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poss eect I A situacao da terra Gencalogias do impcrialismo Eu nio sou o campo de trigo. Nem a terra virgem. Adrienne Rich PORNOTROPICOS ConsipereMos, PARA comesar, uma cena colonial. Em 1492, Cristévao Colombo, tropegando pelo Caribe em busca das Indias, escreveu para casa para dizer que antigos marinheiros tinham cerrado ao pensar que a Terra era redonda. Ao contririo, dizia, ela tinha a forma de um scio de mulher, com uma protuberancia no topo na for- ma inconfundivel de um mamilo — em diresio ao qual ele singrava Jentamente. A imagem de Colombo torna a Terra feminina na forma de um seio césmico, em relagao ao qual o heréi épico é uma crianca perdida e infi- ma, ansiando pelo mamilo celestial. A imagem da Terra come seio aqui nio lembra a bravura masculina do explorador, investido de sua missio de conquista, mas sim 0 incémodo sentido da ansiedade masculina, a infantilizagio ¢ 0 desejo pelo corpo feminino. Ao mesmo tempo, o cor- po feminino é figurado como marcando a fronteira do cosmos ¢ 0s limi- tes do mundo conhecido, envolvendo os homens andrajosos, com seus sonhos de pimenta e pérolas, em seu corpo oceanico indefinido. A fantasia do seio em Colombo, como 0 mapa dos seios de Sheba em. Haggard, segue uma longa tradigao de viagens masculinas como uma erdtica do alumbramento. Durante séculos, os continentes incertos — Couro imperial Africa, Asia,as Américas — foram concebidos pelo saber curopeu como libidinosamente erdticos. As estérias dos viajantes estavam eivadas de vis6es da monstruosa sexualidade de terras distantes, onde, segundo a lenda, os homens exibiam pénis gigantescos ¢ as mulheres copulavam com macacos; dos seios dos homens tornados femininos flufa o leite, e as mulheres militarizadas cortavam os scus. Viajantes da Renascenga encontravam uma audiéncia voraz e lasciva para suas estérias picantes, de tal forma que, muito antes da cra do alto imperialismo vitoriano, a Africa ¢ as Américas ja se tinham tornado o que pode ser chamado de pornotrépicos para a imaginacao curopeia — uma fantistica lanterna magica da mente na qual a Europa projetava scus temores ¢ desejos se- xuais proibidos. Os pornotrépicos europcus vinham de uma longa tradi¢ao. No segun- do século a.D., Prolomeu escreveu sobre a Africa, com confianga, que “a constelugio do escorpiio, que diz respeito as partes pudendas, domira aquele continente™. Leo Africano concordava que nio havia “nagao sob © céu mais chegada 20 sexo” do que “os negros”. O eremita de Francis Bacon era Visitado pelo espirito da fornicagao, que acabou sendo um “pe- queno, sujo ¢ feio etfope”’. John Ogilby, adaprando os escritos de Olfert Dapper, com muito tato informava a seus leitores que os africanos oci- dentais se distinguiam como “grandes propagadores”s, a0 passo que 0 plantador Edward Long via a Africa como “originadora de tudo o que ra monstruoso na natureza”’, Por volta do século XIX, o saber popular tinha estabelecido firmemente que a Africa era a zona quintessencial da aberragao ¢ da anomalia sexual —“o proprio retrato”, como dizia W. D. 1. Apud Peter Fryer, Staying Pewer: The History of Black People in Britain (Londees: Pluto Pres, 1984), p.139- 2, John Leo Africanus, A Geographical History of Africa, wad. John Pory (Londres: Georg. Bishop, 1600), p. 38. 3. Francis Bacon, ‘New Atlantis: A Worke Unfinished’, in Sylea Sylearune or a Natural History in Tom Centuries (Londres: William, 1670), p. 26 4. John Ogilby, Africa: Being an Accurate Description of the Regiont of Acgypt ete. (Londres “Tho. Johnson, 1670), p. 451. 5. Edward Long, The History of Jamaica (Londres: T. Lowndes, 1774), pp. 382°3- ae initiate i i | ‘SiR aces nsec cA situapda da terra = Genealogias do imperialisms Jordan, “da negacdo perversa”. A Histéria universal citava uma tradigao estabelecida e nobre quando declarava que os africanos eram “orgulho- 508, preguigosos, traigociros, ladrdes, quentes ¢ chegados a todo tipo de luxtirias” ser nascido na Africa e no ser africano”. Dentro dessa tradi¢’o pomnotrépica, as mulheres figuravam como a epitome da aberragio e do excesso sexuais. O folclore as via, ainda mais Era tio impossivel, insistia, “ser africano ¢ nio lascivo, como que 20s homens, como dadas a uma lascivia tio promiscua que beirava 0 bestial. Sir Thomas Herbert observou sobre os africanos “a semelhanca que cles tém com os babuinos, que, pude observar, fazem frequente companhia as mulheres”’. Long via uma ligio mais préxima de casa no espeticulo africana da excessa sexual feminino, pois acreditava que as britanicas da classe trabalhadora habitavam, mais naturalmente que os homens, as perigosas fronteiras da transgressio sexual e racial: “as mu- Iheres das classes baixas na Inglaterra’, escreveu de modo agourento, “tem preferéncia notavel pelos negros”®. O viajante William Smith ad~ vertia seus leitores sobre os perigos de viajar como brancos a Africa, pois, naquele continente desordeiro, as mulheres “quando encontram uum homem despem suas partes baixas e se atiram sobre ele”. Durante a Renascenga, a medida que a “fabulosa geografia” das via- gens antigas cra substituida pela “geografia militante” do imperialismo mercantil e pelo comércio triangular, os atrevidos navies mercantes de Portugal, Espanha, Gra-Bretanha e Franga comegaram a desenhar o mundo num tinico novelo de rotas de comércio". O imperialismo mer- 6. Winthrop D. Jordan, White Over Black: American Attitudes Toward the Negro, 1550-1812 (Nova York: W.W. Norton, 1977). p-7. 7. The Modern Part of the Universal History (T. Osborne etc.,1760, vol. V), pp. 6389. 8. Opy cite p. 659. 9. Sir Thomas Herbert, Some Years Travel Into Divers Parts of Africa and Asia the Great (Londres: R. Seot, 1677), p18, ro, Edward Long; Candid Refictions (Londzes: T. Lowndes, 1772), .48- 11. Witham Smith, A New Voyage to Guinea (Londres: John Nourse, 1743), pp. 221-2. 12, O termo “geografia tabulosa” ¢ de Michael Taussig, in Shamanism, Colonialism and the Wild Man: A Study in Terror and Healing (Chicago: The University of Chicago Press, Coure imperial cantil comesou a ser encorajado por sonhos de dominar niio sé um im- pério de comércio sem limites, mas também um ilimitado império de conhecimento. Francis Bacon (1561-1626) deu voz exemplar a falta de modéstia do expansionismo intelectual da Renascenga: “meu tinico de- sejo terreno”, escreveu, “é [...] expandir os lamentavelmente estreitos li- mites do dominio do homem sobre o universo até seus limites prometi- dos”. Mas 2 visio de Bacon de um conhecimento mundial dominado pela Europa era animada nao s6 por uma geografia imperial do poder, mas também por uma erética (de género) do conhecimento: “eu venho na verdade”, proclamou, “trazer a vés a natureza com todos os seus des- cendentes para pé-la a vosso servigo e torni-la vossa escrava”4, Com muita frequéncia, a metafisica do Huminismo apresentava 0 conhecimento como uma relagio de poder entre dois espagos de géncro, articulados por uma jornada e pot uma tecnologia de conversio: a pene- tragio masculina e a exposiséo de um interior feminino velado; ¢ a agressiva conversao de seus “segredos” numa ciéncia masculina visivel da superficic. Bacon deplorava o fato de que “enquanto as regides do globo material [...] foram em nossos tempos expostas ¢ reveladas, 0 globo in- telectual permanece confinado aos estreitos limites de antigas desco- 1987), p-15.Joseph Conrad cunhou o termo “geografa militante” em seu ensaio “Geogra- phy and Some Explorers”, in Lart Essays (Londres: J.M, Dent & Sons, 1926), p. 3t. Para uma histéria do fim da escravidéo colonial, ver Robin Blackburn, Zhe Overchross of Calo- nial Slavery: 1776-1848 (Londres: Verso, 1988). 15. Benjamin Farrington, Zhe Philosophy of Frauis Bausn. da Essay on Its Development from 1603 t0 1609 With Nets Translations of Fundamental Texts (Chicago: The University Chi- cago Press, 1964)5p.62. Ver Ludmilla Jordanova, Sextal Visions: Images of Gender in Stience and Medicine Between the Eighteenth and Twsentich Centuries (Nova York: Harvester ‘Wheatsheaf, 1989), Ver também E. F. Keller, Reflections on Gender and Science (New Ha~ ven: Yale University Press, 1985), especialmente os capitulos 2 e 3; Susan Griffin, Homan and Nature: The Roaring Inside Her (Nova York: Harper & Row, 1978); ¢ Genevieve Lloyd, Toe Man of Reason: “Male” and “Female” in Western Philosophy (Minneapolis: Minnesota University Press, 1984). 14, Fauriuguon, The Péiloraphy of Francis Bacon... p. 62. Para o genero na visao da exencia de Bacon, ver Carolyn Merchant, Tee Death of Nature: Women, Ecology and the Scientific Revolution (S40 Francisco: Harper and Row, 1980), especialmente o capitulo 7. 46 itccarnanciensecinanicuttin itso A situazao da terra ~ Genealogias do imperialismo bertas”S. Viajando no enigma do infinito, para li destravar os “segredos da natureza”, Fausto também exclamou: Novos caminhos se abrem para mim. Rasgarei o véu que esconde o que descjamos, Irromperei nos dominios da energia abstrara’* © conhecimento do mundo desconhecido estava mapeado como uma metafisica da violéncia de género — no como o reconhecimento expandido das diferengas culturais — e era validado pela nova légica iluminista da propriedade privada ¢ do individualismo possessivo. Nes- sas fantasias, o mundo era tornado feminino € espacialmente exposto para a explorasao masculina, ¢ entéo remontado e organizado no inte- resse do poder imperial massivo. Assim, para René Descartes, a expan- sfc do conhecimento masculino equivalia a um violento arranjo de pro- pricdade que fazia dos homens “scnhores possuiduies da natureza”?. Na mente desses homens, a conquista imperial do globo encontrava sua figura c sua sangio politica na prévia subordinagio das mulheres como uma categoria da natureza. AS MULHERES COMO MARCADORAS DAS FRONTEIRAS DO IMPERIO Qual é 0 sentido dessa persistente generificagao da incégnita imperial? Quando os homens europeus atravessavam os perigosos limiares de seus mundos conhecidos, ritualisticamente toravam fernininas as fronteicas € os limites. Figuras femininas eram plantadas como fetiches nos pontos ambiguos de contato, nas fronteiras ¢ orificios da zona disputada. Os 15. Francis Bacon, “Nowum Organumr, in James Spedding, Robert Ellis e Douglas Heath (orgs.), Tae Works of Francis Bacon (Londces: Longmans, 1870), p. 82. 16. Goethe, Fauer Parte T,apucl Jordanova, Serna! Visions... p93 17, René Descartes, Discourse on Method and the Meditations (Harmondsworth: Penguin, 1963), p78. 47 Coure imperial marinheiros prendiam figuras femininas de madeira nas proas de seus barcos e batizavam-nos — como objetos liminares exemplares — com nomes femininos. Os cartégrafos enchiam os mares vazios de seus mapas com ninfas e sereias. Os exploradores chamavam terras desco- nhecidas de territdrios “virgens”. Os filésofos figuravam “a verdade’ como fémea, ¢ cntio fantasiavam sobre retirar o véu. De muitissimas maneiras, as mulheres serviam como figuras mediadoras ¢ liminares por mcio das quais os homens se orientavam no espago, como agentes do poder e do conhecimento. Os préximos capitulos exploram parcialmente os modos historica~ mente diferentes, mas persistentes, em que as mulheres serviram como marcadoras das fronteiras do imperialismo, as ambiguas mediadoras do que parecia ser — pelo menos superficial mente — 0 protagonismo predominantemente masculino-do império. O primeiro ponto que de- sejo salientar, porém, é que a feminizagao da terra incégnita era, desde © comego, uma estratégia de contengio violenta — que pertence aos dominios tanto da psicandlise quanto da economia politica. Se, 4 pri meira vista, a feminizagio da terra parece nao ser mais do que um sintoma familiar da megalomania masculina, ela também trai uma pa~ ranoia aguda c um profundo (se nao patolégico) sentido de ansiedade ¢ perda de limites. Como sugerem as imagens de Colombo e Haggard, a erética da conquista imperial era também uma erotica da subjugagio. Num nivel, 2 representagéo da terra como feminina é um tropo traumi- rico, que ocorria quase invariavelmente, sugiro, depois da confusio masculina com o¢ limites, mas como uma estratégia de contengao histérica e nao arquetipica. Como trago visivel de paranoia, femi- nizar a terra é um gesto compensatorio, que nega a perda masculina dos limites reinscrevendo um excesso ritual de limites, acompanha~ do, com Frequéncia, por um excesso de violéncia militar. A feminiza- do da terra representa um momento ritualistico no discurso impe~ rial, como os invasores masculinos se protegem do temor de desordens narcisistas ao reinscrever, como natural, um excesso de hierarquia de género. Al situazdo da terra ~ Genealogias do imperialisms Mary Douglas observa que as margens sao perigosas"®. As sociedades sio mais vulneraveis nas margens, nas esgarcadas beiras do mundo co- nhecido. Tendo velejado além dos limites dos mares conhecidos, os ex- ploradores entram no que Victor Turner chamou de liminaridade"’. Para Turner, a liminaridade é ambigua, fagindo a “rede de classificagdes que normalmente situam os espagos € as posises no espaso cultural”? Ali na fronteira entre o conhecido e o desconhecido, os conquistadores, ex- ploradores ¢ navegadores se tornavam criaturas da transigao e do limiar. Como tais, cram perigosos, pois como diz Douglas: “O perigo estd nos estados de transigao [...] A pessoa que deve passar de um para o outro esta ela mesma em perigo ¢ produz perigo para as outras™". Como fi- guras do perigo, os homens das margens tinham “licenga para emboscer, roubar, estuprar. Esse comportamenta é mesmo imposto a eles. Com- portar-se antissocialmente é a propria expresso de sua condigao margi- nal", Ao mesmo tempo, os perigos representados pelas pessoas margi- nais sao administrados por rituais que as separam de seu stafus anterior, segregando-as durante algum tempo ¢ entio publicamente declarando sua entrada em seu novo status. © discurso colonial repetidamente en- saia esse padrio — marginalidade perigosa, segregacio, reintegragio. © “DESCOBRIMENTO” IMPERIAL E A AMBIVALENCIA DE GENERO Consideremos agora outra cena colonial. Num desenho famoso (c. 1575), Jan van der Straet retrata o “descobrimento” da América como um encontro erético entre um homem ¢ uma mulher (Figura 1.1). Um 18. Mary Douglas, Purity and Danger (Londres: Routledge & Kegan Paul, 1966), p63. 1g. Vietor Turner, The Ritual Process: Structure and Anti~Structure (Ithaca: Cornell University Press, 060). 20. Idem, op. P95. ax. Douglas, Purity and Danger, p. 78. 22, Idem, op.cit., p-79. 25, Ver Peter Hulme, “Pulyopic Man, Tropes of Scmuality and Mobility ia Early Colonial Discourse”, in Francis Barker et al. (orgs.), Europe and Its Oiders (Essex: University of 49 Cours imperial menses Amero eter 2 Sad vara dh Sper exetin + Figura 1.1 — Pernotripico: As mulheres como marcadoras dos limites do império, América do Norte, <.s600. Gravara de Theodore Galle, seguindo desenho de Jan van der Straet (c. 1578) Vespticio em armadura completa esta ereto ¢ senhorial diante de uma mu- Iher nua ¢ eroticamente convidativa, que se inclina para ele de uma rede. A primeira vista, as ligdes imperiais do desenho parecem claras. Despertada de sua languidez sensual pelo épico recém-chegado, a indi- gena estende uma mio convidativa, que insinua sexo e submissio. Sua nudez c scu gesto sugcrem um cco visual da Criapito, de Michelangelo. Vespiicio, o recém-chegado semelhante a Deus, est destinado a inse- mind-la com as sementes masculinas da civilizagao, a frutificar a selva ¢ a subjugar as cenas revoltantes do canibalismo vistas ao fundo. Como diz Peter Hulme num belo ensaio: “A terra € nomeada como fémea, contraparte passiva do impeto maci¢o da tecnologia masculina”*. A Essex, 1984, vol. 2). Também Louis Montrose, “Ihe Work of Gender in the Discourse of Discovery”, Representations 33 (Inverno, t991), pp. 1-41. Para imagens europeias da Amé- rica, ver Hugh Honour, The New Golden Land: European Images of America from the Discoveries ta the Present Lime (Nova York: Pantheon Books, 1975), capitulo 4. 24. Hulme, “Polytropic Man...” p. 2t. 50 cA situajac da terra ~ Genealogias do imperiali¢me América representa alegoricamente o convite da natureza 4 conquista, enquanto Vespticio, envergando os instrumentos de fetiche do senhorio imperial — astrolabio, bandeira ¢ espada —, confronta a terra virgem com o patriménio do dominio cientifico ¢ do poder imperial. Investido da prerrogativa masculina de nomear, Vespiicio torna a identidade americana uma extensao dependente da sua e atribui direitos territo- tiais masculinos ¢ europeus a toda ela e, por extensio, a seus frutos. Mais de perto, porém, o desenho de van der Stract, como o mapa de Haggard ¢ a fantasia dos seios de Colombo, conta uma histéria dupla do descobrimento. A cena inaugural do descobrimento cheira nio sé. a me- galomania masculina e agressio imperial, mas também a ansiedade ¢ paranoia masculinas. Na distancia central do quadro, entre Américo ¢ América, desdobra-se uma cena de canibalismo. Os canibais parecem mulheres ¢ estdo assando num fogo uma perna humana. Uma coluna de chamas e fumaga se eleva para 0 céu, unindo terra, fogo, égua ¢ ar numa cena elemenrar, estrururada como uma reuniao visual de opostos: terra/ céu; terra/mar; masculino/feminino; vestido/despido; ativo/passivo; ver- tical/horizontal; cru/cozido. Situado na praia, limiar entre terra e mar, o desenho é, quase em qualquer sentido, uma cena liminar As figuras nas margens sao femininas, 0 que ¢ notével. Aqui as mu- Iheres marcam, literalmente, as margens do novo mundo, mas o fazem de tal mancira que sugerem uma profunda ambivaléncia no homem eu- ropeu. Em primeiro plano, o explorador esta por inteiro — em armadu- ra completa, ereto, senhorial, a encarnagio do poder imperial masculino. Presa a seu olhar, a mulher esta nua, subserviente ¢ vulnerdvel a seu avango. Ao fuudu, untudo, v corpo masculino est4, literalmente, em pedagos, enquanto as mulheres se envolvem ativa c poderosamente. A perna arrancada que assa na fogueira evoca uma desordem do corpo tio catastrofica que chega a ser fatal. Essa visio ansiosa marca um aspecto, sugiro, de uma duplicidade recorrente no discurso imperial masculino. Isso pode ser visto como 0 simultaneo horror da catastréfica perda de limites (implosio), associado a temores de impoténcia e infantilizagao, ligados por um excesso de or- dem dos limites, e a fantasias de poder ilimitado. Desse modo, a cena st Coura imperial inaugural do descobrimento se torna uma cena de ambivaléncia, sus- pensa entre uma megalomania imperial, com sua fantasia de intermi- nivel rapina, ¢ um temor contraditério de subjugacdo, com sua fantasia de desmembramento ¢ emasculagao. A cena, como muitas cenas impe~ riais, é um documento tanto da paranoia quanto da megalomania. Como tal, a cena diz menos sobre 0 “Outro a ser logo colonizado” do que sobre uma crise na identidade imperial masculina. Tanto Américo como América sio aspectos divididos do invasor europeu, representan- do aspectos negadas da identidade masculina, deslocades para um ¢s- pago “tornado feminino” ¢ administrados por recurso 20 ordenamento de género preexistente. Suspensa entre a fantasia da conquista ¢ 0 terror da subjugagao, entre © estupro e a emasculacao, a cena, tdo claramente dependente do género, representa uma divisio ¢ um deslocamento de uma crise que é propria- mente masculina. A generificasio da América como simultaneamente nua € passiva ¢ curbulentamente violenta ¢ canibalistica representa uma divisao dentro do conquistador, negado ¢ deslocado para uma cena tor- nada feminina, Como em muitas cenas imperiais, o medo da subjugacio se expressa mais agudamente no tropo canibal. Nesse tropo familiar, o medo de ser subjugado pelo desconhecido € projetado sobre os povos colonizados como sua determinagao a devorar o invasor intciro. O mapa de Haggard ¢.acena do descobrimento de van der Straet nio sio excesdes, pois am- bas implicitamente representam a sexualidade feminina como canibal:a cena eanibal, a “bora da caverna do tesouro”, Em 1733, observou Jonathan Swift: Assim 0s gedgrafos nos mapas da Africa Enchem os vazios com desenhos selvagens E sobre quedas inabitaveis Poem elefantes em lugar de cidades*, 25. Jonathan Swife,*Ou Pucuy. A Rhaysody"(153), apud Petes Barber ¢ Christopher Boad, Tales from the Map Room: Fact and Fiction about Maps and Toeir Makers (Londces: BEC Books, 1993),p.20. A situagdo da terra ~ Genealogias do imperialismo Mais tarde, Graham Greene notou como os gedgrafos punham a palavra “canibais” nos espasos vazios dos mapas coloniais. Com a palavra “canibal”, 03 cartégrafos tentavam afastar a ameaga do desconhecido nomeando-o, e 20 mesmo tempo confessando um terror de que 0 desco- nhecido pudesse surgir ¢ devorar o invasor inteiro. Documentos colo- niais esto repletos de lembretes da fascinacio, do fetiche que os espacos vazios dos mapas exerciam sobre a vida de exploradores ¢ escritores. Mas as ansiedades implosivas sugeridas pelo tropo canibal eram tam- bém afastadas por incio de ritos fantasticos de violéncia imperial. O mapa colonial incorpora vividamente as contradigdes do discurso colonial. A feitura de mapas pés-se a servico da pilhagem colonial, pois o conhecimento constituido pelo mapa precedia ¢ também legitimava a conquista do territério. O mapa é uma tecnologia de conhecimento que professa a captura da verdade sobre um lugar de forma puramente cien- tifica, operando sob a guisa da exatidio cientifica e prometendo recupe- rar e reproduzir a natureza exatamente como ela ¢. Como tal, ¢ também uma tecnologia da posse, que promete que aqueles com a capacidade de fazer representagdes tio perfeitas também terio direito ao controle territorial. E, no entanto, as beiras e espagos vazios dos mapas coloniais sao ti- picamente marcados com vivos lembretes das lacunas do conhecimento ¢, portanto, do cardter ténue da posse. As lacunas do conhecimento cu- ropeut aparecem nas margens e vazios desses mapas na forma de cani- bais, sercias ¢ monstros, figuras liminares que falam das relagdes que ressurgem entre género, raga e imperialismo. O mapa é uma coisa li- minar, associada a limiares ¢ zonas marginais, carregada de foryas peri- gosas. Como icone exemplar da “verdade” imperial, o mapa, como a biis- sola ¢ o espelho, é o que Hulme apropriadamente chama de “tecnologia migica”, um fetiche poderoso que ajuda os coloniais a negociar 03 pe- rigos das margens ¢ limiares num mundo de terriveis ambiguidades**. Parcce crucial, portanto, salientar desde 0 comego que tornar a terra feminina é ao mesmo tempo uma poéfica da ambivaléncia e uma politica 26. Hulme, “Polytropic Man..",p-21. 3 Coure imperial da violencia. Os “descobridores” — sujos, vorazes, doentes e malchei- rosos como provavelmente ram, varrendo as margens de scu mundo conhecido e arribando as praias fatais de seus “novos” mundos, seus membros cobertos de abscessos ¢ piistulas, suas mentes infestadas por fantasias sobre 0 desconhecido — tinham ultrapassado quaisquer ga- rantias saucionadas, Suas firias, seus massacres ¢ estupros, seus atrozes rituais de masculinidade militarizada brotavam nio s6 de sua avidez econdmica por especiarias, prata ¢ ouro, mas também da firia implacd- vel da paranoia, O MAPEAMENTO DA TERRA “VIRGEM” E A CRISE DAS ORIGENS O “descobrimento” € sempre atrasado. A cena inaugural nunca é, de fato, inaugural ou origindria: alguma coisa sempre aconteceu antes. O dese- nho de van der Stract confessa isso em scu subtitulo. “Asnéricu redesco- bre a América’, Louis Montrose sugere que a cena foi provavelmente entendida na época por referéncia a um terrivel incidente que teria ocor~ jagens anteriores de Vespicio. Um jovem espa- nhol, que estava sendo inspecionado por um grupo de mulheres curio- rido durante uma das sas, foi repentinamente derrubado por um violento golpe por tris, desferido por uma mulher; foi sumariamente assassinado, retalhado e assado, diante dos olhos de scus conterrincos”, Essa estoria, com seu peso indecoroso de ameaca femninina e resisténcia a invasio, contradiz 0 mito do convite feminino & conquista. Ao mesmo tempo, contradiz a afirmagao de Vespticio de ser o primeiro. Vespiicio esti, de fato, atrasado, De qualquer maneira, ele nega seu atraso € reivindica uma relacio privilegiada com 0 momento do “desco- brimento” e a cena das origens recorrendo a uma estratégia conhecida: nomeiaa “América” com scu préprio nome. O desejo de nomear exprime um desejo de uma tinica origem, ao lado de um desejo de controlar a origem dessa origem. Mas a estratégia de nomear € ambivalente, pois 27. Montrose, “The Work of Gender. 54 A situagio da terra ~ Genealogias do imperialitzme exprime tanto uma ansicdade sobre 0 poder gerador quanto uma negagiio. Luce Irigaray sugere que a insisténcia masculina em marcar “o pro- duto da cépula com seu propria none” deriva da incerteza da relagio do homem com suas origens**.“O fato de ser privado de um utero”, diz ela, é “a privacdo mais intolerével do homem, pois sua contribuigio para a gestacao — sua funcao na origem da reprodusaio — é assim afirmada como menos do que evidente, como sujeita a david”. O pai nao tem prova visivel de que o filho é seu; seu status na gestacio nio ¢ garantido. O nome, o patriménio, é um substituto para a ausente garantia da pa- ternidade; s6 0 nome do pai marca a crianga como sua. Historicamente, o desejo masculino de uma relagio garantida com a origem — assegurando, como o faz,a propriedade ¢ o poder masculi- nos — contraditado pela duplicacao sexual das origens, pelo visivel papel ativo das mulheres na produgio da crienga ¢ pela contribuigio incerta e passageira dos homens. Como compensa¢o, 0s homens dimi- nuem a contribuigdo das mulheres (0 que, nota Irigaray, é dificil de questionar) reduzindo-as a meios ¢ maquinas — meras portadoras — sem atuagio criativa ou poder de nomear. A insisténcia no patriménio marca uma negagio: a de que algo diferente (uma mulher) seja neces- sario para garantir a reprodugio do mesmo — 0 filho com o mesmo nome do pai?*. A cena sexual da origem encontra uma analogia na cena imperial do descobrimento. Ao nomear vistosamente “novas” terras, 08 imperiais as marcam como suas, garantindo, assim (ao menos eles acreditam), uma relagao privilegiada com a origem — na embaragosa ausencia de outras garantias, donde a fixagao imperial na nomeagio, em atos de “descobri- mento,” cenas batismais e rituais masculinos de nascimento. 28, Luce Irigaray, Speculum ofthe Other Woman, trad. Gillian C. Cill (Ithaca: Cornell Univer sity Press, 1974). p. 23 29, Ibidem. 39. Idem, op. ¢ P74 3S Courc imperial O ato imperial de descobrimento pode ser comparado 20 ato mascu- ino do batismo. Em ambos 0s rituais, os homens ocidentais negam pu- blicamente a atuagao criativa dos outros (dos colonizados/das mulheres) € se arrogam a forga das origens. O ritual masculino do batismo — com suas pias de dgua benta, sua lavagem ¢ seus parteiros — ¢ um substituto do ritual de nascimento, durante o qual os homens se compensam por seu papel invisivel no nascimento da crianga e diminuem a atuagio das mulheres, Na cristandade, pelo menos, o batismo repde o nascimento como ritual masculino. Durante a hatismo, além disso, a crianga recche um nome — do pai e nfo da mie. O trabalho de parto e a forga criativa da mie (ocultos em seu “confinamento” e sem receber reconhecimento social) sao diminuidos, ¢ as mulheres sio publicamente declaradas ina dequadas para iniciar a alma humana no corpo de Cristo. Aos olhos da cristandade, as mulheres sao geradoras incompletas: a crianga deve nas- cer de novo e deve ser nomeada pelos homens. Como 0 batismo, 0 ato imperial do descobrimento é um substituto do ritual do nascimento: as terras jé foram povoadas, assim como a crianga ja nasceu. Por isso, o descobrimento ¢ um ato retrospective. Como observa Mary Louise Pratt, o descobrimento nao tem existéncia pré- pria: “Ele apenas se torna real depois que o viajante (ou outro sobrevi- vente) volta ao lar e o faz existir através de textos: um nome num mapa, um relato para a Royal Geographical Society, para o Foreign Office, para a London Mission Society, um diétio, uma conferéncia, um livro de via~ gens". O descobrimento, como nota Pratt, em geral envolve uma jorna- da para uma regia remota, com perguntas aos habitantes locais sobre se cles conhecem um sio, um lage ou uma cachocira préximos, pagando a esses habitantes para os levarem a esses locais, ¢ entdo “descobrindo” o lugar, muitas vezes pelo ato passivo de vé-lo. Durante esses atos extrava~ gantes de descobrimento, os homens do império inventam um momen- to (masculine) de pura origem e 0 marcam visivelmente com um dos fetiches da Europa: uma bandeira, um nome num mapa, uma pedra ou gu Mary Louie Pratt, imperial Eyes: Travel Writing and Trensculturation (Nova York: Rout= ledge, 1992), p.204. sa wee A situagao da terra ~ Genealogias do imperialisms talvez mais tarde, um monumento. Retornarei, a seu devido tempo, & questo do fetiche e de sua relagio com a crise das origens. O MITO DAS TERRAS VAZIAS A Guiana é um pais que € ainda virgem, nunca saqueado, revirado nem forjado. Walter Raleigh © mito da terra virgem é também o mito da terra vazia, envolvendo tanto uma despossessio de género quanto de raga. Em narrativas pa- triarcais, ser virgem é estar vazia de desejo e de atuagao sexual, aguar- dando passivamente o impeto da inseminagio masculina da histéria, da Iinguagem ¢ da razio*. Nas narrativas coloniais, a crotizagio do espago “yvirgem” também faz uma apropriacao territorial, pois, se a terra € vir~ gem, 0s povos colonizados nao podem reivindicar direitos territoriais originarios, ¢ 0 patriménio masculino e branco é assegurado violenta- mente, assim como a inseminacao sexual e militar de um vazio interior. Esse tema duplicado — a atuagio negada das mulheres ¢ dos coloniza- dos — é recorrente nos capitulos que se seguem. A jornada colonial rumo ao interior virgem revela uma contradisio, pois cla € figurada como avangando no espaco geo; ico, mas’ regre- dindo no tempo histérico, para aquilo que é figurado como uma zona pré-historica de diferenga racial ¢ de géncro, Testemunha-se aqui uma caracteristica recorrente do discurso colonial. Como nio se supde que 95 povos indigenas estejam espacialmente la — pois as terras esto “va~ 32. Para uma bela e detalhada discussio das meriforas imperiais de género no cinema, ver Ella Shohat,“Gender and the Culture of Empire: Toward a Feminist Etnography of the Cinema”, Quarterly Review of Film and Video 2, 1-3 (Primavera, 1993), pp. 45-84. Para uma. anilise do género na fronteira norte-americana, ver Annee Kolodny, The Lay of the Land: Metaphors as Experience and History in American Life and Letters (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1975) ,€ The Land Before Her: Fantasy and Experience of the American. Frontiers, 165071860 (Chapel Hill: University of North Carolina Press, 1984). Vee também Henry Nash Smith, Virgin Land: Tee American West at Symbol and ‘Myth (Cambridge: Harvard University Press, 1971). 7 Cours imperial zias” —, eles so simbolicamente deslocados para 0 que chamo de exparo anacrénico, urn tropo que alcansou (como exploro em mais detalhe abai- xo) plena autoridade administrativa como tecnologia de vigilancia na era vitoriana tardia. Segundo esse tropo, povos colonizados — como as mulheres da classe trabalhadora na metrépole — nao habitam a historia propriamente dita, mas existem num tempo permanentemente anterior no espaso geogrifico do império moderno como humanos anacrénicos, atavicos, irracionais, destituidos de atuago humana — a encarnacao viva do arcaico “primitive” Um dilema fundamental confrontava os coloniais, porém, pois as terras “vazias” cram visivelmente povoadss, e trasos da antiguidade des- ses povos estavam A mio na forma de ruinas, antigos povoados, crinios e fosseis. Ai esti pelo menos uma razio para a obsessio vitoriana com sobrevivéncias ¢ tragos, ruinas ¢ esqueletos — lembretes alegéricos do fracasso de uma narrativa tinica das origens. Nos capitulos 4, 5 € 10, ex- ploro mais detalhadamente esses dilemmas coloniais. Para as mulheres, o mito da terra virgem apresenta dilemas especifi- cos, com importantes diferencas para as mulheres coloniais ¢ para as colonizadas, como argumento nos capitulos 9 ¢ 10, As mulheres sio a terra que esti para ser descoberta, penetrada, nomeada, inseminada e, acima de tudo, possuida. Simbolicamente reduzidas, aos olhos dos ho- mens, a0 espago em que se travam as disputas masculinas, as mulheres experimentam dificuldades particulares ao reivindicar genealogias alter- nativas ¢ narrativas alternativas de origem ¢ nomeagio. Simbolicamente ligadas 2 terra, as mulheres sio relegadas a um dominio além da hiscéria ¢, assim, mantém uma relagio particularmente vexatoria com as narrati- vas de mudanga histérica e de efeito politico. E, o que é ainda mais importante, as mulheres sao figuradas como propriedade pertencente aos homens e, portanto, estao fora, por definigao, das disputas masculi- nas sobre terra, dinheiro e poder politico. E importante salientar, desde © ponto de partida, contudo, que a questo do género no imperialismo assumiu formas muito diferentes em partes diferentes do mundo. A India, por exemplo, nunca foi vista como terra virgem, e a iconografia do harém nao fazia parte da erdtica 38 A situacto da terra - Genealogias de imperiatismo colonial do Sul da Africa. As mulheres do Norte da Africa, do Oriente Médio e da Asia eram com frequéncia capturadas pela iconografia do véu, enquanto as demais mulheres africanas estavam sujeitas 4 missio civilizadora do algodio ¢ do sabio. Em outras palavras, as mulheres ara bes deviam ser “civilizadas” sendo despidas (tirando-se-lhes o véu), en- quanto as subsaarianas deviam ser “civilizadas’ sendo vestidas (em limpo ¢ branco algodio britinico). Essas distingdes suntudrias cram sintoma- ticas de diferencas criticas de modos legislativos, econémicos ¢ politicos m que © racismo merecantil imperial cra imposto cm diferentes partes do mundo. DOMESTICIDADE E RACISMO DA MERCADORIA Domeéstico — relativo 20 lar, domicilio ou assuntos da familia Domesticar — naturalizar (colonos, animais) civilizar (selvagens) Pequena diciondrio Oxford do Inglés corrente Em 1899, ano em que estourou a guerra anglo-béer na Africa do Sul, uma propaganda do Sabonete Pears no MeChure’s Magazine (Figura 1.2) anunciava: O primeizo passo para tornar mais leve © FARDO DO HOMEM BRANCO € ensi- nar as virtudes da limpeza. 0 SABONETE PEARS € um potente fator no abrilhantamento dos cantos escuros da terra a medida que a civilizagio avan- 4, enquanto para as mais cultivadas nagées da terra ele esti no mais alto posto — é o sabonete ideal de toalete®. 33. McClures Magazine 13 (maio-out. 1899). 59 Couro imperial A propaganda mostra um almirante trajando puro branco imperial, lavando suas mios na cabine enquanto seu vapor cruza 0 oceano no dominio do império. Nessa imagem, a domesticidade privada e o mer- cado imperial — duas esferas consideradas pela classe media vitoriana como inteira e naturelmente distintas — convergem num tnico espeti- culo mercantil. O santudrio doméstico do banheiro do homem branco da vantagem ao dominio global do comercio, de tal forma que 0 pro- gresso imperial se consuma num sé golpe — como tempo pandptico. Pears’ Soap se cond of ot mens Figura 1.2~ Domesticidade imperial A vigia é tanto janela como espelho. A janela, icone da vigilancia imperial e a ideia iluminista do conhecimento como penetragio, se abre para cenas piiblicas de conversiio econémica. Uma cena retrata um afti- cano ajoelhado recebendo, agradecido, o sabonete Pears, como se ajoc- Iharia diante de um fetiche religioso. O espelho, emblema da autocons- a imagem da higiene imperial branca e . purifica e pre- Géncia uninista, refle masculina. A higiene doméstica, como sugere o aniini 60 aera nscssanineilibaatals nian abate ati cra smn a hi ef situagdo da terra ~ jenealogias do impericlismo serva 0 corpo masculino branco da contaminagao na zona limiar do império. Ao mesmo tempo, a mercadoria doméstica garante 0 poder masculino branco, a genuflexdo dos africanos ¢ 0 dominio do mundo. Na parede, uma lampada elétrica significa a racionalidade cientifica ¢ 0 avango espiritual. Dessa forma, a mercadoria doméstica da a liso do progresso imperial e da civilizagdo capitalista: para o homem branco, a civilizagio avanga e se abrilhanta através de seus quatro amados fetiches —o sabonete, o espelho, a luz ¢ a roupa branca. Como detalho mais adiante, esses fetiches so recorrentes através do Kitsch mercantil vito- riano tardio e na cultura popular da época. A primeira observacio sobre o antincio do Pears é que ele figura 0 imperialismo como passando a existir através da domesticidade. Ao mes- mo tempo, a domesticidade imperial é uma domesticidade sem mu- Iheres. O fetiche da mercadoria, como forma central do iluminismo industrial, revela 0 que o liberalismo gostaria de esquecer: 0 doméstico é politico, o politico tem género. O que nao poderia ser admitido no discurso racionalista masculino (0 valor econémico do trabalho domés- tico das mulheres) é negado e projetado para o dominio do “primitivo” ¢ para a zona do império. Ao mesmo tempo, o valor econdmico das culturas colonizadas é domesticado e projetado para o dominio do “pré- historico”. Um trago caracteristico da classe média vitoriana era sua preocu- pagao peculiarmente intensa com fronteiras rigidas, Na ficgao imperial eno Kitsch mercantil, objetos de fronteira ¢ cenas liminares se repetem ritualmente. A medida que os coloniais se moviam de um lado para outro através dos limiares de seu mundo conhecido, a crise ¢ a confusio de limites eram mantidas a distincia e contidas por fetiches, rituais de absolvigio e cenas liminares. Sabonete e rituais de limpeza passaram a ser centrais para a demarcag’o dos limites do corpo ¢ para o policiamen- to das hicrarquias sociais. A limpeza ¢ os rituais de fronteiras fazem parte da maioria das culturas; o que caracterizava os rituais vitorianos de limpeza, porém, era sua relagao peculiarmente intensa com o dinheiro. Estou duplamente interessada no antincio do sabonete Pears porque cle registra uma mudanga que vejo como tendo tido lugar na cultura do 61 Coure imperial imperialismo nas tiltimas décadas do século XIX. Foi a passagem do racismo cientifice incorporado nos periédicos médicos, cientificos ¢ an- tropoldgicos, nos escritos de viagens e nas etnografias, para o que chamo de racismo mercantil. O racismo mercantil — nas formas especificamen- te vitorianas de propaganda e fotografia, nas exposi¢des imperiais ¢ no movimento dos muses — converteu a narrativa do progressa imperial em espetdculos de consumo produzidos em massa. Durante o século XVII, surgiu o que Pratt chama de “consciéncia planetéria’*. A consciéncia planetaria imaginou desenhar todo o mun- do numa tinica “ciéncia da ordem,”na expresso de Foucault. Carl Lineu forneceu o impulso para essa ideia imodesta ao publicar, em 1735, 0 Sys- tema Natura, que prometia organizar todas as formas de plantas numa Guica génese warrativ Para Lineu, ademai: tornou o paradigma para a forma natural em geral. Inspirados por Lineu, hordas de exploradores, botinicos, historiado- res da natureza ¢ geégrafos sc entregaram 4 vocacao de ordenar as for- mas do mundo numa ciéncia global da superficie e da dtica da verdade. Dessa mancira, 0 projeto do Iuminismo coincidia com o projeto impe- rial. Como diz Pratt: “Pois o que eram 0 comércio de escravos ¢ o siste- ma de plantation senao macigos experimentos em engenharia social ¢ disciplina, produgio em série, sistematizagio da vida humana, padro- nizacio das pessoas?”*, A ciéncia global da superficie era um projeto de converséo, dedicado a transformar a terra numa tinica mocda ccond- mica, uma tinica origem da histéria e um padrao universal de valor cul- tural — posto ¢ administrado pela Europa. © que me preocupa aqui, porém, é que, se a ciéncia imperial da su- perficie prometia desenrolar um tinico “Grande Mapa da Humanidade” e forjar uma tinica autoridade masculina europeia para todo o planeta, a ambigao ultrapassou o efeito durante bastante tempo. O projeto estava a reproduyiy sexual se 34 rate, Imperial Beso poss. 35- Idem, op. cit., p. 15, 36. Idem, op. sit, p38. 62 mecca A situszio da terra ~ Genealogias do imperialismo cheio de paradoxos, incompletude ¢ ignorincia intelectual. A capacida- de tecnolégica de mapear e catalogar a superficie da terra continuou, por algum tempo, dependente de acidentes, inferior ¢ evidentemente inepta. Os promotores do projeto global no tinham a capacidade técnica para teproduvir formalmente a “verdade” ética da natureza nem a capacidade econdmica de distribuir essa verdade para consumo global. Para que isso acontecesse, © projeto global teria de esperar até a segunda metade do século XIX, com o surgimento do espetaculo mercantil — em particular, a fotografia. Os capitulos seguintes sc ocupam dessa mudanga do racismo cien- tifico para © racismo mercantil, pelo qual o racismo evolucionista ¢ 0 poder imperial foram postos no mercado numa escala até entao inima~ ginavel. No processo, o lar da classe média vitoriana se tornou um es- paco para a exibicao do espeticulo imperial e para a reinvengio da raga, enquanto as colénias — a Afr ica, em particular — se tornavam um es- pago para exibir 0 culto vitoriano da domesticidade e da reinvengio do género. A domesticidade denota tanto um esparo (um alinhamento geogri- fico ¢ arquiteténico) quanto uma relapao social de poder. O. culto da do- mesticidade, longe de ser um fato universal da “natureza”, tem uma ge- nealogia histérica. A ideia do “doméstico” nio pode ser aplicada de maneira geral a qualquer casa ou domicilio como fato universal ou na~ tural’, Tantas vezes alardeado como um espago universal natural — abrigado nos interiores mais recénditos da sociedade, ainda que teorica- mente além do dominio da anilise politica —, 0 culto da domesticidade envolve processos de metamorfose social e sujei¢o politica das quais 0 géncro é a dimenso permanente, mas nao a tinica. Etimologicamente, o verbo “domesticar” tem a mesma raiz de “do- minar”, que deriva de dominus, senhor do domus, 0 lar. Até 1964, po- 37 Jean c Joha L. Comaroff, “Homemade Hegemony: Modernity; Domesticity and Colo nialism in South Africa’, in Karen Hansen (org.), African Encounters with Domeiticity (New Brunswick: Rutgers University Press, 1992), p. 39. 38. Idem, op. cit., p. 3 Cowra imperial rém, 0 verbo “domesticar” também carregava como um de seus signi- ficados a agio de “civilizar™®, Nas colénias (como exploro melhor no capitulo 6), 0 posto da missio se tornou uma instituicao liminar para transformar a domesticidade enraizada no género ¢ nos papéis de clas- se europeus numa domesticidade para controlar um povo colonizado. Auravés dus rituais da domesticidade, cada vez mais global ¢ muitas vezes violenta, animais, mulheres pessoas colonizadas eram retiradas de seu estado de “selvageria” putativamente “natural”, ainda que, iro- nicamente, pouco “tazoavel,” ¢ eram induzidas, através da narrativa doméstica do progresso, a uma relagio hierirquica para com os homens brancos. Assim, a ideia histérica da domesticidade mantém uma relagiio am- bivalente com a ideia imperial de natureza, pois a “domesticagao” se im- poe energicamente 4 natureza para produzir uma esfera social que é considerada natural universal em primeiro lugar. Em outras palavras, nas col6nias, a cu/fura curopcia (a missao civilizadora) sc tornou ironica mente necessiria para reproduzir a natureza (as divisdes “naturais” do trabalho doméstico), anomalia que demandou muita energia social — ¢ muito trabalho doméstico — para ser ocultada. A ideia de progresso — a “natureza” se ap para administrar essa anomalia. O culto da domesticidade, argumento, se tornou central para a iden- tidade imperial britanica, por contraditéria ¢ conflituosa que esta fosse, ¢ surgiu uma dialética intrincada. O imperialismo difundiu o culto vito- riano da domesticidade ¢ a separagao histérica cntre o privado ¢ 0 pé- blico, que tomou forma em torno do colonialismo e da ideia de raga. Ao igoando ao longo do tempo — foi fundamental mesmo tempo, 0 colonialismo se formou em torno da invensfo vitoria~ na da domesticidade e da ideia do lar'®. (Figs. 1.3, 1-4). 39. Idem, op.cit..p.23. 40. Para uma anilise da domesticidade colonial no Sul da Africa, ver Jean e John L. Coma- roff, “Homemade Hegemony." pp-37-74 64 A situagdo da terra ~ Genealogias do imperialisma Figura 13 ~ Domesticando o império. HELP HOME TRADE yTERCUP MEAL Poy, patel, i Brass Clean?” fe Figura 1.4 ~A identidade nacional britinica assume a forma imperial. 65 Coura imperial Este, entio, é o tema central deste livro: quando o espago doméstico foi racializado, o espaco colonial foi domesticado. Certamente, o espeta- culo mereantil no cra a tnica forma cultural para a ncdiagau du colu- nialismo doméstico. Os escritos de gens, novelas, cartGes-postais, fotografias, pornografia ¢ outras formas culturais podem ser investiga~ dos de maneira igualmente fértil para essa relagdo crucial entre domes- ticidade ¢ império. O espeticulo mercantil, porém, se estendeu muito além da elite cultural e de posses ¢ deu ao colonialismo doméstico uma influéncia de longo alcance. TEMPO PANOPTICO Ja nao precisamns recorrer 4 histéria para ver (a natureza humana) ern todos os seus estagios e periodes [...] agora o Grande Mapa da Humanidade é desenrolado de urna s6 vez: e nao hi estado ou gradagio de barbarismo e nem modo de refinamento que no tenhamos a nossa vista no mesmo instante. Edmund Burke A ciéncia imperial da superficie se alimentou de dois tropos centraliza- dores: a invengio do que chamo de tempo pandptico e a do espago anacré- nico.Com a publicagio da Origem das espécies, Charles Darwin conferitt a0 projeto global uma dimensfo decisiva — o tempo secular como agen- te de uma histdria unificada do mundo. Assim como Lineu tentara clas- sificar o fragmentario registro botanico num simples arquivo de forma natural, a partir de 1859, os evolucionistas sociais assumiram a tentativa maciga de ler, a partir do descontinuo registro natural (a que Darwin chamava de “uma histéria imperfeitamente mantida do mundo”), um nico pedigree da histéria do mundo em evolugio, Agora, no s6 0 espa~ go natural, mas também o tempo histérico podiam ser colhidos, reuni- dos e mapeados numa ciéncia global da superficie. A importante meditag4o sobre o tempo ¢ a antropologia de Johannes Fabian, Time and the Other: How. Anthropology Makes Its Object, mostra como os evolucionistas sociais romperam o dominio da cronologia bi- 66 A situasdo da terra ~ Genealegias do inperialismo blica — isto ¢, 0 tempo da crénica — secularizando 0 tempo e pondo-o a disposicao do projeto empirico — isto é, 0 tempo cronolégico*. Para fazé-lo, cle observa, “espacializararm 0 tempo”.“O paradigma da evolugio se apoiava numa concepgao do tempo que cra nao sé secularizada ¢ naturalizada, mas também plenamente espacializada”. O eixo do tempo foi projetado sobre 0 eixo do espago ¢ a hist6ria se tornou global. Com o darwinismo social, o projeto taxondmico, aplicado primeiro 4 nature za, era agora aplicado a histéria cultural. O tempo se tornou uma geo- grafia do poder social, um mapa a partir do qual ler uma alegoria global da diferenca social “natural”, E, o que é mais importante, a historia assu- miu o carater de espeticulo, Nas tiltimas décadas do século XIX, 0 tempo pandptico se autonomi- zou. Por tempo panéptico, refiro-me & imagem da historia global con- sumida — com um olhar — num tinico espetaculo a partir de um ponto de invisibilidade privilegiada. No século XVII, Bossuet, no Discours sur Phistoire universelle, agummentava yue qualquer tentativa de produzir uma histéria universal dependia de ser capaz de figurar a “ordem dos tempos” num olhar (“comme d'un coup d'seil""*. Para atingir os padrées “cientificos” estabelecidos pelos historiadores da natureza e pelos empi- ricistas do século XVIII, era necessdrio um paradigma visual para exibir © progresso evolucionario como espeticulo mensuravel. A figura exem- plar que surgiu foi a evolucionista Arvore da Familia do Homem. A natureza da Renascenga — a natureza divina — era entendida como cosmolégica, organizada de acordo com a vontade de Deus numa irrevogivel cadeia do ser. Em contraste, 0 evolucionista social Herbert Spencer via a evolugio nao como uma cadcia do scr, mas como uma arvore. Como diz Fabian: “A rvore sempre foi uma das formas mais simples de construir esquemas classificatérios fundados na subsungio ¢ na hierarquia”#. A arvore oferecia uma imagem antiga de uma genealo- 4t. Johannes Fabian, Time and the Other: How Anthropolagy Makes Its Object (Nova York: Columbia University Press, 1983), p15, 442. Jacques Benigne Bossuet, Diseours sur 'bstoire univerelle spud idem, op. cts p. 4. 43. Idem,op.city p.96. Couro imperial gia natural do poder. Os evolucionistas sociais, porém, tomaram a arvo- re divina e cosmoldgica e a secularizaram, tornando-a uma imagem de comutagio que mediava entre a natureza ¢ a cultura como imagem na- tural do progresso evolucionrio humano. “A Arvore Morfolégica das Ragas Humanas” de Mantegazza, por exemplo, mostra vividamente como a imagem da drvore foi posta a dis- posigao dos cientistas raciais (Figura 1.5). Na imagem que Mantegazza tinha da histéria global, surgem trés principios. Primeiro, mapeadas contra a drvore, as culturas descontinuas do mundo parecem ser comma dadas dentro de uma tinica narrativa europeia originaria. Segundo, a histéria humana pode ser imaginada como naturalmente teolégica, um processo orginico de crescimento para cima, com 0 europeu como apo- geu do progresso. Terceiro, incOmodas descontinuidades histéricas podem ser ordenadas, submetidas ¢ subordinadas a uma estrutura hicrdrquica de tempo ramificado — 0 progresso diferencial das racas mapeado contra os ramos evidentes da arvore. Na arvore do tempo, a hicrarquia racial ¢ © progresso histérico se tornaram os faits acomplis da natureza. Figura 1.5~Incentanda o progressa: a drvere racial familiar 68 A situajao da terra ~ enealogias do imperielisma A imagem da arvore, contudo, estava ligada a uma segunda imagem decisiva: a Familia do Homem. O “Grupo Familiar dos Katarrhinen” ofercee um bom exemplo (Figura 1.6). Nesse grupo familiar, o progresso evolutivo é representado por uma série de tipos anatémicos distintos, organizados como uma imagem linear de progresso. Nessa imagem, 0 olho segue os tipos evolutivos rumo ao alto da pagina, do arcaico para o moderno, de tal forma que 0 progresso parece desenvolver-se natural- mente diante do olho como uma série de marcas que evoluem no rosto. O progresso assume o cariter de um espeticulo, sob a forma da familia, Toda a historia cronolégica do desenvolvimento humano ¢ captada ¢ consumida num golpe de vista, de tal forma que a anatomia se torna uma alegoria do progresso, ¢ a histéria ¢ reproduzida como uma tecno- logia do visivel (Figura 1.7) Assim, 0 evolucionismo social e a antropologia deram a politica e a economia um conceito do tempo natural como familiar. O tempo nio fora apenas secularizado, mas também domesticado, questio nao colo~ cada por Fabian. A mescla de drvore e familia na dirvore familiar do homem dava ao racismo cientifico uma imagem de género para popu- larizar e disseminar a idcia de progresco racia/. Hé aqui, entretanto, um problema, pois a arvore familiar representa o tempo da evolugée como tempo sem mulheres. A imagem da familia € uma imagem de negagio, pois contém apenas homens, arranjados num friso de homens s6s que ascendem para o apogeu do Homo sapiens individual. Cada época é re~ presentada por um tinico tipo masculino, caracterizado, por sua vez, por visiveis estigmas anatémicos. Desde o inicio, a ideia de progresso racial tinha género, mas de tal mancira que tornava as mulheres invisiveis en- quanto agentes histéricos. 44. Dolf Sternberger, seguindo Walter Benjamin, viu no popular fendmeno vitoriano do ci- clorama uma popularizagio da teoria de Darwin como um ‘ciclorama da evolugio". Na imagem panorimica, a histéria aparece como uma “progreisio natural” do macaco 10 homem, de modo que “o olho € 0 olho da mente podem desliza, para cima para baixo, de um lado pare © outro, pelas figuras que ‘evoluem™. Apud excelente livo de Susan Buck-Mores, Tbe Dialecticsof Secing: Walter Benjamin and the Arcades Project (Cambridge: ‘The MIT Press, 1990), p67 Couro imperial Figura 17 — Tempo paniptice: o progresso consumide num galpe de vista. 4 } s A situagao da terra ~ Genealegias do imperialivme Desse modo, a figura da Familia do Homem revela uma contradi- gio persistente. O progresso histérico é naturalizado como uma fa~ milia que evolui, ao passo que as mulheres, na qualidade de atorcs histdricos, sio negadas e relegadas ao reino da natureza. A historia € assim figurada como familiar, mas a familia como instituigao é vista como além da histéria. Os capitulos que se seguem (em particular 0 capitulo 11) cuidam fundamentalmente das implicagdes historicas desse paradoxo. ESPAGO ANACRONICO Walter Benjamin observa que uma caracteristica central do capitalis- mo industrial do século XIX era o “uso de imagens arcaicas para iden- tificar 0 que era historicamente novo sobre a ‘natureza’ das mereado- rias*5, No mapeamento do progresso, imagens do tempo “arcaico”— isto ¢, do tempo niio europeu — cram sistematicamente cvocadas para identificar o que cra historicamente novo na modernidade industrial. A fixagao da classe média vitoriana nas origens, com narrativas de gé- nese, com arqueologia, cranios, esqueletos ¢ fisseis — 0 dric-d-brac imperial do arcaico —, era recheada da compulsio fetichista a colecio- nar ¢ exibir que dava forma ao muscu imaginario do empirismo de classe média. O museu — como moderna casa-fetiche do arcaico — tornou-se a instituigao exemplar que dava corpo 4 narrativa vitoriana do progresso, No muscu do arcaico, a anatomia da classe média assu- miu forma visivel (Figura 1.8). 45. Apud idem, op. cit. p.127. ” Couro imperial Figura 1.8 ~ Espaso anacronice: A invvengito de arcaic, Entretanto, na compulsao de colecionar ¢ reproduzir a histéria toda, © tempo — precisamente quando aparece mais histérico — se detém em suas pegadas. Nas imagens do tempo panéptico, a histéria aparece estatica, fixa, coberta de pocira. Paradoxalmente, entio, no ato de tornar © tempo mercadoria, a mudanga histrica — especialmente 0 trabalho de mudar a historia — tende a desaparecer. A csta altura, aparece outro tropo. Pode ser chamado de invencao do espaco anacronico,e ele alcangou plena autoridade como tecnologia ad- ministrativa ¢ reguladora ao final da cra vitoriana. Dentro desse tropo, a atuacao das mulheres, dos colonizados da classe trabalhadora é negada © projetada num espago anacrénico: pré-histérico, atdvico e irracional, inerentemente deslocado no tempo histérico da modernidade. Segundo a versio colonial desse tropo, 0 progresso imperial no ¢s- paco do império € figurado como uma jornada para tris no tempo até uum momento anacrénico da pré-histéria. Por extensao, a jornada de re~ ei ai ila AAC tk aaah A situagae da terra ~ Genealogias de imperiatirme torno a Europa é vista como um ensaio da légica evolucionista do pro- gresso histrico para frente e para o alto até o apogeu do Tluminismo na metrépole curopeia. A diferenca geografica através do espago é figurada como uma diferenga historica através do tempo. O idedlogo J.-M. Dege- rando captou essa nogdo concisamente: “O viajante filosdfico, velejando até os confins da terra, esti de fato viajando no tempo; esta explorando o passado”*. A ameagadora € resistente heterogencidade das colénias exa contida ¢ disciplinada ndo porque social ou geograficamente dife- rente da Europa ¢, portanto, igualmente valida, mas porque femporal- mente diferente e, portanto, irrevogavelmente superada pela histori Hegel, por exemplo, talvez © proponente filosdfico mais influente dessa nogio, figurava a Africa como pertencendo nio simplesmente a um espace geogrifice diferente, mas a uma zona temporal diferente, sobrevivendo anacronicamente dentro do tempo da historia. A Africa, diz Hegel, “nao é parte histérica do mundo desenvolvimento a exibir™”. A Africa veio a ser vista como paradigma colonial do espago anacrénico, uma terra perpetuamente fora do tempo na modernidade, a deriva ¢ historicamente abandonada. A Africa era uma terra-fetiche, habitada por canibais, dervixes e curandeiros, aban- nao tem movimento ou donada na pré-histéria exatamente antes que o Wéltgeist (insidioso agente da raz4o) se manifestasse na histéria. Na metrdpole industrial, a evocagao do espaco anacrénico (a inven- G80 do arcaico) se tornou central para o discurso da ciéncia racial e da vigilancia urbana das mulheres e da classe trabalhadora. Os cientistas raciais ¢, mais tarde, os eugenistas viam as mulheres como o inerente- mente atévico arquivo vive do arcaico primitivo. Para alcangar os padrdes empiricos dos cientistas naturais era neces- sério inventar estigmas visiveis que representassem — como espeticulo mercantil — 0 anacronismo historico das classes degeneradas. Como observou Sander Gilman, uma resposta foi encontrada no corpo da mu- 46. Joseph-Marie Degerando, Ter Otservation of Savage Peoples, F.C.TT. Moore, org, (Berke- ley: University of California Press, 1969 [:800]). 4. William Pietz, “The Problem of the Fetish, II", Res 13 (Primavera, 1987), p. 45. Coure imperial Iher africana, que se tornou © protétipo da invengao vitoriana do atavis~ mo primitivo, “No século XIX,” diz Gilman, “a mulher negra era perce- bida como possuidora nao s6 de um apetite sexual ‘primitive’, mas também dos sinais externos desse temperamento — drgaos sexusis pri- mitivos”**, Em 1810, a exibigdo da africana Saartjie Baartman tornou-se 9 paradigma da invengao do corpo feminine como anacronismo. O eu- posto excesso dos genitais dessa mulher (representados que eram por um excesso de visibilidade do clitdris na figura do “ayental hotentote”) foi superexposto ¢ patologizado diante do olhar disciplinar da ciéncia médica masculina e do publico voyeur, Cuvier, em sua notéria medica- ligago de seu esqueleto, comparou a mulher da “mais baixa” espécie humana ao “mais alto macaco” (0 orangotango) vendo uma afinidade atavica ua apuéucia andunla do “orgdo de geracdo” da mulher negra. Como em Lineu, a reprodugio sexual servia como paradigma da ordem ¢ da desordem soci Na superexposi¢ao dos érgios genitais africanos ¢ na patologizacio médica do prazer sexual feminino (especialmente o prazer clitoridiano, que estava fora da teleologia reprodutiva da heterossexualidade mas- culina), os cientistas vitorianos encontreram um fetiche para incorporar, medur ¢ embalsamar a ideia do corpo teminino como espago anacrdnico. Assim, uma contradigo na formacio da classe média (entre sexualidade clitoridiana — sexo para o prazer feminino — e sexualidade reprodu- tiva — sexo para o prazer masculino e geragio de filhos) era projetada no dominio do império ¢ na zona do primitivo. Como érgio inerente- mente inadequado, diz Freud, “o érgio genital feminino é mais primi- tivo que o masculino”¢ 0 clitoris “é o protétipo normal dos drgios infe- riores”5°, Como anacronismo histérico, ademais, o imaturo clitéris deve 48. Sander Gilman, Difference and Parbology: Stereotypes of Sexuality, Race and Madness (Isha ca: Cornell University Press, 1985), p. 45. 49. Baartman foi exibida pela Europa por cinco anos. Em 1829 uma mulher hotentote nua,a “Venus hotentote”, foi a principal atragio de um baile dado pela Duquesa du Barry em Paris. y0. Freud, “Fetishism’, in The Standard Edition of the Complete Peychologucal Works of Sigmund Freud, trad. James Strachey (Londres: The Hogarth Press, 1927, vol. VIN), p. 157. Ver 74 aes ease wens A situasdo da terra - Genealogias do imperialismo bidos amplamente como os meios fundamentais para controlar a satide a riqueza do corpo politico imperial masculino, de tal forma que, na virada do século, a pureza sexual surgia como metifora de controle para o poder racial, econdmico ¢ politico“. Na metrépole, como mostra Anna Davin, a populagio era poder, ¢ as sociedades para a promosio da higie~ ne piiblica floresciam, enquanto a criagdo dos filhos ¢ o aperfcigoamen- to do estoque racial se tornavam um dever nacional e imperial. A inter- vengio do Estado na vida doméstica aumentava rapidamente. O temor pela destreza militar do exército imperial era exacerbado pela Guerra dos Béeres, com a descoberta dos fisicos mofinos, os maus dentes ¢ a m4 satide dos recrutas oriundos da classe trabalhadora. A maternidade era racionalizada com a pesagem ¢ mensuracdo dos bebés, a arregimentasio dos horirios domésticos e a administragao burocritica da educagaio do- méstica. Mulheres “improdutivas” (prostitutas, mies solteiras, solteira- nas) ¢ homens “improdutivos” (gays, desempregados, empobrecidos) me- reclam um oprdbrio especial. Aos olhos dos romadores de decisées administradores, as fronteiras do império podiam ser asseguradas ¢ mantidas apenas pela disciplina ¢ decoro domésticos, com a probidade sexual ¢ a sanidade moral. Se, na metrépole, como escreve Ann Stoler, “x deterioragio racial era considerada resultado da torpeza moral e da ignorancia das mies das classes trabalhadoras, nas colénias os perigos eram mais generalizados ¢ as possibilidades de contaminacio, piores”*’. Ao final do século, medidas administrativas cada vez mais vigilantes foram tomadas contra relagdes domésticas abertas ou ambiguas, contra 0 concubinato, contra costumes mestigos. 64, Ver Anna Davin, “Imperialism and Motherhood", History Werkshop s (Primavera, 1978), PP. 9°65, 65, Ann Laura Stoler,"Carnal Knowledge and Imperial Power: Gender, Race and Morality in Colonial Acia,"in Micaela di Leonardo (org ), Gender at the Crotireads of Knowledge: Feminise Anthropology in the Postmodern Era (Betkeley: University of California Press, 1991), P.74 Conre imperial A mestigagem (unio inter-racial) em geral e 0 concubinato em particular representavam omaior perigo para a pureza racial e para a identidade cultural em todas as suas formas. Através do contato sexual com mulheres de cor, os europeus “contraiam” nao sé doengas como também sentimentos inferiores, inclinagdes imorais ¢ extrema suscetibilidade a estados incivilizados®. Nos proximos capitulos, examino como as mulheres que cram colo- cadas de maneira ambigua na divisao imperial (enfermeiras, babas, go- yernantas, prostitutas e serventes) serviam como marcadoras de frontei- ras ¢ mediadoras. Com as tarefas de purificagio ¢ manutengio de fronteiras, elas eram especialmente fetichizadas como perigosamente ambiguas e contaminantes. A forga social da imagem da degeneracio cra dupla. Primeiro, as classes ou grupos sociais eram descritos com frequéncia como “ragas”, “grupos estrangeiros”, ou “corpos nao nativos”¢, assim, podiam scr isola~ dos como biolégicos e “contagiosos” e nio como grupos sociais. O “resi- duo” cra visto como os margin: progresso, nao por alguma incapacidade de lidar com o capitalismo in- dustrial, mas por uma degenerago orginica da mente ¢ do corpo. A pobreza e a angtistia social eram vistas como falhas biolégicas, uma pa- tologia organica no corpo politico que significava uma ameaga cronica & riqueza, satide ¢ poder da “raga imperial”. Segundo, a imagem exalava um sentido da legitimidade e urgéncia da intervengao do Estado, nio sé na vida publica, mas também nos ar- ranjos domésticos mais intimos da metropole e da colonia, Depois da década de 1860, houve uma vacilagao da f€ nos conceitos de progresso individual e de perfectibilidade’. Se a filosofia do Huminismo tentara reescrever a histéria em termos do sujeito individual, 0 século XIX fazia grande ntimero de sérios desafios & histéria, como o heroismo do pro- gresso individual. Nao cra possivel confiar em que politicas de /aissez irredimiveis que davam as costas a0 66. Stoler, “Carnal Knowledge. 67. Nia foi por acidente que Darwin escolheu como titulo On the Origin of Species em lugar de, digamos,a ofigem do homem. j i oA situapta da terra ~ Genzalagias do imperialisma {faire por si sés pudessem lidar com os problemas da pobreza ou acalmar o medo da insurreicao da classe trabalhadora. “Em tais circunstancias, 0 problema da degenerasio e da concomirante pobreza cronica teriam de ser resolvidos cm tiltima instancia pelo Estado”, A utilidade de meta- foras quase biolégicas como “tipo”, “espécie”, “género” e “raga” estava em qne clas davam expressio a ansiedades sobre a insurrcigio de classe ¢ género sem trair a natureza social e politica dessas distingdes. Como disse Condorcet, tais metaforas faziam “da propria natureza uma ciim- plice no crime da desigualdade politica”. DEGENERAGAO E A ARVORE DA FAMILIA O dia em que, equivacanda-se sobre as acupaciies infe~ rlores que a nanureza thes deu, as mulheres deixarem o lar € passarem a tomar parte em nossas batalhas; nesse dia comesari uma revolugio social ¢ tudo 0 que mantém os lagos sageados da familia decapareceri. Le Bon Na poética da degenerescéncia, encontramos duas figuras ansiosas do tempo histérico, ambas elaboradas dentro da metéfora da familia. Uma narrativa conta a historia do progresso familiar da humanidade, da crianga nativa degenerada até o homem branco adulto. A outra narrativa apresenta u inverse: a possibilidade do declinio racial da paternidade branca para a degeneragao negra primordial encarnada na mie negra. Os cientistas, médicos ¢ bidlogos da época incansavelmente pondera~ vam a evidéncia de ambas, organizando os “fatos” cientificos e elabo- rando as miltiplas taxonomias da diferenga racial ¢ sexual, barrocas em sua complexidade e com floreios nos detalhes. Antes de 1850, duas narrativas das origens das ragas estavam em jogo. A primeira ¢ mais popular, o monogenismo, descrevia a géncse de todas as racas a partir da tinica fonte criativa em Adao. Apoiando-se na nogio 68. Jonet, Outsait London, p. 313. 69. Apud Stephen Jay Could, The Mismearure of Man (Nova York: Norton, 1981), p. 21. 85 Couro imperial de corrupsao em Plotino, como distancia da fonte originiria, os cientis- tas viam as diferentes ragas como tendo caido, de maneira desigual, da perfeita forma edénica encarnada em Adao. Simplesmente por viver em climas diferentes, as ragas tinham degenerado de maneira desigual, criando uma hierarquia intrincadamente nuangada de decadéncia, Em meadas do século, contude, comesou a ganhar terreno uma segunda mo, teoria de acordo com a qual as diferentes racas teriam surgido em lugares diferentes, em diferentes “centros de criagao””°, Desse ponto de vista, certas ragas em certos luga- res eram vistas como original, natural e inevitavelmente degeneradas”. narrativa concorrente — o poliges A prépria liberdade veio a ser definida como uma zona nao natural para os africanos. A desgraga persegue a raga que migra de seu lugar. A partir de 1859, porém, a teoria da evolugéo acabou com o manto criacionista que suportara o intenso debate entre os defensores do mo- nogenismo ¢ do poligenismo, mas contentou os dois lados apresentando um argumento ainda melhor para o racismo que compartilhavam. Os defensores do monogenismo continuavam a construir hierarquias linea res de ragas segundo seu valor mental e moral; os do poligenismo agora admitiam uma ancestralidade comum nas brumas pré-historicas, mas afirmavam que as ragas tinham estado separadas o bastante para desen- volver as principais diferencas herdadas em talento ¢ intcligéncia”, Naquele tempo, a teoria da evolugao entrou numa “alianga profana” com 0 fascinio dos ntimeros, a pletora de medidas ¢ a ciéncia da estatis~ 70. Ver Samuel G Morton, “Value and the World Species in Zoology", American Journal of Science and Arts 1 (maio, 1851), p.275;¢ Gould, The Mismeasure of Man, p.73. 71. Advertidos pelo medo da miscigenaso e pela livre movimentacio dos negros depois da aboligto da escravatura na América € nas colonias,¢ argumentando a partir das evidén- cias das mimias egipcias, os defensores do poligenismo sustentavam que as diferentes ragas sempre tiaham sido criagdes fixas ¢ separadas em seus lares em zonas ¢ com climas, diferentes em todo o mundo. Escravos libertos, por exemplo, eram vistos como “conde- nados 3 degenerasio ao se deslocarem para o Norte, para territério branco temperado, ¢ ‘20 se moverem social e politicamente em diresio 4 liberdade”. Stepan, “Race and Gen- der." p x09. 72. Gould, The Mismeasure of Mar, p.73- 86 eA cituapan da terra ~ Genealogiat da imperialiome tica. Essa alianga deu a luz o racismo “cientifico”, a mais autorizada tentativa de colocar o ordenamento social e a inaptidio social num pé bioldgico ¢ “cientifico”. Os cientistas se tornaram cativos da magia da mensuragdo. Procuravam critérios anatomicos para determinar a posico relativa das ragas na série humana, Francis Galton (1822-1911), pioneiro da estatistica e fundador do movimento da eugenia, ¢ Paul Broca, cirur- gio clinico ¢ fundador da Sociedade Antropolégica de Pacis (1859), ins piraram outros cientistas que os seguiram na vocagi0 de medir 0 valor racial a partir da geomcuia do corpo humane. Ao witériv anterior da capacidade craniana como medida principal da posigao racial ¢ sexual acrescentava-se agorauma pletora de outros critérios “cientificos”: primento e a forma da cabega, o prognatismo, a distancia entre o topo da cabera € a sobrancelha, a cabega chata, o perfil em focinho, o antebrago longo (caracteristico dos macacos), panturrilhas subdesenvolvidas (ma- cacos novamente), orelha simplificada e sem Idbulo (considerada estig- ma de excesso sexual, notavel nas prostitutas), a colocagao do furo na base do esqueleto, a lisura do cabelo, o comprimento da cartilagem nasal, o achatamento do nariz, os pés preénscis, testas baixas, rugas excessivas e pelos faciais. Os tragos do rosto mostravam o cardter da raga. com- Cada vez mais, apelava-se a esses estigmnas para identificar e discipli- nar as “ragas” atavicas dentro da raga curopeia: prostitutas, irlandeses, judeus, desempregados, criminosos e loucos. Na obra de homens como Galton, Broca ¢ o médico italiano Cesare Lombroso, a geometria do corpo correspondia & psique da raga. O que é aqui de importancia imediata é que 0 caos de critérios in- ventados para distinguir a degenerescéncia foi finalmemte reunido numa narrativa histérica dinimica por uma metéfora dominante: a Familia do Homem. O que fora um desorganizado ¢ inconsistente inventirio de 73: dem, op. cit.,p.74. 74. Na década de 1820, Samuel G. Morton tinha comecado a reunie sua vasta colegio de crinios humanos de todo o mundo, mesclando uma incansivel medisio de suas capaci- dades eranianee com ceu ébvio faro para a invensao interpretativa e engenhoridade, ela borando nessa base seu famoso tratado sobre o cariter da raga, Crania Americana (Fila- délfia: John Pennington, 1859). 87

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