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Religides Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente" Ari Oro Resumo texto divide-se em duas partes. A primeira apresenta dados so- breo periodo escravwcrata no Rio Grande do Sul, aestruturagdo das reli gidesafro-brasileiras (Batuque, Umbandae Linha C ruzada) neste estado €0 hist6rico e controvertido papel desempenhado no Rio Grande do Sul porum principe africano que aqui viveudo final do siculo XIX até 1935 A segunda parte analisa trés aspectos particularmente importantes na atualidade dessas religies neste estado: a presenga de ndo-negros nas mesmas, a sua expanséo transnacional paraa Argentinac o Uruguai,¢ 0 estreitamento de relagdes com o poder politico local. Palayras-chave: Batuque, negro, relagdes raciais, Rio Grande do Sul Brasil, religides afro-brasileiras. * Este texto foi orignalmente apresentado na S3¥ Reuniio Anual da Sociedade Bnskira para 0 Progresso da Cigneia (SBPC),realizada em Salsador, Bahia, de 14a 17 de jlo de 2001, no Simpesio: Affo- Diversidade no Eras coordenado por Reginald Prandi (USP) Estudos Afro-Asttiticas, Ano 24, n® 2, 2002, pp. 345-384 Avi Ow Abstract Afro-Brazilian Religions in Rio Grande do Sul: Present and Past The article is divided into two parts. The first presents data about the slavery period in Rio Grande do Sul, the structure of Afro-Brazilian religions (Barugue, Umbanda and Linha Cruzada) in this state and the historical and controversial role played by an African prince who lived here from the late 19"" century until 1935. The second part analyses three particularly important aspects of these religions in Rio Grande do Sul nowadays: the presence of non-Negroes in them, its transnational expansion to Argentina and Uruguay, and the ever-close relations with local political power. Keywords: Batugue, Negro, racial relations, Rio Grande do Sul, Brazil, Afio-Brazilian religions Résumé Les Religions Afro-Brésiliennes de Etat du Rio Grande do Sul: a 'Hier et d'Aujourd’hui Le texte se divise en deus parties. La premigre présente des don- nées sur la période de lesclavage dans le Rio Grande do Sul, lastructura- tion des religionsafro-brésiliennes (Batuque, Umbandaet Linha Cruza- dda) dans cet état ainsi que le role historique et controversé qui yajoué un prince afticain de la fin de XIXéme sitcle jusqu’a 1935. Dans la seconde partie, nous analysons trois aspects particuliérement importants pour Tactualisation des ees religions dans cet état: la présence de non-Noirsa ces religions, leur expansion transnationale vers I'Argentine et Uruguay, ainsi que leur relation étroite avec le pouvoir local Mots-clés: Batuque, Noir, relations raciales, Rio Grande do Sul, Brésil, religions afro-brésiliennes, 346 N sergeant alguns t6picos relativos as religides afro-brasileiras do Rio Grande do Sul (RS) que contemplam 40 mesmo tempo uma visio histdrica e atual, com énfase nas suas, caracteristicas que mais se destacam na atualidade. Inicio com dados historiogriticos sobre o ingresso do negro escravo no RS e sobre a estruturagio do Batuque. Discorro entio sobre os distintos “lados” desta religido ao mesmo tempo em que aponto alguns aspectos hist6ricos e especificidades da Umbanda e da Linha Cruzada neste estado. Em seguida, me atenho a um per- sonagem legendario do campo afro-gaticho, um principe africano que residiu neste estado a partir de 1899 e aqui faleceu em 19. Na seqiiéncia, discorro sobre trés importantes caracteristicas atua- do campo religioso afro-gaticho, asaber:a presenga de “brancos” nas religides de matrizafricana; a transnacionalizagao do batuque ce demais religides afto-brasileiras para os paises do Prata; ¢ a apro- ximagdo dessas religides no campo politico estadual e municipal, sem, porém, ocorrer o ingresso efetivo na esfera politica, como fa- zem, por exemplo, os evangelicos (Os Negros e as Religides Afro-Brasileiras no Rio Grande do Sul Os negrosafricanose seus descendentes participaram direta- mente do desenvolvimento econdmico dos dois primeiros séculos da histéria do Rio Grande do Sul. Segundo Beatriz Loner, “prati- camente no houve profissio manual que nao tivesse representan- tes dessa etnia em seu desempenho, tanto no periodo imperial quanto na Repiiblica” (Loner, 1999:9). 0 mesmo, como se sabe, ocorreu nas demais capitanias e provincias do Brasil onde, como diz Prandi, os escravos afticanos “foram sendo introduzidos [...] num fluxo que corresponde ponto por ponto a propria historia da economia brasileira” (Prandi, 2000:52). O marco inaugurador do Rio Grande do Sul 6a fundagao do Forte de Jesus, Maria e José, na Barra de Rio Grande, no ano de 347 Avi Ow 1737, pelo brigadeiro José da Silva Paes, em cuja tropa, formada por 260 homens, havia escravos e negros libertos A historiogratia do Rio Grande do Sul ainda se debate em torno da questo de saber a procedéncia do negro escravo trazido para este estado. Ha, no entanto, algum consenso de que essa po- pulagio se dividia entre negros “crioulos”, ou seja, individuos nas- cidos no Brasil e paraaqui transferidos, “ladinos”, isto, individu- os que ja haviam trabalhado em outras regides do pais, eafticanos, aqui chegados apés terem passado por algumas regides brasileiras, entre elas, Bahia, Pernambuco, Sao Paulo, Santa Cat mo afticanos que chegaram ao Rio Grande do Sul provenientes da Argentina e do Uruguai. A titulo de exemplo, um levantamento realizado junto aos Inventrios da Freguesia de Pelotas, no periodo compreendido entre 1850 e 1880, mostrou que num universo de 1,604 escravos, 460 eram crioulos, 556 indeterminadose 590 afri- canos (Assumpeio, 1990). Estes tiltimos, por sua vez, dividiam- em diferentes nagies ou grupos tribais. Por exemplo, por ocasiaio das comemoragdes da Aboli¢ao, desfilaram em Pelotas os “Filhos de Angola, Mina, Benguela, Erubé, Congo e Cabinda...” (Jornal Echo do Sul, 10/6/1888 apud Loner, 1999:8).’ Seja como for, no Rio Grande do Sul “os banto vieram em niimero muito superior aos sudaneses” (Correa, 1998a:66). A introducao do escravo no RS ocorreu a partir da primeira metade do século XVII. Trabalhavam na agricultura, nas estan- ciase, sobretudo a partir de 1780, na produgo do charque, na re- gido de Pelotas, Segundo Correa, os negros compunham cerca de 30% da populagao da Provincia em 1780, e40% do total em 1814 Nesta data, os negros perfazem cerca de 51% da populagao de Pira- tinie 60% de Pelotas (;bidem:65-66). Porém, com o inicio da che- gada dos colonosalemaes em 1824 e dos italianosem 1875, verifi- ca-se um aumento da populagao brancae uma redugao na porcen- tagem da populagdo negra em territorio gaucho. ‘A produgao das charqueadas — executadas pelo trabalho bragal escravo em condigdes bastante desfavoraveis em razio das condigdes climaticas, precariedade de infra-estrutura e exigéncias severas ditadas pelo proprio regime escravocrata — foi de tal mon- taqueem 1861 ocharquecontribuia com 37,7% do total do que o RS exportava e 0s couros com 37,2% do total, juntos somando 74,9% do total da produgio gauicha para fora da Provincia (Assumpgao, 1990). A relagao entre o trabalho forgado dos negros € 0 desenvolvimento das charqueadas era tal que na medida em que se aproximava a Abolig&o também diminuiu o numero de 348 Religioes Afro: Brasileira do Rio Grandedo Sul: Passado e Presente charqueadas. Assim, referindo-se a Pelotas, Loner lembra que “de um coral de 34 charqueadas existences em 1878 na cidade, elas re- duziram-se a apenas 21 as vésperas da Aboligio e a 18, dois anos depois” (Loner, 2001:7), ocasionando a diminuigéo do charque que servia de alimento dos escravos do sudeste e desta forma acar~ retando problemas no mercado de consumo deste produto. ‘Acestruturagio do batuque no Rio Grande do Sul consticui outro tema que aguarda um aprofundamento investigativo. Tudo indica que os primeiros terreiros foram fundados justamente na regiao de Rio Grande ¢ Pelotas. Para o historiador Marco Antonio Lirio de Mello — que fez uma ampla pesquisa nos jornais de Pelo- tase Rio Grande do século XIX —a presenca do batuque € atesta- da nesta regido desde o inicio do século XIX (Mello, 1995). Tam- bem Cortea situa o periodo inicial do batuque nesta regio entre os anos de 1833 € 1859 (Correa, 1988a:69). Se assim for, permanece a diivida de se saber se a estruturacao do batuque ocorreu posteri- ormente ou paralelamente & estruturacao do candomblé, uma vez que o primeiro terreiro de candomble teria surgido na Bahia no ano de 1830 (Jensen, 2001:2). Alids, a mesma diivida M. Hersko- vits havia levantado em 1942, por ocasito de uma “répida viagem” pelo Rio Grande do Sul (Herskovits, 1948).” No entanto, a partir das décadas de 70 e 80 do mesmo séen- lo, 0s jornais dessa regio apresentam, com alguma regularidade, em suas paginas policiais, matérias sobre cultos de mattizafricana. De fato, nos jornais Correio Mercantile Jornal do Comeércio, de Pe- lotas, bem como no jornal Gazera Mercantil de Rio Grande, po- de-se ler noticias, infelizmente as mais recorrentes sendo de prisio de “feiticeiros” e “feiticeiras”, como esta: Foram presas & ordem da delegacia, duas pretas feticeiras que atrafam grande ajuntamento de seus adeptos. Na ocasizo de serem presas, encon- frou-se-Ihes um santo e uma vela,instrumento de seus trabalhos [.]”. Jornal do Comércio, Pelotas, 9/4/1878, p. 2 apud Mello, 1995:26) Quanto ao mito fundador do batuque, hé duas verses cor rentes: uma que afirma ter sido o mesmo trazido para esta regio por uma escrava, vinda diretamente de Recife; e outra que nao as- socia a um personagem, mas isetnias africanas que o estruturaram enquanto espago de resistencia simbélica & esctavidao. Jas noticias relativas ao batuque em Porto Alegre’ datam, preferencialmente, da segunda metade do século XIX, isto suge- rindo que ou sua origem, ou, 0 que é mais provavel, 0 seu incre- ‘mento pode ter ocorrido com a migracdo de escravos ¢ ex-escravos 349, Avi Ow da regiao de Pelotas e Rio Grande para a capital. Novamente, as principais fontes de referéncia sao os jornais que reportam ages, policiais contra os terreiros. Lilian Schwarez.transcreve, por exem- lo, reportagem do Correio Paulistano, de 30/11/1879, intitulada ‘Os feiticeiros do RS — Grande Cagada”. Diz.a reportagem: a policia tomow ontemem uma casa 42 pretos livrese escravose 11 pre- tos minas. Acacada deu-se is 10430 da noite no momento em que o pre- {0 Jodo celebrava uma sessio de fiticaria, Foi uma surpresa ¢ um desi pontamento que aquees fgis crentes jamais perdoario a policia[..]. A policia apreendeu cabegas de galo ¢ outros manipansos, Os principals atores da indecente comédia foram recolhidos. cadeia e osescravas cas- tigados. (Schwarez, 1989:126, énfases minhas) Inditil dizer que as perseguigdes aos terreiros nao deixam de expressar um certo medo branco diante do poder de manipulagao das forgas sobrenaturais por parte dos escravos e seus descenden- tes. Obviamente que a perseguigdo era sempre precedida de um conjunto de estigmas langados sobre essas religides, visando justi- ficar aquele procedimento, Em Porto Alegre, a partir da segunda metade do século XIX, ‘© maior contingente de negros se encontrava nas cercanias da cida- de, no Areal da Baronesa, na cidade baixa, imediagdes da atual Rua Lima e Silva,” e nas chamadas Coldnia Africana e “Bacia”, atuais bairros Bonfim, Mont Serrat e Rio Branco.” Estas tltimas trata- ‘vam-se, em sua origem (“em torno da época da aboligao”), de uma “zona insalubre, localizada nas bordas de chacaras e propriedades queali existiam, de baixa valorizacdo e de pouco interesse imediato para seus donos, que foi sendo ocupada por escravos re- cém-emancipados” (Kersting, 1998:111) Kersting mostra como, sobre essas areas, foram criadas re- presentacdes que as associavam a criminalidade, vicios, perigo, € intes tidos como membros de “classes perigosas”. Por to mesmo, essas areas foram deixadas a um relativo isolamento por parte dasautoridades pitblicas e, ao longo das décadas do sécu- lo passado, foram dissolvidas mediante um processo de “higieniza- go urbana”.* Evidentemente que por tras desta atitude existiam interesses imobilidrios de ocupagao dessas areas da cidade para “modernizé-las”, que comegou a ocorrer ainda nas primeiras dé- cadas do século XX, com o processo de branqueamento da popula- ¢40, simultaneamente a abertura de ruas e de construgdes em pa- drdes arquitetOnicos nao populares, Por exemplo, parte da Cold- nia Africana comega a receber iluminacao elétrica em 1911, algu- 350 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present mas ruas sfo asfaltadas em 1912 e neste momento prevé-se tam- béma construgao de uma rede de esgotos. Reitero que esse proces- so de urbanizagao consiste fundamentalmente na descaracterize- ¢40 como rea essencialmente negra “até se transformar em bairro saneado que se vé em 1922” (ibidem 195). Este autor informa que a maioria dos no-negros que fixam residéncia na ex-Colonia Afri- cana so judeus, enquanto os negros Sto expos para areas mais periféricas e ainda desabitadas, como o bairro Mont Serrat, desti- no primeiro dos exilados da Coldnia Africana e onde algumas fa- milias conseguiram estabelecer moradia até os dias de hoje.” Simultaneamente a esse proceso de modernizagao, justa- mente em 1912 a Coldnia Africana passa a ser um bairro chamado_ Rio Branco. Embora seja uma homenagem ao Bardo do Rio Bran- co, nao deixa de ser irdnico que um territorio anteriormente deno- minado Colénia Africana, em razio da presenga maciga de negros, seja chamado de Rio Branco, caracterizando o predominio de nao-negros nesta Area. Ha relatos da pratica de cultos affo-brasileiros em todos os territorios negros referidos, Relativamente a Coldnia Africana, por exemplo, o primeiro sacerdote da igreja de Nossa Senhora da Piedade, concluidae inaugurada nesta area em 1913, cOnego Ma- tias Wagner, “aponta para a presenga desses cultos e para 0 fraco numero de catélicos realmente fiéis” (ihidem:184). Assim, em seu livro “Paroquia de N. S, da Piedade de Porto Alegre:1916-1958”, © referido cénego escreve: “Encontrei certa vez um homem que, dizendo-se muito catdlico, apostilico e romano, era também dono Pai Santo de uma casa de batuque...” (apud Kersting, idem:186), O mesmo cdnego refere também que foi alvo de dewpachos de “par- tedaquela gente de Umbanda’, Aliés, o paroco se refere as religides afro-brasileiras pelos nomes de batuque, umbanda eespiritismo e, ‘mais genericamente, pelos termos etnocéntricos e preconceituo- 0s de crendices, superstigdes e feitigarias No contexto das lacunas histéricas sobre as religides afro-brasileiras no Rio Grande do Sul figuram também dados esta- tisticos sobre os terreiros deste estado. Dispomos unicamente de informagGes parciais sobre o niimero de terreiros de batuque para Porto Alegre, durante 20 anos, de 1937 a 1952, apresentados por Carlos Krebs (1988-16). ‘Tais dados constam das estati do Sul, tendo o censo sobre a religiao sido abandonado em 1952. Malgrado sua precariedade, pode-se perceber um crescimento quase que anual do niimero de terreiros em Porto Alegre, fato este 351 Avi Ow Casas de Batuque em Porto Alegre ‘Anos Total de Casts 1937 B loss 23 1939 27 1940) 7 19a 2 1x2 32 oss 80 1944 3B oa 0 1946. 5 1947 8 boas 80 949 80 1930. 98 1951 18 932 que continua, segundo dirigentes de federagdes, até os dias de hoje, onde existem, no seu conjunto, cerca de dois mil terreiros na capital gaticha. O Batuque Batuque é um termo genérico aplicado aos ritmos produzi- dosa base da percussao por frequentadores de cultos cujos elemen- tos mitologicos, axiologicos, lingitisticos e ritualisticos sao de ori- gematricana, O batuque é uma religido que cultua doze orixis” e divide-se em “lados” ou “nagdes”, tendo sido, historicamente, as maisimportantesasseguintes: Oy6, tida comoa maisantiga does- tado, mas tendo hoje aqui poucos representantes e divulgadores, Jeje, cujo maior divulgador no Rio Grande do Sul foi o Principe Custédio, sobre o qual falaremos mais abaixo; Ijexa, Cabinda e Nag6, sio outras nagdes de destaque neste estado. Nota-se que 0 Keto esteve historicamente ausente no RS, vindo somente nos ti- timos anos a se integrar por meio do candomblé. ‘Vejamos alguns dados disponiveis sobre as mencionadas na- Ses neste estado: 352 ReligioesAfo-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente OYO. Segundo a tradig&o local, esta nago chegou a Porto Alegre vindo da cidade de Rio Grande. Foi cultuada no Areal da Baronesa e dali no Mont Serrat onde se situaram as principais casas deste culto, M, Herskovits e R. Bastide, por ocasido de suas estadas em Porto Alegre, o primeiro em julho de 1942 eo segundo em 1944, referem-se carinhosamente a Mie Andrezza Ferreira da Silva, da nagao Oy6 que, segundo Bastide, “formara-se com um velho baba- lorixé que ainda tinha a sua volta alguns afticanos nativos” (Basti- de, 1959:238). Segundo Carlos Krebs, Mae Andrezza teria vivido de 1882 a 1951 (Krebs, 1988). Hoje, como disse acima, trata-se de um culto praticamente em extingdo, restando algumas poucas casas no estado. Segundo Pernambuco Nogueira, [.-]0 titimo nome da antiguidade da nago Oy que conbecems foi ‘Timdo Ogum, ja falecido, ¢ que foio iniciador da Delsa do Ogum. casa aindaematividade, Alm deste vamosencontraro Antoninho da Oxum ¢esua filha-de-santoa Moga da Oxum (Lidia Gongalves da Rocha), como nomes de projegio, Distinguiu-se entre os praticantesdo Oy6.a figura de Fabio da Oxum quer pela belem e suavidade do orixi que recebia, quer pelo fato de tersido umdos raros pais-de-santo que reo vivia da Religiao (Nogueira, 20016). Asespecificidades da nagdo Oy6 residiam, sobretudo, na or- dem das rezas, uma vez que chamavam primeiro os orixés masculi- nos e a seguir os femininos, encerrando-se com as de Yansi (Oia), Xang6 e finalmente Oxali, o destaque para os dois orixas resultan- do do fato de serem o Rei ea Rainha de Oy6. Tambémera proprio da nagao Oy6 os orixas conduzirem em suas bocas, ao término das obrigagdes, as cabegas dos animais oferecidos em sacrificio ja em estado de decomposigao; finalmente, segundo os mais antigos, no Oy6 os ocutiseram enterrados, em vezde colocadosem prateleiras (ibidem). EXA. Trata-se da nagdo predominant hoje no estado. Os deuses invocados sio os orixas ea lingua ritualistica¢0 ioruba. Re- nomados babalorixas historicos (ja falecidos) como Manoelzinho do Xapand e Tati do Bara, ambos iniciados na Cabinda, passaram mais tarde parao Jeje eseus descendentes ingressaram todos no lje- xi, dizendo-se entio Jeje-Ijexa Segundo um depoimento colhido por Norton Correa junto a0 ja falecido tamboreiro Donga de Yemanja, o Ijexa predominava 353 Avi Ow nas regides negras de Porto Alegre como o Mont Serrat e Colénia Africana (Correa, 1998a:76) JEJE. No dizer de Pernambuco Nogueira, [..-]foi, durante muito tempo, Nagao que predominou no Rio Grande do Sul, em que pew o fato de jamais termos ouvido falar em voduns a cexempio das ultuadosem Sto Luis do Maranhao, Sempre ouvimas dos que se diziam jeje puros falar invocar os orixis nag. Dada complexi- dade dosseusioques,a morosidade dos mesmosea dificuldade na prepa ragio dos tamboreiros que, inclusive, deviam usar osqguidavis, de dificil muingjo, foramadotando as rezas do Tjexa [1° (idem), As figuras mais importantes desta nagao foram Paulino do ‘Oxala Efin, que reiniciou no Jejeo Manoelzinho do Xapande Tati do Bari, oriundos da Cabinda, como disse acima. Um dos filhos de Paulino foi Joao Correia de Lima, Jodozinho do Bara Agel, morador do Mont Serrat, talvez.o primeiro e um dos mais impor- tantes babalorixis que “exportou” o batuque para além das frontei- ras do Rio Grande do Sul em diregao aos paises do Prata, como ve- remos abaixo. Outro importante babalorixa desta nago foi Idali- no do Ogum, que faleceu com a idade de 104 anos. Enfim, outro personagem, este mitologico, da nagao Jeje foi o famoso Principe Custodio de Almeida, sobre o qual falaremos a seguir. ‘Vale aqui registrar que a origem do termo “jeje” ¢ bastante problematica. Lorand Matory, por exemplo, sintetiza uma série de autores que tentam esclarecer 0“ mistério” em torno deste conceito e propdea hipotese de que se trata de uma construgao transatlanti- ca, ou seja, um nome aplicado pelos comerciantes e donos de es- cravos — alguns retornados, em suas idas e vindas entre Brasil, Cuba e Golfo da Guiné —“a todos osafticanos que eles considera- ram seus parentes, apesar de ser pouco provavel que esses ‘parentes’ assim se identificassem inicialmente” (Matory, 1999:64). CABIN DA. Trata-se de uma nagao Banto, originalmente de fala Kimbundo. O cemitério é 0 inicio da nagdo religiosa de Ca- binda, dizum pai-de-santoeestudioso do batuque. Segundoele, {..Joculto aos Eguns nesta Nasi ¢ to forte que dficilmente se encon- ‘rari uma casa-de-religito sem que tenhao devido assentamento de Bale (culto aos egunguns), ou Igbak’ (casi dos mortos). (Ferreira, 1994:59) Ji para o babalorixa Pernambuco Nogueira, nos rituais de Cabinda que freqiientou no Rio Grande do Sul “jamais ouvimos falar de Inkices. O que sempre foi cultuado foi o Orixa iorubano” (Nogueira, 20016). 354 ReligioesAfo-Brasileiras do Rio Grande do Sul: Passado e Presente Segundo consta, este culto foi trazido para o Rio Grande do Sul por umafricano conhecido por Gululu, de cujas maos saiua fi- ura mais marcante do culto Cabinda no Rio Grande do Sul: Wal- demar Ant6nio dos Santos, do Xangé Kamucé, Dele descenderam as famosas Mae Maria Madalena Aurélio da Silva, de Oxum Epan- 4 Demun, que iniciou Romario Almeida, do Oxalé, e Henrique Cassemiro Rocha Fraga, de Oxum Epanda Bomi, todos falecidos, e Mie Palmira Torres dos Santos, de Exum Epanda Olobomi, que iniciou Joo Cleon Melo Fonseca, do Oxalé, que€ tido hoje como ‘© mais importante herdeiro da tradiglio Cabinda do estado, embo- ra, como diz Pernambuco Nogueira, “de sua origem mantém ape- nas 0 rotulo: o contetido € todo ele Ijexa” (ihicdem). NAGO. No dizer de Pernambuco Nogueira, [...] é uma na- Gao que, tendo sido a origem do Culto no Rio Grande do Sul, hoje esti praticamente extinta, restando pouquissimas casas” (idem). Ha, em Porto Alegre, o terreiro Nova Era, do pai Jader, que preten- deser a continuacao dessa tradigao longinqua no estado. Diferen- temente dos demais terreiros, neste, “a chegada dos orixis se faz como no Candomblé (linha por linha, trabalhando e desincorpo- rando) e a matanga ¢ procedida com o animal no chao e nao sus- penso” (idem). Ainda segundo Pernambuco Nogueira, “talvezsitua-se nesta casa a semente do culto africano plantada pelos escravos das c| queadas, desde a sua origem em Rio Grande...” (idem), Ao que consta, ndo dispomos de informagdes numéricas so- brea incidéncia dessas nagdes no Rio Grande do Sul. O historiador Dante de Laytano, em pesquisa realizada sobre o batuque em Por- to Alegre, em 1951, observou que as 71 casas por ele encontradas dividiam-se em 24 de nagdo Nagd, 21 Jeje, 13 Oyo, 8 Tjexa e 5 “‘mistos” (Laytano, s.d.:53), Na atualidade, porém, predomina no batuque do Rio Grande do Sul o lado Ijexa, “quer pela facilidade do toque como pela auséncia de tamboreiros iniciados nos demais Cultos” (Nogueira, 2001b), Embora haja terreiros que se digam seguidores de outros Jados, trata-se, segundo o babalorixa Adalber- to Pernambuco Nogueira, “apenas de rétulos utilizados talvez para marcar a origem dos fundamentos” (idem)."' A Umbanda A primeira casa de umbanda no Rio Grande do Sul foi tam- bém fundada na cidade de Rio Grande, em 1926. Chamava-s 355 Avi Ow Reino de Sao Jorge” ¢ foi fundada pelo ferroviario Otacilio Cha- 10. Como em todo o Brasil, também no Rio Grande do Sul a umbanda surgiu defendendo padrdes e comportamentos aceitos socialmente. No entanto, nao escapou 4 repressio policial, a tal ponto, informa M. Caldas — um dos maiores intelectuais da um- bandae do espiritismo no Rio Grande do Sul, hoje falecido— que nos primeiros tempos 0 centro de Charo no possuia um endere- go fixo, funcionando de forma itinerante (seu enderego mudava toda semana). Também o proprio espiritismo e o batuque se opu- serama umbanda nascente, o primeiro desqualificando suas prati- cas mediinicas, 0 segundo nao aceitando que seus orixis fossem wocados sem suas normas rituais, 0 que denuncia que estava em jogo uma disputa de bens simbdlicos (Isaia, 1997-386). De Rio Grande, a umbanda foi trazida para Porto Alegre, em 1932, pelo capitao da marinha Laudelino de Souza Gomes, que fundou nesta capital a Congregacao Espirita dos Franciscanos de Umbanda, existente até os dias atuais. Neste caso, é dupla a razao do termo francixamo. Em primeiro lugar, pela sincretizagao entre Siio Francisco de Assis e Lok6 (termo yoruba), ou Irok6 (termo jeje), ou orixa tempo (Angola), isto é, a arvore gameleira branca; ‘em segundo lugar, pelo uso que seus membros fazem de uma espé- cie de bata branca, com sandalia e cord em torno ao ventre, se- melhante ao que consta na iconografia historia atribuida a Sao Francisco, Pernambuco Nogueira esclarece que tanto Charli quanto Souza Gomes nao eram originérios do Rio Grande do Sul eambos estiveram na Africa por algum tempo. No entanto, dedicaram-se quase que exclusivamente a implantagao e divulgacao da Umban- da (Nogueira, 2001b). Outros importantes personagens divulga- dores da umbanda neste estado foram Norberto de Oliveira, quea introduziu no municipio de Viamao; Jesina Furtado, fundadora dacasa Mestre Quatro Luas; ¢ Astrogildo de Oliveira, fundador do Templo Rainha Yemanja Fraternidade Ubirajara. Segundo Per- nambuco Nogueira, esta tiltima casa possuiia [.]apeculiaridade de terconstruido, nos fundos, uma miniatura de to- dos os reinos em que s efetuavam os rituais, inclusive uma calunga pe- quena (cemitério) para ali realizaros trabathos sem sair do local do Tem- plo, preocupado com as deturpagdes ja entao existemtes. (ibidem) Uma particularidade desses templos mencionados, e que hoje ja no mais vigora, reside no fato de que 356 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present s@abertura dos tr 1 linha que hoje nao mais fencontramos: linha das Yaras que se apresentavam arrastando-se pelo cchio, como o fariam as sereias em terra seca, ¢ promoviama limpeza do {emplo utilizando-se de dgua (idem) No mais, na umbanda do Rio Grande do Sul sto cultuados “caboclos”, “pretos-velhos” e “eriangas” (Ibeji), aos quais nao sto realizados sacrificios de animais,"* Outrora era também cultuadaa “Tinha”, ou “povo do oriente”, hoje quase em extingao, Segundo a representagio dos umbandistas, tratavam-se de entidades bondo- sas, bastante evoluidas e que transmitiam vibragdes puras. Seus médiuns, incorporados, adotavam a postura corporal e os gestos dos povos do Oriente: chineses, indianos, rabes e ciganos. Nos trabalhos da casa de Pernambuco Nogueira manifestavam-se duas entidades indianas: Brahmayana e Nargajuna Hoje o “povo cigano” foi transformado em Linha de Exu Quanto aos guias orientais, manifestam-se em poucas casas que trabalham com 0 que denominam de Junta Médica A Linha Cruzada Trata-se de uma expressio religiosa relativamente nova, ini- ciada, tudo indica, na década de 1960. Constitui, porém, a que ais tem crescido neste estado, sendo cultuada hoje em cerca de 80% dos terreiros, Segundo Norton Correa, esta modalidade ritu- alistica chama-se Cruzada [J porque, enquanto 0 Batuque cultua apenas orisise a Umbanda ca- boclos e pretos-velhos, a Linlia Cruzada reiine-0s no mesmo templo, ccultuando, alem dees, também osexuse suas mulheres mitieas, as pom- bagiras, provavelmente originsrios da Macumlba do Rio de Janeiroe' Paulo. (Correa, 1998a:48)" Ainda segundo Correa, as principais razdes para o cresci- mento da Linha Cruzada seriam os seguintes: os custos dos rituai so mais baratos do que os do batuque, o aprendizado geral é mais simples do que o do batuque; seus membros podem reuniresomar a fora mistica do batuque com a da umbanda (ibident 90). ‘A proliferagio de terreiroscruzados tem se constituido num forte motivo de polémica e de acusagdo miltua entre os membros das religides afro-brasileiras do RS. Trata-se, em verdade, de um conflito em parte intergeracional, em que os “mais velhos” na reli- gio tendemaconsiderar essa inovacaio como uma “deturpagdo” da religiio dos orixas por parte dos mais jovens, ao mesmo tempo em 357 Avi Ow que expressa em parte também um conflito entre os “conservado- res” €os“modernos”, as mudangas sendo compreendidas pelos ba- tuqueiros mais apegados 4 tradigao como uma violagio dos funda- mentos da religiao, De uma maneira geral, sao extremamente precarios os nu- meros acerca dos terreiros existentes no Rio Grande do Sul, bem comoa incidéncia de rituais dentro das trés modalidades religiosas, acima referidas. Seja como for, e para dar ao menos uma ideia de grandeza, sugiro que deva existir hoje cerca de trinta mil terreiros em atuagao neste estado, onde, em cerca de 80% deles sao cele- brados rituais de Linha Cruzada, em 10% somente rituais de Umbanda (caboclos e pretos velhos) ¢ em 10% somente rituais de Batuque (nagao). Neste estado, como jé assinalou Correa (1996), a estrutura- do das trés diferentes expresses religiosas afto-brasileiras acom- panha, até certo ponto, as mudangas que atingiram a propria es- trutura da sociedade. De fato, o batuque floresceu na segunda metade do século XIX eadaptou-se is condigdes de um Rio Grande doSul “tradicio- nal", eminentemente agrario, pois naquela forma religiosa a tradi- io regia a estrutura ritual com os orixas formando uma grande fa- milia patriarcal. Os sacrificios de animais nao ofereciam proble- mas num estado pastoril e em uma Porto Alegre onde havia ainda bairros “rurais”. As iniciagdes podiam ser longas, pois as relagdes, de trabalho eram ainda relativamente frouxas. ‘ia umbandase instalou no RS na década de 30 numquadro social em que a implantaco do capitalismo encontrava-se numa fase mais adiantada’ a economia se monetarizava, iniciava-se 0 processo de industrializaglo, ja ocorria o éxodo rural. O tempo to- mava nova dimensao. As pessoas centravam suas vidas em tomo do trabalho. A umbanda se adequou aos novos tempos: seus rituais nao se prolongavam noite adentro, nao faziam uso de tambores e nao realizavam sacrificios deanimais. Dessa forma, os figis podiam cumprir suas obrigagdes religiosas sem alterar o ritmo do cotidia- no: nao se prejudicava 0 sono dos vizinhos ¢ se levava em conta a diminuigdo dos espagos para criar os animais que, além disso, se tornavam uma mercadoria cara A Linha Cruzada surgiu a partir da década de 60 numa fase de consolidagao do capitalismo com o conseqiiente incremento de graves problemas, tais como desemprego, inseguranga, doencas, frustragdes. Neste contexto, a Linha Cruzada torna-se uma reli- 358 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present gio pratica, pragmatica, deservigo, que se especializa nas solugdes, sobrenaturais daqueles problemas, O Principe Custédio de Almeida Detenho-meagora, mesmo quesucintamente, sobre um dos mais controvertidos personagens do campo afro-gaticho, um pri cipe africano, herdeiro do trono de Benin, que morou no Rio Grande do Sul de 1899, quando chegou & cidade de Rio Grande, até 1935, quando faleceu em Porto Alegre. Segundo informagées colhidas por Maria Helena Nunes da Silvajuntoa diferentes fontes— bibliograficas, intelectuaisafrica- nos e, sobretudo, dois filhos bioligicos de Custodio — este des- cendia da tribo pré-colonial Benis, dinastia de Glefé, da nagao Jeje, do estado de Benin, na Nigéria. Seu nome tribal era Osuanle- le Okizi Erupé, filho primogénito do Oba Ovonramwen (Silva, 1999). Ha diferentes versdes sobre sua saida da terra natal. Todas, porém, esto associadas 4 invasio britdnica ao reino de Benin, em 1897, diante da qual nfo se sabe ao certo se Osuanlele teria resisti- do, ou fugido, ou, entao, feito um acordo com os britanicos para deixar o pais e viver no estrangeiro, onde receberia mensalmente uma pensio do governo inglés (a mais provavel). De fato, Dionisio Almeida, filho de Custodio, relatoua Maria Helena que seu pai te- ria deixado Benin em diregao ao Porto de Ajuda, acompanhado por oficiais ingleses e por parte do seu Conselho de Chefes, onde teria permanecido por cerca de dois meses, dali embarcando para o Brasil, tendo chegado ao porto de Rio Grandeem 7 desetembro de 1899. com uma comitiva formada de 48 pessoas, em sua maioria membros do seu Conselho. Segundo aquele informante, antes de chegar a Rio Grande Custédio teria estado em Salvador, depois no Rio de Janeiro, tendo se estabelecido em Rio Grande por orienta- ao dos orixas, através dos ifas.'° Custodio permaneceu nesta cida- deaté o dia 4 de outubro de 1900, quando se transferiu para Pelo- tas, eno dia 4 deabril de 1901 veio para Porto Alegre, a convite do entio presidente do estado, Julio de Castilhos, que algumas sema- nas antes 0 teria procurado em Pelotas como tiltimo recurso para remediar um cancer que tomava conta desua garganta. Como teve uma melhora temporaria, teria convidado Custédio a morar em Porto Alegre para continuar a traté-lo nesta cidade, o que nao im- 359 Avi Ow pediu, porém, a morte de Julio de Castilhos aos 43 anos de idade, em 1903. Em Porto Alegre, Custédio morou durante 35 anos na rua Lopo Gonealves, na cidade baixa. Mantinha-se com a pensio ‘mensal que recebia do governo inglés, via Banco do Brasil. Consta que se apresentava em puilico sempre bem vestido, desfilava pela cidade com uma carruagem puxada por parelhas de cavalos bran- cose pretos, dedicava-se ao seu esporte preferido, turfe, possuia um haras, era proprietario e treinador de cavalos decorrida, nunca se casara vivia em situagao poligamica, “Haras” e “harem”, sinte- tizama vida do Principe Custodio em Porto Alegre, disse-me um velho e bem informado batuqueiro. Consta também que a partir do seu primeiro contato para fins terapéuticos com o presidente da Provincia, este e outros poli- ticos da época, e mesmo o sucessor de Julio de Castilhos, Borges de Medeiros, bem como Getulio Vargas, teriam visitado o Principe em sua casa e este teria estado em varias oportunidades no palicio do governo, Este é, porém, um tema controvertido, uma vez que a primeira vista parece dificil que aqueles politicos, fervorosos posi- tivistas, procurassem o “feiticeiro” africano, Mas nio seria ilogico pensar que este nobre e politico afticano, durante os 35 anos de vida em Porto Alegre, ndo pudesse ter sido social mente contatado pelos politicos ou por membros da elite local Também controvertido € 0 papel desempenhado por este Principe no que diz respeito aos membros da sua etnia. No campo politico, enquanto por um lado diz-se que ele teria usado do seu prestigio para conquistar melhor espago para os negros locais € contribuido para aliviar o preconceito ea discriminagao que pesa sobre eles, por outro, recrimina-se que ele teria usado suas relagdes politicas unicamente em favor dos membros da sua familia, em- pregando-os no servigo puiblico, por exemplo, pouco ou nada fi- zendo para os negros em geral. No campo religioso paira a mesma controvérsia, Por um lado, muitos sio os pais e as mies-de-santo de Porto Alegre que se dizem descendentes da linhagem religiosa do Principe, defendendo que ele teria contribuido decididamente para a estruturagio do batuque na cidade, para o reconhecimento social do mesmo e para diminuir as perseguigées policiais; mas, por outro lado, afirma-se também que ele nio teria iniciado nin- guém, poissendo nobre nao teria “posto sua mao” em nenhum ple- beu, ¢ que teria atuado como religioso somente para as elites e as, pessoas de sua amizade e familia. 360 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present Seja como for, segundo consta nasua certidao de dbito, Cus t6dio morreu em 28 de maio de 1935, aos 104 anos, solteiro e dei- xando bens, Sua morte foi noticiada nosjornais locaiseseuenterro foi bastante concorrido, contando inclusive coma participagao de politicos da época Hoje o Principe Custodio constitu um mito no imaginério negro do Rio Grande Sul e, como escreveu N. Correa, “a figura ainda hoje mais legendaria que a memoria dos integrantes do Ba- tuque guardam [...)” (Correa, 198a:77). Noentanto, quanto a sua vida e realizagoes, ¢ és varias controvérsias que as envolvem, tra- ta-se de mais um tema espera de pesquisadores que efetuem uma investigagao transatlintica Os Brancos nas Religides Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul Rio Grande do Sul é uma sociedade multiétnica e pluri- cultural construida no “encontro de civilizagdes”, como diria Bas- tide, onde os nativos indigenas viram seu territorio sendo ocupado pelos portuguesese espanhdis, aos quais foram associados os escra- vosafricanose, posteriormente, os imigrantes europeus, com des- taque para os alemaes e 0s italianos,"” Em termos gerais, hoje a composi¢ao multiétnica do Rio Grande do Sul é assim constituida: 86,8% sio brancos, 4,1% ne- 70s, 8,9% pardos e 0,2% indigenas (PNAD, IBGE, 1999). Com estes ntimeros, o Rio Grande do Sul constitui o estado mais “bran- co” do Brasil, depois de Santa Catarina.’ Ora, neste territério multiétnico, malgrado a posigao supe- rior que os brancos ocuparam em relagao aos negros ¢ aos indios, ocorreram, de alguma forma, trocas culturais em diferentes diregdes, sendo uma delasa aproximagao dos ndo-brancos, de dife- rentes etnias € de diferentes camadas sociais, as religides afro- brasileiras. E praticamente impossivel saber quando este encontro co- megou a ocorrer. Tudo indica, porém, que data ainda do século XIX, tendo aumentado nas primeiras décadas do século XX e se consolidado a partir da segunda metade daquele século, quando, ento, ha noticias de brancos que ocupam a condigao de pais € maes-de-santo, Este fendmeno, como se sabe, ocorreu em pratica- mente todo o Brasil, chegando ao ponto em que hoje, em algumas regides, como escreve Prandi, referindo-se a Sao Paulo, “o Can- 361 Avi Ow domblé é uma religido que nao pode ser caracterizada como uma religido de negros® (Prandi & Silva, 1987:4). Trata-se, antes, de religides multiétnicas e universais (Prandi, 1991). ‘A procura de terreiros por parte dos brancos pobres geral- mente esta associada a busca de solugdo para problemas priticos como doencas, desemprego ou dificuldade econdmica, ou proble- mas legais, geralmente relacionados a sua condigao desfavoravel de classe. Jé 0s brancos de maior poder aquisitivo o fazem na busca de solugdo de problemas existenciais como os de sentido, identidade, afetivos, etc. Também o carater misterioso, exdtico e fascinante da religiao dos orixés, associado a sua eficicia simbélica, contribui para a atragdo de brancos. Diga-se de passagem que as mesmas ou semelhantes razdes apontadas para a aproximagao dos brancos das camadas populares 0s terreiros servem também para os negros ingressarem neles. No entanto, nao se pode imaginar uma convivéncia harménica entre negros e branicos nos terreiros multiétnicos gatichos. Ocorre aqui uma espécie de tolerancia miitua ou, como Silva e Amaral referi- ram para Sao Paulo, uma espécie de negocingio velada onde os brancos, com dineito, tornam-se necessirios propria sobrevivéncia do tereiro de maioria negrae. assim, © queé visto como negativo (aentrada dosbrancos no candombl:) acaba adquirindo sinal positivo. ji que a concessto é necessiria A manutengo das despesas da casa, (Silva & Amaral, 1994517) Em outras palavras, parece prevalecer no Rio Grande do Sul a representagao negra segundo a qual é importante a presenga si- multinea de brancos e de negros nos terreiros por serem, os pri- meiros, detentores prineipalmente de capital econdmico e os se- gundos principalmente de capital simbolico, religioso, dado pela tradigao, Evidentemente que os atores sociais implicados no pro- ceesso nem sempre possuem esta consciéneia dos Fatos. E mais re- corrente neles a afirmagio de que “o axé nao tem cor” Noentanto, ha terreiros multiétnicos onde o preconceito de cor tendea se manter. Isto se da especialmente quando 0s brancos implicados na religido detém pouca consciéncia da origem africa- na desta e nao realizam uma aproximagao mais efetiva coma etnia negra. Ha outros terreiros multiétnicos, porém, onde até certo ponto e por um tempo limitado parece haver uma suspensio dos preconceitos raciais; neste caso, negros e brancos juntam-se no es- pago religioso para se divertir, rezar e fortalecer uma identidade so- cial comum. 362 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present 0s terreiros multiétnicos a que me refiro reiinem especial mente pessoas das camadas populares, Isto porque os terreiros de camadas médias tendem a ser predominantemente freqiientados por brancos, enquanto os terreiros de camadas altas so freq ienta- dos quase que exclusivamente por brancos, Em todos eles, como mostrei em outro lugar (Oro, 1998), sfo reproduzidas as desigual- dades raciais encontradas na sociedade gauicha (e brasileira) A Expansio das Religides Afro-Brasileiras para os do Prata ‘Um outro aspecto que sobressai no estudo do atual campo religioso afro-gaiicho consiste na importancia que ele tem para o ressurgimento e introdugao das expressdes religiosas de matriz africana nos paises do Prata. Com efeito, a Argentina jé teve uma historia de reprodugao dessas teligides até o final do século XIX, quando os atabaques, tocados até entio pela comunidade afro-argentina, silenciaram em razdo do abrupto declinio desta populagao." Ja no Uruguai, nao consta ter havido uma histérica pratica teligiosa africana, mas importantes expresses musicais de origem africana como ocandombse."” Noentanto, emambos os pai- ses, a partir da década de 60 do século pasado, verifica-se o rein- sgresso (na Argentina) ea introdugao (no Uruguai) das religides de mattiz africana, sobretudo através do Rio Grande do Sul. Este processo ocorreu primeiramente nas cidades platinas fronteirigas com o Rio Grande do Sul e dali aleangaram as capitais federais. Deveu-se a iniciativas que partiram de ambos os lados da fronteira, ou seja, de paise mies-de-santo brasileiros que procede- ram a expansio da religido para os paises platinos e de cidadaos desses paises que procuraram terreiros brasileiros Na década de 70, o fluxo se estendeu até Porto Alegre, onde se localizava 0 maior niimero de renomados batuqueiros que pas- sarama ser visitados por argentinose uruguaios. Estes para aqui vi- nham em busca de iniciagao religiosa junto a um famoso pai ou mae-de-santo, a0 mesmo tempo em que buscavam o reconheci- mento oficial da sua condigao de iniciados, ou sacerdotes, junto a uma federagao local, Sem tais documentos, tinham muitasdificul- dades de praticar a religido em seus paises, sobretudo na Argenti- na, podendo até mesmo softer perseguigdes policiais. periodo aureo das relagdes religiosas internacionais plati- nas ocorreu na década de 80. Em relagao a Argentina deu-se sobre- 363 Avi Ow tudo apos o retorno a vida democratica, em 1983 (Frigerio & Ca- rozzi, 1993), enquanto no Uruguai o crescimento do niimero de terreiroseo incremento das relagdes religiosas com o Brasil coinci- diram com o periodo ditatorial, que se estendeu até 1985 (Hugar- te, 1993). Nadécada de 90 ocorreu um arrefecimento das relagdes reli giosas entre gaiichos e platinos ¢ isto se deveu, segundo o discurso dos pais e maes gatichos, & crise econdmica que se abateu sobre aqueles paises, sobretudo na Argentina, que reduziu os investi- mentos das pessoas na religidio, embora nao tenha diminuido o in- teresse pela mesma, Mas ha um nao-dito: o arrefecimento também se deveu a concorréncia religiosa que estao sofrendo naqueles pai- ses. Ouseja, se até 0 inicio da década de 90 havia uma relagao rela- tivamente assimétrica, mas aceitavel, entre os pais e mies gatichos e seus filhos platinos — os primeiros colocando-se numa posigao ierarquica superior — a partir deste periodo estabeleceu-se uma relagdo conflituosa entrealguns, sendioa maioria dos pais-de-santo gatichos (cerca de 15 pessoas), que participam do circuito religioso platino, sobretudo argentino, e os seus colegas deste pais, posto que estes tiltimos passaram a disputar poder pela ocupagiio do es- pago religioso afro-brasileiro e pelo exercicio legitimo do sacerdé- cio naquele pais. Apesar disto, nos dias atuais continuam as viagens de mem- bros das religides afto-brasileiras nos diferentes sentidos e foram criadas verdadeiras redes internacionais de parentesco simbdlico, as quaisconstituem denominadores de fronteiras sociais esimbdti- cas que contribuem para a construgdo de verdadeiras identidades transnacionais, Ao mesmo tempo, essas redes constituem uma for- ma de integrago regional/internacional, legitimada religiosa- mente, mediatizada pelas religies afio-brasileiras, onde a nacio- nalidade eas diferengas sociaise ideolégicas nfo so anuladas, mas superpostas a religiosa Evidentemente quea construgo de identidades nao signifi caa formagao de comunidades (no sentido tradicional do termo) internacionais. Igualmente, a integragao e a formagio internacio- nais de redes de familias-de-santo nao significa que as relagdes en- {re osseus membros sejam harménicas, Elas continua reprodu- oethos de rivalidade e alianga que caracteriza o campo religioso atro-brasileiro, 364 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present Relagdes com o Poder Politico Local Nos iiltimos anos, as religides afro-brasileiras parecem ter conseguido, em Porto Alegre, uma aproximagao nao alcangada até ento, ¢ em nenhum outro local do estado, com o poder piblico local. E sobretudo nas gestdes do PT na prefeitura, especialmente na segunda e na atual, em que o chefe do Executivo ¢ Tarso Gere ro," que aquelas religides conseguem lograr apoiose interagir dire- tamente com o gabinete do Prefeito e com algumas secretarias, como da Cultura e do Meio Ambiente, tudo isto ocorrendo, po- rém, nao sem conflitos.”” Assim, em Porto Alegre, mediante Lei Municipal, e por in- termediago da Secretaria Municipal da Cultura e da Camara Mu- pal de Porto Alegre, desde o ano de 1996 comemora-se a Sema- na da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros. Os eventos desta Semana sio compostos de palestras rituais, celebrados no Parque da Harmonia, no centro da cidade. Iniciam-se no dia 15 de no- ‘vembro com uma sessio de Umbanda e encerram-se em 20 de no- vembro, Dia Nacional da Consciéncia Negra, com uma sessio de Batuque. Nestes eventos comparecem autoridades civis, membros das religides afro-brasileiras, além de simpatizantes, curiosos € 0 povo em geral Outra atividade publica semelhante a essa, € que também consta como Lei Municipal de Porto Alegre, éa Festa da Oxum, ce- lebrada desde 1996 em todos os dias 8 de dezembro, na praia de Itapema, diante da imagem deste orixé erguida a beira do Rio Guaiba. Nesta ocasito ocorre também uma sessio religiosa na praia em homenagem a deusa das éguas doces. E digno de nota que amibas as atividades referidas, a Semana da Umbandaea Festa da Oxum, constam no calendario deeventos da preféitura de Porto Alegre Outra iniciativa de parceria com o poder piiblico ocorreu entre as trés maiores federagdes do estado (Conselho Superior da Umbanda e dos Cultos Afro-brasileiros, Afrobras e Alianga Umbandista e Africanista do Estado) e as Secretarias Estadual e Municipal do Meio Ambiente, ao editarem um caderno de orien- tagdo intitulado “A Educacdo Ambiental eas Praticas das Religio. Afro-Umbandistas”, com 0 objetivo de “orientar as Casas de Reli- gio e funcionarios do poder piiblico municipal e estadual sobre procedimentos em relaglo a cultos e colocagio de trabalhos religi- oss no meio ambiente”, Trata-se de um manual de aconselhamen- 365 Avi Ow tosem relagdo as oferendas, tendo como pressuposto a preservagao da natureza ‘As federagdes acima mencionadas também conseguiram, junto ao poder publico municipal e a Assemblgia Legislativa do estado, o apoio financeiro e logistico para realizar anualmente um Seminario Cultural e Teoldgico da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Estado do Rio Grande do Sul. Trata-se de um seminario que desde a sua primeira edigdo, em 1996, é celebrado nosaléio nobre da Assemb léia Legislativa do estado e conta com pa- lestrantes oriundos do proprio campo religioso em questo e de pesquisadores dos mencionados cultos, provenientes de diferentes regiGes do Brasil e dos paises do Prata. O seminario tem duragiio de trés dias e dele participam em média 400 pessoas. Principalmente neste evento, mas também nos demais refe- ridos, nota-se sempre a presenga de politicos, dos Executivos e Le- gislativos, municipal e estadual, de distintos partidos. Outra forma de aproximagao do campo religioso afio-brasileiro com o politico ocorre através de outorga decomen- dace titulos honorificos, com que os governos locais distinguem al- guns lideres destas religides. Assim, por exemplo, o babalorixa Cleon (Fonseca) de Oxala recebeu das maos do ento governador do Estado do Rio Grande do Sul, Antonio Brito, em 30/6/1996, a medalha Negrinho do Pastorvio, a mais alta comenda do estado Trés pais-de-santo receberam na Camara Municipal de Porto Ale- igre 0 titulo de cidadaios de Porto Alegre. Sao eles: Ailton (Albu- querque) da Oxum, Jorge (Verardi) de Xang6e Adalberto Pernam- buco Nogueira — 0 primeiro nascido em Pelotas (RS), em 3/11/1945, o segundo em Cruz Alta (RS), em 19/10/1949, eo ter- ceiro em Belém do Para, em 3/11/1928. O ultimo agraciado, Adalberto Pernambuco Nogueira, & presidente do Conselho Estadual da Umbanda e dos Cultos Afro-Brasileiros do Rio Grande do Sul (CEUCAB/RS), e uma das maiores liderangas desta religiao no estado. Devido o seu carismae bom transito na esfera piiblica, tem contribuido para as religides afro-brasileiras conquistarem maior e melhor espago tanto no campo politico quanto no campo religioso institucional. Na area politica tem participado, enquanto representante das religides afro-brasileiras, no Conselho Politico de Campanha da Frente Po- pular (formado entio por cerea de 160 pessoas de destaque das v rias areas de atuago social e profissional) por ocasiao das tiltimas eleiges municipais de 2000, e atualmente integra o Conselho Po- litico de Governo da Frente Popular (formado por cerca de 300 366 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present pessoas). Igualmente, a partir de janeiro deste ano foi escolhido como membro do Conselho Municipal de Cultura Alem destas atividades no meio politico, Pernambuco No- gueira é 0 representante mais solicitado das religides afro-brasileiras por ocasido de celebragdes ecuménicas, ocorridas, por exemplo, por ocasitio das posses do governador do estado e do preféito municipal, no dia do aniversario da cidade de Porto Ale- ‘gre (26 de margo), no dia das Maese na celebragao de 25 deagosto, dia de Sao Cristovao, padroeiro dos motoristas Em tais cultos ecuménicos comparecem representantes da igreja catolica, da igreja luterana, do islamismo, do budismo, do judaismo, do espiritismo, além dos cultos afros. ‘Mas, se, de um lado todos os fatos acima mencionados reve- Jam uma aproximagao — que, como ja disse, nao ocorre sem ten- sbes — entre as religides afro-brasileiras e o poder politico no Rio Grande do Sul, por outro lado, os representantes dessas religies ndo lograan ingresear diretamente no campo politico mediante a condugao elo voto. Ou seja, malgrado as tentativas para sua viebilizagao de parte de alguns renomados pais, no conseguiram eleger nenhum seu representante nas Cémaras Municipais e muito menos na Assemb Iéia Legislativa do estado. O tinico precedente neste senti- do data da década de 1960, quando o umbandista Moab Caldas foi eleito paraa Assembléia Legislativa do estado, pelo PTB de Leonel Brizola e Jango Goulart, ¢ reeleito nos anos de 1964 e 1968, Foi cassado em 1968, vindo a falecer em 1997." Também no ano de 1960 foram eleitos3 prefeitos e cerca de 20 vereadores umbandis- tas no Rio Grande do Sul Apos este periodo nao parece ter havido mais presenca efeti- va de membros desta religido em cargos eletivos no Rio Grande do Sul, malgrado algumas tentativas, como a do babalorixa Ailton Albuquerque, de Porto Alegre, que se apresentou as eleigdes legis- lativas gaiichas nas tiltimas eleigdes de 1998 pelo Partido Traba- Ihista Brasileiro (PTB). Nao logrou se eleger, tendo obtido 3.425 votos, quando o minimo necessario situa-se em torno de dez mil, dependendo da situagao da legenda. Naseleigdes de 2000 nao consta ter havidoalgum lider desta religido que tenha sido eleito em algum municipio do Rio Grande doSul. Em Porto Alegre, entre os 41 | candidatosa vereador paraa Camara Municipal, havia 5 representantes das religides afro- brasileiras, 4 pais-de-santo e | presidente de um famoso terreiro. Foi, entre eles, o presidente da Federagio Afrobras quem obteve 0 maior niimero de votos, 1.994, este montante representando, po- 367 Avi Ow rm, somente um quarto dos votos necessirios para ser eleito. Os demais candidatos obtiveram 1.668, 1.109, 451 421 votos, tota~ lizando, juntos, 5,643 votos, quantia insuficiente para eleger um unico candidato. discurso eleitoral veiculado pelos pais-de-santo de Porto Alegre para dentro da “comunidade” afro-umbandista era funda- mentalmente 0 mesmo: a necessidade de a “religiao” ter represen- tantes no legislativo municipal para defender os seus direitos e para mostrarsua forga perantea sociedad e, sobretudo, perante os evangélicos (pentecostais), que esto ampliando seu espago na po- litica e se mostrando abertamente criticos em relagao as religides afro-brasileiras, Ora, este discurso ndo produziu a eficicia espera- da pelos candidatose, a meu ver, isto se deve, sobretudo, a propria estrutura e ao ethos das religides afro-brasileiras De fato, o modelo organizacional das religides afio-brasileiras repousa sobre uma variedade de federagdes e uma pulverizagao de terreiros, sendo todos ao mesmo tempo auténo- mos e rivais entre si, Como ndo existe, no ambito desta religito, uma Ginica hierarquia religiosa, um poder centralizador e aglutina- dor dos centros religiosos, estes constituem-se autdnomos e, por isso mesmo, concorrentes entre si. Em conseqiiéncia disso, reco- nhece o candidato a vereador Jorge Verardi, presidente da Afro- bras, “cada um procura sua propria autopromogao”, “Nao temosa organizagio dos aleluia’, disse uma mée-de-santo Ora, este ethayconstituido de permanente disputa, rivalide- deentreterreirose desqualificagao do outro, torna, como reconhe- ce R, Prandi, bastante remota a possibilidade de uniao entre terrei- 108 € grupos, mesmo em se tratando de proveito para a religiao (Prandi, 1991:163)."° Consideracées Finais Malgrado os avangos alcangados nos iiltimos anos pelas ciéncias sociaise humanas na compreensio da historiae do presen- te do negro e sua cultura no Rio Grande do Sul, muita coisa ainda resta a ser investigada. Talvez ndio pese hoje to forte como ha alguns anos atras a frase escrita em 1940 pelo historiador D. de Laytano quando afir- maya que “os nossos cronistas, os historiadores de compéndios of'- ciais e toda a literatura gaticha no se ocuparam do negro sendo acidental, ligeira e negligentemente” (Laytano, 1940). No entan- 368 ReligioesAfio-Brasileras do Rio Grande do Sul: Passado Present to, malgrado produgdes recentes, permanece atual a exortagao de outro historiador, Mario Maestri Filho: “a historia do escravo suli- no, proto-historia do proletariado gaticho, ainda esta por escre- ver-se” (Maestri Filho, 1979:67). Especificamente sobre as ori- gens do negro gaticho, escreveu que “nao sabemos rigorosamente nada” (idem, 1993-30), enquanto Norton Correa afirmou que “ainda ndo foram perfeitamente esclarecidas as origens das popu- las como escravos para o Rio Grande do Sul” (Correa, Aexplicagao paraa desconsideracao do negro pela academia, mas nfo $0 ela, pode residir, como salienta R. Oliven, no proprio processo de construgao politica e cultural do Rio Grande do Sul, onde ocorreu um interesse massivo e concentrado em torno da fi- gura do gaticho — que foi elevado a condigdo de “auténtico” repre- sentante desse territorio — e do colonizador europeu, em detri- mento deoutros grupos sociais aqui presentes desde o principio da colonizagao, como os negros ¢ os indios. Estes parecem condena- dosao siléncio eao esquecimento e comparecem no ambito das re- presentagdes de uma formaextremamente palida, Particularmente quanto a0 negro prevalece uma invisibilidade social e simbolica (Oliven, 1996) a0 mesmo tempoem queainda predomina, no Rio Grande do Sul, a auto-imagem de um estado branco e moderno, construido pelas figuras “herdicas” dos gatichos e dos imigrantes europeus e seus descendentes. Nocontexto deexclusio do negro esua cultura no Rio Gran- de do Sul figura também obatuque, cuja historia, linhagens, tradi- ¢0es religiosas e repressio policial, permanecem ainda com lacu- nas, incognitas e ditvidas nao resolvidas, como pudemos constatar neste trabalho. Notas 1. Porse tratar de um texto que pretendeser,alécerto ponto, ume penorimico sobre asreligiesatfo-brasleras no Rio Grande doSul,esteserd, nevesariamente,supert- cial emalguns aspectos, porém, ess detieiénen poderi serem parte sanada com as Indicagdes bibliogriicasrespectivas para os interesstdos (Ouse, aturram como mio-de-obra nos engenbos de apicar de Pernambuco e Ba- hia, na minerago uriZea de Minas Gerais, nos campos de Fumo ecacau da Bahia e Sergipe, no cultivo do eaB do Rio de Janeiro eSto Paulo, no algo do Maranhiioe Prd, nas plantagdes decal tambémeultiado no Espirito Santo, naagriculturae pe cuaria do Rio Grande do Sule na mineragio de Goiés e Mato Grosso 369 Ani Ow ‘Saho-se que durante algum tempo envio para. o Suler tide como um pesado casti- 0. forteameaga aoseseravos desabedientes, por parte dos patrdes de outras rezibes do Beal 4. De ato, ao efetuar uma comparagio entse ocandomblé da Bahine o batugue o Rio Grande do Sul, Herskovits propunhs a hipdtese de que a existéncia do aicanismo ‘no Rio Grande do Sul resulta de um trabalho independentee paraelo, “de idénticos Jmpulkos culturuis africans primitivos”. Ponderava, porém, de que tl hipdtese de- ‘eriaser revista com os avangos dosestudoshistriogritios “sobre a migragio negra «dentro do Brasile da proeedéneia tribal afieana dos nears importados paras parte sul do pal (Herskovits, 1948:64). 5. “Emibora ocupada desde os meados do séeulo XVIII por eolonos agarianos, Porte Alegresi comegouse desenharapés 1772, quandosedeua primeira demareagdodo espago urban ea dstibuigio de datas de rertas parm esses agorianos. Sé6entio cos Sparsduay “sont “s4es Hop suop sy 1p) route _p 9 [sou wo oupeqen op oUOP nig = pupETRTATS| ap myo “sso sop oxtstosuapy yjsuar| “2quatsos ‘sepoou ‘ot “04 uo sep avop wa sana =p BRD, SoS v EO "INS OG AGNVUD ORI OG TADALVE OG SYXIYO — 1 oxy SOXANV an Asi Oro ToS SHOP SUSUIOS often fod os arog wx NUTS | B14) 0p EEN SOU Key es eB ‘omonuy ames ins 00 ator ons | (EEN) Blo od -ossEINY| —_—_oPULDA oP “oma 2poq wun Tae aid ons 9 o1pod‘S “omonuy S| “pese snereg 9 oprs401 OMA yous op 2704 wea yo ‘ques wos wpugpuodsauio sxppargjo epruoy seine seunuy eatig oem nung “rod “ps0 $0 s0po1 op Ho 1.0, SPEATEATeP 2 epeptuis usu sop op fous Tom 2 ous ones) spepnuor “epeinop a4uais09 opi oe ‘21 sp oun 2p ojassue up oye ‘sb | mo s00p ene op BOP wns Stn n0-ox05 9 ouauios 9 o1asd cap ayuaos “Ino, suede pia. oo 376 Religides Afro-Brasleirae do Rio Grande do Sul: Passado © Presente rag NOIR, in) anag BLT GIS HO somlaNeN SOP SN peony ‘anguatous “vorfun | vung eyes 9 e1ges “aya40 Hawa eppoasedy nb ‘s200p SN “0BNQUOD &P “SN ‘pase eof yaraure ou eag9 nx, ‘proved op -oroud soy sep souous o1s5 049A 0382" 098 tHONOF 409 sonbyenb 2p sas w09 2p04, ude. 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