrutura dos cursos reconhecia a experiéncia visual dos surdos no acesso ao conhecimento sistematizado pela humanidade. Portanto, na organi- zagio € execugio dos cursos priorizou-se 0 uso da lingua brasileira de sinais, através da presenga de intérpretes, da contratacio do primeiro instrutor sur- do! e da formagio de turmas somente com alunos sutdos. A concepgio bilingiie dos cursos de Educagio Profissional de Nivel Basi- co foi provocada pelas inquictages geradas por surdos € ouvintes no Curso Pré- Ponto de Vista, Florianépolis, n.05, p. 151-178, 2003 164 Ekcagio profissional para surdos: uma vivéncia poltco-pecegxigica no Centro Federal. Técnico Especial ¢ pelos estudos que alguns profissionais da UNED/SJ vinham realizando em relagio as especificidades dos surdos (FERNANDES, 1990; SANCHEZ 1990; BRITO, 1993), o que permitiu uma nova abordagem metodol6gica para os primeiros cursos de profissionalizagio para surdos, pois na perspectiva de aumentara insergio do surdo no mercado de trabalho a equipe de Educacio Profissional para Surdos sta propondo cursos de qualificacdo ¢ requalificacio profissi- onal, cujo principal objetivo ¢ experienciar metodologias de ensino para surdos, no qual se faga a tradugdo para LIBRAS do “saber-fazer” de cada curso (SILVA, 1996, p. 6). Apesar dessa compreensio sobre a educacio de surdos, um dos principais problemas para a efetivagio da proposta foi a falta de intérpretes reconhecidos pela Federagao Nacional de Educacio ¢ Integracio de Surdos (FENEIS), 0 que exigiu a contratagio de profissionais que conviviam com a comunidade surda da Grande Florianépolis ¢ que tinham um pouco de dominio da LIBRAS. Foi dessa forma que se propiciou a traducio para LIBRAS do “saber-fazer” dos cursos profissionalizantes. A adocao dessa alternativa de contratagao de intérpretes, 20 mesmo tempo que apresentou ganhos teve também perdas, como se observa na fala dos egressos dos cursos de Educacio Profissional de Nivel Basico: = "Quando exconheciao intérprete cava mais ici pam aprender. Porém, quandoo intépprete erade outro lugar tinha sinais que ex niio conhedia eal ficava difcl para compreendex. Alm dissa tinha intéxprete que usava o portugués sinalizadoem vez de LIBRAS, tornando ainda muaisciffcla compreensio" 6,). - "Pam o surdo ficava mais facil para aprender quando o intérprete convivia coma prdptia comunidade surca" 6), Observou-se ainda que 0 universo lingiiistico dos alunos também era diversificado, semelhante ao que ocorreu no Curso Pré-Técnico Especial, ¢ que a presenga dos intérpretes em sala de aula nio garantia a aprendizagem de todos os alunos, pois alguns deles nem sequer conheciam os sinais mais usuais da lingua brasileira de sinais. A ampliagio do numero de alunos surdos na UNED/SJ a partir de 1997, tanto no Curso Pré-Técnico Especial como nos cursos de Educacao Profissional de Nivel Basico, tornou a escola um ambiente mais propicio para a aquisi¢ao da lingua brasileira de sinais. Além disso, os alunos surdos que freqiientavam a UNED/SJ proporcionaram uma maior aproximacio Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 165 Vilmar Silva entre os movimentos surdos da Grande Floriandpolis ¢ os profissionais da escola, néo s6 pelo ambiente bilingée, mas também pela presenga entre os alunos de surdos politicamente organizados que lutavam por sua expansio social e politica em Santa Catarina: ~ "Antesos surdosda Grande Flaiandpalis rio se preocupavamem se deservolverem LIBRAS enemse precoupavarncom sua organizagio politica, cs s6 queriam jogare fazeramizade. Os surdos.no pasado nao exam valotizados, es tinharm que ser oralizados pata screm accitos. Os qutsos pro fissionalizantes pata surdos na UNED/S] foram muito importantes para desper- ‘2rna comunidade surcha a importincia de sua organizacio politica" (S). - "Foi muito importante, porque os surdos da Grande Florianépolis precisavamn se organizar para reivindicar seus ditcitos, principalmente na educagao ¢ no trabalho” (S,). + "Euconcordocom @,) ¢ 6), porém também foiimportante ver os surdos de outros estados com muita experiéncia e que tinham interesse em socalizat seus conhocimentos. A partir desses debates os surclos da Grande Flocianépolis comeraram a perceber que tam- bém deveriam iniciar sua luta para conquistar seus direitos "(S,). A presenca dos surdos e 0 reconhecimento do uso da lingua brasileira de sinais na escola comegaram a romper com a visio sobre o aluno aceito na UNED/SJ, indicando um novo olhar do ouvinte em relagio a diferenca. O surdo, nesse contexto, passou a scr valorizado principalmente pela sua experi- éncia visual e, conseqiientemente, a ter acesso aos conhecimentos do grupo majoritario, que também lhe pertencem, por meio de sua prdpria lingua. Esse novo enfoque favoreceu também a mudanga no olhar do surdo em relagao a si mesmo, ao se sentir parte de um grupo coeso ¢ perceber que podia atingir os mesmos niveis intelectuais que os ouvintes, Assim, os primeiros cursos de Educacio Profissional de Nivel Basico con- firmaram a importancia de uma educacio profissional bilingiie para surdos € a necessidade de uma reestruturacio do Curso Pré-Técnico Especial, frente a rea- lidade educacional e de trabalho dos surdos na Grande Florianépolis. Niicleo de Educagio Profissional para Surdos: um novo espaco da comunidade surda na Grande Florianépolis Em 1998, durante 0 proceso de avaliagio com a comunidade surda a respeito dos cursos profissionalizantes, 0 grupo de trabalho propés a criagdio do Ponto de Vista, Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 166 _Educagio profissional para surdos:uma vivénci polteo-pedlageigica no Centro Federal. Niicleo de Educacio Profissional para Surdos (NEPS), cujas atividades se cen- tralizariam em cursos de Educagio Profissional de Nivel Basico para surdos, divididos em cursos de curta ¢ média duta¢io. Para os cursos de curta duracio, frente 4 experiéncia de 1997, ficou estabe- lecido que o principal objetivo nao seria mais apenas a insergio de surdos no mercado de trabalho, mas sim que pais, professores ¢ alguns surdos da Grande Florianépolis iniciassem sua formagio na lingua brasileira de sinais e passassem a conhecer um pouco mais sobre a histéria, a identidade e a cultura surda. - "Antes de comegar os cursos de LIBRAS na UNED/SJ os surdos da Grande Floriandpolis faziam os sinais com pouca expresso, o que muitas vezes dificultava a comunica¢ao. Porém, quando os sutdos do Rio Grande do Sul ¢ do Parana comegatam a ministrar cursos na UNED/SJ, as coisas comegaram a modifica, porque passamos a aprender a estrutura da lingua de sinais, a importincia da expresso corporal, a historia da comunidade surda, a cultura surda ¢ a organi- zagao dos movimentos surdos"(S,). Para alcan¢ar esse objetivo foi elaborado um projeto envolvendo cursos de Educagio Profissional de Nivel Basico, preferencialmente para surdos que ja dominassem a lingua brasileira de sinais, pois “se os surdos nao dominarem uma lingua como que eles vao aprender uma profissao? (S,)” cursos de monitores, instrutotes,!? intérpretes e de lingua brasileita de sinais nos niveis bisico e intermediatio para surdos, pais de surdos e professores de surdos." Os cursos de curta duracao na rca profissionalizante, tanto em 1999 como em 2000, continuaram com a mesma estrutura dos cursos de 1997, € foram concebidos a partir de uma discussio com a comunidade surda. O resultado dessa discussao foi traduzido em cursos nas areas de eletrdnica, refri- geragio e condicionamento de ar, artesanato ¢ servicos, além de um curso direcionado para uma empresa, que tinha nove surdos trabalhando no setor de montagem de transformadores elétricos ¢ necessitava se certificar na ISO 9000. Este curso confirma as palavras de Shiroma ¢ Campos (1997) quanto a neces- sidade inclusive de empresas fornecedoras de se adequarem aos padrées inter- nacionais de qualidade, mesmo com pouca inovagio tecnoldgica ¢ com traba- Iho rotineiro e parcelado, tipico do modelo fordista/taylorista. Porém, o que mais chama a atengio é que apés os dois anos de cursos de Educacao Profissional de Nivel Basico se formaram cento e cinqiienta _¢ trés surdos, sendo que alguns deles chegaram a fazer oito cursos profissionalizantes, Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 167 Vilmar Silva "Bu j fiz varios cursos profissionalizantes na UNED/SJ, entre eles Manutengio de Ar-Condicionado, Informatica, Instalagdes Elétricas Prediais, Desenho Técnico, Auto- Cad, Solda Oxi-Acetilénica, Tecelagem e Montagem de Placas de Circuito Impresso, Pont, niio conseguinenhum trabalho" (S). Deste universo apenas sete surdos ingressaram no mercado de trabalho apés a tealizagio dos cursos profissionalizantes de 1999 e 2000, confirmando de certa forma as palavras de Fiod (2000, p. 8): [-.] © trabalho parece estar se tornando algo cada vez mais rarefeito. Estatistcas, noticiérios cotidianos, estudos, pesqui- sas mostram a todo momento que no hi trabalho produti- vo para todos. O desemprego estrutural é, nesse sentido, apenas parte dessa realidade contraditdria. Politicas destina- dasa dizimar o desemprego ea ameaga de extingio de empte- {gos no tm conseguido impedir que cada vez. mais homens sejam expulsos do mundo do trabalho. Se nesse caso 0 objetivo no foi alcancado por questdes estruturais, nio se pode dizer o mesmo dos cursos de curta duragao que envolviam a formagio de surdos e ouvintes na aquisicio da lingua brasileira de sinais. Para concretizar essa parte do projeto articulou-se uma triade entre os movimentos surdos da grande Florianépolis, FENEIS/RS e UNED/SJ. A compreensio que se tinha era de que os cursos de educagio profissional para surdos nos niveis basico ¢ técnico nao poderiam avangar se os surdos, pais ¢ professores nao tivessem o dominio da lingua brasileira de sinais, Nesse sen- tido, o objetivo da triade pode ser representado pelo seguinte pensamento de Fernandes (2000, p. 31): Assim, objetivamente, o que pretendemos é garantir 0 domi- nio de uma lingua para dar bases sdlidas ao desenvolvimento cognitivo do individuo. Garantir a aquisicao do conteddo es- colar é uma conseqiiéncia natural desse proceso ¢ nica fina- lidade substantiva de nossa atuacao. ‘Além do dominio da lingua brasileita de sinais por parte dos pais, professo- res ¢ surdos, 0s cursos também tinham como objetivo propiciar momentos de teflexdo sobre a organizagio politica ¢ social da comunidade surda no Brasil ¢ em Santa Catarina’> e suas conseqiiéncias no contexto educacional e de trabalho, Ponto de Vista , Florianépolis, n.05, p. 151-178, 2003 168 _Eveagio profissional para surdos: uma vivéncia politico pedtagigica no Centro Federal. Para alcangar essa finalidade, a primeira estratégia adotada foi a de contratar preferencialmente professores surdos que ja vinham desenvol- vendo esses cursos nos estados do Rio Grande Sul e Parana, bem como os surdos de Santa Catarina que tinham lideranga nos movimentos surdos ¢ também cram bilingiies: - "Quando os instrutores e professores da FENEIS falavam em LIBRAS sobre os movimentos surdos, eu ficava impressionado com tantas coisas que eu nao conhecia"(S,). A segunda estratégia foi a de reunir, em alguns momentos ¢ num mes- mo espago, surdos, pais ¢ professores que estavam realizando os cursos para discutir tematicas vinculadas 4s necessidades dos surdos. Como, nes- ses momentos, a maioria dos participantes eram surdos, naturalmente a lingua majoritria passou a ser a lingua brasileira de sinais, permitindo & comunidade surda expor suas idéias, 0 que provocou varios embates, prin- cipalmente quando os professores evidenciavam sua pratica oralista, ou seja, queriam transformar os surdos em ouvintes através da oralizacao, negando a eles o direito de serem surdos. - "Eu ficava muito satisfeita quando via os surdos questionando os professores sobre sua peitica pedagégica. Nessas atividades coletivas os surdos podiam discutir com os ouvin- tes, pois tinham intérpretes para traduzir 0 que estavam falando. Porém, agrande releviindia desses cursos foio fato dos surclos peroeberam a importincia de reivindicarem seus direitos, entre eles o de aprenderem na sua prépria lingua" (S,). A riqueza dessas experiéncias coletivas também marcou os pais ouvintes que tinham filhos surdos.'* Os pais passaram a perceber que seus filhos surdos procuravam preferencialmente os adultos surdos para conversar ¢ ficavam horas com 08 seus pares, descobrindo um mundo lingiiistico ¢ social muitas vezes completamente novo pata eles. ~ "surcdoem casa niio consegue conversar cam os pais, porque as préptios pais néio conhe- cem LIBRAS, mas nos encontros na UNED/SJ que envolviam pais, professores e surdlos, as criangas surdas procuravam os surdos adultos para conversar eos surddos adultos ficavam explicando as coisas para clas” (,). O ambiente bilingtie"’ na UNED/SJ permitiu que csiangas, jovens e adul- tos surdos, mesmo os que tinham adquirido tardiamente a lingua brasileira de sinais, ampliassem a sua visio de mundo e em especial a relevancia da organiza- gio dos movimentos surdos em Santa Catarina. Ponto de Vista , Floriandpolis, .05, p. 151-178, 2003 ‘169 Vilmar Silva Nicleo de Educagio Profissional para Surdos: uma resisténcia a formagio profissional unilateral ‘Até o momento tenho me referido apenas aos cursos profissionalizantes de curta duracéo, porém o Decreto n° 2.208/97 também trouxe consigo a pos- sibilidade de se realizar cursos de média duragio na Educagao Profissional de Nivel Basico, bem como de articular os conhecimentos teéricos e praticos - contratiando, dessa forma, a prdpria légica da SEMTEC/MEC, quando esta- belece no mesmo decreto a sepata¢ao entre o ensino médio ¢ técnico. No artigo 4° do Decteto n° 2.208/97 temos que: A Educacio Profissional de Nivel Basico é uma modalidade de educacio nio-formal e duracio variavel, destinadaa proporcio- nar ao cidadio trabalhador conhecimentos que lhe permitam reprofissionalizar-se, qualificar-se ¢ atualizar-se para o exercicio de fungdes demandadas pelo mundo do trabalho, compativeis com a complexidade tecnolégica do trabalho, o seu grau de conhecimento ¢ 0 nivel de escolaridade do aluno, niio estando sujeita a regulamentagio curricular. (BRASIL, 1997). O governo federal, ao estabelecer que a Educagio Profissional de Nivel Basico nao estaria “sujeita & regulamentacio”, permitiu as Escolas Técnicas Federais estruturarem cursos profissionalizantes de nivel basico sem a necessida- de de pareceres da SEMTEC. Dito de outra forma, legalmente as Escolas Téc- nicas Federais poderiam criar cursos de Educagio Profissional de Nivel Basico que fizessem a articulagao entre teoria e pritica, além de poderem estabelecer 0 tempo de duragao de cada curso, Além dessas duas possibilidades na criagio dos cursos profissionalizantes de nivel basico, o Decreto n° 2.208/97 também detes- minou que as instituigdes federais de educagao profissional deveriam, obrigatori- amente, oferecer esses cursos a alunos de educagio basica das redes publicas ¢ privadas, bem como a trabalhadores com qualquer nivel de escolaridade. Pautado nesse Decreto, em 1999 o NEPS constrdi com a comunidade surda o Curso de Instalagdes Elétricas Prediais,'* ¢ em 2000 o Curso de Desenho Técnico” voltado para jovens e adultos surdos. ‘A estrutura curricular dos cursos, 20 mesmo tempo que se diferenciava, também se aproximava dos cursos de profissionalizacio de curta duragao. Estes, mesmo sendo bilingiies, preparavam os alunos para atender diretamente as necessidades do mercado de trabalho, separando a formagio geral da espe- Ponto de Vista, Florianépolis, n.05, p. 151-178, 2003 170 cifica, enquanto os cursos de média duraciio também eram bilingiies mas fazi- am a jungao entre teoria ¢ pritica, contrapondo-se a légica estabelecida na legislagio. Com essa abordagem procurava-se romper com a proposta de educagio profissional imposta pelo governo federal: aquela que tem como inico objetivo preparar o trabalhador para gerar cada vez mais trabalho exce- dente para o capital. Para os profissionais do NEPS a questo nao era apenas de socializagao dos conhecimentos cientificos ¢ tecnolégicos, mas, sim, sua transformacaio em instrumentos de luta, ou seja: A ciéncia somente seri titil aos empregados, aos desemprega- dos e aos excluidos, na medida em que os prepare para serem 08 novos organizadores sociais das forsas produtivas existen- tes. Nao basta ter acesso & ciéncia, no é suficiente socializé-la. Os trabalhadores precisam romper esta barreira histrica que impede que a riqueza por eles produzida se espalhe por toda a sociedade FIOD, 1999, p. 9). Além disso, a possibilidade de estruturar cursos de Educagio Profissio- nal de Nivel Basico vinculando os conhecimentos teéticos ¢ praticos a partir da lingua brasileira de sinais também se aproximava de uma reivindicagao da comunidade surda da Grande Floriandpolis, isto é, uma profissionalizagio vinculada a escolarizagio. Segundo eles, isto aumentaria a possibilidade de se inserirem no mercado de trabalho, além de garantir a continuidade de seus estudos no ensino formal. Por um lado, percebe-se uma visio ingénua acetca do papel da escola em uma sociedade fundamentada na légica do modo capitalista de produgio, quando vinculam a escolatizagio @ sua insergio no mercado de trabalho. Por outro lado, como afitma Frigotto (2001, p.125), 0 “trabalhador reivindica escolatidade porque percebe que o saber, no interior das relagdes sociais em que vive, é uma forma de poder. Por isso, nio lhe interessa estar fora da escola, como nao lhe convém a defesa da desescolarizac¢io”. Em outras palavras: os movimentos surdos de Santa Catarina, a0 longo de sua histéria, tém lutado por uma proposta de educa- cio que democratize o saber, isto é, que os ouvintes reconhegam o papel das comunidades surdas na construgio do saber produzido pela humanidadc. Esses cursos profissionalizantes de média duragio nio reduziam a formagio profissional dos surdos a um esquema de adaptagio as rotinas do processo de trabalho, mas buscavam desenvolver uma formaciio que lhes possibilitasse, tanto nos contetidos como nos procedimentos metodolégicos, terem a seu alcance Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 m Vilmar Silva instrumentos para apropriar-se do saber historicamente pro- duzido, sistematizado - ¢ que sempre lhe foi negado - para claborar e explicitar o seu saber [| ¢ ampliar, desta forma, sua capacidade de organizagio c de luta por scus objetivos mais gerais. (FIOD, 1999, p 9). Porém, a principal bandeira de luta dos movimentos surdos da Grande Florianépolis sé foi conquistada em fevereiro de 2001, quando os movimen- tos surdos com o Centro Federal de Educacio Tecnolégica de Santa Catarina realizou um convénio com a Central Unica dos Trabalhadores (CUT) para escolarizar e profissionalizar os trabalhadores surdos da Grande Floriandpolis em nivel de ensino fundamental. Foi nesse projeto de formacio profissional coordenado pelos prdprios trabalhadores que o NEPS, em seu estigio mais avancado, vinculou trabalho manual ¢ intelectual com certificagio do ensino fundamental, ao criar 0 Curso de Educacio de Jovens ¢ Adultos Surdos com profissionalizacio na area de Desenho Técnico. Consideragées finais: pontuando alguns movimentos de rupturas na trajetéria do NEPS O primeito deles esta relacionado 4 passagem de uma educagio profissio- nal para surdos essencialmente oralista - os surdos no Curso Técnico de Refrige- ragio ¢ Ar-Condicionado - a uma educacao profissional bilingiie critica - os sutdos nos cursos profissionalizantes de média duracio € no ensino fundamen- tal-, através dos cursos de nivel basico ¢ do Curso de Educagao de Jovens ¢ Adultos Surdos com profissionalizacao em Desenho Técnico. Isto é, se no passa- do o oralismo foi um limitante por sua visio clinico-patoldgica na educagio de surdos, no Centro Federal de Educagao Tecnolégica de Santa Catarina foi o desencadeador de uma nova proposta politico-pedagégica que contraditoria- mente, foi se construindo no espago escolar, através dos embates entre os surdos que lutavam pelo reconhecimento da lingua brasileira de sinais no proceso peda- g6gico e os profissionais ouvintes, que hoje, conjuntamente propdem uma edu- casio profissional que permita ao surdo o acesso a0 conhecimento sistematiza- do pela humanidade em sua propria lingua. O segundo inicia com as limitagdes impostas pelo Decreto n® 2.208/97 que, ao pretender qualificar quasc dois tercos da forca de trabalho, obrigava a elaboracio de cursos profissionalizantes répidos, aligeirados, eminentemente Ponto de Vista, Floriandpolis, 2.05, p. 151-178, 2003 172 _Educogio profissiona parasurdos: uma vivéncia poltco-pedagdigica no Centro Federal instrumentais; nesse cenario restritivo quanto a formagao integral dos trabalha- dores — num pais que, segundo Frigotto (2001, p. 79) “fez tudo para que o trabalhador nao fosse educado, nao dominasse a lingua, nio conhecesse sua histéria, nao tivesse acesso a seu saber, sua ciéncia ¢ sua consciéncia” — abre-se a possibilidade de inclusdo dos sutdos, que deixam de ser vistos de forma assistencial e a parte, como enfermos, ¢ se integram ao contexto geral de profissionalizacao dos trabalhadores brasileiros. Essa mesma possibilidade - participar, em igualdade de condigdes com os de- mais trabalhadores brasileiros, dos processos de educac’o profissional — sera encarada inicialmente como um limite, dadas as restrigdes do mercado de trabalho e 0 papel petiférico da economia brasileira. Mas, o mesmo Decreto que desvincula o ensino médio do ensino técnico — ¢ estamos diante de um terceito movimento de ruptura — deixa a ctitério dos Centros Federais de Educagio Tecnolégica a regulamentacio dos cursos profissionalizantes de nivel bisico, ¢ portanto neles reside a possibilidade de vincular trabalho manual e intelectual, permitindo ao trabalhador a construgao de uma visio geral sobre os processos de trabalho. Dito de outra forma, a Educagio Profissi- onal de Nivel Basico, que tinha como intengio prepatar de forma aligeitada o trabalha- dor para ser explorado pelo capital, acabou privilegiando, no caso dos surdos na UNED/ SJ, 0 seu aprendizado, quando o Niicleo de Educacio Profissional para Surdos criou os cursos profissionalizantes de nivel basico de média duragio e 0 Curso de Jovens e Adultos Surdos com profissionalizacio em Desenho Técnico, fazendo a juncio entre trabalho manual ¢ intelectual, nijo reduzindo a educagao profissional, mesmo no nivel bisico, a um esquema de parcializagio do processo de trabalho, mas desenvolvendo uma educagio que prepare o trabalhador surdo para a defesa dos interesses da classe trabalhadora, isto é, educar “nio apenas para atendet a realidade na sua complexidade ¢ diversidade, mas principalmente para transformi-l” (FRIGOTTO, 2001, p. 92). O quarto movimento aflora da criagio de cursos de Educacio Profissio- nal de Nivel Basico para formacio de profissionais ouvintes bilingiies (LIBRAS - Lingua Portuguesa), intérpretes, monitores ¢ instrutores surdos, em parceria com os movimentos surdos da Grande Florianépolis e com a FENEIS, tendo como foco principal a organizagio social e politica dos surdos e dos profissio- nais que trabalham com sutdos na Grande Florianépolis, que em ptincipio em nada poderiam ser atendidos pelos objetivos do Decreto n° 2.208/97. Além disso, esses cursos nao nasceram de uma visio ingénua, ou seja, querendo resol- ver um problema histérico e social dos surdos apenas no contexto escolar, mas ja trazia a perspectiva de se transformarem em espacos de lutas que pudessem combater as relacdes “ouvintistas” nas escolas publicas da Grande Florianépolis. Ponto de Vista , Floriandpolis, .05, p. 151-178, 2003 173 Vilmar Silva A partir dos movimentos que os préprios limites e possibilidades provo- caram na trajet6ria do Nicleo de Educa¢io Profissional para Surdos do Centro Federal de Educagio Tecnolégica de Santa Catarina, este estudo indica uma nova possibilidade: de se criar trabalhos politico-pedagégicos na area da educacio profissional comprometidos com os interesscs da classe trabalhadora, mesmo sobre a égide do Decreto n° 2.208/97 que representa os interesses do capital, pois 0 espaco escolar, no caso especifico a UNED/SJ, também é formado por trabalhadores que defendem uma educagao profissional, na qual o ser humano é © centro das atengdes, ¢ nio o mercado, Isto significa dizer que uma educacio profissional bilingiie e critica deve “passar ao largo da chamada qualificagao para © trabalho, porque isto significa afirmar o pressuposto que nutre o capital: o trabalho vivo produtivo” (FIOD, 1999), e optar pela elaboracio de propostas comprometidas com os movimentos surdos ¢ com os “sindicatos de resistén- cia”, na perspectiva de romper com as relagdes sociais de dominacao, quer scja capital/trabalho, quer seja ouvinte/surdo. Notas 1 OCentro Federal de Educagao Tecnolégica de Santa Catarina é uma autatquia vinculada ao Ministério da Educago e do Desporto e desenvolve cursos de ensino médio e educagio profissional nas modalidades de ensino bésico ptofissional, técnico ¢ tecndlogo, Atualmente o sistema tem 5.306 alunos ¢ é composto pela Unidade Sede em Floriandpolis (ETF/SC), a Unidade Des- centralizada em Sao José (UNED/SJ), 0 Centro Politécnico em Jaragué do Sul ¢ a Unidade de Enfermagem em Joinville. 2 Thivifios (1987), no livro “‘Introdugio a pesquisa em ciéncias sociais: a pesquisa qualitativa em educagao”, utiliza o termo “estudo de caso histérico- organizacional” para intitular investigagées sobre a forma organizacional de setores, escolas etc”. Entretanto, nesta pesquisa, como se busca dar uma interpretagio da trajetéria de um niicleo pertencente a uma instituicio, no caso, o Centro Federal de Educagao Tecnolégica de Santa Catarina, resolvi chami-lo de estudo de caso hist6tico-institucional. 3. Este artigo foi escrito a partir de minha dissertagio de Mestrado em Edu- cagio na Universidade Federal de Santa Catarina, cujo titulo é A Luta dos Surdos pelo Direito A Educagio e a0 Trabalho: Relato de uma Vivéncia Politico-Pedagégica na Escola Técnica Federal de Santa Catarina. Ponto de Vista , Floriandpolis, n.05, p. 151-178, 2003 174 12 Bducagio profisional parasurdos uma vivenca poltico-pedagdgica no Centro Fedetal UNIDADE DE ENSINO DE SAO JOSE (1988). Estrutura Curricular do Curso de Rettigeragio ¢ Ar Condicionado, p.10. Neste artigo o Projeto Experiencial pata o Desenvolvimento Cognitivo ¢ da Linguagem seri denominado apenas por “Projet”, Amman era um médico suico que tinha como objetivo assemelhar os surdos aos ouvintes através de procedimentos de leitura labial com o uso do espelho. Ele queria que os surdos imitassem mecanicamente os movimentos da lingua falada. Heinicke era um avtodidata e militar germano que deu continuidade aos objetivos de Ammam. Ele também fundou e¢ dirigiu a primeira escola pi- blica oralista para surdos na Alemanha, Afirmava publicamente que “ningin otro método puede compararse con el que yo he inventado y practico, por quc el mio se basa por entero en la articulacién del lenguaje oral”, Para Goldfeld (1997), a notacio “lingua,” é usada para representar a lin- gua “no sentido de Bakthin, ou seja, um sistema semidtico, criado ¢ pro- duzido no contexto social e dial6gico, servindo como elo de ligagio entre psiquismo ¢ ideologia”. Segundo Vieira (2000, p. 37), a abordagem oralista multi-sensorial enfoca a reabi- litagio do deficiente auditivo através da “integracio dos vatios registros sensoriais, num todo significativo e coloca que (,.) a méxima comunicagio para o deficiente auditivo ocorre quando visio e audicio atuam de forma integrada”. Nesse ano foram oferecidos os cursos de Informatica Basica, Desenho Arquiteténico Basico, Eletricista Residencial ¢ Solda Oxi-Acctilénica ¢ a car- ga horiria dos cursos variava entre 60 ¢ 180h. Na escola de jovens ¢ adultos surdos de Paris os sinais cumpriam as mesmas fungées das linguas faladas e, portanto, permitiam a comunicagio efetiva en- tre surdos ¢ ouvintes. E é com essa lingua comum (lingua de sinais) que se inicia o seu processo de reconhecimento. Para essa escola, os sons articulados nao eram o essencial na educacio de surdos, mas sim, a possibilidade que tinham de aprender a let ¢ a escrever a partir de sua primeira lingua, a lingua de sinais, E interessante realgar que, nessa época, a educagio de surdos tinha os mesmos objetivos que a educagio dos ouvintes, isto é, o acesso a leitura. O instrutor surdo era bilingtie com formacio técnica na area de Reftigeracio ¢ Ar-Condicionado, e militante dos movimentos surdos da Grande Floriandpolis, Ponto de Vista , Florianépolis, n.05, p. 151-178, 2003 175 Vilmar Silva 13 15 16 17 18 19 Como sio poucos os surdos que possuem a formagio académica nas li- cenciaturas e pedagogia, a FENEIS tem estimulado cursos de monitores, para surdos que tém 0 ensino fundamental e de instrutores, para surdos que tém o ensino médio, pata trabalharem em sala de aula com professores ouvintes, preferencialmente na Educacio Infantil, para que a crianca surda tenha a possibilidade de aprender no espaco escolar a lingua brasileira de sinais, Em 1999, devido ao sucesso dos cursos realizados em 1997, o SINE/SC solicitou a direcio do Nuicleo de Educacéo para Surdos que também teali- zasse esses cursos profissionalizantes e de Lingua Brasileira de Sinais nas regides de Tubario e Itajai Nesses debates discutiam-se questdes como: a importincia da lingua brasi- leira de sinais pata as comunidades surda e ouvinte, educagio de surdos, as politicas pablicas na area da surdez, a historia dos movimentos surdos, etc. Nesse espao se reuniam em tomo de 130 a 150 pessoas, cuja maioria era de surdos. Porém, o que mais chamou a atencio foi o fato que, nesse uni- verso, apenas uma crianga surda era filha de pais surdos. Este ambiente lingiiistico envolveu um universo de 303 pessoas, entre sur dos e ouvintes, sendo que ao longo desse proceso 267 pessoas conclufram 0 nivel basico c/ou intermediario da lingua brasileira de sinais; 13 ouvintes passaram a ser intérpretes autorizados pela FENEIS/RS; 16 surdos se ha- bilitaram para monitores ¢ 5 surdos para instrutores; 54% dos professores que ministraram os cursos eram surdos. © Curso de Instalagdes Elétricas Prediais foi um curso de Educagio Profis- sional de Nivel Basico com a duracio de um ano, envolvendo conhecimen- tos nas areas de Linguagem, LIBRAS, Portugués, Comunicacao Verbal, Matematica, Ciéncias, Eletricidade, Informatica ¢ Desenho. O Curso de Desenho Técnico tinha a mesma estrutura do curso de Instalagies Elétricas Prediais, porém com as disciplinas de LIBRAS, Portugués, Matematica, Ciéncias, Histétia, Comunicagio Verbal, Desenho Técnico, Auto-Cad¢ Informatica. Referéncias BRASIL - Ministétio da Educagao. Decreto n° 2.208. Brasilia: MEC, 1997, . - Ministério da Educacio. Lei de Diretrizes ¢ Bases. Brasilia: MEC, 1996. BRITO, L. EF. Integragio & educagao de surdos. Rio de Janeiro: Babel, 1993. Ponto de Vista, Florianspolis, n.05, p. 151-178, 2003 78 _Educagio profissional pam surcos uma vivéncia politico peclagigica no Centro Federal. CAMARA DOS DEPUTADOS. Projeto de Lei n° 1.603. Brasilia: Congresso Nacional, 1996. FERNANDES, Eulilia. Lingua de sinais ¢ desenvolvimento cognitivo de ctiangas surdas. Revista Espaco. Rio de Janeiro, n. 13, p. 48-51, jun. 2000. _____- Problemas lingiiisticos e cognitivos do surdo, Rio de Janeiro: Agir, 1990. FIOD, Edna Garcia. Principios pata uma educagao ptofissional aut6noma. 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