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Os Outros.
Os Outros.
A caneta deslizou sobre o papel enquanto ela escrevia, repetidas vezes, a mesma
frase como um mantra sem meditação, sem respirações adequadas.
Um mantra.
capítulo um
Fones de ouvido pretos redondos, fio com um nó. Uma saída que se liga ao aparelho de
reprodução de MP3. Ipod. Nome estrangeiro. Assim como o som, a música ouvida.
Naquela tarde, enquanto voltava para casa chutando a vida com seus tênis velhos, Gui
sentia-se estranhamente à toa do mundo, fora dele.
Sentia-se como no primeiro ato de um filme.
Os nomes dos atores principais surgem enquanto o mocinho, com as mãos nos bolsos,
assovia e ouve a música que é a trilha sonora da cena.
Ninguém o olha ou encosta nele e o personagem continua andando com os assovios até
entrar o próximo ato e a música ser trocada.
Três pequenas correções para adaptarmos a cena ao que se desenrola com Gui:
(um) ele não era o mocinho.
(dois) ele não sabia assoviar.
(três) as pessoas não desviavam dele e ele se batia com os ombros das pessoas.
Não se importava.
Apenas queria ir para casa. Apenas isso.
Entrar no quarto e fechar a porta.
Só.
E sozinho.
Como sempre.
capítulo dois
Gui entrou no apartamento amplo, bem decorado e requintado dos pais. Trancou a porta
com sua chave que estava presa a um chaveiro com uma bola preta.
Apenas uma bola. Preta. Mais nada.
Seguiu para o quarto ignorando – com sempre fazia – a claridade e a harmonia dos
móveis com os enfeites e as paredes da casa. Não se importava com a casa.
Vivia restrito ao quarto. E à cozinha, claro. Só isso.
Abriu a porta e entrou. Fechou a porta e a trancou, tirando os tênis e os deixando de
lado.
Um bagunça.
Era isso.
Bagunçado sim, mas organizado.
Gui sabia onde estava tudo.
Tirou a blusa e a colocou na cadeira. Foi até a mesa e um desenho inacabado revelava
os cabelos grandes e lisos de uma garota de olhos vivos, nariz fino, boca muito bem
desenhada.
Tícia era o reflexo harmonioso da beleza humana.
E estaria sorrindo encantadoramente se ele tivesse desenhado sua boca. Gui não
terminava o desenho e ele já morava em sua mesa há três dias.
Aquele era o segundo desenho. O primeiro era dela e já estava em suas mãos.
Tícia lhe pediu um desenho seu quando o viu rabiscando na aula de matemática.
Gui odiava matemática. Odiava todas as matérias.
Estudava o suficiente para passar.
Mais nada.
Ela o viu desenhar e fez o pedido. “Te recompenso bem”. Ela disse sorrindo maliciosa.
A mão direita dela tocou o braço dele. Ele estava na cadeira em frente quando ela tocou-
o e sussurrou no seu ouvido para não ser ouvida pela professora mal-amada.
Gui ouviu o pedido e assentiu com a cabeça.
Já fora apaixonado por Tícia. Assim como todos os de sua sala e do colégio inteiro.
Sempre havia a tal garota que povoava a mente dos garotos de uma só vez.
Ticia era uma delas.
A única das redondezas.
Segurando o braço dele e dizendo que o recompensaria, não pôde perceber o que
acontecia com partes mais baixas do corpo do rapaz.
Era uma sorte. O que ela pensaria?
O que ela pensaria era que ele era apenas mais um que ela provocava com sucesso.
E foi isso também que ele pensou quando a reação se repetiu e, daquela vez, ela sentiu
(enquanto o beijava).
Ela o olhou e sorriu. Malícia era quase o seu nome próprio. Enrolou o desenho e o
segurou com a mão direita. Aproximou-se, encostando o rapaz contra a grade.
Estava fria.
Ela sorria. Os corpos colados, a reação de Gui explodia nas partes mais baixas.
Ela sussurrou hipnotizante:
- Não vai me beijar?
Ele não tirou as mãos do bolso. Não sabia se a segurava ou tentava beijá-la. Ficou ali,
encostado à grade, com o corpo dela contra o dele e as bocas coladas.
Havia escovado os dentes.
Não estava com bafo.
Sua sorte.
- Obrigada, esquisito.
Ela sorriu voltando a andar.
Todos o chamavam de esquisito.
Ele incorporou o apelido.
Ele não se incomodava com o apelido ou com as piadas.
Sua boca queimava no desejo pela garota que sempre fora sua paixãozinha infantil.
Assim como a de todos os outros meninos que a cercavam.
Seu corpo ardia de desejo e ele continuava escorado na grade.
Ela queimava como brasa.
Gui também queimava.
Era desejo.
Estampado ali e nas suas calças.
Aquele foi um dos momentos mais importantes de sua vida. Aquele e o outro dia
quando, aos oito anos, caiu da janela da casa onde morava e só não se machucou porque
havia um monte de folhas secas para amortecer a queda.
Seus pais nunca souberam e não saberiam.
Nunca olhavam para Gui.
Estavam muito ocupados um destruindo a vida do outro.
Como podiam perceber a queda do filho?
Enquanto via Ticia gingando e se afastando, Gui, grudado à grade, curtia o queimor e
atônito, mantinha as mãos no bolso e a paralisia.
Aquele era o momento mais incrível de sua história e, no dia seguinte, Ticia não mais o
olharia. Sabia que ela não o olharia. Nunca se falavam.
Um esquisito.
capitulo três
Fátima era uma mulher morena, olhos grandes e amendoados, corpo bonito e definido
pelas aulas com o personal training (com quem ela mantinha um caso). Não dirigia,
tinha um motorista (outro de seus casos). Não trabalhava. Vivia para si, já que o filho?
Ele já não precisava mais dela. Gui havia destruído seu corpo. Ele a deixou “gorda e
flácida”. O garoto já havia feito estragos suficientes.
- E aí, cara?
Roberto o cumprimentou animado.
Gui sentou-se incomodado.
Os pais não falavam daquela maneira com ele há muito tempo.
Seu pai era um homem também bonito e musculoso. Fazia academia todas as manhãs e
trabalhava numa grande empresa da família. Sabia que seu filho nunca o sucederia e
respirava aliviado. Gui destruiria o patrimônio que levou anos para ser erguido por
várias gerações. Era a sua sorte.
Nunca se interessou pelo filho. Trabalhava demais no escritório, saindo cedo e
chegando tarde. Nos fins e semana, jogava tênis e golfe. Durante as noites cumpria os
compromissos sociais com a mulher. Os dois sempre iam sozinhos, Gui não os
acompanhava. Sempre diziam que o garoto estava ocupado estudando.
Quando menino, sempre fora criado por babás. Aprendera a não se afeiçoar a elas.
Sempre eram moças jovens que precisavam de um emprego. Algumas eram muito
legais, outras impacientes. Nunca duravam muito, ele nunca entendia porque.
Até que entendeu.
No dia da queda, andava de volta para dentro da casa. Estava assustado e queria ver se
Nanci, sua babá, estava acordada. Ela sempre fazia chocolate quente quando ele não
conseguia dormir.
Estava na casa deles há dois meses. Era um recorde.
Ele foi até os fundos da casa onde ficava o quarto. A luz estava acesa, a porta trancada.
Olhou pela fechadura e viu, claramente, o pai a beijando na boca. Os dois estavam
agarrados e ela tentava se desvencilhar do patrão.
Só foi em frente com a idéia a mulher porque ela o ameaçou de várias formas.
Pedir divórcio. Contar aos jornais que ele pinta os cabelos. Demitir Verônica, a
secretária bonita com quem Roberto mantinha outro caso há um ano.
Roberto aceitou.
Nunca concordou.
Mas encenou perfeitamente o papel de patriarca da família feliz que Fátima armou.
O filho não foi envolvido. Para os funcionários dos órgãos que o casal freqüentava para
conseguir adotar a criança, Gui estava em um intercâmbio na Inglaterra.
Não queriam que conhecessem o filho.
Ele era muito esquisito.
Era uma garotinha negra de oito anos de idades, cabelos chacheadinhos, miúdos, corpo
muito magro.
Ela parecia cansada. Doente.
Foi o que Gui pensou.
- Lili!
Fátima a chamou, histérica, e a garota deu um pulo, assustada. Parecia que cairia da
cama.
Olhou para a porta em alerta.
Gui viu pânico em seus olhos.
- Esse é o Gui, seu novo irmão.
Fátima sorriu olhando para a garota.
Ela olhou para ele. Parecia sofrer.
Não disse nada.
Gui a olhou e suspirou.
- Meus pêsames.
Disse e saiu.
Fátima o olhou assustada.
Gui não se importou.
Entrou no quatro e trancou a porta, ligando o som em seguida.
Aquele seria mais um dos crimes que o casal cometeria.
Ele não iria compactuar com aquilo.
capítulo quatro
Férias.
O paraíso no meio do inferno.
Gui adorava as férias e o tédio.
Adorava não ter que estudar e passar os dias inteiros no quarto.
Essa não era a única coisa que fazia.
Gui costumava andar pelas ruas matando a vida (ou o tempo, como costumavam dizer)
ou ia ao aeroporto.
Perdia-se vendo o trânsito das aeronaves com os fones de ouvido.
Seus eternos companheiros.
Lili estava morando com ele há um mês. Na verdade, ela morava praticamente com a
faxineira e a cozinheira. Seu pai trabalhava, sua mãe dondocava e Gui abrira mão de
participar com aquela lástima.
Via tão pouco a garota que quase se esquecia dela.
Ele entrava em casa, passava na cozinha e ia para o quarto. Nunca modificava seu
trajeto. Ninguém lhe incomodava ou falava com ele. A faxineira só entrava no seu
quarto uma vez por semana quando ele não estava e nos dias em que deixava a porta
destrancada. Tirava o “grosso” da sujeira, não fazia mais anda, não tirava nada do lugar.
O que ele não sabia era que a garota não falava há muito mais de um mês. Desde que
perdeu os pais e ninguém sabia por quê. Todos os exames foram feitos e descartaram
qualquer anomalia. Diziam que era algo psicossomático resultante de um trauma intenso
que eles não podiam afirmar com cem por cento de certeza do que se tratava.
Ela tinha que abrir a boca.
Era madrugada quando ele acordou. Estava com sede e precisava de água gelada. Muito
gelada.
Levantou.
A porta do quarto de Lili estava fechada. Passara dois dias inteiros fechada.
Ele a viu pouco naqueles dias.
No anterior, quando ele levou a pizza e deixou bolachas recheadas para ela lanchar e
mais tarde, sanduíche de queijo com salame e suco de maçã (seus preferidos).
No segundo dia, entrou para entregar as refeições, mais nada.
Os dois entraram no quarto, ela olhou em volta. Não disse, mas achou o quarto lindo.
Ele percebeu que ela encarava os desenhos, na parede, com uma atenção absurda.
Gui não desenhava qualquer coisa. Costumava desenhar pessoas e cachorros.
Desconhecidos que via na rua. Cachorros de rua.
Havia sempre um brilho nos olhos deles que Gui não conseguia transferir para o papel.
Mas desenhava bem.
Usava lápis 2B. Sempre. Nenhuma cor. Só o 2B. Mais nada.
Papel branco e lápis 2B.
Desenhava muito bem.
No início, aprendeu sozinho, depois com Nanci, depois tomou cursos.
Ninguém nunca soube quais ou onde. Era sempre sozinho.
E os desconhecidos pendurados nas paredes do seu quarto o acompanhavam.
Era menos sozinho do que todos pensavam.
Lili quis ir ao cinema com ele. Era o quarto dia que eles estavam juntos e sozinhos.
Ela não dizia uma palavra.
Ele adorava o seu silêncio.
Assistiram a um filme infantil. Ele não gostava, mas também não desgostava.
Ela pareceu se divertir. Até sua risada não tinha som.
Com o bloco e o lápis na mão, a garota colocou o copo do sorvete de lado e estudou o
rosto do rapaz.
Ele não conseguiu falar por alguns segundos. Os olhos da garotinha pareciam tragá-lo, o
invadiam em essência sem serem inconvenientes ou indiscretos.
Era um pleno contato silencioso e sincero.
- Eu não me incomodo que você seja muito sincera. Você sabe o que é sincera?
Sim.
- Seja muito sincera. Eu não vou ficar zangado. O que você achou dos seus novos...
bom... dos seus novos pais?
Eles são legais comigo.
- Você gostou da casa?
É legal.
- E você acha mesmo que pode ficar com eles?
Eu não vou ficar.
- Por quê?
Eu nunca fico muito tempo.
- Porque não? Você não quer ficar com ninguém?
Ninguém quer ficar comigo.
- Por quê?
Se eu não falar, eles não me querem.
- E você não pode falar, não é?
Não. (com a cabeça e com ênfase).
- Por mim, tudo bem.
Para eles não.
- Para os pais?
Para os outros.
- O pessoal que ajuda na adoção?
Sim.
(sim, não e tanto faz continuavam sendo feitos com a cabeça).
- Eu entendo.
Ele disse e voltou a olhar para o céu.
Mais um dia. Mais uma noite na cama dele fascinada pelas luzes estáticas.
No fim do dia, a casa ainda estava vazia. Mas eles voltavam com duas sacolas de roupas
e alguns sapatos. A menina usava um vestido bonito e azul marinho com morangos
muito vermelhos.
Sorria comendo taboca.
Lili não conhecia taboca.
De que mundo ela vinha?
Naquela noite, ela brincava com o Sr. Gosma – o boneco preferido de Gui quando ele
era pequeno – enquanto o rapaz lia.
Sr. Gosma era uma pelúcia verde sem forma que foi colocado por acidente entre os
sacos de brinquedos que Fátima comprou para o filho em um Natal anos atrás. Entregou
os sacos ao garoto no dia vinte e dois. Não tinha paciência para escondê-los. Muito
menos para fingir que papai Noel os deixara.
O único brinquedo que ele gostou foi o Sr. Gosma. Deixou os outros no saco e levava o
Sr. Gosma na mochila para todo o canto.
Um dia, quando sua mãe quis jogar fora o feio monstrengo, ele o escondeu no fundo do
guarda-roupa.
Sr. Gosma morou ali por uma semana.
A atenção de Fátima para com o filho não durava mais de algumas horas.
Gui não arriscou.
Sete dias depois, o tirou do fundo do armário, mas o deixou no quarto.
Ele não arriscaria perdê-lo outra vez.
Já bastavam as babás.
Gui olhou para a garota. Ela estava sentada na cama, vestindo um pijama com estampas
de vacas malhadas. O examinava.
O Sr. Gosma o olhava também. Com o seu único olho direcionado para o rapaz.
Lili examinou a capa do livro. Era de ficção científica.
A batalha dos Zinpets.
Gui o adorava.
Às vezes queria ser um ET e ser resgatado da Terra para contar como os humanos
podiam ser miseráveis e horríveis. Mas, infelizmente, não era um ET.
Apesar de ser comparado a um.
Não tinha essa sorte.
Lili deitou abraçada ao Sr. Gosma e Gui começou a ler para ela. Explicando, quando
julgava necessário, o que o autor queria dizer.
A garota mal piscava. Olhava o teto branco e os ouvidos engoliam as palavras com gula.
Pareciam nunca ter ouvido nada parecido.
Gui acordou e o Sr. Gosma estava enrolado ao seu lado. Lili não estava.
Virou-se e a garota estava olhando o desenho de Ticia. O segurava nas mãos pequenas.
- O que você está fazendo?
Ele perguntou com a voz alta e zangada.
A garota, de um pulo, deixou o desenho no chão e se encolheu.
Gui estava muito irritado para lembrar que Lili era só uma criança.
E morria de medo dos gritos.
Ele não sabia, mas eles eram comuns em sua curta vida.
Ela não se acostumou.
Mas eles existiam.
Diariamente.
Gui abaixou para pegar o desenho de costas para a garota. Olhou os traços inacabados
de Ticia e rasgou a folha com raiva. Jogou suas partes no chão.
Só então ouviu a porta do quarto bater.
Não era a sua.
Era a de Lili.
A garota assustada se trancara.
E os soluços eram ouvidos.
Ele os ouviu quando encostou o ouvido na porta.
Era um imprestável.
Suspirou.
Não lhe disse nada.
O almoço foi deixado na porta. Assim como lanche da tarde e o Sr. Gosma.
Lili abria a porta quando tinha certeza que ele não estava lá e a trancava rápido.
Gui podia ouvir o som do trinco do seu quarto.
Ele estava se sentindo mal e estranho.
Um imprestável.
Era noite.
Ela já havia jantado.
Ele estava no quarto e pegou o livro.
Sentou na porta trancada e leu em voz alta o segundo capítulo.
Ouviu os passos pouco sonoros da garota que se sentou do seu lado da porta.
Cinco.
Dez.
Quinze.
Minutos.
Gui suspirou.
Lili respirou.
- Lili, eu não quis gritar com você. Mas, às vezes, a gente perde a paciência, sabe?
Ela sabia.
- Às vezes os mais velhos agem como babacas, sabe?
Ela sabia.
- Às vezes eles te machucam, sabe?
Ela sabia.
Muito bem.
- Mas nem sempre gritar é rum, Lili! A raiva passa um pouco. E eu não quero te
machucar. Também não queria te assustar. É que... A garota do desenho. Ela é... Bom,
ela não merecia o desenho, sabe? Eu que fui um besta e fiz. Mas você não tem culpa
disso. Fui eu que fiz. Eu não queria te magoar. Por mais babacas que os mais velhos
sejam, uma grande parte deles não quer te machucar, sabe? Eles só querem viver a vida
e mais nada. Sem ninguém perturbando ou dizendo o que eles têm ou não que fazer.
Não importa. O mais importante é que eles não querem te machucar, sabe?
Lili não sabia.
- E principalmente... Ouça isso e acredite... Eu não quero machucar você.
Gui suspirou e foi para o seu quarto.
Lili respirou e olhou para o teto branco.
Ela sabia, só não conseguia entender muito bem.
capítulo oito
O Sr. Gosma dormia com Lili. Os dois estavam na sua cama e dormiam profundamente.
Sr. Gosma dormia com o olho aberto.
O monstrinho que o protegia quando criança agora protegia Lili.
E ela dormia ao seu lado.
Na cama macia de Gui.
Sanduíche.
Queijo.
Salame.
Banho.
Vestido verde.
Barbeiro.
Almoço.
Lasanha.
Bolonhesa.
Zoológico.
Algodão doce.
Pipoca.
Maçã do amor.
Bichos.
Muitos bichos.
Olhos curiosos querendo ver tudo de uma vez só.
Olhos tontos.
Muitas coisas para ver.
Focinhos, patas, sons, cores.
Lili conhecia um mundo fantástico.
E Gui a mostrava o mundo fantástico.
Juntos.
capítulo nove
Naquela manhã, os dois foram novamente ao aeroporto. Lili com o sorvete na mão e os
olhos no céu. Estudava os pousos e decolagens. Sorria com o mesmo fascínio.
Horas mais tarde os dois saiam do restaurante. Atravessaram a rua. Uma moto invadiu o
sinal.
Gui puxou a garota que se assustou.
O motoqueiro não parou.
- Olha por onde anda, seu merda!
Ele gritou com a menina nos braços.
Lili tremia.
- Desculpe, Lili, eu gritei.
Não.
Lili sacudiu a cabeça.
É o meu pai.
Ela escreveu.
O de verdade.
- E essa é a sua mãe?
Ele apontou para a mulher.
Sim.
Ela apontou para a garota do desenho e depois para si.
Aquela era ela.
- O que ele está fazendo?
Ele deu veneno a ela.
- Como você sabe?
Ele disse enquanto ela tossia.
- Você ouviu?
Ele não sabia que eu estava ali.
- E o que aconteceu depois?
Ele me viu e me puxou pelo braço.
- Ele te batia?
Na minha mãe também.
- Muito?
E quase todo dia.
- Ele bebia?
Muito.
- Você tinha medo dele?
Sim. (com ênfase).
- E a sua mãe?
Sim.
- Mas ela não foi à polícia?
Ele a deixava amarrada.
- Onde, Lili?
No pé do sofá. Com corrente. Ela só saia com ele.
- E você?
Ele me amarrava também.
- E nesse dia ele não te amarrou?
Nós jantamos na rua. Ele estava diferente, eu achei estranho. Quando voltamos, ele me
mandou para o quarto, eu fui para a sala escondida. Ele deu o veneno a ela.
- E quando ele te viu o que ele disse?
Que se eu falasse a alguém, ele me matava.
- Por isso você não fala mais?
Ele tinha um revólver.
- O que ele fez?
Ele a enterrou no quintal.
- Você viu?
Ele me contou.
- E o que ele fez depois?
Ele chorou muito. Ele me bateu. Disse que era tudo culpa minha.
- Não foi culpa sua.
Aí ele quebrou a casa toda e bagunçou tudo. Voltou, a desenterrou e levou ela para o
quarto. Eu fiquei na sala como ele mandou.
- Você não tentou fugir?
Ele me amarrou.
- E depois?
Ele voltou e pegou o outro copo, me bateu outra vez e disse que se eu abrisse a boca ele
voltava para me buscar.
- Ele foi embora?
Ele me desamarrou e foi para o quarto. Ele bebeu o veneno. Os dois ficaram na cama e
eu na sala.
- Você não foi pedir ajuda?
Eu estava com medo.
- Quem encontrou vocês?
A vizinha chamou a polícia no dia seguinte. Por causa da zoada, ela achou que era
ladrão. Aí me acharam.
- Você não contou que foi ele?
Não.
- E os vizinhos?
Ninguém disse nada.
- Por quê?
Dar de ombros. (também podia significar não sei).
- A policia não suspeitou?
Dar de ombros.
- É por isso que você tem medo do escuro?
Sim.
- Ele não vai voltar, Lili.
Gui afirmou e ela o olhou, confusa.
Porque ele me batia? Eu era ruim?
- Ele era mal, Lili.
Sim.
Ela concordava.
- E ele não pode mais te fazer mal.
Ela o olhou, confusa.
- O Sr. Gosma não vai deixar.
Ela sorriu e abraçou o monstrinho.
- Eu também não.
Ela sorriu e beijou seu rosto.
Deitou e fechou os olhos.
Estava cansada.
Gui guardou tudo.
Ligou as luzes coloridas e fechou os olhos.
Também estava muito cansado.
capítulo dez
Correu.
Estava apenas de short.
Descalço.
Desceu as escadas.
O coração aos pulos.
- Gui!
A voz era desconhecida, mas ele sabia que era dela.
Lili.
Do outro lado da rua, a garota, nos braços de uma desconhecida chamara seu nome
enquanto lutava para não entrar no carro.
- Não!
Ela disse.
Sua segunda palavra.
Gui correu quase sendo atropelado pelos carros. A arrancou das mãos da mulher.
- Lili?
- Estou indo!
Ela falou.
Gui a esperava.
Ela fechou o caderno. Nele havia também um desenho. O Sr. Gosma, luzes coloridas,
Gui, aviões, sorvetes e sanduíches de queijo com salame.
Foi bom.
Foi bom.
capítulo onze
O fone de ouvido estava no seu ouvido As mesmas roupas velhas, o mesmo rapaz.
O mesmo ignorado do colégio.
A mesma vida.
Tudo igual.
Ou não.
Andava chutando a vida com seus velhos tênis gastos. A mochila nas costas e a música
estrangeira nos ouvidos.
Naquele momento, ninguém se batia com ele.
Não haviam outras pessoas na rua.
Olhava para frente com as mãos suspensas.
- Vamos ao aeroporto?
Ela perguntou.
Ele disse que sim.
.mif
dezesseis.dos.seis.de.dois.mil.e.nove.