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Subjectividade e Racionalidade Uma abordagem fenomenologico-hermenéutica Ce Cure MLC com ez 1n)) £-) Andrej Wiercinski | Angela Ales Bello | Eliane Escoubas Emmanuel Falque | Fernanda Henriques Irene Borges-Duarte | Isabel Matos Dias Pe Te LeeLee Maria José Cantista | Maria Luisa Portocarrero Natalie Depraz | Pedro M. S. Alves Casa ACA SION Chi Campo da Filesofia O tédio como experiéncia ontoldgica. Aspectos da Daseinsanalyse heideggeriana. Quando, em 1947, na ressaca do final da Il Guerra Mundial, © psiquiatra suigo Medard Boss, perturbado e fascinado pela leitura de Ser e Tempo, escreveu a Heidegger para lhe solicitar alguns esclarecimentos, nao esperava receber téo répida res- posta. Desse inicial contacto epistolar surgiu uma relacao longa e prolifica, que se estendeu até 4 morte do fildsofo, em 1976, e que, de varias maneiras, deu expresso ao que na obra de 1927 aparecia como o ser do ai-ser ou Dasein humano; 0 cuidado. Cuidado enquanto amizade: aquela amizade que uniu dois homens preocupados com um mundo convulso e desenraizado, cada vez mais afastado de tudo o que escape A presente pro- gramagao tecnoldgica do futuro e¢ a interpretacao ideolégica do passado. Cuidado enguanto exercicio vocacional, aproximando o médico e professor de psiquiatria de Zurique do vetho professor, despojado da sua catedra e proibido de leccionar, na procura comum de uma via de compreender os caminhos errantes da existéncia humana, na sua imanente temporalidade, e capaz de fazer frutificar 0 pensamento filoséfico no Ambito “demasiado humano”, mas nao menos ontologicamente relevante, do pato- légico, almejando ambos alcangar curativamente dimensdes da experiéncia do mundo marcadas pelo sofrimento ea remincia ao mundo dos outros, Cuidado, enfim, enguanto prdtica docente, Subjectividade e Racionalidade na organizacio e empreendimento comuns daquilo que foram, na década entre 1959 e 1969, os semindrios de Zoilikon, esteio de uma nova via psiquidtrica que, sem excluir outras praticas e teorias, tentou coordenar uma a@ten¢do ao abrir-se do humano ao set, que sem se encerrar na oposicio normal-patolégico, inequi- vocamente axiolégica, cuida de acompanhar a proteica manifes- taco da verdade na dlgida agudeza da lucidez e¢ do delirio, Esta escola fez, por sua vez, escola, fora do 4mbito psiquiatrico e mais préximo do que hoje tende a chamar-se “acompanhamento” ou “consulta” filosfica, abrindo uma possibilidade quer de “apli- cacao”, quer de “intervencao” ao nivel do quotidiano daquilo que, de contrario, tenderia a ficar encerrado nas prateleiras da biblioteca ou nas aulas de filosofia: o pensamento e a linguagem heideggerianas, a que Adorno, tao brutal como despectivamente chamou, Jargon der Eigentlichkeit, “calao da autenticidade". Mais do que falar aqui desta via, interessa-me tematizar a questo que desde o inicio marcou a possibilidade de encontro entre Boss € Martin Heidegger: a problemditica da vivéncia do tempo nos estados doentios ou préximos de o ser. Nisso concen- trarei a minha aten¢io, ao focar a tematica do tédio. Pois se, em Sere Tempo, o ser do Dasein € 0 citidado, o sentido ontolégico deste é a temporalidade ex-statica ou Zeitlichkeit: ser & fazer, tacita ou explicitamente, a experiéncia do estar a ser, isto é, do tempo. Ora, foi justamente desse ponto de partida que, basica- mente, arrancou a leitura inicial de Medard Boss. 1. Contexto onto-fenomenolégico da andlise: o tempo do cuidado. Como todos os suigos em boas condigées fisicas ¢ psiquicas, tive de prestar servico militar activo durante todo © periodo de guerra, Durante aqueles anos fui repetidamente, durante muitos meses, arrancado ao meu trabalho civil de docente ¢ psicoterapeuta, e transferido para uma tropa de montanha [..] como médico de batalhio. [...] A tropa que estava sob os meus cuidaclos era cons- Subjectividade e Racionatidade tituida por uma populagao forte de camponeses € montanheses, acostumada ao trabalho. Por isso, durante © longo periodo do servigo militar, fiquei praticamente sem trabalho. Pela primeira vez na minha vida, de vez em quando, senti-me entediado. Aquilo a que chamamos “tempo” tornou-se problemdtico. Comecei a reflectir sobre essa ‘coisa’.”" A experiéncia do tédio, to pouco usual em profissionais da medicina, continuamente solicitados, quando nao urgidos, para a intervencao, despertou as interrogag6es do ser humano que comegou por procurar, primeiro, em Ser e Tempo — ha que reconhecer que sem grande éxito inicial -, depois através do contacto directo com © autor, uma via de elaboragao da sua situa- cao existencial, duplamente marcada pelo exercicio do cuidado [Sorgel: enquanto existente singular, no seu quotidiano estar- -ocupado [Besorger], onticamente imerso no mundo da vida, e enquanto ai-do-ser, especialmente solicito ¢ solicitado — isto é, desperto— no seu ser-com-outrem, para a procura [Firsorge] de cuidado médico. No entanto, das questées watadas, de que os protocolos e diélogos que tiveram lugar no Ambito dos semina- tios de Zollikon dao noticia, foi sobretudo a questao da angustia, indice de neurose e limiar reconhecido de mal-estar existencial, que foi objecto de intimeras referéncias. Em contrapartida, a problemitica do tédio, inicialmente motivadora, nao parece ter sido especialmente tratada nos Semindrios propriamente ditos, s6 aparecendo mencionada, quase de passagem, € como que num eco da breve alusao feita em “Was ist Metaphysik?”, no * Veja-se BOSS, Medard,: “Prefiicio 3 1? edicdo” de HEIDEGGER, Matin: Zollikoner Seminare. Protokolle— Zwieyespiche — Briefe, Frankfurt, Klos- termann, #1994, p. IX. Reproduzo, neste caso, com ligeiras modificagées, a traducio brasileira clestes seminarios, realizada, em geral com correccAo, por G. Amhold ¢ M. F. de A. Prado: Semindrios dle Zollikon, Petrépolis, Vozes, 2001. 2 Veja-se HEIDEGGER, Martin: “Was ist Metaphysik?"[1929), in Wegme- rhen, edicio de F-W. Von Herrmann em Gesamtausgabe [doravante GA] Bd. 9, Frankfurt, Klostermann, 1976. 299 Subjectividade e Ractonatidade resumo dos didlogos Heidegger-Boss, coet’neos mas indepen- dentes daqueles. Reproduzo, pois, a breve referéncia, de que partira a nossa anélise, em ordem a uma contextualizagao da problematica heideggeriana: No tédio auténtico, o que entedia nao é bem uma determinada coisa; esté-se pura ¢ simplesmente enteciado [es ist einem tiberhaupt langweilig|. Quer dizer: tudo nos diz igualmente pouco. No tédio, como a palavra indica [em alemiio: Langeweile é “o momento que se alonga ou demora”], o tempo tem um papel. Nao ha jf nem futuro, nem passado nem sequer presente. No tédio, propicia-se 0 inabarcado apelo do sex. “Apelo do ser” que nfo é acolhido e captado no af da com- preensio afectiva e veritativa desse Unico ente, que, entre todos os entes, poderia fazé-lo: o ente cujo ser consiste em deixar-se — ou nao ~ transir pelo ser que se da e, nele, acede a mostrar-se. Nao acolher 6, todavia, uma outra forma de revelar-se como sitio de ser: € 0 aparecer do vazio, do ser que, rejeitado, se retira, deixando atrds de si, candente, como que a cauda Algida e cintilante de um cometa, que é a pura forma do que nao che- gou a tomar forma. E essa “pura” forma de coisa nenhuma é; enquanto vazio, o insofrivel zempo de nada, o tempo do desistir, que nao suprime mas anula [nichtei] a presenca do presente, numa espécie de abandono ontolégico, > HEIDEGGER, Zollikoner Seminare, 261 (6-9 Mirz 1966}: “Inder echten Langeweile ist einem nicht nur ein bestimmies Ding langweilig, sondern es ist einem fberhaupt langweilig. Das heisst: es spricht einem alles gleich wenig an. In der Langeweile spielt die Zeit eine Rolle, wie das Wort sagt. Es gibt keine Zukunft, keine Vergangenbeit und keine Gegenwart mebr. In der Langeweile ereignet sich der unerfasste Anspruch des Seins.” tte. br. - que nao respeitei — p. 223] Embora aparentemente & margem deste fenémeno, a parte central do discurso heideggeriano segue, contudo, a tematica do significado do “ter” ou “nao ter tempo", que colida constantemente com a problematic do tédio. 300 Subjectividade e Racionalidade Estamos, certamente, 4 margem das expressdes escolhidas para traduzir a pujanga do fenémeno do nichten, no cerne do pensamento heideggeriano, que atravessa toda a sua pro- ducao, desde a primeira a ultima época: desde a Ontologia Fundamental, estruturada em Ser e Tempo, & Histéria do Ser, cuja arquitectura sistemiitica aparece, inédita mas pregnante, nos Contributos para a Filosofia, e se continua, daf em adiante, em miitiples versGes ¢ contextos. No entanto, a incidéncia da questo do tédio na imediata sequéncia da publicagao da obra-prima de 1927 leva-nos a chamar especialmente a atencao para a importincia que Heidegger atribui, entre 1928 € 1932, a.uma “metafisica do Dasein”, de carcter “meta-ontolégico”, isto é, enquanto aplicagao “metabélica” da leitura da Ontologia Fundamental 4 andlise do préprio ente humano. A esta preo- cupagao, s6 o trabalho com Boss parece dar, posteriormente, continuidade. £ neste quadro que a questio da fenomenologia do tempo tem especial relevancia. 2. Sentido temporal do tédio Simultaneamente reflexo especular do “ai” em que o ser vem a ser e pre-figuracio do que nao chega a ter figura, a fempora- lidade espraiada do instante perdido e silenciado, preso num agora tediosamente indefinido, € a mais propria ou auténtica 4 Entre outros, destacamos os esforgos de Jean Greisch para mostrar a importincia desta metafisica heideggeriana do Dasein, especialmente importante nestes anos, ante a insisténcia contempordnea em sobrevalorizar 0 textos da ultima época, de que esta preocupacio est ausente. Veja-se GREISCH, Jean: “Der philosophische Umbruch in den Jahren 1928-32. Von der Fundamentalontologie zur Metaphysik des Daseins”, in THOMA, Dieter (Hg): Heidegger Handbuch, Stuttgart / Weimar, Metzler, 2003, 11- -127, a 2 col. > Veja-se HEIDEGGER, Martin: Metaphysische Anfangsgriinde der Logik, edigao de Klaus Held em GA 26, 71990, 199-202. 301 Subjectividade e Racionalidade expressio do insistir existente em que o humano exerce onto- Jogicamente 0 seu viver, no sentido do desleixe quotidiano. Mas a rotina, se apercebida enquanto tal, é manifesta¢4o monocdr- dica do sentido ausente e, portanto, experiéncia silenciosa do puro apelo a ser do que no estd a ser no ente intramundano. Permita-se-me aqui, pois, que destaque, a titulo preliminar, dois aspectos fundamentais, que adiante aprofundaremos. Em primeiro lugar, que se trata de um fendémeno “positivo” no sentido da afirmacao da falta, do detectar sob a forma do negar, Recorde-se, brevemente, a este propésito, aquilo que também Freud, noutro contexto, reconheceu positivamente ao descrever, em paginas de clarividéncia sucinta, o significado profundo da “denega¢ao” ou Verneinung. O modo como os nossos pacientes formulam as suas ocorréncias {Binféille] durante o trabalho analitico dé-nos ocasiao para fazer algumas observag6es interessantes. “Vai agora pensar que eu vou dizer algo de ofensivo, mas realmente nao tenho essa intengio.” Compreendemos que isto a rejeicio de uma ocoméncia que estava, justamente, a emergir por projece’io. Ou: “Pergunta quem possa ser esta pessoa no sonho. A mae é que ndo é.” Rectificamos: portanto, éa mie. Tomamos a liberdade de, na intenpretagdo, prescindir da negacdo e extrair 0 contetide puro da associagdo. E como se 0 paciente tivesse dito: “Realmente, associei a minha mie com esta pessoa, mas no me apetece nada aceitar esta associagiio”.* Freud nota aqui a aparigdo limpida de uma relagao do presente (aparentemente, sem sentido) com 0 ausente (ignoto, porque recalcado), que s6 se deixa mostrar sob a forma fugi- dia do (conscientemente) inaceitavel. O que o leva, um pouco adiante, a concluir: “Um contetido de representag’o ou pensa- mento recalcado pode, portanto, chegar até a consciéncia sob 6 Veja-se FREUD, Sigmund: “Die Verneinung” [1925], in Studienaus- gabe, Bd. Ill, Psychologie des Unbewussten, Frankfurt, Fischer, 1975, 373. O destaque da frase em itilico 6 meu. 302 Subjectividade e Racionalidade condigio de se deixar negar.” O que aflora verbalmente €, pois, materialmente, o contetido verdadeiro, embora a tomada de consciéncia deste o rejeite sob a efigie dissimuladora do falso. A “negacio” é negacdo do jé de antemio afirmado: denegacao. O que se descobre matertalmentc encobre-se, formalmente, num “ndo”, que guarda e mantém o que falta (0 recalcado) como tal, embora denunciando-o como algo impossivel de aceitar conscientemente, A meditacio de Heidegger incide sobre um fenémeno semelhante, atendendo nao propriamente aos contetidos, mas sim & forma. Se Freud sublinha o aparecer do sentido, sob a forma do denegado, também Heidegger encontra no tédio o despertar-se para o sentido, mediante a sua rejeigao: “tudo nos diz igualmente pouco”. No entanto, o seu interesse nado se dirige 4s coisas, mas ao que nelas falta: o kairds da rela- gao homem-ser, que institui o seu sentido ex-statico. Os entes intramundanos fundem-se, assim, em inerte presenga, privada de ser em sentido prépric’: tudo se reduz ao estar-ai-diante da Vorbandenheit, até eu mesmo, jazentemente parado a assistir (mero theorein) ao em-presenca que me prende, anulando-me amim mesmo enquanto ex-sisténcia palpitante, enquanto estar a ser. Ou seja: a relagio do Dasein aos entes intramundanos na vida quotidiana nao se rege, habitualmente, pelo tempo ex-stdtico ou Zeitlichkeit, mas pela intratemporalidade inerente aquilo que se d4 no horizonte de presenga (Temporalitdt), em que o ser se deixa ver. E é nesse horizonte que, detido na “lenta demora” do momento de um ver estéril, “sinto” que “nada tem sentido” e desse nada — que é tudo — desisto. Esse fendémeno de apercepgao afectiva do todo na sua absoluta vacuidade é, para Heidegger, o tédio*. 7 Veja-se a meditagio de Heidegger sobre 0 fenémeno da “negagao” como “privagio” nos Zollikoner Seminare, 38-59. LA voltaremos, mais adiante. ® Do mesmo modo, poderiamos considerar que, pelo contririo, a apercepgio afectiva do todo na sua absoluta € instantinea plenitude — a Subjectividade e Racionalidade Ora, em segundo lugar, esse abdicar absoluto do mero pre- sente, inertemente detido e coisificado (e, portanto, aliendvel e anulavel), pode ser, ao mesmo tempo, ocasiaio de descoberta do tempo préprio da existéncia, do ser em sentido préprio do Dasein, como cuidado. Esta dimensao cairoldgica é tida em conta por Heidegger, j4 nos paragrafos centrais de Ser e Tempo, na “analitica existenciéria” lexistenziale Analytik] do “ai”, que toma forma como ser-no-mundo, nomeadamente, ao tratar da “queda” [Verfail, enquanto um dos existencidrios: a imersio na inautenticidade 6ntica, sem cuja captacAo ontoldégica nio ha lugar para o revulsivo de tomar “em propriedade”, autenti- camente, o prdprio ser. Sem a fenomenologia da “falta”, do vir & presenga, como auséncia, do que se retira, nao se percebe a apropriag&o origindria que, constituindo o ser do ai, protago- niza o drama da “diferenga ontolégica”. Esta s6 é perceptivel a titulo de indicio ou aceno [Winkl, inerente ao préprio desve- lar-se, velando-se, do ser no ente intramundano. Falar dela é, pois, necessariamente, elaborar conceptualmente esse indicio, interpretando-o, uma vez que a interpretagio € “projeccdo da compreensdo” na sua possibilidade de elabora¢iio, pela qual “o compreender se apropria, compreendendo, do compreendido”, sobre a base dessa afectividade inteligente, que o discurso arti- cula linguisticamente. eternidade ~ seria o puro éxtase: a felicidade mistica. Heidegger, fiel ao seu principio de procurar 0 ser pela via do que pode irromper no quotidiano, perturbando-o e rompendo a rotina, nao introduz nunca esta outra tona- lidade afectiva. Em “Was ist Metaphysik?”, menciona, contudo, mas sem desenvolver, que a “alegria que nos proporciona a presenca do Dasein —e no da mera pessoa — de um ser querido” também poderia revelar-nos “o ente na sua totalidade”... 0 que nos deixa entrever uma possibilidade de considerar 0 amor como um dos afectos fundamentais. Aparentemente, porém, sem valor filoséfico, uma vez que nao trabalha nos textos acadé- micos, mas apenas na sua poesia. Veja-se GA 9, 110. ° HEIDEGGER, Sein und Zeit, Tibingen, Niemeyer, 1953, § 32, 148; também em GA 2, 197. 304 Subjectividade e Racionalidade No entanto, apesar de estar j4 dado em Ser e Tempo o con- texto para uma andlise da relevancia ontolégica das Stimmungen, tonalidades afectivas, enquanto via de acesso — primordial por- que pré-conceptual — ao ser, a primeira aproximacao heideg- getiana ao tema faz-se pela via do medo e da angistia (Sere Tempo, respectivamente §§ 30 e 40), nao aflorando a tematica do tédio até “Was ist Metaphysik?”, conferéncia famosa, com que Heidegger inaugurou oficialmente, em Julho de 1929, a sua c4tedra de Friburgo. Porqué? 3. Da angistia ao tédio: a via régia da Ontologia em 1929. Trata-se, entao, de refundar a Ontologia, sobre os alicerces ou fundamentos existencidrios analisados em Ser e Tempo. Diferentemente da tradig&o racionalista moderna, basicamente intelectualista, embora com trechos voluntaristas, Heidegger procura desenhar a compreenstio humana como esteio de aco- Ihimento da verdade na sua projecgo sempre jé de antemao existencial ¢ historicamente determinada, isto é, marcada pelas formas de recepg4o “ao jeito” da uradigao e do uso habitual. Esta prioridade do “sido” enquanto heranga vai ganhando cada vez mais importincia, a partir de 1927, no que constituira uma acentuacao do papel da Geworfenbeit na projeccio de sen- tido, e portanto da estrutura tonal do ex-sistir compreendente, enquanto ai do ser, A porosidade ou permeabilidade da “afec- tividade” (Befindlichkeit), que encontra deixando vir ao encon- to, acaba por se constituir, assim, tanto como foro primordial de um possivel reencontro do ser que, no conceito, se oculta e objectiva, quanto como cémara fotografica de rotinas do j4 “caido” no intramundano. Dai a centralidade do texto de “Que é Metafisica?”, onde Heidegger procura retomar o fazer meta- fisico, nado no enquadramento tradicional de nogdes filosdficas sobreinterpretadas, mas no da mais primitiva das aberturas ao 305 Subjectividade e Racionatidade mundo: a via régia do afecto. Aquilo que esté em causa é a edificagao da Ontologia. Nao é casual mas “exemplar” que se aborde, a fundo, a angistia, nem que, nesse mesmo contexto, se introduza, pela primeira vez, a possivel sintonia do tédio. Se € certo que nunca captamos o todo do ente em si de maneira absoluta, ndo é menos certo que nos encontramos situados no meio [izmitten] disso que, de algum modo, € 0 ente desvelado na sua totalidade. Ao fim e ao cabo, ha uma diferenga essencial entre 0 captar do todo clo ente em si e o encontrar-se no meio do ente na sua totalidade. O primeiro é fundamentalmente impossivel. O segundo esti continuamente a acontecer no nosso af-ser. Decerto, parece-nos que na nossa labuta quotidiana nfo estamos apegacos senao a este ente ou aquele, como se estivéssemos perdidos neste ‘ou naquele recinto [Bezirk] do ente. Mas, por mais parcelar {auf gesplitterte] que possa parecer-nos a realicade quotidiana, continua 4 manter, mesmo que seja obscuramente, o ente na unidade do “todo”. Mesmo quando nao estamos ocupados propriamente com ‘as coisas Ou conosco mesmos — e precisamente nesse caso — esse “todo” sobrevém-nos [éberkommenl, como acontece, por exemplo, no tédio propriamente dito. Este ainda est longe, quando é s6 este livro ou este espectaculo, ou esta ocupaco ou esta ociosidade o que nos entedia [langweilf]. Irrompe quando "se est entediado” les ist einem langweilig). O tédio profundo, que, como uma névoa silenciosa, transe os abismos do ai-ser em todas as direc¢ées, junta tudo - as coisas € os humanos ~ € nés mesmos com eles numa estranha e comum indiferenga. Este tédio manifesta o ente na sua totalidade.”” Ao contrario da angtistia, que é a pura revelagao do nada, em que, sem alento, nao podemos estar senZo suspensos — “wir schweben im Angst” —, o tédio “manifesta o ente na sua totalidade” — “offenbart das Setende im Ganzen”. $40, pois, © HEIDEGGER, “Was ist Metaphysik?”, GA 9, 110. " HEIDEGGER, GA 9, 112 306 Subjectividade e Racionalidade segundo Heidegger, modalidades préximas pelo seu cardcter extremo: a angustia, porque denuncia o ser enquanto nada (de ente, de 6ntico), nada em que nos nao podemos afundar, porque s6 se apercebe como aviso da inquietante proximidade do que carece de contornos, de espago-tempo que o molde; 0 tédio, porque ao invés, denuncia a totalidade inabarcavel e, por isso, indiferenciada do ente em geral, totalidade que nos assalta e afunda, como um peso ingente e opressivo. Ambos os fendmenos — o da “insustentavel leveza do ser”, se se nos permite o uso da metdfora de Kundera, e o da insuportavel gravidade do ente — constituem um sinal positivo do que nao se mostra, no quotidiano apego as coisas, a que damos o valor relativo do uso que delas fazemos, na tacita familiaridade do trato que com elas temos. Se, angustiosamente, descobrimos a ignota ameaca do que ndo é 4 maneira do que esté 4 m4o ou do que podemos ter em mente; se, tediosamente, sofremos a invasto da pura presenca, que anula toda(s) a(s) diferenga(s) — se e sd se nos encontramos com o estranho, no meio do ente, & beira do qual ocupamos 0 nosso tempo nos afazeres ou no dcio, sé entdo, na tacita facilidade do decurso quotidiano, nos despertamos para o que, para além do ente, nos deixa ser 4 maneira do “af” que somos: o ser enquanto acontecimento € apropriacdo originaria, misterioso e, portanto, talvez, perigoso, mas, em qualquer caso, nao redutivel ao facticamente, pesada~ mente, ji acontecido e visivel ai-adiante. Para Heidegger, € neste terreno inseguro que tem de enraizar ~ valha 0 oximoro — a “nova” Ontologia. Viver no meio dos entes nao é ter conceito nem do “ente”, enquanto totalidade do que ha, nem do “ser”, que se oculta na origem, recusando-se a deixar-se “captar”. Portanto, a Ontologia tem que comegar no “encontrar-se”, sich befinden, no mundo a beira do ente e nao na teoria acerca dele, nao na projeccio de uma racionalidade unilateral e escolasticamente envelhecida, No encontro afectivo com 0 mundo, notamos, em instantes de especial acuidade, algo que nao so as coisas nem os meros entes, que nao sao 307 Subjectividade e Racionalidade as parcelas dnticas entre as quais vivemos. “A unidade do todo” dir-se-ia que apenas se cheira, nao sendo visivel ai-adiante. Mas nem por isso deixa de surgir “obscuramente” no quotidiano e, portanto, de nos “sobrevir”. Porém, o conceito revela-se caduco e incapaz de mostrar sé por si aquilo que hé a dizer. Coagulada no conceito, a Filosofia Primeira perece no distender-se da histéria, afasta-se da sua prdépria origem., Indefectivelmente, Heidegger, ao radicalizar a Ontologia, vé-se levado a transitar para o que, a partir de 1931/32, se waduzira cada vez mais poderosamente num estilo misto, em que a carga metaf6rica das nogGes manejadas é muito mais forte que a redu- zida precis&éo dos conceitos. Daf, naturalmente, a necessidade cada vez maior de atender a forga pregnante do dizer poético e da linguagem, quer enquanto estrutura, quer enquanto lingua factica. Ao fim e ao cabo, sempre tém sido os poetas quem mais directa e denodadamente tém sabido expressar a proteica tiqueza ontolégica dos afectos. O tédio, enquanto experiéncia ontolégica da indiferenga, assume em “Que é Metafisica?” 0 caracter exemplar de via de acesso ao ser que se esconde. Mas s6 no curso que leva por titulo Os conceitos fundamentais da Metafisica. Mundo, finitude e solid@o™, proferido no semestre imediato, esta problemética chegaré a ser objecto de atencZo central e preferente, por parte de Heidegger. A fenomenologia dessa “névoa silenciosa” [schweigende Nebel], cujas principais coordenadas me propo- nho, agora, com parcim6nia, desvendar, surgira, nesse contexto, como © que me parece ser um dos melhores antecedentes da Daseinsanalyse, posteriormente desenvolvida. HEIDEGGER, Martin: Die Grundbegriffe der Metaphysit. Welt— Endllt~ chkeit- Einsamkeit (Freiburger Vorlesung Wintersemester 1929/30], edigio de B-W. Von Herrmann em GA 29/30, 1983. HA uma versio brasileira de Marco Casanova, em geral, correcta ¢ legivel, que referirei habitualmente, muito embora, quase sempre traduza com independéncia dela: Os conceitos fundamentais da Metafisica: Mundo — Finitucte Solidao, Rio de Janeiro, Editora Forense Universitaria, 2003. 308 Subjectividade e Racionalidade 4. As trés formas do tédio. Em qualquer das passagens citadas aparece uma disting&o, embrionéria mas importante, entre um tédio “auténtico” ou “profundo” e o haver algo, coisa ou situagao, que entedia. Foi s6 4 acepcao mencionada em primeiro lugar que Heidegger pareceu, até agora, atribuir relevancia ontolégica. No curso de 1929-30, em contrapartida, trata-se de perceber um fendmeno complexo e rico, que se dé a diferentes niveis, mas que hd-de ser compreendido unitariamente natural na sua esséncia, mediante a sua articulagao estrutural: o tempo. Trata-se, para Heidegger, nesse curso, de procurar delimitar os trés conceitos enunciados no titulo - embora sé chegue a entrar, propriamente, no primeiro, o conceito “fundamental” de mundo —, nao pela via metafisica tradicional, mas mediante a exploragao da afinagao afectiva, do “estar agarrado” ou como- vido, como acesso privilegiado: Definimos o filosofar como o perguntar conceptualizante [begreifendes, que agarra em conceito] a partir de uma comogio [Ergriffenbeit, um estar-emotivamente-agarrado} de caracter essen- cial do ai-ser.3 A ideia de que parte é de que essa “afinagZo” esta sempre ja dada, de uma ou outra maneira, podendo contudo estar “ador- mecida” ou “desperta"", Momentos ha em que, na experiéncia singular ou na colectiva, o estar a ser-no-mundo se traduz no sentir-se afectado, de alguma maneira: ira, alegria, melancolia, etc, A objectivagio do que assim é afectivamente percebido pode 3 GA 29/30, 199: “Das Philosopbieren bestimmen wir als begreifendes Fragen aus einer wesenhafien Ergriffenbeit des Daseins.” Tr. Casanova, 156. 4 Veja-se GA 29/30, § 16, 89-99. Atente-se no titulo da alinea a): “Weekung: kein Fesistellen eines Vorbandenen, sondern ein Wachtwerden- lassen des Schlafenden”. 309 Subjectividade e Racionalidade ser antropologicamente entendida no ambito da Psicologia, por exemplo, ou no da Sociologia da Cultura, sem que nisso se abra verdadeiramente um caminho para a compreensao do mundo assim descoberto, na fenomenologia do seu albergar o ser. Pois, segundo Heidegger, a objectivagdo destruiria a autenticidade ow originariedade da via pré-conceptual, ao transformar o percebido em mero objecto de observacdo, ao converter a expe- riéncia em teoria acerca do ai-diante. Neste contexto, em que co autor também integra a Psicandlise, aparece a critica a leituras culturalistas como as de Spengler, Klages, Scheler e Ziegler’, que considera claramente dependentes da descoberta nietzs- cheana da bipolaridade “apolineo-dionisiaco”, como tentativas de descrever a “situagio” do nosso tempo a partir da “relagio vida-espirito”. Ora, Heidegger pretende ir ao fundo do que estes autores, embora orientados para a importancia da afectividade, nao conseguiram traduzir senao mediante um binémio: a expe- riéncia avassaladora da unidade no instante do despertar-se do afecto fundamental ou de fundo que transe a experiéncia ontoldgica caracteristica de uma determinada época, seja da vida individual seja da colectiva, urgindo uma decisio. Esse cunho com que o mundo em que nos encontramos residindo 4 beira dos entes nos aparece precisar-se-4, mais tarde, no contexto do carfcter “epocal” das diferentes “constelagdes” ontolégicas. Mas é nesse quadro que Heidegger acha no-tédio um radical capaz de tornar acessiveis elaboragdes tedricas como a que Spengler edifica sobre a nogao de “decadéncia”, ou como a que Scheler descreve ao falar da necessidade de uma era de “equilfbrio” ou “conciliagdo” LAztsgleich] entre diferentes opostos. Esta con- textualizacho, que parece iniciar uma meditagao no limiar de uma Filosofia da Cultura, desenvolve-se, contudo, no sentido de uma Ontologia da finitude, isto €, como uma fenomenolo- gia do ser no seu incémodo acomodar-se 4 forma temporal do existir e compreender humanos. Nao 6, pois, a “mundividéncia” % GA 29/30, § 18, 103 ss. 310 Subjectividade e Racionalidade propria de uma idade (seja no sentido individual psicolégico ou no da civilizagio), mas a singular configuragao do Dasein, a “finitude” no ai-ser, o que transparece na tonalidade afectiva fundamental do tédio. Sao trés as formas que Heidegger analisa minuciosamente ao longo do que, na transcrigfio da Gesamtausgabe, ocupa aproximadamente 150 paginas: 1. Das Gelangweiltwerden von etwas — “o ser entediado por algo". E o tédio “superficial” (oberfldcbig), provocado pelo “tedioso” ou “entediante”. O que, em portugués, poderiamos traduzir como “macada”: o que sentimos, com impaciéncia, ante algo enfadonho, na expectativa de que passe. 2. Das Sichlangweilen bei etwas — “o entediar-se’"”. Momento intermédio, registo do aborrecer-me, nao por algo especial e concreto, mas assim mesmo, sem motivo, quando de stibito me invade uma serena averso ao presente em que estou retido, apesar de até estar entretido. 3. Es ist einem langweilig - 0 que acontece quando “se esta entediado”®. E o tédio profundo, o nojo de viver, raiano da melancolia, que nado é nem reacc’o a algo exterior, nem mera situagao transitéria de alguém que, as vezes, se aborrece, mas © “estar” e demorar-se nesse estado, desaparecendo o vinculo quer A circunstancia concreta, quer @ vivéncia individual da mesma. GA 29/30, §§ 19-23, 117 € ss. Marco Casanova traduz: “o ser entectiado por alguma coisa” (tr, pt., p. 128 ¢ ss.). GA 29/30, §§ 24-28, 160 ss. Na ir. Casanova: “o entediar-se junto a algo” (p. 127 e ss.) '§ GA 29/30, §§ 29-36, 199-239. Nao creio, neste caso, acertada a versio de M, Casanova; “é entediante para alguém” (p. 157 € s5.), no 86 niio expressa o sentido co demorar-se num estado, 0 que, nas Ifnguas ibéricas implica o registo diferencial de “ser” ¢ “estar”, como a referéncia do impes- soal (“es") se perce 20 nomear-se “alguém’, para quem algo indeierminado poderia ser causa de tédio, Esta leitura justificar-se-4 mais adiante, But Subjectividade @ Ractonatlidade Estas trés modalidades s&o analisadas a partir de exemplos, que passo a sintetizar. 4.1. A vulgar magada A vivéncia mais comum e familiar é a do “perder tempo” 4 espera de algo que tarda em passar: € o que acontece quando aguardamos a chegada de um comboio a estagio, onde nos encontramos sem nada que fazer. Tentamos ler um livro, ¢ nao conseguimos concentrar-nos, a paisagem nfo consegue distrair-nos. Uma e outra vez, olhamos nervosamente para o relégio, andamos sem tino para tras ¢ para diante, impacientes, tentamos “matar o tempo”, pois quase “morremos” de enfado: © comboio tarda infinitamente, mesmo que chegue pontual, 4 sua hora. Em que reside, entio, o tédio? No estar & espera? Na impaciéncia? Na opressio do tempo que nao passa: No tédio [Langeweile] wata-se de um momento [Weile], de um demorar [Verweilen], de um permanecer e durar peculiares. Portanto, afinal, do tempo. Contra isso, o passatempo. [...] comportamento peculiar, de olhar continuamente para o relgio, relégio com que medimos © tempo. Entdo, 0 que € decisivo no passatempo, tanto quanto naqutilo que ele enxota — 0 tédio — 6 o tempo. O passa- tempo é um abreviar do tempo, que quer dilatar-se, empurrando-o, ¢, desse modo, € uma intervengio [Eingriff] no tempo enquanto disputa [Auseinandersetztung) com o tempo.” Na longa descri¢do, aqui apenas indiciada, Heidegger chama a atengao para que o macador da situagao nao é ela mesma — que nao pode, assim, ser “causa” da magada, muito embora seja dela ocasiZo —, mas o enfrentamento ou altercado com o tempo, 0 tempo que somos e, de repente, parece arrastar-se, moroso, sem nos deixar assentar em nenhum afazer, esvaziando-nos ” GA 29/30, 145. 312 Subjectividade e Racionalidade de qualquer auténtica ocupa¢ao. A tinica coisa de que somos capazes é querer fazer que o tempo passe, usurpar 0 seu poder sobre nds, agindo sobre ele, obrigando-o. Ora, é justamente esta atitude que destaca esse mesmo poder, que desperta 0 nosso estar a ser, O nao nos ser indiferente o tempo da existéncia... agora ermo e arrastado [éde, schleppend], como se nao se deixasse preencher pela nossa presenca. Daqui, Heidegger extrai uma dupla caracterizagao fenomenolégica: “entediante, tedioso € 0 que retém e, contudo, deixa vazio.”* Somos surpreendidos, de forma paralisante, pelo transcurso de um tempo que parece hesitar em avangar: “ser entediado €, portanto, um ser retido pelo curso temporal hesitante de um interregno:”? E, igual- mente, somos incapaces de preencher esse intervalo com uma actividade produtiva, prazenteira: as coisas com que habitual- mente lidamos deixam de ser-nos tteis, perdem 0 seu vinculo Pragméatico, o seu “estar-a-mio” e passam a ser meras coisas “ai-diante”, que de nada nos servem e “nada nos dizem’. No tédio, as coisas deixam-nos “entregues a nds mesmos”, vazios de coisas e solicitacdes: Concluo: a afinacao afectiva pds em cheque, de uma s6 vez, 0 “objectivo” € o “subjectivo”. O nosso ser-no-mundo 4 beira dos entes desfez-se, pois 20 desaparecerem os entes, no nosso tato com eles, é o mundo que desaparece e nés com ele. Mas chega o comboio e a nossa vida recomega de novo, hospitalei- ramente, com tudo no seu sitio e a andar como deve ser. Neste patamar de anilise, a histéria termina bem. ® GA 29/30, 130: “das Langweilende, Langweilige ist das Hinbaltende und doch Leerlassende”. 2 GA 29/30, 151: “Gelangweiltwerden ist demnach etne Hingehaltenheit durch den zégernden zwischenzeitigen Zeitverlaul’, Reproduzo, neste caso, a bem conseguida tr. Casanova. 313 Subjectividade e Racionalidade 4.2. O aborrecer-me Pior é 0 que pode passar, quando esse sentir do vazio e do tempo que nao flui se da sem “causa” ou motivo aparente. Quando, em vez de me divertir, me aborrego, apesar de me encontrar em situagAo que eu mesmo elegi ¢ deveria, pois, ser prazenteira e produtiva. Por exemplo, numa reuniao de amigos uma festa — a volta de uma mesa, conversando e saboreando a desejada companhia. E, contudo, sabe-se 14 porqué, de repente, vio-se o sabor € 0 prazer: tudo € simpatico e acothedor, gosto desta gente, nada macadora, e deste ambiente calido e convida- tivo, mas comega a tornar-se-me dificil disfargar, um apés outro, persistentes bocejos! Sou eu que me aborreco. Heidegger analisa esta segunda forma do tédio em contraste com a primeira. Aparentemente, parecem faltar as caracteristi- cas antes encontradas: nao 86 nao ha “algo” que entedie, nem, portanto, tenho necessidade de enganar o tempo com “passa- tempos”, como ndo me sinto num opressivo “estar retido” num intervalo de espera, nem as coisas se me escapam deixando-me vazio. Na verdade, “nao sei que me aborrece”. E este “nao sei qué” — este.“desconhecimento indeterminado” que constitui o “caracter de tedioso””. O que me aborrece nesta situagao vem. de dentro, vem das profundidades de mim a superficie.do meu encontro.com os outros 4 beira das coisas entre as quais vivo € convivo, Elas nao desaparecem: eu € que nao estou 14. Por isso, “o tempo nem urge nem hesita”’: estou entretido, entregue ao desenrolar-se da reunido, deixo-me levar pela conversa, pela companhia, no tempo que se estende, sem fim nem principio. E essa dilatagio aparentemente indécua do tempo, a duracao indefinida que quase passa desapercebida, alheia a todo o antes e depois, estagnada num mero e tranquilo durante que, de 2 GA 29/30, 176. Tr. Casanova, 142. 3 GA 29/30, 174: “Dréngt die Zeit weder, noch zdgert sie.” Tr. Casa- nova, 138. 314 Subjectividace e Racionalidade repente e em bloco, se revela na sua vacuidade: entretido, nao me deixo escutar o “rumor inquietante e paralisante” do tempo que, contudo, passa. Flutuante num presente alargado e isolado de todo o antes e depois, como se esse tempo do durante fosse o meu, desisto do seu drar**; “faco com que o tempo pare.” Deste modo, segundo Heidegger, operou-se uma dupla modificagdo de ambos os momentos estruturais do tédio ~ Leergelassenheit, “serenidade vazia”, e Hingebaltenbeit, “retenc&o” —, que é caracteristica desta sua segunda forma. Por um lado, o tempo estagna numa quietude [Stif/e] vazia, a que nos abandonamos, como a um prazo eternizado, em que se dissimula, sem se tapar completamente, esse caracter de prazo, de fragmento isolado. Por outro lado, ficamos retidos nessa quietude, consis- tente na perda do horizonte temporal, que abarca “proveniéncia e porvir” [Herkunjt, Zukien/a. Assim, em vez de urgidos a passar 0 tempo, como acontece na primeira modalidade do tédio, sentimo- -nos “citados” [zitiert] pelo tempo, “posicionados” pelo tempo, que, sem nos abandonar, nos coloca ante a vacuidade da nossa mesmidade [Selbst] no agora em que estamos aborrecidos®. Desta forma, a tonalidade afectiva do tédio abandonou a superficialidade do casual, para penetrar na interioridade do ai, em que o ser se di: depois da perda das coisas no seu estar-a-mao, é o proprio Dasein que, prisioneiro do agora sem figura, se desfaz em nada. O aborrecer-se, assim, conduz as profundezas abissais do si-mesmo. Ou melhor: emerge desse fundo obscuro & superficie. 4 GA 29/30, 186: “Wir verschitessen uns diesem beunrubigend-lab- imenden Gepolter der abrollenden Abfolge der Jetzt, die dabet mebr oder minder gedebnt sein kénnen. Wir nebmen uns diese Zeit, um sie uns zu lassen, d.b. sie als die verfliessende aisfaigeben. L.) Wir bringen die Zeit zum Steben” Tr. Casanova, 148, 3 GA 29/30, 189: “Die stebende Zeit entldsst uns nicht nur nicht, sondern 2itiert uns gerade, stellt uns. Wentin wir so, los gelassen in das Dabeisein, gestelit werden von dem stebenden Jetzt, das unser eigertes, aber aufeegebenes und leeres Selbst ist, langweiligen wir uns.”. Tr. Casanova: 150. 3s Subjectividade e Racionalidade 43, Onojo Aterceira modalidade do tédio vem a ser, enfim, a experiéncia radical do .“despertar-se” do Dasein — portanto, um deixar de estar adormecido ~ para o que Heidegger parece compreender como a absoluta “prepoténcia” [Ubermdchtikeit| do tempo: ao “estar-se entediado”, sente-se uma impoténcia total, quer para fazer o tempo passar ~ pelo que nao ha lugar para fugir do tédio, mediante 0 passatempo -, quer para fingir que se encontrou refiigio no presente — pelo que o passatempo como tal se torna impossivel. Enquanto, no primeiro caso, nos esforgamos por abafar 0 tédio mediante 0. passatempo, para ndo precisar de o escutar [nicht auf sie zu héren brauchenl, enquanto, no segundo caso, o distintivo é um ndo-querer-ouvir [Nichthérenwollen|, temos agora um estar -obrigado-a-ouvir [Gezwungensein zu}, um ser-obrigado [Gezwun- genwerden] no sentido da coacgio [Zwangl, que tem tudo o que € proprio do Dasein, e que, por conseguinte, esti vinculado com a mais intima liberdade. O “estar-se entediado” transpés-nos desde logo num Ambito de poder, sobre 0 qual a pessoa singular, 0 sujeito publico individual, j4 no tem poder nenhum.””” A profundidade deste tédio’ subjugador pée, portanto, em evidéncia 0 cerne do “ser-o-ai”, qué o humano ele mesmo é: Ambito de Abertura para o libertar-se (af) do ser, na sua dadiva super-abundante. E, contudo, esse vinculo do ser ao seu af humano dé-se, no tédio, 4 maneira de um alerta: o sentir-se constrangido pela ingeréncia insuportavel do quotidiano e fami- liar, do estar inevitavelmente entregue a este ou aquele afazer, do ser compulsivamente obrigado a viver 0 dia-a-dia do nosso estar no mundo 4 beira dos entes entre os que convivemos uns %® GA 29/39, 177: “das Ausgefiilitheit im Dabeisein als Schein (eine eigentitmliche Unbefriedigung)” » GA 29/30, 205; tr. Casanova, 162. 316 Subjectividade ¢ Racionalidade com os outros, O tempo préprio (a temporalidade ex-statica do Dasein) insurge-se contra o tempo das coisas (o carfcter crénico, Monotonamente continuo, a que tio-s6 assistimos no seu estético prolongar-se indefinido) e desafia 0 Dasein im Menschen, © “ser-o-ai no homem’” a libertar-se, a resolver ser em propriedade, a decidir‘se. Ou seja: a “libertar a humanidade [Menschbeit, nao Menschlichkeii| no homem’”. Isto acontece num duplo movimento. Por um lado, tudo, & uma (mit einem Schlag], se torna indiferente: as coisas, 0 viver e conviver revelam-se puro dejecto Gntico, ou seja, em vez de desaparecerem, separam-se de nés mas esmagando-nos com 0 peso ingente do que nada nos diz, mas ai est4, incontornavel- mente. Indiferenga - em alemao, Gleichgiiltigkeit, equi-valén- cia, um valer tudo o mesmo, igual a nada. “O ente torna-se de todo indiferente”, “mostra-se justamente enquanto tal, no seu valer-tudo-igual.”? Interpreto: vazio de ser, 0 todo dos entes converte-se em puro valor negative. E este nibil que, assim, de repente, irrompe no quotidiano, que Heidegger designa como © momento de “serenidade vazia enquanto estar-entregue do ai-ser ao ente que se recusa na totalidade”®, Mas, por outro lado, este sereno estar-vazio nem € desespero, nem p6e a descoberto o “nada”, Na verdade, a “reten¢gao” a que se subordina [ist in sich zugeordneti, também ela transformada, ® GA 29/30, 248; tr. Casanova, 196. ® GA 29/30, 208-209; tr. Casanova, 164. » GA 29/30, 206 e 210: “Leergelassenheit als Ausgeligfertheit des Daseins an das sich im Ganzen versagende Seiende”. A expressio, escolhida como titulo do primeiro momento do § 31, que procura interpretar 0 fendmeno do tédio profundo nos seus dois momentos de “serenidade vazia” ¢ “retenclo”, sublinha o aspecto de fracasso [Versagen] do mundo como uma experiéncia de as coisas “ndo-nos-dizerem” nada. “No tédio profundo, o af-ser enconira- -se, justamente, colocado ante o ente na sua totalidade, na medida em que © ente que, no tédio, nos envolve nao nos concede nenhuma possibilidade nem de fazer nem de deixar fazer. Ele recusa-se na sua totalidade no que respeita a tais possibilidades.” 317 Subjectividacte e Racionatidade nao é senao a “das possibilidades do seu [do Dasein] fazer e deixar fazer”. O fracasso experimentado pelo ai-ser no tédio profundo é a experiéncia do recusarem-se(-nos) — do no (nos) dizerem nada —estas possibilidades de fazer e deixar-fazer, que sdo inerentes 20 ser do ai-ser: “A recusa [ou nao dizer, Versagen] nao diz respeito nem inaugura um entrar em accao [Verhandlung, negociagaol, antes. pelo contrario: recusando-o aponta na sua direccio e, assim, na medida em que recusa, dé disso noticia.”! Ante o vazio, que € diferente de ser nada, apercebo-me do todo de possibilidades que, retido no tempo estagnado, nao enceto. O tempo abre-se- -Me, pois, no seu caracter mais prprio: como instante de decisio que nao chega, como amplo horizonte parado e sem. : relevo do agora presente, que me esta exigindo ser roto, sem que eu possa fazé-lo. O fracasso é o do meu “poder-ser” existente (ex-sistente) em cada instante, pelo que “prospectiva, perspectiva € retrospec- tiva” [Hinsicht- Absicbt— Riicksicbt se aplanam e empobrecem numa éspécie de longitude estatica, impossivel de: préencher.* Hinsicht 6, aqui, somente, a visio para a frente do‘que quer que possa estar presente, Absicht a visio intencionada do que quer que possamos ter em vista, Ruicksicht a consideracio do que quer que tenhamos visto. Toda esta amplitude temporal —o horizonte do tempo no seu todo.— mostra-se-nos em bloco como o quadro asséptico do que nao nos importa, mas por isso, por nao poder fazé-lo desaparecer, nos oprime. Presos 4 lonjura do tempo lento, somos desterrados, banidos [gebanné] na temporalidade em sen- + GA 29/30, 211-212: “Wovon sagt es etn Versagen? Von dem, was dem Dasein irgendtwie beschieden sein knnte und sollte. Und was ist das? Eben die Méglichkeiten seines Tuns und Lassens. Von diesen Méglichkeiten des Daseins sagt-das Versagen. Das Versagen spricht nicht dartiber, erdffnet daniber nicht eine Verbandlung, sondern versagend weist es auf sie und macht sie kund, indem es sie versagt.” Tr. Casanova, 167. 2. GA 29/30, 215: “... dieses Seiende im Ganzen in der genannten Weite nach jeder Hinsicht und in jeder Absicht und fur jede Riicksicht. Dergestalt im Ganzen wird das Seiende gleichgiiltig.” Casanova (p. 169) traduz, res pectivamente, por “aspecto”, “intuito” e “consideragao”, sem recurso a uma nota de pé de pgina para esclarecer as implicages temporais. 38 ee Subjectividade e Racionalidade tido préprio, da instantaneidade do éxtase. Mas, por isso mesmo, ser banido do pulsar temporal converte-se em apelo ao pice da decisao e resolugao de voltar ao tempo, voltar a ser: © todo do ente que se recusa nfio anuncia umas possibilidades quaisquer de mim préprio, nao informa acerca disso; este anunciar no recusar [Amsagen im Versagen] & mas é um apelar, o propria- mente possibilitante do ai-ser em mim. [...] O indicar anunciando em direcgo ao que possibilita autenticamente o ai-ser na sua possibilidade é um obrigar que aponta para o tinico dpice [Spitzel deste possibilitante origindrio, Estar-se entediado. |...] A este ser-dei- xado-ao-abandono pelo enté, que se recusa no seu todo, pertence igualmente um ser-obrigado a ir em direc¢fio ao Apice da auténtica possibilitagio do ai-ser enquanto tal. O tédio profundo é um grito brutal a radicalidade do ser que o-humano é por “levar 0 ser no seu ser”; enquanto puro “poder ser”. Daf que o despertar desta tonalidade afectiva seja, no sentido mais profundo, um revulsivo. O termo nao é de Heidegger, mas traduz bem o que 'é a queda no meramente 6ntico, enquanto sentir do perigo e, portanto, enquanto possibilidade existenciaria de salvagio: recuperacgao do ser em propriedade. O vémito, que exprime o nojo de viver, ante a estagnacio do que s6 se estende sem éxtase possivel, € o que permite... a cura. Como disse Cioran: Os outros caem no tempo; eu, pelo meu lado, cai do tempo. A eternidade que se erigia por cima dele sucede essa outra, que se situa por debaixo, zona estéril em que n&o se experimenta senio um desejo: voltar ao tempo, elevar-se até cle custe o que custar, apropriar-se duma parcela dele, em que se instalar, fazer-se a ilusio de uma morada.3# ® GA 29/30, 216. ‘Tr. Casanova, .170-171. 3 CIORAN, Emile: La chute dans le temps, Paris, Gallimard, 1964, Veja- se 0 capitulo final: “Cair do tempo..." 319 Subjectividade ¢ Racionalidade 4.4, O moroso demorar-se sem morada: o tédio como urgéncia do pensar. Em sintese: sob a forma interrogativa, Heidegger concebe a hipdtese, que na andlise fenomenolégica subsequente se verifica, de que uma mesma estrutura una os trés patamares do tédio, revelando neles, portanto, um mesmo fenémeno existencial (existenciario), de que toda a gente tem experiéncia, embora s6 em alguns casos chegue a ser vivido com radicalidade. Pois se é certo que “o tédio, afinal, ataca [greift an] as raizes do ai-ser, isto é, a esséncia no seu fundamento mais préprio”®, esse ir até @ raiz requer, contudo, um ir até ao fim ou até ao fundo que s6 na forma mais extrema se dé. Compreender esse extremar- -se da esséncia é, por isso, des-encobrir 0 que se encobre na trivialidade do dia-a-dlia e, portanto, descobrir o mais préprio do Dasein, nos seus cimentos: 0 seu ser-tempo, pura finitude. A procurada articulac’o interna e origindria do fenémeno “tédio ou demora’ seria o temporalizar-se do tempo enquanto ai-do-ser, isto é, enquanto esséncia ex-sistente do humano. Chamaria, por isso, a atengAo para os seguintes aspectos. Em primeiro lugar, este “aprofundamento” [Tieferwerden! é, na verdade, simultaneamente, um “afundamento”. O “ir a fundo” da “interrogagio conceptualizante” heideggeriana, mediante a afinagio afectiva despertada, tenta acompanhar o “ir ao fundo” [die Tiefe des Wesens selbst erreichen], emocionalmente experi- 35 GA 29/30, 144-145: “dass am Ende die Langeweile an die Wurzeln des Daseins greifi, Ah. in seinem eigensten Grunde west.” ‘Ts. Casanova, 116: “o fato [sic] de 0 tédio se arraigar no solo do ser-ai, de ele se essen- cializar em seu fundamento préprio”, Mas 0 tédio nio “se enraiza” no solo do Dasein: ataca — isto 6, arranca — 0 Dasein do solo ov fundamento, em que a sua existéncia transcorre “agarrada”. A radicalidade do fenémeno consiste em que é uma agressi0 ao enraizamento do humano no solo da quotidianeidade. Tem, portanto, necessariamente, um cardcter desestabili- zador, perturbador: rouba 0 assentamento no solo do familiar. 320 encanta netenonernerihenns ener amntcncreretpususentieon ty ett R OAS RONAN rnnnmenneteunlaee neds Subjectividade e Racionalidade mentado pelo Dasein, que acaba ins Bodeniose, sem solo, no exercicio ontolégico, em que “leva o ser no seu ser”, Em segundo lugar, nao é experimentado, propriamente, de maneira gradual e paulatina, mas sempre sob a forma de wm salto: o tédio ou ndo € apercebido como tal, enganado no “pas- satempo” (primeira modalidade); ou é percebido de stibito, na lentidao do tempo que nao passa do estar a passar o tempo, 0 que entio se torna opressivo (segunda modalidade); ou é vivido quotidianamente na rejeicao em bloco desse mesmo quotidiano ser-no-mundo 4 beira dos entes intramundanos, entre os que transcorre o seu fazer pela vida e conviver, rejeigéo total de tude, isto 6, desse todo que pesa e que s6 negado no vazio da indiferenca se pode suportar (terceira modalidade). Em terceiro lugar, o que neste salto acontece, implicando toda a amplitude do “ai do ser”, desde a mera e plana inauten- ticidade Sntica até ao mais extremo prenincio do apical “ser em propriedade’, da-se sempre sob a forma de uma negaciio: é do ndo permitir que o tédio irrompa, “enganando” ou “matando” © tempo (nivel superficial, exercido na quotidianeidade), que, justamente, se salta ao seu contrario — na des-ilusao, deixar-se inundar do ndo-ser do meramente 6ntico, deixar-se avassalar pelo poder do tempo. No meio, o.despontar da ponta: o relam- pago fugaz da negacao, enquanto corte e afastamento, do “ai” em que 0 tempo, estagnado, se detém. Finalmente, em quarto lugar, na fenomenologia do tédio tansparece na sua unidade estrutural o préprio estar a ser do Dasein, que ouve, sem querer escutar, 0 apelo do que se encobre: a necessidade de responder a pentiria [Vo!], ao esque- cimento do ser, mediante o cuidado, Ao nivel individual, em multiplices situagSes e contextos humanitarios; ao nivel colec- tivo e histérico, naquilo que cunha uma época. $6 no exercicio pleno do pensar, que sendo conceptual mantém em si desperto o afecto, podera a filosofia responder a esse desafio e apelo da 36 GA 29/30, 200-201 € 239. 321 Subjectividade e Racionatidade sua €poca. Porque o tédio urge e insta a pensar, pode ser.no momento individual e no colectivo, a Grundstimmung de um. novo: inicio: o salto da morosidade para a edificagao de uma morada, que se sabe, de antemao, sempre necessarlamente finita, transitéria, ® 5. Conclusdo: a Daseinsanalyse como terapia? Conta um conhecido psiquiatra que, sendo ainda princi- piante em estdgio, se lhe encomendou atender um jovem que, pela primeira vez, acudia a consulta. Procedeu com cuidado e humanidade e redigiu, como era preceptivo, o respectivo rela- torio, Interrogado mais tarde pelo Professor ¢ Chefe do Servigo, respondeu nao ter encontrado nenhum’sintoma propriamente patolégico no rapaz que atendera. O seu mal era, apenas, o tédio. Ao que o Mestre retorquiu: “Ah, nao pensava que fosse téo gravel” A trivialidade do estar aborrecido oculta a pesada gravidade do que, assim, se experiencia e em que a psicologia e psiquia- tria reconhecem o possivel limiar da melancolia ~ em alemio, Schwermut, literalmente, “Animo pesado”, Antes, porém, que Biswanger e Medard Boss desenvolvessem, sob um ou outro nome, no Ambito psiquidtrico, o que Heidegger esbogou como o embrido de uma compreensio do humano, j este perscrutara uma outra forma, nao antagénica mas sim dissidente, de enten- der o que todos afirmam como “doenga”. “Doente”, como toda a gente sabe, € “quem nao est4 sio” — mas nado num sentido meramente “negativo”, e sim no de uma “privacio”. Nesta, “a co-pertenga essencial do que falta, do que se separou”, embora tacita, € directamente aludida, indigitada”. Enquanto tal, estar 5 Recorde-se, a este prop6sito, a explicita mencao da problemitica da “negagao” enquanto “privacio” e, portanto, “falta”, no contexto do “ter” ou “nfo ter tempo”, jf referido, que aqui se explicita no conceito de 322 Subjectividade e Racionalidade mal do é 0 conirdrio de estar bem, mas antes o pér em evi- déncia a falta de satide, o apelar ontolégico para o que lhe co-pertence e para que tende: o estar bem. Nessa medida, poderiamos concluir, heideggerianamente, que talvez nao houvesse, para o ser humano — finito, inequivo- camente finito —, uma auténtica possibilidade da plena aceitagao ou abertura ao ser, que “ai” se da, que nao passasse, de uma ou outra maneira, pela experiéncia dolorosa da falta, $6 o pensar, espécie de “doenga” que quebra a rotina da normalidade, pode sustentar a neblina do ser que se encobre... E, 4 margem da racionalidade objectivante, que é preponderante e invasora, no Ambito cientifico, a Ontologia poderia entender-se como sendo ocerne de uma experiéncia “terapéutica”: a que os discipulos se encarregarao de desenvolver sob o nome de Daseynsanalyse. Irene Borges-Duarte UNIVERSIDADE DE Evora. “doenca’: “Krankbeit ist nicht die blosse Negation der psycho-somatischen Zustandlichkeit. Krankheit ist ein Privations-Phdnomen. In jeder Privation liegt die wesensmessige Zugebdrigheit zu solchem, dem etwas feblt, dem etwas abgebt”. V. Zoltitoner Seminare, 58. 323

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