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02 GÊNEROS LITERÁRIOS E A LITERATURA

CONSTRUÇÃO DO HERÓI

Os gêneros não são leis nem regras fixas, mas categorias criando identificações; no plano formal, há predominância de
relativas dentro das quais cada escritor se move à vontade: pronomes e verbos em 1ª pessoa.
elas é que estão a serviço dele, não ele a serviço delas. A ode, a elegia e o soneto são formas clássicas de manifestação
(Massaud Moisés) lírica. São textos preocupados com a forma, nos quais predominam
as funções emotiva e poética. A métrica, a rima e a musicalidade
Assim como grande parte das questões relacionadas à também ganham destaque nas obras líricas. Observe o lirismo nos
literatura, a reflexão sobre os gêneros literários assemelha-se a uma versos a seguir, de Vinícius de Moraes:
tentativa de teorizar sobre assuntos em constante mutabilidade.
A visão que temos sobre literatura ou artes de forma geral deve
estar sempre vinculada às condições históricas e sociais de cada A partida
lugar e de cada tempo. E sabemos que o tempo muda e que essa Quero ir-me embora pra estrela Verei a cidade morta
mudança implica novas visões de mundo, novas formas de tratar Que vi luzindo no céu Ir ficando para trás
a realidade que nos circunda. Como consequência, novos olhares Na várzea do setestrelo. E em frente se abrirem campos
sobre a literatura e seus gêneros. Sairei de casa à tarde Em flores e pirilampos
Na hora crepuscular Como a miragem de tantos
Para nós, da civilização ocidental, a arte tem como referência
Em minha rua deserta Que tremeluzem no alto.
a Grécia antiga e seus pensadores. E a partir de suas ideias, os
Nem uma janela aberta Num ponto qualquer da treva
gêneros da literatura têm sido estudados. Discípulo de Platão, que
Ninguém para me espiar Um vento me envolverá
distinguia apenas poesia e prosa – “falarei em prosa, pois não
De vivo verei apenas Sentirei a voz molhada
sou poeta” –   e estimulado por ele, Aristóteles, em sua Poética,
Duas mulheres serenas Da noite que vem do mar
debruçou-se sobre o assunto e ofereceu encaminhamentos
Me acenando devagar. Chegar-me-ão falas tristes
inovadores, propondo a divisão dos gêneros em três modalidades:
Será meu corpo sozinho Como a querer me entristar
Que há de me acompanhar Mas não serei mais lembrança
LÍRICO, ÉPICO E DRAMÁTICO. Que a alma estará vagando
Entre os amigos, num bar.
Nada me surpreenderá:
Passarei lúcido e frio
Observe que o vocábulo “gênero” (genus-eris), em sua acepção Ninguém ficará chorando Compreensivo e singular
latina, significa geração – tempo de origem ou de nascimento. Que mãe já não terei mais Como um cadáver num rio
Dessa forma, já é possível perceber esse caráter de transformação E a mulher que outrora tinha E quando, de algum lugar
próprio dos gêneros literários, à medida que cumpririam um ciclo Mais que ser minha mulher Chegar-me o apelo vazio
de nascimento, desenvolvimento e morte. O gênero épico, por É a mãe de uma filha minha. De uma mulher a chorar
exemplo, tão valorizado na antiguidade, abandonou a estrutura Irei embora sozinho Só então me voltarei
em versos e passou a priorizar o contar histórias em prosa, o que Sem angústia nem pesar Mas nem adeus lhe darei
permitiu o surgimento dos textos narrativos em forma de romance, Antes contente da vida No oco raio estelar
conto, crônica, dentre outros. Que não pedi, tão sofrida Libertado subirei.
Falar em gêneros, hoje, e em classificações estanques é Mas não perdi por ganhar.
objeto de discussão. A classificação dos textos em gêneros é por (Vinicius de Moraes)
demais limitada ou segmentada para entendermos a riqueza que a
literatura oferece. Sua pluralidade e complexidade, especialmente
na literatura contemporânea, nos permite, inclusive, perceber que
modernamente os gêneros se interpenetram em um texto, como
GÊNERO DRAMÁTICO
uma prosa poética, por exemplo. Haverá sempre a predominância A palavra drama vem do grego e significa ação. E é o “agir”
de características de um dos gêneros, todavia será possível que torna diferente este gênero dos demais, já que apresenta sua
encontrar traços de outro(s) gênero(s) em um mesmo texto. história contada diretamente pelos personagens. Os textos não
Hoje, com as novas mídias, antigos gêneros são modificados e visam ser recitados, mas encenados. O palco é o espaço deste
novos estão surgindo com a interação entre a literatura e outras gênero, onde atores representam os papéis das personagens,
manifestações artísticas. desenrolando-se por meio de diálogos, seguindo uma sequência
que confira às cenas a lógica de causa e consequência.
A ausência do narrador é compensada com indicações
GÊNERO LÍRICO diversas, como, por exemplo, o cenário. É comum que o gênero
A palavra lírico vem do nome de um pequeno instrumento trate dos conflitos humanos, as relações dos homens com o
musical da antiguidade, a lira. A melodia acompanhava os versos mundo e a própria miséria – moral, social ou econômica – por que
recitados, combinando música e literatura, duas artes em única passam. A crítica é universal, servindo o homem como exemplar
manifestação. O gênero é a manifestação de um eu lírico, a de qualquer outro, exemplificando comportamentos e sentimentos
expressão de seus sentimentos pessoais, seu mundo interior, suas diversos como avareza, ganância, prudência entre outros.
emoções e impressões. Em sua estrutura notam-se as marcações cênicas, comuns
Normalmente o poeta lírico é um ser isolado, que se interessa no início de atos e cenas, em que são descritos os elementos do
pelos estados da alma, com suas sensações. Daí essa expressão ambiente, a entrada de personagens e seus figurinos. Também
artística ser estritamente subjetiva, interiorizando o mundo exterior, são comuns as rubricas de interpretação, textos que surgem entre
parênteses dentro das falas das personagens, para indicar ao ator
as emoções ou maneiras de interpretar as falas segundo a visão
do dramaturgo.

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O gênero dramático compreende várias modalidades como a sua força e tenacidade: estava criada a ficção.
tragédia – que visava representar ações de consequências graves, O gênero épico caracteriza-se pela presença de um narrador que,
inspirando pena e terror; a comédia – que representava o cotidiano via de regra, distancia-se do assunto narrado, contando histórias
e a crítica aos costumes, provocando o riso; e a farsa – pequena de outras personagens. Esses textos eram produzidos para serem
peça de caráter caricatural de crítica à sociedade, aos poderosos e lidos diante de uma plateia e narram feitos de heróis, histórias de
aos costumes em geral. um povo ou de uma nação. A exaltação das personagens e de seus
O texto a seguir, fragmento da peça Eles não usam black-tie, comportamentos nas batalhas ou aventuras é marca registrada do
de Gianfrancesco Guarnieri, mostra os conflitos vividos por Otávio, gênero.
líder de movimento sindical e seu filho Tião, operário que fura a Os poemas épicos são chamados de epopeias e seguem o
greve para não perder o emprego. roteiro de exaltação de heróis em batalha, forjando a história das
nações. O famoso livro Os Lusíadas, de Luís de Camões é um
TIÃO – Papai... exemplo deste gênero. No Brasil, Caramuru, de Santa Rita Durão,
e O Uraguai, de Basílio da Gama, ilustram o gênero de maneira
OTÁVIO – Me desculpe, mas seu pai ainda não chegou. Ele emblemática.
deixou um recado comigo, mandou dizê pra você que ficou muito
admirado, que se enganou. E pediu pra você tomá outro rumo, Originalmente, o ponto chave do gênero é a mimese,
porque essa não é a casa de fura-greve! retratando a realidade de maneira verossímil e objetiva. O foco nos
acontecimentos e o abandono de uma visão pessoal do narrador
TIÃO – Eu vinha me despedir e dizer só uma coisa: não foi por dão diversidade à história, seja na criação das personagens, seja na
covardia! percepção dos conflitos apresentados. Leia o fragmento a seguir,
OTÁVIO – Seu pai me falou sobre isso. Ele também procura trecho de Os Lusíadas de Luís de Camões.
acreditá que num foi por covardia. Ele acha que você até que teve
peito. Furou a greve e disse pra todo mundo, não fez segredo. Não
CANTO I
fez como o Jesuíno que furou a greve sabendo que tava errado.
Ele acha, o seu pai, que você é ainda mais filho da mãe! Que você As armas e os barões assinalados,
é um traidô dos seus companheiro e da sua classe, mas um traidô Que da ocidental praia Lusitana,
que pensa que tá certo! Não um traidô por covardia, um traidô por Por mares nunca de antes navegados,
convicção! Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
TIÃO – Eu queria que o senhor desse um recado a meu pai...
Mais do que prometia a força humana,
OTÁVIO – Vá dizendo. E entre gente remota edificaram
TIÃO – Que o filho dele não é um “filho da mãe”. Que o filho dele Novo Reino, que tanto sublimaram;
gosta de sua gente, mas que o filho dele tinha um problema e quis
revolvê esse problema de maneira mais segura. Que o filho é um
homem que quer bem! GÊNERO NARRATIVO
OTÁVIO – Seu pai vai ficá irritado com esse recado, mas eu Modernamente, são poucas as produções que mantêm as
digo. Seu pai tem outro recado pra você. Seu pai acha que a culpa características do gênero épico. Muitos autores abandonaram
de pensá desse jeito não é sua só. Seu pai acha que tem culpa... sua denominação e características substituindo sua denominação
TIÃO – Diga a meu pai que ele não tem culpa nenhuma. por gênero narrativo, usado de maneira a nomear as produções
que apresentem, genericamente, um enredo, além de narrador,
OTÁVIO (perdendo o controle) – Se eu te tivesse educado mais personagens, tempo e espaço.
firme, se te tivesse mostrado melhor o que é a vida, tu não pensaria
em não ter confiança na tua gente... O conto e o romance são descendentes desse gênero,
mantendo apenas algumas características formais, afastando-se
TIÃO – Meu pai não tem culpa. Ele fez o que devia. O problema da temática e da visão de exaltação a heróis, deuses e semideuses
é que não podia arriscá nada. Preferi tê o desprezo de meu pessoal da antiguidade. A métrica foi substituída gradualmente pela prosa,
pra poder querer bem, como eu quero querer, a tá arriscando a vê que hoje parece o padrão para este tipo de produção.
minha mulhé sofrê como minha mãe sofre, como todo mundo
nesse morro sofre! O gênero narrativo apresenta como elementos:

OTÁVIO – Seu pai acha que ele tem culpa! • Personagens: podem ser planas (comportamento
previsível) ou esféricas (apresentadas sob vários aspectos,
TIÃO – Tem culpa de nada, pai! comportamento imprevisível).
OTÁVIO – (num rompante) E deixa ele acreditá nisso, se não, • Tempo: histórico ou cronológico (fatos apresentados de
ele vai sofrê muito mais. Vai achar que o filho dele caiu na merda acordo com a ordem dos acontecimentos) e psicológico
sozinho. Vai achar que o filho dele é safado de nascença. (Acalma- (lembranças do passado desencadeiam a narrativa).
se repentinamente.) Seu pai manda mais um recado. Diz que você
não precisa aparecê mais. E deseja boa sorte pra você. • Enredo: conjunto dos fatos de uma história.

TIÃO – Diga a ele que vai ser assim. Não foi por covardia e não • Espaço: lugar onde transcorre a ação (físico, social,
me arrependo de nada. Até um dia. (encaminha-se para a porta). psicológico).
• Ponto de vista / Foco narrativo: para contar uma história, o
narrador pode se posicionar de maneiras diversas. Assim,
GÊNERO ÉPICO dependendo da perspectiva do narrador, uma obra literária
Provavelmente a mais antiga forma de manifestação literária, pode ter:
surgindo da necessidade de relatar as experiências dos primitivos, –– Foco narrativo em terceira pessoa: quando o narrador
das batalhas e das vitórias. É possível supor que, em meio aos fatos é apenas uma voz que não se identifica; em outras
que narravam, outros fossem sendo acrescentados, em referência palavras, quando o narrador não é uma personagem.
a deuses ou elementos da natureza que garantiam aos guerreiros –– Foco narrativo em primeira pessoa ou narrador-
personagem: quando o narrador é uma das
personagens que vivem a história.

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HERÓIS ao longo dos tempos. Veja abaixo a descrição desse herói no


Romantismo:
Então passou-se sobre esse vasto deserto de água e
céu uma cena estupenda, heroica, sobre-humana; um
espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se
entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas de água,
e com esforço desesperado cingindo o tronco da palmeira
nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se,
inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou,
cedendo a retração violenta da árvore, que voltava ao lugar
que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, desvairada: luta da vida
contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da
força contra a imobilidade.
Houve um momento de repouso em que o homem,
concentrando todo o seu poder, estorceu-se de novo
contra a árvore; o ímpeto foi terrível; e pareceu que o corpo
ia despedaçar-se nessa distensão horrível:
Ambos , árvore e homem, embalançaram-se no seio das
águas: a haste osc ilou; as raízes desprenderam-se da terra
já minada profundamente pela torrente.
(ALENCAR, José de. O guarani. Série bom livro.
Editora Ática, São Paulo.)

HERÓI MODERNO
Na literatura, nas histórias em quadrinhos, no teatro, no OU PROBLEMÁTICO
cinema, na televisão, o texto ficcional apresenta uma galeria
Esses heróis tradicionais são encontrados na literatura
de protagonistas que marcaram as nossas memórias, como o
moderna e contemporânea. Personagens como Chaplin, Bentinho,
inseguro Bento Santiago, o fidalgo Dom Quixote, o angustiado
de Machado de Assis, Fabiano e Paulo Honório, de Graciliano
Hamlet, o apaixonado Romeu, o dedutivo Sherlock Holmes, o
Ramos, sentem-se abaixo dos homens comuns. Moralmente
vigilante Batman, o forte Peri ou o inteligente Indiana Jones.
abatidos, expondo suas contradições e fraquezas, o herói moderno
Protagonistas podem também ser classificados como heróis ou
é resultante das situações de conflito que caracterizam o mundo
anti-heróis.
moderno. É o homem comum que reconhece as suas inseguranças
Em suas crenças, seus mitos e seus rituais, todos os povos – em relação ao mundo, tornando-se um herói melancólico.
mesmo sem considerar seu estágio social ou econômico – possuem
Assim Machado de Assis caracteriza Félix, no romance
indivíduos destacados, diferentes dos demais homens daquela
Ressurreição, por exemplo:
estrutura social. Os gregos, ao tratarem desse tema, classificaram-
nos como heróis, em função de seus feitos grandiosos passados Não direi que fosse bonito, na significação mais ampla da
de geração a geração. Exaltados e idealizados nas crenças do palavra; mas tinha as feições corretas, a presença simpática,
povo, esses feitos, reais ou não, refletiram o que o povo desejava e reunia à graça natural a apurada elegância com que
ser. E, até hoje, percebe-se a necessidade que o homem tem de vestia. A cor do rosto era um tanto pálida, a pele lisa e fina.
criar os seus heróis. Na modernidade, o herói entra em conflito A fisionomia era plácida e indiferente, mal alumiada por um
e se revela um ser inseguro, com fraquezas e questionamentos. olhar de ordinário frio, e não poucas vezes morto.
Essas variações na caracterização do protagonista de uma obra Do seu caráter e espírito melhor se conhecerá lendo estas
permitem a classificação de três tipos de herói, elencados a seguir. páginas e, acompanhando o herói por entre as peripécias da
singelíssima ação, que empreendo narrar.
HERÓI CLÁSSICO, ÉPICO OU MEDIEVAL Não se trata aqui de um caráter inteiriço, nem de um espírito
lógico e igual em si mesmo; trata-se de um homem complexo,
Desde a antiguidade clássica grega, o herói épico é incoerente e caprichoso, em quem se reuniam opostos
personificado como um ser invencível e tem como papel defender elementos, qualidades exclusivas, e defeitos inconciliáveis.
e proteger os fracos e oprimidos da humanidade. Segundo suas
(ASSIS, Machado de. Ressurreição. Rio de Janeiro/Belo Horizonte: Garnier, 1988.)
convicções, a justiça e a bondade devem prevalecer sobre tudo.
Para tal, é necessário combater o mal e, nesse contexto, permitir
que o bem vença. Ele sempre enfrenta o perigo com fé e disposição
para vencer. Na literatura, em especial nas epopeias e nos textos ANTI-HERÓI
medievais, heróis são dotados de grande força física e de disposição O anti-herói não é o antagonista da obra, a quem são atribuídas
para vencer quaisquer obstáculos. Com força e coragem, levam características negativas. O anti-herói é apresentado de forma
adiante suas ações com o objetivo de construir uma sociedade caricatural, a ele faltam atributos físicos e/ou morais característicos
alicerçada no bem e na justiça. Exemplos desse tipo de herói são do herói clássico. Em uma visão direta e simplista, o anti-herói é uma
os semideuses da mitologia grega e os protagonistas das epopeias espécie de herói com imperfeições, no aspecto físico, moral, ético.
como Aquiles, Hércules, Ulisses e Perseu. Na literatura brasileira, Ele desconstrói a imagem do herói clássico. Mário de Andrade criou
Peri, do romance O Guarani, é exemplo do herói medieval. Na em Macunaíma um exemplo do anti-herói na literatura brasileira.
essência desses personagens estão os mitos gregos reinventados Macunaíma, o herói sem caráter, demonstra, já na introdução do

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enredo, um conjunto de traços físicos e comportamentais que o e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em
classificam como anti-herói: foi parido como fruto do medo da borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero.
noite e era feio, preguiçoso, esperto e ganancioso. Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão
(Fonte: www.meucinelabrasileiro.com.br) de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa.
ASSIS, M. A causa secreta. Disponível em: www.dominiopublico.gov.br.
No fundo do mato-virgem, nasceu Macunaíma, herói de Acesso em: 9 out. 2015.
nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.
Houve um momento em que o silêncio foi tão grande No fragmento, o narrador adota um ponto de vista que acompanha
escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia a perspectiva de Fortunato. O que singulariza esse procedimento
Tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que narrativo é o registro do(a)
chamaram Macunaíma. a) indignação face à suspeita do adultério da esposa.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro, b) tristeza compartilhada pela perda da mulher amada.
passou mais de seis anos não falando. Si o incitavam a falar, c) espanto diante da demonstração de afeto de Garcia.
exclamava: – Ai! Que preguiça... e não dizia mais nada.
(ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. São Paulo: Martins
d) prazer da personagem em relação ao sofrimento alheio.
Fontes, 1978.) e) superação do ciúme pela comoção decorrente da morte.

Na cultura popular, os personagens de desenhos animados


03. (ENEM)
como Pica-pau e Pernalonga, por suas características, podem ser
também considerados anti-heróis. Adorados pelo público, Pica-pau Segundo quadro
ficou marcado por ser esperto, travesso e mau, em especial com
seus predadores, e Pernalonga personifica a astúcia e a esperteza. Uma sala da prefeitura. O ambiente é modesto. Durante a
mutação, ouve-se um dobrado e vivas a Odorico, “viva o prefeito”
etc. Estão em cena Dorotéa, Juju, Dirceu, Dulcinéa, o vigário e
Odorico. Este último, à janela, discursa.
ODORICO – Povo sucupirano! Agoramente já investido no cargo
EXERCÍCIOS de Prefeito, aqui estou para receber a confirmação, a ratificação, a

PROPOSTOS autenticação e por que não dizer a sagração do povo que me elegeu.
Aplausos vêm de fora.
ODORICO – Eu prometi que o meu primeiro ato como prefeito
01. (ENEM)
seria ordenar a construção do cemitério.
Vó Clarissa deixou cair os talheres no prato, fazendo a
Aplausos, aos quais se incorporam as personagens em cena.
porcelana estalar. Joaquim, meu primo, continuava com o queixo
suspenso, batendo com o garfo nos lábios, esperando a resposta. ODORICO – (Continuando o discurso:) Botando de lado os
Beatriz ecoou a palavra como pergunta, “o que é lésbica?”. Eu fiquei entretantos e partindo pros finalmente, é uma alegria poder anunciar
muda. Joaquim sabia sobre mim e me entregaria para a vó e, que prafrentemente vocês lá poderão morrer descansados, tranquilos
mais tarde, para toda a família. Senti um calor letal subir pelo meu e desconstrangidos, na certeza de que vão ser sepultados aqui
pescoço e me doer atrás das orelhas. Previ a cena: vó, a senhora é mesmo, nesta terra morna e cheirosa de Sucupira. E quem votou em
lésbica? Porque a Joana é. A vergonha estava na minha cara e me mim, basta dizer isso ao padre na hora da extrema-unção, que tem
denunciava antes mesmo da delação. Apertei os olhos e contrai o enterro e cova de graça, conforme o prometido.
peito, esperando o tiro. [...] GOMES, D. O bem amado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2012.

[...] Pensei na naturalidade com que Tais e eu levávamos a


O gênero peça teatral tem o entretenimento como uma de suas
nossa história. Pensei na minha insegurança de contar isso à
funções. Outra função relevante do gênero, explícita nesse trecho de
minha família, pensei em todos os colegas e professores que já
O bem amado, é a
sabiam, fechei os olhos e vi a boca da minha vó e a boca da tia
Carolina se tocando, apesar de todos os impedimentos. Eu quis a) criticar satiricamente o comportamento de pessoas públicas.
saber mais, eu quis saber tudo, mas não consegui perguntar. b) denunciar a escassez de recursos públicos nas prefeituras do
POLESSO, N. B. Vó, a senhora é lésbica? Amora. interior.
Porto Alegre: Não Editora. 2015 (fragmento).
c) censurar a falta de domínio da língua padrão em eventos
A situação narrada revela uma tensão fundamentada na perspectiva do sociais.
a) conflito com os interesses de poder. d) despertar a preocupação da plateia com a expectativa de vida
dos Cidadãos.
b) silêncio em nome do equilíbrio familiar.
e) questionar o apoio irrestrito de agentes públicos aos gestores
c) medo instaurado pelas ameaças de punição. governamentais.
d) choque imposto pela distância entre as gerações.
e) apego aos protocolos de conduta segundo os gêneros. 04. (ENEM) O homem disse, Está a chover, e depois, Quem é você,
Não sou daqui, Anda à procura de comida, Sim, há quatro dias que
02. (ENEM) não comemos, E como sabe que são quatro dias, É um cálculo, Está
sozinha, Estou com o meu marido e uns companheiros, Quantos são,
Garcia tinha-se chegado ao cadáver, levantara o lenço e
Ao todo, sete; Se estão a pensar em ficar conosco, tirem daí o sentido,
contemplara por alguns instantes as feições defuntas. Depois,
já somos muitos, Só estamos de passagem, Donde vêm, Estivemos
como se a morte espiritualizasse tudo, inclinou-se e beijou-a na
internados desde que a cegueira começou, Ah, sim, a quarentena, não
testa. Foi nesse momento que Fortunato chegou à porta. Estacou
serviu de nada. Porque diz isso, Deixaram-nos sair, Houve um incêndio
assombrado; não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo
e nesse momento percebemos que os soldados que nos vigiavam
de um livro adúltero [...].
tinham desaparecido, E saíram, Sim, Os vossos soldados devem ter
Entretanto, Garcia inclinou-se ainda para beijar outra vez o sido dos últimos a cegar, toda a gente está cega, Toda a gente, a
cadáver, mas então não pôde mais. O beijo rebentou em soluços, cidade toda, o país,
SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Cia. das Letras. 1995.

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A cena retrata as experiências das personagens em um país atingido 07. (ENEM)


por uma epidemia. No diálogo, a violação de determinadas regras de O filme Menina de ouro conta a história de Maggie Fitzgerald,
pontuação uma garçonete de 31 anos que vive sozinha em condições humildes
a) revela uma incompatibilidade entre o sistema de pontuação e sonha em se tornar uma boxeadora profissional treinada por
convencional e a produção do gênero romance. Frankie Dunn.
b) provoca uma leitura equivocada das frases interrogativas e Em uma cena, assim que o treinador atravessa a porta do
prejudica a verossimilhança. corredor onde ela se encontra, Maggie o aborda e, a caminho da
c) singulariza o estilo do autor e auxilia na representação do saída, pergunta a ele se está interessado em treiná-la. Frankie
ambiente caótico. responde: “Eu não treino garotas”. Após essa fala, ele vira as costas
e vai embora. Aqui, percebemos, em Frankie, um comportamento
d) representa uma exceção às regras do sistema de pontuação ancorado na representação de que boxe é esporte de homem e,
canônica. em Maggie, a superação da concepção de que os ringues são
e) colabora para a construção da identidade do narrador pouco tradicionalmente masculinos.
escolarizado. Historicamente construída, a feminilidade dominante atribui a
submissão, a fragilidade e a passividade a uma “natureza feminina”.
05. (ENEM) PINHÃO sai ao mesmo tempo que BENONA entra. Numa concepção hegemônica dos gêneros, feminilidades e
BENONA: Eurico, Eudoro Vicente está lá fora e quer falar com você. masculinidades encontram-se em extremidades opostas.
EURICÃO: Benona, minha irmã, eu sei que ele está lá fora, mas No entanto, algumas mulheres, indiferentes às convenções
não quero falar com ele. sociais, sentem-se seduzidas e desafiadas a aderirem à prática
BENONA: Mas Eurico, nós lhe devemos certas atenções. das modalidades consideradas masculinas. É o que observamos
em Maggie, que se mostra determinada e insiste em seu objetivo
EURICÃO: Você, que foi noiva dele. Eu, não! de ser treinada por Frankie.
BENONA: Isso são coisas passadas. FERNANDES. V; MOURÃO. L. Menina de ouro e a representação de feminilidades plurais.
Movimento, n. 4, out-dez. 2014 (adaptado).
EURICÃO: Passadas para você, mas o prejuízo foi meu.
Esperava que Eudoro, com todo aquele dinheiro, se tornasse meu
A inserção da personagem Maggie na prática corporal do boxe indica
cunhado. Era uma boca a menos e um patrimônio a mais. E o peste
a possibilidade da construção de uma feminilidade marcada pela
me traiu. Agora, parece que ouviu dizer que eu tenho um tesouro.
E vem louco atrás dele, sedento, atacado de verdadeira hidrofobia. a) adequação da mulher a uma modalidade esportiva alinhada a
Vive farejando ouro, como um cachorro da molest’a, como um seu gênero.
urubu, atrás do sangue dos outros. Mas ele está enganado. Santo b) valorização de comportamentos e atitudes normalmente
Antônio há de proteger minha pobreza e minha devoção. associados à mulher.
SUASSUNA, A. O santo e a porca. Rio de Janeiro: José Olympio, 2013 (fragmento). c) transposição de limites impostos à mulher num espaço de
predomínio masculino.
Nesse texto teatral, o emprego das expressões “o peste” e “cachorro
da molest’a” contribui para d) aceitação de padrões sociais acerca da participação da mulher
nas lutas corporais.
a) marcar a classe social das personagens.
e) naturalização de barreiras socioculturais responsáveis pela
b) caracterizar usos linguísticos de uma região. exclusão da mulher no boxe.
c) enfatizar a relação familiar entre as personagens.
d) sinalizar a influência do gênero nas escolhas vocabulares. 08. (ENEM)
e) demonstrar o tom autoritário da fala de uma das personagens.
Querido diário
06. (ENEM) Em casa, Hideo ainda podia seguir fiel ao imperador Hoje topei com alguns conhecidos meus
japonês e às tradições que trouxera no navio que aportara em Santos. Me dão bom-dia, cheios de carinho
[...] Por isso Hideo exigia que, aos domingos, todos estivessem juntos Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus
durante o almoço. Ele se sentava à cabeceira da mesa; à direita ficava
Eles têm pena de eu viver sozinho
Hanashiro, que era o primeiro filho, e Hitoshi, o segundo, e à esquerda,
Haruo, depois Hiroshi, que era o mais novo. [...] A esposa, que também [...]
era mãe, e as filhas, que também eram irmãs, aguardavam de pé ao Hoje o inimigo veio me espreitar
redor da mesa [...]. Haruo reclamava, não se cansava de reclamar: que
Armou tocaia lá na curva do rio
se sentassem também as mulheres à mesa, que era um absurdo
aquele costume. Quando se casasse, se sentariam à mesa a esposa Trouxe um porrete a mó de me quebrar
e o marido, um em frente ao outro, porque não era o homem melhor Mas eu não quebro porque sou macio, viu
que a mulher para ser o primeiro [...]. Elas seguiam de pé, a mãe um HOLANDA, C. B. Chico. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2013 (fragmento).
pouco cansada dos protestos do filho, pois o momento do almoço era
sagrado, não era hora de levantar bandeiras inúteis [...]. Uma característica do gênero diário que aparece na letra da canção de
NAKASATO, O. Nihonjin. São Paulo: Benvirá, 2011 (fragmento). Chico Buarque é o(a)
a) diálogo com interlocutores próximos.
Referindo-se a práticas culturais de origem nipônica, o narrador
registra as reações que elas provocam na família e mostra um b) recorrência de verbos no infinitivo.
contexto em que c) predominância de tom poético.
a) a obediência ao imperador leva ao prestígio pessoal. d) uso de rimas na composição.
b) as novas gerações abandonam seus antigos hábitos. e) narrativa autorreflexiva.
c) a refeição é o que determina a agregação familiar.
d) os conflitos de gênero tendem a ser neutralizados.
e) o lugar à mesa metaforiza uma estrutura de poder.

PRÉ-VESTIBULAR SISTEMA PRODÍGIO DE ENSINO 15


LITERATURA 02 GÊNEROS LITERÁRIOS E A CONSTRUÇÃO DO HERÓI

09. (ENEM) ANOTAÇÕES

Dúvida
Dois compadres viajavam de carro por uma estrada de fazenda
quando um bicho cruzou a frente do carro.
Um dos compadres falou:
– Passou um largato ali!
O outro perguntou:
– Lagarto ou largato?
O primeiro respondeu:
– Num sei não, o bicho passou muito rápido.
Piadas coloridas. Rio de Janeiro: Gênero, 2006.

Na piada, a quebra de expectativa contribui para produzir o efeito de


humor. Esse efeito ocorre porque um dos personagens
a) reconhece a espécie do animal avistado.
b) tem dúvida sobre a pronúncia do nome do réptil.
c) desconsidera o conteúdo linguístico da pergunta.
d) constata o fato de um bicho cruzar a frente do carro.
e) apresenta duas possibilidades de sentido para a mesma
palavra.

10. (ENEM) Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-o-giro no vago


dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: o
Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: -
Zé-Zim. por que é que você não cria galinhas-d’angola, como todo o
mundo faz? — Quero criar nada não... - me deu resposta: — Eu gosto
muito de mudar... [...] Belo um dia, ele tora. Ninguém discrepa. Eu,
tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. [...] Essa não faltou também
à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra.
[...] Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião
Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu.
Ficamos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali
onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe.
ROSA. J. G. Grande Sertão Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio (fragmento).

Na passagem citada, Riobaldo expõe uma situação decorrente de


uma desigualdade social típica das áreas rurais brasileiras marcadas
pela concentração de terras e pela relação de dependência entre
agregados e fazendeiros. No texto, destaca-se essa relação porque o
personagem-narrador
a) relata a seu interlocutor a história de Zé-Zim, demonstrando
sua pouca disposição em ajudar seus agregados, uma vez que
superou essa condição graças à sua força de trabalho.
b) descreve o processo de transformação de um meeiro —
espécie de agregado — em proprietário de terra.
c) denuncia a falta de compromisso e a desocupação dos
moradores, que pouco se envolvem no trabalho da terra.
d) mostra como a condição material da vida do sertanejo é
dificultada pela sua dupla condição de homem livre e, ao
mesmo tempo, dependente.
e) mantém o distanciamento narrativo condizente com sua
posição social, de proprietário de terras.

GABARITO
EXERCÍCIOS PROPOSTOS
01. B 03. A 05. B 07. C 09. C
02. D 04. C 06. E 08. E 10. D

16 SISTEMA PRODÍGIO DE ENSINO PRÉ-VESTIBULAR

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