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) Dy (8) Critica SOCIOLOGICA Marisa Corréa Silva Oqueé Para tentar uma definigio (c definigdes generalizagbes sio sempre discutiveis), critica sociolégica & aquela que procura yer 0 fenémeno da literatura como parte de um contexto maior “uma sociedade, uma cultura. Sob o nome genérico de critica sociolégica encontram-se diversos autores ¢ tendéncias. A classificagio desses autores é, por vezes, polémica: existem autores que colocam Bakhtin sob o titulo de “pés-formalismo”, ou que colocam Lukacs na critica marxista; bhi quem ache que a critica marxista € um tipo de critica sociol6gica € hé quem separe totalmente as duas, © conceito de critica sociolégica que utilizamos é muito influenciado por Antonio Candido, tum dos autores estudados neste capitulo, Isso quer dizer que, a0 contririo de outros autores (notadamente alguns autores marxistas), nfo acteditamos que wm texto literdrio seja melhor porque reflete bem a sociedade; mas, sim, que um texto literério € bom porque é bem escrito, porque trabalha a linguagem de forma er {intersticios) para enriqueceras possibilidades de leitura etc. Nem toda corrente que se intitula “critica sociol6gica” ou sociocritica” partilha esse ponto de vista. Portanto, é preciso atencio as definigdes que cada autor utiliza. tiva, porque utiliza “os espagos em branco Os autores aqui contemplados foram escolhidos por terem algo em comum: pensar a literatura como um fendmeno diretamente ligado 3 vida social. Em outras palavras, a literatura nfo é um fendmeno independente, nem a obra literaria é criada apenas a partir da vontade ¢ da ‘inspiragio” do artista, Ela € criada dentro de um contexto; numa determinada lingua, dentro de um determinado pais ¢ numa determinada época, onde se pensa de uma certa maneira; portanto, tla carrega em si as marcas desse contexto. Estudando essas marcas dentro da literatura, podemos perceber como a sociedade na qual o texto foi produzido se estrutura, quais eram os seus valores ete. Nio se pode, porém, confundir uma critica que leve em conta apenas a histéria de vida do autor (eritica biogréfica) com a critica sociolégica, Esta sltima nao esti preocupada com apenas um jndividuo, mas com grupos sociais aos quais eventualmente o autor pertenceria, A critica biogrifica iter social, ¢ a critica focaliza eventos na vida de um autor, mesmo que esses eventos sejam de sociolégica quer uma visio mais ampla. Por exemplo, uma critica biografica saberia que Graciliano Ramos foi preso durante o Estado Novo de Vargas: essa critica daria importincia total 20 fato de que obra Memérias do carcere seja 0 depoimento pessoal de Ramos sobre esse periodo terrivel. Conclusio: como Graciliano 6 v n grande escritor ¢ escrevia sobre o que tinha vivido, o romance s6 poderia ser muito bom: dos mesmos dados, leria Memérias do cércere nio como um. acontecimento na vida de um Gnico homem, mas como o relato simbélico de como muitos homens ¢ mulheres sofreram durante o Estado Novo. Mesmo quem nio foi preso ou perseguido sentia que a liberdade individwal diminuira; era como se todo o pats estivesse sofrendo, em maior ou menor grat, uma prisio, Nao é tao importante saber que 0 romance seja autobiografico, mas sim verificar, através da leitura, que esse romance faz uma ponte estética entre reatidade social, coletiva, ¢ representacio artistica, O valor do romance ndo viria simplesmente do fato de Graciliano ser “bom escritor” (mesmo 6timos escritores podem escrever um livro raim), mas do fato de Memsrias do cércere conseguir mostrar, em sua estrutura, os mecanismos da repressio © valor vem da obra em si, e nio do nome de quem a A critica sociolégica, de pos ¢ da demagogia funcionando no p escreveu Barberis (1996) diz que o papel da critica sociolégica 6, justamente, fazer com que cada leitor comece a observar 0 mundo que nos cerca e perceb: nem sio cternos. A partir dai, comegamos a entender que muito daquilo que nés julgamos “verdade absoluta” nio € bem assim; que a sociedade que nos cerca jé foi diferente do que é hoje, e que pode e deve mudar ainda mais; que muitas das coisas que juulgamos impr6prias o sio erradas, mas apenas condlenadas pelo estado atual dos valores sociais. Ao percebermos o quanto a nossa propria consci convengdes arbitririas, nés nos tornamos mais fortes e aptos a agit positivamente no mundo em que vivemos. Claro que isso exige certa pritica, pois alguns textos podem estar justamente tentando reforgar os valores ¢ ideias “consagrados” do scu tempo, exaltando os préptios preconceitos e, se 0 Icitor for ingénuo, pode acabar apenas aceitando o ponto de vista do texto, sem pensar sobre ele ou discuti-l. aos poucos, que os nossos habitos, crengas e valores nio surgiram “naturalmente’ ncia do mundo é manipulada por ideias que nao sio “verdades”, mas apenas Como surety Dois dos primeiro: literatura © a sociedade foram os autores a fazer um tipo de critica que tentava mostrar as relagdes entre a anceses Mme. De Stach(1766-1817) ¢ Hyppolite Taine (1828- 1893). A primeira, jé em 1800, com o livro Da literatura considerada em suas relag&es com as insttuigdes soriais,j4 se posiciona como uma critica que pensa a literatura dentro do contexto social, Em De Ia liuérature ¢ De WAlleagne, estuda as caracteristicas dos diferentes expoentes da literatura nos paises considerados “mais desenvolvidos” da Europa do final do século XVIII: Inglaterra, Franga, ‘Alemanha, Ela fala sobre as consequéncias da Revolugao Francesa (1789) no pensamento europeu, com 0 surgimento dos ideais de liberdade, ¢ de como nessas sociedades p6s-revoluciondrias surge um novo tipo de literatura, com caracteristicas préprias. Taine ji tem uma postura mais influenciada pelo Determinismo, ou seja, a crenga de que o destino de cada ser humano era determinado pelo cio social no qual cle nasce ¢ é criado, € por sua raga, Ele achava que a obra de um autor era principalmente um reflexo da vida e do “momento”, isto é, das condigdes sociais da época do autor. No Brasil, Silvio Romero vai fazer esse tipo de critica, no século XIX. No século XX, varios estudiosos importantes vio contribuir para a critica sociolégica. O conceito de uma critica literdria baseada nas relagSes entre obra de arte ¢ sociedade jé estaré mais sofisticado do que na época de Taine, € muitos dos estudiosos vio divergir entre si, alguns tendendo mais d sociologia e outros privilogiando o fator estético-literdrio, Dentre eles, destacamos Gyérgy Lukics, Mikhail Bakhtin ¢ Antonio Candido. Nas paginas seguintes esto alguns dos pontos mais importantes do pensamento de cada um deles. IB—veORIA LITERARIA a3) Luxacs Lukées (1963) fazia uma critica influenciada pelo marxismo, isto é jé tinha uma visio do mundo como Iuta de classes ¢ fazia um paralelo entre o desenvolvimento de certas formas lteritias © © desenvolvimento do capitalismo. Para o autor, a literatura nio reflete a realidade social apenas na escrigao dos ambientes, objetos, roupas, gestos etc, (ou seja, num fluxo de detalhes realista), mas também ~e principalmente ~na sua esséncia, na maneira com que a fibula se desenrola, na articulacio dos mecanismos que estruturam.um texto. O texto passa a refletir o todo social, a mancira como 4 propria sociedade esti montada ¢-organizada. A degradagio dos valores humanistas causada_pelo capitalismo esti, segundo ele, revelada na literatura. Por isso, hi estudiosos que colocam Lukes mura subdivisio intitulada “critica marxista” Emseulivrodejuventude (publicado em 1920), Teoria do romance, Lukaes (1963) comega analisando a postura do homem em sociedades distintas. Segundo ele, a sociedad grega eta do tipo “fechada’, pois dava uma explics podiam tirar 0 sentido da vida. Ao passar para o Ocidente, essa ideia sofrew a influéncia judaico-crista € tornou-se a cultura medieval, angustiada e cheia de diavidas quanto ao sentido da vida. A religito era, o harmoniosa do mundo. A doenca ¢ o sofrimento podiam tirar a vida, mas no para o homem medieval, um refiigio necessario contra o medo que o oprimia, ao contririo do homem, grego clissico, que no precisava de uma religio oficial, pois se sentia seguro no mundo. Partindo dessa diferenciagio, Lukics (1963) analisa as diferencas entre os géneros épico, litico € dramitico; e, principalmente, a diferenga entre a epopeia (clissica) e 0 romance ( ‘mostrando que as formas de cada um correspondiam & mentalidade da sociedade que originou cada um deles. A epopéia corresponde a uma visio do mundo gomo um todo harm@nico; o sofFimento era parte natural légica desse toclo, a distincia entre o humano ¢ o sagrado era reduzida, cada indivi uma parte cumprindo seu papel nesse todo, mais importante do que as unidades que o compunham, Jao herdi do romance é um hersi isolado, apartado do resto do mundo, Seu destino individ: ‘de acasos, esforgos e erros, 6 0 que importa e comove 6 leitor. Nesse uniiverso, o todo nio € visivel nem decifravel, e fica dificil entender se ha um papel a ser cumprido ou se tudo na vida acaso, sem nenhum sentido ou razio. ‘Tal distingio pode ser exemplificada em Edipo Rei: por mais terrivel que seja o destino de Edipo, o leitor ow espectador é conduzido a sentir que esse destino jf estava mareado, que precisava aconte porque havia sido determinado por forcas muito superiores 3s humanas, pelo Fado a0 qual os préprios deuses do Olimpo se submetem ~e que, portanto, rato Jo passa de mero estaria fora das mios de qualquer humano impedir a hist6ria. Isso fica bem claro pelos esforgos de Laio, abandonando 0 menino 3s feras, € do proprio Edipo, fugindo da casa de seus pais adotivos. Esses esforgos pretendiam impedir © cumprimento da profecia, mas apenas serviram para precipiti-lo. Por outro lado, em Dom Casmurro, apesar da queixa final de Bentinho de que 0 destino quisera que sua amada ¢ seu melhor amigo o traissem, o leitor sente que essa queixa é mais ret6rica do que representacio de uma conformidade com o Fado, O texto, por diferentes meios, indica ao leitor que a amargura ¢ a solidao final do Casmurro sio frutos de um desastre (a possivel traigio de Capitu) e dos defeitos do proprio Bentinho, que reagiu muito mal ao fim do seu casamento. LUKAcS & GOLDMANN: © HEROI PROBLEMATICO Na epopeia, o mundo interior da personagem ¢ 0 mundo exterior a ela eram harménicos, cocrentes; no romance, mundo interior ¢ mundo exterior apresentam um para 0 outro um “carter estranho ¢ hostil” (LUKACS, 1963, p. 83). O heréi do romance seria, portanto, um “individuo problematico” (LUKACS, 1963, p. 87), ou seja, um individuo que esté em luta Tuomas Bonnet) Locin Osanna Zou {oncanemanones) — 179 » conhece completamente, nem € capaz de dominar, © processo har do individuo problemitico para o autoconhecimento, contra um mundo que ele n interno do romance s Se esse individuo aleangaré a felicidade ou seré aniquilado, nao tio importante. O que fica do romance é a caminhada do protagonista pelo mundo, € 0 mundo fazendo com que o protagonista aprenda mais ¢ mais n3o sobre o mundo, mas sobre si mesmo. Lukacs diz. que “o romance € a epopeia de um mundo sem deuses” (LUKACS, 1963, p. 100), isto é, €a literatura possivel numa sociedade que nao tem mais certeza de que forcas superiores ¢ sibias guiam constantemente os m cami passos dos seres humanos. O trabalho de Lukacs influenciou outros pensadores importantes, como Lucien Goldmann, que, na Sociologia do romance (1967), estudou a histéria do romance enquanto género literério, fazendo uma relagio entre a parte formal de um romance ¢ a estrutura do meio social no qual esse romance foi produzido, Segundo Goldmann, 0 pensamento coletivo ¢ a criagio artistica tém uma homologia de estrutura, uma semelhanga na forma, € no uma identidade de contetido. No prélogo do seu livro, Goldmann comenta muito bem a teoria de Lukées: 0 romance seria uma busca degradada de valores auténtices, feita pelo hers problemético num mundo degradado ou inautntico, ou seja, num mundo onde esses valores nao sio mais possiveis. Esses valores auténticos, para Goldmann (1967), nao sio os valores que o leitor considera verdadeiros, mas sim os valores que, mesmo nio aparecendo de forma no texto, organizam 0 universo criado no romance. explicit: Para exemplificar,utilizaremos o Bentinho de Dom Casmurro. O menino Bento tem a vida pautada por alguns valores: o amor por Capitu, a conveniéneia de ser 0 tinico herdeiro de uma bela fortuna, a frontalmente as exigéncias de quem detém o poder (no caso, sua mie). Bento leva anos para construir uma vida organizada de acordo com esses valores, mas, apés desfrutar cetta felicidade durante alguns anos, descobre ~ ou pensa que descobriu — que o amor nao existia, seria apenas ima ilusio, Por causa disso, torna-se amargo, rancoroso ¢ desagradivel, solando-se dos amigos ar ¢ tornar-se uma aparéncia sem sentido. necessidade de no contra vendo sua vitla se es © mais interessante na construgio desse texto nio € permitir ao leitor descobrir se Capitu traiu ot nio o mario; afinal, Bentinho era extremamente ciumento, a maledicéncia de José Dias jf havia insinuado, quando Bento ¢ Capitu eram jovenzinhos, que o interesse da menina licita a conclusio de que amor verdadeiro ¢ impossivel num mundo capitalista, onde a posse dos bens materiais determina o valor de cadla individuo. Mesmo que Capitu fosse inocente, a sociedade ém que ela vivia a faria parecer culpada na primeira oportunidade, e préprio amor que Bentinho dizia sentir por Capitu seria casar-se com um herdeiro rico, Segundo essa visio, torna-s¢ i revelaria sua outra face: um sentimento egoista de posse, que nio perdoa a ofensa feita ao orgulho do dono, ¢ que chega a ponto de desejar apaixonadamente a morte de uma crianga inocente, seu filho, mas sim de Capitu com Escobar. Que Ezequiel, porque Bentinho julga que ele nao se io da busca nobre, feita as claras, pelo herdi da tragédia grega, Bentinho pensa que ‘mas na verdade buscou a afirmacio do seu poder de homem rico ~€ 4 solidio mais extrema, Ao contra buscoua felicidade a isso 0 conduziu a infelicidade ida intel LUKACS: A passagenn do género pico pata o género romance &, também, a passagem do mundo grego, do cquilibrio entre Homem ¢ Mundo, ordenado pelo Destino, pata o desequilibrio entre Homem ¢ Mundo, riando o Individuo, soitirio ¢ cheio de eonflitos LUKACS / GOLD MANN: O heréi do romance é um herd problemético, procurando valores auténticos num mundo degradado. ~ Quadro 1. © heréi segundo Lukics e Goldman, 1O—TrEORIA LITERAREA 0990990000009 9999088000009 00802900000800090008 eGdcueries xox iordsren BAKHTIN: DIALOGISMO E POLIFONIA Mikhail Bakhtin (1895-1975) teve uma contribuigio importantissima para a critica literria. Dois de seus conceitos sio a base para 0 trabalho de muitos outros criticos: 0 dialagismo ¢ a camnavalizagio. ‘Também aparece adiante © conceito de crondtopo. Utilizaremos inicial maidscula em “Dislogo” e “Dialogar” quando nos referirmos ao sentido criado por Bakhtin, ¢ inicial mindscula quando utilizarmos o sentido tradicional das mesmas palavras. 0 dialogismo parte do principio linguistico segundo 0 qual todo ato de Tinguagem sempre leva em conta a presenca, ainda que invisivel, de alguém para quem se fala ou escreve. Ora, se tudo © que se diz ou escreve € criado tendo em vista, ainda que subconscientemente, um interlocutor, ent3o todo ato de linguagem participa, mesmo que num grau pequeno, da intengio de convener, de persuadir 0 ouvinte/leitor; e também prevé, ou imagina prever, a(s) possfvel(is) reagio(Ses) desse ouvinte/leitor. Isso constituiria um didlogo, pois o ato de linguagem ji traria embutido em si proprio toda uma cadeia de respostas, criticas e comentirios do interlocutor, ¢ jit tentaria responder a essa cadeia antes de ela ser enunciada. Bakhtin (1984) diz. que, se esquecermos essa relacio dialégica, o significado do ato de linguagem desaparece, pois todo significado depende de uma relagio entre quem emite ¢ q recebe, Assim, nio sio apenas as personagens de um livro que interagem (Dialogam) entre si, quando uma pessoa Ie um livro, est interagindo (dialogando) com esse livro. O autor, 20 escrever, imaginaria as possiveis criticas do leitor, e jf escreveria tentando rebater essas criticas Para veicular suas idcias ¢ opinides, a personagem possui tma voz, E essa voz nic expressio das ideias e valores daquele individuo; 2 uma instituigio social. Tal afirmagio encontra justificativa no conceito lingufstico de discurso que, segundo Benveniste (REIS; LOPES, 1994, p. 110), € 0 “enunciado considerado em fingio das suas condigées de produgio”, on seja, aquilo que o falante enuncia fara sentido apenas se considerarmos todo 0 contexto no qual esse falante se encontra, penas ligada cla expressa valores ¢ ideins necessariamente ligados ‘Assim, a vor, tal como a entende Bakhtin (1984), expressa visdes de mundo que terio sido forcosamente tiradas do contexto sécio-histérico no qual ela se insereve. Tais vis6es nfo sio individuais 0 individuo toma conhecimento delas, aceita-as ou nao, através do contato com as instituigSes, como a familia, a escola etc. Isso implica no fato de 0 Dislogo no acontecer apenas num nivel pessoal, entre Ieitor e obra; ele também acontece num plano mais amplo, onde o leitor atua como representante de certas instituigdes, com suas maneiras especificas de ver o mundo, ¢ Dialoga com a mundivisio (ou as mundivis6es) representada(s) na obra, Bakhtin (1984), aoestudarautores russos como Talstoie Dostoievsky, concluitique certos escritores (cle usa Tolstoi como exemplo) sichionolégicos (ou “Newtonianos' quais todas as personagens e acontecimentos reforgam o ponto de vista do narradlor, de modo que todas gios diferentes de uma evolugio, do ponto de vista do narrador, Convém reiterar que um narrador pode ser personagem ativa no livro (narrador homodiegético ou autodiegético, antigamente chamado “em primeira pessoa"); ou pode ser ‘uma voz “sem corpo” (narrador heterodiegético, antigamente chamado “em terceira pessoa"), mas ou Seja, constroem romances nos as contradigées, brigas, opinises diferentes etc., parecem apenas est existe sempre; € que o narrador nio coincide com o autor do livro, portanto no se deve confundir autor com narrador. Logo, um autor monolégico seria um criador de romances, os quais, do ponto de vista ideol6gico, apresentam ao leitor um bloco macico de ideias, sem brechas que permitam questionamento, ou seja, nao levam o leitor a duvidar das ideias que orientam as opiniGes do narrador, em geral veiculadas como “verdade”, Um exemplo simples: assista a um filme politicamente correto como “Danga com lobos”, de Kevin Costner, Nele, os homens brancos sio todos maus, corruptos, sidicos etc.; os finicos que se salvam sio os que aprendem os valores da cultura dos indios americanos. Os indios sio bons, nobres, generosos, honestos, sem nenhum tipo de defeito moral. Ou seja: tudo na cultura do branco é mau, porque destréi a natureza ¢ a alma; ¢ a cultura do fndio é perfeita. A personagem principal é uma das poucas que abandonam os valores do branco, adotando os valores do indio, Como Thows Bonnet / LUCIA OsaNa Zotan (oncanvzaponrs) — 181 fs) Sriva v a narrativa cinematografica procura acompanhar a trajet6ria desse protagonista, a voz do filme est sempre reiterando ao espectador a “verdade” que deseja transmitir. Tomando a sequéncia em que 0 protagonista encontra o lobo, observemos que, enquanto o homem olha o animal do ponto de vista do branco, a fera parece ameagadora ¢ inimiga; em ver. de maté-la imediatamente, o homem prefere observi-la, vé-la interagir com o ambiente; a partir dai, seu olhar se aproxima do olhar do indio, respeitando a natureza, Imediatamente, o lobo se mostra décil € companheiro. Til solugio, embora pouco verossimil, encontra acolhida do espectador porque reitera, de forma exagerada, a ideia de que a cultura do nativo americano permite uma relagio harmoniosa com a natureza. Portanto, 0 filme nio deixa espago ao espectador para duvidar da sua “verdade”. Se 0 lobo, faminto, na obrigagio de maté-lo para salvar a prépria vida, haveria um atacasse 0 homem, € este se vi conflito entre a visio do branco ¢ a visio do indo, pelo menos dentro da forma maniquefsta com que o filme trata a ambas: se os brancos fossem mostrados justificando as prOprias ages, nao pelo prazer ,er 0 mal, mas de forma ligica e coerente, o espectador poderia continuar preferindo a cultura |, mas reconheceria a inevitabilidade do conflito entre nativos ¢ brancos. Da forma como a acio € apresentada, porém, no existe espaco para se ouvir a voz da cultura europeia, a nao ser como rugido sidico ¢ destruidor. Outro exemplo, desta vez na literatura, s70 os contos de Nelson Rodrigues, enfeixados em A vida com ela é, Tado 0 que acontece nessas hist6rias tende a persuadir o leitor de que a classe média brasileira dos anos 1950-60 era hipGcrita, reprimida ¢ obcecada com tudo aquilo que considerava “sujo”. Iss0 nio quer dizer que Nelson Rodrigues nao seja um born escritor. E apenas uma caracteristica dessa sem. personagens que representassem outras visGes de mundo, excessiva, que conseguissem lidar de forma isso enfraqueceria o tom de dentincia da hipocrisia obra. Se, no meio dos contos, su que nao sucumbissem a perversio criada pela repre: frustragies social que € tio marcante nesses textos, saudivel e positiva com as propri Ja os autores.polifonicos"sa0 autores que, ao colocarem falas na boca das personagens, criam a possibilidade de que clas discordem totalmente dos valores, visio de mundo ¢ ideologia do narrador. A o desafio desse tipo de autor é, como na misica, harmonizar as vozes diferentes num todo coerente. Para Bakhtin (1984), o her6i desse romance nio é um her6i que lida com fatos, mas sim um heréi da palavra. Exemplificando, assista a um filme como “Entrevista com o vampiro”, de Neil Jordan, no qual Louis enc: seus antigos valores humanos, ¢ Lestat o ridiculariza, afirmando que tudo o que era humano, inclusive tris, Quem esté com a razio? Nio € tio simples decidir ‘mesmo sabendo que vampiros nfo existem €, portanto, 0 “dilema” do filme é uma ficgio. E 0 filme m indicar ao espectador qual dos dois estaria “certo”, porque afinal nao existe um “certo” € tum “errado”, mas apenas pontos de vista diferentes. ‘yor do narrador torna-se apenas uma entre muitas, ‘na o vampiro que quer preservar as nogdes de Bem ¢ de Mal, deve ficar pa termina Em Os sinos da agonia, Autran Dourado inicialmente centra a n lo 0 faco narrativo para a historia de Malvina e Gaspar. Estes titimos, ricos ¢ bem-nascidos, representam o mundo da aristocracia, seus valores, distorcidos ou nio, sua ideologia. Janusrio, filho bastardo, pertence a outro segmento social ¢ vé a histéria desenrolar-se com outros olhes. Quem ¢ o verdadeiro hersi do romance, Januirio ou Gaspar? Responder a essa pergunta nio € importante, mas o fato de podermos fave dependendo da posigio que o leitor assuma em relagio 3 interpretagio do texto. rativa no mameluco Janustio, mas depois se afasta gradualmente do rapaz, desto 1 mostra que as duas possibilidades eoexister na narrat Se observarmos, parece haver um problema de nomenclatura: “monélogo", normalmente, se opde a “didlogo”, nfo a “polifonia”. Mas Bakhtin (1984) usa “monolégico” como oposto de “polifonico”, nio como oposto de “dialégico”. Tilvez fosse mais légico utilizar uma palavra como “monofénico” ou “unissono”. Observe que © Dislogo existe sempre que alguém fala ou escreve alguma coisa, mesmo se 0 escrito for o que Bakhtin chama de monolégico, isto é, mesmo que exprima uma dinica “verdade”. Mas a polifonia existe dentro do texto quando o texto, além de Dialogar com 0 leitor, que esté fora do livro, traz dentro de si varias maneiras diferentes de pensar, Dialogando internamente. I—TeORIA LETERARIA Para Bakhtin (1984), 0 conhecimento deve ser dial6gico ¢ polifénico, ¢ para receber criticas as préprias limitagGes, € nio monoligico, fechado, ineapaz de ver outros lados de cada questio, berto para as contradigées 'BAKHTIN: A CARNAVALIZAGAO Outro conceito fundamental em Bakhtin é o de carnavalizacio. Investiga cle a cultura popular, especialmente nas €pocas medieval ¢ renascentista, ¢ conclui que, juntamente com a chamada “alta cultura” (autores consagrados, assuntos “sérios” etc.), hé uma corrente que vem desde a antiguidade clissica, dos didlogos de Séerates, ¢ passa pela sitira de Menipo que, segundo Bakhtin (SCHNAIDERMAN, 1983), é “o género por exceléncia da mistura do simbolismo clevado, das reflexdes sobre as questies tiltimas € do naturalismo mais grosseiro”), pelos livros de Apuleio, chega a Boécio e as pecas medievais; passa por Boccaccio ¢ Rabelais, chega as comédias de Shakespeare Cervantes, Voltaire, Balzac e Hugo. Essa corrente-tem como caracteristica 0 fato de que a tradicio, nelas, € virada pelo avesso. A literatura dessa corrente € joco-séria, satirica, dial6gica, pois 0 avesso pressupée o dircito, ou seja, para invertermos uma série de valores, primeiro é preciso reconhecer que essa série existe. Postular 0 oposto dela significa, portanto, criar uma voz que apregoa esse oposto e quie dialoga com a voz que prega 0s valores iniciais, os “do lado direito”. © Na carnavalizagio ha uma coletiva, eo poder é ridicularizado, vitima de uma espécie de “ving: nversio dos valores da vida cotidiana, numa espécie de libertagio 1” por parte do povo. Vejames, por exemplo, a figura do Rei Momo: em ver do rei terrivel, temfvel, que explora o povo com impostos ¢ faz a guerra, é um rei obeso ¢ simpitico, que s6 deseja comer, beber, dangar e fazer amor. A camnavalizagio, na literatura, propde uma outra ordem do mundo, totalmente diferente daquela & qual estamos acostumados, mostrando, através do exemplo, que essa ordem nao é natural nem absolwta, ‘mas apenas uma convengio, e que pode ser mudada, A camnavalizacio, entio, acontece quando um texto liter‘rio, de alguma forma, apresenta o chamado “mundo asavessas”, ou seja, uma inversio critica /ou satfrica das formas tradicionais do poder estabelecido ‘eda organizagio sociopolitica da sociedade. Um bom exemplo disso so As viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. Talvez muitos Ieitores s6 conhegam a primeira parte da obra, que narra a viagem 2 Lilliput, terra de homens miniisculos, mas a obra fala de quatro viagens: a segunda teria sido até um reino de gigantes, a terceira & Laputa, uma ilha onde o governo e a vida aconteciam dentro de uma burocracia ridicula © intolerdvel, ¢, finalmente, a viagem ao reino dos Houyhmhnms, que eram cavalos inteligentes, vivendo numa sociedade perfeita, honesta e tolerante; ¢ os humanos daquelas terras eram irracionais, viviam como animais, As quatro sociedades descritas nas viagens, na verdade, funncionam como uma espécie de metfora satirica da Inglaterra em que Swift viveu. Um exemplo brasileiro € Maamaima, onde logo de cara se poe de cabega para baixo 0 conceito tradicional de “her6i”: Macunaima é chamado de “herdi” o tempo todo, para deixar bem claro que cle rio é tum anti-her6i; mas é covarde, preguigoso, ardiloso, guloso, luxurioso, engana os prprios itmos frequentemente € malsucedido em suas aventuras, Mitio de Andrade nao estava simplesmente querendo escrever uma hist6ria de picaro (personagem tradicional na literatura europeia, alguém de baixa condicio social, cujas aventuras ridiculas tém como objetivo fugir da fone, do frio, enfim, dos males da pobreza) Ele estava fazendo o leitor perceber que, para criar uma literatura tipicamente brasileira, era um bom come¢o carnavalizar, virar pelo avesso algumas das tradig6es literérias europeias, da Na verdade, carnavalizagio ¢ dialogismo nfo sio conceitos muito distantes, Atr camnavalizagio, a literatura nos mostra a Alteridade, que € todo € qualquer modo de pensar, sentir ¢ ver 0 mundo que nio seja exatamente igual ao nosso. O “eu” se constréi exatamente numa relagio de oposigio/complementaridade com © Outro. Enxergar o ponto de vista do Outro é uma forma de Didlogo. Ao olharmos o Outro, primeiramente o achamos ridiculo, depois incompreensivel; se ‘Twowns Bowes / Loci Oxann Zoun [oncamtzanonts) — 183 2 wa formos pacientes, acabamos por descobrir que também fizemos coisas ridfculas e incompreensiveis no nosso dia-a-dia. O que € mais absurdo: uma casta de nobres que s6 pode ouvir o que thes dizem se levarem uma pancada nos ouvidos, dada por um funcionério subaltemo, ou entrar num elevador cheio de pessoas que moram no mesmo prédio e todos fingirem estar sés, nem sequer olhando uns para os outros, ou esbocando um cumprimento? © primeiro comportamento existe na fiegio de Swift; 6 segundo, acontece por vezes conosco. O primeito salta aos olhos como absurdo; o segundo, nem sempre. Ao permitimmos o Diilogo com 0 Outro, acabamos por ver melhor a nds mesmos. Baxarnin: Bakhtin também tratou do conceito de cronétopo, que seria, por um lado, “a conectividade intrinseca das relagies espaciais e temporais que sio expressas artisticamente na literatura” (HoLQuisT, 1991, p. 109); nesse nivel, o cronétopo € um pouco abstrato. Ble é a ideia ce que, dentro da literatura, nio se pode criar um tempo sem criar, simultaneamente, um espago, ¢ vice-versa. Tomemos 0 poema do tipo “No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade, que tem um espago, representado pelo meio do caminho. Mas esse caminho pode ser interpretado como metéfora da vida, da mesma maneita que fez Dante na Divina comédias entio, 0 espago (caminho) deixa de ser espago para se tornar tempo vivido. Isso poderia constituir um problema: como é que, simplesmente, espago torna-se tempo ¢ vice-versa? Se aceitarmos o conccito de cronstopo, nao existe o problema: tempo e espago ficam sendo duas f da mesma moeda. O cronétopo, ao pressupor uma relagio necesséria entre tempo € espago, faz com que as das maneiras de ler a expresso “no meio do caminho” funcionem logicamente de modo complementar. Quando se observa como a relagio espago/tempo foi criada dentro de um determinado texto, pode-se perceber que essa relagio espago/tempo vai ser fundamental para mostrar que tipo de texto é esse. Como exemplo, Bakhtin (1984, p. 109) fala da estrutura do “romance de aventura e provagio” (adventure novel of ordeal): aps uma catistrofe inicial (a noiva € raptada por piratas, por exemplo), o hherdi passa por mil provacées diferentes até reconquistar a felicidade. Hi intimeras variagdes das aventuras pelas quis 0 casal de a tum tempo “vazio” © um espago “abstrato”, ou seja, vividas, o herdi nio muda, nao envelhece nem se torna mais sfbio; € como se o tempo nao passasse. E 1 espaco niio precisa ser definido: se os piratas fogem pelo mar, pode ser qualquer mar, As aventuras podcriam se passar em qualquer luga jonados deve passar, mas 0 cronétopo desse tipo de romance tem (0 importa quantas aventuras diferentes sejam Comparemos isso com um romance do tipo Dom Casmurro: Bentinho muda ao longo dos anos. De menino ingénuo torna-se adolescente apaixonado, depois marido ciumento, Pouco a pouco, as experigncias vividas tornam-no amargo, desiludido, cinico, frio: Casmurro. O espago da casa materna, ccheia de agregados, onde se podiam escutar as conversas dos adultos, vai revelar ao menino Bentinho ‘amor por Capitu e trazer, logo no inicio do romance, as primeiras insinuagdes maldosas sobre 0 carter da menina. O fato de Capit: morar na casa a0 lado da de Bentinho, com o famoso muro que fora serve para separi-los, ora para uni-los (como quando Capit escreve 0s nomes de ambos), ora para protegé-los, sendo vigiado o espaco em que ambos se encontravam, também ¢ importantissimo. TTemos, portanto, um texto onde o tempo passa ¢ deixa marcas profundas nas personagens, ¢ onde o espago também € fundamental para determinar os acontecimentos. F como poderfamos descrever 0 espago em Dont Casmurro? Que tal *urbano, burgués © oitocentista”? Ora, “burgués” diz respeito a uma classe social que estéligada a uma determinada época, Scria inaclequado dizer que o palicio de um rei grego de 4.500 a.C. é *burgués” pelo fato de o palécio ser luxuoso, E “oitocentista’, isto é, do século XIX, também esta mais ligado a ideia de tempo do que de espaco, Percebe-se, portanto, que o conceito de cronstopo € «til, pois permite enxergar o quanto tempo ¢ espaco sio ligados no texto literario, 14 —TeORIA LITERAREA wGgJewirics socroroeren Por outro lado, 0 cronétopo também poderia ser entendido como toma unidade da andlise narratvs, sma figura de tempofespaco tipica de certastramas (los) historicamente dadas. Nesse nivel, 0 etondtopo seria um tipo de estrutura recorrente, ‘muito pouco diferente daquilo que os formalistas russos chamavam de mecanisin (devie) (BAKHITIN, 1984, p. 110) ‘Nessa mancira mais limitada de entender 0 conceito, 0 cronétopo seria uma espécie de matriz, uma forma mais ou menos padronizada, que teria um niimero determinado de variagdes poss ¢ seria aplicavel, na qualidade de estrutura, a qualquer texto narrativo. Isso se aproxima daqueles conceitos dos formalistas russos (Capitulo 5), que tentavam criar descrigies de todos 0s tipos posstveis de estrutura do texto, mostrando que todo texto obedece a um padrio estrutural predeterminado, € que as inovacdes devem levar em conta a estrutura padrio que caracteriza o género litersrio e sua histéria, O tipo de cronétopo do género romance seria, entio, totalmente diferente do da poesia épica. E um texto nunca teria um ‘inico cronétopo, mas virios. Partindo disso, Bakhtin escrevew um texto, publicado em 1973, que € uma tentativa de classificar uma série de cronétopos que tenderiam a repetir- se em culturas diferentes (0 da Estrada, o do Julgamento, o da Cidadezinha Provinciana etc.), Mas essa classificagio € objeto de estudos e polémicas, logismo. Todo ato de linguagem & um dislogo, pois leva em conta um receptor, ainda que apenas imaginirio, e suas possiveis reagdes. Carnavalizagio. “Mundo 3s avessas", recurso de origem popular que, 20 apresentar para o eitor uma ordem social invertida, faz com que cle reflita sobre a ordem social que conhece no mundo real Cronétopo. Conjunto de relagdes necessiris entre 0 espago eo tempo na obra de ate lteriia, | Quadro 2, Zonceitos bakhtinianos. ANTONIO CANDIDO: CRITICA SOCIOLOGICA E CRETICA LITERARIA No preficio de Literatura e sociedade, Antonio Candido (1985) explica que a critica sociolégica deve mostrar os elementos sociais como constituintes da estrutura, € nao da superficie, do texto. Parafraseamos aqui o exemplo escolhido por ele: no romance Seuhora, José de Alencar mostra dimensdes sociais cvidentes: uma referencia a um lugar, uma moda no vestir, um costume qualquer. Isso € Gbvio e no constitui tividade critica ‘Alem dessas dimensdes evidentes, o tema do livro € um tema social: a compra de um marido. Notar isso ¢ enxergar como 0 romance desmascara wma situagio social que era rotineira na época, (© casamento por dinhciro, jé € interessante, mas ainda nao € critica literdria, pois ainda no fizemos a ponte entre a forma, a estrutura do livro € a temitica social, Dizer algo como “o casamento por dinheiro nfo era incomum no Brasil do século dezenove, vejam 0 caso de Senhora", nio € fazer eritica litersria: € fazer sociologia usando o texto para dar exemplo. Entio, ele pede que observemos a composigio de Senhora. O livro é, afirma Candido, uma “espécie de longa e complicada transagio — com cenas de avango € recuo, dislogos construfdos como presses € concessées" (CANDIDO, 1985, p. 6), cada lado, representado por um dos personagens, cedendo € depois endurecendo, os dois protagonistas (Aurélia, a mulher-compradora, ¢ Seixas, 0 marido- comprado) obcecados pelo ato da compra. Essa transacio seria uma espécie de representacio literaria do mecanismo de compra e venda. E como se, ao organizar os capitulos, o autor estivesse tentando representar literariamente uma negociacio entre dois capitalistas. Tuomas Bownict / Lucia Osawa Zosiw (oneasseanonts) — 185 CS ¥ Isso finciona, dentro do livro, para mostrar que uma relagio que deveria basear-se em prineipios \or) torna-se degradada e insuportivel, quando baseada no interesse econdmico, ¢ 0 ncipio nobre. Quando Seixas compra de volta |, ambos reconciliam-se mais nobres (0 a Linco resgate possivel dessa degradagio é a volta do pt sta liberdade ¢ Aurélia cai de joelhos aos pés clo marido, declarando sua pai €o livro termina num final feliz. Fase terceiro momento ja € uma anilise que mostra como o tema social entrou na estrutura do romance, e € esse tipo de andlise que Candido (1985) privilegia, pois ela tem a questio estética e literaria como ponto principal e como objetivo, fe também deixa claro que a critica sociol6gica nao deve ser fechada; critico deve levar em conta as possibilidades psicolégicas, religiosas, lingu‘sticas etc., que enriquecem a interpretagio do texto. A RELAGAO ENTRE OBRA E SOCIEDADE ndido (1985) entende que a arte tanto é influenciada pela sociedade quanto a influencia. influéncia da sociedade na obra aparece tanto na superficie do texto (descri¢ao de casas, roupas, habitos ttc.) quanto na caracterizagio das personagens (sua psicologia, seus preconceitos, ambigbes etc.) ¢ na estrutura profunda do texto (como vimos em Lukics, 1963], que mostra que a sociedade grega cléssica possufa um género literirio caracteristico, a épica; ¢ que, quando a cultura ocidental chegou 3 Idade Média, esse género ji nao correspondia 20 modo de © homem medieval ver ¢ sentir o mundo, ¢ fai transformado no romance). A influéncia da obra na sociedade acontece porque os individuos {que lem 0 texto recebem dele certa influéncia que pode traduzir-se na pratica, mudando de alguma Jeitores. Essa influéncia vem de dentro do livro, e no depende de o ciéncia e/ou intengio de procluzir esse efeito mancira 0 comportamento de: tor ter ou nao ter tido co Candido (1985) também propde uma subdivisio possfvel das obras literérias em dois grupos: arte de agregasio e arte de segregagdo. A primer uum tipo de arte que se inspira “na experiéncia coletiva « visa a mcios comunicativos acessiveis” (CANDIDO, 1985, p. 23). Isso significa que essa arte quer ser compreendida pelo maior néimero possivel de leitores, ¢ toma cuidado para nao inovar demais, principalmente no campo formal, porque o leitor médio tende a nao gostar de novidades que nto sejam superficias, Explicando: se wn Ieitorj esperaencontrar elementos conhecidos numa rama repetidas 0 mocinho ¢amocinha, umamor verdadeiro impedido por diferengas sociais, brigas familiares ou intrigas de rivais; desentendimentos, final, a vit6ria do sentimento nobre sobre as dificuldades. Na superficie, pode haver ‘muitas variagoes: oraa mocinha é pobre e 0 mocinho rico, ora vice-versa, ago se passa em Pernambuco mocinha pode engravidar e abortar num acidente ou permanecer virgem até 0 ‘casamento etc, Mas se houver ma mudanga radical na ideologia (por exemplo, o mocinho casar com a mocinha no antepeniiltimo capitulo € 0 casamento se revelar um desastre apesar do amor, terminando em divércio no dltimo capitulo, um ano depois), 0 leitor provavelmente vai rejeitar a obra, Se a linguagem da histéria for muito experimental, o leitor também vai encontrar obsticulos, considerando o texto “dificil” individuo, por exemplo, aprecia a leitura de romances “para mocinhas”, esse softimento ow em Katmandu, ‘A arte de sepregagio € a arte que esta preocupada em inovar o sistema simbélico. Por sistema simbélico, entenda-se todo um complexo de esquemas ¢ estruturas que j4 estio incorporados a0 imaginério coletivo. E isso pode acontecer tanto na forma quanto no conteiido. Um exemplo de contetido: um jovem mediocre acorda tum belo dia transformado num inseto gigante. Nio se apavora, io grita, nfo procura uma explicacio. Sua familia, em vez de ficar histérica, trata de escondé-lo, trancando-o no quarto. Agem como se a transformagio fosse uma vergonha, um embarago, mas 186 —TEORIA LITERARIA eT eee c Co tee I et ad8)Caiticn socrorsercr jamais se perguntam o que foi que houve. Depois de algum tempo, o inseto morre. A familia fica feliz aliviada, Nao hi a menor explicacio para os acontecimentos. Essa é, resumidamente, a trama de A ‘metamorfose, de Franz Katka. Ora, nas estruturas mais difundidas no imaginirio coletivo, quando um: personagem sofre uma transformacio mégica, procura imediatamente descobrir do que ¢ por que foi vvitima, e reverter para a forma humana, Tal estrutura corresponde, entre outras, & de alguns contos de fadas, onde a vitima do encantamento deseja, sobretudo, reverter para a forma humana. Toneladas de papel e tinta jé foram gastas para tentar “explicar” ae sua familia reagées de Gregor S: Da mesma forma, j4 estamos acostumados com algumas maneiras de expressio ¢ algumas estruturas textuais. Por isso € que tantos Ieitores pensam que Guimaries Rosa é “dificil”. Ainda hoje a sua linguagem € criativa, quando comparada a média, A “arte de segregacio” vai tentar quebrar as nnossas expectativas de encontrar algo jé conhecido, apresentando novidades, ¢ isso logicamente fiz com que efa tenha menos leitores, pelo menos até que os novos esquemas que ela propde comecem a ficar conhecidos ¢ sejam absorvidos no nosso imaginirio, no nosso sistema simbélico. A metamorfase, por mais chocante que seja, jé foi consagrada, A relacéo entre obra literdria e sociedade deve ser investigada na estrutura que compée 0 texto, nio em sua superficie Arelacdo 6 dialética, sociedade influenciandoa obra, que por sua vez influencia a sociedade, num equilibrio dinimico. {As obras “de agregago” procuram ficar dentro do sistema simbélico jé conhecido pela massa dos leitores. A obra “de segregacdo” éa que deseja inovar, de algum modo, o sistema simbético de uma euleara juadro 3. Conceitos propostos por Candido (1985) propestos p PROBLEMAS DA CRETICA SOCIOLOGICA © proprio Candido aponta bem para o maior problema da critica socioligica: € a tendéncia que alguns criticos, especialmente da linha marxista, adquirem de se pr tentando explicar a literatura nfio como também produto de wma sociedad, mas con ‘uma sociedade, fechando os olhos para uma série de outras possibilidades de leitura, Assim, esse critica “viciado” em sociologia poderia ver-se incapaz de explicar fendmenos comuns na literatura, Por exemplo: para um eritico que s6 se preocupa com os aspectos histéricos e sociais, os contos de fadas no sio “boa” literatura, pois sio hist6rias de origem popular, comprometidas com uma época dle repressio, a Wade ‘Média, onde o senhor feudal tinha direito divino sobre todos ¢ o servo nao tinha direito nenhum. Por isso, a mensagem, repetida sempre nos contos de fadas, de que a cria aceitando a tutela dos adultos, religiosa etc.) seria recompensada, era vista como apenas 1 der demais aos aspectos sociol6gicos, spenas produto de 1¢a “virtuosa” (boa, obediente, paciente, eentativa de passar adiante esses valores de submissio. Ora, como isso explicaria o permanente sucesso dos contos de fadas? O eritico que imaginamos nfo saberia responder ¢ talvez se limitasse a lamentar o fato. Bettelheim (1978), um psicanalista estudioso de literatura, notou que muitas das imagens marcantes dos contos de fada tradicionais sio imagens que falam ao inconsciente do ser humano, acalmando os medos basicos da crianca (medo de morrer de fome, de ser abandonada, de nio ser amada etc.), garantindo-Ihe, de forma simbélica, que cessas ameagas podem ser enfrentadas ¢ vencidas. Uma critica psicanalitica, portanto, respondeu a uma pergunta que a critica sociolégica nfo teria sabido responder. Eis por que Candido (1985) declara que, embora seja vilido que o critico privilegie 0(6) aspecto(s) da critica com (3) qual(is) mais se identifica, ele no deve se fechar para outras tendéncias. Tuomas Ronnies / Locts Osawa Zoun (oneanszanones) — 187 Rererincias BAKHTIN, M. Problenis on Destoevsky’s poetics. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984, BARBERIS, P. La sociocritique. In: BERGEZ Paris: Dunod, 1996, p. 121-153. 4, D. (Ong) Introduction aux méthode extques pour Vanalyse ltée. BETTELHEIM, B. Paicondlive dos cont: de faa, Rio de Janeiro: Paz e Tetra, 1978, CANDIDO, A. Literatura esocedade, 8, Paulo: Editora Nacional, 1985, GOLDMANN, L. Sorlaia do romance, Rio: Pz e Terra 1967 HOLQUIST, M. Dislagian: Bakhtin and his world, London/New York: Routledge, 1991 LUKACS, G. Teoria do romance. Tradugio Alfredo Margarido. Lisboa: Presenga, 1963. REIS, C LOPES, A. M. Dion de naratlagia. Coimbra: Almedina 1994 SCHNAIDERMAN, B. Tibilldo e serteute: ensaios sobre Dostoievski e Bakhtin, Si Paulo: Duas Cidades, 1983, IBovEOREA LITERARIA

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