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ISTVÁN JANCSÓ

ORGANIZADOR

INDEPENDÊNCIA:
HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA

SBD-FFLCH-USP

llllllllllllllllllllllllllllllllllllllll
265927

EDITORA HUCITEC
lt::IAPESP

São Paulo, 2005


AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO
DA UNIDADE. DOS PODERES DO RIO DE
JANEIRO JOANINO: ADMINISTRAÇÃO E
GOVERNABILIDADE NO IMPÉRIO
LUSO-BRASILEIRO*

MARIA DE F ÁTI MA SILVA GouVÊ:A


Universidade Federal Fluminense

"Rio de Janeiro, cidade a mais ditosa do Novo Mun-


do! Rio de Janeiro, aí tens a tua augusta rainha, e o teu
excelso príncipe com a sua real família, as primeiras ma-
jestades, que o hemisfério austral viu e conheceu [... ].
"Nesta Corte, e cidade do Rio de Janeiro é que o
Príncipe Regente Nosso Senhor, com descanso, e as-
sistido dos seus ministros, e conselheiros, consumará, e
aperfeiçoará a sua grande obra de supressão e total revo-
gação do antigo sistema colonial."
1
-Luis GoNÇALVES oos SANTOS

No dia 7 de março de 1808, as embarcações que traziam o príncipe


regente D. João e a família real, bem como toda a comitiva que os acom-
panhava, finalmente adentraram a baía de Guanabara, pondo fim à longa

• Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e


Tecnológico- CNPq e da Universidade Federal Fluminense- UFF. Agradeço o auxiliô
do bolsista de iniciação científica, Gabriel Almeida F razão, no processo final de recolha dos
dados analisados. ·
Luís Gonçalves dos Samos (Padre Perereca). Memória para servir à história d11 Rmto tkJ
Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: ltatiaia-Edusp, 1981 (reedição), t. I, pp; 174er187.. ~;
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~ desses do! Rio de Janeiro, aí tens a tua augusta rainha, e o teu
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jestades, que o hemisfério austral viu e conhece u [... ].
"Nesta Corte, e cidade do Rio de Janeiro é que o
Príncipe Regente Nosso Senhor, com descanso, e as-
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~ 2000, pp. sistido dos seus ministros, e conselheiros, consumará, e
I aperfeiçoará a sua grande obra de supressão e total revo-
gação do antigo sistema colonial."
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I - Luis GoNçAL VEs oos SANTOS

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No dia 7 de março de 1808, as embar cações que traziam o prínci
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• Pesquisa desenvolvida com apoio do Conselho Nacional de Desenv
CNPq e da Univers idade Federal Flumin ense- UFF. AgradeçQ'~
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Brasil. Belo Horizonte-São Paulo: ltatiaia-Edusp, 1981 (reedição), t.ltJP
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708 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

viagem iniciada em Lisboa, em fins de novembro do ano anterior. 2 Se por passava,


um lado a viagem era resultado de uma dificílima decisão - ante a emi- go do P:
nente chegada das tropas francesas à Corte reino! - por outro, viria des- sendo, f
cortinar uma nova era na história do Império colonial português . órgãos g~
A vida cotidiana na cidade do Rio de Janeiro sofreu então um impacto tratavam
dramático. Sua população foi, de um dia para o outro, acrescida subita- sil e de
mente de cerca de 15.000 pessoas. Um conjunto significativo de proble- Parte
mas passou a demanda r soluções mais imediatas da administr ação portu- intende1
guesa, bem como reforçou a necessida de de edição de políticas governativas maio de
que pudessem garantir, a curto e médio prazo, a sobrevivê ncia da massa to dos s
avultada de pessoas que então viviam na cidade, bem como o estabelec i- cia de I
mento de condições de vida minimam ente condizent es com a qualidade e coincidi
o estatuto de boa parte da população, em face da própria presença da Coroa VI em:
portuguesa em solo americano. De um lado, a preservação da ordem públi- parece c
ca e o bem comum despontav am como as principais questões a serem aten- teria sic
didas pelo governo sediado na cidade. Nesse sentido, questões relaciona- do Rio
das à salubridad e, à vadiagem, ao bem viver, ao abastecim ento, à circulação desse c
de pessoas, de produtos e de informação eram alguns dos principais pro- nais, ol
blemas enfrentad os na constituição deste programa de ação governativa e cidade,
administr ativa do Rio de Janeiro. Impunha -se a tarefa de transform ar a ção de
velha capital do Estado do Brasil na nova Corte do Império lusitano, fato político
que implicava modificações de natureza bastante variada e que, no limite, Esta
apontavam para uma metropolização da antiga sede política.
De outro lado, acentuava -se a necessida de de implemen tação de medi-
das que viabilizassem a sobrevivê ncia do próprio Império lusitano, então
sediado na América. As relações comerciais, a integrida de territorial e as
idéias francesas eram alguns dos principais itens que apresenta vam aí gran-
de importância, enfatizan do o caráter prioritário das políticas de defesa da Mui
economia e de governab ilidade no Centro-Su l do Brasil joanino. Em am- para o
bos os sentidos, buscava-s e estabelec er condições para o pleno exercício históri,
da soberania portugues a a partir da cidade do Rio de Janeiro, garantind o autore:
não apenas a sobrevivência da Coroa, mas também a do próprio Império.
Gama tão ampla de necessida des e problema s concorreu para que, mui-
to rapidame nte, se articulass e um conjunto de medidas administr ativas, 4
Cf.a
para o estabelec imento de instituições governativas em duplicata3 na nova pnrlt.
Lisb
sede da Corte portugues a. O Rio de Janeiro ia sendo gradativa mente trans- Pinh
formado em uma espécie de corte miniaturizada. O Império portuguê s Bms
5 Paul
2
e 26
O Decreto de 27 de novembro de 1807 tornou pública a decisão de que o príncipe regente e 26
pnssnrin pnm o Bmsil, decidindo estabelecer a sua Corte na cidade de São Sebastião do Rio Perc
de Janeiro. Ver Luís Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Op. cit., tomo I, p. 172. just~
3
Roderick Barman. Bmzil: The Forgittg of n Nntiotl, 1798-1852. Stanford University Press, detc
1988, p. 46. Paul
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 709
Se por passava, então, a ter duas Casas de Suplicação, duas Mesas do Desembar-
go do Paço, e assim por diante. O governo na cidade e na capitania foi
sendo, pouco a pouco, como que engolido por esta complexa massa de
órgãos governativos, sendo progressivamente criados; instituições que tanto
tratavam dos assuntos da Coroa, quanto do Império, das capitanias do Bra-
sil e de sua cidade-sede, a Corte do Rio de Janeiro.
Parte significativa desta lide administrativa cotidiana ficou a cargo do
intendente-geral da polícia da Corte e do Estado do Brasil, que, a partir de
maio de 1808, passou a desempenhar funções de uma espécie de "imedia-
to dos secretários de Estado". 4 Curioso notar que o período de permanên-
cia de Paulo Fernandes Viana, o primeiro intendente nomeado, no cargo
coincidiu de perto com as datas-limite de permanência do próprio D. João
VI em solo americano. 5 A atuação governativa de ambos os personagens
parece encarnar de forma muito imbricada e singular o que possivelmente
teria sido a essência de um Império luso-brasileiro, cenário no qual a cidade
do Rio de Janeiro se apresentava como centro privilegiado de gestação
desse complexo político-administrativo. A análise dos conflitos jurisdicio-
nais, observados entre alguns dos principais órgãos a cargo da gestão da
cidade, pode revelar estratégias governativas, e a própria natureza da no-
ção de autoridade que informava a ação de cada um deles neste complexo
político, marcado pela presença da família real no Centro-Sul do Brasil.
Estas são as principais questões aqui consideradas.

1
A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL E O PROCESSO
DE REDEFINIÇÁO DOS PODERES INSTITUÍDOS

Muito tem sido escrito sobre a transmigração da família real portuguesa


para o Brasil. Vasto é o debate historiográfico que envolve este contexto
histórico. A problemática da interiorização da metrópole envolveu vários
autores e possibilitou profícuos debates acerca da condição colonial que

4
C f. afirmou o conselheiro Soriano em sua História da guerra civil e do estabelecimetltO do gOVIf'llo
parlammtar em Portugal (t. li, 1• época) a propósito do célebre intendente da policia de
Lisboa setecentista, o desembargador do paço Oiogo Inácio de Pina Manique, apud: J, C.
Pinheiro. Paulo Fernandes e a polícia de seu tempo. Revista do Instituto Histórico tGttJgltl/ko
Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 39(1876):65-76, p. 66. · >';:~.; ~
Paulo Fernandes Viana ocupou o posto de intendente-geral da polícia entre maió'é'J-
e 26 de fevereiro de 1821, enquanto O. João VI permaneceu no Brasil entr4•máJfo*....
e 26 de abril de 1821. Interessante notar também que Luís Gonçalves dos~
Perereca, escolheu concluir a sua célebre Memória para servir à lzistói'ÍiriJo;ifJJjl.á. I "A
'Press,
justamente no momento em que O. João VI enfrentava grave crise polftialllfi•W 11 d · IPf
determinar a substituição de todo o seu ministério, e do próprio ·inu:tú~
Paulo Fernandes Viana. Luís Gonçalves dos Santos (Padre Percreca)t;ClpJ.~o
fviARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

caracterizava o Brasil em 1808, bem como a discussão em torno do pro-


ç
cesso de emancipação política, desencadeado em 1822. 6 fato
Considerando o período específico de permanência da Corte portugue- fica1
sa no Brasil, o clássico estudo de Oliveira Lima analisou em detalhe o tabc
conjunto de medidas então acionado pela Coroa, privilegiando de forma pos
bastante positiva o papel de O. João no desenrolar de todos os aconteci- cou
mentos, sem com isso examinar os demais atores e acontecimentos que pre
tiveram papel igualmente destacado no processo. 7 Dois novos estudos vie- tu c
ram a público mais recentemente, apresentando abordagem e evidências per
novas, que devem ser aqui brevemente destacadas. Jurandir Malerba ana·- pa1
lisou, sob forte influência de Norbert Elias, as práticas sociais vigentes na gm
Corte joanina, produzindo um intrigante estudo sobre as elites dirigentes no ve1

Brasil do primeiro quartel do século XIX. 8 Já Kirsten Schultz procurou ga<


identificar os nexos que interligavam a sociedade do Rio de Janeiro como an:
um todo e a Corte, então estabelecida nos Trópicos. 9 A autora demons- de
trou de forma bastante inteligente o fato de que a vida cotidiana na cidade
sofrera mudança radical, no tocante a sua cultura política, especialmente çãc
do vocabulário aí engendrado, em conseqüência da presença física da fa- no
mília real. Nesse sentido, os diversos grupos sociais que habitavam a cida- co
de puderam ser percebidos por Schultz como atores históricos, que, de ml
vários modos, tiveram a oportunidade de participar do macroprocesso de tn
progressiva transformação das noções de Império e de soberania portu- re
gueses, ambas reconsideradas ao longo do primeiro quartel do século XIX. se
Vale notar que esta tem sido uma importante forma de se repensarem as
transformações políticas de fins do século XVIII e início do XIX em curso
não só no Brasil, mas também em várias regiões das Américas. 10

6
Sendo o grande marco deste debate o célebre artigo de Maria Odila da Silva Dias, "A
interiorização da Metrópole (1808-1853)", publicado na coletânea organizada por Carlos
Guilherme Mota./822: dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1982, pp. 160-84, estudo que deu li
origem a vários outros, destacando-se, especialmente, os de Alcir Lenharo (As tropas da
moderação), Riva Gorestein & Lenira M. Maninho (Negociantes e caixeiros tm sociedade da
Independência), publicados no Rio de Janeiro, pela Secretaria Municipal de Cultura, em
1993. Estes estudos, como o de Júnia Furtado (Homens de negócio. São Paulo: Hucitec, 1999),
puderam incorporar diversas críticas, como, por exemplo, as de João Fragoso (Homms de
grossa aventura. Rio de Janeiro: MEC/Arquivo Nacional, 1992), demonstrando que, na
verdade, o fenômeno de it1terioriz.ação da Metrópole foi um processo desencadeado anterior-
mente à chegada de D. João ao Centro-Sul do Brasil.
7
Oliveira Lima. Dom João VI no Brasil. 3' ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996. Ver também
Luís Norton. A Corte de Portugal 110 Brasil. 2' ed. São Paulo: Nacional, 1979.
8
Jurandir Malerba. A Corte no exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
9
Kirsten Schultz. Tropical Versnilles. Empire, ll.fonarchy and the Portuguese Royal Courtin Rio de
Janeiro, 1808-1821. Nova York-Londres: Routledge, 2001.
10
Tendência esta fruto, em grande pane, da produção historiográfica, associada ao movimento
da nova história cultural e política de fins da década de 1980 e início da de 1990. Ver, por
exemplo, lstván Jancsó. "A sedução da liberdade: cotidiano e contestação política no final
I
I

AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 711

Quanto ao presente estudo, entretanto, cabe, apenas, aqui enfatizar o


fato de que, grosso modo, quase nada tem sido produzido acerca das modi-
,_ ficações administrativas e institucionais que tal contexto foi capaz de es-
[) tabelecer na América portuguesa. Toda a discussão desenvolvida sobre a
a possível existência de um Império luso-brasileiro neste contexto não bus-
cou elucidar tal processo de modificações, elemento primordial para maior
.
~ precisão na avaliação da ação governativa e dos conteúdos jurídico-insti-
tucionais que poderiam ter subsidiado a definição de tal configuração im-
perial.11 O objetivo aqui proposto é recuperar a caracterização das princi-
pais mudanças produzidas pelo processo de transformação das jurisdições
governativas vinculadas ao Rio de Janeiro e também a forma como o go-
verno da cidade e região se encontrava indissociado dos órgãos encarre-
gados da gestão do Império português como um todo. Antes de avançar na
análise, é imprescindível, entretanto, considerar alguns aspectos que se
destacam sobremaneira do conjunto dos elementos aqui analisados.
Como já discutido pela historiografia relacionada ao estudo da forma-
ção imperial portuguesa, 12 a escrita constituía-se em importantíssima tec-
nologia de ação administrativa. O império da escrita poderia ser entendido
como marcado pela preocupação básica de estabelecer registros e enca-
minhar correspondência, que viabilizassem a troca de informação e a cons-
trução de uma memória acerca das práticas desta ação governativa e dos
resultados por ela alcançados. No caso aqui considerado, observa-se a pre-
sença de enorme número de oficiais da Coroa que, no exercício de sua

do século XVIII", in: Laura de Mello e Souza (org.). História da vida privada no Brasil:
cotidiano e vida privada 11a América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, pp.
387-437; François-Xavier Guerra. "La desintegración de la monarquia hispânica: revolución
e independencias", in: A. Annino; L. C. Leira & F.-X. Guerra (org.). De los Imperiosa las
Naciones: Iberoamérica. Zaragoza: IberCaja, 1994, pp. 195-227; e, em relação ao caso inglês,
ver Kathleen Wilson. The Smse of the People. Politics, Culture and Imperialism in England, 17/S-
178$. Cambridge Press, 1998.
11
Ver Maria de Fátima S. Gouvêa. Redes de poder na América portuguesa. Revista Brasileira
de História. São Paulo, vol. 18, no 36, pp. 297-330; Maria de Lourdes V. Lyra. A utopia do
poderoso Império. Portugal e Brasil: bastidores da política, 1798-1822. Rio de Janeiro: Sette
Letras, 1994; Kenneth Maxwell. "The Generation of 1790's and the Idea of the Luso-
Brazilian Empire", in: Dauril Alden (org.). Colonial Roots of Modem Bmzil. Los Angeles:
University of California Press, 1973; Guilherme P. das Neves. "Del Imperio luso-brasi.leiio
ai Imperio dei Brasil (1789-1822)", in: A. Annino, L. C. Leira & F.-X. Guerra (org.). Op. c;it.,
pp. 169-93; e Maria Odila Silva Dias. Aspectos de Ilustração brasileira. RevisttJ tio /IISIÍitllo
Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, 278, 1969. , .
1
z Diogo Ramada Curto tem produzido uma série de estudos a propósito desta telljÚit1~~'Yes,,
em especial, alguns de seus artigos, publicados nos três primeiros volumes ..~ lfH~ tia
expansão portuguesa, organizado por Francisco Bethencourt & Kirti Chaudh~JJ,.,~~~·
cuJo de Leitores, 1998), "A literatura e o Império: entre o espírito ca~~~~~ da
Corte e o humanismo ~ívico" (vol. 1, pp. 434-54); "Cultura escrita e.p~,.#fij:~f~~"
(vol. 2, pp. 458-531) e' As prática,s da escrita" (vol. 3, pp. 421-62). Para~,~~~~~da
do tema, veja a obra clássica de Angel Rama. A cidade das letras. São Paulo: Brast nse, S.
nz MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUV~A

espec
ação administrativa, reafirmavam de forma recorrente a necessidade de se
gover
preservarem o modo e a coerência na aplicação das práticas de registro
de ma
escrito, já então consagradas na administração do Brasil colonial. 13
ria se
Outro aspecto fundamental, mas pouco explorado pela historiografia
Lisb<
que analisa a dinâmica de funcionamento da administração portuguesa, é
da de
o que pode ser entendido como o crescente processo de pagamento dos
Lisbt
mais diversos tipos de taxas e selos no trâmite dos papéis e diplomas edi-
Políc
tados pela própria movimentação interna da gestão administrativa. Curio-
refer
so perceber que eram os oficiais da Coroa quem pagava parte boa parte
dos i
destas taxas, gerando uma massa significativa de recursos financeiros, que ·
lhan1
eram entendidos pela Coroa como uma forma de remuneração interna de
de J
seus oficiais, constituindo-se em fonte geradora de recursos para a fazen-
E
da real e demais órgãos governativos. Exemplo interessante disso é o caso
esta
de vereadores do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, que, na busca de
um v
isenção da obrigatoriedade de servir ato contínuo no cargo de almotacé,
sub<
encaminhavam petições que incidiam no pagamento de pelo menos três
são
tipos diferentes de taxa - novos direitos, taxa de assinar e de apresentação
do 1
da dita petição. 14 Apesar de se tratar de questão complexa e que escapa
ros,
aos limites do presente estudo, vale destacar o fato de que havia uma
pel<
soma considerável de selos e taxas, que eram pagos pelas demais pessoas
cad:
que procediam à tramitação de papéis e petições nos diversos órgãos da
cta-
administração régia, podendo-se perceber que toda esta movimentação
ban
gerou certamente uma massa importante de recursos financeiros. Isto aju-
aml
da a explicar a permanente preocupação das várias autoridades com o cons-
por
tante pagamento destas imposições, nas mais variadas circunstâncias.
de~
Outro aspecto importante é rememorar o fato de que, tradicionalmen-
cec
te, a cidade-corte do Império português fora posição sempre ocupada pela
tai1
cidade de Lisboa, que era, como afirmara D. João VI, a "antiga Sede e en1
berço original da Monarquia". 15 Isso estabdecia uma configuração toda

13
Paulo Fernandes Viana, primeiro intendente da polícia, atuava de forma sistemática para
lembrar a todos os oficiais com que se correspondia, superiores ou inferiores, a necessidade
de que mantivessem uma correspondência regular. Esta seria a forma como apolícia poderia
alcançar os objetivos a ela delegados pela Coroa. Outro exemplo interessante foi o observa-
do no alvará de 26 de janeiro de 1811 (p. 5), que estabeleceu umaregmgemlna forma como Ib
os diversos tribunais trocariam comunicações, fato que deveria sempre ocorrer "por meio
de Escrivães ou Secretários, escrevendo uns para os outros em nome dos tribunais respec-
tivos, remetendo cópias autênticas" do que houvesse deliberado o príncipe regente.
14
Ver os diversos exemplos encontrados em relação ao período abordado no Códice 39-2-14, 17
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. IR
15
Decreto de 7 de março de 1821. Coleção de leis do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1891, p. 28, daqui para frente citado comoCLB. Valentim Alexandre chamou atenção para o fato
de que este caráter ancestral da antiga Corte lisboeta era algo de que a Coroa portuguesa não 19
poderia abrir mão tão facilmente. Tratava-se de uma espécie de referência existencial da própria
AS RASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA llNIDADl~ 713

ise especial e diferenciada para os órgãos administrativos encarregados do


tro governo, na cidade e em suas cercanias, quando contrastados com os das
demais regiões da Monarquia portuguesa. 16 Esta excepcionalidade pode-
fia ria ser explicitada também quanto às jurisdições do Senado da Câmara de
,é Lisboa, quanto da qualidade de seus homens da governança. A conflituali-
los dade jurisdicional entre os principais órgãos governativos na cidade de
di- Lisboa - especialmente entre o Senado da Câmara e a Intendência da
fo- Polícia - era um dado quase que permanente, especialmente no que se
te referia às atribuições administrativas e à aplicação dos tributos relaciona-
ue dos à manutenção da cidade. 17 Não espanta, portanto, verificar a seme-
de lhança deste contexto com o observado em relação à Corte joanina do Rio
n- de Janeiro, conforme será aqui considerado.
so Em sentido correlato, deve ser também percebida a situação na qual
ie esta nova Corte via seu papel de centro administrativo ampliado sobre um
é, universo territorial muito mais vasto e complexo do que o anteriormente
ês subordinado ao governo baseado na cidade. Ilustra bem isso o caso da emis-
lo são de passaportes a todos os que se movimentavam pelas diversas regiões
>a do Brasil, bem como a grande preocupação com a circulação de estrangei-
ta ros, notadamente de espanhóis, de franceses e de hispano-americanos,
lS pelo Rio de Janeiro. 18 Nesse mesmo sentido, vale também lembrar a arre-
la cadação, nas várias capitanias do Brasil, de recursos em prol da Intendên-
io cia-Geral da Polícia da Corte, tendo em vista remodelação do espaço ur-
l- bano e incremento das condições de abastecimento na cidade do Rio. 19 A
s- ambivalência estabelecida entre a sobrevivência do Império e a da Corte
portuguesa no Rio de Janeiro colocavam a nova Corte em posição deveras
l- destacada, enfatizando-se neste contexto a amplitude das jurisdições con-
.a cedidas ao novo órgão da Intendência-Geral da Política e a forma como
e tais jurisdições colidiam com a das demais instituições governativas até
a então existentes na cidade, conforme será considerado adiante.

'a razão de ser da Monarquia portuguesa. No limite, no contexto da crise político-institucional de


e 1821, D. João VI não teria outra opção que manter-se fiel ao berço original da Monarquia
ia lusitana. Caso contrário, os próprios fundamentos que informavam a unidade do Reino do
l- Brasil estariam comprometidos. Ver Valentim Alexandre. Os set1tidos do Império. Questão nm:io-
o 11111 e questão colonial 11a crise do mitigo regime português. Porto: Afrontamento, 1992, p. 533.
o 16
Paulo J. Fernandes As faces de Proteu. Elites urbanas e opoder mutlicipal em Lisboa de fi1ltlis do
:- século XVIII a 1851. Lisboa: Imprensa Municipal, 1999, pp. 15, 41 e ss. Ver também a
primeira parte da História dos mUtlidpios e do poder local. Lisboa: Temas e Debates,: 1996,
f, organizada por Nu no Gonçalo Monteiro & César de Oliveira. ., ? .
17
Paulo}. Fernandes. Op. cit., pp. 81-4. . ''ll<'.'l,.'1
1
R Ver, por exemplo, os diversos registros sobre estas matérias, reunidos nos cód~ .
e 325, todos depositados no Arquivo Nacional, bem como o decreto de 2-dcu·~lfi.M!'Mtk
1820 (CLB, p. 113). , ·-üt,o:i1nl
19
Ver os códices acima citados, e a Decisão n• 39, de 4 de dezembro de 1810 (C~~.
MARI A DE FÁTIM A SILVA GOUV ÊA
AS

oi,,P,or fim, vale lemb rar que o amb iente admi


nistrativo da cida de era re- Buscava-se
eonfigurado, a partir de 1808, em moldes de ampl
iar espe cialm ente o que ções e as in1
é entendido como a administração central - a
área de ação direta do po- especificam(
der do próprio prínc ipe - no âmb ito de um
mod elo organizacional de !idad e por P
natureza polissinodal. 20 Uma nova rede de órgão
s diret ame nte vinculados que o prínci
à Coroa foi send o pouco a pouco criada, como
desd obra men to governati- Jan eiro - c
vo necessário do processo de transmigração da
família real para o Rio de vistos em ca
Janeiro, fato prof unda men te vinculado às nece
ssida des básicas de sobre- com a popu
vivência do Impé rio portu guês dian te da perd
a de sua integ ridad e territo-
rial euro péia , entã o radic alme nte modificado Cent ro-S ul '
pela condição tropicafZ 1 de guração das
sua nova Corte. A dramaticidade transformador
a dos even tos em curso era tenç a ao Im
imensa, haja vista que não se tratava pura men
te de um cont exto de crise com pree nsã
insti tucio nal ou de sobr eviv ênci a material da
Cort e portu gues a propria- roa tão intin
men te dita. Bons exem plos dess e quad ro de
transformação civil izaci onal les súditos c
do Rio de Janeiro têm sido apontados pela histo
riografia, 22 espe cialm ente Rio de Jane
o da criação e o da post erior adm inist raçã o
do Teat ro São João, 23 e as A chegad
med idas voltadas para a impl eme ntaç ão de um
novo estilo na forma de figura do vi
edifi car préd ios na cida de. 24 O caso mais céle
bre talve z seja aque le em Arcos, Mar<
que a Inte ndên cia da Polícia dete rmin ou a
proibição de cons truçã o de com o "cabe
edifi caçõ es com "rótu las ou gelosias de mad
eira" na cida de do Rio de Prad o Júni(]
Janeiro, em 1809, conforme analisado adiante.
men te mili1
20
defe sa terri
Antón io M. Hesp anha. Op. cit., 1994. Ver tamb
ém José Subti l. "Gov erno e admin istraç ão",
in: Antón io M. Hesp anha (org.). História de Portug
rotina avass
al. O Antigo Regime(162i/-J8()7). Lisboa: outros assu1
Estam pa, 1993, pp. 57-193.
21
Com o uso deste termo , quer- se apena s enfati
zar mais espec ificam ente a natur eza não representan
metropolitm1a do estatu to político dos órgãos gover mais especi
nativos instalados na cidad e até 1808,
bem como do próprio Estad o do Brasil, apena
s gradu ado como reino unido a Portu gal e sil. A prese
Algarves sete anos após a chega da da família real
ao Rio de Janeiro.
zz Ver, em especial, Juran dir Malerba. Op. cit., cap.
23 2; e Kirsten Schul tz. Op. cit., caps. 4 e 5.
O decre to de 28 de maio de 1810 determ inou
a const rução do teatro, ficando dela encar re-
gada Paulo Ferna ndes Viana, o intend ente-g eral 2S Kirste n Sei
da polícia, deter minan do ainda que, para
isso, não seriam lançados novos impos tos, tendo sentid ociv
em vista o fato de que este era o "dese jo
de vários vassalos" e, sendo a obra do agrado do Rio de Jan'
prínci pe regen te, receb eria o nome de Real
Teatr o São João, tendo o terren o sido oferta do 26 Kirsten Sei
por Ferna ndo José de Almeida. Posterior-
mente , a Decis ão no 41, de 9 de outub ro de 1811, pessoasco1
encar regou Marcos Antôn io de Portu gal
da inspe ção e da direçã o das peças de música, real, desde
ficando incum bido de "fazer aprontar, na
forma possível, tudo o que possa condu zir para intend ent(
a decên cia dos espet áculo s que se houve -
rem de recitar". O decre to de 30 de agosto de de que o p
1817 fez "privativo do Real Teatr o São João
o dar espet áculo s duran te 10 anos [conc edend 21 Uma vezi1
o-lhe ] pelo mesm o temp o duas loteri as
anuai s", esper ando que "possa perm anece r com preparar a
a decên cia e esple ndor que convé m ao
estad o atual da cidad e do Rio de Janei ro", ficand concluídas
o o minis tro do Reino, Tomá s Vilanova
Portu gal, encar regad o de passar a ordem neces anose guin
24 sária para que se execu tasse tal medid a.
Códic e 323, vol. 1 - Regis tro de Corre spond regresso d
ência da Polícia aos Minis térios de Estad o,
Juíze s do Crim e, etc. Arquivo N acionai, pp. 88-9. junto ao p1
Ver també m Maria Beatr iz Nizza da Silva.
A Inten dênci a-Ger al da Polícia: 1808-1821. Acervo t. I, p. 16'
, Rio de Janeiro, vol. 1, no 2 (1986), pp.
187-204. artes" , in:
2s Caio Pradc
AS BASES INSTITUCIO NAIS DA CONSTRUÇ.: \0 DA UNIDADE 715

Buscava-se europeizar a nova Corte do Rio, equipando- a com as jurisdi-


ções e as instituições necessárias ao cumprimen to de seus novos papéis,
especificam ente no tocante às condições do exercício de uma governabi-
lidade por parte da cidade neste novo contexto. Além disso, o fato de
25

que o príncipe regente e a família real concretame nte viviam no Rio de


Janeiro - circulavam pelas ruas, iam à igreja, enfim, eram efetivamen te
vistos em carne e osso e estabeleciam as mais variadas tratativas possíveis
com a população em gera!26 - serviu de meio para que a sociedade do
Centro-Sul do Brasil vivenciasse quotidianam ente o processo de reconfi-
guração das noções básicas que fundament avam os sentimento s de per-
tença ao Império português. Tal contexto viabilizou a melhor e a maior
compreens ão dos valores e das noções de vassalagem para com uma Co-
roa tão intimamen te mais próxima e atenta às necessidades de todos aque-
les súditos e, por isso, tão dedicada a uma transformação civilizacional do
Rio de Janeiro.
A chegada de O. João à cidade incidiu no imediato desaparecim ento da
figura do vice-rei do Brasil, posto então ocupado pelo oitavo conde dos
Arcos, Marcos de Noronha e BritoY Tal cargo havia servido, até então,
28
como "cabeça de toda a administração" colonial. Observou ainda Caio
Prado Júnior que suas funções cotidianas apresentavam caráter essencial-
mente militar, sendo responsável direto pela organização das tropas e da
defesa territorial. Era, dessa maneira, profundam ente absorvido por uma
rotina avassaladora, restando-lh e muito pouco tempo para tratamento de
outros assuntos. Em essência, o vice-rei era quem, historicamente, vinha
representan do física e politicamente o rei português em solo americano e,
mais especificam ente, na própria condução do governo do Estado do Bra-
sil. A presença em pessoa do príncipe regente anulava os fundament os

2 -' Kirsten Schultz argumenta com um "processo explícito de metropolização da cidade", no


sentido civilizacional do termo, citando o exemplo do envio da missão artística francesa ao
Rio de Janeiro, em op. cit., capítulo 4.
26
Kirsten Schultz. Op cit., capítulos 4 e S. Múltiplos são os exemplos citados pela autora de
pessoas comuns que tinham oportunidade de, diretamente, dirigir-se a membros da família
real, desde escravos até a célebre prostituta Teresa de Jesus, desalojada de sua casa pelo
intendente da polícia, que, ao encontrar com a irmã de D. João em 1811, se tornou confiante
de que o príncipe regente atenderia à sua petição de ter de volta sua moradia (pp. 355-7).
27
Uma vez informado acerca da iminente chegada da família real ao Rio de Janeiro, passou a
preparar a cidade para receber a Corte portuguesa da forma mais digna possível, dando por
concluídas as suas funções de vice-rei logo após a chegada da comitiva real. Em junho do
ano seguinte, foi nomeado governador da capitania da Bahia, assumindo, mais tarde, após o
regresso de D. João VI a Portugal, a presidência do ministério que permaneceu no Brasil
junto ao príncipe regente D. Pedro. Luís Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Op.- cit.~
t. I, p. 167; e José Manuel Fernandes. "A cultura das formas: urbanismo, arquitetUri,
artes", in: F. Bethencourt & K. Chaudhuri (org.). Op. cit., vol. 4, p. 449.
28
Caio Prado Jr. F onnaçlio do Bmsil co!ltemporâ!leo. 15• ed. São Paulo: Brasilien~;l977i"P•307.
MARIA DE FÁTIMA SILVA GOllVÊA

políticos que informavam a existência de tal oficial, assim como também colo:
implicava a completa redefinição de todo o edifício governativo e políti- estu
co-administrativo até então instituído na América portuguesa. fest
Nesse sentido, a transmigração da Corte portuguesa para o Brasil con- so (
correu para significativa mudança no perfil geral das atividades adminis- do
trativas governativas, desempenhadas pelo mais alto escalão do governo cap
ali existente. Sua substituição por um conjunto de altos órgãos administra- de
tivos possibilitou um contato mais direto e mais intenso da Coroa com as cen
diferentes autoridades régias existentes no Rio de Janeiro, bem como com l
as que se encontravam espalhadas pelas várias capitanias no Brasil duran- Fe1
te o primeiro quartel do século XIX. Percebe-se de antemão que foram Fa:~
essencialmente as autoridades da magistratura as convocadas a atuar mais pos
intensamente na rearticulação da nova engrenagem governativa joanina. est:
Vale não esquecer também que as autoridades militares e as eclesiásticas ção
se mantiveram como elementos cruciais na rotina do trâmite administrati- de
vo,29 passando a conviver com um padrão de comunicação e de integração órg
mais intensa com os órgãos da administração central, então instalados na as
nova Corte. car
.z atr
ÜS PODERES CENTRAIS E O NOVO GOVERNO NO RIO DE JANEIRO cie
óq
Pelo menos cerca de sete órgãos da administração central foram esta- de
belecidos no Rio de Janeiro, entre março e agosto de 1808, sem conside- ati
_rar o estabelecimento da Imprensa Régia e da Fábrica de Pólvora, criadas co
neste mesmo período, e da Provedoria-Mor da Saúde da Corte e do Esta- le<
do do Brasil, estabelecida no ano seguinte. Tratava-se, portanto, de um do
intenso processo de criação de instituições que pudessem, de fato, trans- ro:
vestir o Brasil meridional com uma roupagem metropolitana, capaz de fa- ze
zer, de fato, que o Rio de Janeiro pudesse ascender ao posto de nova Cor-
te da Monarquia portuguesa. ra1
Antes de qualquer outra medida, foram os portos do Brasil franqueados di
ao comércio direto com o estrangeiro, logo após a chegada da família real til
à Bahia, decisão decorrente de uma representação encaminhada pelo con- ÁJ
de da Ponte, em janeiro de 1808, então governador dessa capitania. 30 Bus- G
cava-se minorar a insuficiência de recursos no suprimento das crescentes úl
necessidades materiais advindas da presença da Corte portuguesa no Bra- re
sil. Segundo Luís Gonçalves dos Santos, o Padre Perereca, este fora o
primeiro grande golpe em direção à completa eliminação do antigo sistema 3I
Jl

33
~9 Caio Prado Jr. Formação do Brnsil cot1temporn11eo. 15' ed. São Paulo: Brasiliense, 1977, pp.
313, 326 e 331.
3
° Carta régia de 23 de janeiro de 1808 (CLB, p. 1). 34
AS BASES INSTITUCIONA IS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 717

colonial então vigente no Brasil, conforme a epígrafe de abertura deste


estudo. Uma vez instalada a família real no Rio de Janeiro, e concluídos os
festejos em celebração da sua chegada à cidade, era dado início:ao proces-
so de edificação da administração central diretamente vinculada à pessoa
do príncipe regente. Interessante observar que tanto a cidade quanto a
capitania do Rio de Janeiro foram consideradas neste processo como áreas
de atuação da maior parte dos órgãos situados no nível da administração
central.
Uma das primeiras decisões tomadas por O. João foi a nomeação de D.
Fernando José Portugal "ministro de Estado e Negócios do Brasil e da
Fazenda". O alvará de 11 de março determinou ainda que ele ocupasse o
posto de ministro assistente do despacho do gabinete do príncipe regente,
estabelecendo também o Real Erário na cidade. 31 A criação de tal reparti-
ção fazendária implicava a substituição da antiga Junta de Fazenda do Rio
de Janeiro, até então encarregada das finanças da capitania, por este novo
órgão superior da administração régia. Suas atribuições buscavam eliminar
as deficiências observadas no processo de arrecadação dos direitos reaís a
cargo de diferentes repartições, bem como a diminuição dos abusos e dos
atrasos nos seus pagamentos, mediante uma ação coordenada e mais efi-
ciente.32 Entretanto, dificuldades no estabelecimen to de tão complexo
órgão fizeram que, passadas três semanas, O. Fernando José de Portugal
determinasse que a antiga Junta de Fazenda continuasse a exercer as suas
atribuições de "arrecadação e expedição dos negócios da Real Fazenda
como até agora se praticava" .33 Em 28 de junho foram finalmente estabe-
lecidos o Erário Régio e o Conselho da Fazenda do Brasil -encarregad o
do desembargo de petições sobre matéria financeira encaminhadas à Co-
roa- meio pelo qual foi, de fato, então, suprimida a antiga Junta da Fa-
zenda e da Revisão da Capitania do Rio de Janeiro. 34
O trabalho do Erário Régio ficou distribuído por três Contadorias-G e-
rais. A primeira delas dedicava-se a escriturar as rendas dos reditos e dos
direitos reais "desta Cidade e Província do Rio de Janeiro". A segunda
tinha sob sua responsabilidade a "contabilidade e cobrança das rendas da
África Oriental, Ásia portuguesa e governo de Minas Gerais, São Paulo,
Goiás, Mato Grosso e Rio Grande de São Pedro do Sul". A terceira e
última ficava incumbida da "escrituração, contabilidade e fiscalização das
rendas reais estabelecidas nos governos da Bahia, Pernambuco, Maranhão,

31
Alvará de 11 de março de 1808 (CLB, p. 4).
3
l José Subtil. Op. cit., p. 173.
H Decisão de 23 de março de 1808 (CLB, p. 5). Vale destacar que o alvará de 28 de rnarçó do
mesmo ano reduziu os salários dos ministros e dos secretários de Estado em face do ..ê$~
atual das rendas reais" (p. 6). ' • '"il
34 Alvará de 28 de junho de 1808 (CLB, pp. 74-86). ·" ;:·· ·!,
718 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

Pará, Ceará, Piauí, Paraíba, Ilhas de Cabo Verde, Açores, Madeira e África des d(
Ocidental". Uma dada geografia pode ser depreendida dessa forma de vada r
organizar as finanças do conjunto imperial português. No topo, com gran- tratarr
de destaque e importância, a jóia mais preciosa do Império português na- Aqui,
quele momento: a cidade e a capitania do Rio de Janeiro. Era por ali que, em re
naquele momento, tramitavam o grosso da renda real, bem como os gru- como
pos mais importantes, contribuindo materialmente para a Coroa. A seguir, apena
as jóias intermedidrias, as possessões na África oriental, na Ásia e as capita- Ar
nias mais valiosas no Brasil, depois do Rio de Janeiro. Por fim, as demais ção gc
capitanias do Brasil, os territórios das ilhas do Atlântico e da África ociden- tes cc
tal. O Império se apresentava, então, como um grande arranjo luso-brasi- ro qu:
leiro, cenário onde não apenas a gestão dos recursos materiais era opera- Rio d
da, a partir da administração sediada na nova corte americana, mas onde rialmc
também as possessões territoriais se encontravam hierarquicamente orga- trativ
nizadas quanto aos interesses econômicos, que predominavam nos trdficos instit
mais importantes em curso no Atlântico sul português. sões
Vale lembrar que, diferentemente das demais capitanias do Brasil e pos- posta
sessões ultramarinas, o Rio de Janeiro foi colocado em posição que dis- Portu
pensava a existência de uma junta da fazenda, que até então esteve encar- Janei
regada de sua gestão fazendária. No contexto da transmigração da família ce d<
real, foi uma contadoria-geral do próprio Erário Régio que ficou direta- o
mente encarregada desta incumbência, 35 posição deveras singular, quan- ro, d
do comparada às demais regiões, que, no entanto, remonta à situação aná- Orde
loga vivida por Lisboa, ao longo dos vários séculos anteriores, na história meto
da administração reinol. Coro
Dando prosseguimento à criação dos demais principais órgãos da admi- da C
nistração central no Rio de Janeiro, a Coroa editou o alvará de to de abril gaçãc
de 1808, determinando a criação do Conselho Supremo Militar e de Justi- ticos
ça. Determinava tal diploma régio que este órgão ficava encarregado de rá, e
"todas as matérias que pertenciam ao Conselho de Guerra, ao Almiranta- solu1
do e ao do Ultramar na parte militar somente", ou seja, da gestão logística Ir
e jurisdicional de todas as matérias militares, 36 garantindo-se, ainda, a es- corte
tes conselheiros as "honras e regalias" previstas pelos alvarás de 6 e de 30
de agosto de 1795. Ficava ainda estabelecido que as capitanias do Pará e
do Maranhão e os demais domínios ultramarinos manteriam a sua direta
37
A
38
V:
vinculação com a capital Lisboa, haja vista a "grande distância e dificulda- !e
39
A
ra
35 v:
Esta singularidade da administração fazendária do Rio de Janeiro, no âmbito da administra- 40
ção joanina, pode ser observada também no tocante à tributação editada na cidade, no
A
41 [
período, sempre a cargo do Erário Régio, mesmo que mediada pelas informações prestadas
por demais órgãos administrativos, tais como o juiz do crime do bairro.
36 SI
José Subtil. Op. cit., pp. 180-1.

.~ .
4
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 719

des de navegação para esta Capital" .37 Notória era a diferenciação obser-
vada na forma de a Coroa gerir as finanças de seu Império em relação ao
tratamento das matérias sob a guarda do Conselho Militar e de Justiça.
Aqui, Lisboa mantinha quase intacta a sua jurisdição sobre tais assuntos
em relação à maioria dos domínios ultramarinos, ficando o Rio de Janeiro
como cabeça de comando das forças e dos assuntos que diziam respeito
apenas ao Estado do Brasil.
A natureza específica de cada uma destas duas grandes esferas de atua-
ção governativa acabou por gerar formas diferenciadas de vincular as par-
tes constitutivas do conjunto da geografia imperial portuguesa no primei-
ro quartel do século XIX. A vitalidade dos grupos econômicos sediados no
Rio de Janeiro concorria para sua maior inserção na forma de gerir mate-
rialmente o complexo imperial como um todo. Esta ambivalência adminis-
trativa acabou por concorrer enormemente para a eclosão da grave crise
institucional desencadeada em Portugal, em 1820-1821, quando as ten-
sões geradas entre a nova Corte e a capital Lisboa38 foram frontalmente
postas em xeque e questionadas pelos grupos então sediados no Reino de
Portugal. As condições de governabilidade exercitadas a partir do Rio de
Janeiro foram questionadas, contexto que acabaria por incidir no desenla-
ce do vínculo que então unia o Brasil ao complexo Império português.
O alvará de 22 de abril de 1808 determinou a criação, no Rio de Janei-
ro, dos Tribunais da Mesa do Desembargo do Paço e da Consciência e
Ordens. O primeiro era o órgão máximo pelo qual se despachavam por
meio de "provisão" os mais variados pedidos de licença encaminhados à
Coroa, bem como os pedidos de revisão de idade, perdão e revistas. Já o
da Consciência e Ordens tratava das matérias que diziam respeito à obri-
gação da consciência do monarca e à jurisdição sobre os privilégios eclesiás-
ticos e das ordens militares. 39 Tal medida se fazia necessária, dizia o alva-
rá, em face da "interrupção de comunicação com a capital" e visava "[à]
solução dos negócios [... ] e a prosperidade dos vassalos" .40
Importante também destacar a posição singular ocupada tanto pela nova
corte quanto pela províncio4 1 do Rio de Janeiro, no que se referia à ação

37
Alvará de 1• de abril de 1808 (CLB, pp. 7-9).
38
Vale lembrar que esta é a forma mais freqüente como as duas cidades eram referidas na
legislação editada no Rio de Janeiro, no período aqui abordado.
39
Ambos os tribunais criados em Lisboa na década de 1532, sofrendo posteriormente inúme-
ras modificações que, no entanto, não alteraram a essência de suas jurisdições administrati-
vas. José Subtil. Op. cit., pp. 167-9.
40
Alvará de 22 de abril de 1808 (CLB, pp. 17-8).
41
Destaca-se o fato de que a legislação portuguesa, editada no Brasil entre os anos de 1808 e
1821, usou de forma bastante assistemática os termos capitania e provfncin com um mesmo
significado. .
MAR IA DE FÁT IMA SILV A GOU
VÊA

·administrativa a ser exe cuta da pela Mes


a do Des emb argo do Paço. Um
alvará promulgado em 22 de junh o do pud esse •
mesmo ano autorizou este órgão a
confirmar a concessão das sesmarias ced que não I
idas pelos governadores em suas
capitanias, des~acando que "ne sta Cor que não t
te e província do Rio de Jane iro
[eram elas] até agora dadas pelos Vice-R ra" e que
eis do Estado do Brasil", cab en-
do, de agora em diante, a função à próp uma orde
ria Mesa do Desembargo do Paço.
Mais uma vez, observa-se a situação na ta Ord em
qual o antigo vice-rei foi substituí-
do por um órgão da administração cen lhava um:
tral, situação que alçava o Rio de
Janeiro a um pata mar adm inis trat ivo diversida<
hier arqu icam ente dife renc iado das
demais capitanias do Brasil e das poss vinculado
essões ultramarinas portuguesas.
Pelo citado alvará de 22 de abril, era luso-brasi
tam bém criada a Chancelaria-Mor
do Estado do Brasil, med iant e o esta utilizados
bele cim ento do cargo de chanceler-
mor, com a "me sma jurisdição que exer em suas<
cia o do Reino". A presença da fa-
mília real e, por conseqüência, da alta con text o'
nobreza portuguesa em solo ameri-
cano, demandava cuidado maior com litar de N
o provimento da justiça nas "causas
crimes dos cavaleiros das Ord ens Mil tuni dad e!
itares". Nes se sentido, foi susp enso
o alvará de 12 de agosto de 1801, que dispusera
deixava a cargo dos Trib una is da
Relação da Bahia e do Rio de Janeiro ocasião d
- na pessoa de seus ouvidores do
crime - tais causas, ficando instituído Out ra i
o cargo de "juiz dos cavaleiros para
con hec er das sobreditas causas", e de da nova~
um "chanceler das três orde ns", no
âmbito da Chancelaria-Mor do Estado vará de 1
do Brasil entã o criada. 42
Vale destacar que não era de pouca mon da Suplic:
ta a preocupação da Coroa com ro foi tran
a cuidadosa gestão de uma "economia
política de privilégios" 43 tão carac-
terística da Mo narq uia portuguesa, esp porrugue:
ecia lme nte no con text o ocasiona-
do pela transmigração da família real para
o Brasil. Se prim eira men te havia "[ ] '
sido especificado o fórum para julg ame ••• j

nto das causas-crime dos cavalei-


ros, o ato régio seg uint e foi o da criação por ist<
do ofício de Escrivão do Registro
das Mercês do Estado do Brasil. Tal carg aqui se
o ficava criado no âmbito da Real tambér
Câmara, para fazer constar "a todo tem
po com a legalidade necessária, às
mercês" que o Rei fizesse aos seus "fié dev e p
is vassalos e evitar os inconvenien-
tes que pod em ocorrer por falta do com
pete nte registro", tudo ficando na
con form idad e do regi men to de 1o de Mantin
janeiro de 1777. 44 Pou cos dias de-
pois, foi inst ituí da a Ord em da Tor re tent e na 1
e da Esp ada , 45 para que tam bém
sos sup er
4Z O alvará de 9 de maio de 1808 dete rmin
ou a criação do ofício deve dor da Chan
do Esta do do Brasil (CLB, p. 33). celar ia-M or 46
Tal medi
43
J. Fragoso, M. F. Bica lho & M. F. Gouvêa. Uma leitu se verific
ra do Brasil colonial: bases da materialidade
e da gove rnab ilida de no Impé rio. Pmél
ope. Revistn de História e Ciêt1cias Sociais. Lisb mercanti
(nov. 2000), pp. 67-88. oa, no 23
44 em 1770
Alvará de 9 de maio de 1808 (CLB, p.
45 34). 47 O alvará
Ver o decr eto de 13 de maio de 1808, assim
com o tamb ém a carta de lei de 29 de nove Torre e I
do mesm o ano e o alvará de 5 de julho mbro
de 1809, que, post erior men te, especific t. li, pp.
gradações e o núm ero de mem bros que ou as várias
com punh am a referida Orde m da Torr 48 Decr eto
- Com enda dore s, Cavaleiros, etc. (CLB e da Espa da
, 1808, pp. 41 e 199; e 1809, p. 272). 49 Alvará d1
AS BASES INSTITlJCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 721
n pudesse a Coroa "remunerar os mais relevantes serviços" dos vassalos
a que não professassem a "Santa Religião", como os ''ilustres estrangeiros,
s que não tivessem outro prêmio que lhes seja equivalente senão. o da hon-
t> ra" e que, por isso, precisavam ser agraciados com merçês no âmbito de
:- uma ordem civil. 46 Cabe ainda lembrar que a progressiva importincia des-
ta Ordem, no contexto joanino do primeiro quartel do século XIX, espe-
lhava uma dada dinâmica social prevalecente na época, marcada por maior
diversidade social dos grupos de interesse econômico mais ativamente
vinculados à transformação do Rio de Janeiro em Corte do novo Império
luso-brasileiro, fato que concorreu para maior sofisticação dos emblemas
utilizados pela dita Ordem, que passou a adotar a legenda Valor e Lealdade
em suas chapas e medalhas, a partir de abril de 1810.47 Mais tarde, já no
contexto da aclamação de D. João VI, foi instituída uma nova Ordem Mi-
litar de Nossa Senhora da Conceição, visando abrir maior número de opor-
tunidades para o reconhecimento régio da lealdade dos vassalos que se
dispuseram a concorrer com recursos para a organização dos festejos por
ocasião de tal celebração. 48
Outra importante transformação, observada no processo de instalação
da nova administração central no Rio de Janeiro, foi introduzida pelo al-
vará de 10 de maio de 1808, que determinou o estabelecimento da Casa
da Suplicação do Brasil, ocasião em que a antiga Relação do Rio de Janei-
ro foi transformada no novo Tribunal Superior da Magistratura da América
portuguesa. 49 Isto era necessário

"[... ] não só por estar interrompida a comunicação com Portugal e ser


por isto impraticável seguirem-se os agravos ordinários e apelações que
aqui se interpunham para a Casa da Suplicação de Lisboa [... ] como
também por [se] achar [o príncipe regente] residindo nesta Cidade que
deve por isso ser considerada a [... ] Corte atual."

Mantinha o novo Tribunal as mesmas jurisdições do anteriormente exis-


tente na cidade, sendo apenas acrescido da atribuição de tratar dos recur-
sos superiores encaminhados pela magistratura de todas as capitanias do

46
Tal medida não surpreende, ao se considerar que, desde o período final da época pombalina,
se verificava em Portugal uma renovação de valores em prol de maior aceitação dos grupos
mercantis na nobreza portuguesa, tendo sido decretado o comércio como profissão nobre
em 1770 e, em 1773, abolida a antiga diferenciação entre cristãos-novos e cristãos-velhos.
47
O alvará de 23 de abril de 1810 determinou a inovação da chapa e a medalha da Ordem da
Torre e Espada (CLB, pp. 99-100); e Luís Gonçalves dos Santos (Padre Perereca). Op. cit.,
t. 11, pp. 181-5.
48
Decreto de 6 de fevereiro de 1818 (CLB, p. 60).
49
Alvará de 10 de maio de 1808 (CLB, p. 35).
722 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVf:A

Brasil -incluindo o Pará e o Maranhão - da ilha dos Açores e da Madeira bém n


e da Relação da Bahia. Passava a ser bastante significativa a autonomia cível, c
judiciária do Brasil em relação à de Lisboa, apenas diminuída em 1809, Rio. C
após a expulsão dos franceses, quando foi restaurada a capacidade de ins- dos m:
tância máxima recursal da Casa da Suplicação de Lisboa em relação ao tral da
Pará e ao Maranhão. 50 Nesta alteração, mais uma vez foi considerado o admin
argumento da facilidade de comunicações existente entre tais regiões e assunt
Lisboa. ÜUI

O alvará de 9 de julho de 181051 determinou, ainda, que todas as "sen- inten<


tenças e cartas expedidas pelos juízes desta Corte e cidade do Rio de "nece
Janeiro" passassem pela Chancelaria da Casa da Suplicação do Estado do tinha
Brasil. Por este mecanismo, adotava-se um expediente "assim praticado jurisd
na [... ] Corte e Cidade de Lisboa", e que, por isso, deveria ser adotado e ClVl
no Rio de Janeiro. Esclarecia ainda que a medida era também fruto da de "I
"necessidade de se acrescentar moderadamente o ordenado e emolumen- um ó
tos que percebe o Escrivão da Chancelaria [... ] sendo por isso impraticá- da ro
vel o poder subsistir, maiormente atendendo-se à carestia dos tempos". difere
Nesse sentido, o Escrivão receberia por cada sentença e carta que passas- favor,
se pela Chancelaria da Casa da Suplicação a soma de 80 réis, além do "vadi
ordenado anual de 80$000. A decisão foi tornada extensiva às causas da contr
décima urbana e das tratadas na Real Junta de Comércio, lugar "onde se pelo
tratam de muitas causas por privilégio e por graça, solicitadas por versa- E~

rem sobre interesses mercantis, como em outros tribunais, cujas sentenças to, rc
transitam pela Chancelaria Mor". 52 Estabelecia-se um poderoso mecanis- políc
mo de remuneração mais condigna do funcionário encarregado da admi- admi
nistração dos papéis que tramitavam pela Casa da Suplicação do Brasil, do A
mecanismo que promovia a geração interna de recursos para a própria uma
manutenção do sistema. gove
Vale ainda destacar a posição privilegiada da referida Casa da Suplica- dore
ção do Brasil com relação à administração dos assuntos judiciários da co- tani:
marca do Rio de Janeiro, especialmente no que se referia à indicação dos
substitutos de seus vários magistrados. Decretos editados em junho de 54 c
1809 e em setembro de 181253 ordenaram primeiramente que o Regedor e1
da Casa da Suplicação nomeasse um dos juízes do Crime da Corte para dt
substituição, nos impedimentos, do juiz de fora do cível, e, depois, tam- n
55 [

rc
50
A reconsideração dos negócios dos habitantes das ilhas dos Açores, da Madeira e de Porto L
Santo só voltaria a ser feita novamente pelo Tribunal de Lisboa, por determinação do alvará p
de 5 de julho de 1816 (CLB, p. 468). 56 c
51
Alvará de 9 de julho de 1810 (CLB, pp. 121-3). s
5
z Alvará de 27 de agosto de 1810 (CLB, pp. 141-2). s
53
Decreto de 12 de julho de 1809 e decreto de 4 de setembro de 1812 (CLB, 1809, p. 92 e c
1812, p. 53). I

'<
d
AS RASES INSTITlJCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 723

bém nomeasse, dentre os juízes do Crime da Corte e dos juízes de fora do


cível, o que deveria substituir o ouvidor e o juiz de órfãos da Comarca do
Rio. Complexa situação esta, de interseção entre as jurisdições judiciais
dos magistrados da Comarca e dos situados no âmbito da magistratura cen-
tral da Casa da Suplicação do Brasil, atestando com clareza o fato de que a
administração e o governo cotidiano da Corte do Rio eram encarados como
assuntos pertinentes à alta administração da Coroa portuguesa.
Outro alvará, de 10 de maio de 1808, determinou a criação do cargo de
intendente-geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil, em face da
"necessidade que há de se criar" tal lugar com as mesmas jurisdições que
tinha o de Portugal. 54 Neste sentido, estabelecia-se "ampla e ilimitada
jurisdição na matéria da mesma Polícia sobre todos os Ministros, criminais
e civis" (art. 1" do alvará de 1760), esperando-se em retorno o provimento
de "limpeza e abundância, segurança e saúde" na cidade. 55 Instituía-se
um órgão superior que passava a coordenar, do Rio de Janeiro, boa parte
da rotina de toda a magistratura na América portuguesa, organizando os
diferentes espaços mediante a ação coordenada de seus magistrados, para
favorecer as condições do abastecimento da nova Corte, da punição dos
"vadios", da implementação de prisões em capitanias mais distantes, do
controle tanto da circulação de impressos quanto de pessoas estrangeiras
pelo Brasil como um todo.
Este quadro de hierarquização das regiões a partir da Corte foi, portan-
to, reforçado ainda mais por meio desta ação cotidiana do intendente da
polícia, que articulava as jurisdições da magistratura com as de foro mais
administrativo, ou as da polícia, no seu sentido mais clássico no contexto
do Antigo Regime, 56 reforçando a constituição de meios mais eficazes de
uma governabilidade da Coroa em relação à nova Corte. Essa atuação
governativa era articulada e integrada por meio da ação dos diversos ouvi-
dores, desembargadores do Crime, bem como dos governadores de capi-
tanias, constituindo-se uma intricada rede de oficiais que se estendia des-

54
Conforme os alvarás de 25 de julho de 1760 e de 15 de janeiro de 1780. Vale lembrar que,
em 1766, a Coroa jã havia determinado que o ouvidor-geral do crime do Tribunal da Relação
do Rio de Janeiro deveria servir também como intendente da polícia, atribuição que ga-
nhou instância própria apenas em 1808.
55
D. Rodrigo de Souza Coutinho. "Representação a S.A.R. O Príncipe Regente sobre uma
reforma da Câmara do Rio de Janeiro", in: Textos políticos, econômicos efintmceiros (1783-1811).
Lisboa: Banco de Portugal, 1993, t. 11, p. 347. Jurisdição que, segundo D. Rodrigo, acabaria
por gerar inevitavelmente conflitos com o Senado da Câmara do Rio.
16
· O termo polícia, neste contexto, carregava significado muito particular e próprio da época.
Segundo oDiciotldrio da Lf11gua Portuguesa, organizado por Antônio de Morais Silva, tratâva-
se do "governo e administração interna da República, principalmente no que respc:ita às
comodidades, isto é, asseio, fartura de víveres e vestiaria; e à segurança dos Cidadlos".
Lisboa: Typographia Lacerdina, vol. li, p. 464.
7.24 MA RIA DE FÁ TIM A
SILVA GO lfV ÊA

de o Rio de Janeiro até os


confins das ilhas do Atlân
capitanias do Brasil, inclui tico, de Angola e das
ndo tam bé m o Pará e o Ma pelo Bra
Conforme argumenta ]. F. ranhão.-' 7
de Almeida, a esfera de açã dê nc ia a1
int en de nte da polícia do o governativa do de natur<
Rio foi, por certo, muito
exercida pelo cél eb re int en maior do qu e a outrora
de nte de Lisboa, Pina Ma vernativa
cificidade do co nte xto im nique, da da a esp e-
perial luso-brasileiro no iní to são cc
Não sem razão, fora Pa ulo cio do século XIX. 58
Fe rna nd es Viana o candid ministrm
ocupar tal cargo, sen do ato selecionado para
ge nro de Brás Ca rne iro juízes de
comerciantes de grosso tra Le ão , um do s maiores
to do Rio de Janeiro no pe ao intend
sa maneira, sua s co ne xõ ríodo abordado. De s-
es familiares pu nh am a do Sena<
soma de recursos disponib seu dis po r um a gra nd e
ilizados para a "administra correspot
me nto das necessidades ma ção [... ] [e o] ate nd i-
is urgentes do Estado, aju reza mui1
sição e prestígio dos Carne dando a firmar a po-
iro Le ão jun to à Co rte e ganos e c
Jan eir o" . 59 soc iedade do Rio de
nit iva s e
Além de tud o isso, o fato passaport
de qu e Paulo Fe rna nd es
reuniam a cada dois dias, Viana e D. João se
fazia de le um dos oficiais nais sobn
ao prí nc ipe reg en te. 60 Re ma is inf lue nte s jun to
lem bre -se , tam bé m, o fat Brasil; a 4
ocupação do posto de int o dcs qu e a sua longa
en de nte marcou muito de angola pa
tuído pela própria perman perto o período consti-
ência de D. João no Brasi nascentes
zam vigorosa e profunda l, aspectos qu e sinali-
sintonia en tre ambos os ge m de {
me nte , a sua substituição personagens. Posterior-
no cargo de int en de nte de periferia 4
Lu ís Pe rei ra da Cu nh a, polícia por Antônio
em 26 de fevereiro de 18 Rio de J~
gundo Oliveira Lima, em 21 , teria resultado, se-
profunda deteriorização das geração d
da cidade", qu e ficou ma "condições policiais
is "anarquizada, soltando-se tendência
ras, qu e armados de navalh as maltas de capoei-
as e a cabeçadas, espalhav no Brasil
tas e nos aju nta me nto s po am o terror nas fes-
pulares". 61 de Histór
Ca be lem bra r qu e um a Em 13
das características mais ma
Paulo Fe rna nd es Viana era rca nte s da ação de
jus tam en te a construção dos, de te
de comunicação en tre as de um a grande red e
principais au tor ida de s go Pólvora. 62
vernativas esp alh ad as
Rodrigo <
57
Conforme pod e ser facilm Negócios
ente observado na correspon
destas regiões com a Intend dência trocada ent re as aut
ência-Geral da Polícia da oridades dois setor
exemplo, a documentação Corte e do Estado do Brasil.
58 que inte gra os volumes do códice Ver, por municaçõ<
J. F. Almeida Prado.D. Joã 325 do Arquivo Nacional.
59 o VI e o i11ício dn clnssedirigetlle
Riva Gorestein. Op. cit., p. no Brasil. São Paulo: Nacio família re:
201. Brás Carneiro Leão, nas nal, 1968.
Rio de Janeiro em torno de cido na cidade do Porto, che
1748, obt end o fortuna nos
seu s negócios; casou-se com
gara ao posição p1
pro em ine nte comerciante filha de
na capitania e tornou-se sen servava ta
ao falecer em 1808, era don hor de engenho. Seg und o
o de uma das mais próspe a autora,
Janeiro. Já Paulo Fer nan des ras casas de comércio do
Rio de
ções gove
Viana foi agraciado com com
Conceição, bem como com endas da Ord em de Cristo gãos. 63 Es
a doação da estância de São e da
várias sesmarias no Rio de Simão, no Rio Gra nde do
60 Janeiro e o título de barão Sul, e de
Paulo Fer nan des Viana hav de São Simão (pp. 198-201).
ia anteriormente ocupado
de Sabará (1789), de desem os cargos de int end ent e dec
bargador dos Tribunais da api taç ão 6l Decretos
(1799 e 1804 ). Ver J urandi Relação do Rio de Janeiro
61 r Ma lerb a. Op. cit., p. 264. e do Porto 63
Vale lemt
Oliveira Lima. Op. cit., p.
157. nominad~
den te do
AS RASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 725

pelo Brasil joanino. Os códices que reúnem boa parte dessa correspon-
dência atestam com clareza a ação do oficial, de recolha de informações
de natureza bastante variada, bem como de envio de determinações go-
vernativas de ordem igualmente diversificada. Alguns bons exemplos dis-
to são constituídos pela grande correspondência que o oficial enviava a.
ministros de Estado, governadores de capitanias, ouvidores de comarca,_
juízes de fora e demais magistrados espalhados pelo Brasil e pela ÁfricaL
ao intendente de Polícia de Lisboa, a juízes do Crime de bairro e a oficiais
do Senado da Câmara da cidade do Rio de Janeiro, dentre outros. Essa
correspondência envolvia o-pedido de remessa de informações de natu-
reza muitíssimo ampla, destacando-se especialmente as sobre: vadios, ci-
ganos e escravos de má conduta, bem como a aplicação de medidas pu-
nitivas em relação a eles; a circulação de estrangeiros e a emissão de
passaportes; os dados que viabilizassem a construção de mapas populacio-
nais sobre as várias regiões; as condições dos caminhos no Centro-Sul do
Brasil; a circulação de tropas de gado; o envio de sementes do capim-de-
angola para o incremento da produção pecuária do Brasil; as condições das
nascentes e dos rios que abasteciam com água a cidade do Rio; a drena-
gem de pântanos e a manutenção das ruas e dos principais caminhos na
periferia da cidade; o recrutamento de homens para os corpos militares no
Rio de Janeiro; o padrão de construção de edifícios na cidade do Rio; a
geração de recursos em favor da ação governativa levada a cabo pela In-
tendência; o fomento de uma política de formação de trabalhadores livres
no Brasil joanino; a coleta de elementos para a constituição de um museu
de História Natural no Rio de Janeiro.
Em 13 de maio, outros dois importantes decretos régios foram edita-:
dos, determinando a criação da Impressão Régia e da Real Fábrica de
Pólvora. 62 Os dois órgãos foram deixados a cargo da administração de D.
Rodrigo de Sousa Coutinho, então ministro e secretário de Estado dos
Negócios Estrangeiros e da Guerra. Foram criados com o intuito de suprir
dois setores carentes de atendimento e de crucial importância para as co-
municações e a defesa territorial, especialmente em face da presença da
família real no Brasil e da interrupção das comunicações com a Europa. A
posição privilegiada de D. Rodrigo, no contexto político da época, se ob-
servava também no caráter progressivamente agigantado de suas jurisdi..
ções governativas, então acrescidas da gestão destes dois importantes ór-.
gãos. 63 Essas medidas apresentavam forte caráter transformador do Rio,.

6
~ Decretos de 13 de maio de 1808 (CLB, pp. 42 e 43).
63
Vale lembrar que, pelo decreto de 17 de fevereiro de 1815, a Impressão Régia, j4 entio de-
ao
nominada Real Oficina Tipográfica e Fábrica das Cartas de Jogar, ficou subordinada presi-
p.
dente do Real Erário, na qualidade de "inspetor geral destes estabelecimentOs" (CLIJ, 4).
726 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

de Janeiro como a nova Corte portuguesa. Muniçõ es militares e literárias da M~


eram instrum entos básicos em uma corte europeizada, cabeça de uma tota- da, à~
lidade política e territorial muitq mais ampla, como a do Império português, mente::
então reconst ituído como um Império luso-brasileiro. A nova Corte pode- deterr
ria ter acesso, por exemplo, a uma imprensa periódica regular, um dos mais nados
importa ntes emblem as da civilidade, que deveria caracterizar o novo esta- da Ci
tuto da cidade. A Gazeta do Rio de Janeiro viria cumpri r este papel, forne- confo1
cendo à nova Corte mais este instrum ento de sociabilidade política. 64 junho
Prosseg uindo no processo de constituição da nova Corte, decidiu a Co- mia t
roa criar o Tribun al da Real Junta de Comérc io, Agricultura, Fábrica s e Rio d
Navegação, median te o alvará de 23 de agosto de 1808. Dizia que a medi- C a!
da era fruto de uma "mui particular consideração [daqueles] [... ] que pro- ver u
duzem a bem do interess e do Estado, visando à multiplicação da riqueza e econ(
aument o [da] população; merece ndo por isso [... ] os mais vigilantes cui- assun
dados" . Tomav a para isso o exempl o da medida ordena da por D. José I, medi'
pela lei de 5 de junho de 1788, de onde era tirado o regime nto para o favon
Tribun al então criado no Brasil. Dizia, ainda, que era de se esperar que a outra
ro", f
"[... ] criação de um Tribuna l semelh ante ao de Portugal, que entend a tica,
e provide ncie em todos os Ôbjetos desta naturez a, resulte m grande s das~
utilidad es em benefíc io comum dos [... ] fiéis vassalos habitan tes deste o
vasto e feliz contine nte," 65 da O
sião c
especia lmente depois de ter sido determ inada a liberda de do comércio. O daçã<
preside nte do novo Tribun al seria ningué m menos do que o ministr o de criad
Estado, já então encarregado do despach o do gabinet e real, D. Fernan do jurisc
José Portugal, que também servia como preside nte do Real Erário, fican- públ
do a seu cargo a nomeação dos deputad os que passariam a integra r a nova E~
junta. 66 Especificava, ainda, a compet ência do novo Tribuna l, que ficava trai i
incumb ido do tratame nto das "matéri as relativas aos objetos de sua insti-
tuição [... ] o comércio, agricultura, fábricas e navegação", decidin do so- 68
De
bre o que lhe fosse requeri do, consult ando o príncip e regente , quando 69
Cc
necessário, e propon do tudo o que pudess e concorrer para o melhor amen- os
N:
to que interess asse ao bem do Estado Y Por fim, determ inava a extinçã o da
ec
70
64 AI
F.-X. Guerra. Op. cit. 71
65 Ül
Alvará de 23 de agosto de 1808 (CLB, pp. 105-06).
66 pc
Eram também criados os cargos de juiz conserva dor e de fiscal, com as mesmas
jurisdiçõ es de
por eles exercida s no Tribunal de Lisboa, ibid.
67 so
O alvará de 15 de julho de 1809 determin ou a criação de uma contador ia na
Real Junta e Ju
ampliou o número de contribui ções a serem pagas ao dito tribunal, visando
à realização do e)
projeto de construç ão de uma Praça de Comérci o no Rio de Janeiro. As novas
imposições 72
M
eram constituí das pelo pagamen to de impostos sobre o açúcar, o tabaco, o couro
e o algodão, dt,
no momento de desemba rque destes produtos (CLB, pp. 93-4).
AS BASES INSTITU CIONAI S DA CONSTR UÇÃO DA UNIDAD
E 727

da Mesa de Inspeção, passando todos os assuntos, até então sob sua guar-
da, à jurisdição da nova Real Junta de Comércio, medida que foi parcial-
mente alterada, posteriormente, pela decisão de 3 de junho de 1809, que
determ inou que a "administração e arrecadação dos rendim entos consig-
nados às despesa s públicas", outrora a cargo da extinta Mesa de Inspeção
da Cidade do Rio de Janeiro, ficassem sob a jurisdição do Erário Régio,
conform e o que já era praticado em Lisboa, segund o os Decreto s de 12 de
junho de 1779 e de 14 de junho de 1780. Tal medida reforçou a autono-
68

mia tributár ia da Coroa, pela concen tração da captaçã o de recursos, no


69
Rio de Janeiro, por parte do Erário Régio.
Cabe também destacar o fato de que a Real Junta acabou por desenv ol-
ver uma ação cada vez mais destaca da de apoio a grupos de interes se
econômico, situados na nova Corte do Rio de Janeiro, chegan do mesmo a
assumir diretam ente a administração e a implem entação de determ inadas
medida s, como foi o caso do alvará de 7 de julho de 1810,7° que conced eu
favores a todos os que introduzissem e cultivassem especiarias da Índia e
outras plantas exóticas no Brasil. No caso da "província do Rio de Janei-
ro", ficava a própria Real Junta encarregada da implem entação desta polí-
tica, ao passo que, nas demais capitanias, tal incumb ência ficaria a cargo
71
das Mesas de Inspeçã o existen tes em cada uma delas.
O alvará de 28 de julho de 1809 criou o lugar de provedor-mor da Saúde
da Corte e Estado do Brasil, desanexando-o da Inspeção das Câmaras, oca-
sião em que foi nomeado o Dr. Manue l Vieira da Silva responsável pela re-
dação de um dos primeiros textos publicados pela Impressão Régia, recém-
criada no Rio de Janeiro.7 O regimento dado à Provedoria estabel eceu sua
2

jurisdição sobre os exames e as vistorias dos matado uros e dos açougu es


públicos, buscan do melhorar as condições de salubri dade da nova Corte.
Este conjun to de órgãos que, juntos, constituíram a administração cen-
tral instalada na nova Corte do Rio de Janeiro, foi criado no curto espaço

68
Decisão de 3 de junho de 1809 (CLB, pp. 74-5).
1810, que
69
Com o progressivo desenvolvimento de suas atividades, ficou determinado, em
s e os ministros togados da Real Junta de Comércio , Agricultura, Fábricas e
os deputado
ntos e propinas que venciam os
Navegação do Brasil deveriam receber os mesmos emolume
costumes
da Real Junta de Lisboa, pois ela havia sido "criada[... ] com os mesmos estilos,
ntos daquela de Lisboa". Ver a decisão de 1o de junho de 1810 (CLB, p. 13).
e emolume
70
Alvará de 7 de julho de 1810 (CLB, p. 119).
de Janeir~
71
Outro exemplo desta vinculação mais direta da Real Junta com a área do Rio
ser observad a também em relação ao alvará de 3 de junho de 1809 (pp. 69-76), que
pode
sisa (5%)
determinou o pagamento de sisa (10%) sobre todas as compras e as vendas e meia
sendo o recebedo r de tais quantias, no Rio de Janeiro; a Real
sobre os escravos ladinos,
çio ali
Junta de Comércio e, nas demais capitanias, as Juntas da Administração e Arrecada
existentes.
dimtz
72
Manoel Vieira da Silva. Reflexões sobre alguns dos meios propostos por mais pam fll#/jomr#
da cidade[ . .. ]. Rio de Janeiro: Impressão Régia, 1808.
728 MARIA DE FÁTIJ'viA SILVA GOllVÊA

de seis meses, transcorridos entre março e agosto de 1808. Observa-se aí Çorte


um período de rápida instalação da nova engrenagem governativa, por zada
medidas administrativas editadas por D. João, que, dessa forma, cumpria a pree1
missão de quem, nas palavras de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, "final- cém-
mente veio criar um novo império nesta ditosa parte da monarquia. 73 da C
impc
3 pres1
ÜUTRAS ESTRATÉGIAS GOVERNATIVAS mon
NO RIO DE JANEIRO JOANINO dos
o
Vale lembrar, antes de mais nada, que a capitania do Rio de Janeiro parti
manteve inalterada a singularidade de sua inserção jurisdicional ao longo das
de todo o período, quando comparada às demais províncias do Brasil joani- tiva
no, situação explicitada por ocasião do alvará de 10 de setembro de 1811, tant
que mandou estabelecer nas "Capitais dos Governos e Capitanias dos Do- zar
mínios Ultramarinos Juntas, para resolver aqueles negócios que antes se inst
expediam pelo recurso à Mesa do Desembargo do Paço". 74 Tal medida se terr
impunha, explicava o texto do alvará, em face das dificuldades enfrenta- dad
das na tramitação das inúmeras representações enviadas à Mesa do De- de
sembargo do Paço, bem como a positiva experiência anterior das "Mesas" prir
existentes nos antigos Tribunais da Relação da Bahia e do Rio de Janeiro, dê r
por onde muitos dos assuntos da alçada da Mesa do Desembargo do Paço r
já eram anteriormente despachados. No Rio de Janeiro, entretanto, tudo dm
indica que nunca se procedeu à instalação de tal expediente administrati- de!
vo, havendo apenas indícios de que tanto a capitania quanto a Corte per- rea
maneceram, ao longo do período, numa situação de subordinação direta de
para com a Mesa do Desembargo do Paço, bem como para com os minis- da
tros de Estado, especialmente o do "Reino" - ou do Brasil - e o dos Ca
Estrangeiros e da Guerra. gr<
Já a cidade do Rio de Janeiro sofreu grande alteração em sua área de de
jurisdição governativa e de atuação administrativa, por ocasião da ereção me
em Vila da povoação de São Domingos da Praia Grande, com a denomina- pe
ção de Vila Real da Praia Grande, em maio de 1819.15 Tal medida resul- se
tou, em parte, do apreço de D. João VI pela localidade, tendo ali passado, Ri
anteriormente, alguns dias de descanso. Mas, de fato, medida que possibi- di
litava a ampliação do número de espaços de atuação política existentes na

73 76
"Aviso para o Intendente-Geral da Polícia do Rio de Janeiro [Paulo Fernandes Viana]", in:
77
D. Rodrigo de Sousa Coutinho, op. cit., t. II, p. 354.
74
Estas Julltns eram integradas pelo governador e pelo capitão-general, pelo ouvidor e pelo
juiz de fora, sendo instaladas nas casas dos governadores, onde se procedia à eleiçlio de seus
78
demais membros, oriundos da gente da governança local (CLB, pp. 105-07).
75
Alvará de 10 de maio de 1819 (CLB, pp. 24-6).
AS BASES INSTITUCI ONAIS DA CONSTRUÇ ÃO DA UNIDADE 729
Corte do Rio, ocasião em que uma nova governança passava a ser organi-
zada de forma sistemática do outro lado da baía de Guanabara. Não sur-
preende, portanto, ver José Clement e Pereira, grande comercia nte re-
cém-cheg ado de Portugal, ser nomeado primeiro juiz de fora e president e
da Câmara da Praia Grande, constituin do tal experiênc ia um momento
importan te em sua trajetória política, antecede ndo sua nomeação para a
presidênc ia do Senado da Câmara do Rio de Janeiro, dois anos depois,
momento em que desempen haria atuação preponde rante no desenlace
dos acontecim entos políticos de 1822.
O processo de instalação de uma administração central na nova Corte, a
partir de 1808, se fez acompanhar de um outro conjunto de órgãos e medi-
das administrativos complem entares. Esta roupagem político-adm,jnistra-
tiva envolvia um requintad o número de instrumen tos governativos, que
tanto expressavam o novo estatuto da cidade, quanto procuravam viabili-
zar o exercício de uma governabilidade mais alargada pelas autoridad es
instaladas na cidade. O segundo bloco de medidas pode ser dividido, em
termos gerais, em três principais áreas de atuação governativa: as autori-
dades eclesiásticas, as forças militares e a administração cotidiana da cida-
de mais propriamente dita, entendida , aqui, como ação mais rotineira das
principais autoridades a ela relacion adas- o Senado da Câmara, a Inten-
dência da Polícia e os juízes do crime de bairros da Corte.
No que tange à esfera eclesiástica do governo do Rio de Janeiro, um
dos recursos então acionados foi a maior gradação social destas autorida-
des, especialm ente das que se encontravam diretamen te ligadas à família
real recém-instalada na cidade. Nesse sentido, a carta régia de 3 de junho
de 1808 transformou o bispo diocesano do Rio de Janeiro no capelão-mor
da Casa Reai.76 O alvará de 15 de junho do mesmo ano condecorou a Sé
Catedral da cidade com o título de "Capela Real" .77 O avanço dessa pro-
gressiva diferenciação culminou com a criação de "uma nova Dignidad e
de Arcipreste, imediata ao Deão", incluindo a definição de um número de
monsenho res da Sé, bem como a condecoração dos cônegos da Real Ca-
pela com o "tratame nto de senhoria" . 78 Mais tarde, o alvará de 27 de
setembro de 1810 aprovou e confirmou os estatutos da Capela Real do
Rio de Janeiro, ocasião em que foi editada também uma nova tabela dos
dias e das funções solenes, classificados hierarqui camente em quatro or-

76
Carta régia de 3 de junho de 1808 (CLB, p. 62).
77
Alvará de 15 de junho de 1808 (CLB, p. 55). O alvará de 20 de agosto de 1808 determinou
a imposição de umapmslio arbitrtfria, calculada conforme a lotaçlio das igrejas das Ordens do
Brasil e domínios ultramarinos, visando à construção de uma nova capela real.
78
Carta régia de 25 de agosto de 1808 e alvará de 21 de dezembro de 1808 (CLB, pp. 132 e
176).
750 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOlJVÊA

de tropa
dens. 79 Interessant e notar que a data (20 de janeiro) de celebraçã9 do de mão-
santo padroeiro da cidade, São Sebastião, ficou classificada no primeiro abasteci
grupo, categoria bastante restrita e seleta, apenas integrada por outras cument:
nove datas, dentre as mais importantes do calendário católico. Já o dia (13 para o c
de junho) de Santo Antônio de Lisboa ficou incluído no terceiro grupo, em pro1
80
acompanhado de celebrações de menor importância religiosa e política. tesse e:
A data (7 de março) de celebração pela feliz chegada de D. João ao Rio de mais ni
Janeiro foi classificada no segundo grupo, junto, por exemplo, da sexta- no 29 d
feira santa. No quarto e último grupo, o maior de todos eles, encontrava m-
81
se listados os dias dos santos de menor importância. "[..
O setor que provavelme nte mereceu a edição do maior número de di- di fe
plomas régios no âmbito administrat ivo aqui considerado foi por certo o do]
ligado ao setor dos corpos militares, encarregado da defesa e da manuten- da I
ção da ordem social na nova Corte do Rio. Eram medidas que envolviam Tro
uma grande área de atuação governativa, que ia desde os esforços de re- mo:
crutamento da tropa, em face da imensa carência de homens, à obtenção e
à administraç ão de recursos materiais necessários à manutençã o dos cor- Oc
pos militares, o "governo das armas", a definição de procedimen tos de dos n
graduação militar e, até mesmo, a definição da quantidade e da qualidade de p<
dos instrument os musicais imprescindíveis às bandas militares. Vale lem- cialm
brar também o fato de que havia uma gama muito variada de formas orga- à arti
nizacionais dos corpos militares no Brasil colonial, constituind o um com- Ot
plexo emaranhad o que buscava dar conta minimame nte da constituiçã o pas 1
das tropas necessárias, bem como do agrupamen to e do controle hierár- milí<
quico do conjunto da população, espalhada pelos territórios que integra- orga1
vam a América portuguesa . 82 de.s5
Cabe também destacar que, no Rio de Janeiro joanino, o recrutamen to Rio
c na<
79
Alvará de 27 de setembro de 1810 (CLB, pp. 153-210). da I
8
° Curioso perceber que, no trâmite da administração cotidiana da cidade de São Sebastião do lam
Rio de Janeiro do primeiro quartel do século XIX, era Santo Antônio quem de fato mais
atenção recebeu das autoridades encarregadas do governo da cidade. A devoção pelo céle-
ta e
bre santo havia sido declarada oficial na cid~de desde 1711 e o decreto de 14 de julho de
1810 elevou o "glorioso Santo Antônio da devoção do Rio de Janeiro ao posto de major de 83 (

infantaria, pagando-lhe o competente soldo" (CLB, p. 125). Os progressivos sucessos mili- 5


tares na Europa, observados por Portugal no ano de 1814, concorreram para que ele fosse
novamente promovido, então, ao posto de tenente-coronel, passando a perceber o soldo
condizente com a nova patente (CLB, p. 13). 84
81
A Decisão no 19, de 6 de abril de 1811 (CLB, pp. 16-7), mandou executar o breve, dispen-
sando para que no Bispado do Rio de Janeiro se pudesse trabalhar em dezesseis dias santos 85 l

-todos oriundos do quarto grupo indicado no alvará de 27 de setembro de 1810.


82
Argumentação clássica desenvolvida primeiramente pela obra já citada de Caio Prado J r. Ver 86

o capítulo "Administração". Ver também Dauril Alden. Royal Govemmmt in Colonial Brazil 87

with Special Refermce to the Administmtio11 of Marquis of Lavradio, Viceroy, 1769-1779. Berkeley
e Los Angeles: University of California Press, 1968; Francisco Bethencourt. "O complexo
Atlântico", in: F. Bethencourt & K. Chaudhuri (org.). Op. cit., vol. 2, pp. 315-42.
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 731

de tropas esteve sempre muito tensionado com a questão do suprimento


de mão-de-obra para o setor de produção e transporte de alimentos para o
abastecimento da cidade. Era esta uma preocupação recorrente na do-
cumentação editada ao longo de todo o período. Na virada do ano de 1808
para o de 1809, foram diversos os decretos que trataram das dificuldades
em proceder ao recrutamento de homens em moldes que não comprome-
tesse este vital setor econômico. Mais tarde, a Coroa procurou demarcar
mais nitidamente os encarregados de cumprir tal incumbência. A Decisão
no 29 de 16 de agosto de 1816 deu

"[ ... ] instruções para o recrutamento a que se deveria proceder nos


diferentes distritos da Província do Rio de Janeiro, [ficando encarrega-
do] dessa difícil e importante comissão, na Corte [o] Intendente-Geral
da Polícia e nos diversos Distritos da Província os Oficiais escolhidos da
Tropa de Linha, de acordo com os Coronéis e Comandantes dos mes-
mos Distritos." 83

O caráter diferenciado dos padrões de recrutamento a serem exercita-


dos no Rio de Janeiro evidenciava o papel preponderante do intendente
de polícia no gerenciamento dos assuntos da cidade e da capitania, espe-
cialmente no que se referia tanto à organização de sua defesa militar, quanto
à articulação desta com obtenção de defesa do abastecimento da cidade. 84
Outra estratégia que procurou melhor dar conta da organização das tro-
pas militares foi o esforço empreendido para criar novos regimentos de
milícias no Rio de Janeiro. Pelo decreto de 13 de maio de 1810, ficou
organizado o Regimento de Milícias de Caçadores dos Henriques na cida-
de.85 Uma nova organização dos batalhões de milícias da capitania do
Rio de Janeiro foi estabelecida nesse mesmo ano, 86 ocasião em que foram
criados os batalhões de Guaratiba e do Irajá, tendo em vista o crescimento
da população e a maior ocupação desses territórios na capitania. 87 Parale-
lamente, foram tomadas providências, em outubro de 1812, para a propos-
ta e a escolha dos oficiais de milícias e ordenanças, oportunidade em que

83
CLB, pp. 24-7. Posteriormente, a Decisão n" 40, de 18 de novembro de 1816 (CLB, pp. 34-
5), deu instruções para o recrutamento especificamente de "praças para o Exército", fican-
do encarregado, na capital, de tal tarefa o intendente-geral da polícia e, nos demais distritos,
os coronéis comandantes dos ditos distritos.
84
O alvará de 2 de junho de 1817 determinava que não deveriam ser recrutados os condutores
de víveres para a Corte (CLB, p. 17).
85
Os figurinos de seus uniformes foram aprovados pelo decreto do dia 22 do mesmo mes e
ano (CLB, pp. 107 e 110). ·
1 ...
86
Decreto de 5 de dezembro de 1810 (CLB, p. 256). . . ..
87
De breve existência foi a criação do Corpo de Inválidos da Corte do Rio de J~n~que -
recebeu instruções por meio do decreto de 20 de dezembro de 1811, sendo, cn~~to,
extinto em dezembro de 1815 (CLB, 1811, p. 148 e 1815, p. 60). · · ' · ·
732 MAR IA DE FÁT IMA SILVA
GOU VÊA

se procurou coo rde nar os mú ltip


los mec ani smo s de esc olh a e ind
dos indivíduos que dev eria m inte icação A
gra r este s corpos militares. 88 Em
foram criados mais três bat alh ões 1818, 1809,
de fuzileiros na Cor te, alé m de
companhia de hen riqu es, agregada um a com
a um Reg ime nto de Infantaria de
cias na capitania. 89 No ano seg uin Mil í- nova
te, foi aprovado um "plano para a
zação nes ta Cor te de dua s brigada organi- Trata
s ou baterias de artilharia mo nta
assim como o esta bel ecim ent o de da" ,90
dois novos Regimentos de Cavalar
Milícias na capitania, um env olv ia de "[.
end o as vilas de Res end e e São
Príncipe e o outro, as freguesias de Joã o do [d:
L Ser ra da Est rela . 91 Co m o des enc
1821, ficou det erm ina do o desliga
Valença, Paraíba e Inhomirim, além
ade am ent o da crise política de
mento da divisão dos "Voluntários
182 0-
da se
gn
de El- Rei " do Exército de Portug Reais me
al, ant erio rme nte enviada para o
que, desse mo men to em diante, pas Bra sil, aq
sava a per ten cer ao Exército do Bra
"em razão da nec ess ida de da con sil, ob
tinuação do seu serviço" .92 Ou tro
cio utilizado foi o recorrente env artifí-
io de tropas militares de Portugal
Brasil, um a vez restaurada a soberan para o
ia portuguesa em solo eur ope u, estr
tégia que acabou por gerar incongr a- N
uências na forma como ambas as
- a recrutada originariamente em trop as dev e
Portugal e a no Brasil - era m adm
tradas. Um bom exemplo dessas amb inis- irmã,
ivalências dizia respeito à própria ao g<
tência de duas esferas administrat exis-
ivas: uma, na Corte do Rio de Jan
outra, na capital, Lisboa, conform eiro, e do at
e se observa no dec reto de 26 de
de 1810, que declarou que os ofic
93 jun ho a Gt
iais do exército emp reg ado s no Bra
não dev eria m con trib uir para o mo sil que
nte pio esta bel ecid o em Portugal. 94 manc
Ou tra área de difícil gestão era a
da administração dos recursos ma
riais necessários à ma nut enç ão dos te- um 1
corpos militares. A primeira ten tati me n
de sistematizar mecanismos de sup va
rim ent os mais efic ien tes foi observ inst r
em 1810, com a criação de um Con ada
selh o de Administração em cada joani
me nto da Cor te e na cap itan ia regi-
do Rio, esta bel ece ndo "um sist
fun do de fard am ent o, pel o qua em a de Si
l se [rem ovi am] os gra ves inc ôm
embaraços que do atraso do seu dev odo s e 1810
ido pag ame nto resultavam à boa disc
plina e ma nte nim ent o do [... ] Rea i- levat
l Exército". 95
Real
88
se, p
Dec reto de 9 de outubro de 1812 (CLB
89 , pp. 60-2).
Decretos de 28 de abril e de 13 de
90 maio de 1818, respectivamente (CLB "i
Dec reto de 31 de julho de 1819 (CLB , pp. 36-8 e 43).
, pp. 41-2).
91
Decretos de 9 de outu bro de 1819
(CLB, pp. 59-64).
di
9
z Dec reto de to de deze mbr o de
93 1820 (CLB, pp. 42-3).
CLB, p. 117.
94
Out ro exem plo inte ress ante é o do foi
decreto de 22 de abril de 1821 (CLB
conc edeu aos oficiais e aos praças , p. 73), que M
do Exército do Brasil os mesmos sold
vencia a 'nop a do Exército de Portugal os e etapas que Rc
95 .
Alvará de 12 de março de 1810. Já o (C
decreto de 29 de março de 1810 regu
dos fardamentos do Rio de Janeiro, lou a distribuição
determinando as quantidades e a ta•
distribuição, tend o em vista as dife periodicidade de lin
rentes graduações militares (CLB, pp.
79-85). Em 1815 96
o.

!11.
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 733

A criação da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, em maio de


1809, foi certamente a tentativa mais elaborada de prover a nova Corte
com uma força punitiva mais numerosa e hábil o suficiente em face das
novas exigências jurisdicionais e governativas exercitadas pela cidade.
Tratava-se da

"[ ... ] absoluta necessidade prover à segurança e tranqüilidade pública


[da cidade,] cuja população e tráfico têm crescido consideravelmente, e
se aumentará todos os dias pela afluência de negócios inseparável das
grandes Capitais; e havendo mostrado a experiência, que o estabeleci-
mento de uma Guarda Militar de Polícia é o mais próprio não só para
aquele desejado fim da boa ordem e sossego público, mas ainda para
obstar as danosas especulações de contrabando, que nenhuma outra
providência, nem as mais rigorosas leis proibitivas têm podido coibir." 96

Novamente, enfatizava-se a necessidade de que mais esta nova criação


deveria seguir o padrão de "possível semelhança" com a instituição co-
irmã, já existente em Lisboa. A dita guarda ficava igualmente subordinada
ao governador das armas da Corte e ao intendente-geral da polícia, estan-
do ambos incumbidos de indicar os possíveis meios pelos quais poderia ser
a Guarda Real futuramente modificada, visando à melhor "utilidade" a
que se destinava. Posteriormente, o decreto de 20 de setembro de 1810
mandou adicionar à Divisão da Guarda Real um tambor-mor, bem como
um pífaro em cada uma de suas companhias de infantaria, medida de so-
menos importância, mas que, no entanto, reflete a relevância do uso de
instrumentos musicais no cotidiano dos corpos militares do Rio de Janeiro
JOamno.
Significativa estratégia de ampliação da Guarda Real foi a utilizada em
1810, quando se concedeu a Manuel dos Santos Portugal a "faculdade de
levantar a sua custa uma Companhia de Cavalaria para o corpo da Guarda
Real da Polícia", aceitando-se a sua "oferta voluntária" e considerando-
se, para Isso, a

"indispensável necessidade que há de se proceder a um aumento [da


dita Guarda] destinada ao importantíssimo objeto da manutenção. dl

foi ainda aprovada a concessão dos "uniformes aos Regimentos de Infantaria d~


Milícias desta Corte e Província do Rio de Janeiro", bem como dos "ciinn.~co~~~·=A~
Regimento de Cavalaria de linha do Exército". Decretos do dia 13 de n
(CLB, pp. 52-3). A Decisão no 13, de 9 de maio de 1816 (CLB, pp. tÂ'iMJJ:i.Qôlll...
também o envio dos modelos e dos figurinos dos uniformes dos f t A. . .. . , , " " "

linha e de mílicias da província do Rio de Janeiro.


96
Decreto de 13 de maio de 1809 (CLB, pp. 54-9).
AS BASES INSTITUCIO NAIS DA CONSTRUÇÃ O DA UNIDADE 733

A criação da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia, em maio de


1809, foi certamente a tentativa mais elaborada de prover a nova Corte
com uma força punitiva mais numerosa e hábil o suficiente em face das
novas exigências jurisdicion ais \C governativas exercitadas pela cidade.
Tratava-se da ·

"[... ] absoluta necessidade prover à segurança e tranqüilidade pública


[da cidade,] cuja população e tráfico têm crescido consideravelmente, e
se aumentará todos os dias pela afluência de negócios inseparável das
grandes Capitais; e havendo mostrado a experiência, que o estabeleci-
mento de uma Guarda Militar de Polícia é o mais próprio não só para
aquele desejado fim da boa ordem e sossego público, mas ainda para
obstar as danosas especulaçõ es de contraband o, que nenhuma outra
96
providência, nem as mais rigorosas leis proibitivas têm podido coibir."

Novamente , enfatizava-se a necessidade de que mais esta nova criação


deveria seguir o padrão de "possível semelhança " com a instituição co-
irmã, já existente em Lisboa. A dita guarda ficava igualmente subordinada
ao governador das armas da Corte e ao intendente-geral da polícia, estan-
do ambos incumbidos de indicar os possíveis meios pelos quais poderia ser
a Guarda Real futurament e modificada, visando à melhor "utilidade" a
que se destinava. Posteriorm ente, o decreto de 20 de setembro de 1810
mandou adicionar à Divisão da Guarda Real um tambor-mor, bem como
um pífaro em cada uma de suas companhias de infantaria, medida de so-
menos importância, mas que, no entanto, reflete a relevância do uso de
instrumento s musicais no cotidiano dos corpos militares do Rio de Janeiro
joanino.
Significativa estratégia de ampliação da Guarda Real foi a utilizada em
1810, quando se concedeu a Manuel dos Santos Portugal a "faculdade de
levantar a sua custa uma Companhia de Cavalaria para o corpo da Guarda
Real da Polícia", aceitando-se a sua "oferta voluntária" e consideran do-
se, para Isso, a

"indispensá vel necessidad e que há de se proceder a um aumento [da


dita Guarda] destinada ao importantíssimo objeto da manutençã o da

foi ainda aprovada a concessão dos "uniformes aos Regimentos de Infantaria de Linha e de
Milícias desta Corte e Província do Rio de Janeiro", bem como dos "cinco figurinos do 1o
Regimento de Cavalaria de linha do Exército". Decretos do dia 13 de novembro de 1815
(CLB, pp. 52-3). A Decisão no 13, de 9 de maio de 1816 (CLB, pp. 10-2), determinou
também o envio dos modelos e dos figurinos dos uniformes dos corpos de infantaria de
linha e de mílicias da província do Rio de Janeiro.
96
Decreto de 13 de maio de 1809 (CLB, pp. 54-9).
..-
734 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

tranqüilidade pública desta Corte [... ] cuja extensão e população tanto tente~

tem crescido. " 97 foi no


tania
Considerando o "patriotismo" com que o dito Manuel dos Santos Por- regim
tugal procurou "concorrer para o bem público", prestando tal serviço, foi recer
nomeado capitão da referida companhia, sendo nomeados seus irmãos da de
Brás Antônio dos Santos e Florêncio Antônio dos Santos para os postos de pas.,
tenente e de alferes, respectivamente. Verificava-se, assim, o uso de um para,
mecanismo poderoso de ampliação das condições de vigilância e de pre- Com
servação do "bem público", uma das mais importantes atribuições do in- ocup
tendente-geral da polícia do Rio, como argumentava o próprio texto do foi dt
decreto. Posteriormente, em 1812, foi novamente concedida "a graça" do o
de que ficasse por conta da responsabilidade do tenente Bento Correia com<
Vilas Boas a manutenção da 1• Companhia de Cavalaria da Divisão Militar força
da Guarda Real da Polícia, sendo-lhe, em troca, concedida "a graduação Va
de Capitão com o mesmo soldo que atualmente tem". 98 No ano seguinte, nece
João Egídio Calmon de Siqueira ficou igualmente autorizado a levantar, à
sua custa, uma Companhia de Cavalaria para o Corpo da Guarda Real da "c
Polícia. 99 G
Eram estes exemplos primorosos da dinâmica pela qual a Coroa portu- E
guesa cedia privilégios e status social em troca dos mais diversos favores tt
materiais possíveis. Estabelecia-se, dessa maneira, uma complexa e intri-
cada rede de interesses em torno da progressiva montagem da máquina ficai
administrativa que promovia e tornava possível a própria ação governativa fina
da Coroa no contexto aqui considerado de presença da família real no Rio bele
de Janeiro. Este processo parecia ser capaz de irradiar e de atrair interes- na c
ses múltiplos de forma geométrica, uma vez que a própria montagem de ben
tal mecanismo incidia na criação de novas vantagens e grupos vinculados des:
à sua própria instituição e progressiva ampliação. mtn
Quanto à inspeção e ao governo do conjunto das forças militares exis- c
COrJ
97
Decreto de 23 de dezembro de 1810 (CLB, pp. 264-5). O decreto de lo de dezembro de com
1813 criou os postos de capitães, tenentes e alferes nas Companhias de Infantaria e Cava- esc:
laria da Divisão Militar da Guarda Real da Polícia da Corte.
98
Decreto de 12 de outubro de 1812 (CLB, pp. 62-3).
99 1oo I
Decreto de 13 de novembro de 1815 (CLB, pp. 52-3). Outros mecanismos foram utilizados
I OI I
para ampliar o contingente da Guarda Real da Polícia. O decreto de 6 de julho de 1817 criou
uma Companhia de Infantaria no corpo na dita Guarda, em face do "progressivo crescimen-
to da cidades[ ... ] [e necessidade de] manutenção do sossego público, estabelecendo, uma
102 '1
Quarta Companhia, que teria base no novo quartel estabelecido no Largo das Laranjeiras.
103 1
O Decreto de 9 de janeiro de 1818 (CLB, p. 3) determinou o aumento do corpo, ficando cada
104 1
uma de suas companhias com o total de cem praças, e cada uma das duas companhias de
cavalaria teria mais vinte praças, perfazendo um total de setenta praças. Já o decreto de 2 de
março de 1818 (CLB, p. 22) mandou criar um Conselho de Administração de Fardamento
na Divisão Militar da Guarda Real da Polícia.
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 735

tentes no Rio de Janeiro, destaca-se o fato de que,. em junho de 1808, 100


foi nomeado um inspetor-geral dos Corpos de Milícias da Corte e da capi-
tania do Rio de Janeiro, com a obrigação de inspecionar todos os anos os
regimentos de milícias daquelas áreas, devendo ainda prestar contas e ofe-
recer sugestões ao "General Encarregado do Governo das Armas", ·.au-tori-
dade responsável pelos assuntos que diziam respeito aos ofiCiais das tro-
pas. A preocupação com a melhor organização destas forças concorreu
para que, em dezembro de 1810, fosse criada a Academia Real Militar na
Corte e cidade do Rio de Janeiro. 101 Outro aspecto interessante foi a pre-
ocupação de determinar os procedimentos de disciplina interna, no que
foi definido em 1812 como o "Exército do Brasil", quando ficou enfatiza-
do o respeito às hierarquias militares no envio de petições e agravos, bem
como do Regimento dos Corpos das Milícias, por serem estes "a maior
força armada do Exército" existente no Brasil de então. 102
Vale também destacar a preocupação, observada em março 1810, com a
necessidade de

"conservar aos Regimentos de Infantaria de Linha e Artilharia desta


Corte a Música que foi estabelecida, com a aprovação dos Vice-Reis do
Estado [... ] e sustentada até agora em alguns com as prestações gra-
tuitas que os indivíduos deles fizeram mensalmente," 103

ficando estabelecido, a partir daquele momento, que tal responsabilidade


financeira estaria a cargo da cargo da Tesouraria-Geral das Tropas. Esta-
beleceu-se também que, em cada um dos quatros Regimentos de Infanta-
ria e Artilharia da Corte, deveria haver entre doze ou dezesseis músicos,
bem como instrumentos musicais de diferentes tipos específicos, cujas
despesas teriam as contas prestadas posteriormente ao Conselho de Ad-
ministração de cada um dos regimentos.
Outro aspecto importantíssimo era o fato de a melhor organização dos
corpos militares, visando à maior preservação da ordem pública e do bem
comum, se dar em um contexto visceralmente marcado pela onipresença da
escravidão, como instituição fundadora das relações sociais aí vigentes. 104

100
Decreto de 24 de junho de 1808 (CLB, pp. 61-3).
101
Foram concedidos aos seus professores privilégios similares aos dados aos lentes da Uni-
versidade de Coimbra. Carta de lei de 4 de dezembro de 1810 (CLB, pp. 232-46).
102
Decisão no 12, de 3 de maio de 1812 (CLB, pp. 15-6).
103
Decreto de 27 de março de 1810 (CLB, pp. 88-9).
104
Kirsten Schultz desenvolve argumentação bastante instigante acerca da dialética instalada
no Rio de Janeiro a partir de 1808, quando um processo de metropoliz.nçiio da cidade,
decorrente das demandas inerentes à presença física da família real em seu território, batia
de frente com a presença inexorável da escravidão no cotidiano da cidade. Kirsten Schultz.
Op. cit.; ver capítulo 5, especialmente.
?36 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

Nesse sentido, não surpreende perceber a grande preocupação que tanto ça", 1
o ministro da Guerra, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, quanto o intendente geral'
da polícia, Paulo Fernandes Viana, tinham em relação à necessidade da me- verna
lhor organização das companhias de capitães-do-mato, encarregadas da pri- sária
são de escravos fugitivos e do assalto a quilombos. Em extensa correspon- depoi
dência trocada por ambos, Paulo Fernandes Viana esclarecia, em fevereiro form;
de 1809, 105 que o conflito de jurisdição gerado em torno da nomeação de Cc
capitães-do-mato em Campos dos Goitacases deveria ser esclarecido à luz blica·
da documentação anteriormente editada sobre o assunto pelo vice-rei do mos
Brasil, o conde de Bobadela. Este material formava, segundo ele, "jurispru- h iera
dência certa" sobre a matéria em questão. Nessa documentação, esclarecia comi
o intendente, encontravam-se definidos os procedimentos pelos quais as plexl
câmaras deveriam seguir no ato de criação das companhias dos capitães- ao e!
do-mato. Eram as câmaras que deveriam nomear estes indivíduos, dando-
lhes cerca de "20 soldados dos homens pardos e dos mais capazes que há
nos distritos os quais têm obrigação de ir acompanhar nas entradas dos
Quilombos, definindo ainda as formas de remuneração por tal serviço". 106
Esclarecia, ainda, que a falta de cumprimento de tais determinações era o
em grande parte fruto da prop
dad2
"[ ... ] falta de magistrados nos grandes distritos das Comarcas e algu- Sem
mas que têm maior território do que era o dito do Reino de Portugal os
com um só Magistrado [tendo sido] necessário que para as desordens mai~
criminosas se desse autoridade a cada capitão do distrito e a cada coro- disse
nel miliciano [... ] para prender facínoras." 107 COnJ
vém
Isso fez que tais companhias fossem usadas de forma muito desorgani- do l
zada, promovendo uma quebra da ordem estabelecida. Reafirmou mais da (
uma vez, por fim, a necessidade de se fazerem impor as velhas instruções de<
dadas pelo conde de Bobadela, afirmando que seria apenas por intermédio essa
das câmaras, por meio da ação de seus juízes de fora, seus presidentes, corr
que se poderia melhor organizar e garantir a manutenção dos capitães-do- c
mato, de modo que atendesse de maneira mais conveniente a todo o con- vinl
junto de áreas que integravam o território sob sua jurisdição. À instância pro1
de poder local competia a organização de tal força punitiva, cabendo ape- mta
nas convocar os comandantes das "tropas milicianas e a gente da ordenan- Ne:

105
Códice 318. Registro de Avisos, Portarias, Ordens e Ofícios à Polícia da Corte, vol. 1 - tos I
Arquivo Nacional, pp. 336-47. !09 p
106
Sendo isso de grande importância, por serem "os capitães-do-mato uma gente pobre, e as d
mais das vezes perdida, que nunca têm forças para levar o necessário alimento as entradas 110 <
dos matos" -ibidem. I
107
Ibidem. J
AS BASES INSTITlJCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 737

ça", nos casos em que se fizessem necessários o "batido e cerco mais


geral". Terminava o ofício, pedindo ao ministro que provesse meios go-
vernativos mais eficazes, para equipar as câmaras com a autoridade neces-
sária para melhor encaminhar esta matéria. Nesse contexto, três meses
depois, foi promulgada a decisão do citado ministro da Guerra, mandando
formar as ditas "companhia de capitães-do-mato" . 108
Como pode ser observado, o problema da escravidão e da "ordem pú-
blica" suscitava um conjunto bastante significativo de questões em ter-
mos jurisdicionais: as competências de criação daquela força punitiva, as
hierarquias administrativas no exercício da autoridade governativa e os
comportamentos ambivalentes no uso da força física. Enfim, gama com-
plexa de problemas que merecem tratamento mais adensado, que 'escapa
ao escopo mais específico da presente análise.

4
CONFLITOS JURISDICIONAIS E TRAMA POLÍTICA

Considerando a administração cotidiana da cidade do Rio de Janeiro mais


propriamente dita, três instâncias de poder devem ser aqui consideradas,
dada sua centralidade no desenlace rotineiro desta atuação governativa: o
Senado da Câmara, a Intendência da Polícia e os juízes do crime de bairro.
O Senado da Câmara era o órgão que, até 1808, vinha ocupando lugar
mais tradicionalmente significativo na gestão da cidade. Não que isso inci-
disse em alto grau de intervenção do órgão na sua administração, mas um
conjunto de atribuições importantes estava sob sua responsabilidade. Con-
vém também destacar que, desde fins do século XVIII, eram os vice-reis
do Brasil os responsáveis pela realização das eleições dos oficiais do Senado
da Câmara, ou seja, pela seleção das pautas organizadas pelos ouvidores
de comarca e os homens da governança do Rio de Janeiro. A partir de 1808,
essa jurisdição ficou a cargo da Mesa do Desembargo do Paço, contando
com o auxílio do ouvidor da comarca na organização de tais listas. 109
Outro dado de destaque é o fato de que o seu presidente, o juiz de fora,
vinha desempenhando determinadas jurisdições que, após 1808, foram
progressivamente esvaziadas, especialmente no que se ref~qa à autono-
mia do Senado em escolher seu presidente, em caso de vacância súbita. 110
Nesse sentido, ficou estabelecida, em julho de ·1809;. a competeneia do

108
Decisão n• 18, de 31 de maio de 1809 (CLB, p. 20).
109
As pautas das eleições dos oficiais do Senado da Cimara.de ·1615 fol'lHil as.t1nicas encontra-
das para o período joanino. Códice 16..1-11 -Arquivo Getal.da ·Cidade do' Rio de Janeiro.
110
Quanto às atribuições do Senado do Rio e de seus oficiais no s6C:ulo XVIII, ver Maria
Fernanda B. Bicalho. As câmaras municipais no lmp6rio portugu8s: o caso do Rio de
Janeiro. Revista Brasileira de História, São Paulo, vol. 18, n• 36 (1998), pp. 251-80.

:.::-

738 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

regedor da Casa da Suplicação para nomear um dos juízes do crime da


Corte para servir nos impedimentos do juiz de fora, por ser mais pe
en
"[ ... ] conveniente ao bem do [... ] real serviço que a administração da no
justiça não seja exercitada por juízes leigos, pelo perigo de se fazer com m<
menos exatidão do que exige o bem público e particular [... ] e haven- e <
do [... ] criado dois juízes do crime nesta Corte para melhor administra- rei
ção da justiça criminal, que podem substituir as faltas e impedimentos L2
do juiz de fora." 111 Qz.
gu.
Sendo assim, ficava completamente vedado ao vereador mais velho servir JUI
nesse cargo, mesmo que em situações emergenciais. Essa medida restrin- de
gia a relativa autonomia do Senado da Câmara ante os demais órgãos da 18
administração central, posto que era reforçada a sua completa subordina- li r
ção às instâncias superiores, encarregadas da nomeação dos que deveriam rê
ocupar, mesmo que temporariamente, sua presidência. 112
Em 1815, ficou novamente reafirmado que, nos casos de morte ou im- o
pedimento longo dos oficiais do Senado da Câmara, competia à Coroa ço
prover a sua substituição, esclarecimento que era expedido pela Mesa do Cl:
Desembargo do Paço em face da eleição de Carlos José Moreira, tendo em Ci
vista o falecimento do procurador João de Sousa Mota. 113 Ficava ainda a til
Câmara advertida de que não tinha jurisdição para proceder daquela ma- d<
neira, sendo assim anulada a dita eleição. Entretanto, decidiu o príncipe 10
regente nomear o mesmo Carlos José Moreira "para servir de barrete, d<
enquanto não tiver efeito a pauta do ano futuro [... ] o qual entrará no
exercício do referido cargo por efeito esta ordem. Parece clara a preocu- g<
pação, aqui, em se delimitarem as prerrogativas governativas do Senado se
do Rio, ficando desautorizada a sua iniciativa jurisdicional em eleger um V<
procurador substituto, reafirmando-se, em contrapartida, o poder do prín- di
cipe regente de resolver sobre a matéria, mesmo que isto significasse q·
manter a decisão anterior do Senado da Câmara. 114 1l
P'
111
d
Decisão de 12 de julho de 1809 (CLB, p. 92). O decreto de 4 de setembro de 1812 (CLB, p.
53) reafirmou esta tendência, ao declarar que os substitutos do ouvidor e do juiz de órfãos
d
da comarca do Rio de Janeiro seriam nomeados dentre os juízes do crime da Corte. o
112
Medida referendada novamente pela Resolução n" 18 (consulta da Mesa de Consciência e
Ordens) de 6 de abril de 1811, que recomendou a regra geral de substituição, em caso de
li
impedimento, dos Provedores dos Defuntos e Ausentes da cidade e da comarca do Rio de
li
Janeiro, pelos juízes de fora e ouvidores do Rio de Janeiro. Em razão disso, não seria mais
li
possível ao vereador mais velho substituir os juízes de fora na Cone, regra que fazia que a
Provedoria dos Defuntos e Ausentes fosse a única e exclusivamente servida por magistra-
dos de carreira (CLB, pp. 15-6).
113
Decisão n" 43 de 14 de dezembro de 1815 (CLB, p. 38).
114 11
CLB, p. 43.
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 739

Outro bom exemplo da gradual perda de jurisdição outrora exercitada


pelo Senado da Câmara diz respeito à determinação da Coroa para que
entregasse, com a "maior brevidade" possível, todos os valores guardados
no Cofre do Depósito Público, ao recém-criado Banco do Brasil. 115 Tal
medida surgia como a culminância de conflitos observados entre o Senado
e os órgãos da administração central acerca dos montantes depositados no
referido cofre, cuja criação remonta ao governo do segundo marquês do
Lavradio, que chegou a elaborar, em 1777, a memória sobre o Método Pelo
Qual se Estabelece Nova e Melhor Administração Para a Guarda, Direção e Se-
gurança do Depósito Geral desta Cidade, 116 e sobre o qual o Senado tinha
jurisdição. Além das acusações de não-cumprimento dos procedimentos
determinados pelo antigo vice-rei, o Senado também não dispunha, em
1808, dos documentos comprobatórios dos montantes ali depositados. No
limite, a Coroa optou por extinguir tal atribuição, determinando a transfe-
rência imediata de tais recursos para o banco recém-criado. 117
Uma última investida contra os poderes jurisdicionais do Senado da
Câmara, a ser aqui destacada, refere-se ao decreto editado em 21 de mar-
ço de 1821, que criou o lugar de auditor das tropas da Corte e da provín-
cia, retirando tal atribuição da alçada de atuação do "Juiz de Fora desta
Cidade", constituindo-se a partir de então, dois ofícios em separado. Con-
firmava-se, assim, este quadro de efetivo esvaziamento de poder do presi-
dente da Câmara do Rio, uma vez que não era ele mais responsável pela
importante tarefa de realizar auditorias das tropas da capitania e da Corte
do Rio de Janeiro.
Entretanto, vale destacar o fato de que sua autoridade, como órgão da
governança local, fora mantida e quiçá reforçada, em face da própria pre-
sença da família real em seu espaço físico. Afinal, seria o Senado, em di-
versas ocasiões, a instituição governativa saudada pela Coroa em razão
dos bons serviços e da "lealdade" sempre demonstrados tanto pelo órgão,
quanto também pelos "leais vassalos" do Rio de Janeiro. Em junho de
1808, "querendo fazer honra e mercê ao Senado da Câmara desta Cidade,
por se achar nela residindo", concedeu o príncipe regente ao seu presi-
dente o privilégio de pegar em uma vara do pálio na procissão de Corpo
de Deus, repetindo-se o costume que se observava em Lisboa. 118 Alguns
outros exemplos podem aqui ilustrar os atos de solidariedade e demons-

115
Alvará de 12 de outubro de 1808 e Decisão no 10, de 16 de abril de 1810. · · bL
116
Códice 812, Arquivo Nacional, vol. 1. Ver também Dauril Alden. Op. cit., 196& ''>"!! c1n
117
Códice 812, Arquivo Nacional, voi. 1. Ver também o relatório da bolsista de lfl iiâ"'*'aden•
to científico (CNPq) Maria Lígia Rosa Carvalho, texto apresentado noSimpáiio~
Regional do Rio de Janeiro de 1996, intitulado O Set~ado da Ctlflinm dtJ.RJ...~ os
conflitos decorrmtes dns irregularidades na administração do Cojrr Gmzl tia CidttitiA: :H· é' i.l;:
118
Decisão no 13, de 14 de junho de 1808 (CLB, p. 11). . . '" • ~ ·~ ''· ::, ·
740 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOllVÊA

Uma~
tração de lealdade política, observados pelo Senado para com a Coroa no
dade,
período enfocado. Dois planos para a construção de um monumento a ser
termir
edificado na Praça do Pelourinho, em memória da chegada de sua majes-
[••• ] 1
tade à cidade, foram aprovados na vereação de 17 de setembro de 1814,
cidade
os quais foram finalmente apresentados a D. João em 1817. O príncipe
regente acabou por dar a sua real aprovação ao plano da pirâmide, tendo-
"[.
se lisonjeado muito
pw
ser
"[ ... ] com o público e assinalado testemunho que esse Senado e os
[fie
habitantes desta Cidade deixam à posteridade dos honrados sentimen-
no,
tos de vassalagem e amor que professam a sua real pessoa, fazendo a
honra de aceitar este monumento, permitindo que ele se levante na
direit,
Praça do Pelourinho, como se acordou," 119
impo1
nism<
pedindo ao conde da Barca, ministro do Reino, que desse inteligência da
da no
decisão ao dito Senado. Nova demonstração de lealdade política foi obser-
uma1
vada meses depois, quando foi concedido ao Senado da Câmara o direito
nheci
de afixar, à frente da casa de suas sessões, o escudo das armas do Reino
Cc
Unido. 120
Com
A obra aqui já citada várias vezes do célebre Padre Perereca, Luís Gon-
ment
çalves dos Santos, se apresenta como a crônica mais rica de relatos sobre
nalm
as múltiplas celebrações realizadas no Rio de Janeiro joanino em torno
ofici<
dos nascimentos, dos casamentos, dos falecimentos e de outras grandes
belec
datas de comemoração da Coroa portuguesa. Aí se pode facilmente ava-
abra!
liar o papel preponderante do Senado da Câmara, bem como o dos "ho-
marc
mens da governança", na organização de tais festejos e na demonstração
ta bel
de solidariedade e vassalagem política para com a Coroa. 121 O contexto da
no C
aclamação de D. João VI foi talvez um dos momentos mais significativos
se cc
em que o Senado da Câmara se adiantou em dar provas de lealdade em
"der
seu nome e no da população em geral, por ocasião de tal celebração. 122
que
nad<
119
Decisão no 5, de 15 de fevereiro de 1817 (CLB, p. 5). men
IZO Decisão no 13, de 21 de maio de 1817 (CLB, pp. 9-10). ~ mag
121
Também a legislação editada no período joanino encontra-se prenhe de diversos exemplos nist
neste mesmo sentido. Um deles é a Decisão no 10, de 20 de março de 1816, que determi- r I\
nou que se tomasse luto geral por um ano pela morte da rainha D. Maria I, sendo seis meses
rigoroso e seis aliviado, mandando ainda fazer i~so constar às câmaras da comarca do Rio de t
Janeiro e enviando ainda cópia-circular aos governadores e capitães-generais das capitanias, 12J D
no mesmo sentido (CLB, p. 8). 124 o
122
Ver também M. F. S. Gouvêa. "O Senado da Câmara do Rio de Janeiro no contexto das e
cerimônias de aclamação de D. João VI". Anais do Seminário blternacional D. Joiio VI- Um p.
Rei Aclamado na América. Rio de Janeiro: Museu Histórico Nacional, 2000, pp. 246-59; e IZS )\'
Maria Beatriz Nizza da Silva. A vida privada e quotidiana no Brasil colonial na época de D. Maria 126 [
I e D. Joiio VI. Lisboa: Estampa, 1993.

..
AS BASES INSTITU CIONAI S DA CONSTR UÇÃ-O DA UNIDAD
E 741
Uma das várias formas de retribuição acionadas pela Coroa, na oportun i-
dade, foi a estabel ecida pelo decreto de 6 de fevereiro de 1818, que de-
termino u que "quere ndo dar ao povo da cidade do Rio de Janeiro [em]
[... ] benevo lência pela ocasião da [... ] coroação [de D. João VI] nesta
cidade" , sua majesta de decidiu que

"[ ... ] todos os seus habitan tes [ficassem] gozando de ora em diante do
privilégio de aposen tadoria passiva; e aqueles que tiverem servido ou
e os servire m na Câmara e mais cargos da Govern ança na mesma cidade,
en- [ficassem] gozand o dos privilégios conced idos pela Ordena ção do Rei-
oa no, livro zo,
título 58 para os Fidalgos e seus Caseiros e Lavrad ores," 12.3
na
direito este que conced ia a isenção do acompa nhamen to de presos. Mais
importa nte, entreta no, era o fato de que finalme nte se punha fim ao meca-
nismo de confisco das moradias, a tão odiada aposentadoria, muito utiliza-
da nos primeiros anos de presenç a da Corte joanina no Rio. Tratava-se de
uma recomp ensa de monta, causa de grande júbilo da população, em reco-
i no nhecim ento à concessão de tal privilégio, em tão feliz ocasião. 124
Confor me analisado anterio rmente , a Intendê ncia-G eral da Polícia da

r~~~
Corte e do Estado do Brasil, criada em maio de 1808, introdu ziu um ele-
mento radical mente novo na forma como a cidade vinha sendo tradicio
-
brno nalmen te governada. A amplitu'de das compet ências e das atribuiç ões deste
~des oficial régio sinaliza com clareza a busca, pela Coroa portugu esa, de esta-
hva- belecer no Rio de Janeiro mecani smos para uma govern abilida de mais
~ho­ abrang ente e comple xa. Esta talvez tenha sido, conform e já apontad o,
a
~ção marca mais distinti va do período, demons trada justam ente no próprio es-
~da tabelec imento e no modo de funcion amento desta institui ção governativa
~vos no Centro -Sul do Brasil. Segund o Maria Beatriz N. da Silva, a intendê ncia
.em se constit uía em um "elo necessá rio" entre a "alta admini stração " e as
b.122 "demai s esferas admini strativa s" . 125 Uma das princip ais medida s régias
que se seguira m à criação da intendê ncia foi a determ inação de que gover-
nadore s e capitãe s-gener ais das capitan ias mandas sem execut ar pronta-
I mente todas as ordens expedi das pelo intende nte-ger al de polícia aos
magistrados de suas capitanias, visando o "maior auxílio para a boa admi-

~
s
i- nistraç ão" . 126
es No que tange aos objetiv os específicos da present e análise, três áreas
de
s,
w Decreto de 6 de fevereiro de 1818 (CLB, p. 14).
124
Outro privilégio concedid o por tal ocasião foi o "l''..lmento dos vencime ntos dos
MinistrOli
e Músicos da Capela Real" do Rio de Janeiro. Carta régia de 6 de fevereiro de
p. 16). 1818 (CLB,
.. .
125
Maria Beatriz Nizza da Silva. Op. cit., 1986, p. 188.
126
Decisão no 16, de 23 de junho de 1808 (CLB, pp. 16-7).
742 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

de atuação governativa, exercitadas pelo intendente Paulo Fernandes Via- lhes


na, devem ser aqui destacadas: os estímulos direcionados à melhoria das que
condições de vida e à ampliação demográfica da população branca resi- E
dente no Brasil; a ação em prol da preservação da ordem social e do bem o er
viver no Centro-Sul do Brasil; e o incentivo à produção e à circulação de com
gêneros de abastecimento da cidade do Rio. se e
Vários e sistematizados foram os esforços encaminhados pelo intenden- dos
te-geral da polícia para promover o crescimento da população branca resi- na I
dente no Brasil. Curioso é perceber que, em contrapartida, eram sobreta- se ç
xados os escravos já existentes, bem como os recém-chegados, como forma tant
de se obterem recursos financeiros que pudessem sanar a carência, pela nan
intendência, em diferentes ocasiões. Nesse sentido, tal atuação parece nec
revelar uma certa idéia do que deveria ser uma política governativa volta- des
da para o incremento do Império luso-brasileiro, uma ação administrativa me·
que gradualmente promovesse a eliminação da escravidão, mediante sua jui2
progressiva substituição por trabalhadores livres brancos. Buscava-se eli- pU<
minar o que talvez fosse então considerado, pelos políticos de época, como da
a maior marca do estatuto colonial do Brasil no período posterior à abertu- fie<
ra de seus portos ao comércio internacional. Aç•
Esse programa de ação governativa desencadeou primeiramente uma sas
política de concessão de sesmarias e de auxílio governamental a estrangei- qu
ros - entenda-se, aqui, portugueses - que passassem a residir no Brasil, do
e o incentivo à migração de casais açorianos. 127 Uma carta régia de de- po
zembro de 1810, endereçada ao governador da Bahia, o conde dos Arcos, gn
com cópia aos demais governadores e capitães-generais das capitanias or- av:
denou que fossem protegidas e auxiliadas as pessoas enviadas pelo inten-
dente-geral da polícia para viver nas suas respectivas capitanias. Instruía
ainda para que estas autoridades fomentassem o enraizamento deste

"[ ... ] número grande de pessoas que pelos estragos acontecidos em


Portugal têm passado a este país, e que se vêem privados dos meios de
subsistir e haver honestamente o seu necessário alimento, quando se
podem empregar na lavoura, donde resultará aumentar-se a população
branca, e mais que tudo a sua utilidade, e o bem e felicidade do Estado
do Brasil, sendo distribuídas em termos amigáveis pelas diversas capita-
nias do mesmo Estado." I 2~

131
Para isso, deveria receber e auxiliar as pessoas que o dito intendente 13
lhes enviasse, procurando agregá-las às "grandes fazendas [... ] dando- 13

127
Decretos de 22 de junho e de 25 de novembro de 1808 (CLB, pp. 6 e 198), decreto de 25 de
janeiro de 1809 (CLB, p. 221).
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 743

lhes instrumentos de lavoura ou gados por parte da dita Intendência, com


que possam cultivar as terras a que se anexarem". 128
Esta medida era reforçada, por exemplo, em janeiro de 1811, mediante
o envio de cartas pelo intendente de polícia aos ouvidores de diversas
comarcas, recomendando que prestassem todo apoio aos portugueses que
se estabelecessem nas regiões sob suas jurisdições. Ficavam encarrega-
dos de prestar auxílio para que estes imigrantes fossem logo aproveitados
na lavoura de abastecimento. Dizia ainda que "um dos principais fins des-
se projeto [era o de] ir procurando neste País uma população branca", para
tanto os magistrados e as "pessoas mais principais" destes lugares deve-
riam ser como que seus "padrinhos" .129 Concluía a missiva, reforçando a
necessidade de que os ouvidores recomendassem a dedicada continuação
desta política, após a sua substituição por novos magistrados, posterior-
mente. Em setembro de 1810, escrevia o intendente Fernandes Viana ao
juiz de fora de São Paulo, pedindo ajuda na busca de homens brancos que
pudessem trabalhar no Rio de Janeiro, no que teriam o auxílio dos cofres
da polícia para assumirem "sítio de agregado". 130 Além disso, em 1813,
ficou determinada a isenção do serviço militar e de milícias aos ilhéus dos
Açores e a seus filhos, que porventura viessem a se estabelecer nas diver-
sas capitanias do Brasil. 131 Garantia-se amplo apoio da Coroa a todos os
que desejassem estabelecer-se na lavoura de gêneros nas várias capitanias
do Brasil, configurando-se uma política de promoção do crescimento da
população branca livre, profundamente estimulada pelo movimento mi-
gratório, oriundo dos demais territórios portugueses, em decorrência do
avanço das tropas napoleônicas.
Neste mesmo sentido, deve ser também considerado o estabelecimen-
to da colônia suíça de Nova Friburgo, na região de Cantagalo, capitania do
Rio de Janeiro, em maio de 1818. 132 Projeto requintado e ambicioso, que
almejava estabelecer um número significativo de famílias européias na
lavoura de abastecimento em torno da Corte do Rio. O caráter civilizacio-
nal desse projeto era bastante enfatizado, de que hábitos e costumes po-
deriam ser transformados em decorrência do estabelecimento deste con-
tingente populacional europeu na capitania do Rio de Janeiro. Outra

1 8
" Carta Régia de 22 de dezembro de 1810 (CLB, pp. 263-4).
129
Códice 325- Províncias- Polícia- Correspondência com diversas autoridades, Arquivo
Nacional, vol. 1808-1814, pp. 36-36v.
130
Ibidem. Ver também, por exemplo, as páginas 40v-41v.
131
Decreto de 16 de fevereiro de 1813 (CLB, p. 6). "í
132
Ver as cartas régias de 2 e de 6 de maio e os três decretos de 6 de maio de 18l8(CLB~ pp:39-
42, e CLB, p. 6). Ver também José Carlos Pedro. A Colônia do MoTTO Qutimllli9,~~~~~
São João Batista de Nova Friburgo, 1820-1831. Mestrado. Niterói: UnitéltsldMé;'J'-ral
Fluminense, Departamento de História, 1999. ··~ '·'n' ob LÍtlt!6b
744: MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVi<:A

preocupação importante era a maior normalização das relações familiares r


vigentes no Brasil joanino, incluindo medidas que iam desde o castigo, órg
que deveria ser impingido a uma esposa infiel, até as formas de limitar a Tal
improbidade de um filho ingrato. 133 gra
Em contrapartida, assistia-se ao progressivo avanço de medidas regula- es~
doras e à imposição de penas fiscais sobre a escravidão, como forma de çõe
controlar os comportamentos e obter renda para determinados fins. Em ab~
1810, tendo em vista a necessidade de se estabelecerem meios que pu- te
dessem auxiliar na conservação do Passeio Público da Corte do Rio de Câ
Janeiro, sob responsabilidade do intendente-geral da polícia, determinou da~
o príncipe regente que fosse mandada estabelecer a imposição de "40 réis da1
por dia por cada negro" que ficasse detido no Calabouço da cidade. 134 cio
Naquele mesmo ano, ficou também determinado que fossem cobrados COI

800 réis por cada escravo que entrasse no Brasil vindo da costa da África, tos
em favor da Intendência-Geral da Polícia, concorrendo para as "despesas se·
da iluminação pública desta Corte e sustento da Guarda Real da Polícia". 135 za
Bastante ampla era, portanto, a autoridade jurisdicional deste órgão ré- dil
gio, fato que concorria para o surgimento de uma gama bastante extensa
de conflitos governativos e administrativos com as demais autoridades exis- qu
tentes no Rio de Janeiro. Um bom exemplo disso foi a ordem de que os in1
presos, feitos por ordem do intendente-geral da polícia, não pudessem ser ta I
soltos por outra autoridade que não ele, ficando determinado que o chan- ut
celer da Casa de Suplicação fizesse cumprir tal determinação. 136 Outro e:x
ponto importante dizia respeito à circulação de estrangeiros pelo Brasil, sendo N
da competência do intendente de polícia fiscalizar a apresentação e a emis- co
são de passaportes para a circulação de estrangeiros, procedimento regu- es
lado com maior rigor pelo decreto de dezembro de 1820. 137
fi I
d~
133
Ver, por exemplo, o ofício expedido pelo intendente, em 8 de dezembro de 1819, ao juiz de
CC
fora de São João del-Rei. Códice 325- Correspondência com diversas províncias, vol.
1819-1828, Arquivo Nacional. In
134
Decisão no 17, de 20 de julho de 1810 (CLB, p. 16). Em sentido diverso, a Decisão n°44, de de
27 de outubro de 1817, determinou que a Intendência da Polícia tivesse a,tenção especial
no incentivo ao casamento de escravos nas comarcas do Rio de Janeiro, Mi.nas Gerais e São
Paulo (CLB, p. 34).
135
Ficando igualmente estabelecida, com os mesmos fins, a imposição de 1$000 réis por cada
pipa de aguardente comercializada e de 4$800 réis pela emissão de passaporte. Decisão no
39, de 4 de dezembro de 1810 (CLB, pp. 32-3).
136
Decreto de 7 de novembro de 1812 (CLB, p. 69).
137
O decreto de 2 de dezembro de 1820 (CLB, pp. 108-12) mandou exigir passaporte das
13
pessoas que entrassem no Reino do Brasil e dele saíssem, ficando responsável disso o
intendente-geral de polícia na Corte e, nas capitais das demais províncias, os governadores
13
e capitães-generais. Nos outros portos, os comandantes ou os magistrados encarregados
dos respectivos distritos assumiam jurisdição sobre este controle. Ver também a correspon-
dência do intendente com autoridades de diferentes capitanias nos anos de 1811, 1812,
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 745

Mais significativo foi, entreta!lto, o número de áreas em que este novo


órgão entrou em conflito com o Senado da Câmara do Rio de Janeiro. 138
Tal situação de constantes embates jurisdicionais se devia também, em
grande parte, ao fato de que ambos os órgãos compartilhavam uma mesma
esfera de atuação governativa, que englobava os cuidados com as condi-
ções de vida no âmbito da Corte do Rio de Janeiro - higiene, segurança,
m abastecimento, circulação de pessoas, produtos e informações. 139 Boa par-
u- te destes itens haviam estado, até então, a cargo apenas do Senado da
de Câmara, que gozava de considerável autonomia em relação à manutenção
~ou das ruas da cidade, do pagamento das despesas necessárias à organização

t~~!
das luminárias e de festejos públicos, da inspeção das condições de fun-
cionamento do matadouro e da venda de alimentos, dentre outros. Na
~os consideração das atribuições administrativas da intendência e dos confli-
~ca, tos jurisdicionais verificados entre as duas instâncias de poder, considerar-
~sas se-ão primeiramente alguns exemplos que possam explicitar a sua nature-
r .13S za e, a seguir, determinadas conjunturas observadas que exemplifiquem a
iré- dinâmica governativa característica do período.
~sa Como já apontado pela historiografia que vem estudando o primeiro
~is­ quartel do século XIX, a documentação produzida cotidianamente pela
~ os intendência encontra-se profundamente marcada pelo grande desconten-
!
rser tamento do intendente Paulo Fernandes Viana em não poder contar com a
lan- utilização das rendas do Senado, bem como do seu apoio institucional mais
~tro explícito à implementação de suas decisões e estratégias governativas.
~do Não se tratava de nenhuma novidade, haja vista o caso de Lisboa, onde tal
~is­ contexto de conflitualidade jurisdicional fora a grande marca da relação
gu- estabelecida entre estas duas instituições, como aqui já mencionado.
Um dos maiores conflitos entre ambos os órgãos foi o observado na de-
finição dos recursos que seriam utilizados em prol da organização da Guar-
i
r da Real da Polícia, em 1809, ocasião em que o Senado da Câmarq_ do Rio
~de
~oi.
conseguiu isentar-se de participar de tal esforço, mantendo seus recursos
1 intactos, a despeito das críticas contundentes emitidas por Paulo Fernan-

~lda
de des Viana, na ocasião. Reclamava ele, em dois diferentes ofícios, que
~ai
ao
1817 e 1818, reunida no Códice 325, vols. 1808-1814 e 1814-1819, Arquivo Nacional. Tama-
nho era o montante de serviço relacionado à circulação de estrangeiros pelo Brasil que
pn• tramitava pela Intendência-Geral da Polícia, que a Decisão n• 4, de 3 de fevereiro de 1814,
t. criou o posto de Intérprete de Línguas Estrangeiras em sua secretaria, em atenção ao oijcio
do intendente, de 26 de janeiro de 1814, que dizia ser necessário haver alguém"s6 [•.. ]
~as assistindo aos processos e diligências que intervenham estrangeiros" (CLB, pp, 4:-5),__ ·-
38
Ver especialmente o Códice 318- ~egistro de Avisos, Portarias, Ordens e Oficios da Polfeia
rce~
1
da Corte, Editais, Provimentos, etc.- Arquivo Nacional. ··.di...... • ~~
idos 139
J. C. Fernandes Pinheiro. Op. cit.; Kirsten Schultz. Op. cit., cap. 4; e Paulo·Fttiiiilfdo•
>on- Vianna. Abreviada demonstração dos trabalhos da Polícia. Revista tio /tu~~·~
112, Geográfico Brasileiro, 55, parte I (1892), pp. 373-80. . ·· ,..,j·;n;;_;;;ff{)l-.
746 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

"[... ] com bastante mágoa muito afirmo [... ] que me vejo sem os pre- sot
cisos meios de conseguir [... ] o auxílio das rendas militares [e que] por COI

serem comuns as obrigações em uma e outra corporação, deveria o Se- qu


nado auxiliar as obras que a Intendência lembrasse e concorresse com faz
alguma porção das suas rendas. 140 " las
co
Outra área em que ambos os órgãos se enfrentaram com grande fre- se'
qüência foi a relativa à edificação de prédios na cidade do Rio de Janeiro. va
Em junho de 1808, a intendência baixou edital determinando que "nunca m
p~
mais se permita edificar casas térreas no centro da Cidade [... ] concor-
rendo ao Senado [... ] para que se cumpra a Vontade do [príncipe regente, E
em razão dos] desejos de ver melhorada a sua Corte"; ocasião em que fo- as
ram também proibidos no centro da cidade os terríveis "despejos", janela
abaixo, das "águas imundas" . 141 O ano de 1809 foi marcado por vários A
destes conflitos. O primeiro deles girou em torno da fiscalização do estado pros
de conservação dos edifícios na cidade, tradicionalmente atribuição do órgã
Senado da Câmara. Tendo um prédio desabado no bairro da Sé, o inten- me r
dente da Polícia apresentou avaliação bastante crítica da atuação do Sena- dar
do, sendo faz(

"indesculpável por mais tempo toda a demora em que se fazem exami-


nar dentro da Corte e seus subúrbios quais são os edifícios que se acham
à ruína [... ] vendo por outra parte que sendo confiado a Lei este cuida-
do as Câmaras e aos seus Almotacés, os mesmos fatos mostraram o des-
cuido em que se haviam constituído e que a Polícia deve procurar os
seus moradores e segurança que não deve ficar pendente das delongas
e negligências destas autoridades, sendo mui desagradável que o mal
se queria remediar depois de acontecido, quando era melhor que fosse
prevenido." 142
ex
Esta preocupação rigorosa com a preservação das construções na cida., ne
de do Rio de Janeiro teria um grande ponto de inflexão neste momento, m
porquanto, logo a seguir, a Intendência de Polícia promulgaria o célebre ql
edital de 11 de junho do mesmo ano, no qual fica estabelecido que
14!
"[ ... ] havendo-se elevado esta Cidade a alta hierarquia de ser hoje a 14•

Corte do Brasil, que goza a honra e a ventura de ter em si o seu legítimo

14
° Códice 323, vol. 1809- Registro de Correspondência da Polícia aos Ministérios de Estado,
Juízes do Crime, etc.- Arquivo Nacional, pp. 4 e 58v.
141
Editais de 11 de junho de 1808. Códice 318-Arquivo Nacional, vol. 1808-1809, pp. 51-2.
142
Ofício enviado ao juiz do crime do bairro da Sé de 7 de junho de 1809, ibidem, pp. 83-83v.
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 747

soberano e toda a Sua Real Famnia nio pode, nem deve continuar a
conservar bisonhos e antigos costumes que apenas .podiam tolerar-se,
quando era reputada como uma·col&lia·'f:. /;lo .prospecto da cidade a
faz menos decorosa as presentes felizes,àrounsdnciasr:cm:erem as jane-
las das suas Propriedades r6tulas·ou :gdóiiilr dêlmadeinl;Jque nenhuma
comodidade trazem, e que estão mosr~,.;lak~dâJC!Wilização de
seus Moradores: Confiando [... ] [que).arari0t..1Jr0btóat1 dilvthais pro-
vas não equívocas de seu contentamentore.a.-ancdar: :dersiesu:s ó:ste-
munhos da antiga Condição de Conquista e de• :Cof6niat ceaeawendo
para enobrecer a sua corte e fazê-la mais notável aos olho& ·daa,NafJÕCS
Estrangeiras [... ] Por tudo isso se declara, que desde já devem: abolir
as rótulas das janelas de sobrados." 143

A preocupação com a organização do espaço urbano do Rio de Janeiro


prosseguiu sendo uma área importante de atuação governativa de ambos os
órgãos. No mês de outubro do ano seguinte, o intendente de polícia reco-
mendou que o Senado da Câmara procurasse o "quanto for possível emen-
dar o erro" derivado da "irregularidade e arbitrária edificação que vem se
fazendo nas ruas desta Cidade", chamando ainda a atenção para que

"[... ] as ruas que de novo se abrirem, sejam mais largas e conforme ao


novo plano, deixando-se no arruamento que se projetar, algumas pra-
ças, e que não só embelezará a Cidade, mas contribui muito para a saú-
de da população; e estabeleçendo-se a este respeito uma regra certa e
invariável, a fim de se evitar que cada um edifique a seu arbítrio, aonde
e como lhe bem parecer." 144

Entretanto, foi no contexto das grandes crises de abastecimento que


assolaram a cidade do Rio de Janeiro no período considerado -- como, por
exemplo, a "extraordinária seca" de 1809 e a recorrente escassez de car-
nes - que a instabilidade da governabilidade em curso apareceu de modo
mais patente. Era nestes contextos que tanto a Intendência de Polícia,
quanto o Senado da Câmara e demais órgãos do governo questionavam,

14 1
· Edital de 11 de junho de 1809. Ibidem, pp. 88-9.
144
Decisão no 29, de 8 de outubro de 1810 (CLB, pp. 26-27). O alvará de 3 de março de 1810
criou a Mesa de Despacho Marítimo no Rio de Janeiro visando à maior "comodidade e
esplendor [da] Capital e lugar" da residência da família real, devendo ela "promover a
cômoda condução dos materiais que para tal efeito se transportam e que tem subido pelos
altos preços por falta de exportação, causada pelas demoras que sofrem as embarcações".
Neste sentido, ordenou "que as lanchas costeiras que conduzirem os referidos [... ] mate-
riais de construção de edifícios [... ], logo que derem entrada na Alfândega, hajam de ser
visitadas no preciso espaço de tempo de 24 horas".
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 747

soberano e toda a Sua Real Família não pode, nem deve continuar a
conservar bisonhos e antigos costumes que apenas podiam tolerar-se,
quando era reputada como uma colônia [... ] o prospecto da cidade a
faz menos decorosa as presentes felizes circunstâncias, o terem as jane-
las das suas Propriedades rótulas ou gelosias de madeira, que nenhuma
comodidade trazem, e que estão mostrando a falta de civilização de
seus Moradores: Confiando [... ] [que] estarão prontos a dar mais pro-
vas não equívocas de seu contentamento, e a arredar de si estes teste-
munhos da antiga Condição de Conquista e de Colônia, concorrendo
para enobrecer a sua corte e fazê-la mais notável aos olhos das Nações
Estrangeiras [... ] Por tudo isso se declara, que desde já devem abolir
as rótulas das janelas de sobrados." 143

A preocupação com a organização do espaço urbano do Rio de Janeiro


prosseguiu sendo uma área importante de atuação governativa de ambos os
órgãos. No mês de outubro do ano seguinte, o intendente de polícia reco-
mendou que o Senado da Câmara procurasse o "quanto for possível emen-
dar o erro" derivado da "irregularidade e arbitrária edificação que vem se
fazendo nas ruas desta Cidade", chamando ainda a atenção para que

"[... ] as ruas que de novo se abrirem, sejam mais largas e conforme ao


novo plano, deixando-se no arruamento que se projetar, algumas pra-
ças, e que não só embelezará a Cidade, mas contribui muito para a saú-
de da população; e estabelecendo-se a este respeito uma regra certa e
invariável, a fim de se evitar que cada um edifique a seu arbítrio, aonde
e como lhe bem parecer." 144

Entretanto, foi no contexto das grandes crises de abastecimento que


assolaram a cidade do Rio de Janeiro no período considerado - como, por
exemplo, a "extraordinária seca" de 1809 e a recorrente escassez de car-
nes - que a instabilidade da governabilidade em curso apareceu de modo
mais patente. Era nestes contextos que tanto a Intendência de Polícia,
quanto o Senado da Câmara e demais órgãos do governo questionavam,

143
Edital de 11 de junho de 1809. Ibidem, pp. 88-9. · . · ,,.
144
Decisão n• 29, de 8 de outubro de 1810 (CLB, pp. 26-27). O alvará de 3 de,ffi&W9 • .l,8JO,
criou a Mesa de Despacho Marítimo no Rio de Janeiro visando à màior "coriwdici'ade e
esplendor [da] Capital e lugar" da residência da família real, d~v~~ela ~e~~! a
cômoda condução dos materiais que para tal efeito se transportam e quo tenuubido ~los
altos preços por falta de exportação, causada pelas demorasqu~IIS'éí6MaWç1Sós".
Neste sentido, ordenou "que as lanchas costeiras que~~:; ~J mate-
riais de construção de edifícios[ ... ], logo que derem·c~ialdtln<top,flajamde ser
visitadas no preciso espaço de tempo de 24 horas''. • ' ;;' ''' ,_ • :• :·~·: ., • · :. ,.

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·~.:;.
748 MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVf:A

de modo mais explícito, a natureza de suas jurisdições e a organização da dor


máquina administrativa, ocasião em que o senso crítico aparecia mais agu- da
}
çado e pronto a denunciar o não-cumprimento das responsabilidades esta-
belecidas. Intensa era, então, a correspondência trocada entre o intenden- san
te de polícia, os ministros do Reino e da Guerra, os juízes do crime de Ser
bairros da cidade e as autoridades militares, bem como a promulgação de de
vários editais que buscavam minorar e dar conta da grande crise social ção
gerada em tais ocasiões, tendo todos em comum forte preocupação com a ro
instabilidade social, então introduzida no cotidiano da cidade. No caso das di c
secas, era grande a consideração acerca da forma como a água era distri- fur
buída na cidade, assim como o modo como vinha sendo procedido o abate te
de árvores ao redor das nascentes, comprometendo sua preservação e sua do:
manutenção. Gigantesca era a preocupação com a ordem social, em de- bH
corrência do desacato às autoridades em razão das acusações de que os xa,
mais poderosos tinham acesso à água, mediante acordos particulares e es- da
te(
tabelecidos às escondidas.
As fontes e as bicas existentes na cidade foram temporariamente trans-
lm
formadas em verdadeiros campos de batalha. No verão de 1809, por exem-
plo, a grave falta de água provocou, além de imenso desconforto pessoal,
vários "tumultos" na cidade, a começar pelo dos marinheiros. 145 A todo
instante, reafirmava-se a necessidade de se manter uma vigilância que
garantisse a ordem estabelecida. Tarefa difícil numa sociedade em que,
se, por um lado, havia um programa de distribuição de água que tentava
evitar a sua monopolização por uns poucos - que, por intermédio de seus
escravos "com barris a cabeça", transportavam grandes quantidades de
água para os seus senhores - por outro, havia toda uma hierarquização
social, no interior da qual a "nobreza da terra" e os oficiais da alta adminis-
tração tinham seus interesses e necessidades tradicionalmente favorecidos. 146
O problema da escassez de água rondaria a cidade posteriormente, fru-
to, em grande parte, do padrão desordenado em que se dava o desmata-
mento das áreas ao seu redor. Foi procurando dar conta deste problema
que, em 1817, a Coroa mandou coutar "as nascentes da água do aqueduto
da Carioca e o terreno das cabeceiras das nascentes encanada para o aque-
duto de Maracanã no Rio de Janeiro", em face das representações do
procurador do Senado da Câmara e de outras pessoas, acerca da falta da
abundância de água que nos últimos anos teria sofrido a cidade, ficando o
Conselho da Fazenda Real encarregado de proceder à coutada, o procura- 147
14!

145
Códice 318- Arquivo Nacional, vol. 1808-1809, p. 270.
146
Ver o exemplo do longo ofício que o intendente de polícia enviou ao ministro dos Estran- 14~

geiros e da Guerra, o célebre conde de Linhares, dando explicações acerca das agressões 15(
impingidas a vendedores de água e seus escravos- ibidem, pp. 310-4.
r
AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO. DA UNIDADE 749

dor da Câmara, de assistir às demarcações, e a Câmara, ainda, encarregada


da vigilância e da guarda da dita coutada. 147
A recorrente escassez de carnes, freqüentemente denunciada e inten-
samente considerada pela correspondência do intendente de polícia, do
Senado da Câmara e das demais autoridades governativas, tinha como pano
de fundo o grande aumento da demanda pelo produto, bem como a satura-
ção dos meios existentes para seu suprimento. 148 Além disso, Alcir Lenha-
ro lembra também que o sistema de arrematações das carnes verdes, tra-
dicionalmente administrado pelo Senado da Câmara desde longa data,
funcionava pela realização de contratos com particulares. 149 Tal expedien-
te permitia, deste modo, que a administração previamente se apropriasse
dos tributos por arrecadar, bem como se eximisse da responsabilldade so-
bre o precário padrão de abastecimento desse produto. Situação cemple-
xa, que animava o conflito entre as várias autoridades encarregadas tanto
'~s da manutenção da ordem social, quanto das condições de vida e de abas-
~ tecimento na cidade.
~ Por fim, vale destacar a grande inovação estabelecida pela criação do
~- imposto da décima dos prédios urbanos, sob o argumento de que

o••
e
b,
'a
~s
l "[ ... ] tendo mostrado a experiência e a constante prática de Portugal,
que o imposto de décima nos prédios, tem a vantagem de ser o mais
geral e repartido com mais igualdade, pois que pagando-o por fim os
inquilinos que os alugam, por lho [en]carregarem os donos no aluguel e
os proprietários pelos que habitam, chega a todos os meus fiéis vassalos
~ que tÊm igual obrigação de concorrer para as despesas públicas e por
b ser já de longo tempo conhecido e praticado [em Lisboa], é preferível a
~- qualquer outro que não tenha as conhecidas vantagens." 150
!16
Buscava-se obter maior soma de recursos que pudesse ser teoricamen-
·-l- te disponibilizada em prol da progressiva melhoria das condições de vida
·~ na cidade, especialmente diante do quadro de grande aumento populacio-
nal e das demandas decorrentes deste rápido crescimento. No caso do Rio

t
~a
I
de Janeiro, o imposto foi criado em todas as cidades e vilas, ficando a
cobrança a cargo de uma Junta de Décima, composta por dois superinten-
dentes - os juízes do crime - de um escrivão, de dois "homens bons",
f~- 147
Decretos de 9 e de 17 de agosto de 1818 (CLB, pp. 44 e 135).
148
Ver especialmente os já citados códices 318, 323, 325 -Arquivo Nacional. Consultar
também a Decisão no 1, de 9 de janeiro de 1818, que deu providências para que não
houvesse diminuição no fornecimento de carnes na cidade e em outros lugares, mediante
1- a liberação nos "registros de qualquer direito ou passagem" (CLB, pp. 4-7).
149
:s Alcir Lenharo. Op. cit., pp. 34 e 40.
150
Alvará de 27 de junho de 1808 (CLB, pp. 69-72).
-
750 MARIA DE FÁTIM A SILVA GOUVÊ A

fO·~
um fiscal, que
um nobre e um do povo, dois carpinteiros, um pedreiro e CÍSI
ros seriam
será um advogado. O alvará especificava que todos estes memb dd;
pelo Conse lho de Fazen da. 151
propostos pelo super intend ente e aprovados F'fl
editad a uma
Dificuldades na efetiv a adoção do imposto fizeram que fosse sá1
sua cobran-
seqüência de leis, que tentav am organizar a melhor forma de ria
inada a organ ização de um
ça.152 Poste riorm ente, em 1818, ficou determ Ca
cobra nças da
métod o unifor me para escrituração dos lançam entos e das de
na Cida-
décima da Cidad e, para conformar-se "com a prática estabe lecida Aj
Erário Régio . 153
de de Lisbo a", coisa que facilitaria os proce dimen tos do fi<
s, no mes-
Para a melho r cobrança deste imposto, foram també m criado d~
, consi deran do que
mo mome nto, os céleb res juízes do Crime da Corte nl
a presen ça do
"não só porqu e se muda ram as antigas circunstâncias" com Pt
aume nto da
prínci pe regen te na cidad e, conco rrendo para o acent uado dt
lugar de
população local, mas també m porque, tendo sido criado o o:
!'.
este Magis-
"[... ] Intend ente-G eral de Polícia neste Estado, não pode té
ilidad e
trado fazer execu tar o que cump re ao bem da segurança e tranqü
que há
públic a com os dois único s magis trados de meno r gradu ação [I

nesta cidad e." 154


t
t
s do lan-
Tais oficiais ficavam "como super intend entes [... ] encarregado
mesm o dia.
çamen to e da cobrança da décim a" -imp osto criado neste
ais dos bair-
Dever iam també m observar o regimento dos ministros crimin
ncia trocad a entre
ros de Lisboa. Nesse sentido, a consulta da correspondê
terem sido
estes oficiais e o inten dente de polícia da Corte demo nstra
vigila nte, coord enada pelo in-
eles os principais execu tores de uma ação
tindo as condi-
tende nte de Polícia, fiscalizando os comportamentos, garan
cidade.
ções para o "bem viver" e a manu tenção da ordem social na
que, dois meses mais
Foi visando à ampliação da ação destes oficiais
Corte ", fican-
tarde, foi estabe lecida uma "divisão criminal dos bairros da
or da comar ca do Rio de Janei-
do sob a jurisdição do desem barga dor ouvid

dos juízes de fora do


151
Na Bahia, haveria três superin tenden tes, constituídos nas pessoas
o termo de competência de
cível, do crime e dos órfãos, designando-lhes a junta da fazenda
Ficava ainda determ inado que, para as "Vilas e
cada uma das ditas superintendências.
s da Comarc a, que não tivesse m juiz de fora, seria o ouvido r da comarca
Lugares notávei
o alvará, minuci osamen te, das formas
nomeado como superin tenden te. Cuidava também
de cobrança e escrituração do dito imposto .
15
z Alvará de 3 de junho de 1809 (CLB, p. 258), alvará de
3 de dezembro de 1810 (CLB, pp.
230-2) e decreto de 27 de novembro de 1812 (CLB, p. 71).
de abril de 1811 concedeu
153
Ver o decreto de 15 de setembro de 1818. O decreto de 26
Nova da Corte do Rio de
isenção da décima aos indivíduos que edificassem casas na Cidade
Janeiro, visando promover a ocupação daquela nova área.
154
Alvará de 27 de junho de 1808 (CLB, pp. 65-6).
I
I

AS BASES INSTITUCIONAIS DA CONSTRUÇÃO DA UNIDADE 751


ro o "bairro criminal", constituído pelas freguesias dos termos de São Fran-
cisco Xavier do Engenho Velho, São Tiago de Inhaúma, Nossa Senhora
do Desterro e Campo Grande, São Salvador do Mundo do Guaratiba e São
Francisco Xavier de Itaguaí. O juiz de fora do Rio de Janeiro ficou respon-
sável pelo bairro criminal composto pelo distrito da Freguesia da Candelá-
ria, além das freguesias dos termos seguintes: São Gonçalo, São João de
Caraí, São Lourenço, São Sebastião de Taipu, Nossa Senhora do Amparo
de Maricá, Nossa Senhora da Piedade de Inhorimirim e Nossa Senhora da
Ajuda da Ilha do Governador. O novo juiz do crime do bairro de Santa Rita
ficou encarregado de todo o distrito da freguesia de mesmo nome, além
das freguesias dos termos seguintes: Sacra Família de Tinguá, Nossa Se-
nhora da Piedade de Iguaçu, Nossa Senhora da Conceição do Alferes, São
Pedro e São Paulo da Paraíba, Nossa Senhora do Pilar de Iguaçu. Já o juiz
do crime do bairro de São José tinha sob sua responsabilidade, além deste,
os distritos de Nossa Senhora da Conceição de Marapicu, São João de
Meriti, Jacarepaguá, Nossa Senhora da Apresentação de Irajá e Santo An-
tônio de Jacutinga. 155
Definia-se, assim, um mapeamento mais controlado de todos os distri-
tos e termos que então compunham a cidade, estabelecendo-se responsa-
bilidades governativas mais claras acerca dos oficiais de seu "policiamen-
to" cotidiano. Era no interior desta estrutura governativa da nova Corte
que a Intendência de Polícia estabeleceria a sua ação, tendo na pessoa
desses "magistrados criminais" auxiliares fundamentais na implementa-
ção e na fiscalização das políticas acionadas no âmbito do Rio de Janeiro.
Formavam, junto com o Senado da Câmara, uma espécie de triângulo ad-
ministrativo, constituindo todos o corpo de ofic~ais régios que andavam
pelas ruas, atormentavam a população quotidianamente, fiscalizando com-
portamentos, bem como a devida aplicação das regras e das normas im-
postas pela governabilidade em exercício na cidade.

CoNCLUINDO

O surgimento do Império luso-brasileiro significou o estabelecimento


de uma grande empresa governativa, administrada a partir da cidade do
Rio de Janeiro. A velha sede do Estado do Brasil foi rapidamente transfor-
mada na nova Corte do Império português, processo instaurado a partir do
estabelecimento, em seu interior, de uma alta administração. A governabi-
lidade da cidade, da capitania e do Estado do Brasil passava assim a se

m Edital de 11 de agosto de 1808. Códice 318- Registro de Avisos, Portarias, Ordens e


Oficios à Polícia da Corte, Editais, Provimentos, etc. -vol.1, 1808-1809. Arquivo Nacional
do Rio de Janeiro, pp. 113-4.
7SZ MARIA DE FÁTIMA SILVA GOUVÊA

cqnfundir com a do Império. Conforme analisado ao longo deste estudo, a


reformulação do padrão governativo incidiu num processo de metropoliza-
fÕo156 da velha sede, configurando um contexto definido pelo Padre Pere-
reca, em 1821, como sendo uma "obra de supressão e total revogação do
antigo sistema colonial". A sobrevivência da escravidão, entretanto, re-
lembrava, a todo instante, que muita coisa permanecia inalterada, situação
acentuada com a decisão das cortes portuguesas de decretar, em 1821, a
degradação político-institucional alcançada pelo Brasil ao longo do pri-
meiro quartel do século XIX.
Mas o Brasil já era, então, de fato, um reino, em termos formais e insti-
tucionais. O Rio de Janeiro joanino já se havia constituído no palco privi-
legiado de uma dada forma de ser da administração e da governabilidade
portuguesas. Esta nova dimensão jurídico-institucional do aparato admi-
nistrativo e da ação governativa presentes na cidade e na capitania havia
como que gestado um novo suporte para a emergência de novas técnicas,
novas concepções de poder e autoridade, um novo vocabulário, elemen-
tos que passavam a informar o desenrolar deste grande enredo político. A
proclamação da nova Constituição-Geral da Monarquia, em fevereiro de
1821, acabou por provocar uma crise política sem precedentes na história
do Império colonial português, crise que, passados dois meses, acabaria
por levar D. João, então VI, de volta a Lisboa, deixando ficar no Rio de
Janeiro D. Pedro, o "Príncipe Real do Reino Unido de Portugal e do Bra-
sil e Algarves". Mas isto, talvez, já seja o começo de uma outra estória.

156
Kirsten Schultz. Op. cit.

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