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Resenhas, pp.

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mundializado ou global. Ao tratar do futuro do movi- os organizadores Cláudio M Batalha, Fernando Teixeira
mento operário e considerar que a crença de que a classe da Silva e Alexandre Fortes enfatizam que a discussão
trabalhadora deixou de ser um “ator social significati- sobre as “culturas de classe” remete à apreensão das
vo” não necessariamente é verdadeira, Beverly Silver diferentes formas pelas quais os operários organizam as
repõe a necessidade de ampliar a análise tanto histórica suas experiências no sentido da constituição de uma
como geograficamente. O fato de incorporar em seu identidade de classe. Ainda que o debate esteja inserido
trabalho um leque diferenciado de países (dos Estados no campo da historiografia, essa é uma questão perti-
Unidos à Coréia do Sul; da Alemanha à Argentina) faz nente também à sociologia e à antropologia do traba-
com que ele tenha um diferencial enorme, na medida lho. O aumento da importância dessa área cultural nos
em que permite a comparação a partir de realidades estudos do “operariado” tem aberto a possibilidade de
particulares na sua relação com a economia global, em avançar no conhecimento a respeito da vida dos traba-
vez da consideração puramente unilateral da economia lhadores, acentuando a diversidade no interior da clas-
dos países centrais. Como foi dito no início, a grande se operária e trazendo contribuições importantes para
contribuição de Forças do trabalho é o respeito pela as pesquisas e análises referentes ao tema.
unidade na contradição, e esse respeito só pode ser atin- O livro divide-se em três partes. Na primeira delas,
gido quando cada uma das determinações que com- intitulada “Classe e cultura: um balanço conceitual e
põem um ente é levada em conta. É esse o caso do livro historiográfico”, os historiadores ingleses Mike Savage
de Beverly J. Silver, pois ele não rejeita um fato que e Neville Kirk discutem os conceitos de classe e cul-
nem sempre é lembrado quando o tema é evolução tura operária nos dias de hoje. Os autores contrapõem
técnica do capitalismo: a fundação da reação política a às abordagens que tomam a classe operária de forma
partir da exploração do trabalho pelo capital. E quem homogênea, com base exclusivamente na análise dos
vier a ler o livro terá plena visão de conjunto desse fator, processos de trabalho, a existência de diferenças in-
pois sem ele não há perspectiva alguma de resposta ternas no operariado, que remetem a aspectos cultu-
alternativa ao poder, também político, do capital. rais como gênero, lazer, religião etc. Se essas diferen-
ças devem ser consideradas na agenda de pesquisas
sobre o trabalho, isso não significa, porém, a descon-
Cláudio M. Batalha, Fernando T. da Silva e Alexandre sideração dos elementos integradores da classe. Savage
Fortes (orgs.), Culturas de classe. Campinas, Unicamp, e Kirk mostram justamente que as tendências “inte-
2004, 438 pp. gradoras” e “desintegradoras” convivem.
A segunda parte do livro, sob o título “Sociabili-
Leonardo José Ostronoff dades, identidades e classe”, é composta por três ca-
Mestrando do Departamento de Sociologia da pítulos, cujo objetivo é mostrar como as festas, os sím-
Universidade de São Paulo bolos, as práticas cotidianas e esportivas constroem a
identidade de classe dos trabalhadores, e a ela estão
Nos últimos anos, muitos estudos sobre o trabalho intrinsecamente ligados. A preocupação dos autores
têm abordado as áreas culturais do “operariado”. O li- é demonstrar que o trabalho não é o único espaço de
vro Culturas de classe é uma mostra desse fenômeno, sociabilidade que contribui na formação da identi-
trazendo doze artigos que tratam da “cultura operária”, dade da classe operária. Os artigos de Michel Ralle,
todos baseados em pesquisas realizadas no período com- Cláudio Batalha e José Sérgio Leite Lopes, compreen-
preendido entre a segunda metade dos anos de 1980 e dendo o período de meados do século XIX aos anos
o início da década seguinte. Na apresentação do livro, de 1930, permitem a abordagem de aspectos funda-

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mentais para a compreensão da classe operária, como trabalho na indústria frigorífica instalada na Argentina,
o lazer, o preconceito de cor e de classe, a etnicidade especificamente na cidade de Berisso, e na organização
e a elaboração dos símbolos que ajudam a definir a sindical e lutas operárias.
identidade e a unidade do operariado. Enquanto Lobato trabalha a atuação dos militantes
A terceira parte recebe o nome de “Culturas de operários comunistas e sua luta pela organização de
ofício”, e trata da construção de relações de identidade base dos trabalhadores em frigoríficos daquela região,
dos trabalhadores por meio de seus ofícios. Os dois James discute o papel da mulher trabalhadora na fa-
artigos que compõem essa parte do livro deixam clara a mília, na fábrica, no sindicato e na política utilizan-
existência de um conjunto de valores, práticas e julga- do a história de vida de doña María. Essa opção me-
mentos comuns aos trabalhadores de um mesmo ofí- todológica permitiu a esse autor uma interessante
cio. Artur Vitorino, em seu artigo “Os sonhos dos tipó- discussão a respeito das possibilidades e dos limites
grafos na corte imperial brasileira”, procura estabelecer do recurso à história oral pela historiografia, vendo
uma configuração da identidade dos operários nos dis- nela não um obstáculo à objetividade científica, mas
cursos dos tipógrafos das décadas de 1850 e 1860 na uma forma de dar voz aos sem voz, recuperando a
corte imperial brasileira. Essa identidade estaria relacio- dimensão subjetiva na narrativa histórica. A leitura
nada a uma “missão” da qual os tipógrafos acreditavam que James faz dessa história de vida apreende não só
ser portadores, que consistia em difundir, por meio da a dimensão de classe, mas principalmente a de gêne-
imprensa, o conhecimento geral para um grande nú- ro, ao mostrar as ambivalências e as contradições que
mero de pessoas, tanto no presente como no decorrer marcam a vida de trabalho e de militância de mulhe-
dos séculos. res que, em sua vulnerabilidade, desafiam o poder e
O historiador Fernando Teixeira da Silva, em seu a autoridade masculina. Os dois artigos demonstram
artigo “Valentia e cultura do trabalho na estiva de San- que a classe operária não é composta apenas de ho-
tos”, destaca um aspecto importante para a compreensão mens, mas também de mulheres que fizeram e fazem
da identidade dos portuários ao relacioná-la às carac- parte do movimento operário. É possível destacar uma
terísticas consideradas necessárias para a eficiência nesse relação entre o artigo de Teixeira, presente na terceira
ofício, tidas como masculinas: virilidade e força. Nes- parte, e os artigos dessa quarta parte. Tanto na estiva
se sentido, tornou-se comum a legitimação das lide- de Santos quanto nos frigoríficos de Berisso, há a
ranças a partir de práticas intimidadoras dos mais fortes valorização das características tidas como masculinas
sobre os mais fracos e do exercício da autoridade com enquanto critérios de qualidade e eficiência no traba-
uma política de favoritismos que provocava o surgi- lho, bem como de legitimidade, de constituição de
mento de conflitos. Apesar disso, Teixeira da Silva líderes e de mitos.
conclui afirmando que agregação e desagregação con- A última parte do livro, “Migrações, etnicidade e
viveram, mas, por outro lado, apesar e por causa da cultura fabril”, é composta por três artigos que enfocam
diversidade, da divisão, da competição e dos confli- a relação entre classe, etnicidade e participação política
tos, foram-se fortalecendo práticas integrativas que na formação de identidade do operariado. A etnicidade
teriam criado as bases de uma cultura de solidarieda- favoreceria a identificação prévia de contingentes de
de entre os estivadores. trabalhadores originários das mesmas regiões, sendo a
A quarta parte do livro é intitulada de “Gênero, base da construção de laços de solidariedade e da cria-
fábrica e política”. Os dois artigos que a compõem, de ção de coletivos.
Mirta Zaida Lobato e de Daniel James, têm em comum O primeiro artigo é de Alexandre Fortes, “Os ou-
o fato de se concentrarem na análise das relações de tros polacos”. O termo “polaco” diz respeito não somen-

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te aos descendentes de poloneses, mas aos grupos oriun- porados à indústria automobilística. Zé Brasil é uma
dos do Leste europeu como um todo, ou seja, ucrania- referência a um personagem de Monteiro Lobato dese-
nos, bielo-russos etc. Analisando esses grupos de imi- nhado no pós-guerra para defender a reforma agrária.
grantes em Porto Alegre, o autor demonstra os elemen- Nas décadas de 1950, 1960 e 1970, esses trabalhado-
tos simbólicos da formação da classe trabalhadora res rurais, grande parte deles formada de migrantes nor-
naquela região. A luta pela sobrevivência e pela melhor destinos sem nenhum conhecimento anterior do traba-
inserção em sua nova terra teria feito com que esses lho fabril, afirmam-se como os novos personagens do
grupos de trabalhadores se deparassem com a necessi- movimento operário, necessitando romper, contudo,
dade de assumir uma posição em relação às disputas com os preconceitos que sofriam por parte dos demais
políticas internacionais e, com base nelas, realizar dife- operários e até mesmo por parte dos estudos a seu res-
rentes políticas de aliança. Para Fortes, a vivência políti- peito. Negro traça em seu artigo a trajetória desses tra-
ca dos polacos teria deixado um acúmulo de experiên- balhadores construtores de automóveis que estão na
cias que depois seria usado para constituir lideranças origem do “novo sindicalismo” e do desenvolvimento
comunitárias, organizadores políticos de base e sindica- econômico da região do ABC, mostrando o seu duro
listas. aprendizado fabril, a sociabilidade operária e a constru-
No artigo “Migração nordestina e experiências ope- ção de seus pontos de vista, fundamentais para a elabo-
rárias (São Miguel Paulista nos anos 1950)”, que tem ração da identidade de “peão”.
como referência o bairro de São Miguel, conhecido re- Culturas de classe representa uma importante con-
duto nordestino da cidade de São Paulo, e a Nitroquí- tribuição para os estudos do trabalho, fornecendo ao
mica, fábrica instalada naquela localidade, cujo quadro leitor textos a respeito da cultura operária construí-
de funcionários era formado principalmente pela mão- dos a partir de sólidas pesquisas e com análises con-
de-obra desses imigrantes nordestinos, Paulo Fontes sistentes. Essa obra constitui um estímulo e uma
mostra que as redes de sociabilidade típicas do Nordes- abertura para novos estudos sobre a diversidade de
te continuaram valendo em São Paulo. O autor não expressão cultural dos operários, na medida em que
considera o campo econômico como o único fator de incentiva olhar os trabalhadores não apenas no inte-
explicação para as migrações, mas afirma que os rior do processo do trabalho, mas levando em conta
migrantes possuíam e elaboravam diferentes estratégias o bairro onde moram, a sociabilidade externa à fábri-
que contribuíam para a constituição do processo mi- ca, suas redes de amizade familiares e de convivência,
gratório. O estabelecimento de redes sociais possibili- suas histórias de migração, suas formas de lazer, e
tou a elaboração de uma solidariedade com base não na tornando explícito como essas questões constituem uma
classe social, mas alicerçada em relações pessoais. Se- cultura operária e interferem na formação da classe e
gundo o autor, essa unidade foi decisiva para a forma- também conferem possibilidades aos trabalhadores de
ção de lideranças e para legitimar a ação sindical na se organizarem para a ação política.
região no período entre 1945 e 1964. Fontes conclui
seu artigo afirmando que essas redes de relações sociais
e os valores culturais comuns reforçaram a identidade
de trabalhadores migrantes.
O último capítulo, “Zé Brasil foi ser peão: sobre a
dignidade do trabalhador não qualificado na fábrica
automobilística”, de Antonio Luigi Negro, trata dos
operários originários do trabalho rural que foram incor-

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