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Os fatos das Ciências Sociais

Friedrich von Hayek


The Facts of the Social Sciences · Tradução de Gabriel Oliva
20 de janeiro de 2021 · 57 minutos de leitura
Proferido diante o Clube de Ciência Moral da Universidade de Cambridge em 19 de novembro de 1942.
Reproduzido em Ethics, LIV, No. 1 (Outubro, 1943), 1-13. Algumas das questões levantadas neste ensaio são
discutidas em maior extensão em artigo do autor, Scientism and the Study of Society, que apareceu em três partes
no Economica, 1942-45.

1
Não existe hoje um termo comumente aceito para descrever o grupo de
disciplinas das quais trataremos nesse artigo. O termo “ciências morais”, no
sentido em que John Stuart Mill usava, cobria de forma aproximada o campo,
mas ele está há muito tempo fora de moda e agora carregaria conotações
inapropriadas para a maioria dos leitores. Embora seja, por essa razão, necessário
usar o familiar termo “ciências sociais” no título, devo começar enfatizando que
isso não significa que todas as disciplinas relacionadas com os fenômenos da
vida social apresentam os problemas específicos que discutiremos. Estatísticas
vitais, por exemplo, ou o estudo da propagação de doenças contagiosas, sem
dúvida lidam com os fenômenos sociais, mas não levantam nenhuma das
questões específicas a serem consideradas aqui. Eles são, se é que posso chamá-
los assim, verdadeiras ciências naturais da sociedade e não diferem em nenhum
aspecto importante das outras ciências naturais. São diferentes, no entanto, o
estudo da linguagem ou do mercado, da lei e da maioria das outras instituições
humanas. É apenas esse grupo de disciplinas que me proponho a considerar e
para as quais sou obrigado a usar o termo um tanto enganador de “ciências
sociais”.

Já que argumentarei que o papel da experiência nesses campos do conhecimento


é fundamentalmente diferente do que ela desempenha nas ciências naturais,
talvez devesse explicar que eu mesmo originalmente abordei meu campo
completamente imbuído de uma crença na validade universal dos métodos das
ciências naturais. Meu primeiro treinamento técnico não apenas foi fortemente
científico, no sentido estrito da palavra, mas também o pouco treinamento que
tive em filosofia e método científico foi inteiramente na escola de Ernst Mach e,
posteriormente, na dos positivistas lógicos. No entanto, tudo isso teve o efeito
apenas de criar uma consciência, que se tornou mais e mais definida com o
passar do tempo, de que, certamente, todas as pessoas que universalmente são
consideradas falando com algum sentido na área da economia estão
constantemente infringindo os cânones aceitos do método científico que
evoluíram a partir da prática das ciências naturais; que até mesmo os cientistas
naturais, quando começam a discutir fenômenos sociais, via de regra - pelo
menos na medida em que preservam algum senso comum - fazem o mesmo; mas
que, nos casos não raros nos quais um cientista natural seriamente tenta aplicar
seus hábitos profissionais de pensamento para os problemas sociais, o resultado
tem sido quase invariavelmente desastroso - isto é, de um caráter que para todos
os estudantes profissionais desses campos parece um total absurdo. Mas,
enquanto é fácil mostrar o absurdo da maioria das tentativas concretas de tornar
as ciências sociais “científicas”, é muito menos fácil montar uma defesa
convincente dos nossos próprios métodos, que, embora satisfatórios para a
maioria das pessoas em determinadas aplicações, são, se olhados com um olhar
crítico, suspeitosamente semelhantes ao que é conhecida popularmente como
“escolástica medieval”.

2
Mas basta de introdução. Deixe-me mergulhar diretamente no meio do meu
assunto e perguntar com que tipo de fatos temos de lidar nas ciências sociais.
Essa questão levanta de imediato outra que é em muitos aspectos crucial para o
meu problema: O que queremos dizer quando falamos de “certo tipo de fatos”?
Eles nos são dados como fatos de certo tipo, ou nós que os tornamos o que são ao
olhar para eles de certa maneira? Evidentemente, todo o nosso conhecimento do
mundo externo é de uma forma derivado da percepção dos sentidos e, portanto,
de nosso conhecimento dos fatos físicos. Mas isso significa que todo o nosso
conhecimento é apenas de fatos físicos? Isso depende do que queremos dizer
com “um tipo de fatos”.

Uma analogia com as ciências físicas tornará a posição mais clara. Todas as
alavancas ou pêndulos que podemos conceber têm propriedades químicas e
óticas. Mas, quando falamos de alavancas ou pêndulos, não falamos sobre fatos
químicos ou óticos. O que faz de uma série de fatos individuais de coisas do tipo
são os atributos que selecionamos, a fim de tratá-los como membros de uma
classe. Isto é, evidentemente, senso comum. Mas isso significa que, apesar de
todos os fenômenos sociais com os quais possivelmente podemos lidar terem
atributos físicos, eles não precisam ser fatos físicos para o nosso propósito. Isso
depende de como acharemos conveniente classificá-los para a discussão de
nossos problemas. As ações humanas que observamos, e os objetos dessas ações,
são coisas do mesmo tipo ou de diferentes tipos, por que aparecem como
fisicamente idênticos ou distintos para nós, os observadores - ou por causa de
algum outro motivo?

As ciências sociais, sem exceção, preocupam-se com a maneira pela qual os


homens se comportam em relação a seu ambiente - outros homens ou coisas - ou
deveria dizer, ao invés disso, que esses são os elementos a partir dos quais as
ciências sociais constroem padrões de relações entre muitos homens. Como
devemos definir ou classificar os objetos de suas atividades, se queremos
explicar ou compreender as suas ações? É pelos atributos físicos dos objetos - o
que nós podemos descobrir sobre os objetos estudando-os - ou é por alguma
outra coisa que devemos classificar os objetos quando tentamos explicar o que os
homens fazem com eles? Deixe-me primeiramente considerar alguns exemplos.

Tome coisas como ferramentas, alimentos, remédios, armas, palavras, frases,


comunicações e atos de produção - ou qualquer exemplo particular de qualquer
um desses. Acredito que esses sejam bons exemplos do tipo de objetos da
atividade humana que constantemente ocorrem nas ciências sociais. É facilmente
visto que todos esses conceitos (e o mesmo vale para casos mais concretos) não
se referem a algumas propriedades objetivas possuídas pelas coisas, ou as quais o
observador possa descobrir sobre tais coisas, mas aos pontos de vista que outra
pessoa tem sobre as coisas. Esses objetos não podem sequer serem definidos em
termos físicos, porque inexiste uma única propriedade física que todo membro de
uma classe deva possuir. Esses conceitos também não são meras abstrações do
tipo que usamos em todas as ciências físicas; eles abstraem de todas as
propriedades físicas das próprias coisas. São todos exemplos do que por vezes se
chama de “conceitos teleológicos”, isto é, podem ser definidos apenas através da
indicação das relações entre três termos: um propósito, alguém que tem esse
propósito, e um objeto que essa pessoa pensa ser um meio adequado para
alcançar esse propósito. Se desejarmos, podemos dizer que todos esses objetos
são definidos não em termos de suas propriedades “reais”, mas em termos de
opiniões que as pessoas têm sobre eles. Em suma, nas ciências sociais, as coisas
são o que as pessoas pensam que elas são. Dinheiro é dinheiro, uma palavra é
uma palavra, um cosmético é um cosmético, se e porque alguém acha que o são.

Que isso não seja mais óbvio se deve ao acidente histórico de que, no mundo em
que vivemos, o conhecimento da maioria das pessoas é aproximadamente
parecido com o nosso próprio conhecimento. Isso é destacado muito mais
fortemente quando pensamos em homens com um conhecimento diferente do
nosso, por exemplo, pessoas que acreditam em magia. É óbvio que um feitiço
que se acredita proteger a vida do seu portador, ou que um ritual destinado a
garantir boas colheitas, só pode ser definido em termos das crenças das pessoas
sobre eles. Mas o caráter lógico dos conceitos que temos que usar em tentativas
de interpretar as ações das pessoas é o mesmo quer nossas crenças coincidam
com as deles ou não. Se um medicamento é um medicamento, para o propósito
de compreender as ações de uma pessoa, depende apenas de a pessoa acreditar
que ele seja um, independentemente de nós, os observadores, concordarmos ou
não. Às vezes é um pouco difícil ter claramente em mente essa distinção. Nós
somos suscetíveis, por exemplo, a pensar na relação entre pai e filho como um
fato “objetivo”. Mas, quando usamos esse conceito no estudo da vida familiar, o
que é relevante não é que x seja a prole biológica de y, mas que um deles ou
ambos acreditem que esse seja o caso. O caráter relevante em questão não é
diferente do caso em que x e y acreditam que exista algum laço espiritual entre
eles, cuja existência nós não acreditamos. Talvez a distinção relevante torne-se
mais clara na asserção geral e óbvia de que nenhum conhecimento superior que o
observador possa dispor sobre o objeto, mas que não seja possuído pela pessoa
que age, pode nos ajudar a compreender os motivos de suas ações.

Os objetos da atividade humana, então, para os fins das ciências sociais são do
mesmo ou de diferentes tipos, ou pertencem à mesma ou a diferentes classes, não
de acordo com o que nós, os observadores, sabemos sobre os objetos, mas de
acordo com o que nós pensamos que a pessoa observada sabe sobre ele. Nós, de
alguma forma, e pelas razões que presentemente considerarei, imputamos
conhecimento na pessoa observada. Antes que prossiga perguntando em que
fundamento tal imputação de conhecimento sobre o objeto à pessoa agindo se
baseia, o que isso significa, e o que decorre do fato de que definimos os objetos
da ação humana de tal forma, devo me voltar um momento para considerar o
segundo tipo de elementos com os quais temos de lidar nas ciências sociais: não
o ambiente em que os seres humanos se comportam, mas a ação humana em si.
Quando examinamos a classificação de diferentes tipos de ações que devemos
usar quando discutimos o comportamento humano inteligível, deparamo-nos com
exatamente a mesma situação que nos deparamos quando analisamos a
classificação dos objetos das ações humanas. Dos exemplos que dei antes, os
últimos quatro encaixam-se nessa categoria: palavras, frases, comunicações e
atos de produção são ilustrações de ações humanas desse tipo. Agora, o que faz
com que sejam de um mesmo tipo duas instâncias de uma mesma palavra ou de
um mesmo ato de produção, no sentido que é relevante quando discutimos o
comportamento inteligível? Certamente não as propriedades físicas que têm em
comum. Não é porque explicitamente sei quais propriedades físicas do som da
palavra “sicômero”, pronunciada em momentos diferentes por pessoas diferentes
tem em comum, mas porque sei que x ou y intencionam usar todos esses sons ou
sinais diferentes para significar a mesma palavra, ou que todos entendem como a
mesma palavra, que os trato como instâncias da mesma classe. Não é por causa
de qualquer semelhança objetiva ou física, mas por causa da intenção (imputada)
da pessoa que age, que considero como instâncias de um mesmo ato de produção
as várias maneiras em que, em circunstâncias diferentes, possa fazer, digamos,
um eixo.

Por favor, note que nem com relação aos objetos da atividade humana, nem com
relação aos diferentes tipos de atividade humana argumento que suas
propriedades físicas não entrem no processo de classificação. O que estou
argumentando é que nenhuma propriedade física pode entrar na definição
explícita de nenhuma dessas classes, porque os elementos dessas classes não
precisam possuir atributos físicos comuns, e nós nem sequer consciente ou
explicitamente sabemos quais são as várias propriedades físicas das quais um
objeto teria de possuir pelo menos para ser um membro de uma classe. A
situação pode ser descrita esquematicamente, dizendo que sabemos que os
objetos a, b, c, …, que podem ser completamente diferentes fisicamente e os
quais nunca podemos enumerar exaustivamente, são objetos do mesmo tipo
porque a atitude de X em relação a todos eles é semelhante. Mas o fato de a
atitude de X em relação a eles ser semelhante pode novamente ser definida
apenas dizendo que ele irá reagir em relação a eles através das ações α, β, γ, …,
que novamente podem ser fisicamente diferentes e que não seremos capazes de
enumerar exaustivamente, mas que nós simplesmente sabemos que “significam”
a mesma coisa.

Esse resultado da reflexão sobre o que estamos realmente fazendo é, sem dúvida,
um pouco perturbador. No entanto, a mim não parece haver dúvida de que isso
não só é precisamente o que estamos fazendo, na vida comum, bem como nas
ciências sociais, quando falamos sobre ações inteligíveis de outras pessoas, mas
também que essa é a única maneira com que podemos alguma vez “entender” o
que as outras pessoas fazem; e que, portanto, devemos contar com esse tipo de
raciocínio sempre que discutimos o que todos conhecemos como atividades
especificamente humanas ou inteligíveis. Nós todos sabemos o que queremos
dizer quando dizemos que vemos uma pessoa “brincando” ou “trabalhando”, um
homem fazendo isso ou aquilo “deliberadamente”, ou quando dizemos que um
rosto parece “amigável” ou um homem “assustado”. Mas, embora possamos ser
capazes de explicar como reconhecer qualquer uma dessas coisas em um caso
particular, estou certo de que nenhum de nós pode enumerar, e nenhuma ciência
pode - pelo menos por enquanto - nos dizer todos os sintomas físicos diferentes
através dos quais nós reconhecemos a presença dessas coisas. Os atributos
comuns que os elementos de qualquer uma dessas classes possuem não são
atributos físicos, mas devem ser outra coisa.

Do fato de que sempre que interpretamos a ação humana como em qualquer


sentido intencional ou significativo, quer o façamos na vida cotidiana quer para
os propósitos das ciências sociais, nós temos que definir ambos os objetos da
atividade humana e os diferentes tipos de ações por si mesmas, não em termos
físicos, mas em termos das opiniões ou intenções das pessoas que agem, então se
segue algumas consequências muito importantes; a saber: nada a menos do fato
de que não podemos, a partir dos conceitos dos objetos, analiticamente concluir
algo sobre o que as ações serão. Se definimos um objeto em termos da atitude de
uma pessoa em relação a ele, segue, é claro, que a definição do objeto implica
uma declaração sobre a atitude da pessoa em relação à coisa. Quando dizemos
que uma pessoa possui alimento ou dinheiro, ou que ela pronuncia uma palavra,
nós implicamos que sabemos que o primeiro pode ser comido, que o segundo
pode ser usado para comprar algo e que a terceira pode ser entendida - e, talvez,
muitas outras coisas. Se essa implicação é ou não significativa de alguma forma,
isto é, se a tornar explícita acrescenta ou não ao nosso conhecimento de alguma
forma, depende de se, quando dizemos a uma pessoa que essa ou aquela coisa é
comida ou dinheiro, afirmamos com isso apenas os fatos observados a partir dos
quais derivamos esse conhecimento ou se implicamos mais do que isso.

Como podemos saber que uma pessoa possui certas crenças sobre o seu
ambiente? O que queremos dizer quando falamos que sabemos que ela possui
certas crenças - quando dizemos que sabemos que uma pessoa usa essa coisa
como uma ferramenta ou aquele gesto ou som como um meio de comunicação?
Queremos dizer meramente o que realmente observamos no caso particular, por
exemplo, que podemos vê-la mastigando e engolindo sua comida, batendo um
martelo, ou fazendo barulhos? Ou não será que sempre que dizemos que
“entendemos” a ação de uma pessoa, quando falamos sobre o “porquê” de ela
estar fazendo isso ou aquilo, imputamos a ela algo além do que podemos
observar ou, pelo menos, além do que podemos observar no caso particular?

Se considerarmos, por um momento, os mais simples tipos de ações em que esse


problema surge, torna-se, é claro, rapidamente óbvio que, ao discutir o que
consideramos como ações conscientes de outras pessoas, invariavelmente
interpretamos suas ações fazendo uma analogia com a nossa própria mente: isto
é, que nós agrupamos suas ações, e os objetos de suas ações, em classes ou
categorias que conhecemos unicamente a partir do conhecimento da nossa
própria mente. Assumimos que a ideia de um propósito ou uma ferramenta, uma
arma ou comida, é comum a eles e a nós, assim como assumimos que eles podem
ver a diferença entre as cores ou formas diferentes, assim como nós. Nós,
portanto, sempre complementamos o que realmente vemos da ação de outra
pessoa através da projeção nessa pessoa de um sistema de classificação de
objetos que conhecemos, não a partir da observação de outras pessoas, mas
porque é em termos dessas classes que nós mesmos pensamos. Se, por exemplo,
vemos uma pessoa atravessar uma rua cheia de tráfego, desviando de alguns
carros e deixando outros passar, sabemos (ou pensamos que sabemos) muito
mais do que realmente percebemos com nossos olhos. Isso seria igualmente
verdadeiro se víssemos um homem se comportar em um ambiente físico bastante
diferente de tudo que já vimos antes. Se vejo pela primeira vez uma grande pedra
ou uma avalanche caindo sobre a encosta de uma montanha em direção a um
homem e vejo-o correr por sua vida, sei o significado dessa ação, porque sei o
que faria ou poderia ter feito em circunstâncias similares.

Não há dúvidas de que todos nós constantemente agimos com base no


pressuposto de que podemos dessa maneira interpretar as ações das outras
pessoas sobre a analogia de nossa própria mente e que, na grande maioria dos
casos, esse procedimento funciona. O problema é que nunca podemos ter certeza.
Observando alguns movimentos ou ouvindo algumas palavras de um homem,
decidimos que é sensato e não um lunático e, assim, excluímos a possibilidade de
ele ter um comportamento em um número infinito de maneiras “estranhas” as
quais nenhum de nós jamais poderia enumerar e que simplesmente não se
encaixam naquilo que sabemos ser um comportamento razoável, o que significa
nada mais do que essas ações não podem ser interpretadas por analogia de nossa
própria mente. Não podemos explicar com precisão como, para fins práticos,
sabemos que um homem é são e não um lunático, nem podemos excluir a
possibilidade de que, em um caso em cada mil, podemos estar errados. Da
mesma forma, eu, a partir de algumas observações, sou capaz de concluir
rapidamente que um homem está sinalizando ou caçando, fazendo amor com ou
punindo outra pessoa, embora nunca tenha visto essas coisas feitas dessa maneira
em particular; e ainda assim a minha conclusão será suficientemente certa para
todos os propósitos práticos.

A questão importante que se coloca é se é ou não legítimo empregar em análises


científicas conceitos como esses, os quais se referem a um estado de coisas que
todos reconhecemos “intuitivamente” e que não apenas usamos sem hesitação na
vida cotidiana, como também é nisso que todas as relações sociais e toda a
comunicação entre os homens se baseiam; ou se devemos ser impedidos de fazê-
lo porque não podemos afirmar quaisquer condições físicas a partir das quais
podemos deduzir com certeza que as condições postuladas estão realmente
presentes em qualquer caso particular, e porque, por essa razão, nunca podemos
ter certeza se algum caso particular é realmente um membro da classe sobre a
qual falamos - embora todos concordemos que na grande maioria dos casos, o
nosso diagnóstico será correto. A hesitação que a princípio se sente sobre isso é
provavelmente devida ao fato de que a retenção de tal procedimento nas ciências
sociais parece estar em conflito com a tendência mais marcante no
desenvolvimento do pensamento científico nos tempos modernos. Mas há
realmente tal conflito? A tendência a qual me refiro foi corretamente descrita
como uma em direção à progressiva eliminação das ciências físicas de todas as
explicações “antropomórficas”. Será que isso realmente significa que devemos
nos abster de tratar o homem “antropomorficamente” - ou não é bem óbvio,
assim que colocamos dessa forma, que tal extrapolação das tendências passadas é
um absurdo?

Eu não quero, é claro, nesse contexto, levantar todos os problemas relacionados


com o programa behaviorista, embora uma pesquisa mais sistemática do meu
assunto não possa evitar fazê-lo. Na verdade, a questão que tratamos aqui não é
nada mais do que se as ciências sociais poderiam possivelmente discutir o tipo de
problemas de seu interesse em termos puramente behavioristas - ou mesmo se o
behaviorismo consistente é possível.

Talvez a relação entre o fator estritamente empírico e a parte que adicionamos a


partir do conhecimento da nossa própria mente para interpretar a ação de outra
pessoa possa ser expresso com a ajuda de um uso (um tanto questionável) da
distinção entre a denotação e a conotação de um conceito. O que eu em
circunstâncias particulares reconheço como uma “cara amigável”, a denotação do
conceito, é em grande parte uma questão de experiência. Mas o que quero dizer
quando falo que essa é uma “cara amigável”, nenhuma experiência no sentido
comum do termo pode exprimir. O que quero dizer com uma “cara amigável”
não depende das propriedades físicas dos diferentes casos concretos, que podem
teoricamente não ter nada em comum. Mas aprendo a reconhecê-los como
membros da mesma classe - e o que os torna membros da mesma classe não é
nenhuma de suas propriedades físicas, mas um significado imputado.

A importância dessa distinção cresce na medida em que nos movemos para fora
dos ambientes familiares. Enquanto me movo entre minha própria variedade de
pessoas, é provável que das propriedades físicas de uma nota bancária ou das de
um revólver conclua que são dinheiro ou uma arma para a pessoa que os carrega.
Quando vejo um selvagem carregando conchas ou tubos longos e finos, as
propriedades físicas da coisa provavelmente não me dirão nada. Mas as
observações que me sugerem que as conchas são dinheiro para ele e o tubo uma
arma lançarão muita luz sobre o objeto - muito mais luz do que essas mesmas
observações poderiam dar se não estivesse familiarizado com o conceito de
dinheiro ou de uma arma. Ao reconhecer as coisas como tais, começo a entender
o comportamento das pessoas. Sou capaz de encaixá-lo em um esquema de ações
que “fazem sentido” só porque passei não a considerá-la como uma coisa com
certas propriedades físicas, mas como o tipo de coisa que se encaixa no padrão de
minha própria ação propositada.

Se o que fazemos quando falamos em entender a ação de uma pessoa é encaixar


o que realmente observamos em padrões que encontramos prontos em nossas
próprias mentes, segue-se, é claro, que podemos compreender cada vez menos
quando nos voltamos para seres cada vez mais diferentes de nós mesmos. Mas
também segue que não só é impossível reconhecer, mas também é sem sentido
falar sobre, uma mente diferente da nossa própria. O que queremos dizer quando
falamos de outra mente é que podemos conectar o que observamos porque as
coisas que observamos se encaixam na nossa própria forma de pensar. Mas, onde
essa possibilidade de interpretar em termos de analogias da nossa própria mente
cessa, onde já não podemos “compreender” - não há nenhum sentido em falar de
mente; há, então, apenas fatos físicos que podemos agrupar e classificar somente
em função das propriedades físicas que observamos.

Um ponto interessante nesse contexto é que, quando passamos da interpretação


das ações de homens muito parecidos com nós mesmos para homens que vivem
em um ambiente muito diferente, são os conceitos mais concretos os que
primeiro perdem a sua utilidade na interpretação das ações das pessoas e os mais
gerais ou abstratos são os que permanecem úteis por mais tempo. Meu
conhecimento das coisas do meu dia-a-dia, dos modos particulares nos quais
expressamos ideias ou emoções, será de pouca utilidade na interpretação do
comportamento dos habitantes de Tierra del Fuego. Mas a minha compreensão
do que quero dizer por um meio para um fim, por alimentos ou por uma arma,
uma palavra ou um sinal, e provavelmente até mesmo por uma troca ou um
presente, ainda será útil e mesmo indispensável na minha tentativa de
compreender o que eles fazem.

3
Até agora, a discussão tem sido limitada à questão de como classificamos ações
individuais e seus objetos na discussão dos fenômenos sociais. Devo agora me
voltar à questão do propósito para o qual usamos essa classificação. Mesmo que
a preocupação com classificações ocupe uma grande quantidade de nossas
energias nas ciências sociais - tanto, de fato, que na economia, por exemplo, um
dos críticos modernos mais conhecidos da disciplina descreveu-a como uma
ciência puramente “taxonômica” - esse não é o nosso objetivo final. Como todas
as classificações, ela é apenas uma maneira conveniente de organizar os nossos
fatos para o que quer que queiramos explicar. Mas antes que possa me voltar para
isso, devo, em primeiro lugar, eliminar um equívoco comum de nosso caminho e,
em segundo lugar, explicar uma alegação frequentemente feita em defesa desse
processo de classificação - uma alegação que para qualquer pessoa que cresceu
nas ciências naturais soa altamente suspeita, mas que, entretanto, segue
meramente da natureza do nosso objeto.

O mal-entendido é que as ciências sociais visam explicar o comportamento


individual e, particularmente, que o processo elaborado de classificação que
usamos é, ou serve para, tal explicação. As ciências sociais na verdade não fazem
nada do tipo. Se a ação consciente pode ser “explicada”, essa é uma tarefa para a
psicologia, mas não para a economia ou para a linguística, a jurisprudência ou
qualquer outra ciência social. O que fazemos é meramente classificar os tipos de
comportamento individual que podemos entender, desenvolver a sua
classificação - em suma, fornecer um arranjo ordenado de material que teremos
de usar na nossa tarefa posterior. Economistas, e o mesmo provavelmente
também é verdade nas outras ciências sociais, ficam geralmente um pouco
envergonhados ao admitir que essa parte da sua tarefa é “apenas” um tipo de
lógica. Acho que seriam sábios se francamente reconhecessem e encarassem esse
fato.

A alegação a que já me referi segue diretamente desse caráter da primeira parte


da nossa tarefa como um ramo da lógica aplicada. Mas soa bastante
surpreendente à primeira vista. Ela é o que podemos deduzir a partir do
conhecimento da nossa própria mente de uma maneira “a priori” ou “dedutiva”
ou “analítica”, uma classificação (pelo menos em princípio) exaustiva de todas as
formas possíveis de comportamento inteligível. É contra essa alegação,
raramente feita abertamente, mas sempre implícita, que todas as provocações
contra os economistas são direcionadas, quando somos acusados de gerar o
conhecimento a partir de nossa consciência interior e de outros epítetos abusivos
semelhantes que existem. No entanto, quando refletimos que, sempre que
discutimos o comportamento inteligível, discutimos ações que podemos
interpretar em termos de nossa própria mente, a alegação perde o seu caráter
surpreendente e de fato torna-se não mais do que um truísmo. Se podemos
entender apenas o que é semelhante à nossa própria mente, segue-se
necessariamente que devemos ser capazes de encontrar tudo o que podemos
entender em nossa própria mente. Evidentemente, quando digo que nós podemos,
em princípio, alcançar uma classificação exaustiva de todas as formas possíveis
de comportamento inteligível, isso não significa que não podemos descobrir que,
ao interpretar as ações humanas, usamos processos de pensamento que ainda não
analisamos - ou tornamos explícitos. Nós constantemente o fazemos. O que
quero dizer é que, quando discutimos qualquer classe particular de ação
inteligível a qual tenhamos definido como ações de um tipo, no sentido em que
tenho usado esse termo, então podemos, dentro desse campo, fornecer uma
classificação completamente exaustiva das formas de ação que pertencem a ela.
Se, por exemplo, definimos como ações econômicas todos os atos de escolha que
são tornados necessários pela escassez de meios disponíveis para os nossos fins,
podemos, passo a passo, proceder com a subdivisão das situações possíveis em
alternativas de forma que, para cada passo não haja uma terceira possibilidade:
um dado meio pode ser útil para muitos fins ou apenas para um fim, um dado fim
pode ser alcançado por um ou por vários diferentes meios, diferentes meios
podem ser desejados para um determinado fim, quer alternativamente quer
cumulativamente, etc.

Mas devo deixar o que chamei de primeira parte da minha tarefa e me voltar para
a questão do uso que fazemos dessas classificações elaboradas nas ciências
sociais. A resposta é, resumidamente, que usamos os diferentes tipos de
comportamento individual, assim classificados, como elementos a partir dos
quais construímos modelos hipotéticos, na tentativa de reproduzir os padrões de
relações sociais que conhecemos no mundo que nos rodeia. Mas isso ainda nos
deixa com a questão de saber se essa é a maneira correta de estudar os fenômenos
sociais. Não temos nessas estruturas sociais, afinal, definidos fatos sociais
tangíveis, os quais devemos observar e medir, assim como observamos e
medimos fatos físicos? Não deveríamos aqui, pelo menos derivar todo o nosso
conhecimento observando e experimentando, ao invés de “construir modelos” a
partir dos elementos encontrados no nosso próprio pensamento?

A crença de que, quando nos voltamos da ação do indivíduo para a observação


das coletividades sociais, passamos do reino da especulação vaga e subjetiva para
o reino do fato objetivo é muito difundida. É a crença sustentada por todos os que
pensam que podem fazer as ciências sociais mais “científicas” através da
imitação do modelo das ciências naturais. A sua base intelectual foi mais
claramente expressa pelo fundador da “sociologia”, Auguste Comte, quando em
uma famosa declaração, afirmou que no campo dos fenômenos sociais, como na
biologia, “o todo do objeto é, certamente, muito mais conhecido e mais
imediatamente acessível” do que as partes constituintes.1 A maior parte da
ciência que tentou criar ainda se baseia em crenças como essa ou similares a essa.

Creio que essa visão que considera os coletivos sociais, tais como a “sociedade”
ou o “estado”, ou qualquer instituição ou fenômeno social, como sendo em
qualquer sentido mais objetivo do que as ações inteligíveis dos indivíduos é pura
ilusão. Devo argumentar que o que chamamos de “fatos sociais” não são mais
fatos no sentido específico em que esse termo é utilizado nas ciências físicas do
que são as ações individuais ou os seus objetos; que esses assim chamados
“fatos” são, ao invés disso, precisamente o mesmo tipo de modelos mentais
construídos por nós a partir de elementos que encontramos em nossas próprias
mentes como os que construímos nas ciências sociais teóricas; de modo que o
que fazemos nessas ciências é, em um sentido lógico, exatamente a mesma coisa
que sempre fazemos quando falamos de um estado ou uma comunidade, uma
língua ou um mercado, e que só tornamos explícito o que na linguagem corrente
é oculto e vago.
Não posso tentar aqui explicar isso no contexto de uma disciplina social teórica
qualquer - ou, ao invés, no contexto da única entre elas na qual seria competente
para fazer isso, economia. Para fazer isso, teria que gastar muito mais tempo do
que tenho em tecnicalidades. Mas talvez seja ainda mais útil se tentar fazer isso
no contexto da preeminentemente descritiva e, em certo sentido, da disciplina
eminentemente empírica no campo social, a história. Considerar a natureza dos
“fatos históricos” será particularmente apropriado, já que os cientistas sociais são
constantemente aconselhados, por aqueles que querem tornar as ciências sociais
mais “científicas”, a recorrer à história em busca de seus fatos e a usar o “método
histórico” como um substituto para o experimental. De fato, fora das próprias
ciências sociais (e, ao que parece, especialmente entre os lógicos) 2 parece ter se
tornado quase uma doutrina aceita a de que o método histórico é o caminho
legítimo para generalizações sobre fenômenos sociais.3

O que queremos dizer por um “fato” da história? Os fatos com os quais a história
humana se interessa são significativos para nós como fatos físicos ou em algum
outro sentido? Que tipo de coisas são a Batalha de Waterloo, o governo francês
de Luís XIV, ou o sistema feudal? Talvez chegaremos mais longe se, ao invés de
se abordar essa questão diretamente, perguntemo-nos como decidimos se
qualquer pedaço particular de informação que temos faz parte do “fato” “Batalha
de Waterloo”. O homem que estava arando o seu campo um pouco além da
extremidade do flanco dos guardas de Napoleão era parte da Batalha de
Waterloo? Ou o cavaleiro que derrubou sua caixa de rapé ao ouvir a notícia da
tomada da Bastilha era parte da Revolução Francesa? Considerar cuidadosamente
esse tipo de pergunta mostra pelo menos uma coisa: que não podemos definir um
fato histórico em termos de coordenadas espaço-temporais. Também que nem
tudo o que ocorre em um tempo e em um mesmo lugar faz parte do mesmo fato
histórico, e que todas as partes do mesmo fato histórico não precisam pertencer
ao mesmo tempo e lugar. A língua grega clássica ou a organização das legiões
romanas, o comércio do mar Báltico no século XVIII ou a evolução da common
law, ou qualquer movimento de qualquer exército - todos esses são fatos
históricos, nos quais nenhum critério físico pode nos dizer quais são as partes do
fato e como se ligam. Qualquer tentativa de defini-los deve tomar a forma de
uma reconstrução mental, de um modelo, na qual atitudes individuais inteligíveis
constituam os elementos. Na maioria dos casos, sem dúvida, o modelo será tão
simples que a interligação de suas partes é facilmente visível; e haverá,
consequentemente, pouca justificativa para dignificar o modelo com o nome de
“teoria”. Mas, se o nosso fato histórico é tão complexo como uma língua ou um
mercado, um sistema social ou um método de cultivo da terra, o que chamamos
de um fato ou é um processo recorrente ou um padrão complexo de relações
persistentes que não é “dado” a nossa observação, mas que só podemos
reconstruir laboriosamente - e que podemos reconstruir apenas porque as partes
(as relações a partir das quais construímos a estrutura) são familiares e
inteligíveis para nós. Dizendo paradoxalmente, o que chamamos de fatos
históricos são na verdade teorias que, em um sentido metodológico, são de
caráter precisamente idêntico ao dos modelos mais abstratos ou gerais, os quais
as ciências teóricas da sociedade constroem. A situação não é que, primeiro,
estudamos os “dados” fatos históricos e, em seguida, talvez possamos generalizar
a respeito deles. Ao invés disso, usamos uma teoria quando selecionamos, a
partir do conhecimento que temos sobre um período, certas partes como sendo
inteligivelmente conectadas e constituindo parte do mesmo fato histórico. Nós
nunca observamos estados ou governos, batalhas ou atividades comerciais, ou
um povo como um todo. Quando usamos qualquer um desses termos, sempre nos
referimos a um esquema que conecta atividades individuais através de relações
inteligíveis; isto é, usamos uma teoria que nos diz o que faz e o que não faz parte
de nosso assunto. A posição não se altera pelo fato de que a teorização ser
geralmente feita para nós por nosso informante ou fonte que, ao relatar o fato, irá
usar termos como “estado” ou “cidade” os quais não podem ser definidos em
termos físicos, mas que se referem a um complexo de relações que, tornadas
explícitas, constituem uma “teoria” sobre o assunto.

A teoria social, no sentido em que uso o termo, é, portanto, logicamente anterior


à história. Ela explica os termos que a história deve usar. Isso, naturalmente, não
é incompatível com o fato de que o estudo histórico frequentemente força o
teórico a rever as construções ou a fornecer novas em termos dos quais possa
organizar a informação que encontra. Mas, na medida em que o historiador fala,
não apenas sobre as ações individuais de pessoas em particular, mas também
sobre o que, em certo sentido, podemos chamar de fenômenos sociais, os seus
fatos podem ser explicados como fatos de um determinado tipo só em termos de
uma teoria sobre como seus elementos se ligam. Os complexos sociais, as
totalidades sociais que o historiador discute, nunca são encontrados prontos,
dados da forma como são as estruturas persistentes no mundo orgânico (animal
ou vegetal). São criados pelo historiador através de um ato de construção ou
interpretação - uma construção que, na maioria dos casos, é feita de forma
espontânea e sem qualquer instrumento elaborado. Mas em alguns contextos
onde, por exemplo, lidamos com coisas como línguas, sistemas econômicos, ou
organismos de direito, essas estruturas são tão complicadas que, sem a ajuda de
uma técnica elaborada, já não podem ser reconstruídas sem o perigo de se
cometer erros ou ser levado a contradições. Isso é tudo o que as teorias das
ciências sociais pretendem fazer. Não tratam das totalidades sociais como
totalidades; não tem pretensão de descobrir leis de comportamento ou mudança
dessas totalidades através de observações empíricas. Sua função é, ao invés
disso, se assim posso chamá-la, de constituir essas totalidades, de fornecer
esquemas de relações estruturais os quais o historiador pode usar quando tem que
tentar encaixar os elementos que realmente encontra em um todo significativo. O
historiador não pode evitar o uso constante de teorias sociais nesse sentido. Ele
pode fazer isso inconscientemente e, em campos em que as relações não são
muito complexas, seu instinto pode orientá-lo corretamente. Quando ele se volta
para fenômenos mais complexos, tais como as línguas, o direito, ou a economia,
e ainda desdenha de fazer uso dos modelos elaborados por ele pelos teóricos, é
quase certo que fracassará. E esse “fracasso” vai significativamente se mostrar
pelo teórico, quer demonstrando-lhe que se envolveu em contradições quer lhe
mostrando que, em suas explicações, afirmou uma sequência de “causalidade”,
que, assim que suas suposições forem tornadas explícitas, terá de admitir que não
seguem das suas suposições.

Há duas consequências importantes que seguem disso e que podem aqui ser
expostas apenas brevemente. A primeira é que as teorias das ciências sociais não
consistem em “leis” no sentido de regras empíricas sobre o comportamento de
objetos definíveis em termos físicos. Tudo o que a teoria das ciências sociais
tenta é proporcionar uma técnica de raciocínio que nos ajuda a conectar fatos
individuais, mas que, assim como a lógica ou a matemática, não trata dos fatos.
Ela nunca pode, portanto, e esse é o segundo ponto, ser verificada ou falsificada
por referência aos fatos. Tudo o que podemos e devemos verificar é a presença
de nossos pressupostos no caso particular. Já nos referimos aos problemas e
dificuldades especiais que isso suscita. Nesse contexto, uma genuína “questão de
fato” surge embora seja uma que muitas vezes não poderá ser respondida com a
mesma certeza que no caso das ciências naturais. Mas a própria teoria, o esquema
mental para a interpretação, nunca pode ser “verificada”, mas apenas testada em
sua consistência. Pode ser irrelevante, porque as condições a que se refere nunca
ocorrem; ou pode revelar-se inadequada porque não leva em conta um número
suficiente de condições. Mas não pode ser mais refutada pelos fatos do que
podem a lógica ou a matemática.

Ainda resta, no entanto, a questão de saber se esse tipo de teoria “compositiva”,


como gosto de chamá-la, que “constitui” as “totalidades” sociais através da
construção de modelos a partir de elementos inteligíveis, é o único tipo de teoria
social, ou se não podemos também procurar generalizações empíricas sobre o
comportamento dessas totalidades enquanto totalidades, leis das mudanças de
línguas ou instituições - o tipo de leis que são o objetivo do “método histórico”.

Não vou me estender aqui sobre a curiosa contradição em que os defensores


desse método geralmente envolvem-se quando enfatizam que todos os
fenômenos históricos são únicos ou singulares e, em seguida, procedem para
afirmação de que seu estudo pode chegar a generalizações. O ponto que desejo
frisar é que se, da infinita variedade de fenômenos que podemos encontrar em
qualquer situação concreta, só podem ser considerados como parte de um objeto
apenas aqueles que conseguimos conectar por meio de modelos mentais, o objeto
não pode possuir atributos que estejam além daqueles que podem ser derivados
do nosso modelo. Evidentemente, podemos continuar a construir modelos que se
encaixem cada vez mais às situações concretas - conceitos de estados ou línguas
que possuam uma conotação ainda mais rica. Mas, como membros de uma
classe, como unidades semelhantes sobre as quais podemos fazer generalizações,
esses modelos nunca podem possuir nenhuma propriedade que não for dada a
eles ou que não derive dedutivamente a partir dos pressupostos sobre os quais os
construímos. A experiência nunca pode nos ensinar que qualquer tipo específico
de estrutura possui propriedades que não seguem a partir da definição (ou da
maneira que nós a construímos). A razão para isso é simplesmente que essas
totalidades ou estruturas sociais nunca nos são dadas como unidades naturais,
não são objetos definidos dados à observação, que nunca lidamos com a
totalidade da realidade, mas sempre apenas com uma seleção feita com a ajuda
dos nossos modelos.4

Eu não tenho espaço para discutir de forma mais completa a natureza dos “fatos
históricos” ou dos objetos da história, mas gostaria brevemente de me referir a
uma questão que, embora não estritamente pertinente ao meu assunto, ainda não
é completamente irrelevante. É a doutrina muito em moda do “relativismo
histórico”, a crença de que diferentes gerações ou épocas devem necessariamente
ter opiniões diferentes sobre os mesmos fatos históricos. Parece-me que essa
doutrina é o resultado da mesma ilusão de que os fatos históricos são
definitivamente dados a nós e não o resultado de uma seleção deliberada daquilo
que consideramos como um conjunto conectado de eventos relevantes para a
resposta de uma determinada pergunta - uma ilusão que me parece ser devido à
crença de que podemos definir um fato histórico em termos físicos através de
suas coordenadas espaço-temporais. Mas uma coisa bem definida, digamos, a
“Alemanha entre 1618 e 1648”, não é apenas um objeto histórico. Dentro do
contínuo de espaço-tempo assim definido, podemos encontrar qualquer número
de fenômenos sociais interessantes que para o historiador podem ser objetos
completamente diferentes: a história da família X, o desenvolvimento da
impressão, a mudança das instituições jurídicas, etc., que podem ou não estar
ligados, mas que não fazem mais parte de um fato social do que quaisquer outros
dois eventos da história humana. Esse período particular, ou qualquer outro
período, não é, como tal, nenhum “fato histórico” definido, nenhum objeto
histórico individual. De acordo com os nossos interesses, podemos levantar
qualquer número de perguntas diferentes referentes a esse período e,
consequentemente, teremos que dar respostas diferentes e construir modelos
diferentes de eventos conectados. E é isso que os historiadores fazem em tempos
diferentes, porque estão interessados - em questões diferentes. Mas como é
somente a questão que perguntamos que destaca, a partir da variedade infinita de
eventos sociais que podemos encontrar em qualquer momento e lugar dados, um
conjunto definido de eventos conectados que podem ser denominados como um
fato histórico, a experiência de que as pessoas dão respostas diferentes para
perguntas diferentes não prova, evidentemente, que têm opiniões diferentes sobre
o mesmo fato histórico. Não há nenhuma razão, por outro lado, pela qual
historiadores em tempos diferentes, mas possuindo a mesma informação, devam
responder à mesma questão de maneira diferente. Isso por si só, porém,
justificaria a tese de uma relatividade inevitável do conhecimento histórico.

Menciono isso porque esse relativismo histórico é um produto típico do assim


chamado “historicismo”, que é, de fato, um produto da má aplicação do viés
cientificista a fenômenos históricos - da crença de que os fenômenos sociais são
sempre dados a nós como os fatos da natureza nos são dados. Eles são acessíveis
para nós só porque podemos compreender o que outras pessoas nos dizem e só
podem ser compreendidos através da interpretação das intenções e planos de
outras pessoas. Eles não são fatos físicos, mas os elementos a partir dos quais os
reproduzimos são sempre categorias familiares de nossa própria mente. Onde não
podemos mais interpretar o que sabemos sobre outras pessoas através da analogia
de nossa própria mente, a história deixaria de ser história humana; ela teria,
então, de fato, que funcionar em termos puramente behavioristas, tais como a
história que poderíamos escrever sobre um formigueiro ou a
história que um observador de Marte poderia escrever sobre a raça humana.

Se essa descrição do que as ciências sociais estão realmente fazendo parece a


vocês como uma descrição de um mundo às avessas no qual tudo está no lugar
errado, peço que vocês se lembrem de que essas disciplinas lidam com um
mundo no qual da nossa posição necessariamente olhamos de uma maneira
diferente daquela que olhamos para o mundo da natureza. Para empregar uma
metáfora útil: enquanto no mundo da natureza olhamos pelo lado de fora,
olhamos para o mundo da sociedade a partir do interior; enquanto que, quando
lidamos com a natureza, os nossos conceitos são sobre os fatos e devem ser
adaptados aos fatos, no mundo da sociedade, pelo menos alguns dos conceitos
mais conhecidos são o material do qual esse mundo é feito. Assim como a
existência de uma estrutura comum de pensamento é a condição da possibilidade
da nossa comunicação uns com os outros, da sua compreensão do que digo, ela
também é a base sobre a qual todos interpretamos essas complicadas estruturas
sociais como as que encontramos na vida econômica ou no direito, na linguagem,
e nos costumes.

Notas
1. Cours, IV, 258.
2. Cf, e.g., LS Stebbing, A Modern Introduction to Logic (2d ed., 1933), p. 383.
3. Estou certo de que não preciso aqui especialmente proteger-me contra o mal-entendido de que o
que tenho a dizer sobre a relação entre história e teoria signifique, em qualquer sentido, a
diminuição da importância da história. Gostaria ainda de salientar que todo o propósito da teoria é
de ajudar a nossa compreensão dos fenômenos históricos e que o mais perfeito conhecimento da
teoria será de muito pouca utilidade, de fato, sem um conhecimento de um caráter histórico mais
amplo. Mas isso não tem realmente nada a ver com o meu assunto atual, que é a natureza dos “fatos
históricos” e os respectivos papeis que a história e a teoria possuem em sua discussão.
4. Aliás, não estou convencido de que esse último ponto realmente constitui uma diferença entre as
ciências sociais e naturais. Mas, se não a constitui, acho que são os cientistas naturais que estão
errados em acreditar que sempre lidam com a totalidade da realidade e não apenas com
determinados “aspectos” da mesma. Mas todo esse problema de se podemos falar, ou perceber, um
objeto que é indicado para nós de uma maneira puramente demonstrativa, e que nesse sentido é um
indivíduo que se distingue de uma “classe de unidades” (que é realmente concreta e não uma
abstração), levaria a muito além do meu presente assunto.

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