Você está na página 1de 67

FILOSOFIA DA

NATUREZA
PROF. DR. RENATO MORAES
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
REITOR

Reitor:
Dr. Roberto Cezar de Oliveira
Pró-Reitoria Acadêmica
Maria Albertina Ferreira do
Nascimento
Diretoria EAD:
Prezado (a) Acadêmico (a), bem-vindo (a) à Prof.a Dra. Gisele Caroline
UNINGÁ – Centro Universitário Ingá.
Novakowski
Primeiramente, deixo uma frase de Sócrates
para reflexão: “a vida sem desafios não vale a
PRODUÇÃO DE MATERIAIS
pena ser vivida.”
Diagramação:
Cada um de nós tem uma grande Edson Dias Vieira
responsabilidade sobre as escolhas que Thiago Bruno Peraro
fazemos, e essas nos guiarão por toda a vida
acadêmica e profissional, refletindo diretamente Revisão Textual:
em nossa vida pessoal e em nossas relações Camila Cristiane Moreschi
com a sociedade. Hoje em dia, essa sociedade
é exigente e busca por tecnologia, informação Danielly de Oliveira Nascimento
e conhecimento advindos de profissionais que Fernando Sachetti Bomfim
possuam novas habilidades para liderança e Luana Luciano de Oliveira
sobrevivência no mercado de trabalho. Patrícia Garcia Costa
De fato, a tecnologia e a comunicação têm Renata Rafaela de Oliveira
nos aproximado cada vez mais de pessoas,
diminuindo distâncias, rompendo fronteiras e
Produção Audiovisual:
nos proporcionando momentos inesquecíveis. Adriano Vieira Marques
Assim, a UNINGÁ se dispõe, através do Ensino a Márcio Alexandre Júnior Lara
Distância, a proporcionar um ensino de qualidade, Osmar da Conceição Calisto
capaz de formar cidadãos integrantes de uma
sociedade justa, preparados para o mercado de Gestão de Produção:
trabalho, como planejadores e líderes atuantes.
Cristiane Alves
Que esta nova caminhada lhes traga muita
experiência, conhecimento e sucesso.

© Direitos reservados à UNINGÁ - Reprodução Proibida. - Rodovia PR 317 (Av. Morangueira), n° 6114
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

01
DISCIPLINA:
FILOSOFIA DA NATUREZA

O QUE É FILOSOFIA DA NATUREZA.


NATUREZA. ATO E POTÊNCIA
PROF. DR. RENATO MORAES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO.................................................................................................................................................................5
1. FILOSOFIA DA NATUREZA, DEFINIÇÃO E RELAÇÃO COM OUTROS RAMOS DA FILOSOFIA.............................6
1.1 DEFINIÇÃO DE FILOSOFIA DA NATUREZA.............................................................................................................6
1.1.1 FILOSOFIA DA NATUREZA COMO FILOSOFIA.....................................................................................................6
1.1.2 A FILOSOFIA DA NATUREZA E OS ENTES MATERIAIS...................................................................................... 7
1.2 CONCEITO DE NATUREZA......................................................................................................................................8
1.2.1 SENTIDOS ANALÓGICOS DE NATUREZA............................................................................................................8
1.2.2 O CONCEITO FILOSÓFICO PRIMÁRIO DE NATUREZA......................................................................................9
1.2.3 O DINAMISMO E A NATUREZA.......................................................................................................................... 10

WWW.UNINGA.BR 3
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2. O ATO E A POTÊNCIA............................................................................................................................................... 11
2.1 AS POSIÇÕES DE PARMÊNIDES E DE HERÁCLITO............................................................................................. 11
2.2 O PAR ATO E POTÊNCIA........................................................................................................................................ 13
2.3 OS TIPOS DE POTÊNCIA E DE ATO...................................................................................................................... 14
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................ 16

WWW.UNINGA.BR 4
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

O primeiro que conhecemos são os seres materiais. Nossos sentidos se deparam com
eles de maneira imediata. Pouco a pouco, vamos nos habituando a eles e entendendo suas
características, que são captadas por nós.
O conhecimento humano chega a ideias e conceitos a partir do que é apreendido pelos
sentidos. Esta é uma tese aristotélica, que apresenta força e interesse. Por isso, os entes materiais
são nossa primeira experiência. Porém, não paramos naquilo que vemos, cheiramos ou tocamos:
alcançamos algo que subjaz aos fenômenos, àquilo que podemos experimentar.
Há um universo, um todo, um cosmos ao nosso redor. Filosofaremos a respeito dele.
Em nossa disciplina, o objeto de estudo serão os entes móveis, as coisas que se alteram, que são
geradas e se corrompem. Não as analisaremos enquanto vivas ou inanimadas, mas enquanto
materiais.
Veremos alguns conceitos que serão posteriormente aprofundados na metafísica e
empregados na ética, na teoria do conhecimento e na antropologia filosófica. Daí a importância
de adquirir uma base sólida no estudo da natureza. Por ela, começamos a filosofar, inclusive
porque é mais fácil partir daquilo que está mais ao nosso alcance. E o primeiro conhecimento que

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


obtemos, conforme explicamos antes, é aquele através dos sentidos, que capta os objetos naturais
que nos circundam e que nós mesmos somos, ao menos em certa medida. A partir do sensível,
temos ampla matéria para discussão.
Posteriormente, poderemos chegar ao metafísico, ao imaterial, que serve de fundamento
para toda a realidade, incluindo a física. Também na contraposição com os entes naturais,
entenderemos a liberdade humana, o que ela significa, bem como a potência cognitiva do ser
humano. Na Ética, veremos como a natureza humana pode ser desenvolvida plenamente, de
modo semelhante, ainda que não idêntico, a como os outros entes animados atualizam suas
potencialidades.
Nossa disciplina tem um caráter estrutural na Filosofia. Não é o campo mais importante,
pois a Filosofia primeira, desde Aristóteles, no que foi acompanhado pelos pensadores clássicos,
é a Metafísica. O ser humano é mais complexo do que os seres materiais não espirituais, o que
permite uma análise mais profunda e rica. Mas é na Filosofia da Natureza que começamos a
aprender a contemplar o mundo filosoficamente, obtendo noções que nos ajudarão em nossa
tentativa de nos aproximarmos da Sabedoria.

WWW.UNINGA.BR 5
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1. FILOSOFIA DA NATUREZA, DEFINIÇÃO E RELAÇÃO COM OUTROS


RAMOS DA FILOSOFIA

1.1 Definição de Filosofia da Natureza

Uma das definições da Filosofia da Natureza, chamada de Física pelos antigos, é o estudo
da extensão, do movimento e do tempo. De fato, esses três aspectos estão presentes no mundo
material em que vivemos e sobre os quais refletiremos. O movimento, com tudo o que gira ao
redor dele, é o eixo da filosofia da natureza. Quem se movimenta são as substâncias, dotadas
de acidentes. Os entes materiais têm extensão, porque esta é uma nota intimamente ligada à
materialidade. Finalmente, o tempo é uma medida do movimento que se dá nos entes físicos.
Em outras palavras, a filosofia da natureza é o conhecimento filosófico a respeito dos
entes móveis ou materiais. Nessa definição simples e inicial – em certos sentidos, insatisfatória,
mas útil –, há dois elementos que nos chamam a atenção. Primeiro, que a filosofia da natureza é
um ramo da filosofia, e não de outro tipo de saber, como a ciência ou a técnica. Segundo, que seu
objeto são os seres materiais, sujeitos à mudança. Estudaremos agora cada um desses aspectos.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


1.1.1 Filosofia da natureza como filosofia

Sendo parte da filosofia, nossa disciplina não se satisfaz com um conhecimento parcial
e limitado do seu objeto. Antes, procura compreender suas causas primeiras, seus fundamentos:
chegar às suas explicações mais profundas e radicais. Não basta, para o filósofo, constatar que um
objeto pesa ou que ele esquenta e por isso se dilata, ou mesmo alcançar uma fórmula capaz de
mensurar o aumento ou a diminuição da velocidade de um planeta ou um carro. Tampouco lhe
seria suficiente averiguar que há entes que mudam de estado, sem que isso altere sua substância
ou que suas cores e formas se modifiquem sob o efeito de determinadas ações externas. Tudo isso
serve de ponto de partida para a filosofia, que procurará saber o porquê desses acontecimentos, o
que eles são de forma última e principal.
Para exemplificar, o filósofo pergunta-se o que é a cor, não simplesmente constata que
uma árvore verde se tornou marrom. Ele quer entender o fenômeno da dimensão espacial, do
volume, do peso, e não simplesmente medi-los com maior ou menor precisão. Por que as coisas
têm consistência e custa levantá-las? Pode existir matéria sem peso ou sem posição no espaço?
Por quê? Perguntas desse tipo e suas respostas são as que interessam ao filósofo.
No começo da Física, Aristóteles afirma que um conhecimento é completo quando
abarca os primeiros princípios, as causas e os elementos do item estudado (Fis., l. 1, c. 1; 184, a,
10 – 6). Alcançamos inicialmente os princípios, que se aplicam ao geral e mais usual, porque os
apreendemos melhor do que os detalhes e as particularidades. A partir deles, chegamos aos casos
menos gerais e individuais, indo por último aos elementos. A filosofia da natureza segue essa
trajetória.
Erros nos princípios levam a equívocos ainda mais graves nas causas segundas e nas
situações individuais. Além disso, não podemos admitir afirmações que vão contra o evidente ou
o necessário, que fundamentam o desenvolvimento de qualquer saber. Por isso, Aristóteles critica
o pensamento de Heráclito, de Parmênides e Melisso (Fis., l. 1, c. 2; 185, a, 5 – 12). De fato, uma
dúvida radical pode servir como método, em certa medida; porém, a partir dela, não se consegue
construir nada, caso ela seja levada às últimas consequências.

WWW.UNINGA.BR 6
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

As ciências não chegam aos princípios mais fundamentais, mas partem deles. Assim, a
química ou a biologia buscam leis, repetições de padrões, que frequentemente podem ser descritas
inclusive com o emprego da matemática. Não se questionam sobre a origem de um padrão no
universo, do porquê existe uma série de eventos que se repetem em situações semelhantes. As
ciências têm como pressuposto a existência das leis e nossa capacidade de descobri-las e formulá-
las. Elas não discutem a respeito de seus primeiros princípios, os quais são estabelecidos, validados
e articulados anteriormente pela filosofia.
Vemos aqui a importância da relação entre ciência e filosofia da natureza. Ambas têm
objetos semelhantes, mas os estudam em âmbitos distintos. São saberes complementares, não
antagônicos ou contrários. Uma filosofia da natureza consistente permite que a ciência se
desenvolva de maneira segura e confiante; os conhecimentos adquiridos pela ciência ajudam a
aprofundar e aperfeiçoar a filosofia através de novas questões que deverão ser respondidas de
maneira coerente – ou não, exigindo rupturas – com o que se considerava antes verdadeiro.
Alguns autores sustentam que a ciência se preocupa com os fenômenos, relacionados às
manifestações exteriores e sensíveis dos entes, enquanto a filosofia se voltaria para o que está por
trás de tais fenômenos, que talvez não seja evidente, mas é alcançável pela reflexão. Essa divisão
não é exata, porque também a filosofia se preocupa com os fenômenos, mas serve como um
parâmetro. A filosofia vai além do sensível, enquanto a ciência física está mais presa à experiência.
A reflexão filosófica é mais profunda e radical que a científica, sem que isso tire o mérito
e a importância do labor levado a cabo pelos cientistas. Ao mesmo tempo, a filosofia parte do que

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


é apreendido pelos sentidos e pelo senso comum, enquanto a ciência se fundamenta em meios de
percepção cada vez mais sofisticados para avançar. Daí o surgimento de microscópios eletrônicos,
estações espaciais, telescópios em satélites, aceleradores de partículas etc. Isso é necessário e
benéfico. Porém, a filosofia precisa chegar a respostas que sirvam tanto para a realidade que
percebemos com os sentidos como para o que pode ser observado apenas com aparelhos de
grande alcance.
Não é nosso tema tratar das relações entre filosofia e ciência. Mas podemos adiantar que
é na filosofia da natureza que esses tipos de saberes podem estabelecer um diálogo fecundo para
ambos, se não houver desprezo mútuo ou cegueira. A ciência e a filosofia têm muito a ganhar com
a harmonia e a curiosidade recíprocas.

1.1.2 A filosofia da natureza e os entes materiais

A existência de seres materiais e mutáveis é verificada de modo imediato pelos nossos


sentidos e rapidamente entendida por nossa inteligência. Negá-la seria absurdo ou levaria
a formular argumentos simplesmente pelo gosto da discussão. Poderíamos inquirir sobre a
existência das coisas, o que as fundamenta, bem como o que significa um ente. Porém, esses são
aspectos tratados pela Metafísica, que é o estudo do ente enquanto ente, e não dele como algo
móvel. O ente material, sujeito ao movimento, é o que interessa para a filosofia da natureza, que
é uma filosofia segunda em relação à Metafísica, que é a filosofia primeira.
A respeito da relação entre entes e matéria, percebemos que há seres que estão, conceitual
e existencialmente, ligados à matéria. Assim ocorre com uma pedra determinada, um ser humano
qualquer, uma árvore ou um cachorro. Mesmo o conceito universal ligado a esses entes incluirá a
materialidade. Portanto, eles são entendidos e existem ligados à matéria.
Ao lado deles, temos entidades que existem efetivamente apenas na matéria, mas podem
ser pensadas, concebidas independentemente de algo material. É o que se dá com as figuras
geométricas e os elementos matemáticos. Podemos refletir sobre o conceito de ponto abstraindo
da matéria, ainda que um ponto só exista realmente, em si, ligado a algo material. O mesmo vale
para o triângulo e para o círculo.

WWW.UNINGA.BR 7
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Finalmente, há os entes que existem e são concebidos independentemente da matéria.


Para Tomás de Aquino e Aristóteles, seriam Deus e as substâncias separados, ambos objetos
da Metafísica. Também entram nessa categoria os conceitos que podem ou não estar ligados
à matéria, como substância, essência, ato, potência etc. Eles são aplicados a entes materiais e
imateriais; por isso, podem ser concebidos independentemente da matéria. São, portanto, noções
metafísicas, mas que começam a ser estudadas no âmbito da filosofia da natureza, porque elas se
são necessárias para explicar os entes compostos de matéria e forma.
Como podemos imaginar, a filosofia da natureza dirá respeito aos entes ligados à matéria
em termos conceituais e existenciais.

A filosofia da natureza, de Jacques Maritain, Edições Loyola.


Esse livro ressalta a importância da filosofia da natureza, mostrando as trans-
formações por que ela passou, desde a Antiguidade até os tempos atuais. As dis-
cussões em torno da ciência moderna são instigantes. Em seus aspectos funda-
mentais, é uma obra que segue atual.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


1.2 Conceito de Natureza

A fim de estabelecermos o que é natureza, partiremos de seus sentidos analógicos. Ou seja,


significados próximos, mas não exatamente iguais, que se complementam e apontam diferenças
para as quais precisamos estar atentos.
A seguir, veremos o conceito básico de natureza, que serve de fundamento para os outros.
Tal noção é de grande importância filosófica e implica uma visão de mundo realista, que não
depende da subjetividade humana para existir em si mesma.
Por fim, analisaremos a relação entre natureza e dinamismo, que é uma característica
entre os seres materiais, que se relacionam constantemente uns com os outros.

1.2.1 Sentidos analógicos de natureza

A palavra “natureza” é empregada em acepções distintas, ainda que apresentem relações


umas com as outras.
Primeiramente, a natureza pode ser entendida em sentido metafísico ou físico. No
metafísico, é aquilo que determina que algo seja o que é; mais exatamente, é o princípio das
operações de um ente. Nesse significado, a natureza está próxima da essência, embora, na primeira,
esteja sublinhado o aspecto operativo da existência, enquanto, na segunda, privilegia-se o aspecto
estático e ontológico. O sentido metafísico é mais amplo do que aquele empregado na noção
de filosofia da natureza, porque abrange inclusive seres imateriais, que também possuem uma
natureza. Afinal, tudo que é, material ou imaterial, o é de determinado modo, com operações que
lhe são próprias; isso é estabelecido pela natureza.

WWW.UNINGA.BR 8
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

No sentido físico, a natureza abarca os entes materiais, que estão sujeitos ao movimento
e apresentam características próprias, ausentes nos seres imateriais. Com nossos sentidos,
percebemos esses seres – dentre eles, nós mesmos – e podemos refletir sobre eles. Tais entes
formam a natureza, o cosmos, o que acrescenta uma nova nota: certa harmonia e ligação entre os
distintos seres materiais, formando um todo, em certo sentido interdependente.
Podemos contrapor a noção de “natureza” àquelas de “artificial”, “cultural”, “espiritual” e
“sobrenatural”. Artificial é tudo o que foi produzido pela intervenção do ser humano, comumente
através de uma arte. Tal intervenção conta e se vale das características naturais do objeto no qual
incide, mas acrescenta algo a ele, por vontade do artífice. Outro modo de entender o artificial é o
que foi obrigado, que não surgiu sem intervenção, mas é fruto de uma opção que vai contra uma
inclinação primeira e “natural”.
“Cultural” é frequentemente usado em antítese a “natural”, especialmente na filosofia
moderna e contemporânea. Nessa acepção, o natural é aquilo espontâneo, que não depende de
uma ação humana para se realizar. O cultural, ao contrário, é fruto do agir humano, transmitido de
geração em geração, fixando-se na linguagem, em costumes e expressões. A cultura vai moldando
o ser humano antes que ele seja consciente disso, enquanto a natureza seria aquilo que está em
estado puro, cru, decorrente de elementos biológicos e físicos.
Também se pode distinguir entre natural e espiritual. Então, o natural seria o propriamente
material, aquilo que reage de acordo com suas leis intrínsecas e imutáveis, enquanto o espiritual
apresenta o reino da liberdade, das possibilidades, do conhecimento e da intimidade.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


Por fim, o natural seria distinto do sobrenatural. Este estaria ligado a uma relação com
a divindade, a uma dádiva superior à natureza, às quais o ser humano e as demais criaturas não
teriam acesso por si mesmas. O natural seria aquilo que se conhece, faz e se comporta conforme
as forças da natureza, ao que é habitual e normal.
Em todas as acepções que estamos utilizando, a natureza tem um sentido analógico,
não unívoco. É fácil perceber a relação entre tais acepções. O artificial, quando estabelecido e
assumido como característico de um povo ou um grupo social menor, forma a base do cultural.
Além disso, a cultura influencia as distintas artes e os objetos artificiais produzidos nas várias
épocas e lugares. A cultura e as artes são manifestações espirituais, exatamente porque nelas
entram a liberdade e as escolhas dos artífices e promotores da cultura. Finalmente, a religião e o
sobrenatural influenciam as distintas faces da existência humana, tanto no âmbito cultural como
no comportamental.

1.2.2 O conceito filosófico primário de natureza

A natureza é princípio ou causa do movimento e da quietude naquilo em que ela


se encontra de modo originário, essencial, ou seja, não acidental. Essa é a definição proposta
por Aristóteles (Fis., l. 2, c. 1; 192, b, 20 – 23). Há entes que apresentam em si, como são, um
princípio de movimento e de quietude. Esse movimento dirá respeito ao local, ao crescimento ou
diminuição, e às alterações qualitativas. O princípio em questão não existe nos entes artificiais
enquanto artificiais, pois eles têm a sua forma a partir da intervenção de terceiros, que os moldam
conforme um plano (Fis., l. 3, c. 1; 200, b, 12 – 3 e l. 2, c. 1; 192, b, 8 - 23). Daí a diferença deles
em relação aos entes naturais.
A natureza nos explica por que os entes agem de certo modo. Os filósofos que a negam
acabam por simplesmente descrever os fenômenos, como se eles ocorressem de maneira fortuita,
sem uma razão que venha do modo de ser e agir intrínseco do ente. A natureza mostra a consistência
da realidade, que é, em si mesma, independente de como a apreendemos ou entendemos. Por ela,
os entes se moverão ou permanecerão em repouso, a não ser que um princípio extrínseco os afete.

WWW.UNINGA.BR 9
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Os entes influenciam uns aos outros em termos materiais, conforme estudaremos mais
adiante. Tais influências apenas são possíveis por características próprias de cada ente, tanto
do influenciador quanto do influenciado. Essas características são advindas da natureza, que é
justamente o que torna possível e inicia o movimento e a mudança a que todos estão sujeitos.
O cultural e o artificial usam das notas naturais dos entes para construir coisas novas, com
um sentido específico, entendido e realizado pelo artífice. Ademais, no ser humano, o espiritual
e o natural andam juntos, porque somos entes dotados de matéria e espírito. Logo, é natural
para o ser humano comportar-se como um ser espiritual, no qual estão presentes as distintas
possibilidades da liberdade.
A natureza faz com que o ente se desenvolva e se mantenha na existência. Por outro
lado, quando ela se enfraquece, o princípio do movimento vai se incapacitando de garantir a
integridade do ente. Isso pode-se dar pela influência do exterior, bem como por um esgotamento
da força da natureza. Dizemos que a morte é natural no sentido de que ela sempre sucede aos
seres vivos materiais. Ao mesmo tempo, de maneira mais exata, ela decorre não propriamente da
natureza do ente, e sim da debilitação e final destruição dessa natureza como princípio.

1.2.3 O dinamismo e a natureza

Se a natureza é o princípio do movimento, da quietude e da mudança, algo intrínseco

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


aos entes e necessariamente presente neles, observamos que o dinamismo é uma característica
dos entes materiais. Eles estão sob o influxo constante de forças, que os levariam a mudar
continuamente se não chegassem a uma situação de equilíbrio das distintas forças que recaem
sobre eles. Assim, o próprio equilíbrio não é a ausência de influência mútua entre entes, mas o
resultado de influências que, de certo modo, se anulam.
Os entes apresentam-se, têm suas características conforme o que são. Serão mais ou menos
duros, pesados, de forma definida, coloridos, quentes ou frios de acordo com sua natureza. As
células e átomos organizam-se de determinada maneira, fazendo com que cada coisa seja distinta,
com suas notas específicas. A partir dessa base, mudam o seu entorno e, ao mesmo tempo, sofrem
alterações por virtude dele.
A gravidade universal é um exemplo dessa constante influência material que os entes
causam reciprocamente. Uma pedra situada na beira de um lago sofre a força da superfície,
impedindo que ela caia por força do seu peso – que está intimamente ligado à atração que a Terra
exerce sobre ela – e mantendo-a em uma determinada posição. A brisa não é capaz, por si só, de
tirar a pedra de determinada posição, mas pode, pouco a pouco, gastá-la ou alterar sua forma
ou mesmo tirar o suporte de terra que sustém a pedra, levando a que, posteriormente, o peso
a derrube porque seu apoio se deteriorou. Portanto, há uma conjugação de causas e fatores que
produzem o movimento.
Podemos pensar na lava que salta de um vulcão, na força do mar, nas chuvas, em uma
avalanche, no magnetismo, na eletricidade, em uma queimada... Tudo isso mostra o dinamismo, a
natureza das coisas levando a que surjam fenômenos que podem ser explicados e compreendidos
– ao menos em certa medida – por quem os estuda.
A força da natureza se desenrola no espaço e no tempo, em estruturas que se repetem.
O dinamismo natural não costuma ser instantâneo ou imediato, mas preparado por outros
eventos mais ou menos reconhecidos. Uma árvore não cai de um momento para o outro sem
uma intervenção poderosa e externa. Essa queda pode ser rápida ou ter a aparência de imediata;
porém, é resultado de um processo longo, no qual intervieram várias causas distintas. Pode ter
havido um raio de tempestade, mas, ainda assim, o raio não foi imediato, e sim preparado durante
uma longa gestação, que começa com a evaporação da água e o acúmulo de nuvens.

WWW.UNINGA.BR 10
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Há uma espécie de sinfonia no cosmos, que pode ser harmônica ou mais dissonante, mas
que depende das causas que vão gerando efeitos, que se tornam causas de novos efeitos, e assim
por diante. Ainda que seja criticada por Aristóteles, no sentido em que foi enunciada, a expressão
“Tudo tem a ver com tudo”, de Anaxágoras, é verdadeira em muitos sentidos (ARISTÓTELES,
Fis., l. 1, c. 4; 187, b, 1 – 3; POLO, p. 50).

A reflexão sobre a natureza é sintetizada e aprofundada por Aristóteles, mas ela


se iniciou com os pensadores pré-socráticos, especialmente Heráclito. A palavra
grega physis, traduzida por natureza, vem de um verbo que significa crescer, au-
mentar, desenvolver-se. Decorre da percepção de um princípio no interior do ente,
notado inicialmente no crescimento dos vegetais.

2. O ATO E A POTÊNCIA

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


As noções de ato e potência são centrais na filosofia da natureza e compõem uma
descoberta filosófica da máxima importância, representando um avanço significativo no
pensamento. Elas foram elaboradas para solucionar uma série de questões trazidas por filósofos
anteriores a Sócrates, relacionadas ao movimento, à unidade e à diversidade dos entes. Dentre
esses filósofos, destacam-se Parmênides e Heráclito, que servirão de ponto de partida para nossas
reflexões.

2.1 As Posições de Parmênides e de Heráclito

Parmênides foi um filósofo da Magna Grécia, cidade de Eleia. Ele propôs uma explicação
radical sobre a questão do movimento, que também é surpreendente e contraintuitiva. Ele
simplesmente negou que algo pudesse mover-se.
Para Parmênides, há o Ser, aquilo que existe. Tudo que existe é parte desse ser, que seria
completo, imutável, perfeito. O que não existe, é não ser, ou melhor, não é. No movimento, algo
que é de determinada maneira muda o seu ser; ou seja, torna-se o que antes não era. No entanto,
isso é impossível, pois coisa alguma pode passar do ser para outra realidade, porque esta última
não é. Seria sair do ser para o não ser; ora, como o não ser não existe, é impossível que algo se
torne ele.
A distinção entre ser e não ser, levada às últimas consequências, conclui que não há
movimento. Algo é, ou não é, não podendo passar por estágios intermediários entre um tipo de
ser para outro, pois ou o primeiro tipo ou o segundo serão o não ser. Se o primeiro for o não ser,
dele não é possível vir ser algum, pois ele é um nada; daí que o movimento é impossível. Caso o
segundo estágio seja o não ser, ir em direção a ele não representa mudança, porque ele não existe
efetivamente.
A conclusão de Parmênides, a partir do seu entendimento do Ser, é que o movimento é
impossível. Logo, o que experimentamos como movimento é uma ilusão.

WWW.UNINGA.BR 11
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Sendo tudo parte do Ser, tampouco há diferença real entre os entes. Todos são o mesmo,
o Ser. Então, de modo similar ao movimento, a distinção entre os entes é ilusória. Na verdade,
apenas existe o uno, o ser; as supostas diferenças teriam que se fundamentar em algo que não é,
pois o que é é o Ser. Ora, isso é impossível, porque o não ser não existe, e por isso não serve como
diferença.
A explicação de Parmênides levou à negação do movimento e da diferença. Por isso, é
chamada de monismo estático. Parmênides foi estudado por Platão, que escreveu um diálogo
importante com o nome desse filósofo de Eleia.
No extremo oposto de Parmênides, encontramos Heráclito de Éfeso. Esse filósofo
considerava que o movimento era a única realidade que se mantinha, sendo todo o resto passageiro
e sem estabilidade. O que percebemos em um instante é modificado; logo, o que vemos a seguir
não é o mesmo que havia antes. O ar se move, o corpo cresce ou diminui, o cabelo cai ou cresce,
o sangue corre, vejo o que antes não via, a água do rio desce pela correnteza... Nossos sentidos
mostram essa mutação constante, que indicaria que nada existe em si, a não ser o movimento.
As coisas não são mais o que eram; portanto, deixam de ser algo para se tornar outra realidade.
Melhor: nunca tiveram uma entidade própria.
Heráclito considera que o movimento, o processo de mudança, permanece; todo o resto
é veículo mutável e descartável para esse processo. Em seus aforismos, o filósofo reconhece
a existência do logos, que garante certa ordem e previsibilidade na mudança. Apesar disso, a
diferenciação entre os entes também é, em certo sentido, ilusória, pois está fundada em seres que

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


desaparecem constantemente para dar lugar a outros, sendo que apenas o movimento e o logos
ligam essa sucessão de entes. Por isso, Heráclito chega a um monismo. Em sentido oposto ao de
Parmênides, o de Heráclito é um monismo dinâmico.
Parmênides contradiz o que os sentidos mostram, considerando-o ilusório. Heráclito
aceita parte do que os sentidos captam, o movimento, e considera que eles mostram que nada
permanece, mas tudo que existe em um momento deixa de ser e é substituído por aquilo trazido
pela mudança. A conclusão de ambos os filósofos é contraintuitiva ou pode deixar perplexo quem
as admite de maneira cabal. No entanto, ambos são coerentes com as próprias premissas e com a
parte da verdade que percebem.
Pois, por mais que consideremos as posições de Parmênides e Heráclito equivocadas, as
duas partem de verdades parciais, que eles radicalizam e empregam como ponto de vista para
compreender tudo o que existe. Parmênides captou o ser, radicalmente distinto do nada, da não
existência. Esse ser está por trás daquilo que existe, é algo compartilhado por todos os entes. Por
sua vez, Heráclito voltou-se para a mutação dos entes, o fato de que o mundo material está em
constante mudança, o que indica uma limitação ou falta de plenitude daquilo que é.
Se foram capazes de abarcar aspectos da verdade, os dois filósofos chegaram a
conclusões insatisfatórias. A explicação que apresentam para o movimento – negando-o, no
caso de Parmênides; realçando-o exageradamente, como fez Heráclito – vai contra a própria
possibilidade de o sujeito pensar e exprimir uma explicação. É preciso conjugar o movimento
com a permanência de algo. As noções de ato e potência procurarão resolver essa dificuldade.

WWW.UNINGA.BR 12
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2.2 O Par Ato e Potência

Para parte significativa da filosofia moderna e contemporânea, a concepção do que é,


o ente, está relacionada àquilo que pode ser imediatamente percebido ou apreendido de modo
particular pelos sentidos. As filosofias empíricas, materialistas e positivistas privilegiam esses
elementos sensíveis, dizendo que os entes são aquilo que eles manifestam. É uma espécie de
retrato das coisas: o que são neste instante e o que podemos delas captar. Ir além disso seria
recorrer a ficções ou complicações. Segundo essas correntes, existiriam apenas realidades sensíveis
e materiais.
Esse modo de pensar tem uma visão estática do ente: importa-lhe apenas o que as
realidades são agora, sem levar em conta aquilo a que podem tender ou de onde vieram. Ao
menos, nada disso seria relevante, e seria temerário, ou mesmo equivocado, tentar descobrir, a
partir do que algo é, aquilo que ele pode ser ou o que era. Um ovo fecundado é apenas isso, não
algo tendendo a se tornar uma galinha crescida; o mesmo vale para as sementes das árvores ou o
corpo de um animal filhote.
De certo modo, com todas as diferenças que há entre pensamentos muito distantes em
conteúdo e tempo, as visões de Heráclito e de Parmênides, de modo similar a esses pensadores
modernos, captaram um aspecto instantâneo da realidade, ainda que opostos. O dinamismo
dos entes escapa ao pensador de Eleia e ao de Éfeso, porque eles se concentram ou naquilo que

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


permanece ou na mudança: dois aspectos reais, que podem ser percebidos, mas que não são
articulados nem sintetizados.
Aristóteles foi capaz de atentar que a mudança está em germe naquilo que permanece,
no que existe em certo instante. Ela não é um mero salto a partir de um vazio ou de um nada,
como Parmênides considerava para negá-la, mas se inicia de algo prévio no ente. Além disso,
a mudança pressupõe aspectos que se mantêm, algo que existe em si mesmo e que subsiste na
mudança. Logo, não pode existir uma mudança por si mesma, como única realidade subsistente,
permanente e independente dos demais entes, conforme parece defender Heráclito.
Logo, haveria algo que é de fato, de maneira plena, imediata. Mas também há realidades
que podem ser, ainda que não sejam efetivamente. O primeiro possui um ser atual, enquanto
as segundas seriam dotadas de um ser em potência. Um exemplo que pode ajudar é o de uma
semente de palmeira. Em ato, ela é a semente, aquilo que existe de forma efetiva e presente.
Potencialmente, ela é uma palmeira crescida, nos distintos estágios pelos quais a árvore passa
para se tornar adulta. Também é, potencialmente, alimento de alguma ave ou mesmo matéria
orgânica a ser consumida pela terra.
O potencial não tem a mesma força, intensidade ou presença do atual. Contudo, ele não
se confunde com o não ser. Um cavalo não tem potência para pensar ou se tornar um rato ou uma
pedra; porém, tem potência para aprender a cavalgar guiado por um ser humano, para crescer se
ainda é um potro ou para servir de alimento para outro animal.
Para que algo seja atual, antes ele foi potencialmente. Uma estátua surge de uma
quantidade da matéria da qual ela foi esculpida. Se essa matéria não fosse apropriada para fazer
a estátua, não haveria potência. Logo, seria impossível que o artista atualizasse a matéria informe
em uma estátua. Mas, como aquela matéria era potencialmente a estátua, foi possível ocorrer a
transformação.
Ainda que possa parecer o oposto, o ato precede a potência. Qualquer ente, para ser
atualizado, depende de algo que já esteja em ato. Analisaremos isso melhor ao estudarmos o
movimento. Aqui, basta citar que, para a concepção de uma criança, são necessários dois adultos
em ato; para esquentar a água, precisamos de uma fonte de calor atual, e assim por diante.

WWW.UNINGA.BR 13
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Além disso, apenas somos capazes de descobrir as potências se pensamos ou já


apreendemos os atos a elas ligados. Alguém teve a ideia de fazer uma estátua a partir de um toco
de madeira; a ideia estava em ato na sua cabeça para então ser fixada na matéria da madeira. Se
um aspecto jamais fosse atualizado, não perceberíamos sequer que ela estava ali em potência. A
atualidade revela a potencialidade, e não o contrário.

2.3 Os Tipos de Potência e de Ato

Podemos distinguir tipos de ato e potência a partir de suas aplicações ao ser e ao agir. O
próprio ser é um ato, que chamamos de ato primeiro, porque todos os demais atos e realidades
daquele ente dependem desse ato. O existir de um ente inanimado, bem como o viver de um ser
animado, são atos primeiros.
Aqui é importante apontar que ato não significa mover-se; pode haver ato em algo
absolutamente imóvel, se ele se apresenta como aquilo que é de maneira plena e perfeita. A
palavra ato, em português, veio do latim actus. Essa expressão latina, por sua vez, é uma tradução
de duas expressões gregas: entelechia e enérgeia.
Entelechia foi traduzida também por enteléquia, um conceito completo e perfeito. Está
relacionada ao ato estável, que se mostra no ato primeiro dos entes que mantêm a própria
existência íntegra. Enérgeia se aproxima da noção de ato enquanto ação, que normalmente se dá

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


em um movimento, ou de uma atualização de potência.
Pois bem, a enteléquia é o ato primeiro. O agir de um ente que existe é um ato segundo.
Assim, se o bronze se torna uma estátua, essa forma nova e artística é um ato segundo, dependendo
do ato primeiro do bronze. O ser humano pensa e come; tais ações são atos segundos, que apenas
se dão porque apoiados em um ato anterior, a própria existência. Se o ato primeiro faz com que
algo seja, o ato segundo o leva a agir.
Também a potência pode ser distinguida em relação ao ser e ao agir. Com relação ao ser,
um ente tem potência passiva para se tornar algo diferente do que é. Assim, um alimento pode
se tornar parte de um animal ou de uma planta. É uma potência passiva, sem uma contribuição
ativa da parte do ente que possui tal potência.
Quanto ao agir, a potência é ativa. Ela representa a possibilidade, a capacidade de que
aquele ente apresente certo comportamento. A planta que não tem defeito possui potência ativa
para crescer e se tornar adulta; o mesmo vale para os animais. Todos temos a potência ativa
da inteligência, que nos permite vir a pensar. Quando agimos a partir de uma potência que
possuímos, nós a atualizamos e realizamos um ato correspondente àquela potência. Se nos falta
tal potência, será impossível realizar a ação em questão.
O ato de uma potência é uma atualização desta. A finalidade de qualquer potência ativa é
permitir, capacitar a realização dos atos que têm nela sua origem. Portanto, também aqui vemos
que a potência está predisposta e direcionada para o ato, e não o contrário. A maneira como
as potências estão constituídas, frequentemente dependendo de órgãos físicos, mostra que elas
estão confeccionadas em função das ações que serão atualizadas a partir delas. De certo modo,
isso se dá inclusive nos seres artificiais, que têm potencialidades a serem utilizadas. Um exemplo
dentre vários é a lanterna prestes a ser acesa, ou a faca utilizada para cortar.

WWW.UNINGA.BR 14
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Assim, as potências ativas são possibilidades, aberturas para o ente. Em muitos casos,
elas não estão sujeitas à liberdade dos seus sujeitos. No ser humano, contudo, potências
importantes estão, em medidas distintas, sob o controle do sujeito. É o que se dá com as emoções,
a inteligência e a vontade. Podemos impedir o uso de um sentido externo, mas isso apenas se dá
quando colocamos um obstáculo físico para que ele se atualize (tapar os olhos ou os ouvidos, por
exemplo). Em si mesmo, os sentidos funcionam independentemente da intenção do sujeito. O
mesmo vale para alguns sentidos internos, como a imaginação e a memória.

Ainda há espaço para a filosofia da natureza em uma sociedade que coloca as


ciências naturais como o modelo do conhecimento verdadeiro? Será necessário,
ou ao menos útil, voltar a conceitos elaborados séculos antes da revolução científi-
ca?
Perguntas desse tipo são frequentemente feitas por pessoas que não perce-bem
que a própria ciência parte de uma série de pressupostos que ela não justifica. A
inteligibilidade do mundo, nossa capacidade de conhecer, a previsibilidade dos
acontecimentos, a existência de leis científicas a serem descobertas... Esses ele-
mentos, e vários outros, são demonstrados e fundamentados pela filosofia. Na

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1


ver-dade, sem a filosofia da natureza, a ciência terá dificuldade de manter seu
vigor e racionalidade.

Dois vídeos curtos, com legendas em português, sintetizam conceitos cen-trais


desta primeira unidade:
1) Act and potency (Aquinas 101), disponível em https://youtu.be/7AzrbXjDLiM.
2) Nature and natures (Aquinas 101), disponível em
https://youtu.be/rAxWroDwOZM.

WWW.UNINGA.BR 15
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesta unidade, examinamos conceitos filosóficos fundamentais para todo o entendimento


da filosofia clássica. Natureza, ato e potência são noções presentes em distintos campos da filosofia.
Isso não é arbitrário, mas resultado de representarem verdades básicas, que vemos em distintos
âmbitos da realidade.
Por isso, é importante compreender bem esses conceitos, dominá-los. A natureza é a
explicação final, em termos filosóficos, do modo de comportar-se dos distintos entes. E o ato e a
potência nos permitem uma compreensão dinâmica da realidade e, por isso, mais completa.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 1

WWW.UNINGA.BR 16
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

02
DISCIPLINA:
FILOSOFIA DA NATUREZA

MOVIMENTO, AS CAUSAS
DOS ENTES MATERIAIS
PROF. DR. RENATO MORAES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 19
1. A EXPLICAÇÃO DO MOVIMENTO............................................................................................................................20
1.1 A NOÇÃO DE MOVIMENTO.....................................................................................................................................20
1.2 TIPOS DE MOVIMENTO......................................................................................................................................... 21
1.3 OS ELEMENTOS DO MOVIMENTO.......................................................................................................................22
2. AS CAUSAS DOS ENTES MATERIAIS.....................................................................................................................24
2.1 AS QUATRO CAUSAS DA NATUREZA.....................................................................................................................24
2.1.1 A CAUSA MATERIAL E A FORMAL.......................................................................................................................25

WWW.UNINGA.BR 17
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2.1.2 CAUSAS EFICIENTE E FINAL..............................................................................................................................27


2.2 RELAÇÃO ENTRE AS CAUSAS...............................................................................................................................28
2.2.1 AS CAUSAS E A FINALIDADE..............................................................................................................................29
2.2.2 TIPOS DE NECESSIDADE E DE FINALIDADE E HILEMORFISMO...................................................................30
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................32

WWW.UNINGA.BR 18
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

Vamos agora estudar o movimento do ponto de vista filosófico. Como sabemos, não se
trata de uma descrição científica, no sentido das ciências naturais, mas de uma reflexão mais
profunda a partir do que observamos com os sentidos e abstraímos com nossa inteligência. O
movimento em sentido filosófico deve poder fundamentar e explicar o movimento que interessa
à ciência.
Conforme visto, as noções de ato e potência indicam um dinamismo nos entes, que não
se mantêm sempre de maneira estável, mas se encontram sujeitos a alterações no seu modo de ser.
A seguir, analisaremos as quatro causas presentes nos entes materiais, identificadas por
Aristóteles e que nos auxiliam a compreender a configuração de boa parte da realidade. Trata-se
de uma teoria central para o pensamento clássico, e sua riqueza permanece com as descobertas
científicas contemporâneas.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2

WWW.UNINGA.BR 19
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1. A EXPLICAÇÃO DO MOVIMENTO

Anteriormente, escrevemos que o movimento é um dos objetos mais importantes


estudados pela filosofia da natureza. Vamos estudá-lo diretamente, empregando os conceitos que
aprendemos na unidade anterior.

1.1 A Noção de Movimento


Os entes são o que são, seja em termos substanciais, seja em termos acidentais. O
movimento sucede neles, não como algo autônomo e independente, mas como uma decorrência
da essência dos entes. Os sujeitos das mudanças serão substâncias e acidentes, que representam as
categorias que abarcam todos os tipos de entes. Por isso, tal como estudaremos no próximo tópico,
há vários tipos de movimentos. O movimento depende de entes para existir, para se realizar.
O movimento foi definido por Aristóteles como o ato daquilo em potência (Fis., l. 3, c. 1;
201, a, 10 e ss.). No movimento, a potência presente no ente é atualizada; enquanto essa atualização
não se completou, ou seja, enquanto a potência continua presente no ente, temos o movimento. O
término deste se dá quando há atualização completa, desaparecendo a potencialidade, ao menos
por um certo tempo.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


A definição aristotélica do movimento é a primeira a ser elaborada na história da filosofia.
E não parece ter sido superada. Com ela, o pensador grego procura integrar o movimento ao
ser, corrigindo o aspecto estático da teoria de Parmênides. Não se trata de uma mera descrição
do movimento ou de estabelecer relações quantitativas que o meçam; é a busca daquilo que o
movimento seja, abrangendo todas as situações em que o encontramos.
É preciso levar em conta a dificuldade de definir o movimento, porque ele é uma realidade
precária e fugidia, que não existe por si mesma, mas em outros. Além disso, os movimentos
são variados e frequentemente complexos, frutos de relações entre causas e entes. Tanto é difícil
entendê-lo, que Parmênides chegou a negar o movimento por não descobrir como compaginá-lo
com a verdade de que as coisas são.
As coisas são o que são em ato. Porém, apresentam também potências, capacidades para
ser distintas, seja no nível substancial, seja no acidental. No movimento, o ente está em ato, mas
em uma das suas potências enquanto tal. Ou seja, a potência, enquanto se mantém potência, está
também em ato: isso é o movimento. É uma situação intermediária entre a simples potência e a
atualidade plena; é o trajeto entre uma e outra.
Vamos empregar um exemplo já proposto por Aristóteles. O material de construção é
em ato: tijolos, vigas, cimento, pisos... Potencialmente, eles são parte de uma casa que ainda não
existe. Na medida em que a casa vai sendo levantada, esse material está em ato a partir do ponto
de vista de uma de suas potências, que é a de fazer parte da casa. Pouco a pouco, essa potência vai
sendo atualizada: o material, que era em potência parte da casa, passa a ser efetivamente elemento
dela, juntando-se com outros materiais de construção em uma ordem específica. Quando a casa
estiver terminada, o movimento se encerrou: já não temos mais o material em potência para ser
o prédio, mas, sim, o prédio completo e atualizado.
O movimento não é apenas uma passagem de um ponto ou estado para outro, porque a
passagem também é movimento e, então, teríamos uma definição circular: o movimento é uma
passagem, e a passagem é um movimento. Antes, o movimento é o ato do ente em potência
a partir do ponto de vista de sua potência. Ou seja, é o ato do ser em potência enquanto tal
(BRAGUE, 2007, p. 177).

WWW.UNINGA.BR 20
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.2 Tipos de Movimento

Há tantos tipos de movimento quantos tipos de entes materiais. Como se trata do ato de
algo em potência, tudo o que está em potência pode se movimentar. Dependendo de qual seja o
ente em potência, teremos diversas espécies de movimentos.
A principal divisão entre as categorias de entes é a que os distingue entre substâncias
e acidentes. Estudaremos melhor essas categorias mais adiante. Agora, cabe-nos afirmar que
substâncias são os entes que têm o ser em si mesmos, e não em outros. Contrariamente, os
acidentes não são em si mesmos, mas em outros.
As substâncias são sujeitos, nelas se inserem os acidentes. Um cachorro possui uma forma
característica, é capaz de latir, tem pelos de certa cor, determinado peso, e assim por diante. Essas
características – peso, cor, forma – não são em si mesmas, mas no cachorro. Ele, por sua vez, não
é em outro, não depende de agregar-se a outro ente para existir; antes, sua existência está nele
mesmo, de maneira completa.
O ser em si das substâncias não é radical, como se elas não dependessem de coisa alguma
para começar a existir. Praticamente todas as substâncias são causadas, recebendo o ser de outras.
Porém, uma vez que são, não são em outro, mas em si. O sentido principal ou estrito de ente é
justamente a substância. Os acidentes são de maneira derivada, participada, secundária. Indicam
um modo de ser, mas não o que a coisa é no seu sentido mais radical. A orquídea é roxa: orquídea

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


é a substância; roxa é a cor, um modo como a orquídea é, um acidente.
A partir dessas distinções, podemos analisar os tipos de movimento. Os movimentos
que se dão em torno da substância dos entes são os substanciais. Tais movimentos implicam o
surgimento de uma nova substância ou o perecimento de uma que existia. Quando analisamos o
movimento do ponto de vista da substância que surge a partir dele – por exemplo, o parto de um
animal, a aparição de uma semente, a união dos átomos de hidrogênio e oxigênio para formar
uma molécula de água –, temos a chamada geração. Portanto, geração é o movimento substancial
a partir do qual aparece uma nova substância.
Além de surgirem, as substâncias perecem, são destruídas, degradadas radicalmente.
Então, como havia uma substância que deixou de existir, afirmamos que houve uma corrupção,
que é o outro tipo de movimento substancial.
A geração e a corrupção costumam dar-se simultaneamente, e nomeamos o movimento
como uma ou outra, dependendo do ponto de vista que tomamos. Para a geração de uma nova
substância, é normalmente necessária a corrupção de uma anterior. Assim, o surgimento de um
embrião animal só é possível com a corrupção, que se dá com a união entre eles, das células
reprodutoras vindas do macho e da fêmea. Tais células eram substâncias antes e deixaram de sê-lo
ao se juntarem, para gerarem um novo ente.
Também pode haver a geração a partir de algo que se desprende de um ente anterior, sem
que haja a corrupção dele. A semente de uma árvore não depende da destruição da planta que a
gerou, nem um pedaço de pedra significa que a pedreira da qual ela foi retirada sumiu. Mas há
uma separação a partir do ente anterior, do qual foi gerado o novo.
Quanto aos movimentos acidentais, eles se dão primordialmente em três tipos de
acidente: a quantidade, a qualidade e o local. O movimento mais óbvio e simples, pressuposto
pelos demais, é o movimento local. É denominado transporte local e consiste em algo que estava
em um ponto do espaço e vai para outro. Isso se dá em todos os tipos de entes físicos ou materiais
que conhecemos, com um constante movimento local dentro deles, ou deles no espaço. Assim,
o sangue circula; um animal sai da sua toca e vai em direção à presa; o alimento é digerido e se
movimenta dentro do ser vivo, e assim por diante.

WWW.UNINGA.BR 21
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Ocorrendo outros movimentos em entes materiais, podemos estar certos de que algum
transporte local sucedeu ali. Ele é o movimento mais básico, frequentemente não atinge a
profundidade do ente, mas é relevante.
O outro acidente no qual há movimento é a quantidade. Vemos que os entes aumentam
ou diminuem de altura, peso e volume. Medimos essas variações através de padrões - quilograma,
grama, centímetro, metro, litros etc. –, que nos permitem relacionar as quantidades de distintos
entes, e de um mesmo ente no decorrer de determinado período. Portanto, o movimento na
quantidade é notório. Ele pode ser de dois tipos: aumento ou diminuição.
Finalmente, o movimento acidental pode ser na qualidade. A cor, a temperatura, a forma
geométrica, tudo isso está sujeito ao movimento. Imaginemos um corpo humano que, mantendo
seu peso – ou seja, a quantidade continua igual no todo da substância –, perde gordura e adquire
músculos. Há uma mudança qualitativa na forma daquele corpo. O movimento desse tipo, ligado
ao acidente qualidade, é a alteração.
Qualquer alteração costuma pressupor o movimento local e o quantitativo. No exemplo
que demos, ainda que o peso do sujeito tenha se mantido, houve uma mudança na quantidade
de gordura e de músculos. Também sucedeu movimento local, com a gordura saindo do corpo
e os músculos crescendo através da agregação de proteínas. É comum que a mudança espacial
impacte na forma ou qualidade, bem como o peso e o volume sejam influenciados pelo aumento
de temperatura. Enfim, um tipo de mudança costuma promover outros movimentos acidentais
simultaneamente.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


Assim, temos dois movimentos substanciais: a geração e a corrupção. Ademais, quatro
movimentos acidentais: o transporte local, relacionado ao movimento espacial e ao acidente lugar;
o aumento e a diminuição, ligados à quantidade; e a alteração, relativa à qualidade. Podemos
identificar outros tipos de movimentos, ligados ao hábito, ao espaço e à relação, mas são menos
importantes que os citados antes.

1.3 Os Elementos do Movimento

Percebemos que o movimento tem princípios. Ou seja, realidades que necessitam estar
presentes para que ele se dê. Sem um princípio, não pode haver os consequentes; se o movimento
é uma consequência, ele deve estar precedido por uma série de condições, ou seja, de princípios.
O movimento inicia-se com um ente em potência, pois o movimento é exatamente o ato
desse ente. Sem a potencialidade nos entes em que o movimento ocorrerá, ele seria impossível.
Sabemos quando um movimento pode ou não se dar, justamente quando conhecemos as
potências dos entes nos quais o movimento se iniciaria. Ninguém alimentará o fogo com areia ou
fará uma cadeira com fios de ovos. O próprio movimento local depende das potências do ente a
ser mobilizado e do tipo de força a atuar nele para que sua posição local seja alterada. Algo que
está fincado ao solo com cimento não vai ser deslocado com a força bruta de apenas um homem
e suas mãos.
Podemos dizer que o primeiro elemento do movimento, portanto, é o ente em potência.
A seguir, é preciso que esse ente não esteja em ato em relação àquilo a que o movimento se
encaminha. Não há movimento em esquentar a água que já está na temperatura desejada; apenas
poderemos falar de alteração se a temperatura que se busque ainda não esteja presente na água.
Esse segundo elemento do movimento é a privação, a ausência da atualidade concreta para a qual
tende o movimento.

WWW.UNINGA.BR 22
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A privação difere da negação. Nesta, não há uma definição ou caracterização do sujeito


pela ausência de certa potencialidade ou característica, porque o natural ou próprio nesse ente
é que ele não a possua. Uma pedra não é capaz de ver e, nela, isso é uma negação, pois não a
define nem a diferencia como pedra. Afinal, nenhum mineral pode ver por não ser dotado de
sensibilidade nem de vida. A negação é a simples constatação de que algo não está ali e não era
mesmo para estar presente.
A privação define o sujeito, porque é a ausência de algo que naturalmente está presente
naquela espécie de ente. Um cavalo de três pernas está privado de uma perna, porque os cavalos
desenvolvidos e perfeitos são quadrúpedes. Porém, o fato de esse mesmo equino não ser dotado
de asas não configura uma privação, mas a negação de algo que, de fato, não lhe corresponde.
Portanto, a privação é designada apenas de determinado sujeito, em que seria inato
possuir o hábito faltante. A privação não ocorre a partir do não ente em si mesmo, mas a partir do
não ente que está em um sujeito determinado, não abstrato ou geral (não se faz o fogo a partir de
qualquer não fogo, mas de um não fogo concreto, do qual possa ser atualizada a forma de fogo).
Por isso, podemos sustentar que a privação é um princípio do movimento.
Se a privação é princípio do movimento, este não se dá com a negação. Na primeira,
subjaz a potência, que é o outro princípio; na segunda, mesmo a potência inexiste e, por isso, não
é possível haver ali um ato no sentido do movimento.
A matéria e a privação são iguais no sujeito no qual se inicia a mudança, mas diferem
em termos conceituais. O metal está desfigurado, relativamente informe, antes do advento da

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


forma que lhe será acrescentada. De um ponto de vista, é chamado de metal; aqui, ele é um ente
completo, em ato, com a forma de uma barra ou qualquer outra forma que não seja uma estátua.
Já a partir da estátua que se pretende obter, o mesmo bronze está desfigurado, porque ainda se
encontra privado da forma final.
A privação é considerada princípio, não por si, mas por acidente, porque ela evidentemente
coincide com a matéria desfigurada. No entanto, ainda que ela seja princípio por acidente, não se
deduz que seja desnecessária para a geração. Além disso, a matéria nunca é totalmente desnudada,
desfigurada pela privação. Todos esses conceitos são relativos: enquanto uma matéria está sob
uma forma, é privada de outra, e ao contrário. A madeira seca está privada da forma de cinza, e
vice-versa. Mas alguma forma sempre estará presente.
Finalmente, o terceiro princípio do movimento é a forma para a qual ele se dirige. A
forma é o ato finalizado, perfeito. Enquanto ela não se realiza totalmente, temos o movimento, a
tendência a ela.
Vemos, assim, que três são os princípios do movimento: matéria, privação e forma. A
forma é aquilo para o qual é o movimento. Os outros dois são da parte daquilo do qual se dá o
movimento.
Um exemplo pode nos ilustrar e ligar o movimento à teoria das causas. Quando do cobre
se faz uma imagem, o cobre, que é a potência para a forma da imagem, é a matéria. Aquilo que é
sem forma, ou indisposto, é chamado de privação. A figura, pela qual o cobre é considerado uma
imagem ou escultura, é a forma.
A matéria e a privação são iguais no sujeito, mas diferem na razão. Aquilo que é metal está
desfigurado antes do advento da forma; mas, por outra razão ou conceito, é chamado de metal
ou de barra. Depende do ponto de vista com que ele é contemplado. Daí a privação é chamada
de princípio não por si, mas por acidente, porque ela evidentemente coincide com a matéria que
serve de início do movimento.

WWW.UNINGA.BR 23
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Há autores que consideram que a descoberta do princípio da inércia, na Físi-ca,


tornou obsoleta a explicação clássica a respeito do movimento. O conhecimento
dos átomos e da interação entre eles propiciaria um entendimento mais direto a
res-peito da estrutura dos entes materiais, sem caber recorrer a formas e a outras
cau-sas, como a final. Ainda que essa concepção científica tenha força, a verdade
é que muitos pensadores recentes reconhecem que a física moderna pode ser
harmoni-zada com o pensamento clássico da filosofia da natureza. Na minha
opinião, não há qualquer incompatibilidade entre eles, ainda que a física não
prove a filosofia clássica nem a desminta; ambas estão em âmbitos diferentes,
que podem se com-plementar.

2. AS CAUSAS DOS ENTES MATERIAIS

Um dos temas mais importantes da filosofia clássica, no campo da física, são as quatro

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


causas dos entes materiais. É uma tentativa de explicação da estrutura dos entes físicos, de modo a
compreender seu movimento, a permanência de algo no ente enquanto outros aspectos se movem,
a unidade e a diferenciação entre os indivíduos de uma mesma espécie. Podemos afirmar que a
teoria das quatro causas decorre de uma observação ampla e – não há palavra melhor – genial da
realidade, descobrindo o que há no fundo, em termos filosóficos, daquilo que observamos.
Estudaremos agora essa teoria. Além de conhecer seus conceitos, é importante empregá-
la para identificar as causas e suas mutações no mundo que nos circunda. A intenção dos filósofos
que criaram e desenvolveram a noção das quatro causas não foi algo meramente ideal ou abstrato,
mas fornecer instrumentos para apreensão e entendimento da realidade, mostrando-nos como
ela é.

2.1 As Quatro Causas da Natureza

O primeiro que convém estabelecer é o que seja causa. Quando identificamos algo como
princípio, significa que ele esteve presente antes, no início de determinado movimento ou no
surgimento de um efeito. A noção de princípio é muito ampla, e podemos chegar a princípios
morais, a água como princípio da vida, o Big Bang como princípio do universo, a genética como
princípio do desenvolvimento dos animais, e assim por diante. Sempre que algo esteja relacionado
com o início de algo, tenha estado presente para que houvesse um efeito, podemos denominá-lo
princípio.
As causas são uma espécie – a mais importante – dos princípios. No gênero princípio,
a causa é a espécie a partir da qual é causado o ser do posterior, do efeito. Até aqui, temos uma
definição circular, porque a causa é o que gera o causado. Indo mais adiante, concluímos que
causar significa uma dependência do ser do efeito em relação ao princípio que o fez surgir. Um
princípio que esteja presente, mas em relação ao qual o efeito não teve uma dependência, não é
uma causa.

WWW.UNINGA.BR 24
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Dentre os elementos do movimento que estudamos, vemos que a matéria é uma causa,
porque a estátua depende dela para existir. Também a forma é causa, pois, sem ela, não há estátua,
mas uma quantidade informe de bronze. A privação, porém, mesmo sendo um princípio que
necessariamente está no início do movimento, não é uma causa do ente. O ser da estátua não
depende da privação de forma; ao contrário, superará a privação para vir a ser.
Portanto, a noção de causa acrescenta algo ao conceito de princípio. Aquilo que é primeiro,
anterior, é reconhecido como princípio. Mas só é causa aquele anterior a partir do qual é causado
o ser do posterior. Por isso, causa é aquilo de cujo ser sucede algo. Desse modo, o operário é
princípio do cutelo, porque da sua operação deriva o ser do cutelo.
Aqueles aspectos, dos quais o movimento se inicia, não podem ser chamados apenas por
isso de causas, mas de princípios. Por isso, a privação é classificada entre os princípios, não entre
as causas. Ela seria causa apenas se o ser do movimento dependesse dela, o que não se dá.
Um exemplo pode nos ajudar. Quando algo é movido do verde para o vermelho,
podemos considerar que o verde é princípio desse movimento, pois tudo aquilo do qual se inicia
o movimento é chamado de princípio. Contudo, o verde não é causa do vermelho que surgirá, ou
seja, não é do verde que depende o ser da cor vermelha que estará no tomate. O verde só importa
como privação do vermelho, e não por influenciar no resultado.
As causas produzem seus efeitos de acordo com as potências que possuem e conforme
aquilo que são. Se encontrarmos os restos de uma fogueira, ordenada e no meio de um terreno
com marcas de pés humanos, sabemos que ela foi causada por homens ou mulheres. Conclusão

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


similar será se descobrirmos pinturas ou instrumentos em determinada localidade: indicam que
um ser humano passou por lá, pois apenas alguém inteligente poderia ter produzido, causado
esses entes.
Pelos efeitos, sabemos como foram as causas, ao menos em certa medida. De modo similar,
ao conhecer uma causa, fazemos ideia de quais efeitos ela é capaz de produzir. Um cachorro pode
tentar puxar um arado; mas um boi o faz muito melhor pelas suas características biológicas. Essa
dependência do ser, entre causa e efeito, é algo com o qual nos deparamos constantemente. Ao
contrário, assustamo-nos quando identificamos um efeito desproporcional a uma causa: significa
que ou não entendemos a causa ou outros aspectos influenciaram o efeito. Se alguém com pouca
cultura entregasse para nós um texto de Cícero em latim, estranharíamos; afinal, sabemos que
deve haver uma proporção entre causa e efeito, decorrente da dependência no ser do segundo em
relação ao primeiro.
Os distintos entes são causas de vários efeitos, que, por sua vez, servirão de causas para
novos resultados e consequências, e assim por diante, em um contínuo infindável. Havendo
infinidades de causas, podemos classificá-las em quatro tipos principais: material, formal, agente
e final. De fato, toda causalidade pode se reduzir a uma dessas causas ou a uma composição delas.

2.1.1 A causa material e a formal

Conforme vimos, para que haja um movimento ou mudança, três coisas são requeridas:
o ente em potência, que é a matéria; não ser em ato, que é a privação; e aquilo pelo qual se
torna em ato, isto é, a forma. Em uma árvore, a matéria é aquilo do qual ela é formada: madeira,
folhas, galhos, raízes etc. Todo esse material, tratando-se de uma árvore viva, e não apenas de um
amontoado que foi serrado e morto, é unificado por um princípio interior que a conserva como
árvore. Esse princípio é a forma, a causa que faz com que algo seja o que é.
A forma de uma árvore é chamada de substancial, porque determina a árvore como uma
substância. O verde das folhas é uma forma acidental, porque, por essa forma, estabelece-se um
modo como a substância é, sem alterá-la essencialmente. Mais adiante, estudaremos melhor a
distinção entre substância e acidentes.

WWW.UNINGA.BR 25
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

No exemplo da estátua de cobre, uma quantidade desse metal foi empregada para fazer a
estátua. O cobre, que é a potência para a forma da imagem, é a matéria. Aquilo que é sem forma
ou indisposto é chamado de privação. A figura, pela qual é chamado de imagem, é a forma. No
entanto, a forma de estátua não é substancial, porque o cobre, antes do advento da forma ou da
figura, tem o ser em ato e o mantém plenamente depois do surgimento da imagem. Ou seja, seu
ser não depende daquela figura. Essa figura é uma forma acidental, do tipo qualidade, como
estudaremos mais adiante.
Percebemos facilmente como é distinta a situação da árvore, na qual a matéria é
determinada e unida pela forma. Inclusive, a matéria surgiu porque a vida da árvore a foi
sintetizando através da alimentação e digestão. Assim, são formas substanciais aquelas que
determinam a substância de um ente. Por exemplo, o ser uma pedra ou uma mangueira ou um
mosquito. Nelas, os elementos que formam o ente não são perfeitos ou completos em si mesmos,
mas se ligam naquela substância de modo a gerarem algo novo, distinto do que existia antes
nos elementos separados. Os diferentes elementos juntam-se na pedra, fazendo um todo novo,
diferente dos seus componentes isolados. Isso ainda é mais claro nos seres vivos.
Algumas vezes, a matéria é designada com privação; outras, sem. Ela teria privação se
fosse, por exemplo, o bronze antes de ser forjado como estátua. Desaparece a privação na matéria
quando a estátua está terminada, completa nela. São mudanças acidentais, porque o bronze
continua sendo tão bronze quanto antes, uma vez que o artista terminou o seu trabalho.
Outro exemplo que pode nos ajudar é o da produção do pão, empregando a farinha de

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


trigo. Tal farinha, sendo matéria em relação ao pão, traz em si a privação da forma de pão; afinal,
quando digo farinha, significa a indisposição ou não ordenação oposta à forma de pão. Se tenho
farinha, ainda não fiz o pão, e vice-versa. O pão e a farinha não coexistem.
Quando a matéria permanece íntegra no novo ente, apenas sendo acrescentada uma
determinada organização ou disposição, temos uma mudança acidental, com a correspondente
forma acidental incorporada à substância previamente existente. É o que se deu na estátua de
bronze.
Ao contrário, se a matéria não permanece como era, mas se torna uma nova realidade,
temos uma forma substancial surgindo. A farinha desaparece, uma vez que o pão foi preparado;
tampouco havia pão ou partes dele presentes antes, porque apenas surgiram no final do trabalho
do padeiro. Logo, estamos diante de uma transformação substancial, com a incorporação de uma
forma substancial a uma matéria, destruindo ou alterando substancialmente a forma que havia
antes, no que serviu de matéria do novo ente.
Determinada matéria tem composição de forma por si mesma, antes de o movimento
ocorrer. O bronze, apesar de ser matéria da estátua, é composto em si mesmo de matéria e
forma. Igualmente, o bronze não é chamado de matéria-prima, porque tem matéria. Idem para
a farinha. A matéria, concebida sem qualquer forma e privação, não existe de modo real. Mas, se
a abstraímos da forma e da privação e a pensamos como pura materialidade sem forma alguma,
podemos denominá-la matéria-prima, pois, antes dela, não há outra matéria.
Como toda definição e todo conhecimento se dão pela forma, a matéria-prima por si
não pode ser definida nem conhecida, a não ser por comparação. Diz-se que aquela é matéria-
prima, porque está disposta a todas as formas e privações, de modo similar, mas mais radical e
fundamental, assim como o bronze está disposto à estátua e ao desfigurado. E ela é chamada de
primeira (prima) em sentido estrito. Ela é pura potencialidade, porque está disposta, em tese, a
receber qualquer forma.
Algo também pode ser denominado matéria-prima a respeito de algum gênero, como a
água é matéria das soluções aquosas. Contudo, não é prima em sentido estrito, porque é composta
de matéria e forma, por ter matéria anterior já determinada por uma forma concreta.

WWW.UNINGA.BR 26
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Sabe-se que a matéria-prima e a forma não são geradas nem corrompidas, pois toda
geração é para algo a partir de algo. Aquilo a partir do qual se dá a geração é a matéria; aquilo
para o qual se dirige a geração é a forma. Então, se a matéria ou a forma fossem geradas, haveria
matéria da matéria e forma da forma, o que nos levaria ao infinito. Portanto, a geração é apenas
do composto, falando propriamente.
Se a matéria está relacionada à potencialidade, a forma diz respeito à atualidade. Como a
perfeição é ser aquilo que se deve de maneira plena, ela se liga à atualidade. Um animal perfeito
é aquele que está totalmente atualizado como tal; se faltar algum elemento, estaremos diante de
um ente imperfeito em relação àquela forma. Sem dúvida, essa perfeição é uma noção relativa:
um frango ainda não crescido pode ser um galeto perfeito, ao mesmo tempo em que é um frango
imperfeito. De qualquer modo, a perfeição sempre indicará a completude em determinada forma.
Se a matéria não é cognoscível, porque ela é potência, e a potência apenas pode ser
conhecida pelo ato, então, a forma é justamente aquilo que torna o ente perceptível e inteligível.
Nossa capacidade cognitiva chega à realidade através da atualidade dela, que é estabelecida no
ente pela forma.

2.1.2 Causas eficiente e final

Os três princípios da natureza e do movimento – matéria, forma e privação – não são

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


suficientes para a geração. O que está em potência não pode passar por si mesmo ao ato. O cobre,
que está em potência para a estátua, necessita do operador, que extrai a forma da estátua da
potência para o ato. Tampouco a forma extrai-se por si da potência ao ato (trata-se da forma do
gerado, que dizemos ser o termo da geração). A forma está apenas no ser perfeito, terminado. No
que está sendo feito, ela ainda não está presente de maneira completa. É preciso, além da matéria
e da forma, haver um princípio que aja, e este é chamado eficiente ou movente ou agente.
Podemos afirmar que o agente liga a forma àquela matéria, gerando o ente ou modificando-o.
O pintor muda a cor da parede; em termos filosóficos, ele alterou a forma acidental da parede, no
aspecto qualidade. Ou seja, o acidente amarelo foi inserido na parede branca pela ação do pintor.
Esse profissional, assim como seu pincel e sua ação, são a causa agente nessa alteração.
Tudo que age sempre o faz buscando algo. Por isso, deve haver um quarto princípio
diferente, que é o almejado pelo agente, e este é chamado de fim. Deve-se ter em conta que
todo agente natural e voluntário busca o fim, mas disso não decorre que todo agente conheça
o fim ou delibere sobre ele. Conhecer o fim é necessário para aqueles agentes cujas ações não
são determinadas, mas têm diante de si possibilidades opostas. São os agentes voluntários, que
conhecem o fim pelo qual escolhem suas ações.
Nos agentes naturais, as ações são determinadas. Por isso, não precisam escolher aquelas
que lhes servem como fim. Evidentemente, é muito mais comum que os agentes voluntários
deliberem do que os involuntários. Além disso, a deliberação nos voluntários é muito mais
profunda do que o cálculo feito pelos instintos dos animais irracionais. Ao mesmo tempo, é
possível que o agente natural se volte para o seu fim sem deliberar, mesmo se tratando de um
sujeito racional. Isso se dá porque esse voltar-se automaticamente para um fim nada mais é do
que possuir a inclinação natural para algo. Isso explica nossas reações imediatas, como fugir,
atacar ou enrubescer, que frequentemente se dão sem que as controlemos.

WWW.UNINGA.BR 27
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

De tudo o que examinamos, fica claro que existem quatro causas: material, eficiente,
formal e final. É correto empregar “princípio” e “causa” reciprocamente, como sustenta Aristóteles
na Metafísica. No entanto, na Física, ele propõe quatro causas e três princípios. Ele aceita como
causas tanto as intrínsecas quanto as extrínsecas: matéria e forma são denominadas intrínsecas da
coisa, pois são partes constituintes dela; final e extrínseca são consideradas extrínsecas. Contudo,
o Filósofo considera princípios apenas as causas intrínsecas. Tampouco inclui a privação entre as
causas, porque é princípio por acidente.
Ainda que Aristóteles coloque os princípios como causas intrínsecas na Física, como
é explicado na Metafísica, princípio é dito propriamente das causas extrínsecas. Por sua vez,
elementos são as causas partes da coisa, isto é, as causas intrínsecas. No entanto, às vezes um é
trocado por outro. Portanto, toda causa pode ser chamada princípio, e todo princípio, causa.
Essa variação no emprego dos termos, da parte de Aristóteles, não deve ser motivo de
estranhamento. Ele, como outros grandes filósofos, modificou aspectos do seu pensamento ou
simplesmente foi mais exato em um momento ou outro. O que importa é percebermos que há
causas intrínsecas e extrínsecas e que todas são princípios dos entes.

Outros dois vídeos produzidos pelo Thomistic Institute são:

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


1)The four causes (Aquinas 101), 2019, disponível em
https://youtu.be/QDVON6DeZaM.
2) Teleology (Aquinas 101), 2019, disponível em
https://youtu.be/uoPjFnqO7j4.

2.2 Relação entre as Causas

As causas não são princípios independentes uns em relação aos outros. Ao contrário, elas
se implicam e se explicam mutuamente. Entender isso ajuda a perceber como se dá o dinamismo
entre as causas, como uma vai fazendo com que a outra gere seus efeitos.
Sendo quatro os gêneros das causas, sabe-se que é possível que a mesma coisa tenha
várias causas. Como a estátua, cujas causas são o cobre e o artífice, mas o artífice como eficiente
e o cobre como matéria. Também sucede que dois contrários apresentem a mesma causa, como
o piloto pode ser causa da salvação do navio e do seu afundamento: no primeiro caso, pela sua
presença e competência; no segundo, pela sua falha ou inaptidão.
Por último, é possível que algo seja causa e causado a respeito de si mesmo, mas de modos
diversos. A caminhada é causa da saúde, como eficiente, bem como a saúde é causa da caminhada
como fim, pois se caminha para manter ou aprimorar a saúde. De maneira similar, o corpo é
matéria da alma, e a alma é a forma do corpo.

WWW.UNINGA.BR 28
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2.2.1 As causas e a finalidade

A causa eficiente é dita a respeito do fim, pois o fim apenas se torna perfeitamente em ato
pela operação do agente. Por outro lado, o fim é considerado causa do eficiente, porque este opera
visando ao fim. Apesar dessa dependência recíproca entre causa eficiente e fim, não é o agente
que faz com que o fim seja fim. Em outras palavras, não é ele causa da causalidade do fim, pois
não faz o fim ser final. É o que se dá com o médico ou os exercícios físicos em relação à saúde: eles
a promovem e a realizam em ato, mas não fazem com que a saúde seja fim.
Também o fim não é causa daquilo que é eficiente, mas é causa para que o eficiente seja
eficiente. Pois a saúde não faz o médico ser médico, mas o médico é eficiente porque ajuda a
produzir a saúde. Donde o fim é causa da causalidade eficiente, porque faz o eficiente ser eficiente.
Do mesmo modo, faz a matéria ser causa material e a forma ser causa formal, pois a
matéria recebe a forma apenas pelo fim, e a forma não aperfeiçoa a matéria a não ser pelo fim. O
fim é a causa das causas, porque é a causa da causalidade em todas as causas. Afinal, a matéria,
a forma e as operações que se apresentarão para a realização do ente dependerão do fim que se
almeja alcançar. Porque planejo ter um roseiral (causa final), empregarei mudas de rosas (causa
material), contratarei um jardineiro para cultivá-las (causa eficiente) e terminarei com rosas
perfeitas (causa formal). Se desejasse uma horta, usaria materiais e cultivos distintos.
Há outras relações importantes entre as distintas causas. A matéria é causa da forma, na

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


medida em que a forma não é senão na matéria. Por outro lado, a forma é causa da matéria, pois
a matéria apresenta ser em ato em virtude da forma nela inserida. Portanto, a matéria e a forma
são relativamente uma à outra e são partes em vista do todo do composto, que é o ente material.
Toda causa, enquanto tal, é naturalmente anterior ao causado. O anterior pode ser
compreendido de dois modos: pela geração e tempo ou pela substância e completude. Quando
a operação da natureza procede do imperfeito para o perfeito e do incompleto ao completo, o
imperfeito é anterior ao perfeito segundo a geração e o tempo. Porém, o perfeito é anterior em
completude, tal como se pode dizer que o adulto é anterior à criança em substância e completude,
mas a criança é anterior ao adulto em geração e tempo.
Ainda que aparentemente o imperfeito seja anterior ao perfeito e a potência anterior ao
ato, nas coisas em geral, a verdade é que, pensando de maneira mais rigorosa e exata, o ato e
o perfeito são anteriores à potência e ao imperfeito. O que converte a potência em ato o faz
justamente por ser ato, e o que aperfeiçoa o imperfeito é o perfeito. Somente o adulto – em ato
– pode gerar a criança – adulto em potência. Ademais, consideramos algo imperfeito apenas se
temos em vista o perfeito como modelo.
Assim, a matéria é anterior à forma pela geração e tempo, porque a forma se desenvolve
a partir da matéria que existe. Mas a forma é anterior à matéria na perfeição, porque a matéria
apenas tem o ser completo pela forma. Igualmente, a causa eficiente é anterior à final pelo tempo
e geração, pois pela eficiente é feito o movimento para o fim. No entanto, o fim é anterior ao
eficiente enquanto eficiente, porque a ação do eficiente apenas é completada pelo fim. Portanto,
as causas material e eficiente são anteriores por via da geração, mas a forma e o fim são anteriores
por via da perfeição.

WWW.UNINGA.BR 29
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Umas das primeiras obras de Tomás de Aquino é o De principiis


naturae (Dos princípios da natureza). Ela trata do movimento e
das quatro causas, com funda-mento no pensamento aristotélico,
exposto de forma ordenada. Ela está traduzida em coleções de
opúsculos de Tomás de Aquino, nem sempre fáceis de encontrar, e
está acessível em inglês e latim no link
https://aquinas.cc/la/en/~DePrinNat.

2.2.2 Tipos de necessidade e de finalidade e hilemorfismo

As causas nos ajudam a compreender a necessidade. É a relação entre uma causa e um


efeito, quando o segundo pressupõe ou decorre forçosamente da primeira. O necessário é aquele
que não pode ser de outro modo, ao menos sob certo aspecto. O contrário do necessário é o
contingente, aquilo que pode ou não derivar de um determinado evento.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


Há dois tipos de necessidade: absoluta e condicional. A necessidade absoluta é a que
provém de causas anteriores por via da geração, que são a material e a eficiente. É o caso da
necessidade da morte, que provém da matéria e da disposição dos componentes contrários; e ela
é chamada absoluta por não ter impedimento. Ela também é chamada de necessidade da matéria.
A necessidade correspondente à causa eficiente também é absoluta, porque, uma vez que a causa
eficiente se ponha em ação sem impedimentos, ela produzirá necessariamente seus efeitos.
Na necessidade absoluta, se estiverem presentes certas causas e circunstâncias, os efeitos
sucederão de qualquer maneira. Se temos um ser vivo material, ele, em algum momento, morrerá.
Se uma chama encosta em uma superfície, esta será esquentada, e assim por diante.
Já a necessidade condicional procede de causas posteriores na geração, como da forma
e do fim. Para se alcançar aquele fim ou forma, é necessário que tal causa se dê. Porém, não é
uma necessidade absoluta, porque as causas em questão podem simplesmente não acontecer.
Explicando de outro modo: para se obter aquele efeito, essas causas são necessárias; mas tais
causas podem não se dar, frustrando o efeito. Por exemplo, para um ser humano ser gerado
(finalidade), ele deve ser concebido (causa eficiente). Não se trata de uma necessidade absoluta,
porque esta mulher conceber não é necessário por si mesmo, mas apenas se ela quiser gerar outro
ser humano. Trata-se de uma necessidade de fim.
Em relação à finalidade, ela é dupla. Há o fim da geração e o fim da coisa gerada. Isso se
mostra, dentre vários exemplos, na produção de um instrumento como a faca. A forma da faca
é o fim da geração ou produção, mas cortar, que é a operação da faca, é o fim do próprio gerado,
isto é, da faca. O processo de produzir uma faca termina quando ela está perfeita; então, tal faca
tem a finalidade de cortar.
O fim da geração coincide algumas vezes com a causa formal e a final, quando a geração
se dá a partir de um similar na espécie, como o homem gerando um homem ou uma oliveira,
outra oliveira. A causa final de um ser humano é atingir a forma plena de sua humanidade; em
outras palavras, ele alcança sua perfeição quando a forma se atualizou em suas potencialidades.
Então, a causa final e a causa formal se confundem em uma mesma realidade.

WWW.UNINGA.BR 30
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Uma relação importante entre as causas é a que se dá entre matéria e forma. Por essa
união de causas, podemos explicar os distintos entes naturais. Todos eles são uma composição de
matéria e forma, com a união da causa material à formal. A teoria que defende ser essa composição
a melhor explicação a respeito da estrutura dos entes naturais é chamada de “hilemorfismo”,
palavra técnica da filosofia formada pela união de hyle, que é a matéria, e morpho, que é a forma.
Não há ente material que não tenha matéria. Ao mesmo tempo, a matéria apenas existe
ligada a alguma forma. Mais uma vez, vale frisar que não se trata de uma forma preexistente,
imaterial, que se une a uma matéria informe que era por si mesma. Sempre que há a forma de
um ente natural ou material, teremos também uma causa material. E a materialidade apenas se
manifesta com uma forma, que determina o que aquele ente é.

As teorias que estudamos nesta unidade ajudam a que você compreenda melhor
o mundo que o cerca? Ou tudo parece um conjunto de palavras complica-das, sem
muito sentido?
A prova da vitalidade e verdade de uma teoria filosófica é sua capacidade de
expressar o que observamos ao nosso redor, com conceitos que intuímos, mas
não conseguimos formular, até que os aprendemos e reconhecemos sua força.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2


Essa é a meta da explicação do movimento e das quatro causas.

WWW.UNINGA.BR 31
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A definição do movimento pressupõe uma série de conceitos anteriores, e sua elaboração


foi um grande passo na filosofia. Através do movimento, percebemos que algo permanece, e
outras realidades são substituídas. Os elementos do movimento surgem aqui e servem para
explicar todos os modos de mudanças no mundo material.
A partir daí, Aristóteles elaborou a teoria das quatro causas, que é muito mais complexa
e profunda do que materialismos e espiritualismos unilaterais. O hilemorfismo reconhece a
importância da matéria e de seu papel no ente físico, ao mesmo tempo em que mostra a prioridade
da forma.
As causas eficiente e final permitem compreender a dinâmica dos entes, que é guiada
por padrões inteligíveis. O movimento tem um agente distinto do ente modificado, e há um
direcionamento, uma finalidade, nas ações dos distintos entes. A centralidade da causa final
explica os padrões e coerência que encontramos na realidade.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 2

WWW.UNINGA.BR 32
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

03
DISCIPLINA:
FILOSOFIA DA NATUREZA

SUBSTÂNCIAS, ACIDENTES E QUANTIDADE


PROF. DR. RENATO MORAES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................35
1. SUBSTÂNCIAS E ACIDENTES NOS ENTES FÍSICOS.............................................................................................36
1.1 AS SUBSTÂNCIAS E SUAS NOTAS.........................................................................................................................36
1.1.1 QUAIS SÃO AS SUBSTÂNCIAS?...........................................................................................................................36
1.1.2 ENTENDENDO AS SUBSTÂNCIAS MATERIAIS..................................................................................................38
1.2 ACIDENTES, SUBSTÂNCIAS E CRÍTICAS A ESSES CONCEITOS........................................................................39
1.2.1 A RELAÇÃO ENTRE ACIDENTES E SUBSTÂNCIA..............................................................................................39
1.2.2 CRÍTICAS ATUAIS À NOÇÃO DE SUBSTÂNCIA.................................................................................................40

WWW.UNINGA.BR 33
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2. A QUANTIDADE E SUAS DECORRÊNCIAS............................................................................................................. 41


2.1 A QUANTIDADE COMO ACIDENTE........................................................................................................................ 41
2.1.1 AS NOTAS DA QUANTIDADE: EXTENSÃO, DIVISIBILIDADE E MENSURABILIDADE......................................42
2.1.2 A INDIVIDUALIZAÇÃO DOS ENTES NATURAIS.................................................................................................43
2.2 ELEMENTOS LIGADOS À QUANTIDADE: NÚMEROS E INFINITO.....................................................................44
2.2.1 OS NÚMEROS, ELEMENTOS PARA A MEDIDA.................................................................................................44
2.2.2 O PROBLEMA DO INFINITO QUANTITATIVO...................................................................................................45
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................48

WWW.UNINGA.BR 34
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

O estudo das substâncias e dos acidentes é parte fundamental da filosofia. Eles são
categorias, e aprender a distingui-los é necessário para pensar de maneira ordenada e profunda.
As relações entre substância, acidente, potência, ato, matéria e forma são íntimas e nos fornecem
instrumentos para contemplarmos o cosmos e nós mesmos de maneira sutil.
Nesta unidade, analisaremos as substâncias materiais, o que é importante por si mesmo e
prepara o estudo da metafísica. Além disso, aprofundar-nos-emos no mais intimamente ligado à
matéria, que é a quantidade. Dela, decorrem a extensão, a divisibilidade e a mensurabilidade dos
entes materiais, bem como a explicação de sua individuação e multiplicidade.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3

WWW.UNINGA.BR 35
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1. SUBSTÂNCIAS E ACIDENTES NOS ENTES FÍSICOS

As substâncias e os acidentes são categorias reconhecidas por Aristóteles. São formas


como os entes são; qualquer ente pode ser classificado em uma categoria: o predicamento.
As categorias são aplicáveis não apenas aos seres materiais, mas os imateriais também
se adequam a elas. Apesar disso, vamos estudá-las na filosofia da natureza, porque é no mundo
físico em que primeiramente topamos com a realidade que se divide nas distintas categorias.
Compreendê-las bem agora ajudará a avançarmos seguros pela metafísica mais adiante.
Neste ponto, estudaremos a substância e os acidentes em geral. Nos próximos, veremos
alguns acidentes específicos, aqueles de maior importância para o entendimento do movimento
e do mundo físico.

1.1 As Substâncias e Suas Notas

Em sua definição clássica, a substância é o ente a cuja essência compete ser em si, e não
em outro. Como todos os entes, ela possui uma essência, que a identifica como algo específico,
um ente determinado. Essa essência tem como característica fazer com que aquele ente seja por

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


si mesmo, sem depender diretamente de outro para existir.
Substância relaciona-se com subsistência, com ser dotado de certa “autonomia” de
existência, de ser. Não significa que ela não seja causada, pois os distintos entes físicos apresentam
as quatro causas que estudamos. Mas ela não precisa de outro ente para ser nele, porque ela é de
maneira independente na medida em que um ente limitado pode sê-lo.
Além da subsistência, a substância é um sujeito, porque as propriedades e os acidentes
são atribuídos a ela. Isso fica especialmente claro nas ações, em que habitualmente ligamos a
atividade à substância, e não aos acidentes. Ainda que não seja errado, não afirmamos que foi
o calor do fogo que queimou, mas o próprio fogo que é dotado do calor; fulano machucou o
outro, não a sua quantidade. Isso vale para os distintos entes: analisamos suas ações, tendo como
referência a substância, e não os acidentes diretamente. Claro que isso é uma tendência, não uma
regra absoluta.
A substância é dotada de unidade, que deriva da sua essência. Todos os entes são unos, no
sentido de que possuem algo que os torna aquilo que são, distintos dos demais. Porém, no caso
das substâncias, essa unidade é mais forte, porque os acidentes são na substância, enquanto ela é
em si mesma.
Desse modo, podemos afirmar que a substância tem três sentidos, não idênticos, mas
complementares. Os sentidos são: a) o ente que é em si mesmo e não em outro; b) o substrato no
qual se inserem os acidentes, o que está por baixo do aparente; c) a essência, o que faz o ente ser
o sujeito que é.

1.1.1 Quais são as substâncias?

Segundo a filosofia clássica, a substância é o modo principal de ser dos entes e o objeto
mais importante no estudo da filosofia. De fato, nosso espanto e curiosidade diante do mundo
são despertados pelos entes que estão nele; tais entes têm notas muito distintas entre si. Porém, o
que primeiramente nos chama a atenção é que as coisas são, estão aí; são sujeitos que existem em
si mesmos, surgem e desaparecem, mudam e influenciam-se mutuamente. Em tudo, temos como
centro um indivíduo que é; ou seja, uma substância.

WWW.UNINGA.BR 36
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Para Aristóteles, são substâncias em sentido mais evidente os seres animados, nos quais as
notas de individualidade, de ser sujeitos e de subsistência, são nítidas. São igualmente substâncias
os que ele denominava corpos naturais, como a água, a terra, o ar, o fogo e as partes de cada um,
bem como aquilo que era produzido pela mistura dos corpos naturais. A física científica, na
Grécia Antiga, era muito menos desenvolvida que hoje e considerava que os elementos formavam
todas as coisas, em termos materiais. Hoje, sabemos dos elementos químicos, das moléculas,
células e átomos, o que influencia a noção filosófica de substância.
Podemos dizer, com os conhecimentos de hoje, que os seres vivos são, de fato, substâncias.
Quarks, que são a menor parte da matéria atualmente conhecida, os átomos, as moléculas, as
partículas subatômicas, quando isolados, são todos substâncias. Por outro lado, quando vários
quarks se unem em uma partícula subatômica, deixam de ser substâncias autônomas e passam
a fazer parte da partícula isolada. Se várias partículas se unem em um átomo, elas deixaram de
ser substâncias individualizadas e se tornam parte de uma nova, justamente o átomo, e assim por
diante. Assim, o critério de substancialidade é o ser algo distinto, um novo sujeito, muitas vezes
originado a partir de sujeitos anteriores, que se corrompem para gerar uma nova substância.
Alguns autores, como Artigas (2017, p. 66), chegam a defender que cada molécula de água,
em um copo cheio, seria uma substância. Então, o copo estaria com um agregado de moléculas
de água, de várias substâncias. É uma explicação defensável. No entanto, parece melhor pensar
que é uma substância – água – com determinada quantidade. A quantidade aumenta e diminui,
sem alterar a substância como tal. Nessa linha de raciocínio, toda junção de moléculas do mesmo

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


tipo configuraria uma substância em determinada quantidade, e não várias moléculas agregadas
de maneira acidental.
Podemos pensar em fenômenos geológicos, como montanhas ou praias. Em uma praia,
cada grão de areia seria a substância, que se une artificialmente, de modo local, com outras, sem
formar uma nova substância. O mesmo se dá em uma montanha. Com relação ao mar, o sal está
diluído e modifica características da água; ainda que sejam separáveis por procedimentos físico-
químicos, os sais e a água presentes nos oceanos comporiam uma substância. Distinta, por sua
vez, dos inumeráveis seres vivos, dejetos e minerais autônomos que se encontram imersos nas
águas.
Essas conclusões parecem consistentes com o conceito de substância, mas poderiam
ser afastadas se, pelo avanço dos estudos, observássemos uma distinção nítida entre partes dos
oceanos, a ponto de caracterizar uma diferenciação substancial. Em princípio, não se afigura ser
esse o caso, e podemos pensar nas águas dos mares como uma substância de quantidade imensa.
Os entes artificiais, para a filosofia clássica, seriam agregados acidentais. As partes de
um computador, de uma cadeira ou de uma estátua continuam a ser substâncias em si mesmas,
pois mantêm intactas suas características. Isso vale para a maior parte dos entes produzidos pelo
ser humano; mas há alguns que poderiam ser considerados substâncias, como pães, certas ligas
metálicas ou substâncias químicas.
Não nos deve estranhar que algumas substâncias sejam mais claramente identificadas
como tais do que outras. Essa é uma questão complexa, que fez com que vários filósofos refletissem
a respeito. Consideramos que as definições de natureza e as notas da substancialidade, expostas
anteriormente, ajudam a distinguir o que seja substância do que é um mero agregado acidental.

WWW.UNINGA.BR 37
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.1.2 Entendendo as substâncias materiais

A substância material é um ente no qual agem as quatro causas que estudamos


anteriormente. O característico nela é justamente a matéria, que não está presente em entes
imateriais. Por ter matéria, a substância natural apresenta uma série de notas importantes e
próprias.
A matéria está ligada à potencialidade, porque ela recebe uma forma, sendo então
determinada como matéria de um ente concreto. Há um paralelismo entre matéria, potência e
substância, porque todos esses conceitos trazem a noção de receber algo, de servir de fundamento
para o ato de outros. Assim, a matéria recebe a forma, que a determina como dotada de uma
essência; a potência está voltada para o ato e existe em função dele; finalmente, a substância
é o substrato onde os acidentes são. Por isso, podemos afirmar, de maneira metafórica, que a
substância é a matéria do ente ou que a substância é a potência que estabelece quais acidentes
poderão se inserir no ente natural. Nessa analogia, os acidentes representariam a atualização de
potencialidades ligadas, mais ou menos intimamente, à substância.
O outro trio paralelo, percebemos facilmente, é formado pela forma, o ato e os acidentes.
Fazer essas comparações é interessante e é um expediente empregado por vários filósofos. No
entanto, não podemos esquecer que são aproximações, porque a substância, por exemplo, não
é exatamente uma potência, pois ela traz em si atualidade importante, que vem justamente da

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


forma substancial que a define como um ente específico. Os acidentes determinarão outros
elementos, acidentais, do ente material ou físico. Enfim, são analogias que enriquecem e ajudam
o entendimento, mas precisamos nos manter atentos ao que significa exatamente cada conceito
que empregamos.
Todo ente físico ou natural apresenta o acidente quantidade, que é o mais diretamente
relacionado à matéria. Sendo um ente material, ele ocupará espaço. Em outras palavras, será
dotado de dimensão. A dimensão traz consigo uma série de notas e atributos. Ela apresentará
um formato, cores, temperatura. Tais notas estão ligadas a outra categoria acidental, que são as
qualidades.
A matéria, por ser potencial e instável, acarreta mudanças substanciais e acidentais,
conforme estudamos. Logo, a materialidade implica mudança, e os seres materiais dificilmente
são estáticos. O próprio deles é a mudança.
Finalmente, o ser material está no tempo, que é a medida do movimento segundo um
antes e um depois. Sendo assim, como todo ente físico muda e se altera, ele encontra-se no tempo.
Chegamos a três características importantes dos entes naturais, todas estreitamente
unidas com a materialidade: a extensão, a mudança e a temporalidade. Em qualquer ente físico,
encontraremos essas realidades, em maior ou menor medida.

Sendo central para a filosofia da natureza, a noção de substância tem um lu-gar


de honra em outros campos da filosofia. Uma das definições da metafísica é o
estudo filosófico da substância. A antropologia filosófica tem por objeto os seres
vi-vos, que são aqueles nos quais a substancialidade é mais evidente e forte. Em
nos-sas ações e hábitos, que a ética analisa, temos um sujeito ou substância, que
é o que se modifica através do seu comportamento.

WWW.UNINGA.BR 38
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.2 Acidentes, Substâncias e Críticas a esses Conceitos


1.2.1 A relação entre acidentes e substância

Os entes substanciais são em si mesmos. Não significa que sejam absolutamente


independentes e autônomos, mas sim que não precisam do ser de outros para serem. Um cavalo
se apoia no solo, respira o ar, foi gerado por outro cavalo e uma égua, alimenta-se, e assim por
diante. Nesse sentido, como se dá com todos os entes limitados, ele depende dos demais. Mas não
é em outro, porque o seu ser, bem como sua existência, são atributos que ele exerce por si mesmo.
“Ele” respira, “ele” foi gerado; é o sujeito, o que configura uma das notas da substância.
Os acidentes, ao contrário, são realidades que modificam a maneira de ser de uma
substância, mas não se ela será ou não em termos absolutos. Um gato pode ter pelos que
embranqueceram; isso muda um aspecto desse felino, mas não a sua substância, isto é, o fato de
ser um gato. Podemos, então, entender os acidentes como entes que são em outro – na substância
–, determinando maneiras como o sujeito é, mas não o que ele é.
Tanto as substâncias quanto os acidentes formam as chamadas categorias. Tudo que é se
encaixa em uma dessas categorias e, inclusive, é expresso verbalmente de maneira categorial. A
principal divisão entre as categorias é entre as substâncias e os acidentes. Por sua vez, os acidentes
são nove: quantidade, qualidade, relação, espaço, tempo, posição, posse, ação e paixão. Logo,

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


perfazem-se dez categorias, ou seja, a substância e os nove acidentes.
Toda substância material terá acidentes. Por sua vez, os acidentes apenas se darão em uma
substância. Todos os entes possuem acidentes, inclusive os imateriais; a exceção é Deus, que é
Substância pura, ou inclusive transcende as categorias, segundo a metafísica clássica.
Afirmamos que há a exigência recíproca entre substâncias e acidentes, pois elas não
existem sem eles, e vice-versa. Mesmo assim, a substância possui prioridade metafísica sobre os
acidentes: afinal, ela é em si mesma, e eles são nela. Ademais, de acordo com a substância que
se é, haverá a potencialidade para alguns acidentes, e para outros não. O ser macaco prego traz
consigo uma possibilidade de tamanho, a impossibilidade de falar articuladamente, a potência de
subir nas árvores e a impotência para sobreviver no fundo do mar. A substâncias provê os limites
nos quais os acidentes se atualizarão.
Há autores que consideram a distinção “substância e acidente” como mera ficção ou
diferença de razão, sem uma realidade por trás dela. Veremos a seguir algumas das teorias que
negam a substância. No entanto, aqui já podemos adiantar que nossos sentidos não percebem
diretamente a substância, porque eles captam o que é material – sons, imagens, cheiros etc. –,
e a substância, mesmo material, define-se pela forma substancial, que é uma causa distinta da
matéria. Mas o fato de não alcançarmos a substância diretamente com os sentidos não significa
que ela não exista.
Ao contrário, nossos sentidos mostram que as realidades mudam, como Heráclito
observou. Porém, há algo que permanece apesar de várias mudanças sucederem. Elas têm um
sujeito como base, algo que se mantém, ainda que notemos diferenças e toda sorte de mutações.
Evidentemente, algumas mudanças implicam que um sujeito deixa de existir como tal, como
se dá na morte de um ser vivo. Mas outras alterações representam uma variação na forma de
ser, não naquilo que se é. Isto é, atinge uma dimensão da realidade, que muitas vezes podemos
mensurar e identificar diretamente com os sentidos externos. Ao mesmo tempo, uma dimensão
mais profunda continua ali, “mantendo” o sujeito.
Com a nossa inteligência, chegamos à substância. Esta não é fruto ou criação da nossa
razão, uma derivação do pensamento; antes, é reconhecida pela nossa inteligência.

WWW.UNINGA.BR 39
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.2.2 Críticas atuais à noção de substância

Muitos filósofos não aceitam a noção de substância, tal qual ela foi formulada pelo
pensamento clássico. É comum que considerem que ela foi superada pelo desenvolvimento das
ciências, que seriam suficientes para explicar a realidade sem lançar mão de conceitos “misteriosos”
ou não comprováveis com os sentidos. Há pensadores que consideram que apenas a matéria, que
pode ser percebida, tocada, cheirada e vista, explica toda a realidade.
O problema dessas soluções unilaterais é que mutilam parte da realidade. A mentalidade
cientificista pode levar a isso, porque falta a alguns cientistas uma visão de conjunto, a procura de
respostas mais radicais e fundamentais. Em outras palavras, pode estar ausente uma concepção
filosófica, que busque o todo e não se contente com explicações parciais, que deixem de lado
fenômenos e aspectos importantes que experimentamos no mundo.
Uma linha de pensamento contrária às substâncias é a sustentada pelo empirismo, que
defende que apenas aquilo que é percebido pelos sentidos externos configura um conhecimento
verdadeiro. Em consequência, o que chamamos de substância nada mais é do que uma mistura
confusa de várias sensações, que se mantêm ligadas a um núcleo, que sequer sabemos se existe
ou não. O que podemos conhecer são as cores, as formas externas, o peso, o cheiro e elementos
materiais da realidade; afirmar que há algo por trás deles é motivo de erro ou vem de uma ilusão.
Dentre os filósofos empiristas, talvez o mais importante e influente seja David Hume, um

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


escocês que morou e trabalhou muitos anos na Inglaterra, no século XVIII. Para ele, só existiam
os indivíduos materiais, sem caber falar de uma forma ou essência comum a vários. O que
experimentamos são sujeitos concretos, nossos sentidos chegam apenas a isso; ir além é perder a
direção e cair em explicações vazias e impossíveis de comprovar.
Outra visão contraposta à substância no sentido aristotélico é a mecanicista. Para ela, o
único movimento que existe é o local, que se dá em partículas de matéria que vão se organizando.
As qualidades que aparentemente percebemos não são algo presente nos objetos que conhecemos,
mas simplesmente a maneira como aparecem para nós. Em si mesmos, apenas existem os
movimentos locais e a organização da matéria.
De acordo com essa concepção, a substância é uma ilusão, porque não há nada além
dos movimentos locais que configuram os seres. Os distintos entes materiais caracterizam-se
pela extensão e podem ser reduzidos a ela. Então, o que consideramos vida, desenvolvimento,
alteração, nada mais é do que a movimentação local de partículas.
Descartes foi o filósofo que formulou de modo mais coerente a proposta do mecanicismo.
Para ele, a natureza é desprovida de dinamismo interno, sendo que os corpos teriam recebido um
impulso original quando Deus os criou. Além disso, devido à imutabilidade divina, a quantidade
de movimento permaneceria constante ao longo do tempo.
Para o filósofo francês, substância seria uma coisa que existe de tal modo que não
necessite de nenhuma outra para existir. Toda substância possuiria uma só propriedade principal,
que constitui a sua essência ou natureza. A extensão em comprimento, largura e profundidade
constitui a natureza da substância corpórea, enquanto o pensamento é a natureza da substância
pensante (substantia cogitans) (Princípios da filosofia, I, 53).
Outro grande filósofo moderno, Kant, sustenta que a substância não é algo que esteja
nos objetos conhecidos, na realidade que nos circunda, mas é uma categoria a priori de nosso
conhecimento. Por isso, ela é uma forma pela qual conceitualizamos, mas não algo que exista
independentemente do conhecimento humano. Em outras palavras, é a nossa mente que organiza
nossas percepções, como se elas viessem de uma substância. Portanto, trabalhamos com essa
noção em nosso conhecimento, mas não significa que ela exista na realidade, fora da nossa mente.

WWW.UNINGA.BR 40
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Substance and accidents (Aquinas 101), 2019: é uma exposição


sintética so-bre a diferença entre as categorias. Tem legenda em
português e está disponível em https://youtu.be/A9QmUeRJsFA.

2. A QUANTIDADE E SUAS DECORRÊNCIAS

Substância é o sujeito ou substrato dos acidentes, conforme uma das definições que
estudamos. Nela, a causa material e a formal se unem, surgindo, então, os entes naturais. Faz parte
dessas substâncias ter um aspecto material que as determine e limite. Dentre os entes físicos ou
naturais, nenhum é pura matéria, mas estará composto por ela e algo não diretamente material,
que é a forma. Tampouco há entes naturais que sejam simplesmente formas; a causa formal é um

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


princípio que necessita se unir à material para formar a substância ou os acidentes.
A união entre a matéria e a forma é íntima, assim como a junção entre substância e
acidentes. Há uma mútua dependência entre os itens de cada par nos entes físicos. Logo, acidental
não significa pouco importante ou irrelevante. Porém, não é essencial, no sentido de algo que
pode ser mudado sem que haja uma corrupção da substância, surgindo um ente diferente em si
mesmo. O que muda é a maneira como uma substância é, não o que ela é.
Estamos tratando de conceitos filosóficos, e não de aspectos sociais ou de valor. Às
vezes, uma peça de roupa ou uma joia têm mais valor e são reconhecidas por terem pertencido a
alguém, o que é um acidente relação. Para nós, o relevante é que, por ter sido utilizado ou não por
Machado de Assis, um ente não se torna nem deixa de ser caneta, que é a sua substância. Terá sido
acrescentada a ela uma característica acidental, que acaba fazendo-a mais valiosa do que seria
apenas pela sua substância. Mesmo assim, a pertença a alguém é um acidente.
Os dois acidentes mais importantes, chamados de intrínsecos, porque se referem
diretamente ao modo de ser acidental das substâncias naturais, são a quantidade e a qualidade.
Agora, estudaremos a quantidade, que é o primeiro dos acidentes. A seguir, os números e o
infinito.

2.1 A Quantidade como Acidente

Alguém poderia sugerir que, por existir matéria quantificada em todos os entes naturais
ou físicos, ela não seria um acidente, mas algo essencial ao ente. Logo, seria parte da forma
substancial, e não uma forma acidental. Essa sugestão não é descabida, porque é verdade que
todos os entes materiais apresentam uma quantidade específica, que pode ou não ser facilmente
medida, mas está ali. Pedaços de pedra do Pão-de-Açúcar e as asas de uma borboleta têm pesos
e dimensões concretos, e é inimaginável que se tornassem imateriais e permanecessem sendo o
que são.

WWW.UNINGA.BR 41
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A matéria entra abstratamente no conceito dos vários entes físicos – cavalo, mangueira,
água, e assim por diante –, mas não com uma quantidade determinada de antemão. As flores,
como as orquídeas, têm distintos tamanhos; essa variação não altera a essência delas. Todas são
orquídeas. Portanto, é algo acidental o ter um peso ou dimensão determinados, mesmo que
necessariamente precisarão ter algum peso ou dimensão.
A materialidade, entendida de modo universal, é propriedade dos seres físicos ou
naturais. Porém, ter uma medida determinada, que é justamente aquilo a que se refere o acidente
quantidade, é contingente, não alterando a essência do ente. No mundo real, as distintas espécies
de seres costumam ter uma variação nas suas dimensões; são seres humanos tanto os pigmeus
quanto os gigantes que jogam basquete. Porém, não conhecemos seres humanos desenvolvidos
de 10 cm ou de 5 m de altura.
A quantidade se refere à concretização da materialidade. Não há ente natural que não a
apresente, e ela é chamada de primeiro acidente, porque os demais acidentes afetam a substância
através da quantidade. As cores se darão em uma superfície quantitativa; a ação frequentemente
pressuporá a quantidade – basta pensar que a força de um animal frequentemente é proporcional
à sua massa –, o tempo e o espaço são contados em seres quantificados, e assim por diante.

2.1.1 As notas da quantidade: extensão, divisibilidade e mensurabilidade

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


A quantidade traz consigo uma série de características diferenciadoras nos entes naturais
ou físicos. A ela estão relacionadas a extensão, a multiplicidade, a divisibilidade, a mensurabilidade
e a numeração. Vejamos cada um desses aspectos.
Pela quantidade, os entes são extensos. A extensão é a nota ou atributo daquele que se
estende, se espraia, se esparrama. Por ela, as partes do ente estão fora umas das outras, ou seja,
estendem-se. Naturalmente, apenas podemos reconhecer a extensão, o estender-se, de algo no
espaço. Daí que seja uma nota dos entes físicos ou materiais.
Segundo Artigas (2017, p. 166), o ente extenso tem quatro características: a continuidade,
a divisibilidade, a mensurabilidade e a individuação. Não é à toa que todas elas estão intimamente
relacionadas à quantidade e à materialidade, pois a extensão é uma decorrência direta da existência
de matéria no ente.
As quantidades podem ser divididas de maneira contínua ou descontínua. Temos uma
quantidade discreta se o ente é divisível de maneira descontínua, como se dá em uma cesta com
cinco maçãs. Apenas podemos dividir a quantidade do cesto de maçã em maçã, saltando das
cinco para as quatro, e destas para as três. Não é uma divisão contínua, mas descontínua, de uma
certa quantidade diretamente para outra. O fato de ser possível enumerá-la torna essa quantidade
numérica.
Já a quantidade contínua é divisível em partes sucessivas; ela é chamada de quantidade
dimensional. A linha, o volume, o tempo, o lugar e o plano são exemplos de quantidades contínuas.
Neles, a divisão não se faz a partir de unidades que englobam certa quantidade, mas de maneira
constante, podendo se dividir o ente de maneira infinita. No contínuo, as partes coincidem em um
limite comum, como os vários segmentos sucessivos de uma reta. Isso não se dá na quantidade
discreta, porque os elementos que a compõem não têm limites comuns enquanto quantidades
sucessivas.
A extensão diz respeito à quantidade contínua. A maçã, em si mesma, é una e contínua;
não se mistura nem se confunde com outra maçã ou um objeto diferente. No corpo humano, temos
distintos tecidos, ossos e órgãos; há uma distinção qualitativa, pela qual podemos estabelecer o
volume de cada um desses elementos corpóreos. Por outro lado, em termos de quantidade, temos
uma continuidade no ser vivo, porque todos esses elementos distintos convergem na quantidade
do mesmo indivíduo e compõem a sua extensão.

WWW.UNINGA.BR 42
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Tudo o que é extenso é divisível. Ao menos conceitualmente. Uma partícula de quark, que
é a menor unidade de matéria conhecida, pode ser matematicamente dividida, ainda que não o
seja materialmente. A divisibilidade é infinita potencialmente, mas sempre finita atualmente. Isso
será mais bem estudado ao tratarmos do infinito, que é um conceito relacionado à potencialidade
de algo, e não a uma atualidade.
O que pode ser dividido, pode ser mensurado, medido. As medidas são padrões; se uma
quantidade pode ser dividida em um número qualquer desses padrões, ela é mensurável. A
distância entre cidades é medida em quilômetros; o volume de um balão é figurado em litros; a
temperatura de um metal pode ser calculada em graus, e assim por diante.
É possível medir inclusive qualidades, ainda que isso não seja tão fácil nem intuitivo. A
cor, a maciez, a temperatura, a dureza... Usamos padrões que permitem comparar e, de certo
modo, medir. Isso é possível devido à íntima ligação que se dá, nos entes materiais, entre os
acidentes quantidade – à qual se relaciona a medida – e qualidade.
A mensuração nos leva aos números, entes abstratos, com fundamento na realidade,
pelos quais podemos medir quantidades.

2.1.2 A individualização dos entes naturais

Uma questão solucionada a partir da composição hilemórfica, com a matéria e a forma

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


como princípios nos entes físicos, é a da unidade e multiplicidade. A individualização dos entes
materiais se dá pela extensão. Isso fica claro pelo aspecto da continuidade ou descontinuidade
que há em um ente. Na medida em que é contínuo, é ele mesmo; se surge a descontinuidade,
temos agora outro ente natural. Tomemos o exemplo de distintos bois em um pasto. Cada um se
mostra como si mesmo, diferente dos outros, pela extensão. Ela demarca os limites, a fronteira do
que é material. Ou seja, temos a extensão que termina, representando o final daquele ente.
Por outro lado, além de percebermos que os entes são individuais, apreendemos
que vários deles têm seu ser do mesmo modo. São a mesma coisa, como espécie; em termos
filosóficos, possuem forma igual. Por essa igualdade, podemos enumerar diversos indivíduos que
são seres humanos, ou cachorros, ou camelos. Além disso, todos esses grupos podem ser unidos
no conjunto dos animais. Há algo comum neles, que está além da individualidade que os separa
e discrimina. Ou seja, há a unidade ao lado da multiplicidade.
Então, as formas substanciais e acidentais multiplicam-se em distintos sujeitos. Se são as
mesmas formas – afinal, todos os entes em questão serão, por exemplo, diamantes ou árvores ou
bactérias e assim por diante –, ao mesmo tempo elas se concretizam em indivíduos diversos. Esse
tema traz implicações em distintas áreas da filosofia, como a lógica, a teoria do conhecimento e
a metafísica.
Em uma substância composta, como são todos os entes naturais, temos três fatores
presentes: matéria, forma e o composto. Pois bem, o princípio de individuação dos entes materiais
é a matéria assinalada pela quantidade (materia quantitate signata), ou matéria designada, ou
determinada, pela quantidade. É uma porção concreta de matéria, na qual a forma está inserida,
que compõe a substância natural. Ou seja, uma matéria quantificada e na qual a forma se insere.
É a minha matéria, que posso medir agora mesmo em uma balança ou com uma fita métrica, que
me individualiza.
As formas, nos distintos indivíduos de uma mesma espécie, são iguais enquanto formas.
Elas se diferenciam no momento em que a forma é individualizada, sendo recebida por uma
matéria determinada. Qualquer matéria é determinada se está nela uma certa quantidade; mesmo
que abstraiamos da forma, teremos uma medida de matéria, à qual a forma se ligará, formando
o composto.

WWW.UNINGA.BR 43
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Isso não significa que a matéria é o que realmente conta, enquanto a forma seria algo
posterior e secundário. Ao contrário, a forma é o que mantém a matéria unida, descartando e
absorvendo constantemente novas quantidades. No entanto, aquela forma estará unida a uma
matéria determinada pela quantidade, que representará seus limites físicos.
Podemos, então, explicar as propriedades e acidentes diferentes, presentes nos vários
indivíduos de uma espécie – pensemos nos diversos cavalos ou nas várias palmeiras imperiais ou
nos insetos de um tipo –, como decorrência da diversidade de matérias a que formas semelhantes
se ligaram. Um gato gerado trará características dos seus genitores, que serão transmitidas através
da matéria, isto é, do código genético; ele também terá seu desenvolvimento influenciado por sua
alimentação e criação. Tudo isso impacta na matéria, fazendo com que a forma desenvolva, de
um modo ou outro, as suas potencialidades.

Fundamentos de filosofia – Antonio Millan Puelles – é um bom manual geral para


filosofia. Sua segunda parte tem por título El ente móvil en general e versa so-bre a
filosofia da natureza. No capítulo IX, há uma exposição sobre a quantidade. Toda
a segunda parte do livro está na área do aluno, no Moodle.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


2.2 Elementos Ligados à Quantidade: Números e Infinito

A quantidade está intimamente ligada aos números. Não examinaremos aqui a filosofia
da matemática com profundidade, porque é um tema primordialmente de filosofia da ciência. Por
sinal, foi bastante estudado no começo do século XX, inclusive por autores importantes, como
Husserl. Aqui, analisaremos o que são os números e outros aspectos relevantes para a filosofia da
natureza.
A seguir, examinaremos o problema do infinito, que é uma questão longe de estar definida
no âmbito da filosofia ou das ciências.

2.2.1 Os números, elementos para a medida

Os números estão relacionados à quantidade. Eles surgiram como uma abstração a


partir de entes quantitativos: somos capazes de reconhecer, analisar e operar com medidas de
quantidade, independentemente de quais sejam as substâncias a que elas pudessem se referir. Há
um aspecto formalista na matemática, exatamente por essa possibilidade de abstração em relação
aos entes físicos, o que nos permite estabelecer relações necessárias e absolutas.
O número é a medida da quantidade discreta, ou seja, daquela que se dá “aos saltos”, de
unidade em unidade. Para medir, partimos de uma unidade de medida, que será multiplicada
por um número. O número indica quantas vezes essa unidade está presente naquilo que se mede.
De maneira indireta, podemos medir com números também os entes que são quantidades
contínuas. Porém, para fazê-lo, precisamos, antes, dividi-los em partes reais ou imaginárias e,
então, as multiplicamos e chegamos às medidas.
Os números são abstratos, porque não representam nenhuma entidade concreta, mas são
elementos que usamos para contar as entidades concretas. Através deles, podemos tratar com
proporções e relações quantitativas reais, sem nos referirmos diretamente a entes específicos e
existentes de maneira concreta.

WWW.UNINGA.BR 44
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Da quantidade discreta, surgiu o número; da dimensional ou contínua, a geometria. A


certeza, harmonia e lógica da matemática intrigaram os filósofos, que viram nela uma ordem que
não dependia da mente humana, que era descoberta, estudada e aprofundada. Para Pitágoras e o
platonismo, a natureza poderia ser descrita em números, porque havia nela uma proporção que
se repetia e podia ser apreendida. Surgiu uma simbologia numérica e leis do pensamento que se
baseavam em estruturas matemáticas.
A ciência moderna foi profundamente influenciada pela matemática. Descartes é um
precursor dessa linha, pois quis matematizar todas as áreas do conhecimento, incluindo a filosofia
e a ética. Galileu considerava que a natureza era um livro escrito em linguagem matemática. Nos
séculos XIX e XX, houve um grande avanço nesse campo do saber, que abriu horizontes para
a física e a química. Nos dias de hoje, a relatividade e a física quântica lançam mão de teorias
matemáticas complexas, que, muitas vezes, não são intuitivas. No entanto, dão resultados em
termos de experiências e de previsão de acontecimentos, o que mostra que têm uma ligação com
a realidade.

2.2.2 O problema do infinito quantitativo

Pensar na quantidade medida pelos números leva à questão do infinito, que seria uma
quantidade sem limites e, por isso, incomensurável. O infinito pode ser entendido como algo

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


potencial ou atual. O primeiro é uma quantidade limitada, que pode vir a ser dividida ou
aumentada indefinitivamente; o atual consiste em uma quantidade sem limites, existente em
ato. A existência do infinito potencial não traz dúvidas. Basta pensar que podemos dividir a
quantidade contínua indefinidamente. Não significa que ela seja formada de infinitas partes, mas
que ela é divisível – potencialmente – sem limites.
Já com relação ao infinito atual, os filósofos discreparam frequentemente. Em concreto,
acerca da dimensão e duração do universo. Os antigos entendiam o universo como finito e
limitado, perfeito em suas fronteiras. Na Física moderna, o universo passou a ser considerado
algo ilimitado, com dimensões incomensuráveis. Com a relatividade, propôs-se um universo
finito e ilimitado em relação à sua extensão. Além disso, há teorias que defendem a existência de
inúmeros universos paralelos, o que torna a questão ainda mais complicada.
Talvez algumas dessas questões sejam superiores à mente humana. Sobre o universo,
sabemos o que somos capazes de perceber, examinar e avaliar. Ora, a infinitude de dimensão
dificulta justamente uma observação completa, porque estamos tratando de algo que não tem fim.
Novos instrumentos ampliam nossa capacidade de percepção das galáxias e planetas, mas não
sabemos se talvez cheguemos a um ponto que seria o inicial, pelo qual se poderiam estabelecer
limites ao restante do universo.
No caso das distâncias siderais, o tempo e o espaço começam a se entrelaçar de modo
complicado para nós, seres humanos, compreendermos. Captamos agora o que aconteceu há
milhares de anos, devido ao período que decorre desde o evento até a chegada de seu reflexo a nós.
Daí se fale de velocidade de luz e anos-luz como medida de distância, sendo a unidade formada
pelo número de quilômetros que a luz percorre durante um ano. É uma dimensão espantosa, se
tivermos em conta que a velocidade da luz é de 300.000 km/s.
O céu estrelado que observamos hoje traz a luz emitida por estrelas há centenas, milhares
de anos, e que apenas agora são percebidas por nós. Estamos vendo épocas antigas, que se juntam
em um quadro com objetos de tempos distintos, que aparecem para nós como sendo presente e
simultâneo. Seria possível enxergar o início do universo a uma distância imensa? A ciência ainda
não o respondeu; talvez um dia consiga fazê-lo, ao menos no nível de microssegundos após a
explosão inicial do Big Bang.

WWW.UNINGA.BR 45
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Com relação ao tempo, Tomás de Aquino afirmava que o universo poderia, ou não, ser
eterno segundo a filosofia. A dúvida apenas poderia ser dissipada pela fé, e não pela razão. Ou
seja, seriam possíveis, do ponto de vista racional, tanto um universo que sempre existiu quanto
um que teve começo. A ciência moderna apresentou a hipótese do Big Bang, um momento de
início do tempo, que, então, solucionaria a questão a favor da não infinitude temporal do universo.
Contudo, há autores que consideram que mesmo o Big Bang pode ser um movimento repetido,
porque o universo se expandiria e contrairia indefinidamente, sem começo ou fim nesse processo.
Tratando agora da dimensão quantitativa e espacial, não pode haver um corpo infinito,
porque é próprio da matéria poder ser percorrida, ter uma extensão. Qualquer ente material
tem uma superfície, que justamente pode ser percorrida e numerada. Isso implica limitação, o
que afasta o infinito. Em outras palavras, a própria noção de matéria descarta um ente físico de
dimensão infinita. Ademais, um corpo infinito não teria limite em qualquer sentido. Logo, ele
estaria em todos os lugares. Ao mesmo tempo, por ser infinito, não ocuparia propriamente um
lugar determinado, mas todos ao mesmo tempo. Isso não parece possível.
O movimento local, que faz com que algo saia de um ponto e vá para outro, não sucederia
em um corpo infinito, que estaria em todos os pontos simultaneamente. Não lhe seria possível
passar da potência ao ato em relação a um ponto no espaço, porque ele já estaria ali. Tampouco
qualquer número pode ser infinito, porque, se é número, é numerável, mensurável; logo, apresenta
limites que podem ser apreendidos.
Além do infinito possível do tempo – que pode ou não existir –, temos o infinito da

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3


quantidade divisível e o infinito da geração e corrupção dos entes. Não se trata, em nenhum
desses casos, de que o infinito exista completo e de uma vez, mas sim que haja uma sucessão de
entes limitados, que vão se sucedendo e não terminam nunca. É uma potencialidade distinta
daquela que, em algum momento, se atualiza efetivamente; é uma possibilidade que nunca se
realiza, ainda que vá se alongando, se aproximando da atualização, sem nunca a alcançar.
Assim, o tempo vai progredindo, aumentando, mas não é jamais infinito e pleno
simultaneamente. O mesmo se dá com as gerações de seres vivos e outros processos, que podem
se renovar e não terminar.
É possível falar de infinito em um sentido distinto do empregado até aqui. Seria aquilo
que é perfeito, ao qual não se pode acrescentar nada, porque já tem tudo que lhe é devido. Porém,
essa perfeição indica atingir os próprios limites e, nesse aspecto, seria finita. Ou seja, é um infinito
metafórico, porque não caberia mudar aquilo que se conseguiu, por ser pleno em si mesmo.
Portanto, tempo e movimento podem ser infinitos, na visão aristotélica, porque sempre
avançam e é acrescentado algo a eles. Ao contrário, não é possível uma grandeza infinita material
por adição, como se acrescentássemos tanta matéria a algo, que ele chegasse a ser infinito. Mas
podemos pensar em uma divisibilidade infinita, potencialmente, da extensão de uma matéria.

WWW.UNINGA.BR 46
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Por que o infinito é um tema que sempre atrai os filósofos e a nós mesmos?
A matéria não permite a infinitude em ato, apenas em potência; apesar disso,
muitas pessoas agem como se o finito não fosse suficiente. Alguns sustentam que
há necessidade de algo superior à matéria, que possibilite que nossos desejos de
bem e verdade ilimitados nos envolvam e tenham sentido. Será tudo isso ilusão,
porque somos efetivamente seres voltados para um fim total, ou haverá um infinito
ligado ao imaterial?
Responder a isso é uma das principais preocupações de um autor como Pla-tão
e, até hoje, não conseguimos um consenso à solução desses problemas fun-
damentais.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3

WWW.UNINGA.BR 47
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Estamos circundados de substâncias materiais, nas quais se inserem acidentes que são
apreendidos pelos nossos sentidos e trabalhados pela nossa razão. Esses conceitos não são
uma mera construção mental, que poderia ser facilmente substituída por outra. Ao contrário,
os filósofos que a formularam parecem ter captado verdades importantes, que não podem ser
afastadas sem grave prejuízo.
Distinguir entre os entes que são em si mesmos e os que são em outros é um passo
necessário para compreendermos que há realidades que permanecem, enquanto outras se esvaem.
Dentre os acidentes, a quantidade é o primeiro e o mais diretamente relacionado à materialidade.
Dela derivam outras notas dos entes materiais, como a extensão e a mensurabilidade. Por isso é
que ela interessa tanto à filosofia da natureza.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 3

WWW.UNINGA.BR 48
UNIDADE ENSINO A DISTÂNCIA

04
DISCIPLINA:
FILOSOFIA DA NATUREZA

QUALIDADE, ESPAÇO E TEMPO


PROF. DR. RENATO MORAES

SUMÁRIO DA UNIDADE

INTRODUÇÃO................................................................................................................................................................ 51
1. QUALIDADES NOS ENTES NATURAIS....................................................................................................................52
1.1 QUALIDADES, FORMAS E PROPRIEDADES. OBJETIVIDADE...............................................................................52
1.1.1 FORMAS SUBSTANCIAIS, MATÉRIA E QUALIDADES........................................................................................52
1.1.2 AS PROPRIEDADES E AS QUALIDADES CONTINGENTES................................................................................53
1.1.3 OBJETIVIDADE E SUBJETIVIDADE NAS QUALIDADES......................................................................................54
1.2 ESPÉCIES DE QUALIDADES..................................................................................................................................56

WWW.UNINGA.BR 49
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.2.1 A DIFERENÇA SUBSTANCIAL, OS HÁBITOS E DISPOSIÇÕES.........................................................................56


1.2.2 POTÊNCIAS, AFECÇÕES E FIGURAS.................................................................................................................57
2. ESPAÇO E TEMPO....................................................................................................................................................59
2.1 O LUGAR E O ESPAÇO.............................................................................................................................................59
2.1.1 LOCAL E NOÇÃO DE PRESENÇA..........................................................................................................................59
2.1.2 CONCEITO DE LOCAL E DE ESPAÇO..................................................................................................................60
2.2 TEMPO, DURAÇÃO E MOVIMENTO...................................................................................................................... 61
2.2.1 DURAÇÃO E SITUAÇÃO TEMPORAL...................................................................................................................62
2.2.2 O CONCEITO DE TEMPO....................................................................................................................................63
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................................65

WWW.UNINGA.BR 50
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

INTRODUÇÃO

Nesta unidade final, veremos alguns acidentes presentes nos entes físicos. São as
qualidades, o local e o tempo. Os três estão ligados à quantidade e, evidentemente, à substância,
mas são realidades com características próprias, que merecem ser estudadas uma por uma.
Os pensadores clássicos, notadamente Aristóteles, conseguiram distinguir várias espécies
de qualidades. Por elas, podemos identificar as substâncias, saber o que a coisa é e como é.
O espaço e o tempo são coordenadas dos entes materiais. Somos em uma época e lugar e
vamos nos modificando de acordo com o antes e o depois, o aqui e o ali. Estando nós na corrente
espaço-temporal, precisamos refletir sobre ela para não a substancializar nem diminuir a sua
importância.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4

WWW.UNINGA.BR 51
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1. QUALIDADES NOS ENTES NATURAIS

Anteriormente, verificamos que a quantidade e a qualidade são acidentes intrínsecos


das substâncias, porque inserem nelas de modo a alterar o ente em si mesmo, e não em sua
relação com outros. Não representam acidentes que agem sobre a substância a partir de fora.
Ao contrário, esses acidentes intrínsecos determinam a maneira como a substância é, em seus
elementos de extensão, dimensão, modo no qual sua substância existe, e assim por diante.
Se não há entes materiais sem a quantidade, tampouco eles existem sem qualidades.
Ainda que não se confundam com as substâncias, esses acidentes sempre estarão presentes nelas.
Não um acidente específico, quantitativo ou qualitativo, como x quilos, y metros, a cor verde,
áspero ou quente. Se um determinado acidente estivesse presente sempre naquelas substâncias, de
maneira concreta e exata, não se trataria, então, de um acidente, mas de um traço da essência. As
substâncias não são apreensíveis pelos sentidos, ao contrário do que se dá com vários acidentes.
Estudemos agora sobre as qualidades uma vez que já examinamos as quantidades.

1.1 Qualidades, Formas e Propriedades. Objetividade.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


Para compreender as qualidades, é preciso analisar como elas estão relacionadas aos entes
compostos, às formas substanciais e à matéria.
Dentre as qualidades, há algumas que estão mais intimamente ligadas às essências das
substâncias, e outras que qualificam as substâncias de modo menos intrínseco e radical. Essa é
a diferenciação básica entre propriedades e acidentes em sentido estrito: ainda que todos sejam
qualidades, há aquelas que decorrem diretamente da essência e, por isso, são denominadas
propriedades.
Um terceiro tópico, ligado aos anteriores, é o da objetividade das qualidades. São elas
algo que está no ente, de maneira independente e real, ou são fruto da maneira como os seres
dotados de sensibilidade organizam as suas percepções? Esse tema tem reflexos na teoria do
conhecimento, que é um campo rico da reflexão filosófica.

1.1.1 Formas substanciais, matéria e qualidades

O modo de ser principal dos entes é determinado por sua forma substancial. Ela, unida
à matéria, constitui o composto, que é o ente natural. Pela forma substancial, estabelece-se o
que aquele ente é, o que decorre de sua essência. A maior parte das características de um ente
depende da sua substância; os acidentes, que inserirão nela, precisam ser recebidos nela. Em
grande medida, ela é que define quais são os possíveis acidentes de um ente, ainda que possa
haver uma variedade enorme de acidentes concebíveis para aquela espécie de substância.
Além do modo de ser substancial, diretamente relacionado à forma substancial, há modos
de ser no ente que são acidentais. Dentre os últimos, estão as qualidades, que podem ou não estar
em um ente, sem que ele deixe de ser o que é de modo fundamental. Elas o determinam, mas em
uma dimensão menos radical do que o faz a forma substancial.
As qualidades são possibilidades do ente que foram atualizadas em virtude das mais
diversas circunstâncias. Uma flor desprende bom odor, porque ela tinha essa possibilidade
em virtude da sua essência; por haver se desenvolvido convenientemente, essa virtualidade foi
atualizada, configurando um acidente qualidade. Portanto, os acidentes são atos relativos a uma
forma acidental, pela qual são efetivamente em outro, ou seja, na substância.

WWW.UNINGA.BR 52
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Sempre que nos referimos a alguma atualização, estamos de algum modo dependendo de
uma forma, porque ela é o que atualiza ou é atualizada. O ente, portanto, sempre apresenta uma
forma. Os acidentes são entes; afinal, são realidades efetivamente existentes, que são. Portanto,
eles têm também sua forma própria. Tal forma não faz parte de um ente que é em si mesmo – uma
substância –, mas de um ente que é em outro, ou seja, um acidente. Logo, há formas substanciais e
acidentais, de acordo com o ente que elas determinam: substância ou acidentes, respectivamente.
Como fazem os demais acidentes, a qualidade determina a substância através da
quantidade, que é o primeiro acidente. As distintas qualidades, nos entes materiais, sempre estão
relacionadas a um aspecto quantitativo, à materialidade. Porém, diferenciam-se da quantidade,
pois esta determina a medida de matéria do ente, enquanto os outros acidentes dizem respeito
a outros aspectos do ente que não diretamente o quantum de matéria e ao que está unido à
materialidade, como a dimensão, a altura, a profundidade, o peso etc.
A quantidade é um acidente intimamente ligado à causa material, servindo como uma
medida dela, enquanto a qualidade determina aspectos relativos à causa formal, que marca a
essência da substância. Evidentemente, em um composto, a forma e a matéria estão intrinsecamente
unidas; apesar disso, elas se distinguem, ainda que não sejam princípios autônomos e preexistentes
ao composto. Existem no composto, como princípios distintos entre si e diferentes do composto.
De modo similar, a quantidade e a qualidade estão unidas, sendo diversas. Trataremos
sobre a relação entre esses acidentes mais adiante, mas adiantamos que um reclama, depende
do outro, ainda que a quantidade venha lógica e filosoficamente antes da qualidade nos entes

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


materiais.
Vimos que a quantidade e a qualidade são denominadas acidentes intrínsecos dos entes.
Ambas expressam determinações da substância em si mesma, e não em relação a outras. Os
demais acidentes sempre tratam de algo relacionado extrinsecamente à substância, como: o
tempo, que depende de algo que o conte e de um antes e um depois; o espaço, que indica uma
posição em determinado lugar; a ação e a paixão, que decorrem de influências entre substâncias;
a relação, que indica uma ligação entre substâncias distintas; e assim por diante.
Os acidentes intrínsecos ajudam na determinação da substância; não o que ela é, mas
a maneira como é, em termos quantitativos e qualitativos. O acidente qualidade “qualifica”
a substância, agrega-lhe uma série de características que, mesmo não sendo essenciais,
frequentemente estão próximas da essência. Se não estão, nem por isso deixam de ser importantes.
Basta pensar como é relevante aquilo que alguém sabe ou o ofício que exerce ou quais são suas
condições físicas; todas essas notas são exemplos de qualidades.

1.1.2 As propriedades e as qualidades contingentes

Todas as qualidades são acidentes intrínsecos do composto substancial. São características


que podem ser percebidas por um sujeito dotado de sensibilidade; contudo, essa percepção
depende também da capacidade do sujeito cognoscente. Há qualidades que estão além da
possibilidade dos sentidos de determinados animais: alguns não conseguem captar as cores;
outros têm o olfato bastante limitado; há os praticamente surdos, e assim por diante. A percepção,
como todo conhecimento, é uma relação entre o objeto e o cognoscente, e as qualidades são
apreendidas através dessa interação. Um cognoscente limitado não terá acesso a certos objetos.
Dentre as qualidades, uma série delas decorre da essência, sem se confundir com ela. Tais
qualidades estão presentes praticamente sempre que encontramos aquela espécie de substância,
desde que esta esteja em suas condições normais de desenvolvimento. A falta de tais qualidades
afigura-se como um defeito, uma privação, e não uma mera ausência. Esses acidentes são chamados
de propriedades, que são exatamente as qualidades próprias de uma determinada substância, por
ela possuir a sua essência peculiar.

WWW.UNINGA.BR 53
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

São exemplos de propriedades: o cavalo ter uma crina e dentes, as folhas de uma árvore,
o lobo poder uivar, a dureza do diamante, e assim por diante. São acidentes, porque sua ausência
não implica uma mudança substancial ou a destruição da essência. Por outro lado, são qualidades
que nos ajudam a reconhecer de qual substância se trata, exatamente por serem características,
próprias das substâncias definidas por aquela essência.
Conforme estudamos anteriormente, não somos capazes de conhecer diretamente a
substância dos entes. A substância é o que está por baixo, é o substrato dos assistentes, algo que
permanece mesmo quando outras características – essas sim perceptíveis – são modificadas ou
eliminadas. Por outro lado, a essência costuma vir acompanhada de certas qualidades, que são
justamente as denominadas propriedades.
No ser humano, a capacidade de falar, possuir dois pulmões e dois rins, o sorrir, a faculdade
de pensar, são exemplos de propriedades. Quando escutamos uma voz articulada expressando-
se em alguma língua, sabemos que se trata de um homem ou de uma mulher; pode ser uma
gravação, mas há a participação do ser humano na emissão daquela voz. Estamos diante de uma
propriedade. Alguém mudo também é dotado plenamente de humanidade – que é a essência –,
mas está privado de uma qualidade intimamente ligada a ela.
Usualmente, dizemos que os elementos químicos têm certas propriedades, como o nível
de condutividade elétrica, a massa específica, o coeficiente de dilatação, e assim por diante.
Também há propriedades nas moléculas e diferentes células.
Se as propriedades são modos de ser que costumam acompanhar uma determinada

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


essência, o que nos permite reconhecê-la, outras qualidades podem ou não se dar em uma
substância concreta, sem que caracterizem essa substância como tal. Por exemplo, uma pessoa ter
a pele bronzeada, a água estar no estado sólido ou gasoso, a jabuticabeira estar naquele momento
carregada de frutos, um cachorro ter se cansado ou adoecido, o mar estar esverdeado. São
qualidades contingentes, o que não as torna desimportantes ou marginais. Simplesmente indica
que não são tão marcantes quanto as propriedades.
Essa diferença entre propriedades e qualidades contingentes funda-se na ligação que
elas tenham com a essência ou com outros aspectos da sustância ou do ente. Já enfatizamos
que as propriedades decorrem precisamente da essência e a ela estão relacionadas de maneira
mais direta. Quando analisarmos os distintos tipos de qualidades, veremos como aquelas que
chamamos contingentes se relacionam a outros acidentes da substância.

1.1.3 Objetividade e subjetividade nas qualidades

As qualidades são entes. Acidentais, mas elas são; logo, são entes. Não são em si mesmas,
mas sim nas substâncias; ainda assim, são. Portanto, são entes, dotados de uma forma que lhes é
própria e que as faz reais, perceptíveis e inteligíveis.
Essa concepção das qualidades é objetiva, porque as considera modos de ser da substância,
que existem independentemente da percepção que possamos ter delas. Elas se diferenciam da
quantidade, que é o acidente do quantum, do quanto, do medido, do tamanho, do número e
da extensão; ao contrário, a qualidade diz respeito ao qualis, ao qual, ao como, ao observado e
avaliado.
O mecanicismo de Descartes e o empirismo, escola filosófica que se desenvolveu
especialmente na Inglaterra e, em menor medida, na França, propuseram uma visão das qualidades
distinta da sustentada pela filosofia clássica. Para esses pensadores, as características quantitativas
dos entes, como a magnitude, a extensão, a figura externa e o movimento local, seriam qualidades
primárias, relacionadas ao número e ao que pode ser medido. Tais características seriam
propriedades reais dos entes, algo que eles efetivamente apresentam por si mesmos.

WWW.UNINGA.BR 54
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Por outro lado, teríamos qualidades secundárias, que não são propriedades reais
das coisas, mas meros efeitos que elas produzem naqueles que as percebem. Entrariam nesse
grupo de qualidades a cor, a temperatura, o som, o sabor... Enfim, aquilo que captamos pelos
nossos sentidos e não é diretamente mensurável ou numerável. Nós apreendemos essas notas
como se fossem existentes nos entes, mas não significa que elas estejam ali de fato; são por nós
assim consideradas, sem que disso decorra que sejam algo efetivamente presente no objeto que
conhecemos.
Um fundamento para essa distinção é que as qualidades primárias podem ser descritas
e percebidas de maneira objetiva por todos, enquanto as qualidades secundárias dependem do
gosto e da situação do sujeito. O que para alguém é amargo em um dia pode não o ser no outro,
dependendo de como está seu paladar. Se estamos com frio, uma água morna nos parecerá quente;
mas, se sairmos de uma banheira quente, a água morna vai ser percebida por nós como fria. As
qualidades primárias podem ser compartilhadas e entendidas de maneira numérica, matemática,
o que não se dá com as secundárias, nas quais haveria a influência de quem as percebe.
Ao contrário do que acontecia com os filósofos antigos – que de ingênuos não tinham
nada –, somos hoje dotados de aparelhos que nos mostram a influência dos órgãos sensoriais
na percepção. Como já expusemos, há sons, temperaturas e cores que estão além da capacidade
humana de percepção, mas são acessíveis a outros animais. Além disso, o que é frio para nós não
o seria para um peixe de regiões antárticas. O modo como recebemos as sensações influencia
nossa percepção delas.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


Ao mesmo tempo, se os entes afetam nossos sentidos e nos fazem ter sensações, há algo
neles capaz disso. Mesmo que percebamos o calor ou a aspereza de forma diferente de outros
animais ou escutemos certa frequência de sons e não outra, há algo real passando-se fora de nós e
que somos capazes de, em maior ou menor medida, captar e perceber. Logo, há uma continuidade
entre a sensação e a realidade.
Captamos algo verdadeiro nos entes, características reais, de acordo com nosso modo de
perceber, que é limitado, mas não enganador em si mesmo, como exageram alguns pensadores
racionalistas. Além disso, vemos que a sensibilidade humana, ainda que em parte distinta de
pessoa a pessoa, mantém certos padrões comuns. Há temperaturas que todos considerarão
quentes; vários que tenham a vista íntegra perceberão certas cores e reconhecerão que elas se
repetem em objetos distintos; o cheiro é sentido por quem não tenha problemas no olfato e
considerado agradável ou não, e assim por diante. Portanto, existe uma base objetiva, mesmo que
nossos sentidos e nosso cérebro em parte “decodifiquem” os estímulos como percepções.

Reduzir as qualidades a meras manifestações quantitativas parece razoável?


De fato, seria mais fácil se toda a realidade pudesse ser medida numerica-mente.
Ademais, poderíamos excluir uma das categorias, juntando-a à quantidade, o
que simplificaria a explicação das coisas. No entanto, essas simplificações não
acabam fazendo com que nossa percepção e entendimento do mundo diminuam?
Não é surpreendente que uma mudança na quantidade implique alteração qualita-
tiva, como sucede quando uma cor se impõe à outra (por exemplo, uma maçã que
passa de verde a madura)? Por que a mudança qualitativa modifica nossa percep-
ção? Isso é o que o acidente qualidade ressalta e tenta descrever.

WWW.UNINGA.BR 55
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

1.2 Espécies de Qualidades

As qualidades podem ser agrupadas em distintas espécies. Verificamos uma dessas


divisões quando identificamos as propriedades e as qualidades contingentes. Há outras possíveis
distinções, que nos ajudarão a compreender melhor este acidente. Também aqui seguiremos o
caminho assinalado por Aristóteles, que propôs uma classificação das qualidades de acordo com
a medida pela qual determinam o sujeito, tendo em vista que qualquer qualidade atualiza certo
modo de ser da substância.

1.2.1 A diferença substancial, os hábitos e disposições

Quando a qualidade determina a potência da matéria em seu ser substancial, ela é


chamada de diferença da substância, isto é, a diferença pela qual algo se distinga substancialmente
de outro algo. Essa espécie de qualidade é tão importante, que entra na definição da substância
e, na lógica, ela é chamada de diferença específica. É uma diferença que, dentro de um gênero
– animal, por exemplo –, faz com que uma espécie se distinga de outras. Racional é a diferença
específica do ser humano, o que o torna diverso dos demais animais. Por sua vez, o círculo é a
figura geométrica – gênero – que não possui ângulos – diferença específica. Para Aristóteles, o

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


primeiro e fundamental significado de qualidade é justamente a diferença da substância (cf. Met.,
V, c. 14: 1020, a, 33 – b, 2).
Nos entes naturais, é difícil acertar qual seja sua diferença específica. Na prática,
percebemos que um indivíduo é de certa substância através de suas propriedades. Mas essa
dificuldade humana não invalida a noção de que as espécies de substâncias tenham suas diferenças
específicas, das quais decorrerão suas propriedades.
Do que vimos, concluímos que a qualidade diferença não é um aspecto acidental, mas
substancial do ente, por caracterizar aquilo que ele é, e não o modo como é. Por isso, ao indicar
quais sejam as qualidades acidentais, Aristóteles e seus continuadores deixaram de fora a diferença
específica. Ela está bastante próxima da substância, é um aspecto, uma nota dela, e não uma mera
qualidade contingente nem uma propriedade; é mais do que isso.
Quando a qualidade determinar a potência do sujeito segundo o ser acidental, teremos
uma qualidade acidental. Os acidentes sempre são a atualização de uma potência existente na
substância. As qualidades acidentais são espécies de diferença, mas não substancial ou específica,
e sim ligadas aos aspectos acidentais que são na substância.
Essa determinação do sujeito segundo a qualidade pode ser tomada de quatro modos: a)
em ordem à própria natureza do sujeito; b) segundo a ação e c) segundo a paixão (que seguem
aqueles princípios da natureza que são a forma e a matéria, respectivamente); e d) segundo a
quantidade.
O modo e a determinação do sujeito em relação à natureza da coisa, àquilo que ela é,
dão origem à primeira espécie de qualidades, que abrange os hábitos e as disposições. Aristóteles
afirma que os hábitos da alma e do corpo são “certas disposições do perfeito para o ótimo”, sendo
que o perfeito é a disposição conforme a natureza (Physic., VII, c. 3: 246, a, 10 – b, 2). Ao contrário,
se a inclinação do hábito é para algo ruim, ela é contrária à natureza.
A substância tem uma natureza, ela é algo determinado. Nela, inserem qualidades que a
inclinam para aquilo que lhe é próprio ou que a distanciam dele. Os hábitos e as disposições são
isso: aperfeiçoamentos ou debilitações do que seria natural, próprio, da substância. Os hábitos
são mais estáveis, enquanto as disposições são mais frágeis e precárias.

WWW.UNINGA.BR 56
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Quando estamos nos sentindo bem, dizemos que estamos bem dispostos. Essa é uma
expressão filosoficamente correta, que indica que nossa natureza, nosso modo de ser, está
adequado: não há nada que nos atrapalhe ou incomode. É uma disposição, porque pode facilmente
desaparecer. A doença e a saúde são qualidades que caem na classificação de disposições, assim
como o cansaço ou a energia para fazer algo.
Dentre os hábitos, encontramos as virtudes, que aperfeiçoam a inteligência, a vontade e
a sensibilidade dos entes racionais. A virtude é uma qualidade que possibilita compreender ou
fazer algo de modo perfeito, com a melhor qualidade e com facilidade. Também chamamos de
hábitos às maneiras costumeiras com que agimos, sem que reflitamos muito nelas; é um sentido
empobrecido, mas correto.
Nessas qualidades de primeira espécie, estão aquelas que dizem respeito ao que é fácil
ou dificilmente movido. Uma pessoa educada é aquela que rápida e certeiramente sabe como se
comportar de acordo com o ambiente em que está. Isto é, ela se movimenta conforme o adequado
para a sua natureza e o faz de modo estável. Como a natureza é o primeiro a ser considerado
em uma coisa, igualmente o hábito, que aperfeiçoa o agir conforme à natureza ou o degrada, é
colocado na primeira espécie de qualidade.

1.2.2 Potências, afecções e figuras

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


O modo ou a determinação do sujeito segundo a ação e segundo a paixão é atendido na
segunda e terceira espécies de qualidade, respectivamente. Em ambas, toma-se em consideração
que algo seja realizado fácil ou dificilmente, ou que seja passageiro ou dure por um longo tempo.
Na segunda espécie de qualidade, que é a qualificação de acordo com a ação, encontramos
as potências e as impotências, ou capacidades e incapacidades, que permitem ou não que o sujeito
pratique determinada atividade, entendida da maneira mais ampla. Por meio das capacidades e
incapacidades, qualificamos alguém como, por exemplo, lutador, corredor, falante ou imaginativo;
consideramos que um animal é feroz, forte ou lento. Uma árvore será frutífera ou não, com
capacidade de viver com bastante ou pouca água, e assim por diante. Ou seja, há um acidente que
qualifica o modo de agir e comportar-se do sujeito, determinando-o em certa direção. As várias
potências, enquanto princípios de ação, pertencem a esse segundo tipo de qualidade (Cat., 8: 9,
a, 14 – 16).
Os hábitos costumam estar ligados a capacidades ou potências. Assim, o bom orador
(hábito) apenas pode sê-lo se o sujeito é capaz de falar (potência). O homem corajoso (virtude)
possui sensibilidade e racionalidade (capacidades), que são exatamente aperfeiçoadas pela
virtude. De certa maneira, as qualidades de segunda espécie são pressupostas pelas de primeira,
assim como a natureza ou essência pressupõem a forma. Essas qualidades de segunda espécie
estão ligadas à forma, que é justamente o que atualiza o sujeito e lhe confere uma natureza ou
essência específica. Várias propriedades incluem-se nessa categoria de qualidades.
Por sua vez, a terceira espécie de qualidade compreende as características ligadas à
capacidade do sujeito de afetar os sentidos, a apreensão sensível de outros. Tais características
encontram-se no início e no término das alterações físicas e não dizem respeito a uma mudança
ou ação da substância que as possui, e sim à possibilidade de serem captadas, apreendidas pelos
sentidos de outras substâncias. Dentre essas qualidades, acham-se a doçura, o calor, a frieza, o
azedume etc. (Cat., 8: 9, a, 29 – b, 9.).

WWW.UNINGA.BR 57
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

A materialidade nessas qualidades de terceira espécie é mais marcante do que nas duas
anteriores. O poder ser percebido, ainda que exija a existência da forma, está estreitamente ligado
à matéria. Afinal, só o que é material pode ser apreendido pelos sentidos. Além disso, é próprio
da matéria sofrer a ação de outros, receber algo em si de maneira passiva; é o que acontece com as
nossas características que são apreendidas pelos demais. A ação está no sujeito que conhece, e não
no objeto conhecido. Ser percebido não representa uma alteração no ente objeto da percepção,
mas sim no agente que pode sentir.
As qualidades da terceira espécie são denominadas afetivas no sentido de que geram afeto,
são sentidas pela sensibilidade de um ente com os sentidos apropriados para perceber as coisas.
Elas afetam as capacidades cognitivas de outros. A cor, a temperatura, a consistência externa,
o odor, o som e a densidade são qualidades desse tipo. Elas são estudadas de modo especial na
filosofia da natureza, devido à sua cercania com a materialidade. As potências – qualidades de
segundo tipo – são muitas vezes objeto da antropologia ou psicologia filosóficas, enquanto os
hábitos e disposições – qualidades de primeiro tipo – serão primordialmente objeto da ética.
Por fim, quando a determinação ou modo do sujeito é tomado segundo a quantidade,
temos uma qualidade da quarta espécie. De acordo com o que foi explicado anteriormente, as
distintas qualidades, quando estão em entes materiais, quase sempre pressupõem a matéria e,
consequentemente, a quantidade. No entanto, as qualidades da quarta espécie têm uma relação
mais direta com a quantidade, enquanto as de primeira espécie se ligam à natureza; as de segunda,
à forma e à ação; e as de terceira, à matéria e à paixão.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


O último tipo de qualidade é constituído por aquelas determinações que inserirão na
quantidade, influenciando na causa material da substância. Essa qualidade distribui a quantidade
em termos de superfície e estrutura no ente. A esfericidade de uma bola, ou a quadratura de
um cubo, são exemplos de formas qualitativas ligadas à quantidade. E, como a quantidade, de
acordo com seu próprio conceito, não tem movimento próprio nem razão de bom ou mau, não
corresponde à quarta espécie de qualidade que algo seja bom ou mal, nem que se mova rápida ou
lentamente.
Não cabe separar essas categorias qualitativas de maneira absoluta, porque a natureza
sempre terá seu papel, assim como a forma, a matéria e a quantidade. Porém, ajuda na
compreensão notar como as várias qualidades se relacionam mais a algum aspecto ou elemento
do ente completo.
Como resumo, podemos dizer que as qualidades de primeira espécie são os hábitos (ou
estados) e as disposições. As de segunda espécie são as capacidades e incapacidades, ou potências
e impotências. As qualidades afetivas ou afecções compõem as qualidades de terceira espécie.
Finalmente, a figura e a forma, esta entendida de maneira material e geométrica, são as qualidades
de quarta espécie. Juntando a diferença específica a essas quatro classes de qualidades, temos um
quadro completo das qualidades que podemos encontrar nos distintos entes.

WWW.UNINGA.BR 58
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2. ESPAÇO E TEMPO
Os seres materiais têm extensão e duração. Essas características configuram duas
realidades: o espaço e o tempo. O movimento local é pressuposto em todos os demais movimentos
e ele indica que se passou de um ponto para outro no espaço. Ademais, qualquer mudança se dá
em um transcurso de tempo, mesmo que ínfimo. Portanto, não é possível estudar a filosofia da
natureza de maneira completa sem tratar das dimensões espacial e temporal.
Distintos autores forneceram explicações de ambos os aspectos, e o avanço das ciências
trouxe novos dados e maiores complexidades. Aqui, analisaremos esses fenômenos de maneira
filosófica, partindo do que os sentidos nos trazem e tendo em consideração o que os instrumentos
de observação modernos tornaram acessível.

2.1 O Lugar e o Espaço

Há uma relação íntima entre o acidente local e o espaço. Ambos são frutos da materialidade
de certos entes, que, por possuírem uma causa material, são enquanto ocupam determinado
espaço. O estudo do local nos leva ao espaço.
Esse mesmo estudo nos mostra que há presenças não espaciais, que não têm propriamente

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


um local, no sentido de ocupar um espaço. Precisamos compreendê-las para, a partir do contrário,
aprofundarmos o conceito de espacialidade.

2.1.1 Local e noção de presença

Um dos acidentes é o local, realidade com a qual nos deparamos constantemente. Vemos
que as coisas ocupam um determinado espaço, que está a certa distância de outros pontos de
referência. Podemos inclusive mensurar essa realidade, afirmando que uma pessoa está a 300 m
de altura, em uma planície, ou que a jarra está a 2 m de mim ou que a minhoca rastejou por 60
cm em 10 minutos.
O local é um acidente extrínseco da substância, porque não define o modo como ela
é, mas sim a relação dela com outras substâncias; concretamente, em relação à posição no
espaço. Sair da cadeira e dirigir-se ao sofá não altera internamente o sujeito, mas são realidades
diferentes, que podem ser percebidas e compreendidas. Portanto, o local é um acidente real, que
afeta a substância de maneira extrínseca a ela, ao contrário do que sucede com a quantidade e a
qualidade.
É um acidente importante. Tanto que, em relação aos entes naturais, o não ocupar lugar
algum significa não existir. Logo, podemos afirmar que o modo de ser dos entes materiais exige
que eles estejam em algum lugar, exatamente porque têm extensão, que é uma decorrência da
quantidade e da matéria. Sabemos que, sem a causa material, não temos o composto de matéria
e forma, que é o sujeito.
O espaço, na visão de Aristóteles, é algo que envolve todas as coisas. A água ocupa um
determinado espaço; uma vez que ela sai de lá, esse local é preenchido por ar ou por outra
realidade material. Tais mudanças se dão no espaço e são locais. O próprio vácuo apenas pode se
definir a partir do espaço, porque o vácuo é um local desprovido de quaisquer corpos.
Pode-se concluir que os entes físicos ocupam uma posição no espaço, estão presentes
nele. Aqui, pode nos ajudar diferenciar os modos pelos quais dizemos que algo está presente em
outro. A partir dessas distinções, poderemos entender melhor como os entes se encontram no
espaço e o que significa estar localizado.

WWW.UNINGA.BR 59
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

No livro 4 da Física, Aristóteles propõe um conjunto de presenças diversas. Em primeiro


lugar, a parte está no todo, como o dedo está na mão ou um galho está na árvore. A seguir, o
todo está em suas partes, porque o conjunto não existe para além de suas partes. O terceiro
modo é como a espécie se encontra no gênero; assim, o homem encontra-se entre os animais,
e as mangueiras, entre as árvores. Outra maneira é como o gênero se encontra nas espécies que
o compõem, porque ele é parte delas; a animalidade está no ser humano, assim como está nos
cachorros.
A quinta maneira da presença é a que se dá pela causalidade e, nesse sentido, a saúde está
no quente ou no frio na medida em que eles a realizam. Nova forma de presença é a da forma na
matéria, atualizando-a e determinando-a. A sétima presença é a ligada à autoridade, pela qual a
sorte de um povo está nas mãos do seu rei ou a de uma empresa na do seu presidente. A oitava é
mais radical e sustenta que tudo está no poder do motor imóvel, causa primeira de todo cosmos.
Pela finalidade, temos outro tipo de presença, porque o ente está no fim que procura. Por fim,
temos o décimo significado, que nos interessa primordialmente, pelo qual algo estar em outro
equivale a estar em um recipiente ou em um local (Fis., l. 4, c. 3; 210, a, 14 – 24).
De modo mais sintético, Artigas (2017, p. 184) distingue seis tipos de presença não
localizadas, isto é, independentes do espaço: 1) a da parte no todo (similar à primeira de
Aristóteles); 2) como um ato em seu sujeito, e assim o verde está nas folhas de alface ou o amarelo
está no ouro (é desse tipo a presença da alma no corpo de um ser vivo, pois ela está em cada
uma das partes da substância vivente); 3) como o indivíduo em um todo ordenado, e serve de

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


exemplo o soldado em um batalhão ou as moedas de uma coleção; 4) algo está presente em tudo
que se encontra sob seu poder; 5) a presença fundada na causalidade; 6) a presença daquilo que
é conhecido por outro e está no cognoscente como objeto.
A presença localizada, que depende de um espaço físico de maneira essencial, é o décimo
significado indicado por Aristóteles. A partir dele, estamos possibilitados a estabelecer as noções
de local e de espaço.

2.1.2 Conceito de local e de espaço

Na presença localizada, ou seja, aquela em que um ente está em um local, há uma nota
fundamental que, em parte, a diferencia das demais formas de presença. O espaço ou continente
circunda a coisa, ao mesmo tempo em que é separado dela. Essa separação física, mensurável, não
se dá na presença da parte dentro do todo ou do ato na potência ou da forma na matéria. Se o que
a circunda fosse contínuo à coisa, então ela estaria no que a circunda não como em um local, e
sim como a parte no todo. É o que se dá entre a raiz e o caule de uma árvore: são contínuos e não
se separam, a não ser idealmente; por isso, um está no outro, não localmente, mas como partes
de um todo.
A noção de local implica a de separação entre o ente material e o espaço que o envolve,
independentemente do que esteja nesse espaço (água, ar, vácuo, pedra, e assim por diante). Por
outro lado, ela depende do conceito de presença, de estar aqui ou acolá.
Em vista dessas considerações, podemos definir, seguindo Aristóteles, que o local é o
limite do corpo continente, enquanto tangente ao conteúdo, entendendo-se por conteúdo o corpo
que pode ser movido por locomoção (Fis., l. 4, c. 4, 212, a, 6 - 7). Em outras palavras, o local será
o limite daquilo que envolve o corpo natural ou material. Assim, se estou em uma piscina, o local
será o limite da água que me circunda, a tantos metros da superfície ou do fundo. Esse será o meu
local, que pode ser percebido com precisão.

WWW.UNINGA.BR 60
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Por sua vez, a piscina encontra-se circundada pelo terreno de uma casa e, por isso,
também estaria correto afirmar que estou na casa, dentro da piscina. A casa está em uma rua, que
se encontra em uma cidade, e assim por diante. Todos esses elementos são compreendidos como
local, cada vez com maior amplitude e menos exatidão.
Quanto ao espaço, a questão inicial é qual seria a sua natureza. Entendemos que ele é o
continente contíguo e separado dos entes que nele estão localizados. Como se fosse um vaso ou
vasilha que guardasse os distintos entes materiais em seu interior. Aceitamos que as coisas naturais
estão no espaço; ora, ele não pode ser um corpo. Se o fosse, teríamos dois corpos ocupando
o mesmo ponto: a substância e o espaço. Tampouco é uma causa, porque não se encaixa em
nenhuma das que estudamos anteriormente, ainda que se relacione de alguma maneira com elas.
Partindo do significado dominante de presença, que é o de estar em um recipiente ou
em local, de modo similar como a farinha está no saco ou o óleo está na lata, Aristóteles afirma
que, inicialmente, o local é o que contém a coisa da qual é local, sem ser parte da coisa. Para o
Filósofo, só nos preocupamos com o espaço porque queremos explicar o movimento local. Se os
entes fossem imóveis ou imateriais, não atentaríamos ao espaço nem aos locais. Assim é porque
o espaço deriva da relação entre entes que ocupam distintos locais. Podemos medir, dimensionar
as distâncias entre os locais ocupados pelos corpos e, dessas relações, surge a compreensão da
noção de espaço.
Em termos físicos, o espaço engloba todas as extensões e todas as relações de distância.
Tais relações e extensões dão-se no espaço e, de certo modo, o constituem. O espaço não tem

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


realidade substancial, como se fosse um corpo, mas decorre dos acidentes quantidade e local. Pela
quantidade, o ente possui extensão, esparrama-se em volume; tal esparramar-se dá-se em um
local. Através das relações entre as posições dos distintos entes físicos, abstraímos uma noção de
espaço, que é uma espécie de continente no qual podem estar os seres com quantidade.
Percebemos, então, que o espaço é algo relacionado à materialidade. Seres espirituais não
ocupariam o espaço que conhecemos, nem em uma região distante. Estar em uma região espacial
do universo implica ser dotado de quantidade, de ter materialidade, ou seja, ser um ente físico.

2.2 Tempo, Duração e Movimento

Nossos movimentos e mudanças ocorrem temporalmente. A existência dos seres naturais,


de modo paralelo como se dá no espaço, em uma dimensionalidade, ocorre no tempo, em uma
duração. Tempo e espaço são coordenadas para todos os entes físicos e, se estes estão fora de um
ou de outro, deixam de existir em termos materiais.
Há uma proximidade entre tempo, sucessão, ordem e continuidade. Pensamos no tempo
para tratar do que aconteceu antes – ou seja, foi e não é mais – e do que irá acontecer – não é, mas
virá a ser. O instante presente é algo difícil de precisar. De qualquer modo, o agora é real, agimos
e somos nele e apenas dizemos que fomos ou seremos se, no passado ou no futuro, tivemos ou
teremos uma existência presente e real. “Presente” vem do verbo latino praesum, praeesse, que
significa “ser diante, estar na frente”. O presente é o atual, o que efetivamente é.
Para estudar o tempo, veremos inicialmente a duração e a situação temporal, que são as
duas características temporais básicas. Depois, procuraremos definir o tempo em sua relação
com o movimento.

WWW.UNINGA.BR 61
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

2.2.1 Duração e situação temporal

A existência dos distintos seres materiais dá-se no decorrer de um lapso temporal; eles
estão sujeitos a uma duração, a uma permanência sucessiva que pode inclusive ser medida e
relacionada com outras. O movimento, tal qual o conhecemos, não sucede de maneira imediata
ou, o que seria mais radical, atemporal. Antes, ele pressupõe um desenvolvimento paulatino, que
se dá passo a passo – ainda que os passos sejam extremamente curtos e fugazes – em um sujeito
que permanece.
Se recordarmos a definição do movimento, como o ato do ente em potência enquanto
tal, sabemos que ele implica o ato de algo que ainda não se atualizou plenamente, mas está em
direção de fazê-lo. De modo análogo ao movimento espacial, relacionado à quantidade e à
extensão, também sucede um movimento temporal. Somos capazes de perceber que o tempo
passou exatamente pelos movimentos que identificamos durante um período. É comum, em
filmes, mostrarem a passagem do tempo pela diferença que se dá na luz do Sol ou pelo que
acontece nas árvores e plantas naquela cena.
A duração é algo real, mas não existe em si mesma. Entes que se movem terão duração;
logo, ela está relacionada ao acidental, ao que é em outro. A sucessão temporal, que caracteriza
a duração, é contínua e só vai em uma direção. Não podemos adiantar ou atrasar o tempo, mas
apenas observar como ele se esvai ou avança. O que aconteceu não volta nem pode ser modificado.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


O passado fica para trás, e o futuro chega de modo inevitável, mesmo que sua medição possa ser
alterada se tomada a partir de situações diferentes. Assim, mesmo que o tempo escoe de maneira
mais lenta para um objeto que se movimente próximo da velocidade da luz, comparativamente
a outro objeto em uma velocidade bastante menor, o tempo passará para ambos e poderá ser
medido em função do movimento.
Não podemos sustentar uma duração objetiva e absoluta, que indicasse igualmente para
todos os entes do universo a medida do tempo por que passaram. A própria simultaneidade
entre fenômenos físicos não é facilmente explicada. A situação do observador influencia muito
na medida do tempo, conforme estudamos anteriormente. Vemos nos céus estrelas que nascem e
morrem, isso com simultaneidade à nossa existência na Terra; contudo, o surgimento de um astro
deu-se há milhares ou milhões de anos, e só agora sua luz chega a nós. A simultaneidade depende,
ao menos em parte, da nossa apreensão; não é algo objetivo em si, pela dificuldade de estabelecer
um ponto neutro e absoluto a partir do qual pudéssemos medir tudo.
Por outro lado, sempre é possível determinar a passagem do tempo e a duração a partir
de um ponto de vista concreto. Se, para um objeto rápido, a duração foi de dois anos, segundo
indicam relógios por ele utilizados, para outro observador será de centenas de anos. Ambos
estarão certos a partir da perspectiva que possuem e dos instrumentos que empregaram.
Dentro da duração, podemos fazer comparações e relações e determinar a situação
temporal de distintos entes. Ou seja, o “quando” de eventos ou de substâncias, o momento em que
lhes sucederam certos acontecimentos e qual foi sua duração. Essa situação temporal é justamente
um dos nove acidentes aristotélicos, que determina algo extrínseco da substância, mas que é
relevante para seu entendimento.
A medida da duração para se estabelecer a situação temporal – 300 a.C., há 15h, 5.000 anos
atrás, em 20 segundos, e assim por diante – é feita por meio de unidades de tempo convencionais.
Na história do ser humano, costumam-se empregar divisões ou múltiplos do dia – a rotação da
Terra em torno de si mesma – ou dos anos – a translação do planeta Terra ao redor do Sol. Isso
tem servido bem para nós uma vez que nossa vida se passa nas condições físicas da superfície
terrestre, com sua velocidade característica.

WWW.UNINGA.BR 62
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Os filósofos perceberam que a duração não se dá do mesmo modo nos distintos entes. Em
seres imóveis, o tempo não se daria; eles são de maneira imediata e plena, não se completando nem
se desenvolvendo em uma sucessão, porque seriam completos em si mesmos. A eternidade seria
o característico desses entes fora do tempo, e ela pode ser compreendida como a uniformidade
daquilo que está totalmente isento de movimento (S. T., I, q. 10, art. 1, co.). Ou, na definição do
filósofo Boécio, a eternidade é a possessão total, simultânea e completa da vida interminável. Na
metafísica, mostra-se que, de modo cabal, apenas Deus é plenamente imóvel, porque não tem
qualquer potencialidade.
Os entes puramente imateriais, mas não imóveis, não estão sujeitos à passagem do
tempo como os seres materiais. Uma vez que existam, não podem ser destruídos. Por outro lado,
tampouco possuem a posse total e simultânea da existência. Apresentam mudanças próprias do
ser espiritual, como são os atos sucessivos de conhecer, amar e agir de determinada maneira. Se
Deus está na eternidade, os seres puramente espirituais estão na eviternidade.
Os seres materiais estão sujeitos à temporalidade e às mudanças substanciais e acidentais.
Neles, também podemos identificar graus, de acordo com a maneira como se desenvolvem no
tempo. Os seres vivos, e em especial os intelectuais, têm uma consciência do tempo e das próprias
ações, o que permite dizer que são responsáveis pela própria história. Por sinal, a História, como
área do conhecimento, deriva do tipo de relação que os seres humanos têm com o tempo e a
sucessão de eventos que nele ocorrem.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4


2.2.2 O conceito de tempo

A definição do tempo, proposta por Aristóteles, é bastante simples e segue sendo


satisfatória. Para o Filósofo, o tempo não é o movimento, mas um atributo dele. O tempo possui,
conforme estudamos, uma grandeza, tanto que pode ser medido. É próprio do tempo tratar de
um antes ou de um depois, ao lado do agora; também o movimento se desenvolve conforme um
antes ou um depois, e isso é marca da sucessão.
A partir dessas considerações, Aristóteles conclui que o tempo é o número do movimento
segundo o antes e o depois (Fis.. l. 4, c. 11; 219, b, 1 – 2). Ou seja, é a medida do movimento, não
em sua extensão, como vimos ao tratar do espaço e do local, e sim em sua sucessão ou duração.
Há uma discussão importante entre comentadores de Aristóteles se ele considerou que
o tempo apenas existiria porque há um sujeito que o possa contar ou numerar. Não nos cabe
aprofundar nisso agora; basta aqui afirmar que, mesmo que não houvesse um ser capaz de numerá-
lo, o tempo continuaria a transcorrer, porque ele seguiria sendo em si mesmo mensurável por
um ente que tivesse as condições de conhecimento necessárias para fazê-lo. Ou seja, o fato de o
tempo não estar sendo efetivamente contado ou numerado não significa que ele tivesse deixado
de correr; tanto que o homem pode indicar os anos e milênios anteriores ao surgimento da vida
inteligente na Terra.
O tempo existe devido ao instante, e este também ocorre no tempo. O instante seria como
um congelamento do movimento, sendo que o instante seguinte já trará uma diferença no ente.
Há realidades que permanecem no transcorrer do tempo, de modo similar como elas se mantêm
durante o movimento. Um ser humano que envelheça apresenta as várias mudanças próprias da
idade, ao mesmo tempo em que continua sendo ele mesmo, com a sua substância.
É fácil identificar um paralelismo entre a temporalidade e a espacialidade. Ambas são
medidas do movimento a partir de critérios distintos. Também podem as duas indicar uma
“posição” ou “situação”, seja ela local, seja temporal. O local em que algo está é definido em paralelo
com um momento no tempo. Assim, às 10h, fulano saiu de casa; às 13h, ele estava no restaurante;
e por aí vai. As coordenadas do tempo e do espaço se exigem para determinar aspectos da situação
do ente no mundo material.

WWW.UNINGA.BR 63
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

Sendo o tempo a medida do movimento, ele não é absoluto nem totalmente


independente de quem o contabiliza. Essa noção, de origem aristotélica, chama a
atenção pela sua flexibilidade e atualidade. Com a física newtoniana, ela parecia
superada, mas a relatividade de certo modo a recuperou. É curioso como conceitos
filosóficos aparentemente são refutados para, depois, voltarem com nova força.

Física – Aristóteles. Não é uma leitura fácil, e seu conteúdo está


exposto em nosso curso. Mas, se houver a oportunidade, sugerimos
a leitura dos quatro primei-ros livros dessa obra para um contato
direto com o texto aristotélico. Há edições em várias línguas; uma
delas, em inglês, está na Internet:
http://classics.mit.edu/Aristotle/physics.html.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4

WWW.UNINGA.BR 64
EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As qualidades são muito diversas e ilustram a riqueza da realidade à nossa volta. Nos
entes físicos, elas estão ligadas à quantidade e à matéria. De modo semelhante ao espaço e ao
tempo, que são entendidos a partir do movimento dos entes materiais.
Ao fim das quatro unidades, esperamos que tenha ficado claro que as várias noções
estudadas na filosofia da natureza estão bastante interligadas, uma exigindo a outra. Dominando
todas elas, podemos chegar mais perto da compreensão do todo, meta da filosofia em geral.

FILOSOFIA DA NATUREZA | UNIDADE 4

WWW.UNINGA.BR 65
ENSINO A DISTÂNCIA

REFERÊNCIAS
ARISTOTE. Physique (I-IV). Texte établi et traduit par Henri Carteron. Paris: Les Bel-les Lettres,
1973.

ARISTOTELE. Fisica. Texto greco a fronte. A cura de Roberto Radice. Milano: Bom-piani, 2011.

ARISTOTELES. Metafísica. São Paulo: Loyola, 2002. v. 2.

ARTIGAS, M. Filosofia da natureza. 2. ed. Tradução de José Eduardo de Oli-veira e Silva. São
Paulo: IBFCRL, 2017.

ARTIGAS, M. Filosofia da natureza. 2. ed. Tradução de José Eduardo de Oliveira e Silva. São
Paulo: IBFCRL, 2017.

BRAGUE, R. Introdução ao mundo grego: estudos de história da filosofia. Tradução de Nicolás


Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2007.

BRAGUE, R. Introdução ao mundo grego: estudos de história da filosofia. Tradução de Nicolás


Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2007.

FESER, E. Aristotle’s revenge: the metaphysical foundations of physical and biological science.
Neunkirchen-Seelscheid: Editiones Escolasticae, 2019.

MARITAIN, J. A filosofia da natureza. Tradução de Luiz Paulo Rouanet. São Paulo: Loyola, 2003.

MILLAN PUELLES, A. Fundamentos de filosofía. 7. ed. Madrid: Rialp, 1970.

THOMAE AQUINATIS. De principiis naturae. Romae: Editio Leonina, 1972. Dispo-nível


em: https://aquinas.cc/la/en/~DePrinNat.

THOMAE AQUINATIS. In octo libros Physicorum Aristotelis expositio. Romae/Taurini:


Marietti, 1954. Disponível em: https://aquinas.cc/la/en/~Phys.

WWW.UNINGA.BR 66

Você também pode gostar