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COMO CONHECEMOS O PASSADO* David Lowenthal” Tradugdo: Licia Haddad’ Revisio técnica: Marina Maluf’* A poesia da histéria repousa no fato quase milagroso de que, por esta mesma terra, por este mesmo chéio familiar, jd caminharam outros homens e mulheres, tio reais quanto nds, com pensamentos préprios, levados pelas proprias paixdes, todos mortos agora, geragdes € geragdes completamente desaparecidas, da mesma forma que nds muito em breve desupareceremos como fantasmas ao raiar do dia. G. M. Trevelyan’, Autobtography of an historian Quando fatamos do passado, mentimos a cada respiragao. William Maxwell, So Long, See You Tomorrow" * “How we know the past”, in The past is a foreign country, T* reimpe. Cambridge, Cambrigde University Press, 1995. N.Ed. A tradug3o mantém as notas na forma original de publicagZo. As referéncias bibliograficas, a0 final da tradugdo, também conservam a forma original de publicagdo. +* Professor convidado de arquitetura paisagistiea em Harvard, de ciéncia politica no M.L-T., de psicologia ambiental na University of New York, de geografia nas universidades de California (Berkeley © Davis), Washington, Minnesota ¢ Ciark University. *** Professora de Tradugio Literdria da Associagao Alun **** Professora do Departamento de Histéria da PUC-SP. 1 1949, p. 13. 2 1980, p. 29. Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 63 A consciéncia do passado é, por intimeras razées, essencial ao nosso bem-estar. Este texto examina os caminhos pelos quais tomamos consciéncia do passado como uma pré-condigao para preencher tal necessidade, Como tomamos conhecimento do passado? Como adquirimos esse background im- prescindivel? A resposta é simples: lembramo-nos das coisas, Iemos ou ouvimos histérias e cr6nicas, e vivemos entre reliquias de épocas anteriores. O passado nos cerca e nos preenche; cada cenério, cada declaragao, cada ago conserva um contetido residual de tempos pretéritos. Toda consciéncia atual se funda em percepgdes € atitudes do passado; reconhecemos uma pessoa, uma drvore, um café da manha, uma tarefa, porque jd os vimos ou jé os experimentamos. E 0 acontecido também € parte integral de nossa propria existéncia: “Somos a qualquer momento a soma de todos os nossos momentos, © produto de todas as nossas experiéncias”, como coloca A. A. Mendilow.* Séculos de tradigéio subjazem a cada momento de percepgio € criagdo, permeando nao somente artefatos € cultura mas as proprias células de nossos corpos. Nao temos consciéneia da maioria desses residuos, atribuindo-os to somente ac momento presente; esforgo consciente é necessdrio para reconhecer que cles advém do passado. “Eu preciso ser moderno: vivo agora”, medita um personagem de Robertson Davies. “Mas assim como todos... vivo num emaranhado de épocas, ¢ algumas de minhas idéias pertencem ao agora, algumas a um passado remoto, € outras a tempos: que parecem mais relevantes a meus pais do que a mim.” O mélange de épocas ge ralmente passa despercebido, visto que é tido como a propria natureza do presente. As facetas do passado, que perduram em nossos gestos e palavras bem como em regras € artefatos, surgem para nds como “passado” somente quando as reconhecemos como tais. Reconhecer 0 passado como um Ambito temporal distinto do presente, afirmam alguns académicos, é uma caracteristica inerente ao pensamento ocidental.’” No entanto certa consciéncia do passado é comum a todos os seres humanos, com excegiio dos bebés, dos senis ¢ dos portadores de lesdes cerebrais. No minimo, lembramos 0 que 3. Time and the Novel, p. 223; vide também p. 230. 4 Bergson, Creative Evolution, p. 20; Shils, Tradition, pp. 34-8, 169-70. 3 Rebel Angels, p. 124. 6 Heller, Theory of History, p. 201 7 Kelley, Foundations of Modern Historical Scholarship, p. 3 64 Proj. Histéria, Sée Paulo, (17), nov. 1998 ssos organicos de repetimos crescer ¢ envelhecer, de desabrochar ¢ de definhar. Uma consciéncia do passado mais recordamos que houve um ontem ¢ perechemos os proc completa envolve familiaridade com processos concebidos ¢ finalizados, com recor- dagdes daquilo que foi dito e feito, com histérias sobre pessoas ¢ acontecimentos — coisas comuns da meméria ¢ da histéria. “O passado nunca esté morto”, na frase de Gilbert Highet; “cle existe ininterrup- tamente na memoria de pensadores ¢ de homens imaginativos”.* De fato, ele existe na meméria de todos nés. Constantemente tomamos conhecimento nao somente de nossas agGes ¢ pensamentos anteriores, como também daqueles de outrem, seja por testemunho: direto ou de terceiros. Até sinais de experiéncia excessivamente remota podem sc tornar conscientes. Herbert Butterfield revela como isto acontece: Todas as mentes contém um emaranhado de imagens ¢ historias... que constituem 0 que construfmos do Passado para nés mesmos,... que entra em agdio a um vislumbre de rufnas antigas ... ou a uma sugestio do romantico... Um sino de catedral ou a mengao a Agin- court, ou © proprio soletrar da palavra “nomear” (ycleped) podem bastar para acionar a mente a perambular por suas préprias galerias de quadros da histéria.” rico quanto ao da O pa meméria: seus cenarios ¢ experiéneias antecedem nossas proprias vidas, ado, para Butterfield, refere-se tanto ao Ambito hist © que ja lemos, ouyimos e reiteramos tornam-se também parte de nossas lembrangas Na verdade temos consciéncia do passado como um Ambito que coexiste com o presente ao mesmo tempo que se distingue dele. O que os unc & nossa percepgao sa autoconsciéncia — amplamente inconsciente da vida organica; 0 que os separa é no: © pensar sobre nossas memérias, sobre histéria, sobre a idade das coisas que nos rodeiam. A reflexio freqiicntemente distingue 6 aqui e agora — tarefas sendo feitas, idéias sendo formadas, passos sendo dados — de coisas, pensamentos © acontecimentos pa tanto como parte do presente quanto separado dele. “N6és realmente damos vida ao (0; 0 passado precisa ser sentido sados. Mas uniao ¢ separagao estéo em continua tensa passado, como tal, ao rememorar ¢ pensar historicamente”, escreveu R.G. Collingwood; > 40 “mas 0 fazemos desvencilhando-o do presente no qual ele de fato existe”, 8 Classical Tradition, p. 447. 9 Historical Novel, p. 1 10 “Some perplexities about time”, p. 150. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 65 As quest6es sobre 0 que 0 passado consciente contém, porque se pensa sobre cle, quanto ¢ de que forma é sentido como sendo um campo separado — variam de cultura para cultura, de pessoa para pessoa ¢ de dia para dia. Alguns ficam tao estimulados (ou oprimidos) por passados imaginados ou recordados que toda experiéncia presente & influenciada por suas lembrangas; para outros o passado tem pouco a dizer, 0 presente ¢ 0 futuro apropriam-se antecipadamente de sua atengio consciente. Mas © pas sado, seja ele parco ou copioso, morto ou vivo, um campo separado ou confundido com o presente, é percebide conscientemente pelos mesmos caminhos. Trés fontes de conhecimento do passado sio aqui estudadas: meméria, histéria © fragmentos. Memoria ¢ historia sio processos de introspecgao (insight) uma envolve componentes da outra, ¢ suas fronteiras sao ténues. Ainda assim, memoria ¢ histéria 0 normalmente, e justificadamente, diferenciadas: a memoria € inevitivel ¢ indubiuivel prima-facie: a histéria € contingente © empiricamente verificavel. Ao contrario de memoria ¢ historia, fragmentos nio 08, silo processos mas residuos de processos, Fragmen- tos feitos pelo homem sio chamados artefatos; os naturais carecem de um nome specifico. Ambos atestam o passado biotogicamente, por envelhecimento ¢ desgaste e, historicamente, por formas ¢ estruturas anacr6nicas. Cada caminho para o p ssado — meméria, histo ia, fragmentos — 6 um campo rei- vindicado por disciplinas especializadas, explicitamente pela psicologia, histéria © ar- gueologia. Mas conhecer 0 passado envolve perspectivas mais amplas do que aquelas abrangidas normalmente por essas discipling Por conseguinte, minha investigagao par- tird ¢ algumas vezes wanscendera esses campos de especializagao protissional. Anics de analisar como a memoria, a hist6ria ¢ os fragmemtos nos conduzem ao Ppassado, tentarci mostrar como cle ¢ geralmente vivenciado ¢ aceito. O fato de que o pas (© atribuidas duragées variiveis, que cle & precariamente ligado ao presente, que sua ido nao mais esta presente tolda de incerteza 0 seu conhecimento. Visto que lhe propria existéncia nao & comprovada, 0 passado com freqiiéncia parece desconcertan- temente ténue. Uma vez que essas diividas afetam quase tudo 0 que pensamos saber sobre 0 passado, cla merecem um exame mais minucioso. 66 Proj. Historia, Sado Paulo, (17), nov, 1998 Como o passado é sentido e aceito Tados acontecimentoy passados estdo mais longe de nossoy sentidos do que as estvelas das galdxias mais remotas, cuja iuz propria, ae menos, ainda alcanga os telescépios. George Kubler The Shape of Time" Em nossas lembrangas jd um passado ficticio ocupa 0 lugar de ourro, do qual nada sabemos com certeza ~ nem, ao menos, que é falso. Jorge Luis Borges, ‘Tlin, Ugbar, Orbis Tertius"? Memoria, hist6ria ¢ fragmentos revivem continuamente nossa consciéncia do pas- sado, Mas como podemos estar seguros de que refletem 0 que aconteceu? O pasado se foi: sua analogia com aquilo agora visto, relembrado ou lido jamais pode ser provada, Nenhuma atirmagaio sobre © passado pode ser confirmada pelo exame de fatos presu- midos. Uma vez que conhecer ocorre apenas no presente epistemolégico, como C. I. Lewis coloca, “nenhuma verificagaio teoricamente suticiente de qualquer fato passado & possivel”.!’ Nao podemos verificd-lo pela observacao ou pela experimentagio. Dife- fiz rentemente dos lugares geograficamente remotos que poderiamos visitar s semos, um esforgo. 0 passado esta além do nosso alcance. Fatos presentes conhecidos apenas indiretamente poderiam, a principio, ser verificados; fatos passados, por sua prépria natureza, ndo o podem Dar nome ou pensar em coisas do passado parece inferir sua existéncia, mas elas nao existem: temos apenas uma prova presente de circunstincias passadas. “O passado sivel”, conclui Collingwood; simplesmente como passado € totalmente incognos ‘somente 0 passado residualmente preservado no presente & cognoscivel”. Um passado que continuasse a existir seria um “limbo, em que acontecimentos ja completados ainda continuam”; implicaria “um mundo em que o peso de Galileu ainda esté em queda, em que a fumaga da Roma de Nero ainda impregna © ar, ¢ em que 6 homem inter-glacial ainda esta arduamente aprendendo a lascar a pedra”. 11 1962, p. 79 121961, pp. 42-3 13. Analysis of Knowledge and Valuation, p. 200. 14 Collingwood, “Limits of historical knowledge”, pp. 220-1 Proj. Histéria, Séo Paulo, (17), nov. 1998 67 Da auséncia de passado resultam duas incertezas: de que algo semelhante ao pas- sado geralmente aceito tenha existido; e, se existiu, 0 que ocorreu jamais pode ser verdadeiramente conhecido. Tratarei dessas incertezas no devido tempo. Sera que os eventos que cremos terem ocorrido de fato ocorreram? Talvez um passado ficticio ocupe nossas Iembrangas, como especula Borges. Pelo que sabemos, talvez sejamos como os simulacros de Ron Hubbard, que estavam convencidos de terem vivido num mundo real e “pensavam que se lembravam de passados ¢ ancestrais longin- quos”."° Registros hist6ricos e lembrangas podem nos levar a supor que, afinal, existiu um passado. O planeta poderia ter sido criado cinco minutos atrés, Bertrand Russell conjecturava, com uma populagdio que se “lembrava” de um passado ilusério.'* Um escritor que queira reproduzir uma cena de Russell imagina um jornal encontrado nas mandibulas fossilizadas de um tiranossauro de setenta milhdes de anos, localizado nas ruinas de Creta, provando que “o universo foi de fato criado por volta das 9hOS dessa manhi e quem quer que 0 tenha feito cometeu um deslize ao deixar esse exemplar do The Times jogado por ai”."” Esses recém-criados mundos hipotéticos diferem da doutrina biblica recebida apenas por serem recentes ¢ breves. Tendo-lhe sido atribufda diversas datas, a Criagio foi fi- nalmente calculada pelo Arcebispo James Ussher, no ano de 4004 a.C, para satisfagao tisfaziam assim todos os acontecimentos geral. Os seis milénios atribufdos ao passado ne conhecidos; sem uma geo-cronologia moderna, os académicos do século XVII nao s tiram que havia uma lacuna de épocas anteriores a eles. Até mesmo os intérpretes dos textos sagrados do século XIX puderam encaixar 0 passado humano conhecido entio em scis milénios. Rochas e fésscis, provas de existéncia anterior, foram descartadas como espirias e impias; do mesmo modo, erosdes e conseqiiéncias aparentemente an- tidiluvianas faziam parte do ato Gnico da Criagdo. Mas a geologia e a paleontologia tornaram a visao ortodoxa cada vez mais dificil de sustentar; por toda parte havia sinais de um passado na terra bem mais antigo do que a Criagao biblica parecia permitir."* ‘Typewriter in the Sky, p. 60. 16 Analysis of Mind, p. 159. Vide Fain, Between Philosophy and History, pp. 114-26. t Karl Sabbagh, New Statesman Competition, 11 Aug. 1967, p. 183. 18 G.L. Davies, Earth in Decay, pp. 13-16; J. Butler, “Other dates”, pp. 23-4; Rupke, Great Chain of History, pp. 51-7 68 Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 A obra Omphalos, de P.H. Gosse, que procurou explicar porque a terra recém-criada precisava conter sinais evidentes de preeexisténcia, é hoje em dia descartada e consi- derada risivel. Mas levantou questdes fundamentais que prefiguram o ceticismo de Russell. Gosse sabia da existéncia do passado histérico, pois homens que escreveram acerca de acontecimentos que eles mesmos presenciaram deixaram testemunho direto disso.” Mas a pré-histria nao deixou relatos similares; ninguém estava l4 para ver e registrar. E a prova desse passado a partir de fésseis, camadas geoldgicas ¢ tecidos vivos carecia da confiabilidade de testemunhas oculares. Ninguém ... declara que viu realmente 0 Pterodéctilo vivo voando por af, ou ouviu os ventos sibilando no alto da Lepidodondra. Vocé diré, “E a mesma coisa; vimos 0 esqueleto de um e€ 0 tronco esmagado da outra e, portanto, estamos tio seguros de sua exist@ncia passada como se na época Ié estivéssemos”. Nao, nfo é... exatamente a mesma coisa [pois] somente através de um processo de reflexao [se] pode inferir que realmente viveram.”” Houvesse tal inferéncia se expandido, “a seqiiéncia de causa e efeito... nos levaria inevitavelmente a eternidade de toda vida organica existente”. E isso seria um absurdo. Tudo, incluindo fésscis, “antigas” camadas de rocha, ¢ os legitimos progenitores de todas as coisas vivas devem, em algum momento especifico, ter sido criados.” Todas as coisas vivas revelavam uma preexisténcia — circulos nos troncos de arvores, umbigos no homem que no momento da Criagdo cram “falsos”. “O *osso de siba’ (cut- tle-bone) & um registro autografico, indubitavelmente genuino, da histéria do molusco siba. Sim, é certamente genuino; ¢ também autogrifico: mas ndo é verdadeiro. Aquele 22 Uma divindade que dou as criaturas recém-criadas uma falsa lerada perversa — “Deus escondeu os Siba foi entao criado. aparéncia de existéncia anterior deveria ser con fésseis nas rochas para que os gedlogos fossem induzidos ao engano” — era a memoravel ** — mas nao foi bem assim, Gosse contrapds: “Sera que os circulos concén- zombati tricos da madeira da primeira drvore criada foram formados simplesmente com 0 intuito 19 Omphalos (1857), p. 337. 20. tbid., p. 104. 21 Ibid., p. 338. 22. Ibid, p. 239. 23 Edmund Gosse, Father and Son (1907), p. 67. Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 69 de enganar?... Seré que o umbigo do Homem criado visava engané-lo no sentido de que tivera um progenitor?” Nao, eles foram assim feitos porque o Criador decidiu criar a terra “exatamente como ela teria surgido naquele momento de sua histéria, como se todas as eras precedentes de sua histéria tivessem sido reais”.™ Nao obstante a crenga de Gosse nos relatos de testemunhas oculares, um ceticismo semelhante parece colocar em perigo a realidade até mesmo do passado histérico. Se Deus houvesse escolhido criar 0 mundo nao em 4004 a.C., mas em 1857 d.C. (época de Gosse), mesmo assim pareceria exatamente como se fosse agora, repleto de “evidén- cias” de um passado: casas construfdas pela metade; castelos em rufnas; quadros apenas esbocados sobre cayaletes de artistas; guarda-roupas cheios de trajes pouco usados; navios cruzando os mares; pegadas de passaros no barro; esqueletos branqueando as areias do deserto; corpos humanos em vérios estégios de decomposi¢ao nos timulos. Esses vestigios, bem como milhdes de outros vestigios do passado, seriam encontrados, porque sio encontrados no mundo agora ... no para confundir 0 filésofo, mas porque sao insepariveis da condigao do mundo, no momento escolhido de sua irrup¢do em sua historia;... fazem dele o que 525 6 Resumindo, 0 passado hist6rico pode ser to ilusério quanto o pré-histérico. Du- vidar do passado historico, no entanto, (raz problemas adicionais. Um mundo criado durante tempos hist6ricos iria adulterar nfo apenas alguns mas todos os relatos da histéria passada, com terriveis implicagdes para a credibilidade humana. Desacreditar todos os relatos sobre 0 passado, duvidar da autenticidade ou da sanidade de todos aqueles que documentaram vastamente aquilo que nao havia ocorrido, poria em duivida nossa propria sanidade e veracidade. E a ampliagao feita por Russel sobre a hipétese de Gosse, de uma Criagio de apenas cinco minutos de existéncia, pressupée a falsidade nao s6 de toda evidéncia histérica ¢ fisica do passado, mas também de nossas proprias 24 Omphalos, pp. 347-8, 351. Meio século antes, Chateaubriand havia explicado a aparente antiguidade da recente Criagdo em termos estéticos: “Deus poderia haver criado, ¢ sem divida realmente criou, 0 mundo com todas'as marcas de antiguidade ¢ perfeigdo que apresenta agora. Se 0 mundo nao tivesse sido a0 mesmo tempo novo € antigo, © magnifico, o sério, 0 moral teriam sido banidos da face da hatureza; pois estas so caracteristicas essencialmente inerentes aos objetos antigos... Na auséncia desta antiguidade original, nao teria havido nem beleza nem magnificéncia na obra do Todo Poderoso”” (Genius of Christianity (1802), Liv IV, Cap. 5, pp. 135-7). Vide também Borges, “The Creation and P. H. Gosse”, pp. 22-5, 25. Omphatos, pp. 352-3 70 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 lembrangas; se 0 passado comegou cinco minutos atrds, todas as nossas recordagdes scriam uma fraude.”* Faria alguma diferenga caso n&io houvesse passado? Nao nos comportariamos exatamente como jé o fazemos? “O que importa... nio € 0 que o meu passado foi realmente, ou até mesmo se cu tive um”, argumenta H. H. Price; “o que importa sio apenas as lembrancas que agora tenho, sejam elas falsas ou verdadeiras”.”” Mas, de fato, nada seria 0 mesmo. Tradigao seria algo ridiculo. Poucos atentariam para as con- seqiiéncias das proprias agdes. Ninguém prenderia transgressores se ndo houvesse um passado no qual seus crimes pudessem ter ocorrido. Nao poderiamos ir buscar as causas dos efeitos, nem os motivos do comportamento. Nada poderia ser provado, pois “duvidar de nosso sentido de experiéncia passada fundada na realidade seria perder todos os critérios pelos quais a duvida em si ou o que & duvidoso poderia ser corroborado; e obliterar totalmente a diferenga entre o fato empfrico ea fantasia”, pondera C. I. Lewis. O ceticismo Ievado a esse extremo coloca toda realidade em xeque ¢ termina num solipcismo absoluto. Poucos sao tio diibios. No entanto, a auséncia empitica do passado deixa uma ponta de davida que a anilise filos6fica nao pode atenuar completamente. “Tivemos de acreditar nos acontecimentos no comprovados de anos nao comprovados”, escreve Ray Bradbury. “A realidade, mesmo a do passado imediato, é irrecuperdvel... Pois apesar da existéncia de ruinas, papiros c tabuinhas, temcemos que grande parte do que lemos tenha sido inventado.”” A razio de se tentar destruir 0 passado real ¢ substitui-lo por um falso passado & abordada em dois romances admonitérios que transmitem uma sensagao ulterior de impotente irrealidade. O personagem Grande Irmao, no livro 1984, de Orwell, controla © presente ao controlar 0 passado. Uma vez que “acontecimentos passados ... ndo tm existéncia objetiva, mas sobrevivem somente nos registros escritos ¢ nas lembrangas humanas”, conclui-se que “o passado cncontra-se na convergéncia dos registros escritos 26 Murphey, Our Knowledge of the Historical Past, pp. 9-10; Danto, Analytical Philosophy of History, pp. 66-84 27 Thinking and Experience, p. 84, Vide também Butler, “Other dates”, pp. 16-19. 28 Analysis of Knowledge and Valuation, p. 358. Vide Danto, Analytical Philosophy of History, pp. 68-70, 77-8; Murphey, Our Knowledge of the Historical Past, pp. 10-12; Earle, “Memory”, p. 10. 29 “Machine-tooled happyland ~ Disneyland”, p. 102. io Paulo, (17), nov. 1998 7 Proj. Historic e das lembrangas humanas”, e, portanto, “tudo 0 que o Partido resolva fazer dele... Recriado no formato necessdrio ao momento, ... essa nova versdo é o passado, e nenhum passado diferente pode ter existido”. Para assegurar a infalibilidade do Partido, “o pas- sado, a partir de ontem, foi de fato abolido... Nada existe 4 excegio de um interminavel presente”.” © inquiridor utiliza 0 argumento de Gosse para solapar a f6 de Winston num passado remoto: — A Tetra € t3o antiga quanto nés, nZio mais antiga, Como poderia ser mais antiga? Nao existe nada fora da consciéncia humana. — Mas as pedras esto repletas de ossos de animais extintos — mamutes, mastodontes chormes répteis que viveram aqui muito tempo antes que se soubesse da existéncia do homem. — Jé viu esses ossos alguma vez, Winston? Claro que no, Os bidlogos do século XIX inventaram-nos, Antes do homem, nada havia.*! © ceticismo engendrado por esforgos para duplicar um passado perdido é 0 tema de Time Out, de David Ely. Para assegurar-se de que ninguém saberé do acidente nuclear que varreu a Gra-Bretanha ha algumas décadas, uma forca-tarefa americano-soviética estd recriando “cada graveto e pedra, ... cada folha de grama, cada cerca e arbusto, cada mansao, paldcio, cabana e choupana. Absolutamente tudo”, juntamente com provas arquivadas e fragmentos de todo o passado da Inglaterra — até mesmo dos acontecimen- tos que teriam ocorrido, caso nao tivesse havido o holocausto.”” Obrigado a criar esse novo passado, historiador americano Gull se queixa de que as pessoas acabarao por descobrir: ~ O que pensario ao presenciar as brigadas de construgio erguendo 0 Palacio Blenheim...? ~ Pensario como verdadeiros ingleses, Gull, porque assim foram criados. Se os livros de historia e os professores Ihes dizem que Blenheim foi conclufdo em 1722, essa é a data que aceitardo, independentemente do que véem. — Lavagem cerebral. — Possivelmente, Mas & assim que os jovens sempre foram criados. Vocé ¢ eu também, Gull. Porque aceitamos 1722 para Blenheim? 30 Pp. 170, 126-7. 31 Ibid., p. 213. 32 Pp. 95, 90. 72 Proj. Histéria, Séo Paulo, (17), nov. 1998 ~ Porque é verdade... ou foi verdade. ~ Porque fomos treinados para accité-la. A esmerada recriagio, finalmente, leva Gull a imaginar que “talvez tudo isso ja tenha ocorrido antes. Vamos supor que esta tenha sido a segunda vez... ou a décima? A Inglaterra que eles téo diligentemente copiavam agora também poderia haver sido um embuste”.™ Falsificagées histéricas sio sobejamente abundantes; ndo poderia ser que todo o passado fosse uma invencio? Apesar de todo nosso esforgo para recuperar e entender 0 passado, as diividas dos protagonistas de Orwell ¢ Ely ainda nos perseguem. “Conhecer 0 passado”, segundo Kubler, “é faganha tao extraordinéria quanto conhecer as estrelas”,** e mesmo bem documentado 0 passado permanece igualmente fugidio. A incerteza fundamental acerca do passado nos deixa cada vez mais ansiosos para confirmar que tudo se deu conforme relatado. Para nos assegurarmos de que ontem foi to importante quanto hoje, saturamo-nos de detalhes ¢ fragmentos do passado, ratifi- cando a meméria ¢ a historia de forma tangivel. Gostamos de imaginar que aqueles que entéio viveram desejavam que soubéssemos 0 quanto tudo foi real. Em 1978, 0 Colorado Heritage Center, ao exibir as cartas ¢ didtios de pioneiros do século XIX, fez a seguinte observagdo: “Eles ocuparam muito de seu tempo para registrar suas obser- vagSes € sentimentos, legando-nos registros de seus mais intimos pensamentos”, como se a preocupagao de que nds deverfamos conhecer seu passado os tivesse levado a fazer uma crénica de suas vidas. Ainda assim, estamos 0 tempo todo conscientes de que © passado nunca pode ser 120 conhecido quanto o presente. O passado é 0 pais estrangeiro de L. P. Hartley, onde tudo é feito de modo diferente. O que hoje conhecemos como “o passado” nao era o que alguém houvesse experimentado como “o presente”. Em alguns aspectos nés 0 conhecemos melhor do que aqueles que o viveram; sentimos “o passado de tal forma ¢ em tal grau que a prépria consciéncia do passado nao pode mostrar”, comenta T. S. Eliot.” Nés interpretamos 0 momento presente 4 medida que o vivemos, ao passo que 33. Ibid. p. 104. 34 Ibid, pp. 130-1 35. Shape of Tune, p. 19. 36 Piaget € Inhelder, Memory and Intelligence, pp. 398-9. 37. “Tradition and the individual talent”, p. 16. io Paulo, (17), nov. 1998 73 Proj. Historia, ficamos fora do passado e observamos sua operagio conclufda, incluindo suas con- seqiiéncias agora conhecidas sobre o que seria entio o futuro. Antigas drenagens de pantano se tornam uma fase em uma série de sucessivas recuperagdes; retrospectivas mostram a fase inicial de um pintor prefigurando seu trabalho posterior; impactos sub- seqiientes nos descendentes, nos herdeiros politicos, nos sucessores cientificos jogam nova luz em carreiras ha muito encerradas. As implicagdes de percepgdes tardias a respeito de como interpretamos 0 passado sero discutidas mais adiante. Nossa capacidade de entender o passado € deficiente em varios outros aspectos. Os residuos remanescentes de coisas ¢ pensamentos passados representam uma peque- nina fragéio da urdidura contemporanea de geragées anteriores. “Mesmo quando temos consciéncia de participar de um grande feito histérico... sentimos nitidamente que este acontecimento, do modo como serd inserido na historia, sera apenas uma parte daquilo que foi para nés no presente”, argumenta Eugene Minkowski. “Sabemos perfeitamente contecimento € ‘histérica’, apenas um aspecto que apenas uma parte referente ao daquilo que fazemos ¢ daquilo que vivemos.”™ ‘A meméria nao é menos residual do que a histéria, Por mais volumosas que sejam nossas recordagées, sabemos que sao meros lampejos do que j4 foi um todo vivo. Nao importa quao vividamente relembrado ou reproduzido, 0 passado se torna progressi- vamente envolto em sombras, privado de sensagées, apagado pelo esquecimento. “O reconhecimento nem sempre nos devolve o calor do passado”, escreve Simone de Beau- _ € tudo © que resta é um esqueleto”, Uma cena voir; “nés 0 vivemos no presente: recordada de um passado distante é “como uma borboleta imobilizada numa redoma de vidro; os personagens nao se movem mais em nenhuma diregdo. Seus relacionamen- tos estéio entorpecidos, paralisados”. O passado em decomposigao da autora “nao é uma paisagem tranqiila repousando atrés de mim, um campo pelo qual possa perambular livremente, e que me mostrara gradualmente todas suas montanhas ¢ vales secretos. A medida que eu avangava, também ele se desintegrava”. A erosao do tempo afeta triste- mente 0 que resta das lembrangas. “A maioria dos destrogos que ainda podem ser vistos sio pilidos, distorcidos, congelados; seu significado me escapa, 9 do. “O principal motivo de o A propria certeza do presente torna ténue o pa passado ser to fraco é a extraordindria forga do presente”, sugere Carne-Ross. 38. Lived Time, p. 167. 39 Old Age, pp. 407-8. 74 Proj. Hist6ria, Séo Paulo, (17), nov. 1998 Tentar agora alcangar um verdadeiro “sentido do passado” € como olhar para fora de um quarto feericamente iluminado ao entardecer. Parece haver algo Ié fora no jardim, as formas incertas de drvores agitando-se na brisa, 0 esbogo de um caminho, talvez. o brilho da 4gua. Ou trata-se simplesmente de um quadro pintado na janela, como “As Fuirias” na pega de Eliot? Sera que ndo ha absolutamente nada 14 fora € que 0 quarto iluminado € a nica realidade?*” © passado também carece de consenso temporal. Dependendo do contetido e do contexto, 0 passado converte-se no presente a qualquer tempo, seja um instante ou uma eternidade atras. A época holocena ou “recente” encerra 0 passado geolégico por volta de dez mil anos atrés; 0 passado edafico e botanico se estende até poucos séculos atras; o assim chamado presente plausivel permite referirmo-nos a “este século” como se 1901 fosse “agora”. Algumas vezes 0 passado humano termina com nosso préprio nascimento; ocasionalmente coincide com 0 ano do calendario; freqiientemente invade 0 momento presente. Alguns passados permanecem a um intervalo constante atras de nés, Outros continuam recuando ou nos aleangando. O “Velho Oeste” sobrevive na memoria popular norte-americana como um perfodo que sempre termina cerca de quarenta anos atras; dentro de cinquenta anos, prediz um historiador, as pessoas afirmario que o finado idos de 1980." fvel embora intimamente conhecido, o Velho Oeste ainda estava vivo n Dubio devido 4 sua real auséncia, ina Ce: carater do passado depende de como ~ ¢ de quanto — é conscientemente apreendido. A mancira como tal apreensdo acontece, ¢ como molda nossa compreensao, é principal assunto deste texto. Memoria O pasado & 0 que vocé lembra, imagina que lembra, convence a si mesmo que lembra, ou finge lembrar Harold Pinter” Toda consciéncia do passado estd fundada na memoria. Através das lembrangas recuperamos consciéncia de acontecimentos anteriores, distinguimos ontem de hoje, confirmamos que ja vivemos um passado. 40 “Scenario for a new year: 3. the sense of the past”, p. 241. 41 L.B.Meyer, Music and Aris and Ideas, p. 169; Josephy, “Awesome space:... interpretations of the Old West” 42. Citado por Adler em “Pinter’s Night: a stroll down memory lane”, p. 462. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 75 A escala de significados comumente ligados 4 memoria, no entanto, transcende ¢ algumas vezes obscurece essas relagdes com 0 passado. Sistemas mnemOnicos atraem muita ateng&o e grande esforgo de meméria — recordando pessoas a serem vistas, coisas a serem feitas, caminhos a serem seguidos — enfocados no futuro."? Tais aspectos da memoria tocam apenas de forma tangencial 0 nosso conhecimento do passado. Mas enquanto 0 uso diério da meméria vai além do conhecimento do passado, grande parte das pesquisas psicolégicas negligencia tal conhecimento. A meméria de curto prazo do passado muito recente ¢ a lembranga do material recolhido monopolizaram a atengdo de psicélogos, pois esses topicos melhor se prestam a andlises laboratoriais quantitativas, que podem ser reproduzidas, nfo ajuizadas; “lembrangas” que duram menos de um minuto sao o principal enfoque dos textos contemporaneos sobre o assunto. Tao rec6ndi- tas so as preocupagées dos psicélogos que um deles, Ulric Neisser, afirma formalmente que “se X é um aspecto interessante ou socialmente significativo da meméria, entdo os psic6logos praticamente nunca estudaram X”. As pessoas quando inquiridas sobre 0 que as interessa a respeito da meméria, logo mencionam a incapacidade de recordar © inicio da infancia, as dificuldades para se lembrar de nomes e de compromis os, uma tia que poderia incansavelmente recitar poesias de cor, se a velha casa parece muito ou pouco mudada apés trinta anos de auséncia, discrepancias entre suas proprias lembrangas e as de outras pessoas, © prazer ou a dor da recordagio; sobre a maioria desses t6picos a pesquisa psicolégica nao tem virtualmente nada a dizer.“ Se o estudo cientifico da mem6ria natural ¢ cotidiana estd mais ativo do que ja foi, segundo afirma um resenhista de Neisser, ** os resultados ainda no foram difundidos a nao ser nas revistas especiali- zadas. Insight na utilizagio da meméria surge menos dos psicélogos do que dos ro- mancistas, historiadores ¢ psicanalistas; € em tais fontes que o livro Remembering in Natural Contexts, de Neisser, se fundamenta. A meméria comum, além de nao ser objeto de pesquisa académica, é também obstruida por uma mitologia enganadora. Um dos mitos que permanece afirma que a meméria consiste de inputs fisicos permanentemente armazenados no cérebro, que al- gum mecanismo pode trazer de volta A consciéncia presente; “eles podem remover quinze metros de seus intestinos”, como um senhor de idade comentou no hospital, 43° Meacham e Leiman, “Remembering (o perform future actions” 44 Neisser, “Memory: what are the important questions?” pp. 4-5. 45 Alan Baddeley, “Keeping things in mind”, New Scientist, 2 Sept. 1982, p. 636. 76 Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 “mas nfo podem retirar 50 segundos de sua memoria”.“* Outro mito largamente aceito assevera que a natureza e a capacidade potencial da meméria so iguais para todos ¢ incapazes de modificagdes fundamentais. Grande nimero de provas demonstram, ao contrario, que tanto aptiddes herdadas quanto experiéncias no decorrer da vida afetam a capacidade da meméria.” Um terceiro mito sustenta que as pessoas nas sociedades de tradigo oral (“primi- tivas”), por nao guardarem nem transmitirem pensamentos por escrito, tém memérias melhor desenvolvidas e tém repertério maior de recordagdes minuciosas do que pessoas de sociedades com escrita — uma crenga contestada por grande ntimero de provas.** Uma quarta visio predominante diz que quanto mais pudermos recordar, em melhor situagéio estaremos. De fato, deduzir e agir eficazmente ndo requerem meméria enci- clopédica, mas sim meméria altamente seletiva, além de capacidade de esquecer aquilo que deixou de ter importincia. Meu interesse maior aqui nestas paginas esta na natureza e no valor do co- nhecimento da memoria e nao no processo da meméria em si. Primeiro revejo o carater pessoal ¢ coletivo da meméria; prossigo mostrando como a lembranga sustenta nosso sentido de identidade; em seguida exponho até onde a “verdade” das lembrangas pode ser confirmada. Varios tipos de recordagao, desejadas ¢ espontiineas, adquiridas ¢ inatas, revelam aspectos diversos de coisas passadas, associados para mostrar 0 passado como um todo. A necessidade de se utilizar e reutilizar 0 conhecimento da meméria, e de im como recordar, forga-nos a selecionar, destilar, distorcer e transformar esquecer as © passado, acomodando as lembrangas as necessidades do presente. A meméria impregna a vida. Dedicamos muito tempo do presente para entrar em contato, ou manter esse contato, com algum momento do passado. Sao poucas as horas enquanto despertos que sao livres de recordagées ou lembrangas; somente concentragao intensa numa ocupagao imediata pode impedir 0 passado de vir espontaneamente a 46 Marcus Nathaniel Simpson, citado por Cottle and Klineberg em Present of Things Future, p. 49. 47. Neisser, “Memorists”; Gruneberg, Morris, ¢ Sykes, Practical Aspects of Memory, “Individual differences”, pp. 337-65; Belmont, “Individual differences in memory”. 48 Neisser, “Literacy and memory”; Vansina, Ora! Tradition, p. 40, A narrativa oral raramente envolve a meméria, palavra por palavra, como demonstrado por Milman Parry ¢ Walter B. Lord (Scholes and Kellogg, Nature of Narrative, pp. 21-3); somente a antiga Israel reverenciou a ipsissima verba (Ger- hardsson, Memory and Manuscript: Oral Tradition and Written Transmission in Rabbinic Judaism and Early Christianity, pp. 130-1), Veja abaixo, p. 200. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 77 mente. Mas as lembrancas que permeiam o presente esto agrupadas numa hierarquia de habito, recordagio e memento. O habito abrange todos resfduos mentais de atos e pensamentos passados, sejam ou no conscientemente relembrados. A recordagio, mais limitada que a memdéria comum, mas ainda assim impregnante, envolve consciéncia de ocorréncias passadas ou condigdes de existéncia. Mementos sao recordagées preciosas propositadamente recu- peradas da grande massa de coisas recordadas. Essa hierarquia assemelha-se as reliquias: tudo que é familiar tem alguma ligagZo com o passado € pode ser usado para evocar recordagdes; de uma grande quantidade de recursos mneménicos em potencial guar- damos alguns abrangente. A semelhanga de acervo de antiguidades, nosso repertério de lembrangas souvenirs para nos lembrar de nosso passado proprio ¢ de um mais preciosas esté em fluxo continuo, novas lembrangas sendo adicionadas constantemente, as velhas sendo descartadas, umas emergindo A superficie da consciéncia presente, outras submergindo sob a atengéo consciente.” Lembrangas, em todos esses aspectos, tendem a se acumular com a idade. Embora algumas estejam sempre se perdendo e outras se alterando, 0 estoque total de coisas recordaveis ¢ recordadas aumenta a medida que a vida transcorre e as experiéncias se multiplicam. Pessoal e coletivo O passado relembrado € tanto individual quanto coletivo. Mas como forma de cons- ciéncia, a meméria é total e intensamente pessoal; é sempre sentida como “algum acon- tecimento espectfico [que] ocorreu comigo”.®" Recordamos apenas nossas préprias ex- perigncias em primeira mio, 0 passado que relembramos ¢ intrinsecamente 0 nosso proprio passado, “Nao hé nada to unicamente pessoal para um homem quanto suas lembrangas”, observa B. S. Benjamin, “e ao proteger a privacidade delas, temos quase a impressio de estar protegendo 0 proprio alicerce de nossa personalidade.” Mas a meméria, por sua propria natureza, é inviolavel; é na privacidade que ocorre a maior parte do ato de relembrar ¢ “no precisamos aprender como manter privadas as nossas 49 Fred Davis, Yearning for Yesterday, p. 48; Piaget and Inhelder, Memory and Intelligence, pp. 387-8. 50. Earle, “Memory”, p. 13. 78 Proj. Historia, Sdo Paulo, (17), nov. 1998 recordagées”; elas assim permanecem a nao ser que decidamos torné-las pblicas. Mesmo assim nunca podem ser totalmente partilhadas; para outros, conhecer a minha mem6ria nao € absolutamente 0 mesmo que possui-la. “Embora falemos em compar- tilhar nossas lembrangas, no podemos compartilhar uma lembranga assim como n&o podemos compartilhar uma dor." O contetido do que lembramos torna-o, da mesma forma, singularmente pessoal: inclui detalhes pormenorizados ¢ fntimos de acontecimentos, relacionamentos e senti- mentos do passado. A lingua secreta que inventei, 0 medo que sinto pelo vizinho que nao gosta de meu cachorro, o desconforto de uma picada de abetha, o trauma de um brago quebrado so lembrangas de meus doze anos que ninguém mais pode ter. A privacidade fundamental das lembrangas da infancia de Austin Wright — um determinado astro do beisebol, um cantor de 6pera, um barco a vapor, um ice cream soda — 6 0 leitmotiv de seu livro Morley Mythology, no qual um visitante sinistro relembra Morley de coisas que Morley sabe que apenas cle poderia se lembrar. A meméria também transforma acontecimentos publicos em experiéncias pessoais idiossincraticas. Como parte essencial dos fatos sobre 0 New Deal, por exemplo, lem- bro-me da parcialidade de meus pais em relagio a Roosevelt, da animosidade de meus avés contra os sindicatos; a histéria politica tornou-se um anexo da histéria da familia. Coisas que nos estimulam a lembranga freqiientemente resultam em recordagées pes- soais mais frivolas. “A visio de um velho livro didético”, observa Frances Fitzgerald, “tem menor probabilidade de evocar a seqiigncia de presidentes ou a importincia da lei Smoot-Hawley Tariff Act, do que 0 cendtio de uma sala de aulas da oitava série”. Lembrangas pessoais também se assemelham & propriedade particular. “Reconhe- cemos imediatamente na meméria que nossas experiéncias passadas nos pertencem”, comenta um filésofo. “Uma vez que tenha colocado minha filha para dormir esta ex- periéncia permanece minha.” Realmente, alguns dio © mesmo valor ao seu passado pessoal que dariam a uma valiosa antiguidade. Congratulam a si mesmos por terem 51 Benjamin, “Remembering”, p. 171 52 As nostilgicas meditagdes trazidas por Fred Davis, no entanto, revelaram passados “secretos” que eram mais semethantes do que singulares (Yearning for Yesterday, p. 43). 53. America Revised, p. 17 54 R. G. Burton, “Human awareness of time”, p. 307. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 79 tido a experiéncia que recordam, dio muito valor as lembrangas que estimulam seu amor préprio.** Uma vez que sao inerentemente pessoais, muitas lembrangas se ext cada morte. “O amor de Helen morreu com a morte de algum homem’”, escreve Borges em cujo romance Tlén, Ugbar, Orbis Tertius, a permanéncia tangivel depende da meméria: “todas as coisas tendem a se apagar e perdem os detalhes quando sao esqueci- guem com das. Um exemplo classico é 0 vao da entrada de prédio que sobreviveu enquanto freqiientada por um mendigo e desapareceu com sua morte”.‘* Entre os suailes, os mortos que permanecem vivos na memGria dos outros so chamados de “mortos-vivos”; 86 estarfio completamente mortos quando o tltimo que os conheceu morrer.”” Incapaz de transmitir 0 seu repertério de lembrangas herdadas, a tinica ancia sobrevivente de uma antiga linhagem carrega o pesado fardo de ser the Last Leaf. “Geragées permane- cem vivas apenas na meméria vacilante de alguém cuja propria vida esté chegando ao fim”, de acordo com a descrigéo de um geriatra. “Sua mente é 0 caminho derradeiro comum, 0 Ultimo reservartério de tudo que se passou anteriormente em uma ramificagio da existéncia humana.” The Last Leaf “é tudo que 0 passado ainda tem para se apoiar ~ e ela sabe disso”.* Nem todos lamentam essa perda, para dizer a verdade. Com tanto sentimento preso ao passado, Anna Freud, j4 em idade avangada, nao conseguia com- partilhar suas recordagées “com o piblice leitor, ... portanto, me dou ao luxo de levar tudo comigo”.” A natureza intrinsecamente pessoal da meméria nao apenas a condena a final ex- tingdo mas torna defeituosa sua comunicagio do passado. Dtividas nos assaltam quando a lembranga & apenas pessoal. “Por néio ser compartilhada, a lembranga parece ficticia”, foi o que sentiu Wallace Stegner quando retornou & casa de sua infancia nas pradarias e “no encontrei nenhum colega de escola, nem uma tinica pessoa que tivesse compar- 55. Schachtel, Metamorphosis, p. 311 56 “The witness”; idem, “Tlon, Uqbar, Orbis Tertius”, p. 39, 57. Uchendu, “Ancestorcide! are African ancestors dead?", p. 287. “Enquanto 0 morto & relembrado pelo nome, ele nao esté ralmente “morto”; esté vivo... na meméria daqueles que 0 conheceram, assim. como no mundo dos espiritos”, ¢ isto pode continuar por quatro ow cinco geragées (Mbiti. African Religion &Philosophy, p. 25). 58 Kastenbaum, “Memories of tomorrow”, p. 204, 59 1977; citado por Muriel Gardiner em “Freud’s brave daughter”, Observer, 10 Oct. 1982, p. 31 80 Proj. Histéria, Séo Paulo, (17), nov. 1998 tilhado minhas experiéncias” da infancia. “Usei essas lembrangas por anos como se tivessem realmente acontecido; transformei-as em hist6rias e romances. Agora parecem ilus6rias e sem corroborago... Que poucas provas tenho de que cu préprio de fato vivi aquilo que recordo... tenho grandes suspeitas de estar me lembrando nao do que acon- teceu mas de algo que escrevi.”” As origens assim como a credibilidade das recordagées permanecem cobertas de dividas. Raramente podemos distinguir entre lembrangas primérias e secundarias, lem- brando as coisas a partir de lembrangas das lembrangas delas, “recordagdes nuas apés. a meditagao”*", escreveu Wordsworth. Recordando os dias da infancia em St. Ives, Vir- ginia Woolf parecia “estar observando as coisas acontecerem como se eu estivesse 14... Minha memoria fornece aquilo que eu havia esquecido, de modo que tudo parecia estar acontecendo independentemente, embora seja eu que as faga acontecer”.” Essas diividas envolvem outras pessoas; muitos acontecimentos que pensamos recordar a partir de nossa propria experiéncia, na realidade nos foram contados e entéo tornaram-se parte indistinta de nossa meméria. “Muito freqiientemente... quando me recordo de um acon- tecimento do meu passado, ‘vejo-me’, 0 que cu obviamente nao fazia no passado”, conta Paul Brockelman; por exemplo, “eu ‘me vejo’ saindo da cama” — cena prova- velmente narrada por sua mac." As recordag6es de outras pessoas sobre acontecimentos passados se encobrem e com freqiiéncia se mascaram, como se fossem nossas. Na verdade, precisamos das lembrangas de outras pessoas tanto para confirmar as nossas préprias quanto para Ihes dar continuidade. Ao contrario dos sonhos que sao absolutamente particulares, as lembrangas sao continuamente complementadas pelas dos outros. Partilhar e validar lembrangas torna-as mais nitidas e estimulam sua emergéncia; acontecimentos que somente nds conhecemos sio evocados com menos seguranga & mais dificuldade, No processo de entrelagar nossas proprias recordagées dispersas em uma narrativa, revemos os componentes pessoais pata adequar 0 passado coletivamente relembrado e, gradualmente, deixamos de diferencié-los.“ 60. Stegner, Wolf Willow, pp. 14-17. 61 Anscombe, “Experience and causation”, pp. 27-8; Fraisse, Psychology of Time, p. 162; Wordsworth, The Prelude, Liv Ml, linhas 614-16, p. 107. Vide também Mendilow, Time and the Novel, p. 219. 62 Moments of Being, p. 67. 63 “Of memory and things past”, p. 319. Vide também Martin ¢ Deutscher, “Remembering”. 64 Halbwachs, Collective Memory, pp. 23-5, 47-61, 75-8. Proj. Historia, SGo Paulo, (17), nov, 1998 8 O desenvolvimento tardio da memoria na infancia, e nossa ligagdo continua com parentes mais velhos e um mundo anterior, da mesma forma torna essa sobreposigao coletiva inevitavel. “Ninguém jamais é 0 primeiro, ou pode ser o primeiro, a saber quem 6”; sem as mintcias das lembrangas dos pais ¢ avés terfamos que inventar a maior parte de nés mesmos.®* Irmaos mais velhos também fornecem lembrangas que parcialmente excluem as nossas, comenta Anne Tyler: “Assim como a maioria das criangas menores, cle tinha dificuldades para relembrar seu proprio passado. Jé que os mais velhos o faziam tao bem por ele, por que ele iria se incomodar? Construiram-lhe uma meméria 66 de segunda mio que inclufa até mesmo os anos anteriores & sua existéncia”.” E possivel que talvez ele se incomodasse devido & necessidade de um passado que Ihe pertencesse exclusivamente, sugere Cottle; para dar forma aquela época é necessdrio que ele saia de casa ou espere até a morte dos pais e a partida dos irmaos.” Mas de qualquer modo, © que relembramos da infancia est imerso em um mar de hist6ria familiar e geral e, assim, carrega a sua marca. “Correndo paralelo as quest6es puiblicas”, nas palavras de Lively, “seus préprios atos [estdo] entrelagados com a estrutura mais tosca e indestrutivel da historia”. Damos muito valor a essas conexdes com o passado mais abrangente. Satisfeitos de que nossas lembrangas nos pertencem, buscamos também ligar nosso passado pessoal A meméria coletiva e a histéria pablica. As pessoas recordam vividamente seus préprios pensamentos e€ agdes em momentos de crise ptiblica porque se agarram A oportunidade ‘0. Grande numero daqueles com idade sufi- de conectar-se com um cosmos significat ciente para relembrar os assassinatos de Lincoln ¢ Kennedy, também se recordava vivi- damente, muitos anos mais tarde, de sua propria situagdo naquele momento: onde estavam, quem lhes contou, 0 que estavam fazendo, como reagiram, o que fizeram em seguida.” Mas essas recordages sdo freqiientemente tdo erréneas quanto vividas. Re- a Jervis Anderson, “Sources”, p. 112. Erasmus (Copia, sec. 172, pp. 539-40) distingue as lembrangas da propria vida (nostra aetate) das lembrangas de coisas vistas € ouvidas de geragdes mais velhas (nostra memoria) & lembrangas transmitidas de bisavés ¢ ancestrais remotos (patrum memoria). 66 Clock Winder, p. 293. 67 Time's Children, p. 63 68 Lively, According to Mark, p. 27 69 Colegrove, “Day they heard about Lincoln”; Roger Brown ¢ Kulik, “Flashbulb memories"; Linton, “Memory for real-world events”, pp. 386-7. 82 Proj. Historia, Séo Paulo, (17), nov. 1998 almente, as gritantes imprecisSes enfatizam a questdo: as pessoas est4o tao ansiosas para fazer parte da “hist6ria” que falsamente “recordam” suas reagdes, ou até mesmo sua presenga em acontecimentos importantes.” Memoria e identidade Relembrar o passado € crucial para nosso sentido de identidade: saber 0 que fomos confirma 0 que somos. Nossa continuidade depende inteiramente da meméria; recordar experiéncias passadas nos liga a nossos selves anteriores, por mais diferente que te- nhamos nos tornado. “Como apenas a memoria permite conhecer a... seqiiéncia de percepgdes”, argumenta Hume, “deve ser considerada... como a fonte de identidade pessoal. Nao tivéssemos meméria, nunca terfamos tido nenhuma nogao... dessa cadeia de causas e efeitos que constituem nosso self ou pessoa.””' Os gregos identificavam o passado esquecido com a morte; exceto por alguns poucos privilegiados, os mortos nao possuiam lembrangas.” Os amnésicos sofrem perda similar. “Nao senti nada”, disse 0 homem que perdeu a meméria por varios anos; “quando nao se tem meméria, nao se tem sentimentos”. significado. Conforme Gabriel Garcia Marquez intui a dificil situagao de um amnésico, “a recordagao da infancia comega a se apagar de sua meméria, depois 0 nome e a nogdo das coisas, ¢ finalmente a identidade das pessoas, e até mesmo a consciéncia A perda de meméria destréi a personalidade ¢ priva a vida de de seu préprio ser, ... até que mergulha numa espécie de imbecilidade que nao tem passado”.”* Sintetizamos a identidade nao apenas ao evocar uma seqiiéncia de reminiscéncias, mas sim ao sermos envolvidos, como 0 Orlando, de Virginia Woolf, em uma teia de 70 Buckhout, “Eyewitness testimony”, p. 119: Neisser. “Snapshots or benchmarks?” O vigésimo aniversario do assassinato de Kennedy foi marcado por artigos apresentando recordagdes de onde as pessoas tinham estado € 0 que faziam quando ouviram a noticia, TI Treatise of Human Nature, Liv I, sec. 6, 1:542. Vide Biro, “Hume on self-identity and memory”, p. 29. 72 Eliade, Myth and Reality, p. 121; S.C. Humphries, “Death and time”, pp. 274-5. 73. Theo Goossens, citado por Marjorie Wallace em “The drug that gave his memory back”, Sunday Times, 24 Abril 1983, p. 13. O clissico amnésico € Man with a Shattered World, de Luria, especialmente pp. 87-108; para uma comparagio recente, vide Oliver Sacks, “The lost mariner”, N.Y. Review of Books, 16 fev. 1984, pp. 14-19. 74 One Hundred Years of Solitude, p. 46. Proj. Historia, Sdo Paulo, (17), nov. 1998 83 retrospecgdo unificadora.”> Os grupos também mobilizam lembrangas coletivas para sustentar identidades associativas duradouras, da mesma forma que os instrumentos le- gais conferem As companhias ¢ as propriedades privadas imortalidade em potencial.” Nenhuma sintese pessoal pode ser completa: nao nos lembramos de ter nascido, esquecemos muito e nos tornamos alienados da maior parte do nosso passado. E alguns “vivem vidas mais momentaneas, separadas e fragmentadas do que outros”, deixando para tras grande parte “de detalhes concretos de suas vidas”, no se relacionando sig- nificativamente com experiéncias € sentimentos passados. Em contraste, ressalta um filésofo, “aqueles que trazem mais de secu passado para 0 presente” confirmam sua propria identidade e enriquecem o presente com os residuos amplificados do passado.”” Conforme coloca Mr. Sammler, “Todos precisam de suas lembrangas. Elas evitam a miséria da insignificancia”.”* A percepgao de que a meméria forma a identidade é relativamente recente. Na yerdade, a meméria ajudou a afastar 0 horror do esquecimento, tanto para os antigos gregos como para os europeus da época renascentista e medieval, mas as memérias assim preservadas eram geralmente péstumas.” Vidas eram concebidas n@o como con- tinuidades diacrénicas, mas como exemplos de princ{pios universais, constantes. A iden- tidade individual era fixa, consistente e totalmente investida no presente. Ja bem adi- antado 0 século XVIII, até mesmo os pensadores consideravam a vida como “uma sucessio descontinua de satisfagdes sensoriais” intercaladas com reflexdes abstratas, segundo Starobinski, com “acontecimentos imprevistos ¢ excessos momentaneos” apre- sentando episédios sucessivos nao relacionados. “Tais vidas nao tinham objetivo dis- tante, nenhuma finalidade além dos limites do momento iminente.”*’ As identidades reveladas nas autobiografias e romances do século XVIII permanecem as mesmas através dos tempos; os acontecimentos nao afetam uma consciéncia maledvel, mas sim- 75. Shore, “Virginia Woolf, Proust, and Orlando”, p. 242. 76 Halbwachs, Collective Memory, p. 143. 77 Ehman, “Temporal self-identity”, p. 339. 78 Bellow, Mr. Sammler's Planet, p. 190. 79 Vernant, “Death with two faces”; Quinones, Renaissance Discovery of Time, pp. 84-5, 232-3; S.C. Hum- phries, “Death and time”, p. 270. 80 ki, Invention of Liberty 1700-1789, p. 207. Vide também Poulet, Studies in Human Time, pp. 84 Proj. Histéria, SGo Paulo, (17), nov. 1998 plesmente figuram como momentos fortuitos em modos de vida livres de conexdes introspectivas com estdgios anteriores na vida." Mesmo depois que os homens comegaram a fazer tais conexdes entre vida ¢ histéria, eles continuaram inseguros quanto a sua validade. “Os mesmos artefatos estado diante de nds — as coisas inanimadas que contemplamos na infancia instével e na juventude impetuosa, na idade adulta ansiosa e astuta — séo permanentes e sempre os mesmos”, como disse Jonathan Oldbuck de Walter Scott; “mas quando os consideramos com a frieza © serenidade da idade avangada, seré que podemos, modificados em nosso tem- Pperamento, em nossas atividades, em nossos sentimentos - modificados em nossa aparéncia, em nossos corpos e em nossa forga - considerarmo-nos os mesmos? ou seré que olhando em retrospecto nao considerariamos 0 nosso antigo self como um ser separado e distinto daquilo que agora somos?” A percep¢ao da meméria como chave para o autodesenvolvimento, assegurando € ampliando a identidade através da vida, foi uma revelagao do final do século XVIII, cuja tinica precursora havia sido a narragdo biblica. A identidade sancionada pela memGria passou entdo a incorporar a mudanga. “Somos nés mesmos, sempre nés mes- mos, € nem por um minuto os mesmos”, nas palavras de Diderot.“ E a identidade durante toda a vida assegurou a realidade do passado: j4 que o self subsistiu apesar da mudanga, 0 passado também deve ter sido real. Seguidores de Rousseau e Wordsworth comegaram a perceber seus selves da in- fancia constituindo sua identidade adulta, e, conseqiientemente, a encarar a vida como uma narrativa interligada; poucas décadas depois, a relagdo do sentido do passado com a meméria pessoal tornou-se parte do preparo mental e das expectativas, ao menos das pessoas instruidas." Repetidas impressdes reforcaram o presente com experiéncias relembradas. A percepcio da meméria estimulou graus de consciéncia de si mesmo 81 Spacks, Imagining a Self: Autobiography and Novel in Eighteenth-Century England, pp. 8-11, 284-5. Vide também More, “Criticism”, pp. 241-2; Ellis, “Development of T. S. Eliot’s historical sense”, pp. 293-5. 82. The Antiquary (1816), p. 91 83. Scholes e Kellogg, Nature of Narrative, pp. 123-68; Walter Kaufmann, Time is an Artist, pp. 36-40. 84 Refutation suivie de Vouvrage d’'Helvétius intitulé L'Homme (1773-4), 2:373. 85. Salvesen, Landscape of Memory: A Study of Wordsworth's Poetry, pp. 42-4; Weintraub, “Autobiography and historical consciousness”, pp. 835, 843-4; idem, Value of the Individual, Proj, Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 85 anteriormente desconhecidos, freqiicntemente narcisistas e autobiograficos, geralmente inundados de sensibilidade do Romantismo. “Hoje, quando nossa literatura ¢ toda a conduta de vida so impensdveis sem 0 sentido do tempo e do passado”, escreve Chris- topher Salvesen, “quando praticamente nenhuma emogio pode ser sentida sem alguma referéncia a uma experiéncia anterior ou A infancia”, é dificil perceber que esse sentido de continuidade pessoal era raro antes do século XIX." No final do século, a preocu- pagdo consciente de si mesmo com o passado tornou-se uma caracteristica fundamental da psicandlise: nas palavras de Morse Peckham, da mesma forma que Wordsworth em The Prelude havia historicizado a personalidade, assim também Freud pretendeu fazer de cada um de seus pacientes um Wordsworth.” Mas desde entio nos tornamos bem menos confiantes ao relembrar 0 passado. Os sinais que agora recordamos muitas vezes parecem confusos, até contraditorios em si mesmo; as lembrangas que nos definem tendem a ser tacitas em vez de explicitas, somiticas em vez de conscientes, involuntdrias em vez de deliberadas. Habitos modernos de auto-andlise tornam dtibia a integridade de nosso préprio passado relembrado. E a freqiiéncia com que atualizamos e reinterpretamos nossa meméria enfraquece a identi- dade temporal coerente. “O que costumava ser tabu torna-se de rigueur, 0 que costumava ser Obvio torna-se risivel” quase da noite para o dia, conclui Peter Berger. “Passamos a vida remodelando nosso calendario de dias santos, erguendo e demolindo novamente ‘os marcos que assinalam nosso progresso através dos tempos, rumo a realizagGes con- tinuamente redefinidas.”"** Essas memorias constantemente reajustadas raramente sao integradas em qualquer autodefinig&o consistente. “Na verdade, tropegamos como bébados sobre a tela estendida da nossa auto-concep¢ao, jogando um pouco de tinta aqui, apagando alguns tragos ali, sem de fato nunca nos determos para obter um panorama da semelhanga que produzi- 86 Landscape of Memory, p. 172. A pressuposigao de Levine de que “todos os individuos normais em todas as sociedades se véem como entidades continuas ... desde suas primeiras lembrangas até o presente, imaginam-se num contexto cronolégico” e se concentram em “objetivos de longo prazo que repre- sentam uma performance cumulativa rumo a uma carreira culturalmente definida” (“Adulthood and aging in cross-cultural perspective”, p. 2) € refutada por todas as evidéncias histéricas. 87 “Afterword: reflections on historical modes in the nineteenth century”, p. 279. “Psychology became history; personality became history; the manifestation of the self became history” (Peckham, Triumph of Romanticism, p. 46). 88. Berger, Invitation to Sociology, pp. 72-3. 86 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 mos.” O ritmo e a finalidade da mudanga impedem uma visdo consistente de si mesmo fundamentada na meméri . No entanto, poucos tém condigdes de perceber essa defi- ciéncia; € muito doloroso admitir as discrepancias existentes entre as préprias visdes do presente e do passado. “Ninguém :¢ sente bem ao saber que nao pode recordar um passado continuo, se assim o desejar”, segundo as palavras de Jan Vansina, pois “a crenga a respeito da continuidade ou descontinuidade das opiniées [sobre si mesmo] no passado é a parte central de toda personalidade”. ® Condigéo de confirmagéo A natureza subjetiva da meméria torna-a um guia a um s6 tempo seguro e dibio para o passado, Sabemos quando temos uma lembranga, e seja ela verdadeira ou falsa, essa meméria relaciona-se de alguma forma ao passado. Até um equivoco de meméria envolve a recordacao, ainda que distorcida, de alguma coisa; nenhuma meméria € to- talmente enganosa. Na verdade, uma falsa recordagdio na qual se cré firmemente torna-se um fato por si sé.”! As lembrangas inspiram confianga porque acreditamos que elas foram registradas na época; elas tém status de testemunha ocular. E as lembrangas em geral so dignas de crédito prima-facie porque sio consistentes. Lembrangas especificas freqiientemente revelam-se enganosas ou até mesmo inventadas, porém permanecemos confiantes a res- peito de quase todas elas porque sdo coerentes; entrelagam-se bem demais para serem descartadas como ilusées. E nZo podemos contestar todas as nossas lembrangas, con- forme ja foi acima observado, ou a experiéncia presente nado faria nenhum sentido. No entanto, no ha confianga que ateste a veracidade de nenhuma lembranga especifica, Lembrar-se de algo é, na melhor das hipéteses, considerd-lo provavel; embora suas conseqiiéncias presentes ou futuras possam confirmar algumas lembrangas, elas 89. Ibid., p. 75. 90 “Memory and oral tradition”, pp. 266, 269. Foi no final do século dezenove que 0 sentido de coeréncia deu lugar ao de descontinuidade, acredita Jackson Lears (No Place of Grace, pp. 36-8; Foucault situa tal mudanga um século antes (Order of Things, pp. 367-70). 91 Burton, “Human awareness of time”, p. 308; Roy Schafer, A New Language for Psychoanalysis, pp. 29-50; idem, Psychoanalytic Life History. Proj. Historia, Sado Paulo, (17), nov. 1998 87 somente podem ser confirmadas quando comparadas com outras recordagées do passado, nunca com o passado em si.” O carater pessoal das lembrangas aumenta a dificuldade de confirmé-las. Ninguém mais pode comprovar inteiramente nossa experiéncia tnica do passado. Lembrangas que se demonstraram incorretas ou inexatas no so, por conseguinte, dispensadas; uma recordagdo falsa pode ser to duradoura e poderosa quanto uma verdadeira, especial- mente se ela sustenta uma auto-imagem. ‘Fiz isso”, diz minha memoria. “‘Eu nao poderia ter feito isso’, diz meu orgulho e permanece inexordvel”, escreveu Nietzche: “Com o tempo a memoria capitula”.”* A meméria ndo apenas capitula; ela também muda, freqiientemente de modo im- perceptivel. A fragilidade da recordagao é uma experiéncia comum. Atormentados com iam que até mesmo os as mudangas incorretas da Tord, os legisladores judeus insi copistas, lendarios por seus feitos mneménicos, ndo deveriam transcrever nem uma inica letra sem o texto diante dos olhos.** Tal precaugdo € excepcional: no geral, de- positamos injustificada confianga em nossas proprias lembrangas, raramente ques- tionando sua confiabilidade. No entanto, percebemos que os outros geralmente recordam menos do que pensam, imaginam parte do que acreditam recordar, e dio nova forma s imagens de si mesmo do presente.”® ao passado para adequa-lo A receptividade do testemunho de John Dean sobre o caso Watergate, no Senado americano, exemplifica a crenga na suposta infalibilidade de uma meméria detalhada. Dean péde expor os subterfiigios do presidente Nixon porque as minticias de suas lem- brangas de conversas com Nixon, Ehrlichman e Haldeman convenceram os senadores de sua exatiddo. A meméria de John Dean confirmou de fato aquilo que surgiu como sendo a verdade corrente sobre Watergate. Mas a comparagao com as fitas das conversas reais na Casa Branca revela disparidades gritantes entre o que Dean disse e ouviu e 0 que ele pensou e alegou ter dito e ouvido. Embora Dean transmitisse 0 cerne das con- versas, foi apenas onde ele ensaiara muitas vezes sua fala que péde reproduzir algo que 92 Lewis, Analysis of Knowledge and Valuation, pp. 334-8, 353-62. 9: Beyond Good and Evil, p. 86; citado elogiosamente por Freud numa anotagao incluida em 1910 a Psychopathology of Everyday Life, p. 1470. 94 Gethardsson, Memory and Manuscript, pp. 29, 46; Stratton, “Mnemonic feat of the “Shass Pollak” 9 Spacks, Imagining a Self, p. 19 para confianga na meméria no séc. 18; Berger, Introduction to Sociology, P. 71, para nossa propria época. 88 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 se aproximasse do relato textual; no restante, quase nenhum detalhe correspondia aos fatos.”* Tipos de memoria As lembrangas so tio multiformes quanto sugere a relagdo suscitada por Brockelman: Lembro-me onde ~ quando crianga — costumava me balangar, e me lembro da sen: do ar fustigando o meu rosto. Eu me lembro de quem venceu Napoleio em Waterloo, & me lembro que 8 x 9 & igual a 72. Nao me esqueci de como manejar o taco de beisebol; € me lembro — no, sinto novamente em minhas pernas e pulsos trémulos e em meu estémago, a ndusea ~ 0 terror que senti quando o capitio fez de mim um “voluntério” na primeira missio de busca ¢ ataque no Vale de Ashau. Eu me lembro da festa do meu casamento ~ da miisica, dos amigos, da comida, do vinho; mas (6 Deus!) nao consigo me lembrar do rosto de meu melhor amigo que morreu hé um ano... Existem memérias de todos os tipos, e elas me impregnam e me definem.”” Nem todas essas espécies de recordagio fornecem perspectivas sobre 0 passado — covamos Os dentes, manejamos um taco de beisebol sem re- cordar como ou quando aprendemos a fazer tais coisas. O aprendizado semantico memo- andamos, escrevemos, e: tizado — a tabuada, os versos de um poema, a estrutura dos aminodcidos, as capitais dos paises, o nosso repertério acumulado de palavras, fatos ¢ significados — ndo esclarece o passado no qual ele foi obtido. A capacidade de recitar um poema nado me permite dizer quando, onde ou como o aprendi, nem recordar as outras vezes em que o recitei; reconhego um amigo na rua mas nao tenho consciéncia de encontros anteriores que possibilitam esse reconhecimento.” E certo que alguns fatos memorizados sao histéricos em si mesmos — os soberanos da Inglaterra, os presidentes dos Estados Unidos, qualquer seqiiéncia cronolégica. Memorizar ajuda-nos a saber sobre 0 passado situando tais acontecimentos no tempo mas, a nao ser que estejam relacionadas a outros aspectos da histéria, as datas que cobrem a €poca da presidéncia de Washington nao transmitem nenhum sentido do passado. 96 Neisser, “John Dean's memory”. 97 Of memory and things past”, p. 309. 98 Russell, Analysis of Mind, pp. 166-7; Waters, “The past and the historical past”, p. 254. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 89 Para se estar em contato com o passado requer-se uma rememoragéio que € nor- malmente consciente, freqiientemente consciente de si mesma. Ao contrério da meméria semantica e da meméria motora-sensorial, a assim chamada meméria episddica re- laciona-se a acontecimentos especificos em nossa vida.” Recordamos 0 passado como um amontoado de ocasides distintas, reconhecidamente diferentes e, no entanto, nao completamente diferentes do presente: diferente o bastante para saber que se trata de uma outra época, semelhante o bastante para nos tornar cientes de nossa continuidade com ele. A intensidade da recordagaio episédica varia segundo seu propésito. Menos evoca- tiva é a memoria instrumental cotidiana — lembrar o nome de um amigo, onde jantamos no feriado ou quando pagamos o aluguel. Tal recordagao ressuscita fatos, nZio senti- mentos: “Em que ano estive internado no Hospital Lariboisigre? Deixe-me ver, foi dois anos apés a morte de minha irma; foi em 1911" — reag6es a internagdo no hospital ou A morte da ima nao se impdem.'” A memoria instrumental se abstrai dos acontecimen- tos anteriores sem evocar as sensagdes que os acompanharam. O passado relembrado instrumentalmente € uma paisagem convencional e estéril. Na planicie uniforme do tempo, desolados cumes cronolégicos, tinicos sobreviventes de ambientes outrora ricos, ocupam nossa atengio. Cenarios e acontecimentos nao sao recordados, somente a ordem € local onde aconteceram. Tal “meméria reflete a vida como uma estrada com ocasionais placas de sinalizagdo ¢ marcos de quilometragem”, escteve 0 psicanalista Ernest Schachtel, “e nao como a paisagem através da qual essa estrada nos conduziu”. Identificamos os eventos marcantes para onde apontam as placas ; “nfo a abundancia concreta de sinalizagdo, mas pouco recordamos dos eventos em de vida [mas] apenas 0 fato de que tal evento aconteceu”.'” Convengées sociais adultas fazem predominar a meméria instrumental. Criangas véem © ouvem o que ocorre; adultos véem ¢ ouvem o que deles se espera ¢ lembram 99 Tulving, Elements of Episodic Memory, pp. 17-120; vide também “acontecimento” € meméria “factual” em Perry, “Personal identity, memory, and the problem of circularity”, p. 144. Recordagao repetida pode transformar a meméria episédica em seméntica, como as recordagdes ensaiadas de John Dean tormando-se estiveis, imutaveis ¢ divorciadas do sentido de self. Vide Flavell, Cognitive Development, pp. 184-9. 100 E. Pichon, “Essai d’étude convergente des problémes du temps’ (1931), citado por Minkowski em. Lived Time, p. 152. 101 Schachtel, Metamorphosis, p. 287. 90 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 principalmente o que eles pensam que devem lembrar. O fato de lembrarmos pouco dos primeiros anos de nossa vida deriva menos da represso do que da perda de recor- dagGes sensfveis, experiéncias estas que os adultos nem ao menos conseguem imaginar experimentar. Os esquemas da meméria adulta ndo tém espago para odores, sabores ¢ outras sensagées vividas, ou para o pensamento pré-légico e magico da primeira infan- cia; se a experiéncia profundamente sentida for socialmente inadequada, ela nao se registra ou é esquecida.'’ A recordagao instrumental é um conjunto significativo de sinais e marcos que lembram um mapa rodovidrio, um guia de viagem, um calendario. Muitas lembrangas sofrem desgaste similar: os individuos submetidos as famosas ex- periéncias de Bartlett reduziram as histérias complexas que deviam recordar a pequenas hist6rias bastante convencionais de modo a tornd-las “aceitdveis, compreensiveis, ade- quadas ¢ dirctas”.!" Ao contrario da recordagao instrumental, 0 devaneio inclui e até mesmo realga sentimentos relembrados. Os devaneios revelam imagens explicitas, mas evidentemente incompletas do passado, aspectos especificos de cenas passadas que nos tornam cons- cientes de que poderia haver mais para recordar. Para recuperar uma impressao perdida, para ver e sentir novamente 0 que experimentamos antes, nos é exigido com freqiiéncia um esforgo deliberado no inicio, apés 0 qual estados de devaneio se auto-engendram. A meméria afetiva de maior intensidade revela um passado tao rico e vivido que nés quase 0 revivemos — como 0 critico que quando fechava seus olhos no se “lem- brav: em Veneza, Brockelman diz que consegue “ver os prédios, eu ougo a conversa, sinto a textura da cadeira na qual me sento;... sinto o cheiro da brisa que vem da bafa, ougo do filme Kagemusha, mas sim “o via novamente”."™ Ao recordar sua estadia a nuvem de pombos a meus pés; sinto a frustragdo que senti, e meu corago se confrange enquanto ‘aguardo de novo’ a chegada do meu amor... posso permanecer aqui sentado em meio a recordagdes ¢ quase me perco, quase passando suavemente para 0 interior do passado”." 102 Ibid., pp. 279-322; Piaget and Inhelder, Memory and Intelligence, pp. 378-401; Albert J. Solnit, palestra no University College London, 6 margo, 1984. 103 Bartlett, Remembering (1932), p. 89. Os criticos sugerem que os sujetos de Bartlett fizeram mudangas Uo extensas porque foram pressionados a reproduzir lembrangas coerentes e acabadas (Gauld e Stephenson, “Some experiments relating to Bartlett's theory of remembering”). 104 Robert Hatch, “Films”, The Nation, 15 nov. 1980, p. 522. 105 “Of memory and things past”, p. 321 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 91 Nao € a introspecgdo que revela essas recordagdes intensificadas, mas a casual reativagdo de sensagGes esquecidas, quase sempre um toque, um odor, um sabor ou um nostélgica dos Alpes, o que estimulou a meméria de Cow- som. Assim como a melo per foi o sino da aldeia: Cristalino sonoro, enquanto avanga 0 vendaval! Com forga suave cle abre todas as alcovas Onde a meméria dormia, Seja onde for que cu tenha ouvido Uma melodia afim, a cena retoma vividamente & meméria, E com ela todos seus prazeres ¢ pesares.' Um irresistivel “reconhecimento antigo e dificil de suportar” do passado chegou a Stegner “em parte por meio das criangas, da passarela e da suave curva do rio, mas muito mais através do odor. Pois aqui, pungente e penctrante, encontra-se o cheiro que sempre representou minha infancia”, composto pela Agua do rio, lama, tabuas tmidas dos bancos, o trampolim com ponteira de estopa, que por um momento transformaram a meméria em realidade.'” Tal recordagao parece visceral; na frase de Proust, “nossos bragos e pernas esto cheios de lembrangas entorpecidas”.'* Essas recordagées intensas so singularmente involuntérias, e quanto mais vivida a sensagdo menos acessivel ela é & recuperagdo deliberada. Mas embora surjam invo- luntariamente, tais aparicdes surgem apenas se realmente as desejarmos. Uma recordagao (Zo intensa € freqiientemente angustiante; até mesmo uma lembranga agraddvel pode evocar dolorosamente um conflito antigo. Como na terapia analitica, tais acontecimentos relembrados perdem sua influéncia coercitiva e se apagam no passado indefinido somente quando esse conflito foi resolvido.' Certas recordagées intensas parecem trazer 0 passado nao apenas de volta a vida, mas A existéncia simulténea com o presente, fazendo-o parecer “mais préximo do que © presente, 0 qual tanto assombra quanto hipnotiza”.'” De Quincey descreve uma se- 106 The Task (1785), Liv V1, linhas 10-14, p. 220. 107 Wolf Willow, p. 18. 108 Remembrance of Things Past, 3:716. 109 “Revivido de fato em toda sua intensidade”, o passado “parece ser, mesmo no caso de uma recordagio agradével, dor agonizante” (Pichon, “Essai ... des problémes du temps”, citado por Minkowski em Lived Time, p. 152; vide também pp. 159-61). Vide Poulet, Studies in Human Time, p. 298. 110 Shattuck, Proust's Binoculars: A Study of Memory, Time, and Recognition in “A la recherche du temps perdu”, pp. 48-9; vide Shore, “Virginia Woolf, Proust, ¢ Orlando”, pp. 237-41 92 Proj. Histéria, Sdo Paulo, (17), nov. 1998 nhora idosa cuja paramnésia combinava recordagio completa com confluéncia temporal: “Em um momento, num piscar de olhos, cada ato, cada aspecto de sua vida passada revivia, ordenando-se nao como uma sucesso mas como partes de uma coexisténcia”.'"! Como “déja vu” — a sensagéio de que j4 vimos antes 0 que sabemos estar vendo agora pela primeira vez — a paramnésia funde um passado e um presente ainda distinguiveis. Poulet rastreia essa experiéncia obsessiva, freqiientemente induzida pelo épio, de Rous- seau a Coleridge, Byron, Blake e Swedenborg, até De Quincey, Baudel: “As vezes tenho a impressio de haver vivido 70 ou 100 anos em uma noite”, relatou De Quincey, que amplificou o tempo de experiéncia para obter uma ilusio de eternidade, ampliando a curta duragiio da vida com 0 maior ntimero possivel de lembrangas.""? O livro Em busca do tempo perdido, de Proust, foi “uma busca infinita para trazer o passado de volta ao presente, 0 passado nao como passado, néo como uma série de Pontos no tempo, mas como um todo simultanco inteiramente recuperado”.""4 Mas o estado paramnésico impossibilita os viciados de fazerem a distingdo entre passado c presente — talvez até mesmo entre vida e morte. Caminhando por uma cidade em 1928, Borges fazia conjecturas sobre sua infincia, e repentinamente “o simples pensamento de que estou vivendo em mil oitocentos e... deixou de ser um conjunto de palavras semelhantes e mergulhou em uma realidade. Eu me senti morto, como um observador abstrato do mundo”, incapaz de separar “um momento pertencente a seu passado apa- rente de outro pertencente a seu presente aparente”.'' Cada tipo de recordagdo subtende sua prépria perspectiva sobre 0 passado. A meméria instrumental nao possui envolvimento; seu passado esquematizado aponta sim- plesmente para o mais importante presente. O devaneio recorda sentimentos especificos © nos incentiva a comparar modos de ser passados com modos de ser presentes. A Tememoragao total nos joga a contragosto no passado; o presente é oprimido por acon- tecimentos anteriores tio importantes ou traumaticos que eles so revividos como se IIL Suspira de Profundis (1845), p. 245. 112 Timelessness and Romanticism’ réplica de uma sensago passada Things Past, 3:907). 113 Confessions of an English Opium-Eater (1822), p. 115. i era uma mera sensagiio andloga nem mesmo um mero eco ou era aquela propria sensagio passada” (Proust, Remembrance of 114 Poulet, “Timelessness and Romanticism”, p. 22. 115 “A new refutation of time”, p. 55. Compare esse desespero com 0 protagonista de James em Sense of the Past. Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 93 praticamente estivessem ainda ocorrendo. As recordagées de guerra de Minkowski exemplificam essas distingGes: “Atitudes completamente diferentes relativas ao passado esto em agiio quando narramos 0 que fizemos durante a guerra, quando tentamos reviver © que sentimos durante aquele suplicio, e, finalmente, quando o sentimos ainda presente cm cada fibra de nosso ser, quando o sentimos nessas condig6es cle se transforma em uma parte de nosso presente até mesmo mais do que o presente de ‘fato”.\° Normalmente, no entanto, a meméria justapde esses tipos de recordagao, con- tinuamente enfatizando ora um ora outro. Todo 0 continuum desde a lembranga funcional passando pelo devaneio até a imerso virtual em um tempo passado molda conjun- tamente nossa percep¢do do passado relembrado. Originando-se desses desiguais niveis de apreensio, esse passado pode parecer confusamente multiforme. Ainda assim a meméria, apesar de multiforme, parece ser uma distinta categoria da experiéncia, Re- cordar a sensagiio da areia entre os dedos dos pés na praia é bastante diferente de recordar onde deixamos as chaves de casa, nao obstante estarmos conscientes de que ambas envolvem a percepgdo do passado. Esses niveis de meméria nao estao segregados; nés os sentimos como um conjunto. A recordagdo instrumental mescla-se com a recor- dagio espontanea; sonhamos de olhos abertos sobre aquelas férias de verdo ao mesmo tempo que tentamos lembrar onde colocamos aquelas chaves. Modos diferentes de lem- brar permitem perspectivas dessemelhantes dentro do passado, mas 0 processo de re- cordar funde todas elas. E, na verdade, eles t&m mesmo algo em comum. Toda meméria transmuta experién- cia, destila 0 passado em vez de simplesmente refleti-lo. De tudo 0 que é exibido no meio ambiente, recordamos apenas uma pequena fragao daquilo que nos é impingido. Assim a meméria filtra novamente 0 que a percepgao jé havia filtrado, deixando-nos somente fragmentos dos fragmentos do que inicialmente estava exposto. Esquecer Para que a memiria faga sentido devemos esquecer quase tudo 0 que vimos, para evitar que nos tornemos semelhantes a “Funes, 0 Memorioso”: 116 Lived Time, p. 153. 94 Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 Ele se lembrava das formas das nuvens austrais do amanhecer do 30 de abril de 1882 e podia comparé-las em sua recordago aos veios marméreos da encadernagao em couro de um livro que vira somente uma ver ¢ as esteiras de borrifo d’dgua que um remo sulcou no rio Negro na véspera da batalha do Quebracho... Funes recordava ndo apenas cada folha de cada arvore de cada bosque, como também cada uma das vezes que a tinha percebido ou imaginado... “Minha meméria, senhor, € como despejadouro de lixo”. O peso dessas recordagées desarticuladas e aleatérias mostra-se ao final intoleravel. “Pensar € esquecer uma diferenga, generalizar, abstrair, No mundo transbordante de Funes nao havia nada a nao ser detalhes.”""” As lembrangas precisam ser continuamente descartadas e combinadas; somente 0 esquecimento nos possibilita classificar e estabelecer ordem no caos. “Uma importante condigéo para o lembrar", como coloca Whitrow, “é nossa capacidade de esquecer. Como Henry James, devemos deliberadamente circunscrever nossas recordagbes: “A caixa de retalhos da memoria estava dependurada em um gancho no meu armario, embora eu aprendesse com o tempo a controlar 0 hdbito de abri-la”.'"” A meméria a qual se recorre com demasiada freqiiéncia nao mais vivifica 0 presente mas sim o volt inunda. De fato, lembrar mais do que uma pequena fragiio do nosso passado consumiria um tempo absurdamente enorme. Assim como Tristam Shandy, que levou um ano para ida inteira para registrar recontar apenas o primeiro dia de sua vida, “levarfamos uma uma vida inteira’, observa Charles Rycroft, “c qualquer um que tentasse escrever um telato detalhado de sua vida seria apanhado num retrocesso infinito, sendo obrigado a despender tempo e palavras na descrig&io da elaboragéio de sua autobiografia”.!2” As cenas e acontecimentos mais vividamente lembrados sao freqiientemente aqueles que permaneceram esquecidos por algum tempo. “Se uma imagem ou sensagio advinda do passado deve ser verdadeiramente reconhecida, ... precisa ser novamente evocada... apds um perfodo de auséncia”, diz Roger Shattuck ao interpretar Proust. “A imagem 117 Borges, pp. 40, 42-3. Para um exemplo real de tal memoria eidética, vide Oliver Sacks, “The twins”, N.Y Review of Books, 28 fev. 1985, p. 16. 118 Withrow, Natural Philasophy of Time, p. 85, elaborado sobre Diseases of Memory de Théodule Armand Ribot (1885). Vide também Aristides, “Disremembrance of things present”, p. 164. [19 James, A Small Boy and Others, p. 41 120 Sterne, Tristan Shandy, Liv IV, Cap. 13, 2:49; Rycroft, “Analysis and the autobiographer”. Vansina calcula que um individuo de 40 anos precisaria de seis meses para recordar tudo que fosse potencialmente possivel (“Memory and oral tradition”, p, 265). Sobre © paradoxo de Shandy, vide Mendilow, Time and the Novel, p. 184 Proj. Hist6ria, Séo Paulo, (17), nov. 1998 9S ou experiéncia original devem ter sido esquecidas, completamente esquecidas... A ver- dadeira meméria ou reconhecimento cresce tomando forma a partir de seu oposto: ou- bli?” Segundo as proprias palavras de Proust: A medida que 0 habito tudo enfraquece, aquilo que melhor nos faz lembrar de uma pessoa € exatamente © que havfamos esquecido. E gragas to-somente a esse esquecimento que conseguimos de tempos em tempos recuperar a pessoa que fomos, colocar-nos em relago as coisas assim como aquela pessoa se colocava ... Devido & aco do esquecimento, a meméria que retorna... nos faz respirar um novo ar, um ar que € novo precisamente porque © havfamos respirado no passado, ... uma vez que os verdadeiros paraisos sao os paraisos que perdemos.' De fato, 0 longo texto retorcido de Em busca do tempo perdido faz com que 0 leitor esqueca 0 que leu no inicio, para recordé-lo no final, chocado pelo reco- nhecimento.'* Esquecer muito nao é apenas desejavel; é inevitavel. Acontecimentos repetitivos fundem-se na rememoragio: como cada vez que vou comprar pio é praticamente igual & vez anterior, somente a primeira ¢ a dltima experiéncia tendem a ser relembradas.'* ‘Ao contrario da crenga geral, esquecemos a maioria das nossas experiéncias; a maior parte do que nos acontece é logo irremediavelmente perdida. “Tenho a expectativa de que as lembrangas sejam duradouras pois, assim como os demais, posso recuperar um grande ntimero de lembrangas muito antigas, algumas das quais de vinte ou trinta anos atrds”, mas Marigold Linton percebeu que sua expectativa era iluséria: nao temos cons- ciéncia das muitas coisas que esquecemos, exatamente porque as esquecemos. Linton, ao examinar periodicamente seu didrio, no qual ela anotara os principais acontecimentos do seu cotidiano durante 0 ano de 1972, descobriu que a meméria modificara flagran- temente acontecimentos registrados dois anos antes; apés trés ou quatro anos muitas das informagées registradas ndo conseguiram fazer emergir qualquer recordagao. Deta- Ihes originalmente significativos de sua vida tornaram-se fragmentos sem sentido, frases inteiras completamente ininteligiveis; e sua capacidade de recordar fatos diminufa com 121 Proust's Binoculars, p. 63. Vide Joseph Frank, “Spatial form in modern literature”, pp. 238-9. 122 Remembrance of Things Past, 1:692, 3:903. 123 Shattuck, Proust's Binoculars, pp. 100, 10S. 124 Vansina, “Memory and oral tradition”, p. 264. 96 Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 © passar do tempo, até que, seis anos depois, um tergo dos acontecimentos registrados havia desaparecido por completo da meméria.'%* Essas perdas transformam 0 passado recordado em “ilhas em uma paisagem confusa e feita de camadas, como as saliéncias esparsas que surgem aps uma nevasca, 0 poste telegrafico, a protuberancia do maquinario agricola ¢ as cercas encobertas pela neve”, nas palavras de Lively.'”* “Revivemos nossos passados nao em sua seqiiéncia continua, dia apds dia”, escreveu Proust, “mas sim através de uma meméria concentrada no frescor ou calor do sol de alguma manhi ou tarde”; entre essas cenas isoladas existem “vastas Areas de esquecimento”.'”” Esquecimento é 0 destino de muitos acontecimentos de enorme importncia na época em que aconteceram. Comparando experiéncias de guerra com lembrangas que delas ficaram trinta e cinco anos mais tarde, Tom Harrisson desco- briu que a maioria das pessoas havia esquecido coisas que nao poderiam imaginar que esqueceriam. Por exemplo, o escritor Richard Fitter nao conseguia se lembrar de sua passagem por Coventry e “mal péde acreditar em seus olhos quando confrontado com suas anotagées feitas a mao a respeito de uma longa visita ao lugar, incluindo impor- tantes conversas com altas autoridades”.'* Revisar As lembrangas também se alteram quando revistas. Ao contrario do estereétipo do passado relembrado como imutavelmente fixo. recordagdes so maledveis e flexiveis: aquilo que parece haver acontecido passa por continua mudanga. Quando recordamos, ampliamos determinados acontecimentos ¢ ento os reinterpretamos a luz da experiéncia subseqiiente e da necessidade presente. A inteligibilidade é uma dessas necessidades: coisas inicialmente ambfguas ou in- consistentes tomam-se coerentes, claras, diretas, “A meméria é a grande organizadora da consciéncia”, escreve Susanne Langer. “A experiéncia real 6 um emaranhado de visdes, sons, sentimentos, esforcos ffsicos, expectativas”, percepgdes que a meméria 125 Linton, “Transformations of memory in everyday life”, p. 86, Vide idem, “Real-world memory after six years”. 126 Lively, Going Back, p. 11 127 Remembrance of Things Past, 2:412-13. 128 Harrisson, Living through the Blitz, p. 327. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 97 simplifica e compée. Acima de tudo, a meméria transforma o passado vivido naquilo que posteriormente pensamos que ele deveria ter sido, climinando cenas indesejaveis € we privilegiando as desejavei: Recordagées subseqiientes redesenharam as experiéncias de guerra para adequé-las aos canones de comportamento e sentimento apropriados. Quando tocava piano num dia de setembro de 1939, uma jovem de Stepney no pdde ouvir nem a declaragao de Neville Chamberlain nem o alerta da primeira sirene; sua mae comegou entao a gritar com ela, seu pai a dar ordens peremptérias ¢ intiteis conselhos. A meméria alterou tudo isso: “Estévamos reunidos em nossa pequena sala de estar... todos juntos, ainda que uma vez na vida", ela recordou, ouvindo 0 rddio e “completamente abalados” pelas sirenes que ela, de fato, jamais ouvira. Durante anos contou essa hist6ria, que nao aparece em nenhum lugar de seu sincero documento original, como um relato verdadeiro dos seus primeiros dias da guerra. Harrisson acrescenta que “aqueles que nao mantém algum registro normalmente distorcem ainda mais os fatos”.!*” Pessoas préximas a Orwell também tinham lembrangas errdneas a seu respeito pois “testemunharam” incidentes que cle na verdade inventara ou “recordaram’ terem opiniées sobre ele que somente poderiam ter sido formadas apés leitura subscqiiente. Por exemplo, a irma de Orwell detestava 0 pouco que conhecia de suas obras enquanto © escritor estava vivo; sua familiaridade e admiragio pela obra do irmao vieram somente com a fama péstuma; uma entrevista por ela concedida 4 BBC logo apés a morte de Orwell revela como “essa mudanga chocante de opiniao também contaminou suas lem- brangas sobre © passado”, agora entremeadas com aprovagdo retroativa a obra de seu irmao. “O passado é filtrado por tudo que é aprendido subseqiientemente”, conclui Bernard Crick: Os chetes de tribo Cherokee leram livros de antropologia antes de serem entrevistados pelos antropélogos, ¢ notiveis literatos releram seus primeiros ensaios sobre Orwell pouco antes de serem entrevistados ¢ entdo os narraram novamente com elogidvel exatidao... Lembrangas dos dias de obscuridade de um homem famoso podem tornar-se terrivelmente confusas pela leitura ¢ lembranga de escritos posteriores sobre ele... E simplesmente muito dificil se chegar a genuinas lembrangas ou re-lembrangas.'*! 129 Feeling and Form, p. 263. “O pasado se ergue diante de nés ... ao haver atingido unidade suficiente para ser recordado como tal” (Casey, “Imagining and remembering”, p. 203). 130 Living through the Blitz, pp. 325-6. 131 “Orwell and biography” 98 Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 Essas adverténcias se aplicam da mesma forma ao nosso proprio passado. Assim como “o marido que confessa reinterpreta os casos de amor do seu passado colocando-os em uma linha ascendente que culmina em seu casamento”, observa Berger, “con- tinuamos reinterpretando nossa biografia da mesma forma que os stalinistas continuaram a reescrever a Grande Enciclopédia Soviética”.' Tais revis6es podem parecer repreen- ias; assim como outros historiadores, nds siveis, mas sao naturais e mesmo neces: reescrevemos incessantemente nossa histéria pessoal porque, por ocasiio dos acon- tecimentos, raramente podemos predizer qual seré ou que dimensio terd seu significado no futuro." A conversio pode transformar dramaticamente todo nosso passado re- memorado: as Confissdes de Santo Agostinho e Apologia pro vita sua de Newman revelam vidas anteriores novamente reinterpretadas e periodizadas; nossa propria familia emerge do caldeirdo conceitual da revelagdo psicanalitica “como figuras metamor- foseadas do panteZo freudiano”; tudo do passado somente agora faz sentido.'** Uma autobiografia, portanto, é “um registro que fazemos daquilo que todos os nossos selves anteriores escolheram para recordar dos selves que os precederam”, 0 resultado de uma dialética “entre o ‘cu’ presente ¢ 0 ‘cu’ passado, ao final da qual ambos mudaram”; o psicanalista vé a si mesmo “como um autobidgrafo auxiliar* que pode “assinalar pre- conceitos relativos, tipicamente, 4 autodifamagao ou autojustificagio, e diferenciar entre a verdadeira voz [do analisando] ¢ as suas imitagdes aprendidas, tipicamente, de outras vozes ancestrais”.'** Contudo, a revisio com freqiiéncia 6 tio distraida quanto nao intencional. A meméria to alardeada de John Dean transformou inconscientemente 0 que de fato sentido e desejado que acontecesse; suas lembrangas 136 acontecera no que ele proprio ha assim como a de todos foram construfdas, encenadas e centradas em si mesmo. Ao contrério do panorama esquematizado da meméria funcional, acontecimentos recordados com paixao sio com freqiiéncia mais enfaticos do que quando originalmente experimentados. Da mesma forma que esquecemos ou apagamos cenas que a principio 132 Invitation to Sociology, pp. 75, 71 133 Linton, “Transformations of memory”, p. 88. pp. 76-7. Vide Hankiss, “Ontologies of the self: on the mythological tory”; Gagnon, “On the analysis of life accounts” 134 Berger, Invitation 10 Sociolog: re-arranging of one’s life- 135 Rycroft, “Analysis and the autobiographer”, p. 541 136 Neisser, “John Dean’s memory”, p. 157. Proj. Historia, Sao Paulo, (17), nov. 1998 99 nao nos impressionaram, exageramos aquelas que nos impressionaram. Um lugar pode ser erroneamente lembrado como uniformemente coberto de gelo e varrido pelo vento, caso uma tempestade de neve fosse a nossa mais memoravel experiéncia naquele local; a recordago de uma rara nevada na Cidade do Cabo, em 1926, cujas fotografias sao exibidas nas salas das casas dos habitantes, dio uma impressio completamente falsa do clima habitual dessa cidade. Disfargamos a diversidade e aniquilamos incontaveis imagens antigas em algumas lembrangas dominantes, acentuando qualquer caracterfstica singular e exagerando seu esplendor ou fragilidade.'”” Tais énfases corroboravam a arte classica da memorizagao. “Quando vemos, no cotidiano, coisas que sao insignificantes, comuns e banais, geralmente nao conseguimos lembrar delas porque a mente ndo estd sendo instigada por nada novo ou maravilhoso”, segundo um antigo texto. “Mas se vemos ou ouvimos algo excepcionalmente vil, desonroso, singular, formidavel, inacreditavel ou ridiculo, disso nos lembraremos durante muito tempo”.'* O treinamento da meméria concentrou-se entdo em imagens vividas, poderosas, até mesmo grotescas. Lugares lembrados tendem a convergir, a menos que sejam especialmente distintos: um conjunto de cenas sucessivas pode se consubstanciar em uma ou duas, recordadas com as caracteristicas genéricas de todas. A memoria do visitante sincretiza as univer- sidades de Oxbridge, transpde Exmoor para Dartmoor, julga que as South Downs ¢ as North Downs sdo uma s6. A memoria também reorganiza os acontecimentos no tempo, misturando a seqiiéncia em que as cidades foram visitadas, apresentando os episddios na ordem em que deveriam ter ocorrido. Quando a preciso do calendario nao € essen- cial, as datas lembradas sao muitas vezes vagas ou caleidoscépicas; “hd muito” ou “outro dia” é 0 suficiente. O passado recordado nao é uma cadeia temporal consecutiva, mas um conjunto de momentos descontinuos igados da corrente do tempo. “Podemos recordar vividamente determinados acontecimentos de nosso passado sem podermos daté-los”, sugere Siegfried Kracauer, ¢ quanto mais prontamente os recordarmos mais propensos estaremos a “julgar incorretamente sua distancia temporal do presente ou destruir sua ordem cronolégica”."” Quase todas as pessoas 137 lan Hunter, Memory, p. 279. 138 Ad Herennium (c.86-82 B.C.), ‘ado por Yates em Art of Memory, p. 25; também pp. 17-41. 139 “Time and history”, p. 69. Vide Fraisse, Psychology of Time, p. 161 100 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 marcam 0s acontecimentos em si, ¢ nao a data em que ocorreram. Nao dizem “isso acon- teceu em 1930” ou “aquilo aconteceu em 1925” ou coisas semelhante. Dizem “isso aconteceu no ano em que o velho moinho foi destruido pelo fogo” ou “aquilo aconteceu depois que 0 raio atingiu o grande carvalho e matou 0 fazendeiro James” ou “aquele foi © ano da epidemia de pélio”. Assim, naturalmente, € claro, os fatos de que se lembram ndo seguem nenhuma seqiiéncia definida... H4 apenas fragmentos surgindo aqui e ali.'*” A recuperagiio da meméria é raramente seqiiencial; localizamos os acontecimentos recordados por associacao e nao por um trabalho metédico, avangando ou recuando no tempo, ¢ tratamos o passado como “um museu arqueolégico de fragmentos ... casual- mente justapostos”.'"” Seja ordenado ou casual, o passado relembrado diverge substancialmente da ex- periéncia original. Nao podemos mais aceitar 0 ponto de vista de Bergson, de que a fungéio da memoria é conservar todo 0 passado, ou a visdo de Penfield, de que cada acontecimento apreendido pode ser reconstituido com preciséo. Ao contrario, a pas- sagem do tempo provoca mudanga qualitativa da meméria bem como sua perda. Novas experiéncias alteram continuamente os esquemas mentais que moldam 0 que foi pre- viamente lembrado. “Ao longo da nossa vida, reorganizamos nossas lembrangas ¢ idéias do passado”, escrevem Piaget e Inhelder, “conservando mais ou menos o mesmo ma- terial, mas adicionando outros elementos” que mudam seu sentido e importancia."” Como Freud percebeu, “nossas lembrangas da infancia nos mostram nossos primeiros anos nao como eles foram mas como cles nos pareceram ter sido em épocas posteriores, quando as lembrangas foram estimuladas’"**, De fato, cada ato de lembrar altera no- vamente as lembrangas. Da mesma forma, contar as lembrangas também as altera, pois “o proprio ato de falar sobre 0 passado tende a cristalizé-lo numa linguagem especifica mas um tanto arbitréria”, comenta Donald Spence; uma vez narrada como historia, a lembranga original nunca mais pode ser vivida como um vago devaneio Wordswor- thiano.'* Para comunicar uma narrativa coerente precisamos nao apenas reformular o passado antigo como ainda criar um novo. “Longe de ser uma méquina do tempo por meio da qual é possivel voltar ao passado para averiguar 0 que se passou”, segundo a 140 Christie, By the Pricking of My Thumbs, p. 174. 141 Donato, “Ruins of memory: archeological fragments and textual artifacts", p. 595. 142 Memory and Intelligence, p. 381 143 “Screen memories” (1899), 3:322. Vide Kris, “Recovery of childhood memories”, p. 56. 144 Narrative Truth and Historical Truth, pp. 92, 173, 175. Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998 101 frase de Roy Schafer, o analista (ou qualquer pesquisador) coloca sua propria marca em nosso passado ao extrair e freqiientemente recontar com suas proprias palavras, uma narrativa moldada pela sua interacio conosco." Outras mudangas so inerentes ao amadurecimento, ao envelhecimento e as distan- cias entre as geragdes. Na nossa infancia, nossos pais parecem completamente diferentes de nossos avés; 4 medida que crescemos e nossos pais envelhecem, cles se tornam cada vez. mais parecidos com nossos avés. Apés a morte da avé de Proust, sua mae pareceu assimilar grande parte das suas caracterfsticas, parte em fungao de sua idade avangada, e parte como reposit6rio de lembrangas antes associadas & av6; “os mortos anexam os ¢ sucessores”.!“* Imagens lembradas de épocas ante- vivos que se tornam suas répli riores, elas mesmas anteriormente alteradas, tornam mais antigo o passado recente. O equilibrio entre nossas préprias lembrangas e as dos outros também muda com aidade. Um mundo dominado por velhos dotados de lembrangas mais extensas e antigas do que as nossas dé lugar, a0 envelhecermos, a um mundo de jovens que compartilham somente nossas experiéncias mais recentes. As lembrangas da infancia dos jovens sio continuamente ampliadas pelas recordagées aparentemente oniscientes dos mais velhos, uma vez que os idosos, agora as tinicas testemunhas oculares daqueles primeiros anos, deles desfrutam incontestaveis lembrangas. Mas suas interpretagdes dos acontecimentos recentes diferem das dos jovens que com eles compartilham esse mesmo passado re- cente.'“? Conexdes que vio se ampliando com varios segmentos de tempo, agora sob custédia exclusiva, agora contestadas por aqueles que detém lembran¢as mais antigas ‘ou mais recentes, alteram assim tanto 0 contetido quanto a veracidade do passado. Uma vez que os atuais processos mentais reorganizam continuamente a memoria, como se pode demonstrar que a apreensao do passado difere da apreensio do presente? A resposta de Piaget é que a experiéncia ¢ a meméria despertam diferentes expectativas temporais. A ago impregna constantemente a percepgio do presente, alterando coisas pela vontade ou por acaso. O passado, porém, jé foi sancionado e, por mais distorcida ou alterada a recordagdo, as coisas permanecem 0 que foram e jamais podem ser revogadas.'** Uma sensagio de plenitude que advém da percepcio tardia é inevitavel, tanto na memoria quanto na histéria. Como Walter Benjamin colocou, um homem que 145 “Narration in the psychoanalytic dialogue”, p. 33. 146 “Remembrance of Things Past, 2:796-7. Vide Halbwachs, Collective Memory, p. 67. 147 Kastenbaum, “Time, death and ritual in old age”, pp. 24-5; Halbwachs, Collective Memory, pp. 68-9. 148 Memory and Intelligence, pp. 399-404. 102 Proj. Histéria, Sao Paulo, (17), nov. 1998

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