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‘A opinião pública' (1967): a classe média vai ao paraíso

por: Pedro A. Almeida

A classe média no Brasil é um enigma que sempre desafiou qualquer tentativa de explicar
teoricamente o conjunto geral de relações econômicas e sociais do país. É uma classe que não é unida
por nenhuma motivação política específica, é individualizada em relações de produção consumistas,
mas ao tempo tempo é massificada e presa a um conformismo estático entre a classe operária e a alta
burguesia industrial. A partir de suas diversas contradições internas e seu modo particular de se
encaixar na sociedade brasileira, Arnaldo Jabor examina jornalisticamente o individual e o
corriqueiro na vida dos pequeno-burgueses cariocas.
Inspirado em Jean Rouch e Edgar Morin, Jabor explora um assunto pouco discutido até
então no Cinema Novo — pelo menos em formato de longa-metragem — ao virar a câmera
diretamente para a classe média sem precisar do auxílio de um modelo narrativo para organizar suas
ideias. O único recurso artificial utilizado para argumentar seus pontos de vista é uma narração
onisciente em off; fora isso, sequer apresenta os sujeitos enquadrados por cartelas indicando seus
nomes. A subjetividade individual naturalizada em discurso direto não importa, e sim o contexto
geral criado por essa subjetividade individual e tudo que ela nos informa sobre uma estrutura
sociopolítica. A narração talvez seja a única característica estética do documentário que tenha se
tornado datada, em virtude da dicção impostada e do didatismo erudito.
Além de ter operado o áudio no curta documental A Maioria Absoluta, de Leon Hirszman (de
onde tirou algumas imagens para A Opinião Pública), a experiência anterior de Jabor na direção de
cinema havia sido um curta também de cinema-verdade chamado O Circo, a respeito da decadência das
trupes circenses frente a um país em rápida modernização. Ambos os filmes tocam de forma
cirúrgica, porém delicada, em algumas feridas internas da sociedade brasileira. O diretor mostra
grande talento ao selecionar imagens impactantes, fazendo com que alguns trechos desses dois
trabalhos sejam bastante significativos para a iconografia do Cinema Novo e para análise social do
Brasil em amplo espectro através da representação artística. O corte inicial do filme durava pouco
mais de cinco horas, mas os 70 minutos de sua versão final são sintéticos e bem dosados. Em sua breve
duração, o documentário consegue transitar entre vários ciclos sociais e desenvolver criteriosamente
diversas temáticas.
Muitos simbolismos no cinema se consolidam ao acaso, por algo que nem deveria estar sendo
gravado e acidentalmente “escapa” no corte final. Esse tipo de aleatoriedade da vida cotidiana dá o
sentido ao cinema-verdade, criando uma organicidade vital que permite a sobrevivência do filme a
qualquer tempo e espaço. As pessoas filmadas em 1967 estão para sempre vivas nos fotogramas
enquadrados por Dib Lutfi, por mais que ninguém lembre de seus nomes. É uma maneira muito
especial de se eternizar narrativas em formato cinematográfico.
Um desses momentos espontâneos é ironicamente representativo de toda a conjuntura
ideológica e motivação política do Cinema Novo: enquanto um burocrata militar discorre sobre as
vantagens de uma vida moral e ordenada, um meninozinho de cueca em sua casa — provavelmente seu
neto — começa a dançar e fazer gaiatices, interferindo continuamente nos planos por longo período
de tempo. E esse menino de cueca, esperando provocar os cineastas, acaba encarnando uma das
figuras mais emblemáticas de A Opinião Pública. Fortuitamente a cena contrapõe o espírito concreto
da velha guarda política que governava o país após o golpe militar à juventude inocente e livre que
começava a achar seu lugar definitivo na cultura (mesmo que fosse ativamente perseguida pelo
governo). Sua inclusão desmoraliza involuntariamente o positivismo de um regime moralista e
reacionário.
A Opinião Pública nos mostra em primeiro plano que as pessoas realmente são caricaturas
delas mesmas. Vários dos tipos apresentados são facilmente reconhecíveis até os dias de hoje na fauna
carioca: jovens sem perspectiva perambulando à noite pelas ruas, meninas apaixonadas trocando
confidências, mulheres revoltadas com seus relacionamentos amorosos, intelectuais universitários
frustrados com a sociedade e funcionários resignados em seu trabalho burocrático, submetidos às
ordens de um chefe arrogante. Nas cenas em que a câmera se posiciona como uma mosca na parede,
no estilo direct cinema, a lente captura olhares e diálogos secretos que nunca poderiam ter sido
encenados — nem por um roteiro, nem por pessoas conscientes da filmagem — e revela como as
pessoas realmente parecem personagens ficcionais, com suas conversas rasas e estereotipadas.
Jabor focaliza dois universitários intelectuais, em um quarto recheado de instalações artísticas
pós-modernas, dissertando academicamente sobre relações sociais, completamente apáticos sobre o
que de fato está acontecendo na sociedade — aquilo que está sendo mostrado concretamente pela
câmera do filme — e despejando uma série de clichês existencialistas malogrados. A cena comenta
indiretamente a relação da representatividade intelectualmente artística do Cinema Novo versus a
realidade política objetiva no Brasil. Enquanto Glauber Rocha filmava sua alegoria barroca
revolucionária no sertão, os militares se organizavam para dar um golpe de estado no país.
Arnaldo Jabor sempre teve especial fixação ao estilo de Nelson Rodrigues e ao jornalismo.
Não por acaso, seu primeiro longa-metragem, ainda não-narrativo, aborda de forma um tanto
jornalística um tema especificamente rodrigueano: a dissolução da classe-média em suas relações
cotidianas e os efeitos da moral burguesa nas instituições políticas, sociais e culturais. É interessante
que em alguns pontos o cinema documental se pareça tanto com o narrativo. Tudo depende da
maneira de abordar esteticamente a realidade, visto que é impossível obter transparência total no
dispositivo cinematográfico e dissociá-lo da perspectiva do autor. E a perspectiva de Jabor é
absurdista. Seguindo o que diz o narrador na introdução do filme, “refletidas numa tela, as coisas que
parecem comuns e eternas se revelam estranhas e imperfeitas”, o diretor visa o bizarro nas imagens
cotidianas, sempre escolhendo pessoas na multidão com rostos e trejeitos particulares. A sequência
passada no Programa do Chacrinha, por exemplo, é tão caótica e grotesca que parece pertencer ao
universo felliniano. A fotografia cinética de Dib Lutfi e a montagem frenética do diretor ajudam a
sustentar essa ideia de deslocamento espacial, maximizando o inocente programa de auditório em um
verdadeiro inferno expressionista.
Ainda em abordagem felliniana, o segmento final do filme trata cinicamente do efeito
alienante da demagogia política e da histeria em massa causada pela religião —“o ópio do povo”, na
visão marxista do Cinema Novo. Quando os pastores começam a se explicar para as câmeras, após um
longo sermão histriônico e teatral para pessoas ignorantes e frágeis, o narrador interrompe sua fala
como se ela fosse totalmente irrelevante: já tiveram tempo demais de palanque, e o filme
certeiramente não dá ouvidos a quem manipula a opinião pública de forma desonesta.
Mesmo que a narração seja impostada, didática e excessiva, o roteiro de Jabor tem passagens
extremamente incisivas e ainda relevantes, dispostas em organização textual bem fluida. O encaixe da
trilha sonora também ajuda a causar um efeito irônico de choque entre a baixa e a alta cultura da
classe média — temática bastante abordada nessa fase intermediária do Cinema Novo — ao confrontar
imagens do cantor popular Jerry Adriani falando sobre seu processo de criação artística com uma
música de J.S Bach, logo após a câmera deixar os jovens na audiência do Programa do Chacrinha
(alienados e histéricos) e ir para uma república de estudantes (politizados e “conscientes”). Além
disso, para representar musicalmente a mentalidade da juventude carioca, Jabor insere músicas dos
Beatles e dos Beach Boys: bandas que definiram a estética de uma época, inclusive de parte da
produção musical do Brasil.
Ao cortar para a cena sombria de um político demagogo discursando para uma massa de
alienados — semelhante a algumas sequências de Terra em Transe —, o narrador fala algo que não só
define a política na época do Regime Militar, como também se aplica assustadoramente à triste
situação política atual no Brasil: “A classe média se movimenta quando pressente mudança social que
lhe ameace estabilidade. Nunca toma iniciativa do progresso. Sempre convocada por interesses que
não são seus, é a vanguarda inocente da sociedade moderna. Bem manipulada pode fazer movimento
contra si mesma.”

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