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Os Fatos Das Ciências Sociais - F. A. Hayek
Os Fatos Das Ciências Sociais - F. A. Hayek
1
Não existe hoje um termo comumente aceito para descrever o grupo de
disciplinas das quais trataremos nesse artigo. O termo “ciências morais”, no
sentido em que John Stuart Mill usava, cobria de forma aproximada o campo,
mas ele está há muito tempo fora de moda e agora carregaria conotações
inapropriadas para a maioria dos leitores. Embora seja, por essa razão, necessário
usar o familiar termo “ciências sociais” no título, devo começar enfatizando que
isso não significa que todas as disciplinas relacionadas com os fenômenos da
vida social apresentam os problemas específicos que discutiremos. Estatísticas
vitais, por exemplo, ou o estudo da propagação de doenças contagiosas, sem
dúvida lidam com os fenômenos sociais, mas não levantam nenhuma das
questões específicas a serem consideradas aqui. Eles são, se é que posso chamá-
los assim, verdadeiras ciências naturais da sociedade e não diferem em nenhum
aspecto importante das outras ciências naturais. São diferentes, no entanto, o
estudo da linguagem ou do mercado, da lei e da maioria das outras instituições
humanas. É apenas esse grupo de disciplinas que me proponho a considerar e
para as quais sou obrigado a usar o termo um tanto enganador de “ciências
sociais”.
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Mas basta de introdução. Deixe-me mergulhar diretamente no meio do meu
assunto e perguntar com que tipo de fatos temos de lidar nas ciências sociais.
Essa questão levanta de imediato outra que é em muitos aspectos crucial para o
meu problema: O que queremos dizer quando falamos de “certo tipo de fatos”?
Eles nos são dados como fatos de certo tipo, ou nós que os tornamos o que são ao
olhar para eles de certa maneira? Evidentemente, todo o nosso conhecimento do
mundo externo é de uma forma derivado da percepção dos sentidos e, portanto,
de nosso conhecimento dos fatos físicos. Mas isso significa que todo o nosso
conhecimento é apenas de fatos físicos? Isso depende do que queremos dizer
com “um tipo de fatos”.
Uma analogia com as ciências físicas tornará a posição mais clara. Todas as
alavancas ou pêndulos que podemos conceber têm propriedades químicas e
óticas. Mas, quando falamos de alavancas ou pêndulos, não falamos sobre fatos
químicos ou óticos. O que faz de uma série de fatos individuais de coisas do tipo
são os atributos que selecionamos, a fim de tratá-los como membros de uma
classe. Isto é, evidentemente, senso comum. Mas isso significa que, apesar de
todos os fenômenos sociais com os quais possivelmente podemos lidar terem
atributos físicos, eles não precisam ser fatos físicos para o nosso propósito. Isso
depende de como acharemos conveniente classificá-los para a discussão de
nossos problemas. As ações humanas que observamos, e os objetos dessas ações,
são coisas do mesmo tipo ou de diferentes tipos, por que aparecem como
fisicamente idênticos ou distintos para nós, os observadores - ou por causa de
algum outro motivo?
Que isso não seja mais óbvio se deve ao acidente histórico de que, no mundo em
que vivemos, o conhecimento da maioria das pessoas é aproximadamente
parecido com o nosso próprio conhecimento. Isso é destacado muito mais
fortemente quando pensamos em homens com um conhecimento diferente do
nosso, por exemplo, pessoas que acreditam em magia. É óbvio que um feitiço
que se acredita proteger a vida do seu portador, ou que um ritual destinado a
garantir boas colheitas, só pode ser definido em termos das crenças das pessoas
sobre eles. Mas o caráter lógico dos conceitos que temos que usar em tentativas
de interpretar as ações das pessoas é o mesmo quer nossas crenças coincidam
com as deles ou não. Se um medicamento é um medicamento, para o propósito
de compreender as ações de uma pessoa, depende apenas de a pessoa acreditar
que ele seja um, independentemente de nós, os observadores, concordarmos ou
não. Às vezes é um pouco difícil ter claramente em mente essa distinção. Nós
somos suscetíveis, por exemplo, a pensar na relação entre pai e filho como um
fato “objetivo”. Mas, quando usamos esse conceito no estudo da vida familiar, o
que é relevante não é que x seja a prole biológica de y, mas que um deles ou
ambos acreditem que esse seja o caso. O caráter relevante em questão não é
diferente do caso em que x e y acreditam que exista algum laço espiritual entre
eles, cuja existência nós não acreditamos. Talvez a distinção relevante torne-se
mais clara na asserção geral e óbvia de que nenhum conhecimento superior que o
observador possa dispor sobre o objeto, mas que não seja possuído pela pessoa
que age, pode nos ajudar a compreender os motivos de suas ações.
Os objetos da atividade humana, então, para os fins das ciências sociais são do
mesmo ou de diferentes tipos, ou pertencem à mesma ou a diferentes classes, não
de acordo com o que nós, os observadores, sabemos sobre os objetos, mas de
acordo com o que nós pensamos que a pessoa observada sabe sobre ele. Nós, de
alguma forma, e pelas razões que presentemente considerarei, imputamos
conhecimento na pessoa observada. Antes que prossiga perguntando em que
fundamento tal imputação de conhecimento sobre o objeto à pessoa agindo se
baseia, o que isso significa, e o que decorre do fato de que definimos os objetos
da ação humana de tal forma, devo me voltar um momento para considerar o
segundo tipo de elementos com os quais temos de lidar nas ciências sociais: não
o ambiente em que os seres humanos se comportam, mas a ação humana em si.
Quando examinamos a classificação de diferentes tipos de ações que devemos
usar quando discutimos o comportamento humano inteligível, deparamo-nos com
exatamente a mesma situação que nos deparamos quando analisamos a
classificação dos objetos das ações humanas. Dos exemplos que dei antes, os
últimos quatro encaixam-se nessa categoria: palavras, frases, comunicações e
atos de produção são ilustrações de ações humanas desse tipo. Agora, o que faz
com que sejam de um mesmo tipo duas instâncias de uma mesma palavra ou de
um mesmo ato de produção, no sentido que é relevante quando discutimos o
comportamento inteligível? Certamente não as propriedades físicas que têm em
comum. Não é porque explicitamente sei quais propriedades físicas do som da
palavra “sicômero”, pronunciada em momentos diferentes por pessoas diferentes
tem em comum, mas porque sei que x ou y intencionam usar todos esses sons ou
sinais diferentes para significar a mesma palavra, ou que todos entendem como a
mesma palavra, que os trato como instâncias da mesma classe. Não é por causa
de qualquer semelhança objetiva ou física, mas por causa da intenção (imputada)
da pessoa que age, que considero como instâncias de um mesmo ato de produção
as várias maneiras em que, em circunstâncias diferentes, possa fazer, digamos,
um eixo.
Por favor, note que nem com relação aos objetos da atividade humana, nem com
relação aos diferentes tipos de atividade humana argumento que suas
propriedades físicas não entrem no processo de classificação. O que estou
argumentando é que nenhuma propriedade física pode entrar na definição
explícita de nenhuma dessas classes, porque os elementos dessas classes não
precisam possuir atributos físicos comuns, e nós nem sequer consciente ou
explicitamente sabemos quais são as várias propriedades físicas das quais um
objeto teria de possuir pelo menos para ser um membro de uma classe. A
situação pode ser descrita esquematicamente, dizendo que sabemos que os
objetos a, b, c, …, que podem ser completamente diferentes fisicamente e os
quais nunca podemos enumerar exaustivamente, são objetos do mesmo tipo
porque a atitude de X em relação a todos eles é semelhante. Mas o fato de a
atitude de X em relação a eles ser semelhante pode novamente ser definida
apenas dizendo que ele irá reagir em relação a eles através das ações α, β, γ, …,
que novamente podem ser fisicamente diferentes e que não seremos capazes de
enumerar exaustivamente, mas que nós simplesmente sabemos que “significam”
a mesma coisa.
Esse resultado da reflexão sobre o que estamos realmente fazendo é, sem dúvida,
um pouco perturbador. No entanto, a mim não parece haver dúvida de que isso
não só é precisamente o que estamos fazendo, na vida comum, bem como nas
ciências sociais, quando falamos sobre ações inteligíveis de outras pessoas, mas
também que essa é a única maneira com que podemos alguma vez “entender” o
que as outras pessoas fazem; e que, portanto, devemos contar com esse tipo de
raciocínio sempre que discutimos o que todos conhecemos como atividades
especificamente humanas ou inteligíveis. Nós todos sabemos o que queremos
dizer quando dizemos que vemos uma pessoa “brincando” ou “trabalhando”, um
homem fazendo isso ou aquilo “deliberadamente”, ou quando dizemos que um
rosto parece “amigável” ou um homem “assustado”. Mas, embora possamos ser
capazes de explicar como reconhecer qualquer uma dessas coisas em um caso
particular, estou certo de que nenhum de nós pode enumerar, e nenhuma ciência
pode - pelo menos por enquanto - nos dizer todos os sintomas físicos diferentes
através dos quais nós reconhecemos a presença dessas coisas. Os atributos
comuns que os elementos de qualquer uma dessas classes possuem não são
atributos físicos, mas devem ser outra coisa.
Como podemos saber que uma pessoa possui certas crenças sobre o seu
ambiente? O que queremos dizer quando falamos que sabemos que ela possui
certas crenças - quando dizemos que sabemos que uma pessoa usa essa coisa
como uma ferramenta ou aquele gesto ou som como um meio de comunicação?
Queremos dizer meramente o que realmente observamos no caso particular, por
exemplo, que podemos vê-la mastigando e engolindo sua comida, batendo um
martelo, ou fazendo barulhos? Ou não será que sempre que dizemos que
“entendemos” a ação de uma pessoa, quando falamos sobre o “porquê” de ela
estar fazendo isso ou aquilo, imputamos a ela algo além do que podemos
observar ou, pelo menos, além do que podemos observar no caso particular?
A importância dessa distinção cresce na medida em que nos movemos para fora
dos ambientes familiares. Enquanto me movo entre minha própria variedade de
pessoas, é provável que das propriedades físicas de uma nota bancária ou das de
um revólver conclua que são dinheiro ou uma arma para a pessoa que os carrega.
Quando vejo um selvagem carregando conchas ou tubos longos e finos, as
propriedades físicas da coisa provavelmente não me dirão nada. Mas as
observações que me sugerem que as conchas são dinheiro para ele e o tubo uma
arma lançarão muita luz sobre o objeto - muito mais luz do que essas mesmas
observações poderiam dar se não estivesse familiarizado com o conceito de
dinheiro ou de uma arma. Ao reconhecer as coisas como tais, começo a entender
o comportamento das pessoas. Sou capaz de encaixá-lo em um esquema de ações
que “fazem sentido” só porque passei não a considerá-la como uma coisa com
certas propriedades físicas, mas como o tipo de coisa que se encaixa no padrão de
minha própria ação propositada.
3
Até agora, a discussão tem sido limitada à questão de como classificamos ações
individuais e seus objetos na discussão dos fenômenos sociais. Devo agora me
voltar à questão do propósito para o qual usamos essa classificação. Mesmo que
a preocupação com classificações ocupe uma grande quantidade de nossas
energias nas ciências sociais - tanto, de fato, que na economia, por exemplo, um
dos críticos modernos mais conhecidos da disciplina descreveu-a como uma
ciência puramente “taxonômica” - esse não é o nosso objetivo final. Como todas
as classificações, ela é apenas uma maneira conveniente de organizar os nossos
fatos para o que quer que queiramos explicar. Mas antes que possa me voltar para
isso, devo, em primeiro lugar, eliminar um equívoco comum de nosso caminho e,
em segundo lugar, explicar uma alegação frequentemente feita em defesa desse
processo de classificação - uma alegação que para qualquer pessoa que cresceu
nas ciências naturais soa altamente suspeita, mas que, entretanto, segue
meramente da natureza do nosso objeto.
Mas devo deixar o que chamei de primeira parte da minha tarefa e me voltar para
a questão do uso que fazemos dessas classificações elaboradas nas ciências
sociais. A resposta é, resumidamente, que usamos os diferentes tipos de
comportamento individual, assim classificados, como elementos a partir dos
quais construímos modelos hipotéticos, na tentativa de reproduzir os padrões de
relações sociais que conhecemos no mundo que nos rodeia. Mas isso ainda nos
deixa com a questão de saber se essa é a maneira correta de estudar os fenômenos
sociais. Não temos nessas estruturas sociais, afinal, definidos fatos sociais
tangíveis, os quais devemos observar e medir, assim como observamos e
medimos fatos físicos? Não deveríamos aqui, pelo menos derivar todo o nosso
conhecimento observando e experimentando, ao invés de “construir modelos” a
partir dos elementos encontrados no nosso próprio pensamento?
Creio que essa visão que considera os coletivos sociais, tais como a “sociedade”
ou o “estado”, ou qualquer instituição ou fenômeno social, como sendo em
qualquer sentido mais objetivo do que as ações inteligíveis dos indivíduos é pura
ilusão. Devo argumentar que o que chamamos de “fatos sociais” não são mais
fatos no sentido específico em que esse termo é utilizado nas ciências físicas do
que são as ações individuais ou os seus objetos; que esses assim chamados
“fatos” são, ao invés disso, precisamente o mesmo tipo de modelos mentais
construídos por nós a partir de elementos que encontramos em nossas próprias
mentes como os que construímos nas ciências sociais teóricas; de modo que o
que fazemos nessas ciências é, em um sentido lógico, exatamente a mesma coisa
que sempre fazemos quando falamos de um estado ou uma comunidade, uma
língua ou um mercado, e que só tornamos explícito o que na linguagem corrente
é oculto e vago.
Não posso tentar aqui explicar isso no contexto de uma disciplina social teórica
qualquer - ou, ao invés, no contexto da única entre elas na qual seria competente
para fazer isso, economia. Para fazer isso, teria que gastar muito mais tempo do
que tenho em tecnicalidades. Mas talvez seja ainda mais útil se tentar fazer isso
no contexto da preeminentemente descritiva e, em certo sentido, da disciplina
eminentemente empírica no campo social, a história. Considerar a natureza dos
“fatos históricos” será particularmente apropriado, já que os cientistas sociais são
constantemente aconselhados, por aqueles que querem tornar as ciências sociais
mais “científicas”, a recorrer à história em busca de seus fatos e a usar o “método
histórico” como um substituto para o experimental. De fato, fora das próprias
ciências sociais (e, ao que parece, especialmente entre os lógicos) 2 parece ter se
tornado quase uma doutrina aceita a de que o método histórico é o caminho
legítimo para generalizações sobre fenômenos sociais.3
O que queremos dizer por um “fato” da história? Os fatos com os quais a história
humana se interessa são significativos para nós como fatos físicos ou em algum
outro sentido? Que tipo de coisas são a Batalha de Waterloo, o governo francês
de Luís XIV, ou o sistema feudal? Talvez chegaremos mais longe se, ao invés de
se abordar essa questão diretamente, perguntemo-nos como decidimos se
qualquer pedaço particular de informação que temos faz parte do “fato” “Batalha
de Waterloo”. O homem que estava arando o seu campo um pouco além da
extremidade do flanco dos guardas de Napoleão era parte da Batalha de
Waterloo? Ou o cavaleiro que derrubou sua caixa de rapé ao ouvir a notícia da
tomada da Bastilha era parte da Revolução Francesa? Considerar cuidadosamente
esse tipo de pergunta mostra pelo menos uma coisa: que não podemos definir um
fato histórico em termos de coordenadas espaço-temporais. Também que nem
tudo o que ocorre em um tempo e em um mesmo lugar faz parte do mesmo fato
histórico, e que todas as partes do mesmo fato histórico não precisam pertencer
ao mesmo tempo e lugar. A língua grega clássica ou a organização das legiões
romanas, o comércio do mar Báltico no século XVIII ou a evolução da common
law, ou qualquer movimento de qualquer exército - todos esses são fatos
históricos, nos quais nenhum critério físico pode nos dizer quais são as partes do
fato e como se ligam. Qualquer tentativa de defini-los deve tomar a forma de
uma reconstrução mental, de um modelo, na qual atitudes individuais inteligíveis
constituam os elementos. Na maioria dos casos, sem dúvida, o modelo será tão
simples que a interligação de suas partes é facilmente visível; e haverá,
consequentemente, pouca justificativa para dignificar o modelo com o nome de
“teoria”. Mas, se o nosso fato histórico é tão complexo como uma língua ou um
mercado, um sistema social ou um método de cultivo da terra, o que chamamos
de um fato ou é um processo recorrente ou um padrão complexo de relações
persistentes que não é “dado” a nossa observação, mas que só podemos
reconstruir laboriosamente - e que podemos reconstruir apenas porque as partes
(as relações a partir das quais construímos a estrutura) são familiares e
inteligíveis para nós. Dizendo paradoxalmente, o que chamamos de fatos
históricos são na verdade teorias que, em um sentido metodológico, são de
caráter precisamente idêntico ao dos modelos mais abstratos ou gerais, os quais
as ciências teóricas da sociedade constroem. A situação não é que, primeiro,
estudamos os “dados” fatos históricos e, em seguida, talvez possamos generalizar
a respeito deles. Ao invés disso, usamos uma teoria quando selecionamos, a
partir do conhecimento que temos sobre um período, certas partes como sendo
inteligivelmente conectadas e constituindo parte do mesmo fato histórico. Nós
nunca observamos estados ou governos, batalhas ou atividades comerciais, ou
um povo como um todo. Quando usamos qualquer um desses termos, sempre nos
referimos a um esquema que conecta atividades individuais através de relações
inteligíveis; isto é, usamos uma teoria que nos diz o que faz e o que não faz parte
de nosso assunto. A posição não se altera pelo fato de que a teorização ser
geralmente feita para nós por nosso informante ou fonte que, ao relatar o fato, irá
usar termos como “estado” ou “cidade” os quais não podem ser definidos em
termos físicos, mas que se referem a um complexo de relações que, tornadas
explícitas, constituem uma “teoria” sobre o assunto.
Há duas consequências importantes que seguem disso e que podem aqui ser
expostas apenas brevemente. A primeira é que as teorias das ciências sociais não
consistem em “leis” no sentido de regras empíricas sobre o comportamento de
objetos definíveis em termos físicos. Tudo o que a teoria das ciências sociais
tenta é proporcionar uma técnica de raciocínio que nos ajuda a conectar fatos
individuais, mas que, assim como a lógica ou a matemática, não trata dos fatos.
Ela nunca pode, portanto, e esse é o segundo ponto, ser verificada ou falsificada
por referência aos fatos. Tudo o que podemos e devemos verificar é a presença
de nossos pressupostos no caso particular. Já nos referimos aos problemas e
dificuldades especiais que isso suscita. Nesse contexto, uma genuína “questão de
fato” surge embora seja uma que muitas vezes não poderá ser respondida com a
mesma certeza que no caso das ciências naturais. Mas a própria teoria, o esquema
mental para a interpretação, nunca pode ser “verificada”, mas apenas testada em
sua consistência. Pode ser irrelevante, porque as condições a que se refere nunca
ocorrem; ou pode revelar-se inadequada porque não leva em conta um número
suficiente de condições. Mas não pode ser mais refutada pelos fatos do que
podem a lógica ou a matemática.
Eu não tenho espaço para discutir de forma mais completa a natureza dos “fatos
históricos” ou dos objetos da história, mas gostaria brevemente de me referir a
uma questão que, embora não estritamente pertinente ao meu assunto, ainda não
é completamente irrelevante. É a doutrina muito em moda do “relativismo
histórico”, a crença de que diferentes gerações ou épocas devem necessariamente
ter opiniões diferentes sobre os mesmos fatos históricos. Parece-me que essa
doutrina é o resultado da mesma ilusão de que os fatos históricos são
definitivamente dados a nós e não o resultado de uma seleção deliberada daquilo
que consideramos como um conjunto conectado de eventos relevantes para a
resposta de uma determinada pergunta - uma ilusão que me parece ser devido à
crença de que podemos definir um fato histórico em termos físicos através de
suas coordenadas espaço-temporais. Mas uma coisa bem definida, digamos, a
“Alemanha entre 1618 e 1648”, não é apenas um objeto histórico. Dentro do
contínuo de espaço-tempo assim definido, podemos encontrar qualquer número
de fenômenos sociais interessantes que para o historiador podem ser objetos
completamente diferentes: a história da família X, o desenvolvimento da
impressão, a mudança das instituições jurídicas, etc., que podem ou não estar
ligados, mas que não fazem mais parte de um fato social do que quaisquer outros
dois eventos da história humana. Esse período particular, ou qualquer outro
período, não é, como tal, nenhum “fato histórico” definido, nenhum objeto
histórico individual. De acordo com os nossos interesses, podemos levantar
qualquer número de perguntas diferentes referentes a esse período e,
consequentemente, teremos que dar respostas diferentes e construir modelos
diferentes de eventos conectados. E é isso que os historiadores fazem em tempos
diferentes, porque estão interessados - em questões diferentes. Mas como é
somente a questão que perguntamos que destaca, a partir da variedade infinita de
eventos sociais que podemos encontrar em qualquer momento e lugar dados, um
conjunto definido de eventos conectados que podem ser denominados como um
fato histórico, a experiência de que as pessoas dão respostas diferentes para
perguntas diferentes não prova, evidentemente, que têm opiniões diferentes sobre
o mesmo fato histórico. Não há nenhuma razão, por outro lado, pela qual
historiadores em tempos diferentes, mas possuindo a mesma informação, devam
responder à mesma questão de maneira diferente. Isso por si só, porém,
justificaria a tese de uma relatividade inevitável do conhecimento histórico.
Notas
1. Cours, IV, 258.
2. Cf, e.g., LS Stebbing, A Modern Introduction to Logic (2d ed., 1933), p. 383.
3. Estou certo de que não preciso aqui especialmente proteger-me contra o mal-entendido de que o
que tenho a dizer sobre a relação entre história e teoria signifique, em qualquer sentido, a
diminuição da importância da história. Gostaria ainda de salientar que todo o propósito da teoria é
de ajudar a nossa compreensão dos fenômenos históricos e que o mais perfeito conhecimento da
teoria será de muito pouca utilidade, de fato, sem um conhecimento de um caráter histórico mais
amplo. Mas isso não tem realmente nada a ver com o meu assunto atual, que é a natureza dos “fatos
históricos” e os respectivos papeis que a história e a teoria possuem em sua discussão.
4. Aliás, não estou convencido de que esse último ponto realmente constitui uma diferença entre as
ciências sociais e naturais. Mas, se não a constitui, acho que são os cientistas naturais que estão
errados em acreditar que sempre lidam com a totalidade da realidade e não apenas com
determinados “aspectos” da mesma. Mas todo esse problema de se podemos falar, ou perceber, um
objeto que é indicado para nós de uma maneira puramente demonstrativa, e que nesse sentido é um
indivíduo que se distingue de uma “classe de unidades” (que é realmente concreta e não uma
abstração), levaria a muito além do meu presente assunto.