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os outros.

Tudo o que eu passei não foi em vão.


Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.
Tudo o que eu passei não foi em vão.

A caneta deslizou sobre o papel enquanto ela escrevia, repetidas vezes, a mesma
frase como um mantra sem meditação, sem respirações adequadas.
Um mantra.
capítulo um

Fones de ouvido pretos redondos, fio com um nó. Uma saída que se liga ao aparelho de
reprodução de MP3. Ipod. Nome estrangeiro. Assim como o som, a música ouvida.

Gui, um típico ser humano na casa dos dezessete.


Dezessete anos.
Imprestáveis dezessete anos.

Fones de ouvido expulsam música estrangeira alta destruindo os tímpanos e todos os


mínimos pedaços do aparelho auditivo.
Surdez? Não seria nada demais pra Gui. Ele era todo uma soma de lástimas.

Talvez seja melhor apresentá-lo.


Gui tem dezessete anos, estuda em um grande colégio de sua cidade.
Corpo magro, altura superior à mediana, encurvado, branco pálido, olhos tristes e
fundos como grandes lagos em noite sem lua. Profundos e escuros. Andar arrastado,
cabeça curvada.
Tênis gasto, calça gasta, camisa gasta.
Vida gasta.

Gui é um adolescente. Um verdadeiro esquisito.


Estuda numa escola onde garotos malham para conquistar garotas e garotas passam
horas se embelezando para os da maromba. Enquanto isso, em outros grupos, nerds,
cdfs, tímidos, perdedores...
Como tudo na adolescência, seu colégio é marcado por grupos, “panelinhas” e ele.
Gui é o esquisito e não existe outro esquisito como ele.
Gui é de uma espécie distinta. Sem amigos. Sem garotas. Sem sucesso.
Um boletim com notas medianas (suficientemente boas para passar de ano).
Nenhum prestígio entre os colegas.
Enorme dificuldade de socialização.
Pouca paciência. Pouca tolerância.
Se sua vida social era nula, sua vida sexual andava na casa do “menos dez”.
Gui se definia como esquisito.
Todos concordavam mudos.

Os fones que emanavam música estavam grudados às orelhas um pouco grandes. O


nariz era maior do que deveria ser, os olhos um pouco separados, boca pequena, queixo
pontudo.
Um esquisito.

Naquela tarde, enquanto voltava para casa chutando a vida com seus tênis velhos, Gui
sentia-se estranhamente à toa do mundo, fora dele.
Sentia-se como no primeiro ato de um filme.
Os nomes dos atores principais surgem enquanto o mocinho, com as mãos nos bolsos,
assovia e ouve a música que é a trilha sonora da cena.
Ninguém o olha ou encosta nele e o personagem continua andando com os assovios até
entrar o próximo ato e a música ser trocada.

Três pequenas correções para adaptarmos a cena ao que se desenrola com Gui:
(um) ele não era o mocinho.
(dois) ele não sabia assoviar.
(três) as pessoas não desviavam dele e ele se batia com os ombros das pessoas.

Não se importava.
Apenas queria ir para casa. Apenas isso.
Entrar no quarto e fechar a porta.
Só.
E sozinho.
Como sempre.
capítulo dois

Gui entrou no apartamento amplo, bem decorado e requintado dos pais. Trancou a porta
com sua chave que estava presa a um chaveiro com uma bola preta.
Apenas uma bola. Preta. Mais nada.
Seguiu para o quarto ignorando – com sempre fazia – a claridade e a harmonia dos
móveis com os enfeites e as paredes da casa. Não se importava com a casa.
Vivia restrito ao quarto. E à cozinha, claro. Só isso.
Abriu a porta e entrou. Fechou a porta e a trancou, tirando os tênis e os deixando de
lado.

Um bagunça.
Era isso.
Bagunçado sim, mas organizado.
Gui sabia onde estava tudo.

Tirou a blusa e a colocou na cadeira. Foi até a mesa e um desenho inacabado revelava
os cabelos grandes e lisos de uma garota de olhos vivos, nariz fino, boca muito bem
desenhada.
Tícia era o reflexo harmonioso da beleza humana.

E estaria sorrindo encantadoramente se ele tivesse desenhado sua boca. Gui não
terminava o desenho e ele já morava em sua mesa há três dias.
Aquele era o segundo desenho. O primeiro era dela e já estava em suas mãos.

Tícia lhe pediu um desenho seu quando o viu rabiscando na aula de matemática.
Gui odiava matemática. Odiava todas as matérias.
Estudava o suficiente para passar.
Mais nada.

Ela o viu desenhar e fez o pedido. “Te recompenso bem”. Ela disse sorrindo maliciosa.
A mão direita dela tocou o braço dele. Ele estava na cadeira em frente quando ela tocou-
o e sussurrou no seu ouvido para não ser ouvida pela professora mal-amada.
Gui ouviu o pedido e assentiu com a cabeça.
Já fora apaixonado por Tícia. Assim como todos os de sua sala e do colégio inteiro.
Sempre havia a tal garota que povoava a mente dos garotos de uma só vez.
Ticia era uma delas.
A única das redondezas.

Segurando o braço dele e dizendo que o recompensaria, não pôde perceber o que
acontecia com partes mais baixas do corpo do rapaz.
Era uma sorte. O que ela pensaria?
O que ela pensaria era que ele era apenas mais um que ela provocava com sucesso.
E foi isso também que ele pensou quando a reação se repetiu e, daquela vez, ela sentiu
(enquanto o beijava).

Talvez seja melhor explicar mais um pouco.


Gui trabalhou no desenho por dias. Nunca estava tão perfeito quanto à musa. Sempre
havia um traço imperfeito e ele foi refeito diversas vezes, sem descanso. Quando
acabou, ele lhe passou um bilhetinho. Avisava que estava pronto.
Sua letra redonda era tão hipnotizante quanto a sua voz.
Ela respondeu e tocou o ombro do rapaz para entregar a resposta.
“Rua três, às 19. Sozinho”.

A rua três era a rua do Comendador Farias Fernandes.


Ninguém o conhecia, mas desconfiavam que se ele tinha nome de rua, era alguém
importante.
Todos a conheciam por rua três – a rua onde três homens foram mortos com uma só
bala e de uma só vez – e nunca haviam se preocupado em buscar as honrarias do
comendador.
Aquela era a rua três.

Às dezenove horas, a rua estava vazia e ele se encostou à cerca apoiando o pé e


colocando as mãos nos bolsos.
Sempre colocava as mãos nos bolsos porque elas eram muito grandes e ele não sabia o
que fazer com elas.
Olhou para um lado e para o outro. Conferiu o horário.
Tícia chegou com meia hora de atraso, não se desculpou. Perguntou pelo desenho.
Gui o tirou da mochila também surrada que carregava consigo. Sempre.
Ela analisou o papel enquanto ele a observava em silêncio.
Ticia estava metida em um vestidinho amarelo, curto, tomara que caia e um pouco
rodado. Sua bunda arrebitava o pano e ele imagina o que havia por baixo.
Ela o flagrou admirando sua bunda e sorriu o olhando.
Gui enrubesceu.
- O vestido é bonito, não?
- Muito.
Ele disse hipnotizado pela bunda da garota.
Ela continuava parada. Os braços com o desenho e o rosto voltado para ele.
Uma bunda redonda e, com certeza, muito lisa. Sem estrias ou celulites.
Tícia era perfeita demais para ter algo tão mundano.

Ela o olhou e sorriu. Malícia era quase o seu nome próprio. Enrolou o desenho e o
segurou com a mão direita. Aproximou-se, encostando o rapaz contra a grade.
Estava fria.
Ela sorria. Os corpos colados, a reação de Gui explodia nas partes mais baixas.
Ela sussurrou hipnotizante:
- Não vai me beijar?
Ele não tirou as mãos do bolso. Não sabia se a segurava ou tentava beijá-la. Ficou ali,
encostado à grade, com o corpo dela contra o dele e as bocas coladas.
Havia escovado os dentes.
Não estava com bafo.
Sua sorte.

- Obrigada, esquisito.
Ela sorriu voltando a andar.
Todos o chamavam de esquisito.
Ele incorporou o apelido.
Ele não se incomodava com o apelido ou com as piadas.

Sua boca queimava no desejo pela garota que sempre fora sua paixãozinha infantil.
Assim como a de todos os outros meninos que a cercavam.
Seu corpo ardia de desejo e ele continuava escorado na grade.
Ela queimava como brasa.
Gui também queimava.
Era desejo.
Estampado ali e nas suas calças.

Aquele foi um dos momentos mais importantes de sua vida. Aquele e o outro dia
quando, aos oito anos, caiu da janela da casa onde morava e só não se machucou porque
havia um monte de folhas secas para amortecer a queda.
Seus pais nunca souberam e não saberiam.
Nunca olhavam para Gui.
Estavam muito ocupados um destruindo a vida do outro.
Como podiam perceber a queda do filho?

Enquanto via Ticia gingando e se afastando, Gui, grudado à grade, curtia o queimor e
atônito, mantinha as mãos no bolso e a paralisia.
Aquele era o momento mais incrível de sua história e, no dia seguinte, Ticia não mais o
olharia. Sabia que ela não o olharia. Nunca se falavam.

Ele não estava enganado.


Foi o que aconteceu.
Ela não contou a ninguém.
Porque contaria que beijou o esquisito?
Ele não contou a ninguém.
Quem acreditaria nele?
Por isso, o desenho ficara inacabado.
Gui era uma piada.
Daquelas sem graça com um português, um papagaio e uma loira.

Um esquisito.
capitulo três

- Gui, venha aqui!


A voz da mãe o despertou. Gui suspirou. Seu sossego havia terminado.
Destrancou a porta e foi para a sala. A mãe estava na porta da cozinha. Sorriu ao vê-lo.
Havia algo muito errado no ar.
- Venha, querido.
Com certeza havia algo errado.
- Seu pai e eu queremos conversar com você.
Agora era definitivo. Algo muito errado.

Os dois entraram na cozinha.

Fátima era uma mulher morena, olhos grandes e amendoados, corpo bonito e definido
pelas aulas com o personal training (com quem ela mantinha um caso). Não dirigia,
tinha um motorista (outro de seus casos). Não trabalhava. Vivia para si, já que o filho?
Ele já não precisava mais dela. Gui havia destruído seu corpo. Ele a deixou “gorda e
flácida”. O garoto já havia feito estragos suficientes.

- E aí, cara?
Roberto o cumprimentou animado.
Gui sentou-se incomodado.
Os pais não falavam daquela maneira com ele há muito tempo.

Seu pai era um homem também bonito e musculoso. Fazia academia todas as manhãs e
trabalhava numa grande empresa da família. Sabia que seu filho nunca o sucederia e
respirava aliviado. Gui destruiria o patrimônio que levou anos para ser erguido por
várias gerações. Era a sua sorte.
Nunca se interessou pelo filho. Trabalhava demais no escritório, saindo cedo e
chegando tarde. Nos fins e semana, jogava tênis e golfe. Durante as noites cumpria os
compromissos sociais com a mulher. Os dois sempre iam sozinhos, Gui não os
acompanhava. Sempre diziam que o garoto estava ocupado estudando.

Gui odiava estudar.


Odiava o colégio.

- Temos uma novidade.


Fátima afirmou sorridente e não disse mais nada. Esperava mesmo que ele falasse algo?

Quando menino, sempre fora criado por babás. Aprendera a não se afeiçoar a elas.
Sempre eram moças jovens que precisavam de um emprego. Algumas eram muito
legais, outras impacientes. Nunca duravam muito, ele nunca entendia porque.
Até que entendeu.

No dia da queda, andava de volta para dentro da casa. Estava assustado e queria ver se
Nanci, sua babá, estava acordada. Ela sempre fazia chocolate quente quando ele não
conseguia dormir.
Estava na casa deles há dois meses. Era um recorde.

Nanci era negra, corpo bonito e sorriso de dentes muito brancos.


Gui gostava dela. Muito. Ela lhe ensinava a desenhar e se importava com ele.
Parecia se importar.

Ele foi até os fundos da casa onde ficava o quarto. A luz estava acesa, a porta trancada.
Olhou pela fechadura e viu, claramente, o pai a beijando na boca. Os dois estavam
agarrados e ela tentava se desvencilhar do patrão.

Gui teve febre por dois dias seguidos.


Nanci cuidou dele.
Ele nunca disse nada.
Quatro dias depois ela foi demitida.
Fátima sempre as demitia.
Roberto sempre visitava o quarto das babás no meio da noite.

- Nós esperamos que você goste da surpresa!


Fátima continuou.
- Vamos adotar uma menininha!
Fatiam bateu palmas, Gui mal piscou.
Ele olhou para o pai. Roberto estava sério.
- Eu disse que era uma péssima idéia.
- Cale a boca, Roberto!
- Ele não gostou.
- Cale a boca, Roberto.
- Você disse que ele ia gostar! Você disse que assim ele ficaria normal.

Seus pais também o achavam esquisito.

- Eu não posso fazer milagres, não é?


Gui fora esquecido. Era sempre assim.
- Você destruiu esse garoto.
- E você, hein? Não era você que me obrigava a demitir as ótimas babás que eu
conseguia?
- Eu nunca te obriguei.
- E nunca deixou de ir para o quarto delas.
Gui já se levantara. Sempre saia e os pais não notavam.
Por azar, tropeçou nos sapatos da mãe que ela jogou no meio do chão da cozinha.
- Gui, volte aqui!
Fátima o chamou.

Sentou- se e ela voltou a olhá-lo.


- Como eu ia dizendo, nós já a adotamos. Ela está no quarto de hóspedes. Você deve ter
visto que eu o reformei.

Gui não viu.


A única coisa que fazia na casa era trancar-se no quarto e ir até a cozinha pegar comida.
Mais nada.
Mantinha um armário com mantimentos no seu quarto para não precisar sair sempre.
Bolachas, salgadinhos, doces, cereais. Tudo estocado.
Não andava por outro cômodo.
Não se sentava no sofá da sala para ver televisão. Fátima sempre estava na sala.
- Ela está lá, querido. Quero que você a conheça e seja legal com ela. Seu nome é Lilian.
Você a chama de Lili.
Fátima puxou o filho pelo braço enquanto Roberto bufava impaciente.

Só foi em frente com a idéia a mulher porque ela o ameaçou de várias formas.
Pedir divórcio. Contar aos jornais que ele pinta os cabelos. Demitir Verônica, a
secretária bonita com quem Roberto mantinha outro caso há um ano.
Roberto aceitou.
Nunca concordou.

Mas encenou perfeitamente o papel de patriarca da família feliz que Fátima armou.
O filho não foi envolvido. Para os funcionários dos órgãos que o casal freqüentava para
conseguir adotar a criança, Gui estava em um intercâmbio na Inglaterra.
Não queriam que conhecessem o filho.
Ele era muito esquisito.

O quarto de hóspedes estava rosa e um grande número de brinquedos caros lotava as


prateleiras. O guarda-roupa estava aberto e roupas e sapatos de grife povoavam o
espaço. Na cama, encolhida em um canto, Lili olhava o chão. Assustada como um gato
acuado. Não parecia deslumbrada com o circo que Fátima armara.

Era uma garotinha negra de oito anos de idades, cabelos chacheadinhos, miúdos, corpo
muito magro.
Ela parecia cansada. Doente.
Foi o que Gui pensou.

- Lili!
Fátima a chamou, histérica, e a garota deu um pulo, assustada. Parecia que cairia da
cama.
Olhou para a porta em alerta.
Gui viu pânico em seus olhos.
- Esse é o Gui, seu novo irmão.
Fátima sorriu olhando para a garota.
Ela olhou para ele. Parecia sofrer.
Não disse nada.
Gui a olhou e suspirou.
- Meus pêsames.
Disse e saiu.
Fátima o olhou assustada.
Gui não se importou.
Entrou no quatro e trancou a porta, ligando o som em seguida.
Aquele seria mais um dos crimes que o casal cometeria.
Ele não iria compactuar com aquilo.
capítulo quatro

Férias.
O paraíso no meio do inferno.
Gui adorava as férias e o tédio.
Adorava não ter que estudar e passar os dias inteiros no quarto.
Essa não era a única coisa que fazia.

Gui costumava andar pelas ruas matando a vida (ou o tempo, como costumavam dizer)
ou ia ao aeroporto.
Perdia-se vendo o trânsito das aeronaves com os fones de ouvido.
Seus eternos companheiros.

E foi em uma daquelas tardes que tudo começou.


Gui voltou do passeio no aeroporto, carregando sua mochila e chutando a vida com seus
sapatos rotos. Girou a chave e entrou na sala.
Nenhum som na casa.
Era um dia estranho como todos os outros, mas aquele se tornaria muito mais.
Na cozinha, haviam três envelopes ao lado do fogão.
Cada um embaixo de um copo diferente. O da mãe era o de vinho. O da cozinheira, uma
tupila de cerveja. O da faxineira, uma taça para água.
Cada um deles parecia inexpressivo para ele, mas somados eram o próprio inferno.

A primeira carta era da mãe.


“Gui, o marido da tia Márcia passou mal. Seu pai e eu estamos indo para a Argentina. A
Norma fica com a Lili.”
Era só isso.
Gui deu de ombros.

A segunda carta era de Solange, a cozinheira.


Ela dizia que estava indo embora (pedindo demissão, para ser mais específica), mas que
Norma ficaria com Lili.

A terceira era de Norma, a faxineira.


Ela também estava indo embora, mas acreditava que Lili poderia ficar com Solange.

Em resumo, as três foram embora e não se falaram.


Como sempre, a comunicação na casa era um desastre.

Lili estava morando com ele há um mês. Na verdade, ela morava praticamente com a
faxineira e a cozinheira. Seu pai trabalhava, sua mãe dondocava e Gui abrira mão de
participar com aquela lástima.
Via tão pouco a garota que quase se esquecia dela.

Ele entrava em casa, passava na cozinha e ia para o quarto. Nunca modificava seu
trajeto. Ninguém lhe incomodava ou falava com ele. A faxineira só entrava no seu
quarto uma vez por semana quando ele não estava e nos dias em que deixava a porta
destrancada. Tirava o “grosso” da sujeira, não fazia mais anda, não tirava nada do lugar.

Naquele mês viu pouco a menininha.


Ela sempre ficava no quarto brincando e estava sempre bem vestida como a bonequinha
de carne e osso que Fátima comprara.
Aquela era sua definição sobre a situação.
Lili era exposta e mostrada às amigas da mãe como um bichinho de zoológico.
Adestrado e bem arrumado. E enquanto a garota freqüentava as festinhas, Fátima subia
seu status social. Fazia o bem, adotara uma menina órfã.

Mal sabiam o desastre a qual ela estava destinada.


Gui sabia.
Vivia o desastre.

Ele bateu na porta do quarto e entrou.


Lili o olhou assustada, como sempre.
- Tudo bem?
Ele perguntou e ela acenou positivamente com a cabeça.
- Minha mãe viajou, você sabia?
Sim. (só com um movimento).
- E a Solange e a Norma pediram demissão, você sabia?
Não.
- Acho que somos só nós dois.
Sim.
- Você está com fome?
Sim.
- Vem pra cozinha.

Eram onze da manhã e a garota não tomara café.


O conselho tutelar achava mesmo que aquela era a casa que a garota estaria segura?

Gui perguntou o que ela queria.


Ela deu de ombros.
Ele queria comer pizza.
- Você quer?
Sim.
- Você fala, garota?
Não.
- Por quê?
Não.
Ele suspirou.
Que diabos fizeram com ela?
Um mês e a deixaram muda!
Ele devia mesmo ligar para o conselho tutelar.

O que ele não sabia era que a garota não falava há muito mais de um mês. Desde que
perdeu os pais e ninguém sabia por quê. Todos os exames foram feitos e descartaram
qualquer anomalia. Diziam que era algo psicossomático resultante de um trauma intenso
que eles não podiam afirmar com cem por cento de certeza do que se tratava.
Ela tinha que abrir a boca.

Gui serviu dois copos de leite.


Lili segurou o seu copo com as duas mãos e o levou à boca.
Gui já pedira a pizza e ficou de costas para ela, buscando, no armário, algo para
beliscar.
Não viu o copo escorregar da mão da garota, mas o ouviu cair no chão e derramar o
líquido branco por todos os cantos.
- Que droga!
Gui exclamou alto olhando para a garota e avançou em sua direção.
Lili se encolheu em pânico e se exasperou quando ele a pegou pelos ombros e a tirou de
perto dos cacos.

Gui só queria evitar que ela se machucasse


Ela estava ponto de cair no choro.

- O que você achou que eu ia fazer?


Ele perguntou a colocando em pé e ela se afastou instintivamente.
Gui a olhou assustado.
O que tinham feito com aquela menina?
- Você achou que eu ia te bater?
Ele perguntou agachando em frente a ela, que se encolheu mais um pouco.
- Tudo bem, pode dizer.
Sim.
Ele suspirou.
- Olha para mim.
Ela não se mexeu.
Ele tentou de outro jeito.
- Você pode, por favor, olhar para mim, Lili?
Ela o olhou.
- Nunca, em hipótese alguma, eu bateria em você, certo?
Sim. (trêmulo).
- Eu gritei porque fiquei chateado, mas não foi com você, certo?
Sim. (menos trêmulo).
- Eu só queria te tirar dali pra que você não se machucasse, certo?
Sim.
- Se quiser, pode ir para o seu quarto, eu levo a pizza quando chegar.
Ele disse cansado e ela saiu rápido deixando apenas suas pegadas de leite pelo caminho.

Gui pegou o pano e começou a limpar a sujeira.


Suspirou.
Certos estragos não podiam ser consertados.
Ele era um exemplo.
Agora, Lili parecia ser outro.

Ela precisava de uma família.


Porque a deixaram com aquela gente?
capítulo cinco

Era madrugada quando ele acordou. Estava com sede e precisava de água gelada. Muito
gelada.
Levantou.
A porta do quarto de Lili estava fechada. Passara dois dias inteiros fechada.
Ele a viu pouco naqueles dias.
No anterior, quando ele levou a pizza e deixou bolachas recheadas para ela lanchar e
mais tarde, sanduíche de queijo com salame e suco de maçã (seus preferidos).
No segundo dia, entrou para entregar as refeições, mais nada.

Em todas as entradas a garota parava o que fazia e abaixava os olhos.


Ele suspirava incomodado.
Que diabos fizeram com ela?

Enquanto voltava da cozinha, ouviu um soluço baixo. Colou o ouvido na porta do


quarto dela e ouviu os soluços incontroláveis.
Suspirou cansado e bateu levemente na porta, entrando.
A garota estava envolvida no lençol e o olhava assustada.
- Tudo bem?
Sim.
- Teve um pesadelo?
Sim.
- Você está com medo de mim?
Não.
- Quer ir para o meu quarto?
Sim.
- Posso te carregar? Está frio.
Sim.
Ele se aproximou devagar e a segurou, mantendo o lençol com ela.
Lili não o segurou, mas seu corpo tremia e os olhos estavam vermelhos e molhados.

Os dois entraram no quarto, ela olhou em volta. Não disse, mas achou o quarto lindo.
Ele percebeu que ela encarava os desenhos, na parede, com uma atenção absurda.
Gui não desenhava qualquer coisa. Costumava desenhar pessoas e cachorros.
Desconhecidos que via na rua. Cachorros de rua.
Havia sempre um brilho nos olhos deles que Gui não conseguia transferir para o papel.
Mas desenhava bem.
Usava lápis 2B. Sempre. Nenhuma cor. Só o 2B. Mais nada.
Papel branco e lápis 2B.
Desenhava muito bem.
No início, aprendeu sozinho, depois com Nanci, depois tomou cursos.
Ninguém nunca soube quais ou onde. Era sempre sozinho.
E os desconhecidos pendurados nas paredes do seu quarto o acompanhavam.
Era menos sozinho do que todos pensavam.

- Você gosta de desenho?


Sim.
Eu posso fazer um pra você.
Sim. Sim. Sim... (a cabeça se movimentou por vezes seguidas).
- Você acha que consegue dormir?
Sim.
- Ótimo.
Ele a colocou na cama e ela deitou no travesseiro dele.
Era macio.
Ela o olhou andar e focalizou o olhar no interruptor.
- Não posso desligar a luz?
Não. (o corpo se sacudiu com a cabeça).
- Eu já sei.
Ele disse. Estava cansado, precisava dormir.
Foi até a mesa e acendeu uma gambiarra com luzes coloridas. Ele mesmo havia feito.
Pareciam luzes de Natal, mas não piscavam.
Luzes natalinas paralisadas.
Ela as olhou com atenção.
Fascinada.
Olhou para ele e balançou a cabeça.
Agora ele podia desligar a luz.
capítulo seis

Lili quis ir ao cinema com ele. Era o quarto dia que eles estavam juntos e sozinhos.
Ela não dizia uma palavra.
Ele adorava o seu silêncio.
Assistiram a um filme infantil. Ele não gostava, mas também não desgostava.
Ela pareceu se divertir. Até sua risada não tinha som.

Gui pensava se ela era muda.


Não sabia se ela era.
Mas deduzia que não.
Fátima nunca adotaria uma muda.
Adotar já era uma boa ação suficiente.

Depois do cinema, foram para o aeroporto. Sentaram-se com sorvetes de copinho e


viram os aviões. Lili nunca tinha visto um avião tão de perto. E seus olhos brilhavam
enquanto a bocava ficava entreaberta. A garotava estava hipnotizada pelo tamanho da
aeronave, pelo barulho, pelo vôo.

Gui a olhava de lado para que ela não o visse a olhando.


Ela parecia gostar de aviões.
Ele também gostava.

- Você sabe escrever?


Ele perguntou e ela o olhou, ainda boquiaberta. Pareceu demorar muito para que seu
corpo voltasse do vôo com o avião.
Gui esperou. Conhecia a sensação de se deixar levar pelo pássaro-máquina.
Sim.
- Você pode escrever para mim?
Dar de ombros.
- Pra gente conversar às vezes, sabe? Além do sim, do não e do tanto faz.
Ele disse repetindo o movimento dela com os ombros.
Outro dar de ombros.
Ele abriu a mochila poída e procurou. Havia HQs, fones velhos, um casaco preto e
gasto, livros e no fundo, um pequeno bloco de capa dura verde com um pequeno lápis
de madeira reflorestada que Gui pegou em uma loja de móveis e decorações.
- Vai servir.

Com o bloco e o lápis na mão, a garota colocou o copo do sorvete de lado e estudou o
rosto do rapaz.
Ele não conseguiu falar por alguns segundos. Os olhos da garotinha pareciam tragá-lo, o
invadiam em essência sem serem inconvenientes ou indiscretos.
Era um pleno contato silencioso e sincero.

Era a primeira vez que Lili o olhava de verdade.


Era a primeira vez que ela prendia a atenção nele.
Era a primeira vez que alguém olhava para Gui daquela forma.

- Eu não me incomodo que você seja muito sincera. Você sabe o que é sincera?
Sim.
- Seja muito sincera. Eu não vou ficar zangado. O que você achou dos seus novos...
bom... dos seus novos pais?
Eles são legais comigo.
- Você gostou da casa?
É legal.
- E você acha mesmo que pode ficar com eles?
Eu não vou ficar.
- Por quê?
Eu nunca fico muito tempo.
- Porque não? Você não quer ficar com ninguém?
Ninguém quer ficar comigo.
- Por quê?
Se eu não falar, eles não me querem.
- E você não pode falar, não é?
Não. (com a cabeça e com ênfase).
- Por mim, tudo bem.
Para eles não.
- Para os pais?
Para os outros.
- O pessoal que ajuda na adoção?
Sim.
(sim, não e tanto faz continuavam sendo feitos com a cabeça).
- Eu entendo.
Ele disse e voltou a olhar para o céu.

Um avião azul pousava barulhento. Os dois olhavam o pouso gracioso do pássaro e,


hipnotizados, mal piscavam.
Lili rabiscou algo tirando os olhos do céu.
Ela olhou para Gui e estendeu papel para ele.
Gui o leu e riu, olhando para o céu e depois para ela.
- Você é uma garota muito esperta, Lili.
Ela sorriu timidamente e deixou o bloco de lado, bebendo o líquido derretido do seu
sorvete de baunilha.

No bloco, sua letra miúda revelava toda a sua sinceridade:


Eu achei os pais novos estranhos.

Eles eram estranhos.


Os dois seres, hipnotizados, olhando o movimento dos aviões, não.
Eles eram os estranhos.
capítulo sete

- Você gosta dessas roupas que ela comprou para você?

Mais um dia. Mais uma noite na cama dele fascinada pelas luzes estáticas.

A garota mordeu o sanduíche de queijo e salame do café da manhã e o examinou com


atenção.
Respirou, mordeu e engoliu o pão.
Não.
Gui sorriu.
Essa garota era das dele.

- O que você acha de roupas novas?


Seus olhos faiscaram.
- Eu tenho um cartão de crédito e você pode escolher.
Lili apontou para o próprio peito com uma grande interrogação fisionômica.
- Sim, você.
Gui repetiu jogando o último pedaço de sanduíche delicioso na boca.
Lili mordeu o seu.
Depois sorriu com os olhos grudados no garoto.

Ela escolheria suas roupas.


Ela mesma.

No fim do dia, a casa ainda estava vazia. Mas eles voltavam com duas sacolas de roupas
e alguns sapatos. A menina usava um vestido bonito e azul marinho com morangos
muito vermelhos.
Sorria comendo taboca.
Lili não conhecia taboca.
De que mundo ela vinha?

Naquela noite, ela brincava com o Sr. Gosma – o boneco preferido de Gui quando ele
era pequeno – enquanto o rapaz lia.
Sr. Gosma era uma pelúcia verde sem forma que foi colocado por acidente entre os
sacos de brinquedos que Fátima comprou para o filho em um Natal anos atrás. Entregou
os sacos ao garoto no dia vinte e dois. Não tinha paciência para escondê-los. Muito
menos para fingir que papai Noel os deixara.

Gui nunca acreditou em papai Noel.


Mal conhecia o sujeito.

O único brinquedo que ele gostou foi o Sr. Gosma. Deixou os outros no saco e levava o
Sr. Gosma na mochila para todo o canto.
Um dia, quando sua mãe quis jogar fora o feio monstrengo, ele o escondeu no fundo do
guarda-roupa.
Sr. Gosma morou ali por uma semana.
A atenção de Fátima para com o filho não durava mais de algumas horas.
Gui não arriscou.
Sete dias depois, o tirou do fundo do armário, mas o deixou no quarto.
Ele não arriscaria perdê-lo outra vez.
Já bastavam as babás.

Gui olhou para a garota. Ela estava sentada na cama, vestindo um pijama com estampas
de vacas malhadas. O examinava.
O Sr. Gosma o olhava também. Com o seu único olho direcionado para o rapaz.
Lili examinou a capa do livro. Era de ficção científica.
A batalha dos Zinpets.

Gui o adorava.
Às vezes queria ser um ET e ser resgatado da Terra para contar como os humanos
podiam ser miseráveis e horríveis. Mas, infelizmente, não era um ET.
Apesar de ser comparado a um.
Não tinha essa sorte.

- Você quer que eu leia para você?


Sim. (animado).
Ela estava menos assustada ou era impressão sua?

Lili deitou abraçada ao Sr. Gosma e Gui começou a ler para ela. Explicando, quando
julgava necessário, o que o autor queria dizer.
A garota mal piscava. Olhava o teto branco e os ouvidos engoliam as palavras com gula.
Pareciam nunca ter ouvido nada parecido.

A garota dormia quando ele terminou o capítulo.


Abraçada ao Sr. Gosma parecia flutuar entre nuvens com o semblante calmo.
Gui fechou o livro e a cobriu. Fazia muito frio naquela noite.
Ligou as luzinhas e escovou os dentes.
Olhou-se no espelho, precisava cortar os cabelos.
Talvez pudesse dar um pulo no barbeiro no dia seguinte.
E depois levar Lili ao zoológico. Ela iria gostar. Com certeza ia gostar.

Gui acordou e o Sr. Gosma estava enrolado ao seu lado. Lili não estava.
Virou-se e a garota estava olhando o desenho de Ticia. O segurava nas mãos pequenas.
- O que você está fazendo?
Ele perguntou com a voz alta e zangada.
A garota, de um pulo, deixou o desenho no chão e se encolheu.

Gui estava muito irritado para lembrar que Lili era só uma criança.
E morria de medo dos gritos.

Ele não sabia, mas eles eram comuns em sua curta vida.
Ela não se acostumou.
Mas eles existiam.
Diariamente.

- Quem mandou você tocar nisso?


Ele perguntou a olhando. A garota tremia assustada.
- Nunca mais pegue o que não é da sua conta, ouviu?
Ela não respondeu, acuada.
O olhava e tremia.
Seu olhar tremia.
Seu corpo parecia sacudir-se.
Parecia que ia rachar ao meio.

Gui abaixou para pegar o desenho de costas para a garota. Olhou os traços inacabados
de Ticia e rasgou a folha com raiva. Jogou suas partes no chão.
Só então ouviu a porta do quarto bater.
Não era a sua.
Era a de Lili.
A garota assustada se trancara.
E os soluços eram ouvidos.
Ele os ouviu quando encostou o ouvido na porta.

Era um imprestável.

Suspirou.
Não lhe disse nada.

Deixou o sanduíche e o leite na porta.


Disse para ela que devia comer. Que ele não a incomodaria.
Os soluços não foram ouvidos enquanto ele falava.
Gui tentou falar muito baixo.
Lili mal conseguia respirar.

O almoço foi deixado na porta. Assim como lanche da tarde e o Sr. Gosma.
Lili abria a porta quando tinha certeza que ele não estava lá e a trancava rápido.
Gui podia ouvir o som do trinco do seu quarto.
Ele estava se sentindo mal e estranho.
Um imprestável.

O adjetivo o seguiu por todos os cantos.


Imprestável.
Imprestável.
Imprestável.
Na cozinha.
No banheiro.
No quarto.
Um verdadeiro imprestável.

Era noite.
Ela já havia jantado.
Ele estava no quarto e pegou o livro.
Sentou na porta trancada e leu em voz alta o segundo capítulo.
Ouviu os passos pouco sonoros da garota que se sentou do seu lado da porta.

Se a porta não estivesse ali, estariam encostados. Muito perto um do outro.

Lili não tocava Gui.


Gui nunca tocava Lili.
Ela não gostava de toques.
Ele a respeitava.
Mudo.

Quando o segundo capítulo do livro terminou, ele o fechou e suspirou. Encostou


também a cabeça na porta. Lili encostou a dela. Juntos olhavam os tetos.
Separados pela porta.

Cinco.
Dez.
Quinze.
Minutos.

Gui suspirou.
Lili respirou.

- Lili, eu não quis gritar com você. Mas, às vezes, a gente perde a paciência, sabe?
Ela sabia.
- Às vezes os mais velhos agem como babacas, sabe?
Ela sabia.
- Às vezes eles te machucam, sabe?
Ela sabia.
Muito bem.
- Mas nem sempre gritar é rum, Lili! A raiva passa um pouco. E eu não quero te
machucar. Também não queria te assustar. É que... A garota do desenho. Ela é... Bom,
ela não merecia o desenho, sabe? Eu que fui um besta e fiz. Mas você não tem culpa
disso. Fui eu que fiz. Eu não queria te magoar. Por mais babacas que os mais velhos
sejam, uma grande parte deles não quer te machucar, sabe? Eles só querem viver a vida
e mais nada. Sem ninguém perturbando ou dizendo o que eles têm ou não que fazer.
Não importa. O mais importante é que eles não querem te machucar, sabe?
Lili não sabia.
- E principalmente... Ouça isso e acredite... Eu não quero machucar você.
Gui suspirou e foi para o seu quarto.
Lili respirou e olhou para o teto branco.
Ela sabia, só não conseguia entender muito bem.
capítulo oito

O Sr. Gosma dormia com Lili. Os dois estavam na sua cama e dormiam profundamente.
Sr. Gosma dormia com o olho aberto.
O monstrinho que o protegia quando criança agora protegia Lili.
E ela dormia ao seu lado.
Na cama macia de Gui.

Sanduíche.
Queijo.
Salame.
Banho.
Vestido verde.
Barbeiro.
Almoço.
Lasanha.
Bolonhesa.
Zoológico.
Algodão doce.
Pipoca.
Maçã do amor.
Bichos.
Muitos bichos.
Olhos curiosos querendo ver tudo de uma vez só.
Olhos tontos.
Muitas coisas para ver.
Focinhos, patas, sons, cores.
Lili conhecia um mundo fantástico.
E Gui a mostrava o mundo fantástico.
Juntos.
capítulo nove

Naquela manhã, os dois foram novamente ao aeroporto. Lili com o sorvete na mão e os
olhos no céu. Estudava os pousos e decolagens. Sorria com o mesmo fascínio.

Horas mais tarde os dois saiam do restaurante. Atravessaram a rua. Uma moto invadiu o
sinal.
Gui puxou a garota que se assustou.
O motoqueiro não parou.
- Olha por onde anda, seu merda!
Ele gritou com a menina nos braços.
Lili tremia.
- Desculpe, Lili, eu gritei.
Não.
Lili sacudiu a cabeça.

Ele ainda não percebera que ela o abraçava.


Estava com medo.
E assustada.
Gui colocou a mãos em suas costas e terminou de atravessar a rua.
No fim do trajeto percebeu.
Ela o abraçava.
E não mais tremia.

- O que você está desenhando?


Era noite. A música invadia o quarto e Gui estava debruçado na mesa.
Lili, deitada na cama, com folhas brancas e lápis coloridos. Segurava o lápis vermelho e
olhou para o rapaz. Levantou a mão e pediu que ele esperasse.
Gui concordou com a cabeça. Voltou ao que estava fazendo.
Lili o olhou um pouco e voltou para o desenho.
Queria lhe contar.
- Quem é esse aqui?
Gui perguntou.

Ela lhe chamou.


Ela o chamava com o olhar e ele sentia.
Quando olhava, ela estava realmente o olhando.

Ela lhe mostrou o desenho.


Um homem com um copo na mão olhava para uma mulher. Os dois eram negros como a
garota que estava embaixo da mesa onde outro copo estava. Ao lado dele, um pequeno
vasinho pintado de vermelho.

É o meu pai.
Ela escreveu.
O de verdade.
- E essa é a sua mãe?
Ele apontou para a mulher.
Sim.
Ela apontou para a garota do desenho e depois para si.
Aquela era ela.
- O que ele está fazendo?
Ele deu veneno a ela.
- Como você sabe?
Ele disse enquanto ela tossia.
- Você ouviu?
Ele não sabia que eu estava ali.
- E o que aconteceu depois?
Ele me viu e me puxou pelo braço.
- Ele te batia?
Na minha mãe também.
- Muito?
E quase todo dia.
- Ele bebia?
Muito.
- Você tinha medo dele?
Sim. (com ênfase).
- E a sua mãe?
Sim.
- Mas ela não foi à polícia?
Ele a deixava amarrada.
- Onde, Lili?
No pé do sofá. Com corrente. Ela só saia com ele.
- E você?
Ele me amarrava também.
- E nesse dia ele não te amarrou?
Nós jantamos na rua. Ele estava diferente, eu achei estranho. Quando voltamos, ele me
mandou para o quarto, eu fui para a sala escondida. Ele deu o veneno a ela.
- E quando ele te viu o que ele disse?
Que se eu falasse a alguém, ele me matava.
- Por isso você não fala mais?
Ele tinha um revólver.
- O que ele fez?
Ele a enterrou no quintal.
- Você viu?
Ele me contou.
- E o que ele fez depois?
Ele chorou muito. Ele me bateu. Disse que era tudo culpa minha.
- Não foi culpa sua.
Aí ele quebrou a casa toda e bagunçou tudo. Voltou, a desenterrou e levou ela para o
quarto. Eu fiquei na sala como ele mandou.
- Você não tentou fugir?
Ele me amarrou.
- E depois?
Ele voltou e pegou o outro copo, me bateu outra vez e disse que se eu abrisse a boca ele
voltava para me buscar.
- Ele foi embora?
Ele me desamarrou e foi para o quarto. Ele bebeu o veneno. Os dois ficaram na cama e
eu na sala.
- Você não foi pedir ajuda?
Eu estava com medo.
- Quem encontrou vocês?
A vizinha chamou a polícia no dia seguinte. Por causa da zoada, ela achou que era
ladrão. Aí me acharam.
- Você não contou que foi ele?
Não.
- E os vizinhos?
Ninguém disse nada.
- Por quê?
Dar de ombros. (também podia significar não sei).
- A policia não suspeitou?
Dar de ombros.
- É por isso que você tem medo do escuro?
Sim.
- Ele não vai voltar, Lili.
Gui afirmou e ela o olhou, confusa.
Porque ele me batia? Eu era ruim?
- Ele era mal, Lili.
Sim.
Ela concordava.
- E ele não pode mais te fazer mal.
Ela o olhou, confusa.
- O Sr. Gosma não vai deixar.
Ela sorriu e abraçou o monstrinho.
- Eu também não.
Ela sorriu e beijou seu rosto.
Deitou e fechou os olhos.
Estava cansada.
Gui guardou tudo.
Ligou as luzes coloridas e fechou os olhos.
Também estava muito cansado.
capítulo dez

O sol foi que o acordou. Ele não havia fechado as cortinas.


O Sr. Gosma estava sozinho.
- Lili?
Ele a chamou. Ela não estava no quarto.
Gui levantou.
Ela também não estava no banheiro.
- Lili?

Ele abriu a porta e a casa abrigava sons estranhos.


Sua mãe havia voltado.
Outra mulher limpava a casa.

- Onde está a Lili?


- Eu a devolvi.
- Como?
- Eu a devolvi.
Ela disse despreocupada analisando o rosto no espelho da sala.
- Para quem?
- Acabaram de pegá-la. Ela chorou, quis correr para o quarto, mas eu a mandei embora.
- Você não podia fazer isso.
- Eu não quero uma muda na minha casa.
- Vaca.
- O que?
Ele não repetiu.

Correu.
Estava apenas de short.
Descalço.
Desceu as escadas.
O coração aos pulos.

Ela não ia para o quarto.


Queria ir para o quarto dele.
Para junto do Sr Gosma e de Gui.
Seus protetores.

As escadas pareciam que não mais terminariam.


Seu fôlego estava no fim.
Ele pulou os últimos degraus e atingiu a calçada.
Olhou para os lados.
O peito doía.
O coração batia quase na boca.

Ela havia partido. Ido embora.


Ele não a protegeu. Quebrara a promessa.

- Gui!
A voz era desconhecida, mas ele sabia que era dela.
Lili.
Do outro lado da rua, a garota, nos braços de uma desconhecida chamara seu nome
enquanto lutava para não entrar no carro.
- Não!
Ela disse.
Sua segunda palavra.

Gui correu quase sendo atropelado pelos carros. A arrancou das mãos da mulher.

Ela havia falado.


Ninguém acreditava.
Lili abraçou o garoto.
Tremia.
Sussurrou baixinho:
- Eu quero ficar com você e com o Sr. Gosma.
Gui fez que sim com a cabeça.
Era ele quem não tinha condições de falar.
Tudo o que eu passei foi bom (de algum jeito).
Tudo o que eu passei foi bom (de algum jeito).
Tudo o que eu passei foi bom (de algum jeito).

Ela escreveu e sorriu.


Apenas três vezes foram suficientes.

Na cama, cobriu o Sr. Gosma e o beijou.

- Lili?
- Estou indo!
Ela falou.
Gui a esperava.

Lili havia crescido. Não era mais menina.

Ela fechou o caderno. Nele havia também um desenho. O Sr. Gosma, luzes coloridas,
Gui, aviões, sorvetes e sanduíches de queijo com salame.

Foi bom.
Foi bom.
capítulo onze

O fone de ouvido estava no seu ouvido As mesmas roupas velhas, o mesmo rapaz.
O mesmo ignorado do colégio.
A mesma vida.
Tudo igual.

Ou não.

Andava chutando a vida com seus velhos tênis gastos. A mochila nas costas e a música
estrangeira nos ouvidos.
Naquele momento, ninguém se batia com ele.
Não haviam outras pessoas na rua.
Olhava para frente com as mãos suspensas.

- Se esse sorvete me sujar, eu pego você!


Suas mãos seguravam os joelhos da menina.
Lili riu alto.
Sua risada era melódica e gostosa de ouvir.

Ela tomava sorvete sentada nos ombros do irmão adotivo.


Os fones de ouvido agora divididos.
Um para ele.
Outro para ela.

- Vamos ao aeroporto?
Ela perguntou.
Ele disse que sim.

Ele ainda era o esquisito. Para os outros.


Ele não era mais sozinho.

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dezesseis.dos.seis.de.dois.mil.e.nove.

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