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GOTEIRA

Escrito por

Pedro A. Almeida

Primeiro Tratamento
Data de Início: 11/07/2020
Data de Finalização: 13/07/2020
CRÉDITOS INICIAIS:
Vemos uma goteira no teto. Começa pequena e vai se
estendendo. Os créditos, em letras bem pequenas, se
posicionam no canto inferior da tela, como se estivessem
recebendo as gotas de água na cabeça.
A música é o Prelúdio em Dó Menor no.2 Do Cravo bem Temperado
de J.S Bach.

INT. GABINETE - NOITE


Mãos de HEITOR, 45, digitando em um computador. Digita com a
intensidade da música de J.S Bach e para no clímax da trilha
sonora.
Olha para as suas mãos, com estranheza. Atravessa a mão
esquerda com a mão direita, como se quisesse testar a
realidade em um sonho lúcido. Tenta voltar a digitar, mas
suas mãos não obedecem.
Começa a arrumar suas coisas, cansado, quase apático. Desliga
o computador e sai do escritório.
Antes de apagar a luz, nota uma poça de água no chão.

INT. APARTAMENTO DE HEITOR - NOITE


Apartamento vistoso, bem decorado, muito mais chique do que a
figura de Heitor.
Ao entrar, percebe que seus sapatos estão molhados.
Retira-os, e coloca para secar na área. Chega em sua sala de
estar e cai no sofá.
Sua esposa, LÍGIA, 32 anos, está logo ao lado, tentando
concluir uma ligação no telefone fixo.
Os dois nem se olham.
Heitor se levanta e vai pegar o controle remoto da televisão.
Percebe que sua mão esquerda desapareceu. Reage com um choque
apático, mal consegue se mover.
Abraça o antebraço esquerdo e começa a caminhar de volta ao
sofá,
LÍGIA (O.S)
Olá, sou Lígia Petrucelli.
33943321289.
(MORE)
2.

LÍGIA (O.S) (CONT'D)


Sim, eu queria saber por que o meu
pedido não chegou ainda. Eu liguei
faz uma semana. Sim, mas eu achei
que a previsão fosse pro dia 13/09.
Querida, estamos nos dia 16. E não
tem nenhuma previsão? Como é? Vocês
estão fechados? Alagou a loja. Sim,
eu entendo. Mas é que ela precisa
treinar, o nosso não dá mais conta.
É aniversário dela, amanhã! Escuta,
eu paguei um dinheirão pra isso.
Você sabe com que está falando?
Pesado, fecha os olhos.
HEITOR
(sonolento)
Lígia. Lígia, minha - minha mão não
tá mais aqui. Eu não sinto mais a
minha mão.
LÍGIA
Um momento. Heitor, tô ocupada.
HEITOR
(delirante)
Eu não sinto - não vejo mais - não
vejo. Cadê a minha mão?
LÍGIA
(tapando o telefone e
falando baixo)
Heitor, vai dormir. Amanhã a gente
conversa.
HEITOR
(mostra a mão)
Aqui, Lígia! Aqui, olha! E a minha
mão direita, tá estranha. Tá tudo
estranho.
LÍGIA
Amanhã a gente liga pro Dr. Pedro.
(volta ao telefone)
Ok, então pro dia 18 tá garantido
aqui na minha porta, com frete e
tudo? Não é o ideal, vou ter que
enrolar a minha filha, mas acho que
dá. Tudo bem então.
3.

HEITOR
(se levantando e
caminhando até a porta,
com a camisa desabotoada,
e resmungando)
Dr. Pedro meu ovo.
LÍGIA
Heitor, onde você tá indo? Heitor.
HEITOR
Eu vou encontrar a minha - a minha
mãe.

INT. SAGUÃO DO PRÉDIO DA MÃE DE HEITOR - NOITE


O porteiro está dormindo, mas Heitor tem a chave do portão. É
um prédio antigo.
Heitor caminha até o elevador, mas ao abrir a porta, percebe
que sua mão direita desapareceu.
HEITOR
Minha mão.
Abre a porta com os braços, em um esforço sonolento.

INT. COZINHA DO APARTAMENTO DA MÃE DE HEITOR - NOITE


A MÃE, 70 anos, está olhando para o teto.
Uma goteira, como a que foi vista nos créditos iniciais, está
pingando sobre sua cozinha.
Um balde está posicionado no chão, interceptando as gotas de
água.
A senhora está enraivecida.
MÃE
(resmungante)
Que desfeita. Que desfeita a desse
Sr. Jardim. Homem sem educação, sem
educação!
Soa a campainha.
Mãe não se move, e continua de pé, olhando para o teto, como
se estivesse hipnotizada pela goteira.
4.

MÃE (CONT'D)
Vou meter um processo no rabo desse
senhor. Ah, se vou! Minha cozinha
não pode ficar assim.

Soa a campainha novamente, de uma forma longa e desesperada.

MÃE (CONT'D)
(gritando, da cozinha)
Quem é?

Sem resposta.

A campainha soa novamente.

MÃE (CONT'D)
Quem é?

HEITOR
(sem energia)
É o Heitor!

INT. SALA DE ESTAR DO APARTAMENTO DA MÃE DE HEITOR - NOITE

Ela abre a porta. Heitor está quase desabando de cansaço.

MÃE
Heitor? O que está fazendo aqui à
essa hora, querido?

HEITOR
Minha mão.

MÃE
Estou aqui. Você está bem, querido?

HEITOR
Minha mão.

Heitor entra na sala de estar de sua mãe e desaba no sofá.


MÃE
Filhinho. O que houve?

HEITOR
O trabalho, o documento. Eu não
conseguia mais escrever.

MÃE
Ah, esse cara. Heitor, ele vai
acabar sendo preso. Pula fora desse
barco que ele tá afundando!
(MORE)
5.

MÃE (CONT'D)
Porque eles vão levar todo mundo
junto, inclusive você e a Lígia. Eu
te avisei pra não se meter com
isso. Se você ouvisse o que eu e
seu pai - que deus o guarde -
tínhamos te falado e continuasse
com a farmácia lá em Cachoeiro,
isso não aconteceria.
HEITOR
(com a cara no sofá,
resmungando, quase
ininteligível)
Mãe, minha mão!
MÃE
Quer um chá? Vou te trazer um
chazinho, filhinho! Depois, vai
dormir e amanhã a gente conversa.
A Mãe de Heitor vai para a cozinha.
Heitor começa a sentir algo em sua nuca, vira-se para cima, e
vê uma goteira no teto.
Fica observando a goteira por um tempo, e logo depois se
levanta e vai cambaleando até o banheiro.

INT. BANHEIRO - NOITE


Heitor desabotoa as calças e olha para os genitais.
HEITOR
Não, você também, não. Por favor.

INT. COZINHA - NOITE


Mãe prepara o chá, mas água começa a pingar em sua cabeça.
MÃE
Ah, Seu Jardim. Prepare-se para ser
processado, meu velho!
Com o bule de chá, se direciona para a sala de estar.

INT. SALA DE ESTAR - NOITE


MÃE
Filho, aqui está, seu chá! Bebe e
vai já pra cama.
(MORE)
6.

MÃE (CONT'D)
Amanhã vê se sai do cargo. Sai
desse esquema enquanto ainda dá
tempo.
Heitor já está de volta no sofá, e fica passivamente
recebendo água na cabeça, da goteira em cima do sofá.
HEITOR
Eu não quero chá. Não posso tomar
chá! Eu tô doente, mãe.
(mostra as mãos
desaparecidas)
Agora é tarde demais para sair do
emprego. O documento já tá quase
pronto, mas eu ainda preciso
terminar. Preciso terminar a tempo.
MÃE
Sai da goteira, filho. Tá chovendo
na sua cabeça. É culpa desse seu
Jardim, com essa obra que ele tá
fazendo no apartamento aí de cima.
De dia, é um barulho infernal,
quebra tudo. De noite, fica
pingando água na minha cozinha, e
agora no meu sofá. Eu vou meter um
processo nele! Só espera, seu
Jardim! E o pior, filho, é que ele
nunca tá aí. Sempre viajando com a
família dele. Eu nunca consigo
encontrar com ele, pra falar umas
verdades na cara do pilantra! Bem,
ninguém consegue se esconder pra
sempre.
Heitor não está prestando atenção na narrativa da mãe, e a
cadência de gotas em sua cabeça já está se intensificando.
Ele está ficando todo molhado.
HEITOR
Eu preciso terminar o documento,
mas a minha mão.
MÃE
Vamos dormir, filho! Amanhã a gente
conversa.

INT. QUARTO DA MÃE DE HEITOR - NOITE


Os dois dormem juntos, em uma cama de casal.
7.

Gotas de água começam a pingar na cama, vindas do teto.


CORTA PARA:

INT. QUARTO DA MÃE DE HEITOR - DIA


Mãe de Heitor acorda sozinha na cama.
MÃE
Filho?
Percebe que está encharcada.

INT. APARTAMENTO DE HEITOR - TARDE


Festa de grã-fino. Nenhum jovem em vista, só um grupo de uns
10 velhos andando pelo apartamento e bebendo vinho. Alguns
garçons andam com algumas bandejas, servindo salgadinhos.

INT. QUARTO DE JOANA - TARDE


JOANA, 12, anos, a aniversariante, está discutindo com sua
mãe, Lígia.
JOANA
Mãe. Eu não vou tocar! NÃO VOU!
LÍGIA
Filha! Eu não paguei extra à
companhia pra eles entregarem mais
cedo, pra você fazer esse papelão!
Vamos lá!
Começa a arrastar a filha.
JOANA
(quase chorosa)
Eu não quero!
LÍGIA
Vamos lá, filha! Só uma música!
Toca aquela do Bach! Todo mundo vai
gostar!
JOANA
Eu não quero, o aniversário é meu!
LÍGIA
E o dinheiro é meu!
8.

JOANA
Não é! É do papai!
LÍGIA
Filha. Por favor, eu só te peço
isso. Depois eu te levo - eu te
levo pra patinar, que tal?
Joana fica pensativa.

INT. SALA DO APARTAMENTO DE HEITOR - TARDE


Um piano chique. Vários grã-finos sentados em círculo,
esperando o recital da pianista-mirim.
Ela chega, meio desajeitada. Aplausos.
Lígia aparece logo atrás, com uma taça de vinho.
LÍGIA
E aqui está minha filha! O orgulho
da família! Um prodígio! E vocês
vão ter o privilégio de ouvi-la
tocar ao vivo, no aniversário de 12
anos dela! Uma salva de palmas!
Aplausos, novamente.
Vemos, sentado no canto, ZÉ PEREIRA, 63 anos. O único que não
aplaude. Bebe cachaça, de cabeça baixa.
A menina começa a tocar o Prelúdio em Dó Menor no.2 Do Cravo
bem Temperado de J.S Bach.
Lígia se aproxima de Zé Pereira.
LÍGIA (CONT'D)
(falando baixinho)
Zé, cadê o Heitor.
ZÉ PEREIRA
(tentando confortá-la, mas
nitidamente preocupdo)
A última vez que eu vi, tava lá no
gabinete. Mas não precisa se
preocupar mais. Eu livrei o nome
dele.

LÍGIA
Ele não atende minhas ligações, e
não apareceu no aniversário da
própria filha.
9.

ZÉ PEREIRA
Não se preocupa, vai dar tudo
certo. Temos bons advogados. Os
melhores. Vão apagar vocês do
processo, não se preocupe. Mas eu
recomendaria uma viagem em família
prum sítio que um amigo tem, lá em
Guarapari. Só até a poeira baixar.
Te passo mais informações depois.
Joana finaliza a peça de J.S Bach, e recebe aplausos.
TODOS
Bis! Bis! BIS!
A garota, triste, olha para as suas mãos, e tenta posicioná-
las novamente ao piano, mas não consegue pressionar as
teclas.
Sai correndo para seu quarto.

INT. QUARTO DE JOANA - TARDE


Bate a porta.
Olha para suas mãos. Sua mão esquerda desapareceu.

INT. SALA DE ESTAR DO APARTAMENTO DA MÃE DE HEITOR - DIA


A Mãe está sentada sozinha no sofá, acompanhada por vários
balde interceptando as várias goteiras no teto.
Ela está assistindo televisão, muito triste.
VOZ DA REPÓRTER
O deputado José Pereira de Melo, do
PSPJ, foi preso esta manhã pela
polícia federal. Seu nome estava
sendo investigado pela Operação
Testa-de-Ferro pelos últimos três
anos. Seu assessor e amigo pessoal,
Heitor Petrucelli, também
investigado, desapareceu com sua
família.
VOZ DO SEGUNDO REPÓRTER
E antes de sumir, deixou um
documento curiosíssimo no
computador do gabinete, que foi
enviado para a emissora por meio de
uma fonte confidencial.
(MORE)
10.

VOZ DO SEGUNDO REPÓRTER (CONT'D)


O arquivo tem o nome ‘Goteira’, e
está sendo decriptado pelos nossos
especialistas.
Desliga a televisão.
A Senhora fica pensativa por alguns segundos, silenciosa,
ouvindo o som das gotas de água batendo no balde.
MÃE
Eu vou processar esse Seu Jardim.
Ah, se vou. Me aguarde, seu
pilantra.
Vemos três goteiras no teto, pingando em pausas distintas, e
posicionadas de uma forma triangular.
A música de Bach volta a tocar.
CORTA PARA
PRETO.

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