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GRADA KILOMBA MEMORIAS DA PLANTACAO Episédios de racismo cotidiano ‘Tradugto Jess Oliveira (bogs SUMARIO Agradecimentos 9 Cartada autora i edigdo brasileira 11 INTRODUGAO 27 ‘Tornando-se Sujeito A.AMASCARA 53 Colonialismo, Meméria, Trauma ¢ Descolonizagio 2.QUEM PODEFALAR? 47 Falando ne Centro, Descolonizando © Conbecimento 3. DIZENDO O INDIZIVEL 71 Definindo o Racismo 4-RACISMO GENDERIZADO 90 *(.) oot gostatia de limpar nossa casi?" ~ Conectando “raga e género 5-POLITICAS BSPACIAIS. 111 1, "De onde voc# ver?" ~ Sendo colocda fora da nagio 381 2.“(.) Mas voct nto pode ser alema" - Fantasias coloniais| eisolamento 115, 3,%(.) Querem ouvir uma histérla exstica" ~Voyeurismo € ‘oprazer da Outvidade 118 6. POLETICAS DO CABELO. 121 4."(.) As pessoas costumavam tocar meu cabelo!” ~ Inwadinde 0 corpo negro 122 5. Com licenca, como voet lava seu cabelo?” ~ Fantasias cobre sujeira edomesticagio colonial 128 6"(..) Ene mew cabele natural” ~ Cabelo, mulheres negras fe conaciéncia politica 125, 17."Ble cheivou meu cabelo fez essa associagio... com macacos" ~ Fantasias selvagens brancas, amore: Venus negra 128, AGRADECIMENTOS Agradeco profundamente A Allicia e Kathleen ~ nomes ficticios - que compartilharam suas histérias muito pessoais, memérias, alegrias e injirias ‘comigo na forma de entrevistas, fazendo este livro posstvel. ‘A todos os meus alunos e a todas as minhas alunas, que todas as ‘qartas-feiras me entusiasmaram com suas perguntas, obser- vvagdes e pensamentos brilhantes, bem como com sua dedica- <0 € comprometimento. Alrmingard Stauble, minha primeira mentora, por sua sabedo- ria, gentileza e inspiragao, bem como por seus esforgos incan- séveis para me motivar a escrever e a concluir este livro. A Paul Mecheril, meu segundo mentor, por seu conhecimento, humor e revelacées sagazes. A Katharina Oguntoye, por seu soreiso constante, encorajamen- toe politicas. A Ursula Wachendorfer, por suas ideias emocionantes, sensibi- lidade e discuss6es. A Amy vans, minha querida amiga, que me inspira h4 muito tempo, por seus belos escritos, sua dedicacao e apoio amoroso. ‘A Anne Springer, minha psicanalista, que cuida da minha vida e- mocional, feridas, raiva e decepgées, me dando as ferramentas para usé-las como um recurso para recriar uma existéncia feliz. ‘A Fabio Maia, meu babalorix4, que cuida da minha vida espiri- tual, nutrindo minha alma, meus antepassados e meus Orixis com cuidado, sabedoria ¢ amor. A Oxalé ou Obatalé, meu primeiro Orixé, por me mostrar como usar sua serenidade, paz, clareza e sabedoria como orientagao na minha vida e trabalho. A Yernanjé, minha segunda Orix4, por me mostrar como usar seu amor e sua assertividade como ferramentas criativas. ‘A Oxéssi, meu Orixa Odd, por me mostrar como capturar ‘meus sonhos com determinagio e crenga, como uma cacadora. ‘A Oya, minha Orixa de devosio, por me mostrar como usar sua forca para lutar pela igualdade e pelo respeito, Ea minha familia: met pai que, com muito amor, sempre me dizia para me tornar uma mulher negra independente e digna. E minha mde, que me mostrou o que significa ser essa mulher. A minha avé, V6, meus irmaos, Zé, Pedro e Gongalo, e as mi- thas irmas, Patricia e Julia. EB, claro, a0 pequeno André, a0 pequeno Keziah e ao pequeno Noah. 10 CARTA DA AUTORA A EDIGAO BRASILEIRA Lancei este livro ha precisamente dez anos, em Berlim, onde vivo ainda hoje. Naquela altura, tive a sorte ou 0 destino de ganhar uma das bolsas mais honrosas do governo alemao, para um doutoramento, Isto pouco depois de concluir os meus estudos em Lisboa, onde, ao longo de varios anos, em grande isolamento, foi a tinica estudante negra em todo o departa- mento de psicologia clinica e psicandlise. Nos hospitais onde trabalhei, durante e apés os meus estudos, era.comum ser confundida com a senhora da limpeza, ¢ por vezes os pacien- zes recusavam-se a ser vistos por mim ou a entrar na mesma sala e ficar a s6s comigo. Deixei Lisboa, a cidade onde nasci e cresci, com um imenso alivio. Nao havia nada mais urgente para mim do que sair, para poder aprender uma nova linguagem. Um novo vocabulario, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me. No qual eu pu- desse ser eu. Cheguei a Berlim, onde a dura imperial fascista também deixaram marcas inimagind- veis. B, no entanto, pareceu-me haver uma pequena diferenca: enquanto eu vinha de um lugar de negacdo, ou até mesmo de glorificagéo da historia colonial, estava agora num outro lugar onde a hist6ria provocava culpa, ou até mesmo vergonha. Este pexcurso de consciencializagio coletiva, que comega com ne- ‘gasdo ~ culpa ~ vergonha — reconhecimento — reparacao, nao ¢ de forma alguma um percurso moral, mas um percurso de res- ponsabilizacao. A responsabilidade de criar novas configura- ges de poder e de conhecimento. Essa pequena mas grande diferenga era com certeza a razio pela qual fui encontrar em Berlim uma forte corrente ‘ria colonial alema e a dita- n de intelectuais negras que haviam transformado radicalmente © pensamento e 0 vocabulério contemporaneo global, durante varias décadas. Esta era a cidade onde Audre Lorde vivera durante os seus tiltimos anos; onde Angela Davis aparecia em Publico regularmente; e onde May Ayim escrevera seus livros epoemas, sem esquecer W.E.B. du Bois, que estudou e ensinow ‘em Berlim, nos anos de 1890. E assim comecei o meu douto- ramento, rodeada de espiritos benévolos e transformadores, que deixaram uma riqueza linguistica e uma marca intelectual negra, que eu consumia entusiasticamente. Escrevi este livro em inglés, dia e noite, enquanto vivia sozinha em Berlim, absorvida em livros que nunca tinha visto ou lido antes, acompanhada por uma série de grupos orga- nizados de mulheres negras, ferninistas e LGBTTQIA+ que re- velavam uma politizagao absohitamente admiravel. Parece- me que nunca aprendi tanto em t4o pouco tempo. Foi nessa altura que passei a dar aulas em duas universidades simulta: neamente, na Universidade. Humboldt e na Universidade Li- vre, com 05 meus primeiros semindrios dedicados as obras de bell hooks e Frantz Fanon ~ uma trajet6ria que me parecia. impensével, tanto em Lisboa como em Sio Paulo, Luanda ou Salvador da Bahia, para uma jovern mulher negra, que sempre viveu no anonimato. Plantation Memories é precisamente o meu doutoramen- to. Terminei-o com a mais alta (¢ rara) distingdo académica, a summa cuntlaude. B escrevo isto nao necessariamente por vaidade, mas muito mais para lembrar da importancia de um percurso de consciencializagao coletiva - pois uma sociedade que vive na negacdo, ou até mesmo na glorificagao da historia 2 colonial, ndo permite que novas linguagens sejam criadas. Nem permite que seja a responsabilizacao, e nio a moral, a criar novas configuracées de poder € de conhecimento. S6 quando se reconfiguram as estruturas de poder & que as mui- tas identidades marginalizadas podem também, finalmente, reconfigurar a no¢ao de conhecimento: Quem sabe? Quem pode saber? Saber o qué? E saber de quem? Para mim, co- mo disse, no havia nada mais urgente do que sait, para poder aprender uma nova lingiagem. Um novo vocabula- rio, no qual eu pudesse finalmente encontrar-me. No qual eu pudesse ser eu. E foi neste livro que encontrei a minha pri- meira ¢ nova linguagem. O livro foi lancado no Festival Internacional de Literatura, em Berlim, no final de 2008, e a partir dai comecou um itine- rario de varios anos que eu nunca imaginaria: Londres, Oslo, Viena, Amsterdam, Bruxelas, Roma ¢ Estocolmo, pasando por Acra, Lagos, Joanesburgo, Sao Paulo e Salvador, entre muitas outras cidades. Foram precisos dex anos para chegar a Por- tugal e 20 Brasil (onde € publicado simultaneamente) ¢ & sua traducio na lingua portuguesa. Foi um caminho longo. B, no entanto, eu sei que ndo poderia ter chegado antes ~ nem este nem tantos outros livros -, pois os comuns gloriosos e roman- ticos discursos do passado colonial, com os seus fortes acentos patriarcais, nao o permitiram. Mas chega bem a tempo. Este livro € muito pessoal: escrevi-o para entender quem eu sou. E sinto-me profundamente feliz, grata, confesso até extasiada, quando penso nas tantas pessoas que finalmente 0 podem ler, numa lingua (¢ linguagem) na qual se podem tam- bém entender e encontrar. 8 Escrevo esta Introducio, inexistente na versio original inglesa, précisamente por causa da lingua: por um lado, por- que me parece obrigatério esclarecer o significado de uma série de terminologias que, quando escritas em portugués, revelam uma profunda falta de reflex3o e teorizagio da t6ria e heranga coloniais e patriarcais, tao presentes na lingua portuguesa; por outro lado, porque tenho de dizer que esta traducéo é maravilhosamente elaborada, pois traduz um livro inteiro apesar da auséncia de termos que noutras linguas, como a inglesa ou alemé, j4 foram criticamiente desmontados ou mesmo reinventados num novo vocabulirio, mas que na lingua portuguesa continuam ancorados a um discurso colo- nial e patriarcal, tornando-se extremamente probleméticos, Assim, as notas de rodapé que comecei por escrever para a versio portuguesa, por revelarem o meu posicionamento como autora e por ajudarem a leitura e & reflexio da prépria lingua portuguesa, acabaram por ser introduzidas no préprio texto ~ e explicadas no glossario que se segue, por ordem cro- nologica de ocorréncia. Nao posso deixar de escrever um ultimo parégrafo, para lembrar que a lingua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensio politica de criar, fixar e perpetuar relagdes de poder e de violéncia, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através das suas terminologias, a lingua informa-nos constantemente de quem 6 normal e dequem é que pode representar a verdadeira condi- (40 humana. ry sujeito No original inglés, o termo subject nao tem género. No entan- to, a sua traducdo corrente em portugués é reduzida ao gene- x0 masculino ~ 0 sujeito -, sem permitir variagdes no género ferninino ~ a sujeita ~ ou nos varios géneros LGBTTQIAt ~ xs sujeitxs ~, que seriam identificadzs como erros ortogréficos. B importante compreender o que significa uma identidade nao cexistir na sua propria lingua, escrita ou falada, ou ser identi- ficada como um erro. Isto revela a problemética das relagées de poder e violencia na lingua portuguesa, e a urgéncia de se encontrarem novas terminologias. Por esta 1az0, opto por es- crever este termo em italico: sujeito, objeto Object, assim como subject, é um termo que nao tem génerona lingua inglesa. No entanto, a sua tradugao corrente em portu- .gués é também reduzida ao géneto masculino ~ 0 objeto ~, sem. permitir variacdes no género feminino — a objecta ~ ou nos varios géneros LOBTTQIA+ ~ xs objetxs -, expondo, mais uma vez, a problematica das relacbes de poder e violéncia na lingua portuguesa; e a urgéncia de se encontrarem novas terminolo- gias. Além disso, parece-me importante lembrar que o termo object vem do discurso pés-colonial, sendo também usado nos discursos feministas e queer para expor a objetificacao dessas identidades numa rela¢ao de poder. Isto é, identidades que sio retiradas da sua subjetividade e reduzidas a uma existéncia de a objeto, que é descrito e representado pelo dominante. Reduzir 0 termo a sua forma masculina revela uma dupla dimensio de poder e violéncia. Por ambas as razées, opto por escrever este termo em itdlico: objeto “Outra/o” Other & um termo neutro em inglés, ausente de génexo. A sua traducao em portugues permite variar entre dois géneros ~ 4@/o outra/o, Brnbora seja parcialmente satisfat6rio, pois inclui © género feminino e pée-no em primeizo lugar, nao deixa de © reduzir a dicotomia feminino/masculino, menina/menino, no permitindo estendé-lo a varios géneros LGBTTQIAY ~ xs Outrxs -, expondo, mais uma vez, a problemética das relagdes de poder e a violencia na lingua portuguesa. Por estas razbes, opto por escrever o termo em itélico e entre aspas: “Outra/o” ; negra/o Black, em inglés, é um termo que deriva do movimento de cons- ciencializagdo, para se distanciar radicalmente das terminologias coloniais correntes até os anos 1960, como the Negro ou N-word. Comumente,"este termo ¢ escrito com um B maiisculo, Black, para sublinhar o fato de que ndo se trata de uma cor, mas de uma identidade politica. A letra maitiscula também tem uma segunda fancio, ade revelar que este nao 6um termo atribuido por outros 16 ‘em poder, mas um termo de autodefinicéo, com uma historia de resisténcia e de luta pela igualdade, afastando-se assim dupla- mente da nomendatura colonial. Este trabalho de desconstrugio linguistica foi também fei- tonalinguaalemaem imiimeras publicacoes desde os anos 3980, em que N. é abreviado, a fim de ndo reproduzir uma lingua- gem colonial, e Schwarz (Black, em inglés) é escrito com letra maitscula para revelar o seu estatuto de autodefinicéo. Em portugues, no entanto, deparamos com um imenso dilema tebrico, pois o termo Black 6 traduzido para negra/o, e embora este seja usado como um termo politico na lingua portuguesa, esté invariavelmente ancorado na terminologia colonial ¢, por isso, intimamente ligado a uma histéria de violéncia desumanizagio, Como poderio ler no Capitulo 9, este termo deriva da palavra latina para a cor preta, niger. Mas, logo apés o inicio da expansdo maritima (na lingua portuguesa ainda vulgarmente chamada de “Descobrimentos" - ora, no se descobre um con- tinente onde vivem milhdes de pessoas), a palavra passou a ser um termo usado nas relagées de poder entre a Europa e a Africa e aplicada aos Africanos para definir o seu lugar de subordinaglo e inferioridade. Fm portugués, no entanto, essa diferenciagio parece nAo ter sido feita, pois, embora esteja intimamente ligado a hist6ria colonial, negra/o tem sido usado como 0 tinico termo “correto”, Para problematizar esse termo de origem colonial, opto por escrevé-lo em itélico e em letra mintiscula: negra/o. ” P. Por outro lado, em inglés ¢ alemio usam-se as abreviaturas Neword e N., respectivamente, a fir de nao se reproduzir a violencia e 0 trauma que a palavra implica. Esse termo 6 tra- duzido para a lingua portuguesa por p. (preta/e), que ¢ histo- ricamente o mais comum e violento termo de insulto dirigido a uma pessoa. Tragicamente, na lingua portuguesa, o termo p. 6 usado axbitrariamente no dia a dia: ora como insulto direto, ora como forma indireta de inferiorizasao e objetificacto ~ as/ 9sp. Mas o termo, mais do que isso, esta intimamente ligado & histéria das politicas de insulto e ao racismo diério na lingua Portuguesa. Por essas razdes, para me afastar dessa termino- logia racista, assim como para nao reproduzir a imensa vio- Tencia e o trauma que o termo envolve, opto por escrevé-lo em italico, abreviado e em letra miniscula: p. No texto a utilizacio das abreviaturas N. e M. em letra maitiscula deliberada sempre que se trata de citar as mulhe- res entrevistadas e de analisar as entrevistas, pois trata-se de um trabalho de desmontagem da lingua colonial, que ao mes- mo tempo representa resisténcia. A abreviatura p. é utilizada quando cito textos de outros autores. m. (mestiga/o), m. (mulata/o), c. (cabrita/o) Na lingua portuguesa, nos deparamos quase com a auséncia de um termo que nao esteja nem ancorado & tetminologia colo- nial (negra/o) nem a linguagem racista comum (p.) ou a uma 6 nomenclatura animal. Quanto a esta, confrontamo-nos com ‘uma longa lista de termos, frequentemente usados ainda hoje na lingua portuguesa, que tém afungéo de afirmar a inferior dade de uma identidade através da condi¢ao animal. Sao ter- mos que foram criados durante os projetos europeus de escra- vatura e colonizacéo, intimamente ligados as suas politicas de controle da reprodugio e proibigdo do “cruzamento de racas”, reduzindo as “novas identidades" a uma nomenclatura ani- mal, isto é, a condigao de animal irracional, impuro. Estes termos de nomenclatura animal foram altamente romantizados durante o periodo de colonizacéo, em particular na lingua portuguesa, onde séo ainda usados com um certo orgulho, Esta romantizacdo ¢ uma forma comum da narrativa colonial, que transforma as relaySes de poder e abuso sexual, muttas vezes praticadas contra a mulher negra, em gloriosas conquistas sexuais, que resultam num novo corpo exético, ¢ ainda mais desejével. Além disso, esses termos criam uma hierarquizacao dentro da negritude, que serve A construcéo da branquitude como a condigao humana ideal ~ acima dos seres animalizados, impuras formas da humanidade. Os ter- mos mais comuns so: m. (mestiga/o), palavra que tem sua origem na reproducéo canina, para definit o cruzamento de duas ragas diferentes, que da origem a uma cadela ou um céo rafeira/o, isto 6, um animal considerado impuro e inferior; m, (mulata/o), palavra originalmente usada para definir 0 cruza- ‘mento entre um cavalo e uma muila, isto é, entre duas espé- cies animais diferentes, que da origem a um terceiro animal, considerado impuro ¢ inferior; c. (cabrita/o), palavra comu- mente usada para definir as pessoas de pele mais clara, quase Fry Préximas da branquicude, sublinhando porém a sua negritude, e definindo-as como animais. que é particular a toda essa terminologia 6 o fato de estar ancorada num histérico colonial de atribuiggo de uma identidade a condigéo animal, Por essas raz6es, opto por escre- véla em itdlico e abreviada: m.,m.¢. escravizada/o Na minha escrita, uso 0 termo “escravizada/o”, e no escra- va/o, porque “escravizada/o” descreve um processo politico ativo de desumanizacio, enquanto escrava/o descreve o esta- do de desumanizacao como a identidade natural das pessoas que foram escravizadas. No entanto, o termo aparece por vezes de forma figurativa; nesses casos, opto por escrevé-lo em italico: escrava/o subalterna O termo inglés subaltern nao tem género. No entanto, 0 titulo do importante trabalho de Gayatri C. Spivak, Can the Subal- tern Speak?, € comumente traduzido na lingua portuguesa para Pode 0 subalterno falar?, adotando o género masculino. ‘Tendo em conta que Spivak é uma mulher, teérica, filosofa e critica de género da India que tem feito uma das contribuiges mais importantes para o pensamento global, revolucionado os movimentos feministas com a sua escrita. A redugio do sew 2 ‘mais importante termo, Subaltern, ao género masculino na lin- gua portuguesa é duplamente problematica. Por isso, opto por escrever 0 termo na sua forma feminina: subalterna. Parece-me que nao ha nada mais urgente do que comecarmos a criar uma nova Iinguagem. Um vocabulério no qual nos pos- samos todas/xs/os encontrar, na condi¢ao humana. Com um abrago, GRADA KiLOMBA Berl, 23 de janeiro de 2039 a Para Kiluanji, Kianda © Moses. INTRODUGAO TORNANDO-SE SUJEITO Por que escrovo? Porque eu tenho de Porque minha voz, em todos seus daletos, tem sido calada por muito tempo acon Sane-La Ross* Este € um dos meus poemas favoritos. Bu o li mais de mil vvezes, de novo e de novo. E cada vez que o leio, parece que toda minha histéria esta resumida nele. Esses cinco versos curtos evocam de modo bastante habilidoso uma longa hist6 tia de silencio imposto. Uma histSria de vozes torturadas, lin- guas rompidas, idiomas impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que nao podiamos entrar, tampouco permane- cer para falar com nossas vozes. Tudo isso parece estar escrito 14, Ao mesmo tempo, este nfo é ayenas um poema sobre a per da continua causada pelo colonizlismo. E também um poema sobre resisténcia, sobre uma fome coletiva de ganhar a vo2, escrever e recuperar nossa histéria escondida. & por isso que gosto tanto dele. A ideia de que se tem de escrever, quase como uma obri- gacio moral, incorpora a crenga de que a historia pode “ser interrompida, apropriada e transformada através da pritica artistica e literdria” (hooks, 1990, p. 152). Escrever este livro foi, de fato, uma forma de trans‘ormar, pois aqui eu nao sou “Outra’, mas sim eu propria, Nio sou o objeto, mas o sujeito. 1. Jacob Sam-La Rose, Poetry, Sable: the Literature Magazine for Writes, Winter 2002, p. 60. 2 Bu sou quem descreve minha propria histéria, e nao quem é descrita. Escrever, portanto, emerge como um ato politico. 0 oema ilustra 0 ato da escrita como um ato de tornar-se? e, enquanto escrevo, eu me torno a narradora e a escritora da minha prépria realidade, a autora e a autoridade na minha prépria historia. Nesse sentido, eu me torno a oposicéo abso- lata do que 0 projeto colonial predeterminou. bell hooks usa estes dois conceitos de “sujeito” e “objeto” argumentando que sujeitos sao aqueles que “tém o direito de definir suas préprias realidades, estabelecer suas prépriasiden- tidades, de nomear suas histérias” (hooks, 1989, p. 42). Como objetos, no entanto, nossa realidade definida por outros, nostas identidades so criadas por outros, e nossa “histéria designada somente de maneiras que definem (nossa) relagio com aqueles que sdo sujeitos.” (hooks, 1989, p. 4a). Essa pas- sagem de objeto a sujeito € o que marca a escrita como um ato politico, Além disso, escrever é um ato de descolonizacio no qual quem escreve se opde a posicées coloniais tornando-se a/o escritora/escritor “validada/o” e “legitimada/o e, ao rein- ventar a si mesma/o, nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada. Este livro representa esse desejo duplo: o de se opor aquele lugar de “Outridade” e ode inventar a nés mesmos de (modo) novo. Oposi¢io e rei vencao tornam-se entéo dois processos complementares, pois 8 oposicao por si s6 ndo basta. Nao se pode simplesmente se por ao racismo, jé que no espago vazio, apés alguém ter se 2.0 conceito de “tornar-se" tem sido usado pelos Bstudos Culturas se-Coloniais pata elaborar a relao entre eu e afo“Outra/ Pa oposto e resistido, “ainda hé a necessidade de tornar-se ~ de fazer-se (de) novo”. (hooks, a99c, p. 15) Em outras palavras, ainda ha a necessidade de tornar-mo-nos sujeitos, Este livro pode ser entendido como uma forma de “tor~ nar-me sujeito” porque nesses escritos procuro exprimir a rea- lidade psicolégica do racismo cotidiano como me foi dito por mulheres negras, baseada em nossos relatos subjetivos, auto- percepsSes narrativas biogrificas ~ na forma de epis6dios. Aqui, nés estamos falando “em nosso proprio nome” (Hall, 1990, p. 222) e sobre nossa propria realidade, a partir de nossa perspectiva que tem, como no iiltimo verso do poema, sido calada por muito tempo. Esse verso descreve como o processo de escrever é tanto uma questac relativa ao passado quanto a0 presente, e por isso que comego este livro lembrando do passado a fim de entender o presente, e crio umn didlogo cons- tante entre ambos, jé que o racismo cotidiano incorpora uma, cronologia que é atemporal. Meméras da Plantagdo® examina a atemporalidade do racismo cotidiano. A combinago dessas duas palavras, “plan- tagdo” e “memérias", descreve o racismo cotidiano nao apenas como a reencenacio de um passado colonial, mas também como uma realidade traumatica, que tem sido negligenciada, Neda TA Plantaon, plantagio en portaguts, fmm srtema de Eeploracto colonial utizae entre os atctlos XV e IE, pinipalmente ts eclniecuropeias nas Américas que consis em qua ect {tics prindpas grandes linden, monocstia, tabalho eet dado e eaprtari paras measpele Base sista cava inde ia tetra soil de dorinaicontada naga do proprieti l- Tinie enon, qu concur tudo oda/oe ao seu er ey Euum choque violento que de repente coloca o sujeito negro em uma cena colonial na qual, como no cenério de uma plantacao, ele & aprisionado como a/o “Outra/o” subordinado e exstico. De repente, o passado vem a coincidir com o presente, e o pre- sente é vivenciado como se o sujeito negro estivesse naquele passado agonizante, como o titulo do livro anuncia. © Capitulo 3, A Mascara: Colonialismo, Meméria, Trauma ¢ Descolonizagdo, comeca com a descriséo de um instrumento colonial, a mascara, como um simbolo das politicas coloniais e de medidas brancas sadicas para silenciar a voz do sujeito negro durante 2 escravizagdo: Por que a boca do sujeito negro deve ser amarrada? E 0 que 0 sujefto branco teria de ouvir? Esse capitulo aborda nao apenas questées relacionadas 4 mem6- ria, ao trauma e fala, mas também a construsao da negritude como “Outra’, Capitulo 2, Quem Pode Falar?: Falando no Centro, Desco- Ionizando o Conhectmento, discute questées similares no con- texto académico ou de erudicéo, em geral: Quém pode falar? Quem pode produzir conhecimento? E o comhecimento de quem é reconhecido como tal? Neste capitulo, examino o colo- nialismo na academia ea descolonizacao do conhecimento. Em. outras palavras, estou preocupada aqui com a autoridade racial # com a producto de conhecimento: © que acontece quan- do nés falamos no centro? Capitulo 3, Dizendo o Indizivel: Definindo o Racismo. Co- mo se deveria falar sobre o que tem sido silenciado? Aqui, comeso analisando 0 déficit teérico acerca do racismo ¢ do racismo cotidiano ¢ examino 0 que para mim é a metodolo- gia adequada para falar sobre a realidade experienciada do va- 2 cismo cotidiano de acordo com relatos de duas mulheres da Diaspora Africana: Alicia, uma mulher afto-alema, e Kathleen, uma mulher afro-estadunidense que vive na Alemanha. Am- bas narram suas experiéncias de racismo cotidiano a partir de suas biografias pessoas © Capitulo 4, Racismo Genderizado: “..) Voce Gostaria de Limpar Nossa Casa?” ~ Conectando "Raga" e Género, € uma abordagem genderizada do racismo. Aqui, examino a interse- ‘gio entre “raca” e género, bem como o fracasso do feminismo ocidental de se aproximar da realidade de mulheres negras no tocante ao racismo genderizado. Ademais, apresento os obje- tivos do feminismo negro. Os capitulos seguintes conscituem verdadeiro centro deste trabalho. Aqui, as entrevistas com Alicia e Kathleen séo analisadas em detalhe no forma de episédios e divididas nos seguintes capitulos: Capitulo 5: Poiticas Espaciais; Capitulo 6: Politicas do Cabelo; Capitulo 7: Politicas Sexuais; Capitulo 8: Polt- ticas da Pele; Capitulo 9: A palavre N. ¢ 0 Trauma; Capitulo 20! Segregacéo e Contdgio Racial; Capitulo 1: Performando Negri- tude; capitulo 12: Suicidio; Capitulo 13: Cura e Transformacéo, O livro condlui com o Capitulo 14, Descolonizando o Eu, no qual reviso e teorizo os t6picos mais importantes que vieram & tona neste livro, e também como possiveis estratégias de des- colonizagio. a 4, AMASCARA ‘COLONIALISMO, MEMORIA, TRAUMA E DESCOLONIZAGAO Hé uma méscara da qual eu ouvi falar muitas vezes durante minha infincia. A mascara que Anastacia era obrigada a usat. 3s varios relatos e descrigées minuciosas pareciam me advertir que aqueles nao eram meramente fatos do passado, mas memé- rias vivas enterradas em nossa psique, prontas para serem con- tadas. Hoje quero reconté-las. Quero falar sobre a mascara do silenciamento, Tal mascara foi uma peca muito concreta, um ins- trumento real que se tornou parte do projeto colonial europeu por mais de trezentos anos. Ela era composta por um pedaco de metal colocado no interior da boca do sujeito negro, instalado entre a lingua eo maxilar e fixado por detrés da cabeca por duas cordas, uma em torno do queixo e zoutra em torno donariz eda testa, Oficialmente, a mascara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas/os escravizadas/os comessem cana- -de-agiicar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantagdes, mas sua principal fungio era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tor- ‘ura, Neste sentido, a mAscara representa o colonialismo como ‘um todo. Ela simboliza politicas sédicas de conquista e domina- sAo e seus regimes brutais de silenciamento das/os chamadas/ 0s “Outras/es”: Quem pode falar? O que acontece quando fala- mos? E sobre 0 que poderos falar? ABoca ‘A boca é um 6rgio muito especial. Bla simboliza a fala a enuncia¢ao. No ambito do racismo, a boca se torna 0 érgao da opressio por exceléncia, representando 0 que as/ 33 08 brancas/os querem ~ e precisam ~ controlar e, conse- quentemente o érgio que, historicamente, tem sido severa- mente censurado, Nesse cendrio especifico, a boca também é uma metéfora para a posse, Pantasia-se que o sujeito negro quer possuir algo que pertence ao senhor branco: 0s frutos, a cana-de-agticar e os grdos de cacau. Ela ou ele querem comé-los, devoré-los, desa- propriando assim 0 senhor de seus bens. Embora a plantacio e seus frutos, de fato, pertencam “moralmente” 2/20 coloniza- da/o, o colonizador interpreta esse fato perversamente, inver- tendo-o numa narrativa que lé tal fato como roubo. “Estamos levando 0 que é Delas/es” torna-se “Elas/es estio tomando © que é Nosso.” Estamos lidando aqui com um proceso de negaséo, no qual o senhor nega seu projeto de colonizacio ¢ ‘0 impée a/ao colonizada/o. E justamente esse momento ~ no qual o sujeito afirma algo sobre a/o “Outra/o” que se recusa a reconhecer em si proprio - que caracteriza 0 mecanismo de defesa do ego. No racismo, a negarao € usada para manter e legitimar estruturas violentas de exclusao racial: “Elas/es querem tomar © que 6 Nosso, por isso Elas/es tém de ser controladas/os.” A informagao original e elementar ~ “Estamos tomando o que 6 Delas/es” ~ é negada e projetada sobre a/o “Outra/o” ~“elas/ eles estio tomando o que é Nosso” -, 0 sujeito negro torna-se entao aquilo a que 0 sujeito branco néo quer ser relacionado. Enquanto o'sujeito negro se transforma em inimigo intrusivo, © branco tora-se a vitima compassiva, ou seja, o opressor tor- na-se oprimido e 0 oprimido, o tirano, Esse fato é baseado em Processos nos quais partes cindidas da psique so projetadas Ey seme t t Retrato da “Becrave Anastécia"* 4 Bsta imagem penetrante vai de encontro a/a0 espectadora/especta dor transmitindo oe horrores da escravidso sofridos pelas geragées de africanas/os escravizadas/os. Sem histérla ofical, alguns dizem que ‘Anastacia era filha de uma familia real Kimbundo, nascida em Angola, sequestrada e levada para a Bahia ¢ excravizada por uma familia por- ‘tuguesa, Apés o retorno dessa familia para Portugal, ela teria sido ven- ida a um dono de uma plantagio de canae-aciicar. Outros alegam que ela teria sido uma princesa Nagé/Yorubé antes de ter sido captu rada por europeus traficantes de pessoas e trazida a0 Brasil na condi lo de escravizada. Enquanto outros ainda contam gue a Bahia foi seu local de nascimento. Seu nome africano ¢ desconhecido. Anastacia fo! 35 para fora, criando 0 chamado “Outro", sempre como anta- gonista do “eu” (self). Essa cisdo evoca 0 fato de que o sujeito branco de alguma forma esta dividido dentro de si proprio, pois desenvolve duas atitudes em relacio a realidade externa: somente uma parte do ego ~ a parte “boa”, acolhedora e bene- volente ~ ¢ vista e vivenciada como “eu” eo resto ~a parte “ma”, © nome dado a dla durante a excavizart, Segundo todos ot relatos, ‘ta foi orga auar um car de ferro mutt pando alm da nscora facial quea peda de fla. As vazbesdadas para ease castigo varia alguns relatam seu aivieme politico no auxio em fogas de “outay/ os escravzada/ox, outros dom que ela hava renee he inveatiaa sexuale do “enor” branco,Outa verso ainda transfer a elpa para Odie de uma sin que teria a blesa de Anastiia. Dicom trnbere ave ela posulapodetes de cua imensoee que chego a realer mia: ies, Anastacia oa vista como santa etre eacravzadan/os aftcanae/ oo. Apés um long period desofrimento, la more dettanoextsado pelo colar de ferro ao redo de seu pescoo,O retrato de Anas fo feito por um francs de 27 anos chamadl Jacques Arago, que fej tou a uma “expedigio cinta” pelo Basil como devenhita, eat dezembro de 117 ¢ Janeiro de 1836, Ha outwos deeahos de miscaree cobrindo toro iniiro de escravizaas/os, somente com dls Lars para os oho; estas eram usedas para proven 9 ato de cmer tava tia prica entre escravizadas/osafrcananos para comer sida Na segunda metade do séulo XX a figura de Anastacia comepo a se tomar simbolo da brutalidade da escravidao ¢ seu continue leg do racimo. Hl se tomou uina figura plitca «vligion importante om, tomo do mundo afrcano e alrodaspéric,representand a relster, cla historia destespoves. A primeira vencragha de larga esa fol era 1967, quand o cuaor do Museu do Negro do Rio de Janet erigh una exposiqo para honrar o 8 aniveraie da abolgio da estavon, 40 no Brasil. Anastacia também é comumente vista como uma santa dos Protos Velho, dretamente relaconada a0 Ori Ona ou Obata “itt da pas, da sernidade eda sabedovia~e &objeto de devorso 0 Candomblé ona Umbanda ander Hayes 2003) 36 rejeitada e malévola - 6 projetada sobre a/o “Outra/o” como algo externo, O sujeito negro tona-se entao tela de projecio daquilo que o sujeito branco teme reconhecer sobre si mesmo, neste caso: a ladra ow o ladrao violenta/o, a/o bandida/o indo- Jente e maliciosa/o. Tais aspectos desonrosos, cuja intensidade causa extrema ansiedade, culpa e vergonha, sao projetados para co exterior como um meio de escapar dos mesmos. Em termos psicanaliticos, isso permite que os sentimen- tos positives em rela¢ao a si mesma/o permanegam intactos ~ branquitude como a parte “boa” do ego - enquanto as mani- festagées da parte “ma” sho projetadas para o exterior e vistas como objetos externos e “ruins”, No mundo conceitual branco, 0 sujeito negro é identificado como o objeto “ruim’, incorporando os aspectos que a sociedade branca tem reprimido e trans- formando em tabu, isto 6, agressividade e sexualidade. Por conseguinte, acabamos por coincidir com a ameaca, 0 perigo, © violento, 0 excitante e também o sujo, mas desejavel - per- mitindo a branquitude olhar para si como moralmente ideal, decente, civilizada e majestosamente generosa, em controle total e livre da inguietude que sua histéria causa AFerida’ Dentro dessa infeliz dinamica, 0 sujito negro tomna-se nao ape- nas a/o “Outra/o” ~ 0 diferente, em relagZo a0 qual o “eu” da 5.0 termo ferida é devivado do grego “trauma” (Laplanche e Pontalis, 1988), e este é 0 sentido que eu use aqui “ferida come trauma’ pessoa branca é medido -, mas também “Outridade” ~ a per- sonificacao de aspectos repressores do “eu” do sujeito branco. Em outras palavras, nés nos tornamos a representacio mental daquilo com 0 que o sujeito branco nao quer se parecer. Toni Morrison (2992) usa a expresso “dessemelhanga",’ para des- crever a “branquitude” como uma identidade dependente, que existe através da exploragao da/o “Outra/o”, uma identidade relacional construida por brancas/os, que define a elas/es mes- mas/os como racialmente diferentes das/os “Outras/os”. Isto 6, a negritude serve como forma primaria de Outridade, pela qual a branquitude é construida. A/O “Outra/o” nao é “outra/o” per se; ela/ele torna-se através de um processo de absoluta ne- gardo. Nesse sentido, Frantz Fanon (1967, p. 110) escreve: “O que é frequentemente chamado de alma negra é uma constru- 40 do homem branco.” Essa frase nos relembra que nao é com o sujetto negro que estamos lidando, mas com as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser. Fantasias que nio nds representam, mas, sim, 0 imaginavio Branco. Tais fantasias s40 os aspec- tos negados do eu branco reprojetados em nés, como se fos- sem retratos autoritarios e objetivos de nés mesmas/os. Elas nao sio, portanto, de nosso interesse. “Eu ndo posso ir a0 cinema”, escreve Fanon, “Eu espero por mim" (1967, p. 140). Ele espera pela/o negra/o selvagem, pela/o negra/o barbara/o, Por servigais negras/es, por negras prostitutas, putas e corte- 385, por negras/os criminosas/os, assassinas/os e traficantes. Ele espera por aquilo que ele nao 6, Poderiamos dizer que no 6.N. da. A expressio usada pela escritora Toni Morrison & “unlikenos" ae mundo conceitual branco é como se o inconsciente coletivo das pessoas negras fosse pré-programado para a alienacio, decep- do e trauma psiquico, uma vez que as imagens da negritude as quais somos confrontadas/os nao so nada realistas, tam- pouco gratificantes. Que alienagao, ser-se forcada/o a identi- ficar-se com os herdis, que aparecem como brancos, ¢ rejeitar 0s inimigos, que aparecem como negros. Que decepcao, ser-se forcada/o a olhar para nés mesmas/os como se estivéssemos no lugar delas/es. Que dor, estar presa/o nessa ordem colonial Esea deveria ser nossa preocupagao. Nao deveriamos nos preo- cupar com o sujeito branco no colonialismo, mas sim com 0 fato de o sujeito negro ser sempre forcado a desenvolver uma rela~ ¢4o consigo mesma/o através da presenga alienante do “outro” branco (Hall, 1996). Sempre colocado como “Outra/o", nunca como “Bu’, “O que mais isso poderia ser para mim”, pergunta Fanon (1967, p. 122), “seno uma amputagdo, uma excis4o, uma hemorragia que respinga meu corpo inteiro com sangue negro?” Fanon utiliza a linguagem do trauma, como a maioria das pessoas negras o faz quando ‘ala sobre experiéncias coti- dianas de racismo, indicando 0 doloroso impacto corporal e a perda caracteristica de um colapso traumatico, pois no racismo © individuo é cirurgicamente retirado e violentamente sepa- rado de qualquer identidade que ela/ele possa realmente ter. Tal separacto é definida como um trauma cléssico, uma vez que priva o individuo de sua propria conexao com a sociedade inconscientemente pensada como branca, “Bu sentia laminas de facas me abrindo de dentro para fora... Eu nao conseguia mais rir’, observa Fanon (2967, p. 112). De fato, nao ha nada para se rir a respeito: enquanto alguém é sobredeterminada/o 38 Por algo exterior, pelas fantasias violentas que aquela/e vé, ‘mas que no reconhece sendo dela/e prépria/o. Esse é 0 trauma do sujeito negro; ele jaz exatamente nesse estado de absoluta "Outridade” na relacio com o sujeito branco. Um circulo infernal: “Quando pessoas gostam de mim, dizem ue é apesar da minha cor. Quando nao gostam de mim, apon- tam que ndo é por causa da minha cor.” Fanon (2967, p. 116) escreve: “Em ambas situagdes, ndo tenho safda.” Preso no absurdo. Parece, portanto, que o trauma de pessoas negras provém nao apenas de eventos de base familiar, como a psi- canélise argumenta, mas sim do traumatizante contato com a violenta barbaridade do mundo branco, que ¢ a irracionali- dade do racismo que nos coloca sempre como a/o “Outra/o", como diferente, como incompativel, como conflitante, como estranha/o e incomum. Essa realidade irracional do racismo 6 descrita por Frantz Fanon (1967, p. 118) como traumstica. Eu ful odiado, desprezado, detestado, néo pela vizinha do outro lado da rua ou pelo meu primo por parte de me, mas por uma raga inteira. Bu competi contra algo ieracional. Os psicanalis- tas dizem que nada ¢ mais traumatizante para a crianga do que e55e5 encontros com o que é racional, Eu ditia, pessoalmente, que para um homem cuja arma € a razio, ndo hé nada mais neurético do que o contato com o irracional. E continuas“Bu racionalizei o mundo ¢ o mundo me rejeitou sob a base do preconceito de cor (...) Coube ao homem branco ser mais irracional do que eu” (Fanon, 1967, p. 123). Aparente- mente, airracionalidade do racismo é 0 trauma, 0 Falando do Siléncio A mAscara, portanto, levanta muitas questdes: por que deve a boca do sujeito negro ser amarrada? Por que ela ou ele tem de ficar calada/o? © que poderia o sujeito negro dizer se ela ou le nio tivesse sua boca tapada? E 0 que o sujeito branco teria de ouvir? Existe um medo apreensivo de que, se o sujeito colo- nial falar, a/o colonizadora/or teré de ouvir, Seria forcada/o a entrar em uma confrontagao desconfortavel com as verdades da/o “Outra/o". Verdades que tém sido negadas, reprimidas, mantidas e guardadas como segredos. Bu gosto muito deste dito “mantido em siléncio como segredo".” Essa é uma expres- G0 oriunda da didspora africana e anuncia o momento em. que alguém esté prestes a revelar 0 que se presume ser um segredo. Segredos como a escravizacao. Segredos como 0 colo- nialismo. Segredos como o racismo. © medo branco de ouvir 0 que poderia ser revelado pelo sujeito negro pode ser articulado com a no¢io de repressao de Sigmund Freud, uma vez que a “esséncia da represséo", segundo o mesmo: “Encontra-se simplesmente em afastar-se de algo e manté-lo a distancia do consciente” (Freud, 1923, p. 17). Esse € 0 processo pelo qual ideias - e verdades ~ desagra- daveis se tornam inconscientes, vao para fora da consciéncia devido & extrema ansiedade, culpa ou vergonha que causam. Contudo, enquanto enterradas no inconsciente como segre- dos, permanecem latentes e capazes de ser reveladas a qual- quer momento. A mascara vedendo a boca do sujeito negro 7.N, da Em inglés: “quiet as its hep’ a impede-a/o de revelar tais verdades, das quais o senhor branco quer “se desviar", “manter a distancia” nas margens, invisi- veis e “quietas’, Por assim dizer, esse método protege o sujeito >branco de reconhecer 0 conhecimento da/o “Outra/o". Uma vez confrontado com verdades desconfortaveis dessa hist6- ria muito suja,* © sujeito branco comumente argumenta “nio saber..”, “nao entender ...”, “no se lembrar..”, “nao acredi- tar..” ou “ndo estar convencido...”. Essas séo expressdes desse Processo de repressio, no qual o sujeito resiste tornando cons- ciente a informario inconsciente, ou seja, alguém quer fazer (e manter) 0 conhecido desconhecido. A repressio 6, nesse sentido, a defesa pela qual o ego controla e exerce censura em relagdo ao que é instigado como uma verdade “desagradavel’, Falar torna-se, assim, virtualmente impossivel, pois, quando falamos, nosso discurso é frequentemente interpretado como uma verséo diibia da realidade, nao imperativa o suficiente ara ser dita nem tampouco ouvida, Tal impossibilidade ilus- tra como o falar e o silenciar emergem como un projeto ané- ogo. O ato de falar é como uma negocia¢ao entre quem fala © quem escuta, isto é, entre falantes e suas/seus interlocuto- ras/es (Castro Varela e Dhawan, 2003). Ouvir é, nesse sentido, © ato de autorizacio em direcdo a/ao falante. Alguém pode falar (somente) quando sua voz é ouvida. Nessa dialética, aquelas/es que so ouvidas/os sto também aquelas/es que 8. Em inglas: “dirty history’, frase frequentemente usada pela esctito- va Toni Morrison para descrever seu trabalho artistico quando argu ‘menta que sua escrita traz 4 tona os assim chamados “negécios sujos do racismo” (1992), 2 “pertencem”. E aquelas/es que nio sto ouvidas/os se tornam aquelas/es que “nao pertencem”. A mascara recria esse projeto de silenciamento e controla a possibilidade de que coloniza- das/os possam um dia ser ouvicas/os e, consequentemente, possam pertencer. Durante um discurso piblico Paul Gilroy descreve cinco mecanismos distintos de defesa do ego pelos quais 0 sujeito branco passa a fim de ser capaz de “ouvir”, isto 6, para que possa se tornar consciente de sua prépria bran- quitude e de si prépria/o como ‘perpetradora/perpetrador do racismo: negacdo; culpa; vergonha; reconhecimento; repa- ragio, Mesmo que Gilroy nao tenha explicado a corrente de mecanismos de defesa do ego, eu gostaria de fazé-lo a seguir, pois actedito que seja importante e elucidativo. Negacao (denial em inglés, no sentido de recusa) é um mecanismo de defesa do ego que opera de forma inconsciente para resolver conflitos emocionais através da recusa em admi- tir os aspectos mais desagradaveis da realidade externa, bem como sentimentos € pensamentos internos, Essa é a recusa em reconhecer a verdade. A Negacdo (denial) & seguida por dois outros mecanismos de defesa do ego: ciséo e projecao, Como escrevi anteriormente, o sujeito nega que ela/ele tenha tais sentimentos, pensamentos ou experiéncias, mas continua a afirmar que “outra” pessoa os tem. A informacio original — “Nos estamos tirando o que é delas/es” ou “Nés somos racis- tas” — 6 refutada e projetada sob:e as/os “Outras/os”: “Blas/es vem aqui e retiram o que € Nosso”, “elas/eles so racistas.” Para diminuir 0 choque emocional e a tristeza, o sujeito negro diria: “Nos estamos de fato tirando o que é delas/es” ou “eu nunca experienciei o racismo”. A Negagio (denial) é frequentemente confundida com negaciio (negation em inglés, no sentido de formulagao na negativa). Esses sio, porém, dois mecanismos diferentes de defesa do ego (nao distinguidos na lingua portu- guesa). Na tltima, um sentimento, um pensamento ou expe- rigncia séo admitidos ao consciente em sua forma negativa (Laplanche e Pontalis, 1988). Por exemplo: “Nés ndo estamos tirando o que é Delas/es” ou “Nés no somos racists.” Apés a negacdo ver a culpa, a emogao que segue a infra- so de uma interdicao moral. Esse é um estado emocional no qual o individuo vivencia o conflito de ter feito algo que acredita que nao deveria ser feito ou, a0 contrério, de néo ter feito algo que acredita que deveria ter sido feito. Freud descreve tal estado como o resultado de um conflito entre 0 €g0 © o superego, ou seja, um conflito entre os préprios dese- jos agressivos do individuo em relacio aos “outras/os” e seu superego (autoridade). O sujeito nao tenta impor aos “outras/ 9s” o que ela/ele teme-reconhecer em si mesma/o como acon- tece na negarflo, mas esta, em vez disso, predcupada/o com as consequéncias de sua propria infragio: “acusacao”, “cul- Pabilizacao”, “punicdo”. Culpa se difere de ansiedade, pois a ansiedade é experienciada em relacao a acontecimentos fu- turos, tal como quando a ansiedade é criada pela ideia de que oracismo possa vir a ocorrer. Culpa é vivenciada em relacéo a lum ato jé cometido, ou seja, o racismo jé aconteceu, criando uum estado emocional de culpabilidade. As respostas comuns A culpa séo 4 intelectualizagao ou racionalizagao, isto é, a ten- tativa do sujeito branco de construir uma justificativa légica para 0 racismo; ou descrenga, assim 0 sujeito branco pode dizer: “Nés no queriamos dizer isso nesse sentido”, “voce “ entendeu mal,” “para mim nao hé negras/os ou brancas/os, somos todos humanos.” De repente, 0 sujeito Branco investe tanto intelectual quanto emocionalmente na ideia de que a “raga’, na verdade, ndo importa como estratégia para redu- zit 08 desejos inconscientes agressivos em relacio as/a0s “Outras/os", bem como seu sentimento de culpa. Vergonka, por outro lado, é medo do ridiculo, a res- posta ao fracasso de viver de accrdo com 0 ideal de seu pro- prio ego. Enquanto a culpa ocorte se o individu transgredir uma interdi¢ao derivada de seu exterior, a vergonha ocorre quando o individuo falha em atingir um ideal de comporta- mento estabelecide por si mesma/o. A vergonha esta, por- tanto, conectada intimamente ao sentido de percep. Ela 6 provocada por experiéncias que colocam em questo nos- sas preconcepeées sobre nés mesmas/os e nos obriga a nos vermos através dos olhos de “outras/os", nos ajudando a reconhecer a discrepancia entre a percepcao de outras pes- soas sobre nés e nossa propria percepcao de nés mesmas/ 08: “Quem sou eu? Como as/os “outras/os” me percebem? E ‘que represento para elas/eles?” O sujeito branco se da conta de que a percepcao das pessoas negras sobre a branquitude pode ser diferente de sua percepcao de si mesmo, na medida em que a branquitude é vista como uma identidade privile- giada ~ 0 que significa tanto poder quanto alerta ~ a vergo- nba é o resultado desse conflito. Reconhecimento segue a vergonha; no momento em que © sujeito branco reconhece sua propria branquitude e/ou racismo. Esse é, portanto, o proceso de reconhecimento. O individuo finalmente reconhece a realidade de seu racismo ao aceitar 45 2 percepsdo € a realidade de “Outras/os”. Reconhecimento 6, nesse sentido, a passagem da fantasia para a realidade jd nao se trata mais da questéo de como eu gostaria de ser vista/o, mas sim de quem eu sou; nio mais como eu gostaria que as/ 08 “Outras/os" fossem, mas sim quem elas/eles realmente sao, Reparasao, entao, significa a negociacao do reconhecimen- to, O individuo negocia a realidade. Nesse sentido, esse tltimo estado é 0 ato de reparar o mal causado pelo racismo através da mmudanga de estruturas, agendas, espacos, posigées, dindmi- as, relagdes subjetivas, vocabulério, ou seja, através do aban- dono de privilégios. Esses diversos passos revelam a consciéncia sobre o racis- ‘mo no como uma questao moral, mas sim como um processo Psicol6gico que exige trabalho. Nesse sentido, em vez de fazer @ dlissica pergunta motal “Hu sou racista?" ¢ esperar uma Tesposta confortavel, © sujeito branco deveria se perguntar: ‘Como eu posso desmantelar meu préprio racismo?" Tal per- gunta, entdo, por si 66, j4 inicia esse processo. “6 2. QUEM PODE FALAR? FALANDO DO CENTRO, DESCOLONIZANDO O CONHECIMENTO “Pode a subalterna falar?” Gayatri C. Spivak (2995) coloca a questao “Pode a subaltema falax?", a qual logo responde: “Nao!” £ impossivel para a subal- tena falar ou recuperar sua voz e, mesmo que ela tivesse ten- tado com toda sua forca e violencia, sua voz ainda nao seria escutada ou compreendida pelos que estio no poder. Nesse sentido, a subaltera nao pode, de fato, falar. Ela esta sempre confinada a posi¢ao de marginalidade e siléncio que 0 pés-co- lonialismo prescreve. Spivak usa 2 imolagao de vitivas na india como um simbolo da subalterna. A vitiva indiana, argumenta, é encarcerada dentro do colonialismo e do patriarcado, situa- so que faz com que seja quase impossivel para ela ganhar voz. Oato de queimara viiva na pira funeraria de seumarido recém- -falecido, continua Spivak, confirma que ela esté ausente como sujeito, Essa auséncia simboliza a posicéo da subalterna co- mo sujeito oprimido que nao pode falar porque as estruturas da opressio nao permitem que essas vozes sejam escutadas, tampouco proporciona um espaco para a articulagao das mes- mas. Nesse ponto, Spivak oferece uma visio bastante signifi- cativa, questionando a no¢ao de falar. Ao argumentar que a subalterma nao pode falar, ela nao esta se referindo ao ato de falar em si; nao significa que nés ndo conseguimos articular a fala ou que nao podemos falar em nosso proprio nome. A. tedrica, em vez disso, refere-se A dificuldade de falar dentro do regime repressivo do colonialismo e do racismo. Alguns anos mais tarde, foi formulada uma questdo similar, no contexto a alemao: “Spricht die Subalterne deutsch?”* (Steyerl e Gutiérrez Rodriguez, 2003). © posicionamento de Spivak acerca da subalterna silen-

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