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A montagem ideológica ou intelectual

Cinema - Técnica Cinematográfica


A chama montagem ideológica ou intelectual é uma operação com um objetivo mais ou menos descritivo
que consiste em aproximar planos a fim de comunicar um ponto de vista, um sentimento ou um conteúdo
ideológico ao espectador. Eisenstein escreveu na justificativa de sua montagem de atrações: "uma vez
reunidos, dois fragmentos de filme de qualquer tipo combinam-se inevitavelmente em um novo conceito,
em uma nova qualidade, que nasce, justamente, de sua justaposição (...)
A montagem é a arte de exprimir ou dar significado através da relação de dois planos justapostos, de tal
forma que esta justaposição dê origem à idéia ou exprima algo que não exista em nenhum dos dois planos
separadamente. O conjunto é superior à soma das partes".

Amparado nestes ditos de Eisenstein, há de se ver que, no cinema, como em quase todos os ramos das
ciências, quando se reúne elementos (no sentido amplo) para obter um resultado, este é freqüentemente
diferente daquele que se esperava: é o fenômeno dito de emergência. Aprende-se, por exemplo, em
biologia, que pai e mãe misturam seu patrimônio hereditário para criar uma terceira personagem não pela
soma desses dois patrimônios, mas, ao contrário, pela combinação deles em um novo patrimônio inédito.
Em química, sabe-se ser possível misturar dois elementos em quaisquer proporções, mas não é possível
combiná-los verdadeiramente em um corpo novo se não tem proporções perfeitamente definidas
(Lavoisier). Da mesma forma, na montagem de um filme, os planos só podem ser reunidos numa relação
harmoniosa.

A montagem ideológica consiste em dar da realidade uma visão reconstruída intelectualmente. É preciso
não somente olhar, mas examinar, não somente ver, mas conceber, não somente tomar conhecimento, mas
compreender. A montagem é, então, um novo método, descoberto e cultivado pela sétima arte, para
precisar e evidenciar todas as ligações, exteriores ou interiores, que existem na realidade dos
acontecimentos diversos.

A montagem pode, assim, criar ou evidenciar relações puramente intelectuais, conceituais, de valor
simbólico: relações de tempo, de lugar, de causa, e de conseqüência. Pode fazer um paralelo entre
operários fuzilados e animais degolados, como, por exemplo, em A Greve (1924), de Eisenstein. As
ligações , sutis, podem não atingir o espectador. Eis, aqui, um exemplo da aproximação simbólica por
paralelismo entre uma manifestação operária em São Petersburgo e uma delegação de trabalhadores que
vai pedir ao seu patrão a assinatura de uma pauta de reivindicações (exemplo extraído do filme Montanhas
de ouro, do soviético Serge Youtkévitch).

- os operários diante do patrão


- os manifestantes diante do oficial de polícia
- o patrão com a caneta na mão
- o oficial ergue a mão para dar ordem de atirar
- uma gota de tinta cai na folha de reivindicações
- o oficial abaixa a mão; salva de tiros; um manifestante tomba. 
A experiência de Kulechov demonstra o papel criador da montagem: um primeiro plano de Ivan
Mosjukine, voluntariamente inexpressivo, era relacionado a um prato de sopa fumegante, um revólver, um
caixão de criança e uma cena erótica. Quando se projetava a seqüência diante de espectadores
desprevenidos, o rosto de Mosjukine passava a exprimir a fome, o medo, a tristeza ou o desejo. Outras
montagens célebres podem ser assimiladas ao efeito Kulechov: a montagem dos três leões de pedra - o
primeiro adormecido, o segundo acordado, o terceiro erguido - que, justapostos, formam apenas um,
rugindo e revoltado (em O Encouraçado Potemkin, 1925, de Eisenstein); ou ainda a da estátua do czar
Alexandre III que, demolida, reconstitui-se, simbolizando assim a reviravolta da situação política
(em Outubro ).

O que Kulechov entendia por montagem se assemelha à concepção do pioneiro David Wark Griffith,
argumentando que a base da arte do filme está na edição (ou montagem) e que um filme se constrói a
partir de tiras individuais de celulóide. Pudovkin, outro teórico da escola soviética dos anos 20, pesquisou
sobre o significado da combinação de duas tomadas diferentes dentro de um mesmo contexto narrativo.
Por exemplo, em Tol'able David (1921), de Henry King, um vagabundo entra numa casa, vê um gato e,
incontinente, atira nele uma pedra. Pudovkin lê esta cena da seguinte forma: vagabundo + gato = sádico.
Para Eisenstein, Pudovkin não está lendo - ou compreendendo o significado - de maneira correta, porque,
segundo o autor de A Greve a equação não é A + B, mas A x B, ou, melhor, não se trata de A + B = C,
porém, a rigor, A x B = Y. Eisenstein considerava que as tomadas devem sempre conflitar, nunca, todavia,
unir-se, justapor-se. Assim, para o criador da montagem de atrações, o realizador cinematográfico não
deve combinar tomadas ou alterná-las, mas fazer com que as tomadas se choquem: A x B = Y, que é igual
a raposa + homem de negócios = astúcia. Em Tol'able David, quando Henry King corta do vagabundo ao
gato, tanto o primeiro como o segundo figuram proeminentemente na mesma cena. Em A Greve, quando
Eisenstein justapõe o rosto de um homem e a imagem de uma raposa (que não é parte integrante da cena
da mesma forma que o gato o é em Tol'able David, porque, para King, o gato é um personagem),esta é
uma metáfora.
Em Estamos construindo (Zuyderzee, 1930), de Jori Ivens, várias tomadas mostram a destruição de
cereais (trigo incendiado ou jogado no mar) durante o débacle de 1929 da Bolsa de Valores de Nova York,
a depressão que marcou o século XX. Enquanto apresenta os planos de destruição de cereais, o realizador
alterna -os com o plano singelo de uma criança faminta. Neste caso, o cineasta, fotografando uma
realidade, recorta uma determinada significação. Os planos fotografados por Jori Ivens podem ser
retirados da realidade circundante, mas é a montagem quem lhes dá um sentido, uma significação. Os
cineastas soviéticos, como Serguei Eisenstein e Pudovkin, procuravam maximizar o efeito do choque que
a imagem é capaz de produzir a serviço de uma causa.

Considerada a expressão máxima da arte do filme, a montagem, entretanto, vem a ser questionada na sua
supremacia como elemento determinante da linguagem cinematográfica com a introdução - em fins dos
anos 30 - das objetivas com foco curto que permitiu melhorar as filmagens contínuas - a câmera
circulando dentro do plano - com uma potenciação de todos os elementos da cena e com um tal
rendimento da profundidade de campo (vide Cidadão Kane1941, de Orson Welles,Os melhores anos de
nossas vidas, 46, de William Wyler) que possibilitou tomadas contínuas a dispensar os excessivos
fracionamentos da decupagem clássica. A tecnologia influi bastante na evolução da linguagem fílmica,
dando, com o seu avanço, novas configurações que modificam o estatuto da narração - o próprio primeiro
plano - oclose up- tão exaltado por Bela Balazs como "um mergulho na alma humana" - com o advento
das lentes mais aperfeiçoadas já se encontra, esteticamente, com sua expressão mais abrangente e menos
restrita. Tem-se, como exemplo, as faces enrugadas e pavorosas de David Bowie em Fome de Viver/The
Hunger,1983, de Tony Scott, com Catherine Deneuve e Susan Sarandon.

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