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DEPARTAMENTO DIE MATEMÁTICA APLICADA

Relatório Técnico

RT-MAP-0502

UM POEºíA, UM MATEMATICO E UM
FISICO: TF~~S ENSAIOS BIOGRAFICOS
POR HENRI POINCARÉ

Jorge Sotomayor

Série: Prl,-Publicaçõea do MAP - 01 /2006

JUNHO, 2006

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


INSTITUTO DE MATEMÁTICA E ESTATISTICA
SAO PAULO - BRASIL
Welerstrass(1815-1897)

Prudhomme(1839-1907)

Kelvin(1824-1927)

Poincaré (1854-1912)

UM POETA, UM MATEMÃTICO E UM FÍSICO:


TRÊS ENSAIOS BIOGRÁFICOS POR HENRI POINCARÉ

TRADUÇÃO, NOTAS E COMENTÁRIOS DE JORGE SOTOMAYOR


Apresentação pelo Tradutor 1
O leitor encontrará nestas páginas a tradução livre da Introdução e de
uma seleção de três, dos dezesseis ensaios biográficos que compõem Sa-
vants et Écrivains, livro de autoria do renomado matemático francês
Henri Poincaré (1857-1912), publicado por Flammarion em 1910. Estão
ausentes aqui os ensaios intitulados:
"Gréard, escritor", "Curie e Brouardel", "Laguerre", "Hermite", "Cornu",
"Halphen", "Tisserand", "Bertrand", "Berthelot", "Faye", "Potier", "Lre-
wy" e "Os Politécnicos".
Acreditamos que os três ensaios biográficos, os de Sully Prudhomme,
Karl Weierstrass e Lorde Kelvin -eminentes entre os eminentes- cons-
tituem uma amostra representativa da extensa e singular obra, cuja In-
trodução tão bem a define, dispensando qualquer adendo.
As abundantes notas de rodapé fornecem uma informação inicial sobre
personagens e fatos que podem não ser familiares ao leitor atual.
A seção Comentários do Tradutor visa a dar ao presente trabalho uma
perspectiva mais ampla.
Registramos os nossos agradecimentos a Robert Roussarie e Remi Lan-
gevin pela valiosa ajuda prestada na tradução de partes difíceis do texto
em Francês.
Somos gratos também a Marilda Sotomayor, Eduardo Colli, Mariana
S. Vega Garcia, Marco A. Teixeira, Ronaldo A. Garcia, Luis F. de Osório
Mello, Tiago P. da Silva e Rose Mary Parris, pela colaboração na revisão
do texto em Português.

1
0 autor é bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq; também participa do projeto
CNPq/PADCT 620029/2004-8.

2
Conteúdo
1 Introdução: Os Cientistas 4

2 Sully Prudhomme 11

3 Karl Weierstrass 43

4 Lorde Kelvin 64

5 Comentários do Tradutor 81

3
1 Intro duçã o: Os Cien tista s
2Este volume reúne várias biografias de cientistas eminentes. Embo ra
as suas carreiras não esteja m replet as de avent uras retum bante s, a vida
dos trabal hador es da Ciência assim como a dos pensa dores merece ser
conhecida. Eles també m comb ateram , e mesmo que os seus comb ates te-
nham sido quase sempre silenciosos, estes exigiram qualid ades incomuns
daqueles que neles lutara m. O estudo de seus espíritos, de tendê ncias
tão diversas, e mesmo o de seus caracteres, não pode ser desprovido de
interesse. Foi isto o que me encorajou a reprod uzir aqui algum as das no-
tas que tive a oportu nidad e de escrever, nas mais diversas circun stânci as,
sobre vários acadêmicos insignes que conheci 3 . Tomei cuida do somen te
de, na medid a do possível, suprim ir tudo o que fosse de caráte r excessi-
vamente técnico e que pudesse fatiga r a maior ia dos leitores 4 .
Tratan do-se de árdua e espinhosa incumbência, dei-me conta de que
não poder ia desempenhá-la até o ápice da perfeição. A maior parte destes
artigos são notas necrológicas; outros foram escritos por ocasião festiva ou
comemorativa. Desta forma, a parte do elogio superou fartam ente aquel a
da crítica. Não somente porqu e a poétic a do gênero assim o exigia, mas
també m porqu e no momento em que se perde um colega, um colab orado r
ou um amigo, lembramo-nos mais de suas qualidades mais nobres do que
de seus defeitos.
Diant e de tantos elogios compilados, não seria o caso de desem baraç ar-
nos do tédio, o qual, se acred itamo s num verso famoso, é gerad o pela uni-
formidade5? E, o que seria ainda mais lamentável, não iria a necessidade
de elogiar nos forçar, às vezes, a sacrificar um pouco da verdade, e senão
2
0 subtítul o da Introduç ão é acrescen tado aqui pelo Traduto r por conside
rá-lo um complem ento
pertinente. (N.T.)
3
Nas primeiras notas de rodapé de cada seção encontra m-se as referências onde
foram publicad os os
artigos originais com os ensaios biográficos traduzid os neste livro. (N.T.)
4
Ver a este respeito a primeira nota de rodapé na seção 3. (N .T .)
6
Refere-se a verso do escritor e drama.turgo francês Antoine Houdar de la Motte
(1672-1731) . (N.T.)

4
a alterá-la, ao menos a calá-la? Pois bem, este não é o caso: relendo
estas páginas, algumas das quais já são antigas, parece-me que não teria
nada a suprimir, nada a mudar e muito pouco a acrescentar. O estilo,
por si só, ganharia se fosse um pouco mais variado; não é suficiente dizer
sempre a verdade, o leitor preferiria que não a dissesse sempre da mesma
maneira. Mas, se ele se der ao trabalho de observar um pouco mais de
perto, ele verá que esta rnonotonia é só aparente e que estes homens,
todos dignos de admiração, eram bem diferentes uns dos outros, e que
o elogio conveniente a um deles não seria apropriado ao outro. Poderá
mesmo adivinhar de que n1aneira alguém mal humorado teria dito esta
mesma verdade, que eu exprimi de forma diferente, e ouso então esperar
que ele preferirá a minha.
Quer dizer que os homens de ciência não têm defeitos? Não acredite
nisso. Mesmo neste prefácio terei a ocasião de apontar alguns, mas ficarei
nas generalidades. Os homens de ciência, considerados corporativamente,
não irão se zangar, embora possam ficar chocados de vê-los aplicados a
algum de seus colegas falecidos.
Nestes homens, tão diferentes sob tantos pontos de vista, encontra-
remos muitos traços comuns. Todos eles, é claro, foram trabalhadores
diligentes; por melhor dota.dos que sejamos, não será possível fazer nada
de grandioso sem trabalho; mesmo aqueles que receberam do céu a cen-
telha sagrada do talento, não estão mais excetuados do trabalho do que
os outros; sua genialidade exigirá cada vez mais deles próprios. Mas há
muitas maneiras de trabalhar; há aqueles para os quais a vida inteira
é uma longa e paciente caminhada que, inexoravelmente, avança a cada
dia um passo; há outros que, ao contrário, deixando-se levar pelo ardor,
obstinam-se em assaltos furiosos contra os obstáculos, em vez de esperar
que o tempo e a perseverança acabem por desgastá-los. Uns se dedicam ao
trabalho como a um dever, não direi um dever penoso, mas simplesmente
um dever. Imaginam haver recebido um chamado ao qual não podem

5
faltar. Para outros o trabalho é acima de tudo uma necessidade, um pra-
zer, eles gostam de sua obra como um artista gosta da sua criação. São
os seus tempera mentos distintos que explicam as suas divergências, e a
diferença de seus caracteres contribui assim para consolidar a diversidade
de seus espíritos.
Por outro lado, todos são verdadeiros apaixonados; sua paixão, que
consiste no amor à verdade e à ciência, é geralme nte muda, mas nem por
isso é menos ardente . Conseqüentemente, todos, num certo sentido, são
homens de fé; pois toda paixão supõe uma fé, todo móbil para a ação
é uma fé; é a fé por si só que dá a perseverança, que dá a coragem.
Entreta nto, não se é um homem de ciência eminen te se não se é dotado
de espírito crítico, o que parece excluir toda espécie de fé e que, amiúde,
faz os homens de ciência parecerem céticos. Como explicar isto? Quando
a fé focaliza um objeto preciso ela é avessa à crítica, a rejeita e com ela
se irrita, mesmo que tenha professado nada temer. Mas não é o mesmo
quando a fé tem como objeto um ideal vago e indeterm inado, esta fé
sim combina bem com o espírito crítico; ela é um estímulo que nos impele
sem cessar para frente, mas que não nos impede de, em cada encruzi lhada,
examin ar livremente o caminho a seguir.
A fé do homem de ciência não é portant o a mesma do cristão; mais
ainda, a fé religiosa tem mais de uma faceta. Há dois tipos de necessidades
religiosas, a necessidade de certeza e a do amor místico. É raro que
ambas se encontr em juntas na mesma alma. O primeir o tipo produz os
ortodoxos, enquan to o segundo dá lugar aos heréticos. A fé do homem
de ciência não se assemelha à que os ortodox os buscam na necessidade de
certeza. Não é preciso acredita r que o amor à verdade se confunde com
aquele devotado à certeza; longe disso, em nosso mundo relativo toda
certeza é uma mentira . Não, a fé do homem de ciência se assemel haria
melhor à fé inquieta do herético, àquela que busca incessan temente e
jamais é satisfeita. Ela é mais calma e, num certo sentido, mais sã; mas,

6
como a primeira, ela nos faz entrever um ideal do qual só podemos ter
uma vaga noção; e ela nos dá a confiança de que os esforços investidos na
aproximação daquilo que é inatingível não serão em vão.
Os homens dos quais vou falar são quase todos físicos, astrônomos ou
matemáticos 6 ; por cultivar ciências vizinhas, pareceria que as tendências
de seus espíritos deviam ser aproximadamente as mesmas. Nada disso.
Ao lado dos trabalhadores devotados, confiantes na paciente análise, en-
contraremos os intuitivos que se apóiam numa forma de predição, da
qual nem sempre terão que retratar-se. Alguns matemáticos só gostam
de apreciar os grandes panoramas; na presença de um resultado, sonham
imediatamente em generalizá-lo, procurando cercá-lo de resultados com
ele relacionados, como para construir a base de uma pirâmide mais alta,
de cujo topo possam enxergar mais longe. Há outros que rejeitam estas
visões demasiado amplas pois, por mais bela que seja uma vasta paisa-
gem, os horizontes longínquos são sempre um pouco vagos; eles preferem
restringir-se para apreciar melhor os detalhes e levá-los à perfeição; eles
trabalham como o lapidador; são mais artesãos do que poetas.
Acrescentarei ainda que todos os verdadeiros homens de ciência são
modestos; por favor não sorriais, há certamente níveis a serem levados em
conta; mas o mais orgulhoso dos membros do Instituto 7 será sem dúvida
mais modesto do que a maior parte dos políticos de segunda categoria e do
que os deputados iniciantes, para os quais a modéstia seria um empecilho
terrível, que deteria rapidamente suas carreiras. Quando nos devotamos
a um ideal algo elevado, não podemos sentir-nos senão pequenos.
Seria embaraçoso que esta modéstia gerasse a desconfiança em si pró-
prio, a qual seria um obstáculo a todo projeto de fôlego. Felizmente
mesmo os cientistas mais inseguros de suas forças confiam em seus mé-
todos; a maior parte deles se dá conta do que podem esperar de suas
6
Ver a Apresentação pelo Tradutor. (N .T.)
7
Na França, l'Jnstitut engloba as Academias de Ciências, Letras, Belas Artes e Ciências Morais e
Políticas. (N. T.)

7
próprias faculdades, e se não sonham em vestir uma roupagem com a
qual procurem vangloriar-se, eles as amam como um instrume nto útil.
Daí essa bondade notória na maior parte dos cientistas; eles são recep-
tivos porque não procuram exibir sua superioridade, mesmo porque a vaga
consciência que dela têm sustenta uma boa disposição permanen te. São
otimistas pois sua paixão lhes proporciona alegrias freqüentes, poupando -
os das penas; eles nunca desesperam por não encontra r sempre a verdade;
e se consolam facilmente por ter sempre o prazer de buscá-la.
Apontemos um outro traço dos cientistas: a maior parte deles perma-
neceu jovem de coração. Pode ser que não tenham sido tão jovens quanto
outros, mas o foram por um tempo mais longo. Chevreul8 , sendo já cen-
tenário, conservava-se ainda jovem. E mesmo o candor, que em alguns
salta à vista, é uma mostra de juventud e. Não resta dúvida que os pesares
só envelhecem e que, como acabamos de ver, a paixão nos cientistas gera
apenas contentam ento e mão dores.
O desinteresse material é também uma virtude comum aos cientistas;
o apetite pelo dinheiro é entre eles quase sempre desconhecido. Aqueles
que entre nós passam por interessados o são só por contraste ; em outro
ambiente teriam certamen te uma outra reputação .
Mas há outros desinteresses além do dinheiro, e aqui convém fazer-se
uma distinção, discernindo graus. Há homens que buscam ter influência
e outros que a desdenham; os primeiros têm a escusa de não desejá-la
para eles mesmos, mas para as suas idéias, considerando que o mundo
científico precisa de administ radores devotados aos seus interesses tem-
porais. Minhas preferências, entretant o, vão para os outros, os quais
nenhuma preocupação externa vem distraí-los de seu sonho de trabalho
dedicado.
Deveriam os homens de ciência ser também indiferentes à glória; quando
se teve a felicidade de fazer uma descober ta, o que poderia ter sido asa-
8Eugene Chevreul (1786-1889), quínúco francês. (N.T.)

8
tisfação de lhe dar o seu nome, junto com a alegria de haver contemplado
por um instante a verdade face a face? E não se deveria dizer que o
mundo é igualmente agradecido ao inventor da roda ou do fogo, sendo
anônimo ou se se soubesse o seu nome? Devo acrescentar que nem todo
o mundo pensa assim, ou pelo menos não age como se assim pensasse.
Entretanto, conheci hornens de ciência que pouco se incomodavam com
a glória e a estes me referirei depois; eles se rejubilavam de suas con-
quistas, não como um triunfo pessoal, mas como uma forma de sucesso
coletivo do exército pelo qual combateram. Neste exército, sem dúvida,
muitos soldados valentes perderam a vida sem deixar os seus nomes re-
gistrados, depois de haverem ajudado à vitória comum.
O que, em primeiro lugar, permite avaliar os homens de ciência con-
solidados é a forma como eles acolhem os jovens. Consideram-nos como
rivais futuros, que venham talvez eclipsá-los perante a memória da hu-
manidade? Não lhes mostraram apenas uma benevolência provisória, que
se colocará em guarda, ou logo se irritará, perante os sucessos rápidos e
demasiado explosivos? Ou bem, ao contrário, os vêem como futuros com-
panheiros de armas, aos quais, ao retirar-se da luta, passarão a missão,
considerando-os como colaboradores que prosseguirão a grande obra em-
preendida, destinada de antemão a nunca ser concluída?
Aceitarão mesmo que estes jovens os contradigam, ainda que timida-
mente? Ah, essa mania de sempre estar com a razão! São observadores,
os que sabem deduzir uma lei a partir dos fatos; eles já perceberam que
todo mundo já se enganou, que os maiores homens de ciência já estiveram
convencidos de erros múltiplos e não foram menos veneráveis, e eles não
queriam concluir que estão sujeitos a erros!
Acreditei poder encabe~;ar estes ensaios biográficos com o discurso que
proferi por ocasião de minha admissão na Academia Francesa9 , na qual
fiz um elogio a Sully Prudhomme 10 , e com aquele em que falei dos escritos
9
A Academia Francesa é constituída por 40 membros, foi fundada por Richelieu em 1635. (N.T.)
10
Sully Prudhomme (1839- 1907), Premio Nobel de Literatura, 1901. Poincaré foi eleito em 1908 para

9
de Gréard 11 • Sem dúvida, Sully Prudhomm e teria aceitado figurar neste
grupo; esse delicado poeta amava a ciência e amava também os cientistas,
de quem certas qualidades da alma o aproximavam; elas eram nele mais
ricas e, por assim dizer, perfumadas de sensibilidade; porém elas podiam
ajudá-lo a entender o que às vezes há de poesia escondida no labor, tão
árido em aparência, do trabalhador da ciência.

ocupar a sua cadeira vacante. (N.T.)


11
Ücta~,e Gréard, (1824 - 1904), educador e escritor francês. Fundou os primeiros liceus para moças,
autor de A educação das mulheres pelas mulheres". (N.T.)

10
2 Sully Prudhom me
12
Ao falar de Sully Prudhomm e, não é pelo poeta nem pelo filósofo que
começarei, mas pelo homem, pois este nos ajudará a compreender tanto a
um quanto ao outro. Para conhecer este homem, além do testemunho de
seus amigos e daquilo que todo poeta coloca de sua alma em seus versos,
possuímos um caderno com seus pensamento s íntimos, escritos para si
mesmo à idade de dezoito anos, os quais ele não desvendou ao público 13 .
E o que lemos nessa coletânea de pensamento s?
"Não se é feliz pelo que se é mas pelo que se sente; mas se é grande pelo
que se pensa, e não pela felicidade que se experimenta. Vale mais ser feliz
do que ser grande? ... Oh! Servi-vos de alegrias mas não de infortúnios.
Quanto o homem feliz é inferior àquele que sabe sofrer! Aspiramos à
honra de sofrer intensamente, assim como o soldado aspira à ferida que
lhe decora o peito".
Esta profissão de fé feita na juventude, a sua vida não desmentiu; este
mesmo sentimento, sempre em vigília, inspirou discretamente os mínimos
atos de seu cotidiano.
Qual seria a origem de tal sede de sacrifício? Em Sully Prudhomm e
se encontrava m reunidas duas faculdades que de ordinário se excluem
mutuament e: uma sensibilidade sutil e delicada, junto de uma poderosa
capacidade de reflexão, tenaz e perspicaz. Isoladas, cada uma delas teria
achado seu equilíbrio. A reflexão o teria feito um burguês satisfeito; a
sensibilidade cega teria adormecido, pois o teria afastado do objeto que o
feria. A sensibilidade clarividente não conhece o repouso. Ela, em cons-
tante busca, multiplica as ocasiões para o sofrimento. Daí os escrúpulos
em incessante renovação; a consciência que se questiona, nunca acredi-
12
Discurso pronunciado por ocasião da admissão de H. Poincaré na Academia Francesa, em 28 de
janeiro de 1909. Foi publicado originalmente sob o título Sur la vie et l'reuvre poétique et philosofique
de Sully Prudhomme, Mémoires de l'Institut, 1909, 3-37. (N.T.)
13
Diário Intimo e Pensamentos, Ed. Ópera Mundi, R.J ., 1993. Parece que este é o único livro do
poeta traduzido ao Português. (N.T.)

11
tando ter realizado o suficiente, só contentando-se com o desempenho das
ações mais difíceis.
Mas, não nos enganemos; não se tratava do ascetismo do cristão, pois
ele tentava evitar cair, e não expiar uma queda original. Por outro lado,
estava sempre prestes a impor-se as tarefas mais difíceis; mas, demasiado
ávido por sentir e por conhecer, demasiado agradecido à natureza por sua
beleza, não cogitava em rejeitar as dádivas que ela nos oferece. É isto o
que nos explica o fragmento tão curioso que começa pelo verso:

Tenho duas tentações, igualmente fortes:


A maciez da rosa e a crina do cilício 14 .
{J'ai deux tentations, fortes égalment:
Le duvet de la rase et le crin du cilice.)

Os homens demasiado escrupulosos têm inúmeros motivos para o so-


frimento, sendo pouco aparelhados para a ação. É difícil andar quando
se tem medo de esmagar urna pulga. Entretanto, eles aspiram à ação
porque, acreditam, abster-se é quase que desertar.

Meu orgulhoso desespero não será


uma excusa para nunca agir.
E o traidor, no fundo de meu ser, terá
um pretexto para nunca rugir.
(Mon fier désespoir n'est peut-être
Qu 'une excuse à ne point agir.
Et comme, au f ond, je me sens traítre,
Un prétexte à n'en point rugir.)

Sully Prudhomme tomava tudo com a maior seriedade: tanto os seus


deveres escolares, quando criança, como, mais tarde, os seus deveres de
acadêmico. Que angústia não representava cada julgamento a dar, seja
14
Veste ou faixa de crina ou de pano grosseiro e áspero usado sobre a pele por penitência. (N.T.)

12
nos concursos, seja no Conselho da Ordem da Legião de Honor. Ele des-
perdiçava seu valioso tempo em responder cartas inúteis, ou em ler todos
os manuscritos que lhe enviavam. Tinha escrúpulos para desvencilhar-se
dos impertinentes que pediam-lhe conselhos, esperando elogios. Que com-
bate entre o medo de ferir e aquele de mentir! Saía-se habilmente com a
ilusão de haver tudo concilliado com delicadeza por meio da formalidade.
Delicadeza, ele tinha bastante. Defendia-se de ser cáustico, e entre-
tanto dispunha de um espfrito natural e alegre, que fazia pensar naquele
de certos santos cristãos, e que dava no trato a seus amigos seu aspecto
ainda mais suave.
Este conflito entre suas duas naturezas explica bem os seus traços. Era
o mais generoso dos homens, mas, na sua generosidade, ele não abando-
nava sua natureza, dissimulando-a até tudo ponderar, como um juiz; não
se desgastava fazendo reverências ou promessas, e ao primeiro contato
podia parecer frio.
Em que consistia então essa simpatia inquieta que o unia aos homens
e às coisas, da qual ele tão bem falou?
Eu quis tudo amar, mas sou infeliz
Pois de meus tormenfos multipliquei as causas;
Incontáveis frágeis e dolorosos vínculos fiz
Ligando, no vasto unfoerso, minha alma às coisas.
{J'ai voulu tout aimer et je suis malheureux
Car j'ai de mes tourments multiplié les causes;
D 'innombrables liens frêles et douloureux
Dans l 'univers entier vont de mon âme aux choses.)
Não é somente o sofrimento quase físico o que desperta em nós o es-
petáculo da dor, é a revolta contra a injustiça o que, sobretudo, choca o
que de mais intelectual há em nossa sensibilidade.
Esta luta interior não era isenta de angústia; ele descreveu, nos seus
versos admiráveis, esse diálogo trágico entre o coração que diz: "Eu acre-

13
dito e eu espero", e a inteligência que responde "Prove-o". O combate
começou junto com o despertar de sua razão, pois foi com quinze anos
que ele escreveu:
"É bem infeliz o homem que nasceu ao mesmo tempo poeta e filósofo;
ele considera as duas faces de todas as coisas e chora sobre o nada daquilo
que admira. Ele lamenta também aquilo que não é mais que filosofia, pois
amiúde o é a expensas do coração, a fonte de nossas alegrias. Mas feliz
do poeta, se a ilusão não é o pior dos infortúnios".
Sully Prudhomm e não conheceu seu pai; poucos meses depois de seu
nascimento, sua mãe viu desvanecer-se a felicidade que havia longamente
esperado:
Ficamos unidos por poucos anos
Depois de longos amores.
(Nous fumes unis peu d'années
Apres de bien longues amours.)
As primeiras impressões do menino foram de luto, e suas marcas per-
duraram na sua alma:
Sorrateiram ente e sem que o percebamos
O negro desce dos olhos ao coração.
(Sourdemen t et sans qu 'on y pense
Le noir descend des yeux au coeur.)
Depois de enviuvar, e até sua morte, a mãe de Sully Prudhomm e morou
com uma irmã e um irmão maior. Esse tio deu apoio material e moral ao
jovem; embora pouco inclinado a compreend er suas aspirações poéticas,
era um homem correto de profundo e robusto bom senso, qualidades de
sua província lyonesa. Sem dúvida, é também a seus antepassado s lyo-
neses que Sully deve suas habilidades para a reflexão minuciosa. Quanto
à sua sensibilidade, ele acreditava tê-la adquirido de sua mãe; alma inge-
nuamente religiosa e secretamen te idealista:

14
Quando me amavas sem conhecer-me ainda,
Pálida e já minha mãe um pouco,
Uma nuvem talvez flutuasse,
Como uma ilha branca no céu azul.

Tu gritavas, asas, asas.


(Quand tu m 'amais sans me connaftre,
Pâle et déjà ma mere un peu,
Un nuage voguait peut-être
Comme une fle blanche au ciel bleu.

Tu crias, des ailes, des ailes.)

Aos oito anos ingressou num internato. Este exílio precoce deixou nele
lembranças cruéis. Todo mundo recorda o que ele disse destas "escolas
sombrias", e a propósito dos infortúnios do internato, os versos deliciosos
da Primeira Solidão (Premiere Solitude} cantam em todas as memórias.
Seu caráter começava a firmar-se. Ciente de seus deveres, era sensível à
menor reprimenda. Certo dia, na pensão de onde ia ao Liceu Bonaparte,
um dos seus mestres o repreendeu imerecidamente; sentido ele fugiu, cor-
rendo para os braços de sua mãe. A comoção do chefe da instituição não
foi menor. A colheita de louros que ele havia amealhado estaria compro-
metida? Com este pensamento, todas suas fibras saltaram: ele correu
para a casa do fugitivo, ignoramos a quais desculpas recorreu, mas os
interesses da casa foram preservados.
O menino sonhava dedicar-se a vingar a justiça ultrajada. Um de seus
camaradas havia sido agredido por um menino grande: "Você deve de-
volver os golpes que recebeu", disse-lhe Sully. No dia seguinte, tremendo,
mas resoluto, o pobre pequeno foi direto ao inimigo. Esperava, com ansi-
edade, as conseqüências de sua audácia, quando viu seu adversário afrou-

15
xar. Era Evirad nus 15 , quero dizer Sully, que aparec ia repen tinam ente em
campo. "Como ele gosta de mim, mas não foi por isso que ele agiu; foi
porqu e é o justo" , dizia seu camar ada.
Chegou a hora da bifurcação, pois nessa época nosso ensino secundário
não dispu nha ainda de quatro opções. Sully escolhe as Ciências. Isto
reperc ute negati vamen te entre a maior parte dos amigos da família, so-
bretud o num velho magis trado e delicado letrad o, que não pode evitar de
censurá-lo. Já havia dado mostr as de possuir talent o literário, havendo
escrito um primoroso prefácio em verso para uma comédia de salão; mas
acatou os conselhos de seu mestr e da pensão.
O estudo das ciências deixa no seu espírito uma marca profun da; não
somen te vê abrir novos horizontes, mas se torna cada vez mais incapaz de
conten tar-se com o semi-exato. Faz seus estudo s com seriedade e sucesso.
Poderemos, talvez, surpreender-nos em saber que ele deixou um volumoso
manu scrito sobre a filosofia da matem ática16 ; diríamos com veracidade
que, na medid a do possível, ele assim buscava justificar anteci padam ente
nossa presen ça aqui.
Destinava-se à Escola Polité cnica mas não chegou a subme ter-se às
provas devido a uma afecção na vista que o obrigou a suspe nder os estu-
dos. Renunciando à carreira. científica, retirou-se a Lyon para prepa rar-se
para o vestib ular na especialidade de letras. Foi lá, num entorn o profun-
dame nte cristão, que ele teve uma crise arden te de misticismo, resquício
de sua fé expira nte.
Entre tanto, era necessário "fazer algum a coisa". Graça s à recomen-
dação de amigos, encon trou um peque no emprego em Le Creus ot 17 , mas
não ficou lá, segundo ele nos diz, além do tempo necessário para descobrir
15
Um dos cavalheiros andante s do poema Les Chevaliers Errants do escritor
francês Victor Hugo
(1802 - 1885). (N.T.)
16
No ensaio Sully Prudhomme Mathématicien, publicado em Rev. gén. sei.
pures et appl., 1909,
657- 662, Poincar é fez uma análise dos manuscritos matemá ticos deixados
inéditos por Prudhom me.
(N.T.)
17
Centro metalúrgico do departa mento de Saone-et-Loire. (N .T .)

16
em que ponto havia perdido a trilha. Volta assim a Paris e começa a
trabalhar para um tabelião. Ora, sua alma de poeta não devia encontrar
mais satisfação no tabelionato do que numa usina.
Assíduo em suas obrigações profissionais, Sully passava parte da noite
a escrever seus versos. Desempenhando suas tarefas na rua com presteza,
comparecia a um salão de café para ler suas poesias a seus amigos. É
desnecessário enfatizar o entusiasmo de seus camaradas; sendo eles que
descobririam a figura rara de um editor. Foi um deles, o saudoso Gaston
Paris 18 , quem chamou a atenção de Saint-Beuve 19 para o jovem poeta.
Assim apareceu Estrofes e Poemas ( Stances et Poémes), logo saudado
em artigo elogioso da crítica especializada.
Tal sucesso provou mesmo aos menos clarividentes que como tabelião
nunca passaria da mediocridade e, a partir desse momento, sua família o
deixou livre para seguir a sua vocação.
O público estava radiante; havia ouvido uma nova melodia, por longo
tempo esperada pela nova geração, sem disso ter consciência. A voz que se
alçava não se parecia a nenhuma daquelas conhecidas. Sully Prudhomme
era principalmente um psicólogo; aquilo que ele gostava de exprimir não
eram as facetas de coloridos brilhantes do mundo natural, mas sim os
meios-tons da vida interior, as alegrias e tristezas da alma; e corno a
única alma que podemos conhecer é a nossa, o verdadeiro objeto de sua
poesia era ele próprio. Já era assim para os românticos, mas quantas
diferenças seu tempo e seu caráter bastavam para explicar!
O que os românticos nos mostram deles próprios é aquilo que neles
pode haver de excepcional e de extraordinário; o leitor fica emocionado,
embora também estupefato; em Sully Prudhomme o leitor intui um amigo
a quem pode admirar sem limites; acreditando haver encontrado uma
alma gêmea, se bem que algo mais delicada e elevada, aquilo que o leitor
18
Gaston Paris (1839-1896) Historiador da Literatura, sucessor de L. Pasteur na Academia Francesa.
(N.T.)
19
Charles Agustin Saint-Beuve (1804 - 1865), escritor e crítico literário. (N.T.)

17
encontrará não será a si mesmo por inteiro mas, ao menos, o que dele há
de melhor .
. . . . . . . . Minha vida estará toda aí,
A tua também, leitor .. . ..... .
(. .... ... Ma vie y sera toute,
La tienne aussi, lecteur ........ )
Nossas grandes dores começam pelas torturas que aos poucos se acal-
mam, terminando como longas tristezas; o prisioneiro acaba por acostu-
mar-se ao horror de sua prisão, não sentindo depois mais do que tédio.
Soluçava então, agora .suspiro
( Je sanglotais alars, je soupire aujourd'hui)
disse Sully em O Perdão (Pardon). De sua parte, falar-nos-á de suspiros
mais graciosos do que soluços; cantará a timidez do coração, os lentos
sofrimentos do silêncio, as dores que se calam mas não se curam. Se o
desencadear da tempestade tem sua grandeza, podemos preferir a passiva
melancolia daqueles dias cinzentos que se seguem aos grandes temporais,
cuja luz fina e suave é propícia às análises delicadas.
Confiante em seu talento, o poeta de 1830 deixa a sua imaginação voar
à vontade. Para Sully, a reflexão impõe um freio; ele observa mais do que
inventa; precisa ver a realidade tal qual ela é, recusando-se a deformá-la.
Com isso ele devia também comprazer a um século sobre o qual havia
soprado o espírito da ciência positiva.
Diferia do poeta romântico também por sua natureza moral; esse
sentia-se vítima de uma injustiça da sorte, sendo isto que lhe arrancava
as queixas eloqüentes. Sully tremia ao sentir-se favorecido por qualquer
privilégio imerecido e sua consciência sentia-se atormentada, sem trégua.
Se ele resistia à sua imaginação, não era somente como uma forma de
escrúpulo científico, senão porque o mundo da ficção parecia-lhe demasi-
ado afastado daquele no qual o homem podia agir efetivamente e a ele

18
devotar-se. Lembremos dos versos em que fala de Musset 20 com grande
admiraçã o, mas onde lhe censura o seu desinteresse pela ação e por não
ser
A mante do ideal como se é de uma bandeira.
(Amant de l'idéal comme on l'est d'un drapeau.)
Ele nos disse qual era a sua dívida com os Parnasianos: "Foi com
Leconte de Lisle 21 que pela primeira vez entendi o que é um verso bem
feito. Aprendi com sua escola que a riqueza e a sobriedade são ditadas
ambas, simultane amente, só pela perfeição". Em resumo, tomou-lhes
algo relativo à forma, mas nada a mais. Seguindo-lhes o exemplo, ele
compôs alguns de seus quadros, justapon do com pincel firme e preciso,
as cores suaves às deslumbrantes, que nos fazem pensar nas pinturas de
Meissonier22 e nas de alguns Holandeses. Estas são O Cisne, O Sol e A
Chuva. Mas estes não passavam de ensaios; sua natureza o levaria por
outros rumos.
Sully tem sido comparad o a Vigny23 , esta comparaç ão é justa; am-
bos foram pensadores e poetas; ambos sofreram com a imperfeição do
universo; mas enquanto o aristocra ta está, de antemão, chocado pela vul-
garidade do mundo, Sully, sobre quem soprou o vento democrát ico de
seu século, indigna-se sobretudo por tratar-se de um mundo injusto. En-
tretanto, o pensamen to de Vigny não parece ter exercido uma influência
direta, e a semelhan ça é fortuita; por outro lado, ele devia afastar-se dos
primeiros leitores que admirava m a sua suavidade, mais do que a sua
profundid ade.
Quais eram as fontes de sua inspiração? Ele próprio no-las fez co-
nhecer pelos títulos das quatro partes de seu poema As Provações (Les
20 Alfred
de Musset, (1810-1857), poeta romântico francês. (N.T.)
21
Charles Marie Leconte do Lisle, (1818-1894), escritor francês e um dos principais poetas parnasianos.
(N.T.}
22 Jean
Louis Ernest Meissonier (1815 - 1891). (N.T.)
23 Alfred de Vigny,
(1797-1863) poeta, romancista e dramaturgo francês ligado ao romantismo. (N.T.)

19
Épreuves): O Amor, A Dúvida, O Sonho, A Ação.
Primeiro, o Amor, pois as mulheres são as que, em todos os tempos,
fizeram cantar os poetas, fazendo-os chorar. Sabemos que Sully teve na
sua juventude um romance simples, embora muito triste, que o deixou
com o coração dilacerado, sobre o qual eu não pretendo saber mais do
que ele próprio nos contou. Há segredos delicados que convém respeitar,
e prefiro que ele próprio relate o que quer que saibamos. Ela era ainda
uma criança, sem dúvida uma prima.
Tu eras pequena
Eu tinha doze anos
Se eu, precoce poeta, adorava
Teus pequeninos pés,
Tu, precocemente bela, me curvavas
A cabeça.
(Madame, vous étiez petite
J'avais douze ans,
Si j'adorais, trop tôt poete,
Vos petits pieds,
Trop tôt belle, vous me courbiez
La tête.)

Quando afastado dela, exilado em seu liceu, sua paixão se exaltava,


sonhando com as mais novelescas devoções:

Então meu ideal almejado


Não era a desconhecida felicidade
Amando eu mesmo ser amado,
Mas morrer com honorabilidade.
( Alors mon idéal suprême
N'était pas l'inoui· bonheur
En aimant d'etre aimé moi-même,

20
Mais de mourir avec honneur.)

Entretanto, não se tratava de uma criancice, pois durante toda sua


vida ele não conseguiu apagar a lembrança.

Quando hoje nela penso, volto a ser criança


(Quand j'y pense aujourd'hui, je redeviens enfant.)

Depois chega a idade em que a jovem se casou sem nada haver compre-
endido, e se despediu com um gentil adeus a seu camarada de infância,
que acreditava ter se feito compreender:

Então que vos fiz para, ainda me sorrir


Quando não me amais?
( Que vous ai-je dane .fait pour me sourire encare
Quand vous ne m'aimez pas?)

Então começa o luto, ainda mais cruel por tratar-se de uma mulher
viva.

Talvez a considerais morta.


Não, o dia que guardei-lhe luto
Não vi de longe nem esquife
Nem panos fúnebres na porta.
E a perco por toda a vida
Em interminável adeus
Oh, morta tão mal sepultada
Não fecharam os teus olhos.
{Peut etre la croyez-vous morte.
Non, le jour ou j'ai pris son deuil
Je n'ai vu de loin ni cercueil
Ni drap tendue devant la porte.
Et je la perds toute ma vie

21
En d 'inépuisables adieux
O morte mal ensevelie
lls ne t'ont fermé les yeux.)

Daí em diante, a vida lhe parece sem objetivo; desiludido e arisco, ele
só consegue conhecer a felicidade envenenada pela dúvida, portadora de
antemão do luto, fadada à morte.

Ai, o hábito já está arraigado,


Tardaste demais em adivinhar
A dúvida quanto tem me martirizado,
Imperecível depois de se instalar!
{Hélas, l'habitude en est prise,
Tu n'as que si tard deviné
Combien la doute martyrise
lmpérissable une fois né!)

A menor alteração afugentaria esta dita, deixando em seu lugar um


silêncio sepulcral.

Amemos em paz, ela faz negra a noite,


A luz pálida da chama
Expira, podemos crer-nos
No túmulo.
{Aimons la paix, il fait la nuit noire,
La lueur blême du fiambeau
Expire, nous pouvons nous croire
A u tombeau.)

Porém a lembrança de um amor, mesmo infeliz, deixa na alma uma


doçura indescritível que não trocaríamos pela indiferença daqueles que
nunca conheceram a dor.

22
Adeus, deixai meu coração no seu túmulo profundo
Mas não o choreis, pois se está morto para o mundo,
Seu sudário fez com um pedaço de céu.
( Adieu, laissez mon coeur dans sa tombe profonde
Mais ne le plaignez pas, car s 'il est mort au monde,
Il a fait son souaire avec un pan de ciel.)

A imagem que dela guardou permanecerá sempre jovem, mesmo quando


a velhice tiver murchado a sua beleza.

Todo o ouro de vossos cabelos ficou no meu coração


(Tout l'or de vos cheveux est resté dans mon coeur)

Por isso ele se empenha em perdoar:

Que eu perdoe à alma pelas recordações dos olhos.


(Que je pardonne à l'âme en souvenir des yeux.)

De fato, ele a perdoa. É ela sem dúvida, sob o nome de Stella, quem
Faustus, de seu poema Felicidade, encontra num planeta melhor, transfi-
gurada; é ela quem o esperará na outra vida:

E me sorrirás a primeira, talvez,


Tu que sem me amar soubeste que eu te amava.
{Et tu me souriras la premiere, peut-etre,
O toi que sans m'aimer as su que je t'aimais.)

Reencontramos também em seus versos os ecos da crise religiosa que


abalou sua alma de adolescente. Era de família piedosa, mas a fé ingênua
e terna que lhe proporcionou foi abalada cedo por uma educação científica
que lhe ensinou a perguntar, sem cessar, por quê?
Sem dúvida há homens de ciência que conservam a fé, mas são apenas
cientistas; não se indignam que os espaços grandiosos e luminosos que

23
eles admiram permaneçam indiferentes. O poeta necessita de simpatia e
se inquieta com a indiferença da imensidão que a ciência lhe apresenta.
Este é o sentimento tão eloqüentemente expresso no soneto da Ursa Maior
(Grande Urse}.
Quando renuncia a seus estudos científicos, vai a Lyon e convive num
ambiente místico que inadvertidamente atua sobre ele. Uma noite acorda
transformado, sentindo sua alma inundada de luz, como uma habitação
escura que subitamente é Ílnundada pela luz solar. Os argumentos que
haviam assediado sua fé claudicante pareciam-lhe demasiado impotentes;
não poderia ter apontado os seus pontos fracos mas, pelo que via, não se
inquietava mais do que se inquieta o caminhante com os argumentos de
Zenão 24 refutando a possibilidade do movimento.
Esta crise dura vários meses, chegando a sonhar em tornar-se domini-
cano; mas, de volta a Paris, a miragem desaparece e a leitura de Strauss 25
dá cabo daquilo que ainda lhe resta de fé. Resta-lhe uma nostalgia das
paragens que entreviu, as que a maior parte de nós, incrédulos ou crentes
tranqüilos, só conhecemos por referências. Quantas vezes sentiu saudade
da visão desvanecida!
Eu vos espero Senhor, Senhor estais aí?
Submisso de mãos juntas, e, com a fronte sobre a Biôlia,
Repito o Credo que meus lábios soletram,
Nada sinto à minha frente, é horrível.
{Je vous attend, Seigneur; Seigneur, êtes-vous lá?
J'ai beau joindre les mains, et, le front sur la Bible,
Redire le Credo que ma: bouche épela
Je ne sens rien du tout devant moi, c'est horrible.)
Pintou as nuances mais finas do sentimento, fazendo-nos sentir o per-
fume melancólico das coisas que fazem sonhar porque viveram e envelhe-
24Zenão de Eléia (século V a.C.), filósofo grego. (N.T.)
25
David Friedrich Strauss (1808 - 1874) , teólogo alemão. (N.T .)

24
ceram. As coisas têm uma alma condescendente, pois esta é a que nós
lhes conferimos; aquela do homem, a verdadeira, permanece incógnita.
Amiúde, nosso poeta deplorava esta impenetrabilidade das almas que,
procurando-se sem cessar e ansiosas por reunir-se, esbarram contra uma
inexorável barreira.
A fantasia parece doce e no entanto o levou ao pessimismo mais amargo,
àquele que lhe inspirou os poemas O Voto (Vceu) e A vida à distância
(Vie de loin). Foi a idéia da ação que o salvou; ele compreendeu a sua
grandeza, ainda que tenha sido incapaz de agir.
Sentia-se perseguido pelo sentimento do dever social, pelo pensamento
naqueles que trabalham e sofrem, não somente por piedade, mas pelo
receio de beneficiar-se tranqüilamente de uma injustiça.
Como todos os jovens de sua geração, deixava-se seduzir pelas utopias
humanitárias, crendo ver as nações já reconciliadas. Apagada pelo res-
plendor deste esplêndido porvir, a imagem da pátria parece obscurecer.
Subitamente o céu desaba; Paris conhece os horrores do sítio 26 . Nesta
época Sully havia sido submetido a uma série de perdas cruéis. Sua mãe,
tio e tia, com os quais vivia, faleceram em poucas semanas. Tantos golpes
sucessivos abalaram irremediavelmente a sua saúde; mesmo assim, desde
o primeiro dia se engajou na resistência, dando a seu país tudo que uma
alma forte pode extrair de um corpo enfraquecido.
Depois das horas sombrias da guerra, chegara a hora ainda mais som-
bria da paz, aquela em que a França deveria resignar-se à grande dor que
nos deixaria duplamente inconsoláveis, se é que nossos filhos irão algum
dia consolar-se.
Renega então erros passados e com arrebato escreve seu poema Ar-
rependimento ( Repentir). Ele amava profundamente a França e aqueles
que por ela morreram:
26 Tra.ta..-se
da guerra Franco-Prussiana, 1870-1871, na qual a França perdeu a Alsácia e parte da
Lorena.. (N.T.)

25
Se todos os homens são meus irmãos
O que me são de agora em diante aqueles lá!
(Si tous les hommes sont mes freres,
Que me sont desarmais ceux-là!)

Durante vários anos, recusa-se a ler um jornal. Permitam-me, entre-


tanto, apontar uma nuance que, a nós gente do Leste, surpreende 27 . A
evocação dos irmãos separados e que sofrem permanece para ele em se-
gundo plano. O que prevalece sobre tudo é a idéia da pátria rebaixada e
o remorso da grandeza perdida.
Entretanto, não consegue odiar. A pátria não é um simples sindicato
em prol de interesses dispersos, é um feixe coeso de idéias, e mesmo de
fantasias generosas, pelas quais nossos pais lutaram e sofreram, portanto
uma França ressentida não seria mais A França.
É por isso que Sully exclamou:

Quanto mais Françês me sinto, mais humano eu sou !


{Et plus je suis Français, plus je suis humain!)

Talvez hoje ele achasse necessário acrescentar que trair a França seria
trair a humanidade.
É em torno de seus quarenta anos que Sully Prudhomme publica os
poemas filosóficos. Não é que se tenha tornado filósofo ao envelhecer;
ao contrário, trata-se da tradução de Lucrécio feita em Le Creusot, só
publicada tardiamente.
De saída, ele se distingue daqueles que, anteriormente, haviam tratado
em verso assuntos semelhantes; efetivamente ele sabe; sua consciência
escrupulosa não lhe teria permitido falar de algo que não conhecesse bem;
também não teria tolerado uma expressão semi-precisa ou semi-exata.
27
Poincaré era natural de Nancy, capital da Lorena, atingida diretamente pela guerra, cujos horrores
ele testemunhou aos seus dezesseis anos. Ver a este respeito o relato de Gaston Darboux em Éloge
historique d'Henri Poincaré, 1913, reimpresso em Ouvres, t. II, 7-71. (N.T.)

26
Então, como compreendia ele de um lado a poesia científica e do outro
a filosófica?
Irá a ciência triunfante matar a poesia? Irá seu resplendor brutal
ressecar a delicada flor que prospera só à sombra dos bosques escuros?
Sully não pensava assim. Ele almejava que, contrariamente à ingênua falta
de conhecimento dos poetas de outrora, luminosos e vastos horizontes se
abrissem diante daqueles do amanhã.

Poetas do futuro, que tantas coisas saberão.


(Poetes à venir, qui saurez tant de choses.)

Se o mistério é necessário para a poesia, não há porque temer que


algum dia ele desapareça, ele só pode recuar. Por mais que a ciência
expanda suas conquistas, o seu domínio será sempre limitado; é ao longo
de suas fronteiras que flutua o mistério, e quanto mais afastadas forem
essas fronteiras, maiores elas serão.
Os abismos de imensidão e pequenez que o telescópio e o microscópio
nos desvendam, a harmonia oculta das leis físicas, a vida por sempre
renascente e diversificada, são assuntos dignos de serem abordados pelos
poetas. Não são eles aos que Sully devota suas preferências; o que ele
admira é a alma do homem de ciência, sua perseverança e sua coragem.
O homem não é menor quando dá sua vida para conquistar a verdade
do que quando a arrisca numa ação militar. O cientista atual não espera
arrancar seu segredo à natureza de um único golpe. Está ciente que a
obra à qual se devotou é grande, mas sabe também que não verá a sua
conclusão:

Decifraremos somente um código.


(Nous allons conquérir un chifre seulement.)
,
E isto importante? São muitos os códigos como esse aí que compõem

27
a verdade. Para obtê-lo, os Argon autas do Zénith encara ram a morte 28 .
É em vão que a carne trêmul a se amedr onta, o espírito é seu mestre e,
para perseguir seu ideal, ele o impulsiona sempre mais alto.

Mestre, que tormento tua vontade me inflige


Eu sucumbo. - Mais alto. -Pieda de!- Mais alto te digo.
E o fluir do tempo renovado provoca um novo salto.
( O maitre, quel tourme nt ta volonté m 'inflige
Je succombe, -Plus haut. - Pitié! - Plus haut, te dis-je.
Et le sable épanché provoque un nouveau bond.}

Enqua nto a poesia científica é apenas uma roupag em para a Ciência,


a poesia filosófica pode ser um instrum ento para o filósofo em busca da
verdade. A verdade que o fil!ósofo aspira conhecer não é aquela que satisfaz
o cientista. A realidade, a verdadeira, a do filósofo, está viva, sempre em
consta nte mudan ça, suas diversas partes estão intima mente conectadas,
e parece m interpe netrar- se, de modo que não sabería mos separá-las sem
rasgá-las. A do cientis ta é só uma imagem; como todas as imagens ela
está imóvel e morta; ou melhor dizendo, é um mosaico cujas pedras estão
justap ostas com arte, mas que estão só justapo stas. Sem dúvida, esta
imagem só nos permit e conhecer, pois foi por nós constr uída à medid a de
nosso entendimento.
Mas quando o filósofo a contempla, ele procur a outra coisa. Como po-
derá exprim ir o que ele assim sente? As palavr as da prosa são como as da
linguagem científica; definidas de uma vez por todas, podem repres entar
só os objeto s imutáveis e nitidam ente enquad rados. A poesia tem como
a música o privilégio de desper tar sonhos infindos. Cada palavr a isolada
deixar ia nossa alma indiferente; reunid as numa melodia, tornam -se po-
28
Aqui o autor refere-se ao poema Le Zénith, dedicado por Prudhomme às vítimas da
ascensão
do balão dirigível do mesmo nome, falecidas em abril de 1875. Nele o poeta faz uma
metáfora dos
tripulantes com os Argonautas, da nave Argo da mitologia grega. Sully Prudhomme, Poésies,
1872-
1878, Librarie Alphonse Lemerre, Paris. (N.T.)

28
derosas, como se o ritmo e o movimento da frase musical houvesse-lhes
dado a vida.
As palavras dispostas num verso gozam da mesma virtude. Cada uma
delas não tem mais apenas o seu próprio significado, tornando-se então
capaz de sugerir uma avalanche de imagens que se sucedem sem fim, como
as ondas de choque que uma pedra produz na superfície da água. Estas
ondas se misturam e se interpenetram, como o fazem os elementos da
realidade viva, é assim que a poesia filosófica pode dar-nos um retrato
menos imperfeito desta realidade.
Entretanto, esta poesia tem um defeito, derivado de sua própria pro-
fundidade. Cada palavra exige uma longa reflexão; o espírito que gostaria
de deixar-se envolver e seguir o poeta em seu vôo, sofre ao ser detido
para, a cada instante, cair por terra. O sentimento penoso se atenua na
segunda leitura, mas somente quando começamos a sabê-lo de cor é que
desfrutamos o poema plenamente, sem interferências.
A poesia filosófica tem títulos de nobreza antigos; não é necessário
remontar-nos a tempo algo brumoso de Parmênides 29 ; Lucrécio30 é mais
proximo de nós, mas ainda está suficientemente longe! Nesse tempo a
filosofia era jovem e autoconfiante e, como as crianças, o menor resplen-
dor era suficiente para encantá-la. Lucrécio percebeu que o mundo não
obedece aos caprichos dos deuses, mas que é governado por leis imutáveis,
por uma harmonia grandiosa e cega; a novidade deste espetáculo o ma-
ravilha, transfigurando a natureza perante seus olhos; liberado de mil
temores quiméricos, ele sente-se respirando livremente.
Coisa estranha, para os homens esclarecidos daquele tempo, Epicuro
era um benfeitor da humanidade; posteriormente, quando Cristo nos con-
29
Filósofo grego (viveu em torno de 500 a.C.), precursor do idealismo de Platão e da explicação
materialista do universo. (N.T)
30
Poeta romano, (viveu em torno de 99-55 a.C.), que em seu grande poema didático De Rerum
Natura (Sobre a natureza das coisas), apresenta as teorias dos filósofos gregos Demócrito e Epicuro.
(N.T)

29
feriu a imortalidade, essa foi considerada a boa-nova; mais tarde ainda,
os filósofos do século XVIII foram saudados como libertadores.
Cheio de agradecimento a seu mestre Epicuro 31 , Lucrécio quer levar
a palavra de liberação aos homens, partindo alegre e resoluto para seu
apostolado; é este ardor que nos comove e faz vibrar os seus versos. Hoje
em dia, o que torna trágico os poemas de nosso século é a angústia da
luta interior e da dúvida; não é mais pelo lado de fora que os combates
se travam, é pelo de dentro.
Sully relata como traduziu o primeiro livro de Sobre a natureza das
coisas: "Esta tradução foi empreendida como um simples exercício para
inquirir ao mais robusto e preciso dos poetas sobre o segredo de amarrar
o verso à idéia." Este era o instrumento que ele queria forjar, e com ele
nos deu Destinos {Destins,} Justiça ( Justice) e Felicidade (Bonheur}.
E o mundo, é bom ou é mau? Ou bem, os otimistas e os pessimistas,
não são ambos vítimas da mesma ilusão? É este o problema que ele se
coloca no seu primeiro poema filosófico, Destinos.
Sully Prudhomme nos mostra os espíritos do bem e do mal estudando
cada um por seu lado o plano para o mundo que ele quer criar, e que quer
que um seja tão bom e o outro tão mau quanto possível. Mas o bem só
existe por contraste com o mal, e o mal por contraste com o bem, e os
dois planos terminam por serem idênticos.
Numa língua bem estruturada, os adjetivos feliz e infeliz não deveriam
ter os graus neutro nem superlativo, mas só o comparativo, e o mesmo
talvez possa estender-se para todos os adjetivos.
Evidentemente , na criação do homem os dois espíritos se enganaram;
eles poderiam ter se saído melhor dando-lhe outra alma, menos inquieta e
menos orgulhosa, mais dada a esquecer, a desapegar-se de todos os bens
materiais e a acostumar-se com todos os males. Mas talvez seja tarde
31
Filósofo grego (341 a.C.-270 a.C.). A principal fonte sobre suas doutrinas é a obra de Lucrécio.
(N.T)

30
demais para dar-lhes conselhos.
No segundo de seus poemas o pensador busca a Justiça. Nesta Na-
tureza, dita ter sido criada por um Deus justo, ele encontra uma luta
impiedosa entre as espécies, entre os Estados e, no Estado, entre os ci-
dadãos. Por onde quer que se vá na Terra o vencedor despreza o direito.
E nos outros astros? Ora, as estrelas ganham sem dúvida por serem vistas
só de longe.
Aquilo que permanece é a consciência do homem, é lá que a idéia
de justiça tem seu único refúgio. Talvez ela triunfe algum dia; mas o
homem chegou demasiado cedo ou demasiado tarde e por isso se sente
eternamente exilado. Entretanto, é a natureza que fez o homem; terá
ela esquecido por um dia a sua indiferença moral? Ou será que, assim
como deu ao leão a crueldade útil ao carnívoro, deu ao homem a cons-
ciência moral necessária à conservação de uma espécie que tem de viver
em sociedade?
É neste sentido que as aspirações desta consciência estão de acordo com
os desígnios secretos da natureza. O poeta se satisfaz com esta explicação
e, liberado da angústia, entoa um canto de alegria, talvez prematuro, pois
o verdadeiro problema, o mais doloroso, não foi abordado. É possível
discernir onde está a justiça? Pode-se conceber uma justiça que não seja
injusta para lado algum?
Depois da Justiça o poeta busca a Felicidade. É isso que os homens
buscam sem cessar, é isso o que eles não podem esperar. Pode o progresso
da civilização lhes dar a felicidade? Faz-se crer que o homem trabalha
para ser feliz, e esta ilusão é necessária, mas não passa de uma ilusão. O
homem não trabalha para ser feliz, mas para ser forte, e quase sempre
o faz a expensas da felicidade. Abandonou há muito tempo a doce vida
pastoril pelo duro trabalho na terra. Cremos que ele tenha renunciado
sem remorsos aos longos sonhos nos espaços amplos? Mas ele falhou, pois
são as plantações ricas que alimentam os grandes batalhões. Mais tarde

31
também falhou por abandonar o ar livre do campo pela atmosfera poluída
das fábricas, já que o aço que dá o poder necessita dos fornos. Se por
acaso um povo preferir a felicidade à força, seus vizinhos mais prevenidos
não tardarão em arrebatar-lhe a liberdade.
O homem, miserável na terra, poderia esperar a felicidade em algum
planeta longínquo? Para isto ele deverá trocar de alma, necessitando
uma alma de anjo ou uma de besta. Lembremos os versos de seu poema
Escombros (Épaves)

Ele só poderá gozar transformando-se em outro,


Mas do ser que aí está, o que farás meu Deus!
(Il n'en pourrait jouir qu 'en devenant un outre,
Mais l 'etre que voilá, que en feras tu, mon Dieu!)

Faustus e Stella se reencontram depois da morte num planeta feliz,


onde a imaginação do poeta acumulou tudo o que pôde sonhar de harmo-
nioso e belo. É isso aí a felicidade? Não, o homem se sente decair se cessa
de lutar. Ele enjoará logo dessa felicidade vazia de ação e de emoção.
Há no poema um episódio que parece-me característico. Stella começa a
cantar; sua voz não é mais terrestre:

Não languesce mais de suspirar...


Não padece mais de excitação ...
Não ressoa mais de soluçar.. .
(Il n'y languit plus de soupir.. .
Il n'y passe plus de frisson .. .
Il n'y tinte plus de sanglot ... )

Mas que música é essa onde não há suspiro, nem excitação, nem soluço!
Sem dúvida eles enjoariam rapidamente se tivessem a lembrança da
Terra; mas esta lembrança também é um tormento; lá embaixo, os infeli-
zes ainda sofrem. As almas delicadas não saberiam conceber um paraíso

32
ao lado do qual ficaria o inferno. Aqueles que poderiam satisfazer-se,
para os que a justiça fosse feita, não seriam dignos de lá entrar. Faustus
e Stella decidem então retornar à Terra; chegando lá demasiado tarde, a
humanidade não existe mais; mas a beleza desse sacrifício inútil deu-lhes
aquilo que eles não poderiam esperar de nenhum paraíso.
É assim que Sully traduziu em belos versos a idéia de felicidade pelo
sacrifício que havíamos encontrado já em seu diário íntimo de juventude.
A partir de 1889, Sully Prudhomme não publica mais versos, mas não
pára de escrever: os problemas metafísicos o atormentam e quer a eles
consagrar-se por inteiro.
Assim escreve ele a um jovem: "É mais fácil resignar-se à ignorância
quando temos medido o alcance limitado da ciência humana; não se sofre
mais por não poder alcançar a verdade suprema do que por não poder
fazer descer as estrelas". Este conselho, podia dá-lo, mas com ele não
podia conformar-se, pois era poeta, e os poetas são precisamente aqueles
que sofrem por não poderem fazer descer as estrelas.
Não era um cético, e portanto seu último livro teve por título: O
que sei eu? {Que sais-je?). "O que sei eu?", é aí onde chegam todos
os pensadores, mas como são diferentes os seus caminhos! Montaigne32
não ousa dizer nada sei; o que seria ainda uma afirmação e o que sei
eu? parece-lhe mais prudente. Sully não quer dizer nada sei porque toda
sua alma protesta contra uma confissão prematura de impotência que lhe
parece uma deserção.
Quais eram suas doutrinas filosóficas? Não era materialista, também
não era espiritualista, segundo ele disse. Não era idealista, pois começava
por pedir que lhe concedêssemos a existência do mundo exterior, e no
entanto também não era um verdadeiro realista pois compreendia a enor-
midade desta concessão; não era positivista, escrevendo tranqüilamente:
32
Michel de Moutaigne, (1533-1592), escritor francês que introduziu o ensaio como forma literária.
(N .T)

33
"há uma metafísica absoluta no universo.)) Mas fico por aqui, há no vo-
cabulário filosófico demasiadas palavras que rimam com ista, e essa mul-
tidão infinita me assusta.
Não nos surpreendem os demasiado por sua rebeldia perante toda clas-
sificação; a alma de um verdadeiro filósofo é um campo de batalha e
não uma monarquia passiva com lugar reservado para um único mestre.
Quem são os adversários neste campo de batalha? De um lado está a
razão exigente e intransigen te, do outro estão as aspirações, os instintos
profundos do coração que nenhuma argumentaç ão consegue satisfazer; ou
como Kant 33 disse, são a razão pura e a razão prática.
Nesta luta, a razão pura é vencida de saída por nossos instintos, isto
é, por nós mesmos. É natural que tenhamos por eles certa complacênc ia
e que façamos pender a balança de seu lado. E depois, a razão pura,
na hora da análise fria, encontra logo contradições. Sua rival também
as encontra, mas isto não a preocupa, enquanto que numa construção
racional, toda contradição é mortal. Rapidamen te somos conduzidos a
ver só puras aparências no mundo que a razão nos parece desvendar, e
então o campo fica livre para a aspiração, para a razão prática, que nos
dá o sentimento ou a ilusão, que nos revela algo do universo fazendo-nos
participar de sua vida.
É sobretudo pela forma de compreend er a razão prática que os filósofos
diferem entre eles. Para Kant, ela é a moral inflexível, a moral um pouco
seca de um catecismo protestante . Para Sully Prudhomm e ela é uma
efusão tenra, mais engajada com a caridade do que com a justiça, onde o
amor, a arte e a beleza se aliam à busca do bem moral. É isso que para ele
é o reflexo do mundo real. Sente que no azul do céu há outra coisa além
da poeira fina pela qual os cientistas o explicam; é isso que o faz esperar
que este não seja apenas uma ilusão, e é isso o que ele crê reconhecer nas
33
Emanuel Kant, (1724-1804), filósofo alemão, considerado um dos pensadores mais influentes da
Idade Moderna. Os fundamentos de sua filosofia estão colocados na obra Critica da razão pura, em que
examinou as bases do conhecimento humano. (N.T .)

34
suas aspirações, essa força, talvez cega, que produz a evolução e modela
.
o umverso.
Apesar de tudo não encontrou a paz; o mundo ao qual aspirava era
um mundo de poeta, brilhante, mas múltiplo; sem a rigidez de contornos
do mundo de Kant, era um devenir, não um ser; e sua sede metafísica
permanecia insaciada.
Para a questão que mais nos toca, aquela da imortalidade, ele perma-
neceu desesperado, eis o que disse:

Azuis e negros, todos amados, todos belos!


Abertos a uma imensa aurora
Do outro lado dos túmulos
Os olhos que fechamos ainda vêem agora,
{Bleus et noires, tous aimés, tous beaux!
Ouverts à quelque immense aurore
De l'autre coté des tombeaux,
Les yeux qu 'on ferme voient encare,}
Escreveu ainda: "Logo chegará o tempo em que não pensarei mais".
O antropomorfismo de certas teologias causava-lhe horror. Dar a Deus
uma alma de homem, isto é, uma alma responsável, é acusá-lo de todo o
mal que há no universo. Entretanto, o poeta não pode senão ser antro-
pomorfista, pois ele precisa de imagens; daí a luta sem desfecho entre o
poeta e o filósofo. "Deus é o que falta para compreendê-lo", clama ele.
Mas buscava Deus.

Sob o infinito abrumador, insondável


Prosternado desesperadamente,
Sonha com o silêncio alarmante
Do universo inexplicável.
A fronte pesada, o coração despojado,
Mais triste por um saber mais amplo,

35
Nos degraus do último templo
Chora ajoelhado.
(Et sous l'infini qui l'accable
Prosterné désespérément,
ll 8ionge du silence alarmant
De l 'univers inexplicable.
Le front lourd, le cceur dépouillé,
Plus triste d 'un savoir plus ample,
Sur les marches du dernier temple
ll pleure agenouillé.)

Como Pascal 34 bem disse, buscar Deus já é tê-lo achado. Assim,


quando a mãe de Sully, ansiosa, pergunta a Gaston Paris: "Diga-me,
por favor, afirme-me, que no seu livro não há nada contra Deus", ele bem
poderia ter respondido: "Senhora, juro que não há uma palavra ou um
pensame nto sequer, que sejam ímpios, e sua poesia, longe de afastar-se de
Deus, o busca constante mente pelo mais sincero e religioso dos esforços."
Pascal é um desafio que preocupo u à maioria dos pensadores; teria sido
surpreend ente se não tivesse atraído o poeta filósofo que havia conhecido
as mesmas mágoas que ele. Em 1862, Sully escreveu no seu diário íntimo:
"Pascal, eu te admiro, tu és meu, eu te penetro como se em ti pen-
sasse, tristeza magnânim a, profunda , profunda como a noite, como esta,
plena de efêmeras claridade s longínquas. Sê meu mestre, adota-me , sofro
infinitamente, gravito em torno da verdade que jamais atinjo".
Depois reencontr amos a cada instante o nome de Pascal nas primeiras
poesias, e, no poema Felicidade, é Pascal quem aparece a Faustus para
tranqüilizá-lo e consolá-lo. Enfim esta imagem, que não cessa de persegui-
lo, inspira Sully num livro rnuito minucioso no qual busca reconstru ir o
plano de Pascal e restituir a ordem dos Pensame ntos (Pensées).
34
Blaise Pascal, (1623-1662), filósofo, matemático e físico francês. (N.T.)

36
A alma de Pascal era para ele um mistério atraente porque se as-
semelhava singularmente à sua, mas da qual, ao mesmo tempo, diferia
profundamente. Compartilhavam dos mesmos combates entre a razão
fria e implacável e as aspirações do coração. Mas, em Pascal, estas as-
pirações eram mais ardentes, mais fogosas, mais irresistíveis e sobretudo
mais impiedosas. Pascal era mais apaixonado que terno; em seus im-
pulsos caridosos, não eram os homens que ele amava, mas unicamente
os membros de Jesus Cristo; havia, também, aceitado sem dificuldade o
Deus feroz do jansenismo35 , que fazia recuar um coração delicado, cheio
de indulgência e piedade por todo aquele que sofre.
Sully não separava suas aspirações estéticas de suas aspirações morais;
o sentimento de beleza, na arte como na natureza, parecia-lhe a verda-
deira revelação divina; nenhuma de suas manifestações lhe era indiferente,
as mais finas, as mais delicadas, as mais miúdas, pareciam-lhe as mais
preciosas. Ao contrário, Pascal reservava sua admiração exclusiva para
o infinito abrumador, forma de sublime terror que, longe de atraí-lo su-
avemente ao céu, o rejeitava brutalmente para o nada, de onde só uma
graça sobrenatural poderia resgatá-lo. Quantas semelhanças e quantas
diferenças!
Depois de longas lutas, Pascal encontrou uma paz que Sully Prudhomme
jamais conheceu. Quando o poeta nos relata aquela noite de 1654 na qual
Pascal sentiu a existência do Deus de Abraão, Isaac e Jacob, ele deve ter
pensado na noite em que ele próprio, em Lyon, foi invadido por uma
luz deslumbrante, embora mais fugaz, e essa lembrança despertava-lhe o
remorso.
"Ah, dizia ele, a despeito de seus tormentos, quanto o seu destino po-
deria tentar àqueles que, tão ávidos de verdade, justiça e amor, quanto
35 Jansenismo,movimento de reforma religiosa que ocorreu na história da Igreja Católica, sobretudo
na França nos séculos XVII e XVIII. O termo vem do nome do teólogo flamengo Jansen Cornelius.
Baseando-se na interpretação mais estrita da filosofia de Santo Agostinho de Hipona, defendia a doutrina
da predestinação absolutl\. (N.T.)

37
ele, desesperam sem jamais se saciar". Mas não se abandonou aos re-
morsos; compreendia que o homem, apesar de tudo, não pode "dormir
e sonhar que crê". Aos seus olhos, a abdicação da razão era uma der-
rota, devendo condenar-se a ignorar eternamente o repouso. Não queria
diminuir-se sacrificando uma das duas forças que disputavam sua alma.
A razão tem seus limites, ela só pode conhecer o relativo, mas no
seu domínio permanece soberana. A fé de Pascal demandava-lhe outros
sacrifícios que Sully não estava disposto a consentir; por uma análise
muito fina das fórmulas dogmáticas, ele acreditava reconhecer que elas
são mistérios esmagadores para nossa inteligência enfraquecida, mas que,
à força de serem contraditórias, são vazias de sentido, e se perguntava
como essa verdade teria escapado a Pascal, se ele não estava com os olhos
voluntariamen te vendados. Se ele não havia abordado a questão do mo-
vimento da Terra, aquela da autenticidade dos Livros Santos, foi porque
tinha medo de ver demais? Daí um julgamento que, apesar de tudo, é bem
surpreendente: "Pascal não é um herói." É esta a verdadeira conclusão
da obra? Não, certamente, pois poderíamos arrancar esta página sem que
a unidade do livro ficasse prejudicada, restando mais do que impulsos de
simpatia, conduzindo à exclamação final: "Fazer o bem sacrificando, aqui
em baixo, o egoísmo ao amor e, no além, ressuscitar no próprio Deus, que
recompensa, que sonho!"
Sully Prudhomme gostava das belas artes não apenas como simples
amador; divertia-se modelando; deixou pequenos medalhões reproduzindo
os traços de sua mãe e amigos; temos também os álbuns onde, nas viagens
à Itália e Holanda, copiou ao carvão ou à pena algumas figuras que o
impactaram nos quadros dos museus que visitou. Observa-se um sentido
delicado da expressão e certa habilidade técnica. Por outro lado, ele não
foi músico; por isso ele escreveu A Agonia {l 'Agonie} e uma passagem
inesquecível de Felicidade ( Bonheur).
Ele foi incapaz de sentir sem refletir sobre aquilo que sentia. Não

38
cessava de interrogar o pintor que fazia seu retrato. Como é que tal
toque ligeiro, tal inflexão imperceptível duma linha, pode modificar tão
profundamente a expressão e a fisionomia? Não é surpreendente que
sendo tão sensível à beleza e tão ávido por compreendê-la, ele nos tenha
legado uma teoria estética36 .
No prazer que nos causam as obras artísticas, ele distingue dois ele-
mentos. Sem a alegria que as cores proporcionam aos sentidos quando
puros ou quando se encontram harmoniosamente combinados, não haveria
a verdadeira beleza. É por isso que, a menos que seja dotado pelo me-
nos de um sentido excelentemente desenvolvido, ninguém se torna artista.
Mas a arte não cabe toda inteira nessa delicada volúpia! Seu verdadeiro
objeto é a expressão. Por alguma misteriosa simpatia, a obra de arte nos
revela, de uma só vez, a alma do artista e as suas características ocultas,
essências íntimas do modelo, impossíveis de serem discernidas somente
por nossos toscos olhos.
A expressão pode ser objetiva ou subjetiva, segundo ela busque repro-
duzir elementos existentes realmente na natureza, ou segundo se limite
a sugerir os sentimentos pertinentes aos objetos que nossa imaginação
anima com as paixões do homem.
Daí uma classificação das belas artes que surpreende à primeira vista,
já que, por exemplo, ela aproxima a arquitetura e a música, porque nenhu-
ma das duas copia algum modelo, como aquele que se impõe ao pintor e
ao escultor, do qual elas só conhecem a sua expressão subjetiva, deixando
a nós a liberdade infinita de sonhar.
Nossas idéias são concatenadas pelos laços sutis criados pelo hábito;
elas se chamam umas às outras, sucedendo-se numa ordem ou capricho
aparente que dissimula uma inflexível disciplina. O artista sabe colocar
em movimento aquela que conduz a dança e logo depois todas as outras
seguem; logo a alma toda está invadida por ondas que se entrecruzam em
30
Publicacla em L'expression dans les Beaux-Arts, Alphonse Lemerre, Editeur, Paris, 1898. (N.T.)

39
todas as direções. A seguir, esta agitação deslancha a emoção estética que
parece ser a ela inerente, como se o homem se exaltasse acima dele mesmo,
sentindo seu coração acelerar. Esta emoção aparece também quando a
alma está comovida pelos acidentes da vida, mas, encontrando-se dis-
farçada pela violência das paixões, passa despercebida. Ela, entretanto,
não tem comparação com a suave inquietação que desperta em nós a obra
de arte.
Sully não poderia haver esquecido a arte que ele próprio cultivou, a
poesia. Sobre ela também refletiu. Permaneceu fiel à prosódia tradicional,
buscando com sucesso e, sobretudo, com fineza, justificar racionalmente
as regras. Mostrou o que há de artificial e de falso em certas inovações
sonoras.
Divertia-se, relembrando aos versificadores demasiado independentes,
que eles tinham um precursor, Chateaubriand37 , que escrevia frases har-
moniosas, o qual os teria igualado se as houvesse dividido em frases curtas
com mais freqüência.
Atualmente, sem dúvida, há jovens poetas aos quais as idéias de Sully
pareceriam retrógradas. Recomendamos-lhes ler a bela nota biográfica
de Gaston Paris de 1895, sobretudo meditar sobre as últimas páginas,
nas quais Paris defende seu amigo contra aqueles que, já naquele tempo,
acusavam-no de haver envelhecido. Hoje em dia são homens novos, com
novos argumentos, os que querem demonstrar que ele envelheceu, en-
quanto os seus detratores de outrora, há quinze anos que foram esqueci-
dos.
Sua poesia, tão deliciosamente francesa, era apreciada no exterior, e
quando o prêmio Nobel de literatura foi concedido pela primeira vez, foi
ele que foi o escolhido para receber os louros. Os repórteres afluíram; o
valor pecuniário, mais do que seu valor moral, havia despertado a atenção
37
François Auguste René, visconde de Chateaubriand, (1768-1848) , escritor e político francês, pioneiro
do romantismo. (N.T.)

40
do público, fazendo penetrar sua glória em camadas profundas que sua
poesia não havia atingido. A Europa acreditava que a admiração do dólar
era uma religião americana, mas a Europa se engana.
Sabemos o uso generoso que ele fez de seu prêmio. Toda dádiva ines-
perada parecia-lhe imerecida, e teria se envergonhado de algo guardar.
A velhice havia chegado; quando era jovem e sofria, quase que a havia
desejado:

Chegam os anos! A nela esta idade salvadora


Quando o sangue correrá mais sábio por minhas veias
Viverei simplesmente com minhas velhas penas
Poderei assim sentar-me no fim dos meus dias
Contemplando a vida, liberado enfim das provações
Como do alto dos montes vemos as grandes ondulações,
E as curvas tormentosas dos caminhos das rios.
(Vinnent les ans! J'aspire à cet àge sauveur
Ou mon sang coulera _plus sage dans mes veines:
Je vivrai doucement avec mes vielles peines.
Puissé-je ainsi m 'asseoir au faite de mes jours,
Et contempler la vie, exempt enfin d'epreuves,
Com me du haut des monts on voit les grands d 'tours
Et les plis tourmentés des routes des fieuves.)

De todos os desejos que formulou, só um lhe foi concedido:

Que me seja dada ternura à vontade


(Que je m'en donnerai de tendresse à mon aise!)

O que fez a ele essa velhice que tanto esperava, vocês o sabem. Tor-
turas contínuas, impotência física, e emergindo por cima de tanta ruína
a sua inteligência intacta e lúcida, e sua alma inabalada. Este suplício,

41
felizmente suavizado por discreta abnegação, durou seis anos, sem abater
sua energia. Foi no trabalho que ele encontrou o esquecimento de seu
sofrimento. Foi nesta época que ele leu com furor a "Suma Teológica"
de São Tomás de Aquino38 , leitura que lhe inspirou a seguinte reflexão:
"Como tudo isso é complicado! Como pode tudo isso sair do Evangelho,
que é tão simples!"
O esquecimento, ele o buscaria também nas amizades. Para os amigos,
ensaiava voltar a ser o homem de outrora. Seu traços pareciam envelhe-
cer quando, por um instante, o doce resplendor de seus olhos não lhe
emprestava mais a sua juventude; mas se esforçava em dar aos que amava
a ilusão de alegria. Temia que o sofrimento se refletisse num trejeito de-
sagradável, e para poupá-los do espetáculo, tomava da morfina a força
para sorrir de novo.
Entretanto , não gostaria de dizer que ele desejava o fim, não fazendo
mais do que resignar-se. Não tinha muita esperança, não podendo encarar
o nada com serenidade, porque apesar da filosofia, a imaginação do poeta
o rejeitava, esse nada não era dormência, era somente noite.
Porém, a morte chegou, trazendo com ela a liberação. Ele a esperava;
não faltava angústia na espera, pois sua alma estava atormentad a pela
incerteza, mas a olhava de frente.

38
Fil6sofo e teólogo italiano (1225-1274) , canonizado em 1323. (N.T.)

42
3 Karl Weierstras s
I
39 0
que mais me impacta na carreira matemática de Weierstrass é a
notável unidade de seu pensamento, persistente ao longo da extensão e
variedade de sua obra.
Desde o começo colocou-se um objetivo bem determinado, criando os
métodos para atingi-lo; e se, algumas vezes, ele ensaiou seus métodos
atacando outros problemas, jamais perdeu de vista o objetivo final de
suas pesqmsas.
Desse objetivo ele próprio teve o cuidado de informar-nos.
Em 1857 ingressou na Academia de Ciências de Berlim e, no seu dis-
curso de recepção, assim se expressou:
"Devo agora explicar em poucas palavras qual foi, até agora, a marcha
de meus estudos e em que direção me empenharei em prossegui-los".
"Em determinado momento, sob a direção de meu mestre Guder-
mann40, conheci pela primeira vez as funções elípticas 1; este ramo novo
4

da Análise Matemática exerceu uma atração poderosa sobre meu inte-


lecto, tendo uma influência decisiva no desenvolvimento de meu pensa-
mento."
"Esta disciplina, fundada por Euler 42 , cultivada com ardor e sucesso
por Legendre43 , se desenvolveu inicialmente numa direção única; mas ela
veio depois de dez anos a ser inteiramente alterada pela introdução das
As seções IV a XVI são traduzidas do artigo de Poincaré, L'reuvre mathémati([IJe de Weierstra.,s,
39

publicado em Acta Mathematica, 22, 1898, 1-18. Achamos apropriado incluí-las aqui, visando a dar
mais equilíbrio -em volume e conteúdo- ao conjunto dos três ensaios biográficos deste trabalho; porém,
em Savants et Écrivains só a.parecem as seções I a III e a XVII, as quais também são uma parte do
artigo citado. (N.T.)
4
°Christof Gudermann (1798 - 1852), diretor de tese de Weirestrass entre 1839 e 1841
41
Ver http://mathworld.wo lfram.com/EllipticFu nction.html (N .T.)
•lLeonhard Euler (1707-1783). Ver http://scienceworld.wolfram.com/biography /Euler.html (N.T.)
43
Adrien-Ma.rie Legendre {1752 - 1833).
Ver http://scienceworld.w olfram.com/biograph y /Legendre.html (N.T.)

43
funções duplam ente periódicas, descob ertas por Abel 44 e Jacobi 45 • Estas
funções transce ndente s dotara m a Análise de entidad es novas, cujas pro-
prieda des notáveis encont raram també m aplicações na Geome tria e na
Mecânica, assim mostra ndo que eram o fruto norma l do desenvolvimento
natura l da ciência".
"Mas Abel, habitu ado a colocar-se num ponto de vista mais elevado,
havia achado um teorem a que se estend e a todas as funções transce ndente s
resulta ntes da integração das diferenciais algébricas e que, em certa forma,
é para estas o que o teorem a de Euler é para as funções elípticas. Falecido
na flor da idade, Abel não pôde prosseguir sua grande descob erta, mas
Jacobi havia feito uma segund a descob erta não menos import ante; ele
havia provado a existência de funções periódicas de vários argum entos,
cujas proprie dades fundam entais baseiam-se no teorem a de Abel, fazendo
desta forma conhecer o verdadeiro significado deste teorem a".
"A represe ntação efetiva destas entidad es, das quais a Análise não ti-
nha ainda nenhum exemplo, incluindo o estudo detalh ado de suas propri-
edades, tornara -se então um dos proble mas fundam entais da matem ática;
e, desde que compreendi o seu significado e import ância, resolvi abordá -
lo."
"Teria sido uma verdad eira loucur a se tivesse pensad o na solução de tal
proble ma sem haver-me prepar ado com um estudo profun do dos meios au-
xiliares e sem haver-me exercitado antes em proble mas menos difíceis ... "
Assim, desde sua iniciação, ele teve a ambição de criar uma teoria com-
pleta e coerente das funções abelian as 46 . São estas funções as que ele ataca
em seu primei ro trabalh o, public ado em circun stância s bastan te insólitas.
Sabem os que ele era professor de ginásti ca47 num colégio na Velha Prússi a.
44
Niels Henrik Abel, (1802-1829), matemáti co norueguês, demonstrou a impossibilidade
de resolver
no sentido da álgebra elementar as equações de grau superior a quatro. (N.T.)
45
Carl Gustav Jacobi, (1804-1851), matemát ico alemão, um dos fundadores da teoria
das funções
elípticas. (N.T.)
46
Ver http://ma thworld. wolfram .com/Abe lianFunc tion.html (N.T.)
47
N. Segundo E. T. Bel!, em Me11 o/ Mathematics, citado nos Comentários, Weierstra
ss lecionava,

44
No sistema de rodízio, cada professor devia redigir uma memória, a qual
era impressa no início do "Programa" do estabelecimento. Quando che-
gou a vez de Weierstrass, esperava-se uma dissertação sobre as vantagens
da barra fixa sobre as barras paralelas. A estupefação foi geral quando foi
lido seu trabalho dedicado às funções abelianas, suas preferidas. Nenhum
de seus colegas do colégio tinha condições de apreciá-lo; mas ele foi en-
viado a Rosenhain 48 que compreendeu o seu grande valor. Foi assim que
se tornou evidente a vocação de Weierstrass, até esse ponto desconhecida
por todos.
Desde sua estréia na carreira, ainda estudante de Gudermann, ele viu
com nitidez o rumo no qual se encaminharia durante toda sua vida, sem
jamais esquecê-lo, buscando, sem cessar, aproximar-se dele. Através das
complicações de seu trabalho de aproximação, a unidade de seu pensa-
mento persiste e permanece sempre visível.
Entretanto, claro está, os instrumentos que criou também podiam ser-
vir a muitos outros propósitos; à direita e à esquerda da rota principal
que ele seguiu, abriu vias laterais, engajando-se em mostrar-nos onde elas
conduziam. Orientou os primeiros passos de seus alunos; sua herança foi
suficientemente rica para que cada um deles pudesse tratar de uma parte
substancial.

II
Para atingir sua meta, o grande analista tinha três etapas a cumprir:
1º. Aprofundar a teoria geral das funções, primeiramente a das de
uma variável, logo a de duas; esta era a base sobre a qual a pirâmide
devia erguer-se;
2º. Sendo as funções abelianas a extensão natural das funções elípticas,
era necessário aperfeiçoar a teoria destas últimas, colocando-as numa
incialmente, Matemática, Geografia e Alemão. A Educação Física foi acrescentada a suas tarefas num
estagio posterior. (N.T.)
48
Johan Rosenhain (1816 - 1887), especialista em funções elípticas. (N.T)

45
forma na qual a generalização ficasse facilitada;
3º. Finalmente restava atacar as funções abelianas propriamen te ditas.

III
Entretanto , seria um erro pensar que na persecução de um único desígnio,
ele tenha negligenciado as outras partes da Análise. Na abordagem de
outros problemas não procurava somente exercitar-se, como poderia levar
a crer uma das frases que pronunciar a no discurso acadêmico acima citado.
Ao contrário, ele tinha um espírito mais amplo e, se permaneceu tão es-
treitamente apegado a seu plano de ação, foi porque esperava resultados
de envergadur a universal.
Ele previa conquistas beim mais vastas, senão para ele mesmo, ao menos
para seus sucessores. Se suas esperanças, que no início deviam parecer-
lhe longínquas, terminaram , em grande parte, realizando-se, foi porque
ele não trabalhava isolado. Seus ensinament os formaram numerosos discí-
pulos, proporcion ando-lhe uma equipe que seguia suas diretrizes, à qual,
na impossibilidade dele próprio poder fazer tudo, ele lançava avante.
É por isso que é tão difícil fazer-se um apanhado exato dos traba-
lhos matemático s de Weierstrass; não somente pelo volume de sua obra
impressa; mas porque esta obra não os contém por inteiro.
Por longo tempo, seus trabalhos mais importante s permanece ram i-
néditos, sendo pelo ensinament o oral que ele divulgava os tesouros de
sua ciência, cujas riquezas só foram conservadas até nossos dias graças à
memória de seus ouvintes.
Felizmente os alunos ficavam próximos de sua cátedra e iam em seguida
levar para longe a sua influência. Assim, o espírito de Weierstrass inspirou
não somente os que tiveram a felicidade de ouvir a sua palavra, mas
também aqueles que dela receberam um eco indireto. Assim, na obra de
muitos de nós, ele poderia legitimame nte reivindicar uma parte.
Em seus últimos anos, foi obrigado a abandonar o ensino por moti-

46
vos de saúde, envelhecendo rodeado do respeito e admiração de todos,
ocupando-se tranqüilamente da publicação de seus trabalhos, com a ale-
gria de ver sua obra continuada por homens que ele havia imbuído de seu
espírito.

IV
A Teoria das Funções

No inicio do século XIX, a idéia de função era uma noção muito res-
trita e, ao mesmo tempo, demasiado vaga. Por um lado, as funções
descontínuas e aquelas desprovidas de derivadas eram desconhecidas ou
consideradas criações puramente artificiais, indignas da atenção do mate-
mático. Portanto, excluía-se da Análise todo um domínio, o qual só veio
a ser anexado depois.
Por outro lado, teríamos ficado constrangidos se tivéssemos sido inti-
mados a enunciar de maneira nítida as condições necessárias e suficientes
para que uma função possa ser considerada como tal. A fronteira entre
as funções analíticas e as restantes estava longe de ser completamente
delineada.
Na realidade, devido à herança dos fundadores do Cálculo Infinite-
simal, que estavam principalmente preocupados com as aplicações, os
matemáticos reportavam-se inconscientemente ao modelo fornecido pelas
funções da Mecânica, rejeitando todas as que dele se afastavam; eram
guiados por uma forma de intuição e por um instinto obscuro, mas não
por uma definição clara e rigorosa.
Era necessário dar esta definição, pois esse era o preço para que a
Análise adquirisse um rigor perfeito.
Hoje em dia tudo isso está bem mudado; distinguem-se dois domínios,
um sem limites, o outro rnais restrito, mas melhor cultivado. O primeiro
é o domínio da função em geral, o segundo é aquele da função analítica.
No primeiro são permitidas todas as fantasias e a cada instante nossos

47
hábitos mentais são colocados em xeque e nossas associações de idéias
são quebradas; aprendemos aqui a desvencilhar-nos de certos raciocínios
que teriam parecido satisfatórios a nossos pais, abstendo-nos de certas
conclusões que teriam parecido-lhes legítimas. No segundo, ao contrário,
estas conclusões são permitidas; mas nós sabemos o porquê. Para ver
reaparecer o rigor lógico, foi suficiente colocar no início uma boa definição.
Eis o caminho percorrido. Veremos como Weierstrass contribuiu gui-
ando-nos através dele.
Citarei inicialmente uma nota lida na Academia de Berlim em 18 de
julho de 1872, na qual ele deu exemplos de funções contínuas de uma
variável real, que não admitem derivada em nenhum ponto.
Há cem anos uma tal função teria sido considerada um ultraje ao sen-
tido comum. Teria-se argurnentado que uma função contínua é na sua
essência suscetível de ser representada por uma curva, a qual evidente-
mente possui uma tangente.
Este tipo de raciocínio não possui nenhum valor matemático; ele baseia-
se numa intuição, e sobretudo numa representação sensorial, tosca e en-
ganosa.
Cremos representar uma curva sem largura; mas representamos apenas
um traço de largura tênue. Vemos a tangente na forma de uma banda
retilínea de largura tênue; e quando dizemos que ela toca a curva, quere-
mos dizer simplesmente que as duas bandas encostam uma na outra sem
cruzar-se. Se é isto o que chamamos uma curva e uma tangente, é claro
que toda curva terá uma tangente, mas isto nada terá a ver com a Teoria
das Funções.
Vemos assim a que tipo de erros nos expõe a confiança ingênua na-
quilo que admitimos por intuição. Pela descoberta deste exemplo impac-
tante, Weierstrass deu-nos uma advertência útil e ensinou-nos a apreciar
os métodos impecáveis e puramente aritméticos dos quais ele, mais do
que ninguém, contribuiu para dotar a Ciência.

48
Ao mesmo tempo ele enriqueceu o domínio das funções não analíticas,
que tantas surpresas ainda nos reserva.

Mas esta foi uma excursão curta fora do caminho reto que Weierstrass
havia-se traçado, do qual ele nunca se afastou por muito tempo.
Sobre esse caminho, que ele logo reencontrou, estava o domínio das
funções analíticas, que ele devia explorar a fundo, para atingir seus obje-
tivos.
A teoria moderna das funções teve quatro fundadores: Gauss49 , Cau-
chy50, Riemann 51 e Weierstrass 52 .
Gauss nada publicou enquanto vivo; nada comunicou a ninguém e seus
manuscritos só foram encontrados muito tempo depois de sua morte. Ele
portanto não exerceu nenhuma influência.
Os outros três geômetras que contribuíram na criação da nova noção
de função seguiram vias bem distintas.
Cauchy precedeu os outros dois, mostrando-lhes o caminho, mas mesmo
assim, as três concepções permaneceram distintas, o que foi muito opor-
tuno, pois dispomos assim de três instrumentos, entre os quais podemos
escolher e combinar a nossa ação.
Para Cauchy a definição de função conserva ainda um pouco da in-
decisão que tinha para seus antecessores. Ele impôs somente algumas
condições restritivas, como aquela de possuir derivada contínua. Tudo
para ele repousa sobre um teorema muito simples sobre as integrais ima-
49Carl F. Gauss (1777-1855) . Ver http://scienceworld.wolfra.m.com/biography/Gauss.html (N.T.)
60
A. Cauchy, (1789-1857) . Ver http://scienceworld.wolfram.com/biography /Ca.uchy.html (N.T.)
61
N. T. B. Riemann,(1826-1866). Ver http://scienceworld.wolfram.com/biography/Riemann.html
(N.T.)
62
K. Weierstrass, (1815-1897).
Ver http://scienceworld.wolfra.m.com/biography /Weierstra.ss.html (N. T.)

49
ginárias 53 e sobre a noção de resíduo 54 . Uma função qualquer pode ser
representad a por uma integral definida e torna-se assim trabalhável para
o analista, mesmo que no início fosse apenas vagamente definida. Esta é
uma vantagem preciosa e, ainda hoje, os resíduos nos fornecem a solução
de problemas que seriam intratáveis sem eles.
A teoria de Cauchy contém ao mesmo tempo as concepções geométrica
de Riemann e aritmética de Weierstrass. Assim, é fácil de entender como
ela pode, desenvolvendo-se em dois sentidos diferentes, dar origem tanto
a uma quanto à outra.
Para Riemann, a imagem geométrica desempenh a um papel domi-
nante; uma função não é mais que uma das leis segundo as quais as
superfícies podem transformar -se uma na outra. Procura-se representar
estas transformaç ões, mas não analisá-las; mesmo a existência delas é
estabelecid a por um raciocínio sumário, ao qual só foi possível conferir ri-
gor mais tarde, ao custo de modificações profundas e desvios complicados
desenvolvidos.
Weierstrass coloca-se no extremo oposto; o ponto de partida é a série
de potências, o "elemento de função" que está confinado num círculo
de convergência. Para estudar a função fora do círculo de convergência,
dispomos do procedimen to de continuação analítica55 ; tudo fica assim
obtido como conseqüência da teoria das séries, a qual está estabelecid a
sobre bases aritméticas sólidas. Desvencilhamo-nos assim das dúvidas que
assombrava m no passado aqueles que meditavam sobre os princípios do
Cálculo Infinitesimal, e também daquelas que, por suas lacunas, podiam
provocar a teoria das funções analíticas de Lagrange 56 . Tudo isso é agora
história antiga.
53
Atualmente chamadas integrais complexas. (N.T.)
54
Ver http://mathworld.wolfram.com/ResidueTheorem.html (N .T .)
55
Ver http://mathwor ld.wolfram.com / AnalyticContinuation .html (N .T.)
66
Lagrange, Joseph Louis, conde de (1736-1813), matemático e astrônomo francês. Criou o cálculo
de variações, sistematizou o campo das equações diferenciais. (N.T .)

50
A concepção de Weierstrass apresenta uma vantagem dupla:
1.- Ela é perfeitamente rigorosa e o seu rigor é obtido de maneira muito
simples.
2.- Ela adapta-se com g;rande facilidade à generalização, podendo es-
tender-se às funções de várias variáveis.
Entre as três concepções, teremos o cuidado de fazer a nossa escolha;
cada uma delas tem seu papel essencial. Com o instrumento de Riemann,
a intuição, com um só golpe de vista, captará o aspecto panorâmico das
coisas; como o viajante que do alto de uma montanha examina o territó-
rio que irá visitar e aprende a forma de nele orientar-se. Com o instru-
mento de Weierstrass a análise clarificará sucessivamente todos os rincões,
inundando-os de claridade absoluta.
Em outras palavras, o método de Riemann é sobretudo um instru-
mento adequado para a descoberta, o de Weierstrass é um método de
demonstração.

VI
A contribuição principal de Weierstrass ao progresso da teoria das
funções foi a descoberta dos fatores primário/' 7 .
As funções transcendentes mais simples são as inteiras, que têm apenas
um ponto singular, localizado no infinito. Uma transcendente deste tipo
é o produto de uma infinidade de fatores primários; cada um dos quais
é o produto de um polinômio de primeiro grau e da exponencial de um
polinômio de grau q; diz-se então que q é o gênero do fator primário.
Esta descoberta se relaciona com a classificação das funções inteiras
por gêneros, cuja importância aritmética foi posta em evidência por Ha-
damard58. Uma função é dita de gênero q se todos seus fatores primários
são de gênero no máximo q.
67
Ver http://mathworld.wolfram.com/WeierstrassProductTheorem.html (N. T.)
118
N. T. Jacques Hada.ma.rd, (1865-1963). Ver http://scienceworld.wolfram.com/biography/-
Hada.mard.html, e http://mathworld.wolfram.com/HadamardProduct.html (N.T.)

51
Weierstrass encontrou também a maneira de construir uma função in-
teira cujos zeros são dados.
Este teorema se relaciona diretament e com aquele de Mittag-Lefler 59
sobre as funções meromorfas.
Estes dois teoremas permitem a construção fácil das funções e1( u) e
g:J( u) que, como veremos depois, foram os instrumento s principais de Wei-
erstrass na teoria das funçôes elípticas60 .
É sem dúvida esta perspectiva a que dirigiu por esta via os esforços
do grande geômetra alemão, mas ele recolheu muitos outros frutos. O
alcance do novo método superou amplament e a questão particular que
visava a responder e para a qual havia sido criado.
Devido aos trabalhos do próprio Weierstrass e de Mittag-Lefler, ele
estendeu-se sem dificuldade às funções que apresentam singularidades es-
senciais isoladas, e também., posteriorme nte, aos casos de singularida des
mais complicada s e mesmo de linhas singulares.
Trata-se portanto de um dos métodos mais gerais da Análise.
Nesta ordem de idéias, Weierstrass foi levado a estudar a representaç ão
de funções por séries cujos termos são frações racionais.
Multiplican do os exemplos, ele mostrou como uma tal série pode re-
presentar funções distintas em dois domínios diferentes; nessa ocasião,
ele esclareceu a noção de fronteira natural de uma função e portanto da
própria noção de função analítica61 . Depois desta memória, finalmente,
a obscuridad e se dissipara.

59
Gõsta Mittag-Leffier,(1846-1927).
Ver http://mathworld.wolfram.com/Mittag-LeffiersPartialFractionsTheorem.html (N.T.)
60
Ver http://mathworld.wolfram.com/WeierstrassEllipticFunction.html (N.T.)
61
Ver http://mathworld.wolfram.com/NaturalBoundary.html (N.T.)

52
VII
Entretanto, a teoria de funções de uma variável era insuficiente para
o estudo das funções transcendentes abelianas; era preciso aprofundar a
teoria das funções de várias variáveis.
Por isso o ilustre geômetra alemão não cessava de preocupar-se, de-
vendo deparar-se com novas dificuldades, por não ser possível usar os
fatores primários que lhe haviam sido de tanta ajuda no caso de uma
variável.
Ele pôde, mesmo assim, estabelecer com rigor uma porção de teoremas
necessários para seu objetivo, os quais amiúde eram admitidos sem haver-
se entendido com plenitude os seus sentidos nem seus respectivos alcances.
Sua tarefa foi facilitada pelo uso constante da noção de elemento de função
que ele havia criado.

VIII
Para poder representar por séries todas as funções analíticas, de modo
que estas representações pudessem ser usadas sem receio em todas as ques-
tões de Cálculo Integral, era necessário mostrar que toda função implícita
obtida de um sistema de equações cujos primeiros membros são séries de
potências, ou toda solução de uma equação diferencial cujos coeficientes
são séries de potências, podia exprimir-se por uma série de potências.
Este importante teorema iria ser para Weierstrass uma das pedras fun-
damentais de seu método.
Sabemos, entretanto, que ele havia sido estabelecido pela primeira vez
por Cauchy.
Em 1824, Weierstrass publicou uma memória na qual provou nova-
mente esta proposição de maneira similar àquela dada por Cauchy.
Sem sabê-lo, havia sido antecipado pelo sábio francês mas, mesmo
assim, a referida memória contém uma grande dose de originalidade. A
uniformida de da convergência, o padrão segundo o qual os elementos de

53
função obtêm-se uns dos outros por continuação analítica, são questões
que ele estuda a fundo.
Por outro lado, do ponto de vista didático, sua forma de exposição
apresenta grandes vantagens; sua "função majorante" é mais simples e
mais manipulável que aquela de Cauchy; as desigualdades iniciais são ob-
tidas das propriedades elementares das séries, e não mais da consideração
das integrais imaginárias. Isto já era um progresso, era de interesse esta-
belecer se esta consideração era ou não indispensável.
Por este exemplo, vemos que a maneira segundo a qual o matemático
alemão concebia as funções derivava da concepção de Cauchy, porém
aliviando-a de uma bagagem inútil.
Weierstrass aplica este método a diversas questões e mesmo à existência
de raízes duma equação algébrica. Mas é sobretudo nas mãos de seus
discípulos que o método dá seus principais resultados. Kovalevskaya62 o
aplicou às equações em derivadas parciais e Fuchs 63 às equações diferen-
ciais lineares, com o sucesso que conhecemos.

IX

Um último trabalho, que tem a ver indiretamente com a teoria das


funções é o consagrado ao Princípio de Dirichlet 64 . Com um exemplo
impactante, ele mostrou como era frágil a demonstração deste princípio
que considerávamos satisfatória.
Era sobre este princípio que Riemann havia construído toda sua teoria
de funções; esta base fundamental não era sólida e, se não quiséssemos vê-
la desabar, afetando todo o edifício na sua queda, era necessário reforçá-la;
foi isto o que fizeram Schwarz65 e outros discípulos de Weierstrass.

62
Ver http://www-groups.dcs.st-and.ac.uk/ history /Mathematicians/Kovalevskaya.html (N.T.)
63
Ver http:/ /www-groups.dcs.st-and.ac.uk / history /Mathematicians/Fuchs.html (N .T.)
64
Ver http://mathworld.wolfram.com /DirichletsPrinciple.html (N.T.)
65
Ver http://www-groups.dcs.st-and .ac.uk/ history/Mathematicians/Schwarz.html (N.T.)

54
X
Funções Elípticas

A forma que Jacobi havia dado à teoria das funções elípticas estava
longe de ser perfeita; os defeitos saltavam à vista.
Na sua base encontram-se três funções fundamentais: sn, cn e dn 66 .
Elas não têm os mesmos períodos, para uma estes são 4K e 2iK, para a
outra são 4K e 2K + 21,J('; para a terceira são 4K e 4iK'. Se quisermos
referir as três a um mesmo sistema de períodos, devemos tomar 4K e
4iK'; mas dentro das funçôes transcendentes que admitem estes períodos,
as de Jacobi sn, cn e dn não são as mais simples; elas possuem quatro
infinitos67 , enquanto as mais simples têm apenas dois.
No sistema de Weierstrass, no lugar das três funções fundamentais não
temos senão uma, p(u), e ela é a mais simples de todas as que possuem
os mesmos períodos. Ela tem apenas um infinito duplo; e sua definição
é tal que não se altera quando substituímos um sistema de períodos por
outro equivalente; ao contrário, esta substituição produziria no sistema
de Jacobi permutações cuja lei seria inutilmente complicada.
Na maior parte dos problemas, é suficiente trabalhar com p(u) e a
introdução de sn, cn e dn não seria senão uma fonte artificial de com-
plicações. Há, sem dúvida, outros problemas onde a consideração das
funções de Jacobi seria mais natural, mas mesmo neles, Weierstrass as
substitui com vantagem pelas três funções

J p(u) - e1, J p(u) - e2, J p(u) - e3.


As fórmulas que relacionam umas com as outras são muito simétricas,
podendo obter-se umas das outras por permutações cíclicas. Este não era
o caso para sn, cn e dn, para as quais o módulo intervém na relação que
66
Ver http://mathworld.wolfram.com/ JacobiEllipticFunctions.html (N. T.)
67
Atualmente ditos pólos (N.T.)

55
conecta sn, com dn, mas não entra naquela que conecta cn com dn. Não
há nada que justifique esta incômoda assimetria.

XI

Por outro lado, o papel preponde rante desempenhado pelo módulo é


mal compreendido. O módulo k é a mais simples de todas as funções
modulares, pois a um mesmo sistema de períodos podem correspon der
valores diferentes do módulo. O papel do módulo não é o mesmo com
relação a dois sistemas de períodos, o que dá lugar a uma assimetri a
artificial nas fórmulas.
Para calcular o módulo, é preciso resolver uma equação quártica; esta
solução pode ser evitada tomando por argumen tos fundame ntais os co-
eficientes do primeiro membro desta equação, ou melhor os invariant es
deste polinômio. Estes são os invariantes que Weierstrass chamou g2 e
g3 . O invariant e absoluto

é a mais simples de todas as funções modulares; é o elemento natural que


deve substitui r k, assim como p(u) substitui u sn, cn e dn.

XII

Outra classe de funções transcend entes de importân cia fundame ntal,


são as funções 0. Nelas, também, as noções de Jacobi apresenta m incon-
venientes. As fórmulas de transform ação tiram harmonia à memória por
sua falta de simetria.
As quatro funções 0 e H de Jacobi são casos particula res de funções
mais gerais, as chamada s funções 0 de ordens diferentes, como Hermite 68
demonstr ou numa memória tão concisa quanto substancial. Mas as funções
68
Ver http://www- groups.dcs .st-and.ac.uk / history /Mathematic ians/Herrnite.html (N .T.)

56
de Hermite podem ser elas mesmas generalizadas e existe toda uma classe
de funções que Briot 69 e Bouquet7°, não sabemos porque, chamaram de
intermediárias, que se reproduzem multiplicadas por uma exponencial
quando a variável aumenta de um período.
Entre elas, qual devia ser escolhida para ser o elemento simples? Não
podem ser as quatro funçé5es de Jacobi cujas razões são as funções sn, cn
e dn, já condenadas pela argumentação acima. Também não podem ser
as funções de Hermite, pois nestas os dois períodos não desempenham o
mesmo papel; de forma que estas funções transcendentes tomam uma infi-
nidade de formas diferentes quando substituímos um sistema de períodos
por outro equivalente.
Desde seu início, Weierstrass se preocupou com escolha do elemento
simples e adotou a função que chamou de Al, a qual permanece invariante
quando substituímos o sistema de períodos mantendo o mesmo módulo.
Posteriormente, ele abandonou a função Al ao mesmo tempo que o
módulo, e escolheu como elemento novo a função a, a qual, devido a sua
definição, não se altera quando substituímos o sistema de períodos por
outro equivalente qualquer.
As fórmulas adotam assim sua simplicidade ótima. Entretanto, a
função a não havia destronado definitivamente as funções 0 e, em par-
ticular, aquelas de Hermite, assim como p(u) havia destronado sn, cn e
dn.
A simplicidade do desenvolvimento das funções 0, a rapidez de sua
convergência, a elegância de suas propriedades, reservam-lhes um lugar
importante do qual nunca1 serão desalojadas.
Falta somente saber passar rapidamente de 0 a a e vice-versa.

69
http: //www-groups.dcs.st-and.a,c.uk/ history /Mathematicians/Briot.html (N. T.)
70
http://www-groups.dcs.st-and.aic.uk/ history /Mathematicians/Bouquet.html (N.T.)

57
XIII

Há muitas maneiras de começar a exposição desta importante teoria.


A preferida por Weierstrass era bem curiosa; ele se perguntava sob que
condições uma função admite um teorema de adição.
Esta predileção explica-se facilmente; pois era assim que ele se pro-
punha introduzir seus leitores no domínio das funções abelianas quando
tivesse acabado de desenvolver a teoria; esta maneira de apresentar as
coisas satisfazia-lhe por sua generalidade, que possibilitav a facilmente a
extensão que ele havia vislumbrado. Encontrar-s e-ão as fórmulas de Wei-
erstrass pertinentes às funções elípticas numa cuidadosa resenha publi-
cada por Schwarz; mas não se perceberá com plenitude o desenrolar das
idéias sem referir-se às memórias originais.

XIV
As Funções Abelianas

Como já foi dito, durante toda sua vida, Weierstrass esteve fascinado
pelas funções abelianas. Na primeira parte de sua carreira, ele esforçou-se
em estender a estas funções transcenden tes, e em particular às funções
hiperelípticas71, as propriedade s conhecidas de sn, cn e dn; nessa época,
ainda não havia dado uma forma definitiva à sua própria teoria de funções
elípticas; posteriorm ente atualizou os resultados obtidos na sua fase ini-
cial.
Nesse momento apareceu o trabalho de Riemann, o qual exerceu uma
grande influência sobre o desenvolvimento desta disciplina. As funções hi-
perelípticas deixaram de desempenh ar um papel especial no interesse dos
analistas, que passaram a preocupar-s e pelas funções abelianas geradas
por curvas algébricas mais gerais. Porém os teoremas já demonstrad os
por Weierstrass estenderam -se sem dificuldade para o caso geral.
71
http://mathwor ld .wolfram .com/HyperellipticFunction.html (N .T .)

58
Nesta ordem de idéias, tudo se apóia no estudo das integrais abeli-
anas e das funções racionais de duas variáveis x e y, ligadas por uma
relação algébrica. Tudo isto está relacionado com um importante traba-
lho de Weierstrass, cujos resultados são expostos numa carta endereçada a
Schwarz. Nela são definidas as singularidades verdadeiramente essenciais
das curvas algébricas, aquelas que permanecem inalteradas pelas trans-
formações birracionais72 , hoje denominadas "pontos de Weierstrass 73 ".
O geômetra berlinense também estabeleceu em que medida as razões
mútuas destas singularidades nos permitem conhecer as transformações
birracionais de uma curva nela própria.

XV

No entanto as funções abelianas definidas por Riemann não são as


funções periódicas mais gerais; para o estudo destas últimas, o método
de Riemann parece ineficaz. Sabemos que o número de módulos de uma
curva de ordem p é igual a 3p - 3; o número de coeficientes arbitrários
de uma função 8 de p variáveis é igual a p(p + 1)/2; estes dois números
coincidem só para p = 2 e p = 3; para p > 3, o segundo supera o primeiro.
Há portanto funções 8 que não correspondem a curvas algébricas.
Assim, Weierstrass foi conduzido a abordar a questão por outra via e
a procurar as funções periódicas mais gerais. Uma primeira questão se
apresenta: Quantos períodos pode possuir uma função de n variáveis?
O problema já havia sido resolvido por Jacobi, que havia provado que o
número máximo de períodos é 2n. Weierstrass deu uma prova nova deste
teorema e forneceu as condições para sua aplicabilidade.
Em seguida passou a ocupar-se de estudar as propriedades das funções
mais gerais de n variáveis que admitem 2n períodos. Demonstrou que
elas possuem propriedades análogas às das transcendentes elípticas.
72
Ver http://mathworld.wolfram.com/BirationalTransformation.html
73
Ver http://mathworld.wolfram.com/WeierstrassPoint.html

59
Entre n + l funções com os mesmos períodos, sempre há uma relação
algébrica; daí segue que estas funções admitem um teorema de adição e
satisfazem a certas equações diferenciais.
Finalmen te, Weierstrass prova que uma tal função é sempre o quociente
de duas séries 8 e que as funções abelianas mais gerais podem deduzir-
se das de Riemann pelo procedim ento conhecido como o de "redução de
integrais abelianas ".
O objetivo havia sido atingido.

XVI
Outros Trabalho s
Pouco diremos sobre os outros trabalhos de Weierstrass, apesar de sua
importân cia e diversidade.
Dedicou duas memórias, já antigas, às proprieda des analíticas que ha-
viam sido objeto de numerosas pesquisas anteriores, amiúde conduzid as
defeituos amente e que se reduzem simplesm ente às funções euleriana s.
A questão das unidades complexas também interessou a Weierstra ss
nos seu últimos anos; havia--se depositad o grandes esperanç as como con-
seqüência da invenção dos números complexos; havendo-se criado a ex-
pectativa por surpresas similares às proporcio nadas pelos números ima-
ginários. Foi necessário renuncia r a elas; sabemos agora que todos os
números complexos, isto é, aqueles para os quais a multiplic ação é comu-
tativa, reduzem-se aos imaginários e não nos ensinarão nada de novo 74 .
A descober ta de Hermite que demonstr ou a transcend ência de e, se-
guida por aquela de Linden1ann que estabeleceu a transcend ência de 1r,
atraíram a atenção dos geômetra s durante uma quinzena de anos e não
podiam escapar à de Weierstrass, que aperfeiçoou os trabalhos de seus
antecessores.
74
0 autor está denominando "imagin{1.rios" o que entendemos atualmente por "complexos" e deno-
minando "complexos" o que entendemos por "corpo comutativo".
Ver http://mathworld.wolfram .com/Fielld.html (N.T .)

60
Citemos ainda uma n1emória sobre a representação das funções de
uma variável real por uma, série de polinômios; duas outras sobre a teoria
das formas quadráticas; um trabalho sobre um problema de Cálculo das
Variações; e outro sobre o teorema fundamental de Geometria Projetiva,
etc.
Estes exemplos serão suficientes para provar como, com aguda sutileza,
Weierstrass tocou em todas as partes da Ciência Matemática, adaptando
aos problemas mais diversos os métodos fecundos por ele criados.

XVII
Conclusão

Para terminar este rápido esboço, gostaria de poder caracterizar em


poucas palavras o espírito que em todos seus trabalhos animou o mestre
e seus alunos.
Tratava-se do cuidado permanente com o rigor perfeito.
Por isso, Weierstrass renuncia a servir-se da intuição, ou pelo menos
dela deixa só a parte que é inevitável. As noções intuitivas são analisadas
e reduzidas a seus elementos primários; entre estes elementos, os filósofos
certamente acharão os que conservam o caráter intuitivo; mas estes são
retirados dos domínios da matemática pura, que podem desenvolver-se
sem eles; destes só os físicos irão ocupar-se. Os elementos conservados
são por sua vez analisados até chegarmos ao elemento final, o número
inteiro.
Daí uma certa desconfiança com relação à geometria que caracteriza a
Escola de Berlim; por assim dizer, ela não busca ver, mas sim compreen-
der.
Portanto tudo deriva do número inteiro e conseqüentemente, participa
da certeza da aritmética; o próprio contínuo se remete a esta origem;
todas as igualdades que constituem o objeto da Análise e onde figuram
grandezas contínuas não são senão símbolos substituindo uma multidão

61
infini ta de desigualdades entre números inteiros.
Para Weierstrass, como para Kronecker, as noções analí ticas são cons-
truções feitas com os mesmos materiais: os núme ros inteiros. Mas

uma diferença entre as duas concepções. Kronecker está preoc upad
o em
colocar em evidência o carát er filosófico das verdades mate mátic as;
sendo
o núme ro inteiro o fundo de tudo, ele quer que isto fique semp re
claro;
para ele as únicas operações lícitas são a adição e multiplicação; sendo

por uma concessão aos prejuízos modernos que ele às vezes conse
nte em
admi tir a divisão.
Este não é o ponto de vista de Weierstrass. Uma vez criad a uma
construção, ele esquece o mater ial do qual ela é feita, só quere ndo
ver
nela uma unidade nova, a qual fará parte de uma const rução ainda
mais
grandiosa. Ele pode fazê-lo sem receio, porqu e ele tem, de uma vez
por
todas , provado a sua solidez.
Estas unidades intermediárias são apenas elementos auxiliares;
mas
nosso espírito é tão frágil que não pode prescindir delas, pois não
conse-
gue, ao mesmo temp o, perceber todos os detalhes das grand es estru
turas .
Estes artifícios são necessários se queremos sempre progr edir e este
é jus-
tame nte o desejo de Weierstrass. Kronecker, ele própr io, tamb
ém fez
descobertas, mas se a elas chegou foi esquecendo que era filósofo, desca
r-
tando ele mesmo seus princípios que estavam de antem ão cond enado
s à
esterilidade.
Weierstrass procede por construção partin do do núme ro inteiro;
evo-
luindo assim do simples para o complexo. Com esta tendê ncia,
ele se
distingue de outro s anali stas que parte m do geral e do indet ermin
ado, o
qual, por sucessivas restrições nas hipóteses, passa m a deter mina
r. Daí
o contr aste entre a sua mane ira de conceber as funções analí ticas
e a de
seus antecessores.
Outro pensa ment o parece tê-lo guiado. Em 1875, escreveu a Schwarz 5
7 :
75
Herman n Amandus Schwarz, (1843 - 1921), foi discípulo de Weires
trass, defendendo sua. tese em

62
"Quanto mais reflito sobre os princípios da teoria das funções - e faço
isto insistentemente- mai:s solidamente me convenço que estes são cons-
truídos sobre a base de verdades algébricas e que, conseqüentemente, este
não é o caminho correto a ser seguido, se ao contrário fazemos apelo
ao transcendente para estabelecer os teoremas mais simples e fundamen-
tais da Álgebra; e isto permanece verdadeiro, por mais penetrantes que,
à primeira vista, possam parecer as considerações pelas quais Riemann
descobriu tantas propriedades importantes das funções algébricas".
Poderia citar outros exemplos inspirados na mesma idéia. Ele se es-
forçou constantemente em atingir o seu objetivo pelo caminho mais direto,
que não é necessariamente o mais rápido nem o mais elegante, mas que é
o mais lógico 76 .

1864. Sucedeu o seu mestre como Professor da Universidade de Berlim em 1892. Ver citação na seção
IX. (N.T.)
76
Nesta seção abusamos das cômodas e eficazes referências na Internet. A maioria dos livros em
Português sobre este assunto são ma.is elementares do que seria necessário para acompanhar conforta-
velmente a presente biografia científica.. Uma notável exceção, que o leitor matemático poderá consultar
com proveito, é: Funções de uma Variável Complexa por Alcides Lins Neto, Projeto Euclides, IMPA,
1996. (N.T.)

63
4 Lorde Kelvin
77 O falecimento de Lorde Kelvin foi uma perda para todo o mundo a-
cadêmico. Foi sentida tanto por aqueles que não o conheciam, mas que
mesmo assim o admiravam, como pelos que haviam tido a felicidade de
aproximar- se dele e que haviam aprendido a prezá-lo.
A marca que deixou nas ciências físicas ou, como dizem os ingleses,
na Filosofia Natural, é profunda e perdurará, não somente graças a seus
trabalhos individuais mas também graças à influência por ele exercida e
pelos discípulos que inspirou.
Neste curto estudo só será possível resumir os traços gerais de sua
obra, procurando colocar em evidência os mais característicos. Algo que,
de saída, impacta todo mundo é que o mesmo homem, que tantas contri-
buições de caráter prático deixou, tenha-se comprazido em considerações
das mais abstratas, empenhando-se constantem ente em arrancar da N atu-
reza segredos ciosamente guardados, os quais, entretanto, são de interesse
menor para os engenheiros. Esta aliança entre a teoria e a prática é sem
dúvida o caráter distintivo do gênio de Lorde Kelvin.
Vejo-o ainda na minha frente, folheando suas cadernetas de anotações
nas quais suas pesquisas sobre a teoria dos gases se encontrava m de tal
forma entremeada s com os cálculos pertinentes aos cabos submarinos , que
só ele poderia reconhecê-las. Podia ver-se quantas vezes, em poucos dias,
seu espírito havia passado de uma à outra destas duas preocupações.
Mas que não se diga que esta é a tendência natural dos cientistas
ingleses. "Como são felizes vocês na França que não sofrem do divórcio
entre a ciência e a prática como nós," disse-me ele um dia. Talvez ele
visse o que ocorre na França com olhos demasiado otimistas, mas isto
prova ao menos que o mal do qual nos queixamos não é desconhecido na
Inglaterra. Nos dois países, e sem dúvida em todos os países, são poucos
77
Artigo publicado originalmente em La Lumiere Électrique, 2• sér., 1908, 1, 139-147. (N.T .)

64
os homens que reúnem as duas aptidões opostas, mesmo que em grau
menor, sendo, por assim dizê-lo, pequenos Lordes Kelvin.
Conheci-o tardiamente mas ainda jovem, como ele sempre se conser-
vou. Até seu último dia, seu ardor juvenil e sua capacidade de entusiasmo
permaneceram intactos. Havia ainda algo mais nele, conservava aquilo
que as pessoas de idade avançada têm maior dificuldade em preservar:
a capacidade de adaptar-se, de mudar e de deixar de lado aquilo pelo
qual foram muito afeiçoados. Fiquei, portanto, muito surpreso no mês de
abril anterior à sua morte, quando tive a honra de encontrá-lo em Glas-
gow, e ouvi-lo dizer que havia renunciado a idéias que outrora eram-lhe
muito caras. Parece que havia participado isto a também alguns de seus
discípulos, o que causou consternação; eles não podiam segui-lo na sua
evolução, eram menos jovens do que ele.
Não podemos impedir de fazer uma outra observação. Onde devemos
buscar as suas idéias mais profundas? É nas suas Palestras Populares
(Popular Lectures). Estas lições não são simples vulgarizações nas quais
teria sacrificado, a contragosto, horas furtadas de seu trabalho mais sério.
Ele não se rebaixava ao falar para o povo, porque, quase sempre, era na
frente dele que o seu pensamento nascia e revestia a sua forma mais ori-
ginal. Era portanto nestas mesmas páginas que o cientista experiente e
o leitor novato podiam buscar e encontrar o alimento. Como isto acon-
tecia? Isto provém evidentemente da natureza de seu próprio espírito;
ele não pensava em termos de fórmulas, mas de imagens; a presença do
auditório popular, a necessidade de fazer-se entender, sugeriam-lhe espon-
taneamente a imagem, que para ele era a geradora natural do pensamento.
William Thomson, o futuro Kelvin, nasceu em Belfast em 26 de junho
de 1824, filho segundo de James Thomson, professor do Instituto Real
Acadêmico de Belfast. Em 1832, seu pai, homem enérgico que se havia
feito a si mesmo, foi nomeado professor de matemática na Universidade
de Glasgow. Foi nesta Universidade que ele matriculou seus dois filhos,

65
James e William, ambos destinados à celebridade. Bem preparados pelo
pai, não tardaram em distinguir-se. Entretanto, foi em Cambridge que
William participou do concurso pelo posto de senior wrangler78 , obtendo
apenas a segunda colocação; os jurados reconheceram que o primeiro co-
locado não tinha o mesmo nível de Thomson, mas eram fiéis à superstição
dos "pontos". É possível que depois de tudo a Inglaterra difira da França
menos do que muita gente pensa. No mesmo ano William obteve uma
bolsa de estudos ( a fellowship) no Saint Peter's College.
A bolsa de estudos é uma instituição que nos surpreende; a idéia de
ter funcionários pagos para trabalharem livremente, fazendo o que bem
entenderem, vai de encontro a todas nossas tradições administrativas.
Mas essa liberdade foi ainda mais oportuna para a Inglaterra, pois, nessa
época, a Universidade de Cambridge não dispunha de um laboratório bem
instalado. Assim, Thornson visita Paris e trabalha com Regnault 79 , desen-
volvendo pesquisas sobre a teoria da propagação do calor. Tendo apenas
22 anos, a Universidade de Glasgow lhe oferece a cátedra de Filosofia Na-
tural, que ele passou a ocupar por mais de meio século, retirando-se em
1899. Aproveitando a experiência tida em Paris, ele funda um laboratório
anexo à cátedra, o que parecia ser uma novidade ao outro lado do Canal
da Mancha; os nossos eram pobres, mas pelo menos existiam.
Passaremos rapidarnente a seus trabalhos onde, ao lado de estudos
puramente matemáticos muito elegantes, ele começa a ocupar-se da te-
oria do calor de Fourie:r80 , a teoria do potencial e a eletrostática. Estes
trabalhos conduziram-no à descoberta do método das imagens do qual
falaremos depois; mas o que começa a atrair a atenção sobre seu nome
são suas pesquisas sobre a termodinâmica. Era a época de nascimento
78
Na Universidade de Cambridlge, o primeiro do quadro de honra em Matemática. (N.T.)
79
Victor Regnault (1810 - 1878), físico e químico francês, trabalhou na. determinação dos coeficientes
de dilatação e capacidade calorífica. dos materiais. (N.T.)
80
JosephFourier, (1768, 1830) . (N.T.)

66
desta ciência; havia-se descoberto o princípio da equivalência81 , mas ele
ainda não era aceito, nem bem compreendido, por todos. Por outro lado,
um leitor superficial teria achado que nada mais poderia ser tirado de
novo da célebre obra de Carnot82 , que o essencial de suas idéias eram
incompatíveis com o novo princípio e estariam, portanto, condenadas.
A tarefa a ser cumprida era dar ao princípio da equivalência e ao
de Carnot suas formas definitivas, conciliando-os. Havíamos visto cami-
nhar rumo ao mesmo objetivo, paralela e independentemente, Clausius83 ,
Helmholtz 84 , Rankine85 e Thomson. Era o mesmo espetáculo que no
período anterior haviam dado J oule86 e Mayer 87 , sendo levados simulta-
neamente ao princípio da equivalência. Há um momento em que, depois
de longamente semeado, o trigo está pronto para nascer e o vemos então
brotar da terra de todos os pontos, simultaneamente.
W. Thomson foi durante seus primeiros anos fiel às idéias primitivas
de Carnot, conhecendo-as só indiretamente pela leitura de uma memória
de Clapeyron88 ; uma vez encontrada e lida a memória original, dá-lhe
uma apresentação luminosa, interessante em vários aspectos, e vê ime-
diatamente a possibilidade de uma definição absoluta da temperatura,
independente da escolha arbitrária de um corpo termométrico. Nesse
momento, isto é em 1848, ele ainda escrevia que a conversão do calor
em trabalho era provavelmente impossível. O seu irmão, J. Thomson,
acabava de demonstrar que o aumento de pressão abaixa o ponto de con-
gelamento da água, e William pôs em evidência que este fato experimental
era uma confirmação da teoria de Carnot.
• ff ,
Slp •
rmc Ípio s1co que propõe a equivalência. entre trabalho e energia. (N.T.)
2
ª83 Nicolas Léona.rd Sadi Ca.rnot, (1796-1832), físico e engenheiro militar francês. (N.T.)
Rudolf Emanuel Clausius, (1822-1888), físico e matemático alemão. (N.T.)
::H~r~ann Lud:-"ig Ferdinand von Helmholtz,(1821-1894), cientista alemão. (N.T.) . .
W1lham Rankme, (1820 - 1872), engenheiro escocês, um dos fundadores da Termodmãmica. (N.T.)
86
James Prcscott Joule, (1818-1889), físico britânico. (N.T.)
87
Julius von Mayer, (1814-1878), médico e físico alemão. (N.T.)
88
Emíle Cla.peyron, (1799 - 1864), engenheiro e físico francês. (N.T.)

67
Em 1850, entretanto, vV. Thomson se alia às idéias de Joule, dando
seguimento às pesquisas de Rankine. No ano seguinte publica nos Tran-
sactions da Real Sociedade de Edimburgo o seu grande artigo On the
Dynamical Theory of Heat, no qual adota definitivamente as novas con-
cepções sobre a natureza do calor. Ele prezava o que havia descartado,
mas tem o bom senso de nào descartar tudo de uma só vez; havia visto as
idéias de Carnot, as quais também havia feito suas, confirmadas pela ex-
periência, fato que não poderia acontecer só por um acaso; era necessário
que elas contivessem uma parte de verdade, e é esta parte à qual ele se
dedica, com sucesso, a esclarecer. Por exemplo, não era necessário aban-
donar a idéia de escala absoluta de temperaturas, concebida sob influência
de Carnot; só tinha que modificá-la.
Em outros artigos Thomson introduziu a noção da dissipação de ener-
gia, à qual Rankine e Clausius, por seu lado, haviam chegado; e também a
noção de "motividade (motivité) ", isto é de trabalho mecânico realmente
disponível, representado pelo calor encerrado em vários corpos submeti-
dos a temperaturas distintas.
Outra descoberta foi aquela do efeito chamado de Joule-Thomson; a
lei, chamada de Joule, se aplica só aos gases perfeitos, e as experiências
mais delicadas permitiram medir a discrepância entre a lei teórica e a
real. Foi a maneira de determinar efetivamente a escala absoluta das
temperaturas, cuja idéia ele havia concebido. Sabemos que O efeito Joule-
Thomson _recebeu ,de~ois um~ aplicação prática importante que permitiu
89
a utilizaçao da n:iaquma de_ L~n~e para a fabricação de ar líquido.
As novas teon~s termodmamicas não se aplicam só aos fluidos, devem
ser válidas tambem para os sólidos, mas elas se tornam • plica-
. e ~ , . mais com
das pois o 1enomenos term1cos se misturam com l' t· t e' o
' . . . os e as 1cos; es e
assunto de seu artigo mt1tulado Elasticidade e Cal blº d 1878
· z 'd · B ·t,. · or, pu 1ca o em
na Encic ope ia ri anica; nesta época J. á estav · t d t - es
, a m eressa o em ques o
89Karl von Linde, (1842 - 1934), engenheiro alemão. (N.T .)

68
cosmológicas; é por isso que as aplicações à física do globo têm neste artigo
um lugar importante.
A termodinâmica desempenha também um papel nos fenômenos e-
létricos. Os fenômenos termo-elétricos não podem escapar às suas leis;
Thomson mostrou de que forma eles as obedecem. As coisas não eram
tão simples como acreditávamos e foi assim que o efeito Thomson foi
descoberto, isto é, a diferença de potencial no contato entre duas massas
metálicas, quimericamente idênticas, mas de temperaturas distintas.
No que concerne aos fenômenos de diferença de potencial no contato,
ele permanece fiel, até o fim, às idéias de sua juventude. É em 1851 que
publica seu trabalho fundamental sobre a pilha de Volta; ele considerava
o efeito Volta como uma forma de ação química à distância, entre o zinco
e o cobre e, em 1883, retorna à mesma idéia para buscar um meio para
determinar o tamanho dos átomos. Sua maneira de abordar esta questão
não é universalmente aceita.
Não foram apenas os domínios da eletricidade e do magnetismo que
ele explorou, seria muito extenso enumerar todas as memórias dedicadas
aos assuntos que ele abordou. Citemos, em particular, o elegante método
das imagens que dá a solução de tantos problemas eletrostáticos, como
o da distribuição de eletricidade na superfície de uma lente ou de duas
esferas vizinhas. Ela não se aplica somente à eletrostática, mas também,
por exemplo, ao estudo do magnetismo induzido, ensinando-nos, entre
outras coisas, como se comporta uma placa de ferro em presença de um
pólo magnético.
A telegrafia sem fios utiliza, como sabemos, os osciladores de Hertz 90 ;
mas estes haviam sido descobertos muito tempo antes que Hertz, por
Feddersen, pela simples descarga de um condensador91 . Só que estes os-
90Heinrich Hertz, (1857-1894), físico alemão. Esclareceu e ampliou a teoria eletromagnética da luz,
demonstrando que a eletricidade pode se transmitir em forma de ondas eletromagnéticas. Estas ex-
periências conduziram-no à. descoberta do telégrafo e do rádio sem cabos. (N.T.)
91
Ver http://kr.cs.ait.ac.th/ radok/physics/k14.htm, onde se encontram dados históricos pertinentes

69
ciladores não haviam recebido nenhuma aplicação prática, nem poderiam
havê-la recebido, pois têm freqüência muito baixa. Foi Thomson quem
estabeleceu a teoria destes fenômenos e, ao mesmo tempo, a dos oscila-
dores hertzianos ainda por nascer, aos quais havia-se antecipado em mais
de trinta anos.
Os eletricistas deviam estar agradecidos a Thomson pelos instrumentos
de medição que ele descobriu; para dar-se conta do caminho percorrido
é preciso lembrar como eram as medições elétricas antes dele, como elas
eram difíceis e ao mes1no tempo grosseiras!
Em eletrostática, devemos a ele o eletrômetro absoluto e o eletrômetro
de quadrantes, em lugar do de folha de ouro ou da balança de Coulomb92 .
Ele nos deu também os amperímetros e os instrumentos para a deter-
minação precisa da resistência. Sem seus instrumentos, a eletrotécnica
não teria nascido ou estaria ainda tateando no emaranhado de um empi-
rismo grosseiro.
William Thomson contribuiu decisivamente para a adoção das unida-
des elétricas absolutas e do sistema C. G. S.; e não será aqui que ire-
mos relembrar os serviços prestados pelo triunfo deste sistema em 1881.
Também era partidário do sistema métrico, empenhando-se muito a seu
favor; suponho que haverá convencido os cientistas, mas também empre-
endeu a tarefa de convencer o grande público, retornando a este assunto
várias vezes em suas Palestras Populares. Entretanto, havia fortes re-
sistências a temer; parece que os ingleses ainda não aceitaram que é mais
fácil dividir por 10 do que por 12, ou por outros números mais com-
plicados ainda que sejam as razões de diversas unidades que eu hesito
em escrever. Depois de tudo, nós continuamos a dividir os graus em 60
minutos. Ele faleceu sem haver triunfado definitivamente; mas diversos
sintomas permitem esperar que seus esforços não tenham sido totalmente
às oscilações elétricas e às contribuições de Feddersen e Hertz, entre outros pioneiros. (N .T .)
2
º 9harles de Coulomb, (1736-1806), físico francês e pioneiro na teoria elétrica, inventou a balança de
torçao para medir a força da atração magnética e elétrica. (N.T.)

70
inúteis, e que a verdade, se bem que marche lentamente, pelo menos está
em movimento.
Seus trabalhos sobre a telegrafia submarina muito contribuíram para
popularizar o seu nome; foram seus primeiros sucessos dos quais nunca
deixou de ocupar-se. Os engenheiros que se dirigiram a ele deviam ter
sentido alguma hesitação, pois não podiam considerá-lo um practical man,
mas não tiveram porque arrepender-se. Parece certo que, sem ele, os sinais
telegráficos não teriam cruzado o Atlântico. Deu-se conta da influência
da capacidade do cabo no problema, formulando o que depois chamou-
se a equação dos telegrafistas. Não bastava saber porque os sinais não
passavam, era necessário encontrar o remédio. A este problema ele deu
duas soluções, primeiramente foi a dos aparelhos de espelho, sensíveis às
mínimas variações de corrente e, depois, a do siphon recorder, usado até
nossos dias.
O telégrafo submarino coloca outros problemas, por exemplo o da co-
locação mesma do cabo e o da condição de sua resistência. Eis como
Lorde Kelvin foi levado a ocupar-se das sondagens no mar. Antes disso, a
profundidade era estimada pelo comprimento da linha que era necessário
desenrolar; o novo aparelho registrava a pressão máxima atingida; bem
simples e prático, atualmente de uso generalizado. Este não é o único
serviço prestado por Thomson à navegação; também não é o principal.
O mais importante é a invenção da bússola compensada. A bússola con-
vencional era apropriada aos velhos navios de madeira; quando o ferro
substituiu a madeira nas construções, temeu-se não poder utilizá-la mais,
pois suas indicações ficavam deturpadas; a teoria do magnetismo forneceu
a solução; poderíamos ter sonhado como calcular a correção a fazer; mas
era mais simples utilizar as massas compensatórias; e foi isto o que Kelvin
fez, mostrando en1 que condições a compensação é possível e como pode
ser obtida de uma vez por todas, para uma latitude e um rumo quaisquer.
William Thomson ocupou-se também das ondas do mar e da cons-

71
trução de faróis; mas, entre as coisas do mar, a que mais chamou a sua
atenção foi o estudo das marés. Limitar-me-ei a citar dois instrumentos
úteis para predizê-las: o Harmonic Analyzer e o Tides Predictor-, o pri-
meiro, que permite analisar as curvas dos mareógrafos e deduzir as cons-
tantes de um porto, nào é muito divulgado; prefere-se fazer inumeráveis
adições para o cálculo destas constantes. Mas uma vez determinadas as
constantes, é preciso deduzir as curvas de marés para os anos futuros, para
o que é necessário utilizar o Tides Predictor-, este instrumento é muito en-
genhoso e ao mesmo tempo muito simples, compondo-se essencialmente
de um fio passando sobre uma série de polias excêntricas; é utilizado nos
serviços hidrográficos de todos os países.
Todos os cientistas ingleses têm nas suas mãos o que eles chamam
de ti and ti, isto é o Tratado de Mecânica de Tait e Thomson 93 . Pou-
cas obras clássicas contêm tantas visões originais e profundas; há teorias
que só se encontram neste tratado e que as obras similares publicadas
no continente, não sei porquê, não reproduzem. Tal é o caso dos peque-
nos movimentos por m.eio das equações de Lagrange ou de Hamilton94 ,
com aplicações à estabilidade dos movimentos giroscópicos, levando, ou
não, em conta a fricção. Tal é, igualmente, o caso da teoria dos Kine-
tic Foci e da estabilidade de uma trajetória. Nada mais sugestivo que
estas teorias, tão gerais e ao mesmo tempo tão concretas e, por serem
abrangentes e intuitivas, mostram tantas coisas de uma só vez. Elas se
relacionam, além disso, aos princípios do cálculo de variações, os quais
parecem pouco acessíveis aos iniciantes, mas que Thomson não tem receio
de abordar para todos os públicos, já que uma de suas Palestras Popula-
res, a mais interessante, é devotada aos problemas isoperimétricos. Neste
livro encontrar-se-á muitas de suas pesquisas sobre as marés, e sobretudo
93
Treatise on Natural Philosophy, Cambridge, 1867. Reimpresso em 1962 por Dover Publications
Inc., em 2 volumes, sob o título Principies of Mechanics and Dynamics. (N.T .)
91
Hamilton, William Row~ (ll805-1865), matemático e astrônomo britânico, conhecido principal-
mente por seus trabalhos em Optica e Mecânica. (N.T.)

72
aquelas que nos ensinam sobre o estado interior do globo; é lá que também
está sua exposição sobre as massas fluidas em rotação.
Isto me leva naturalmen te a falar das idéias de Kelvin sobre a cosmo-
gonia e a física do globo terrestre. Várias de suas memórias e de suas
Palestras Populares são devotadas a questões de geologia. Está em desa-
cordo sobre pontos essenciais com os geólogos clássicos e, posso dizer ainda
mais, em desacordo com as duas escolas clássicas de geologia. Aos par-
tidários das causas atuais, ele opõe os dados relativos ao grau geotérmico
e ao resfriament o gradual do globo. Dado o calor que nosso planeta perde
a cada ano, podemos concluir que ele foi um fluido há apenas um bilhão
de anos. Ainda ontem (no sentido que os geólogos atualistas dão à pa-
lavra ontem) ela era muito diferente do que é hoje. Mesmo o sol não
pode ser muito velho; ele tem um prodigioso consumo de calor; a força
viva da poeira cósmica que ele consegue devorar não é suficiente para
alimentá-lo . A origem de seu calor não pode ser outra que sua própria
contração; então sua duração possível limita-se a algumas centenas de
milhões de anos. Como resta pouco tempo para a vida! Que perspectiva
para o futuro do sistema solar! É uma felicidade que a descoberta do
rádio tenha feito acender em certas pessoas a esperança de prolongar a
vida do doente.
Por outro lado, Thomson nega a existência do Oceano em fusão que os
geólogos da outra escola colocam no centro da terra, do qual estaríamos
separados por uma crosta delgada. Primeirame nte, quando a terra se soli-
dificou, não pôde se formar uma crosta como num estanque que congela, o
gelo permanece na superfície porque é mais ligeiro do que a água líquida;
mas a água, neste contexto, é um corpo excepcional. Por outro lado, a
teoria da precessão95 e da nutação 96 é confirmada com notável precisão
96
Precessão, inclinação do eixo de giro de um corpo em rotação diante de qualquer força que tenda
a trocar o plano de rotação. Em astrnnomia, movimento dos equinócios na eclfptica. (N.T.)
96
Nutação, movimento periódico superposto ao movimento de precessão do eixo de rotação de um
corpo em rotação. (N.T.)

73
pelas observações; mas os fundadores da mecânica celeste desenvolveram
esta teoria para um globo sólido, não levando em conta que no interior ele
é liquido, e assim sendo, os fenômenos seriam totalmente diferentes, ha-
vendo uma nutação semi-mensal muito sensível. Finalmente, este oceano
interior teria suas marés, que perturbariam aquelas dos mares; Thomson
tem então refutado as observações das marés, concluindo que a Terra não
somente não tem interior líquido, mas é vinte vezes mais rígida do que o
aço. Recentemente foram realizadas experiências com um pêndulo hori-
zontal, em condições onde não haveria receio de interferência com todas a
causas perturbadoras que influenciam as marés, não havendo sido obtidos
resultados tão extremos. A terra deve contentar-se com a rigidez do aço.
Estas experiências constituem uma forma de confirmação das idéias de
Lorde Kelvin.
Deixemos agora nossa terra e mesmo nosso sistema solar e dirijamos
o olhar sobre o conjunto do universo. Como vai se comportar a matéria
desde que ele seja formado sob influência da atração newtoniana? Su-
ponhamos que a matéria esteja inicialmente uniformemente distribuída
sobre uma esfera, a qual a luz tardaria 6, 000 anos em atravessar; uma
molécula colocada originalmente em repouso na superfície desta esfera ad-
quiriria velocidades enormes em alguns milhões de anos, e a comparação
destas velocidades com a que observamos nos força a limitar as dimensões
e a densidade média do universo; ela nos ensina também que o éter não
obedece à gravitação; e aprofundando esta idéia grandiosa de Thomson,
perceberemos a Via Láctea comportando-se como fazem os gases na teoria
cinética, salvo que os átomos aí são substituídos por sóis.
Atraído pela física do globo, Kelvin aplicou, no seu estudo, sua ha-
bilidade de eletricista. Fez pesquisas importantes sobre o magnetismo
terrestre e sobre a eletricidade atmosférica. Para estudar o potencial das
diferentes camadas da atmosfera, ele imaginou aparelhos de escoamento
de água que têm sido de grande utilidade.

74
Mas o grande problema para ele, no qual não parava de sonhar, era o
da constituição do éter 97 e da matéria. Há um estranho contraste entre
os cientistas anglo-saxões e os pensadores do continente na maneira de
abordar este problema. Tanto uns quanto outros buscam decompor a
matéria vulgar em elementos bem pequenos, substituindo-a por matéria
sutil, a qual fornecerá a explicação. Como então conceber estes últimos
elementos? No continente, estes serão entes tão puramente matemáticos
quanto possível, desprovidos de todas as qualidades que possam ser de-
tectadas por nossos sentidos, deixando, por assim dizer, de ser elementos
materiais. Do outro lado do Canal da Mancha a coisa é bem diferente;
quer se fazer da matéria não algo mais puro do que a própria matéria,
mas algo tão semelhante quanto possível à matéria conhecida, algo que
possa ser visto ou tocado. Explicar um fenômeno físico é imaginar um
modelo, um aparelho visfvel e palpável, cuja fabricação possamos enco-
mendar a um construtor, e cujo funcionamento reproduza grosseiramente
algo semelhante ao fenômeno a explicar. Se um destes modelos torna-se
insuficiente para descrever um fenômeno novo, Lorde Kelvin não hesita
em acoplar-lhe um "remendo (renvoi de sonnete)", como se tivesse um
serralheiro à sua disposição. E o que dizer do éter? Na França e Ale-
manha não é mais do que um sistema de equações diferenciais; enquanto
não engendre contradições ou discorde dos fatos observados, não causará
preocupação o fato que a imagem por ele sugerida seja mais ou menos
estranha ou insólita. W. Thomson, ao contrário, busca imediatamente
qual é a matéria comum que mais se assemelha ao éter; parece que esta
é o scotch shoe wax, ou seja uma espécie de piche muito duro.
Colocamos agora uma questão algo desconcertante. Quando lemos os
trabalhos de um cientista continental, vemos de imediato em que medida
ele acredita que teve sucesso; como estamos acostumados à sua maneira
97
Éter, substância. hipotética que os físicos do século XIX acreditavam ser universal e imaginavam
como o meio necessário para a propagação da radiação eletromagnética. (N.T.)

75
de pensar, distinguimos aquilo que, a seu ver, é uma hipótese mais ou
menos justificada e o que é apenas um símbolo. Quando se trata de um
cientista inglês, não sabemos o que pensar. Evidentemente, quando ve-
mos um modelo no qual se entrecruzam um emaranhado de varinhas e de
remendos, não hesitamos: vemos bem que se trata de uma simples ima-
gem, de uma maneira de fazer-se entender. Mas, de outro lado, parece
que estas imagens rudes devem ser substituídas, sem demora, por outras
imagens, destinadas a ser definitivas, a ser a realidade efetiva, e que dela
não estão demasiado longe. O cientista inglês busca de imediato uma me-
dida; é pouco dizer que o éter existe, ele quer saber a sua densidade; não
é suficiente saber que a matéria se comporta como se fosse descontínua;
ele quer saber qual é o número de moléculas e quais são seus respectivos
diâmetros. Quando ele percebe um símbolo, procura tocá-lo como se não
fosse um simples fantasma.
A teoria cinética dos ~~ases é uma das tentativas mais felizes feitas
para explicar a matéria. Estranhamente, Lorde Kelvin estava por ela
seduzido e, ao mesmo tennpo, refratário. Ele nunca pôde dar-se conta
da generalidade do teorema de Maxwell-Boltzman. Ele supunha que este
teorema devia comportar exceções, e quando lhe foi mostrado que era só
aparente uma exceção que havia achado ver, ele procurou uma outra.
A teoria molecular da matéria modela um corpo material por uma
espécie de sistema solar onde as moléculas estão em movimento contí-
nuo, e onde o equilíbrio aparente deve-se à estabilidade deste movimento.
Esta teoria, digo eu, tinha, quando Thomson era jovem, toda a atração
da novidade; ela parecia uma conseqüência direta da descoberta da ter-
modinâmica. Ele ficou apegado a isso por algum tempo. Ele foi assim
conduzido a uma teoria da elasticidade, mais geral que a de Cauchy, que
ele tinha completado com alguns remendos complementares. Esta teoria
se reduzia a supor vários tipos de moléculas, como aquelas que seriam
uma mistura gasosa, e é desta forma que nós as apresentamos na França.

76
Mas mesmo depois deste aperfeiçoamento, não estava satisfeito por com-
pleto, não lhe parecia representar convenientemente as propriedades do
éter, tais como são reveladas pelos fenômenos óticos. Parece que o éter
não opõe resistência à compressão, nem à deformação; aceita bem deixar-
se comprimir ou cisalhar, mas não deixar-se torcer, contrariamente ao
que a matéria normal faz. Então Thomson imagina um meio formado
por varetas unidas, podendo colidir umas com outras, mas carregando gi-
roscópios animados de rotações rápidas e resistindo mais ou menos quando
queremos mudar suas orientações. Trata-se do éter girostático.
Os átomos turbilhões estão associados a esta ordem de idéias; num
líquido os turbilhões são estáveis; eles se transportam sem perder, em
nada, seu momento de rotação que lhes dá sua individualidade. Quanto
mais rápida é esta rotação, mais resistência aparente oferecem, levando à
impenetrabilid ade. Aumentando esta rapidez, alcançaremos uma rigidez
praticamente absoluta. E então, por que os átomos materiais não seriam
simplesmente semelhantes aos turbilhões? Seriam inseccionáveis, mas
sabemos que um sabre se lasca com uma veia líquida em movimento
suficientemente rápido. Assim, tanto a matéria ordinária, como o éter,
deverá suas características essenciais às rotações rápidas que reinam no
seu se10.
Outra semelhança curiosa. Suponhamos dois turbilhões num líquido.
Qual será a sua ação mútua? Thomson demonstrou que ela será a mesma
que a ação eletrodinâmica de duas correntes que tivessem a mesma forma
e posição que os turbilhões. Seria a mesma a menos de sinal; sendo inver-
tida, as atrações substituídas pelas repulsões e vice-versa. Uma inversão
análoga foi observada por Bjerknes 98 .
Nesta resenha dos trabalhos de Lorde Kelvin, irei omitir suas idéias
98
Yilhelm F. Koren Bjerknes, (1862-1951), físico e meteorologista norueguês, cuja teoria das frentes
polares serviu de base para a moderna previsão do tempo. Desenvolveu modelos hjdrodinâmicos dos
oceanos e da atmosfera.
Ver http://www-groups.dcs.st-and.ac.uk/ history /Mathematicians.Vilhelm.html. (N.T.)

77
sobre a capilaridade, que ele formulou de uma maneira tão impactante e
original nas suas Palestras Populares.
Quase ao fim de sua vida houve nas suas idéias uma notável mudança
que pode explicar as descobertas inesperadas de seus últimos anos: os
raios catódicos, os raios Rõntgen, o rádio. Podemos dar-nos conta do
progresso de suas idéias lendo a nova edição de suas Baltimore Lectu-
res. Tendo ido à América para o Congresso de Montreal, fez uma série
de palestras nas quais expôs suas idéias antigas sobre o éter de Fresnel.
É lá que encontramos, reunidas e apresentadas no seu conjunto, numa
forma que parece definitiva, teorias que até então estavam dispersas em
memórias anteriores.
Na nova edição, estas lições foram complementadas por apêndices que
quase duplicam o volume. Um deste apêndices tem o título significativo
Nuvens Acumuladas no século XIX sobre a Teoria Dinâmica do Calor e
da Luz (Nineteen Century Clouds over the Dynamical Theory of Heat and
Light), e declara que ele não pôde dissipar completamente algumas destas
nuvens. Outro título que parecerá ainda menos claro é Aepinus Atomized,
que servirá sem dúvida para ilustrar o nome algo obscuro de Aepinus; seja
lá o que for, tem por objetivo fazer espaço para os recém chegados que
reclamavam imperiosamente dele, refiro-me aos elétrons. Lorde Kelvin
acolhe estes intrusos com bom humor e aceita patrociná-los; nunca se
alinha com a teoria ondulatória dos raios catódicos, defendida num certo
instante por Hertz, e não cessa de atribuir esses fenômenos aos projéteis
que não diferem de nossos elétrons atuais. Não hesita em sacrificar-lhes
o éter girostático e os átomos-turbilhão. Há apenas alguns meses apare-
ceu sua última memória onde todas estas questões são discutidas sobre
este novo ponto de vista e que pode ser considerada como seu testamento
científico; esta memória tinha por título: OJ the Motions of Ether pro-
duced by Collisions of Atoms or Molecules Containing or not Containing
Electrons. Entretanto, este é um ponto no qual ele não segue os revolu-

78
cionários; ele não acredita na transmutação dos elementos, proclamada
atualmente com provas bastante ligeiras.
Que dizer de sua vida? Foi feliz, mas sem despertar inveja, sendo
amado por todos. Envelheceu na Universidade de Glasgow, na qual foi
matriculado aos 10 anos, e onde escreveu suas primeiras memórias ma-
temáticas aos 16 anos, sendo nomeado professor aos 22. Ele deixa sua
cátedra só depois de 50 anos de ensino, poucos meses antes de sua morte.
Tinha a alma fiel e nunca quis deixar o lugar amado.
Havia se casado em 1852 com a senhorita Margaret Crum, a quem
perdeu em 1870, voltando a casar-se em 1874 com a senhorita Frances-
Anna Blandy, de Madeira, a qual conheceu no navio no qual fez a viagem
a Pernambuco, por ocasião das célebres experiências sobre as sondagens
marítimas. Lady Kelvin foi para ele uma companhia encantadora, devo-
tada e atenciosa; a doença que a atacou certamente apressou o fim do
marido.
Seria demasiado longo enumerar as honrarias que recebeu; William
Thomson foi nomeado cavaleiro: sir William Thomson; depois foi elevado
a Par do Reino, chamando-se então Lorde Kelvin. Kelvin é o nome de um
encantador riacho, sombreado e serpenteante, que flui ao pé da Univer-
sidade que lhe era tão querida. Estas mudanças não têm inconvenientes
quando não se tem filhos; ele tinha muitos para rebatizar: eram os efeitos
Thomson, os compassos Thomson, as sondas Thomson que milhares de
marinheiros deviam aprender a chamar com um novo nome.
Em 1896 celebrou-se a sua aposentadoria; mais de dois mil amigos
e discípulos se reuniram em Glasgow e lhe enviaram um telegrama de
felicitação, de Glasgow a Glasgow, via Terra Nova, Nova Iorque, Chicago,
San Francisco, Los Angeles, Nova Orleans, Washington. Era uma delicada
homenagem ao criador da telegrafia transatlântica.
Trabalhou até o fim, a doença que o levou durou só alguns dias. Suas
obséquias tiveram lugar em Westminster, com a concorrência de cientistas

79
ingleses e estrangeiros. Foi enterrado aos pés da estátua de Newton. Uma
grande honra certamente merecida.
Esta forma de pensar vendo a realidade de frente, na forma de imagens
concretas, sem que esta visão vivaz deixasse de ser precisa o bastante para
impedir que os cálculos matemáticos pudessem se aplicar com rigor; resu-
mindo, este duplo gênio matemático e físico tinha pertencido a Newton,
e não o havíamos visto novamente desde então.

80
5 Comentários do Tradutor
Este texto contém a tradução livre da Introdução e de três dos dezes-
;

seis ensaios biográficos em Savants et Ecrivains, publicados por Henri


Poincaré em 1910.
Este ilustre matemático, sempre à frente do seu tempo, nos legou uma
obra científica e filosófica de valor inestimável, essencial para entender a
transição da Matemática entre os séculos XIX e XX. O seu livro A Ciência
e a Hipótese, obra mestra da Filosofia da Ciência, integra a coleção famosa
Great Books of the Westem Word9 9 . Os dois volumes do The Mathema-
tical Heritage of Henri Poincaré, 100 repletos de artigos que se originaram
do seu trabalho ou por este foram motivados, assim como os métodos
por ele criados em Mecânica Celeste e Equações Diferenciais, que têm
inspirado os cientistas ao longo dos 100 últimos anos, constituem uma
referência importante no tocante à sua contribuição ao desenvolvimento
da Matemática e da Física Matemática. 101
Coloca-se naturalmente a questão seguinte: Em que poderá beneficiar
o leitor contemporâneo o conhecimento da vida e obra dos representantes
ilustres do século XIX aqui apresentados? Para que podem servir as
biografias dos homens eminentes?
Sobre isto, lembremos o que Poincaré, no primeiro parágrafo da In-
trodução, escreve:
"... a vida dos trabalhadores da Ciência assim como a dos pensadores
ººSegunda Ed., Encyclopedia Britannica, Inc., Chicago, 1990. Há uma tradução para o Português,
Ed. da UNB, BrMília, 1985.
100
Browder, Felix E., Ed., 2 volumes, Symposia on Pure Mathematics 39, Providence, R.I., AMS,
1983
101
Dados interessa.nles sobre a biografia de Poincaré podem ser encontrados no livro de Bel!, citado
a seguir, e também na Internet. Em http://www.univ-nancy2.fr/po incare/ a Universidade de Nancy
disponibiliza <lados valiosos sobre a correspondência e livros do sábio francês. Ver também, entre
muitos documentos, o seguinte exemplo em Português, comemorando o seu centésimo aniversário:
http://wwwl.folha.uol.com.br /folha/almanaque/ilustrada.. 08agol954.htm.

81
merece ser conhecida. Eles também combateram, e mesmo que os seus
combates tenham sido quase sempre silenciosos, estes exigiram qualida-
des incomuns daqueles que neles lutaram. O estudo de seus espíritos,
de tendências tão diversas, e mesmo o de seus caracteres, não pode ser
desprovido de interesse."
É um fato que as biografias das personalidades exponenciais, conside-
radas isoladamente ou coletivamente, e avaliadas com os mais diversos
parâmetros, têm sido objeto de interesse permanente na história do ho-
mem, indo desde Plutarco 102 , na Grécia Antiga, até Michael Hart 103 , nos
dias de hoje. Este gênero, entre o literário e o histórico, possui numero-
sos autores de destaque no século XX. Dentre estes podemos citar o físico
e escritor inglês C.P. Snow (1905 - 1980) autor de Variety of Men 104 ,
onde são apresentadas biografias não somente de poetas e escritores, ma-
temáticos e físicos, mas também de governantes e políticos. É também
de sua autoria The Physicists: A Generation that changed the world1º5 •
No campo da Matemática devemos mencionar E.T. Bell, autor do
clássico Men of Mathematics 106 , cobrindo fatos fascinantes das vidas e
dados acessíveis das obras dos matemáticos mais distinguidos, de Zenão
até Poincaré. Também, é digna de nota a escritora Constance Reid, que,
entre várias obras biográficas de grande valor, escreveu um primoroso
trabalho sobre David Hílbert 107 .
Voltando à pergunta formulada acima, citamos o que, com teor poético
e otimista, escreve o pensador e ensaísta norte-americano Ralph W. Emer-
son (1803 - 1882), na introdução de seu livro Homens Representativos1º8 :
102
Vidas de Gregos e Romanos Nobres, The Internet Classics Archive, http://classics.mit.edu//-
Pluta.rch.
103
As 100 Maiores Personalidades da História, DIFEL, Rio de Janeiro, 2002.
º Ch. Scribner's Sons, New York,
1 4
1967.
1º5 Macmillan, Londres,
1982.
106
Simon and Schuster, New York, 1986; a primeira edição data de 1937.
º Hilbert, Springer - Verlag, New York, 1996.
1 7
108
Publicado em Londres em 1850, traduzido ao Português pela Biblioteca de Autores Célebres,

82
"A Natureza parece existir devido aos homens excelentes. O mundo
se apóia na veracidade e bondade deles, que tornam a terra benfazeja.
Aqueles que com eles conviveram acharam a vida mais agradável e fe-
cunda. A vida é tolerável só com a aceitação desta forma de sociedade;
e, de fato ou idealmente, adaptamo-nos para viver com nossos superiores,
dando a nossos filhos e a nossas terras os seus nomes.
·······························································
Podemos dizer que os grandes homens existem para que possam haver
homens ainda maiores. O destino da Natureza é o progresso permanente,
não sendo possível demarcar-lhe o seu limite. Compete ao ser humano
dominar o caos em todos os seus flancos, espalhando por toda parte,
enquanto vive, as sementes da Ciência e da Poesia, para que o clima, o
milho, os animais e os próprios homens sejam mais suaves e moderados,
e que os germes do amor, da bondade e da paz, sejam multiplicados".
Para finalizar, cabe observar que dos matemáticos que mais se distin-
guiram no século XX, com poucas exceções, apenas aqueles ligados aos
109
Problema s de Hilbert - O Quadro de Honra - tiveram sua vida e
obra estudada s e divulgadas para um público amplo.
É preciso reconhecer, entretant o, que continuar para o século XX este
importan te trabalho de divulgação, com os padrões estabelecidos por H.
Poincaré , E. T. Bell e C. Reid, constitui um formidável desafio para os
biógrafos científicos. A inclusão das biografias das mulheres matemáticas
110
acrescen ta fascínio ao desafio. Cabe citar aqui a obra de Lynn M. Osen ,
e os enlaces pertinent es na página http://ca mel.math .ca/Wom en/.

Edições e Publicações Brasil Editora S. A., São Paulo, 1960. A presente tradução foi feita diretamente
do original em Inglês, The Complete Works of Ralph Waldo Emerson Vol. IV, http://www.r we.org.
100 The /lonora Class: Hilbert's Prol~lem., and Their Solvera, Ben Yandell, A.K. Peters, Wellesley, MA,

2002
110
Women in Mathematics , Lynn M. Osen, MIT, Cambridge, Mass., 1974.

83
RELATÓRIOS TÉCNICOS DO DEPARTAMENTO DE MATEMÁTICA APLICADA

2005

RT-MAP-0501 - André Salles de Carvalho


"A Dinâmica de Difeomorfismos de Superfícies"
Abril , 2005 - São Paulo - IME - USP - 28 pg .

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