Você está na página 1de 94

hexag

SISTEMA DE ENSINO
1º edição
São Paulo
2016
hexag
SISTEMA DE ENSINO
© Hexag Editora, 2016
Direitos desta edição: Hexag Editora Ltda. São Paulo, 2016
Todos os direitos reservados.

Autor
Lucas Limberti

Diretor geral
Herlan Fellini

Coordenador geral
Raphael de Souza Motta

Responsabilidade editorial
Hexag Editora

Diretor editorial
Pedro Tadeu Batista

Editor
Antônio Sérgio Souza

Revisores
Ana Paula Chican de Oliveira
Arthur Tahan Miguel Torres

Programação visual
Hexag Editora

Editoração eletrônica
Cesar Rodrigues da Mata (Schäffer Editorial)

Capa
Hexag Editora

Impressão e acabamento
Imagem Digital

Todas as citações de textos contidas neste livro didático estão de acordo com a legislação, tendo por fim único e exclusivo o
ensino. Caso exista algum texto a respeito do qual seja necessária a inclusão de informação adicional, ficamos à disposição
para o contato pertinente. Do mesmo modo, fizemos todos os esforços para identificar e localizar os titulares dos direitos sobre
as imagens publicadas e estamos à disposição para suprir eventual omissão de crédito em futuras edições.
O material de publicidade e propaganda reproduzido nesta obra está sendo usado apenas para fins didáticos, não
representando qualquer tipo de recomendação de produtos ou empresas por parte do(s) autor(es) e da editora.

2016
Todos os direitos reservados por Hexag Editora Ltda.
Rua da Consolação, 954 – Higienópolis – São Paulo – SP
CEP: 01302-000
Telefone: (11) 3259-5005
www.hexag.com.br
contato@hexag.com.br
SUMÁRIO

Iracema 6
Memórias póstumas de Brás Cubas 22
O cortiço 46
A cidade e as serras 66
Negrinha 84
Prefácio

A literatura realista e a crise da burguesia


Obras realistas que desnudam o homem em seus aspectos sociais, morais e psicológicos

O estudo das obras literárias sobrevive nos vestibulares como um último sustentáculo da arte como objeto de
estudo e a Literatura representa esta haste que é, sem dúvida, um dos mais importantes conhecimentos humanos.
A presente obra tem por objetivo refletir sobre as obras literárias que estão elencadas nos vestibulares da Fuvest
e da Unicamp.
Um olhar atento para essas listas indica um claro agrupamento de obras no que diz respeito ao contexto
histórico e suas escolas literárias. A começar por Iracema, de José de Alencar, que representa, neste volume, uma
exceção, pois faz parte da tríade indianista do autor na primeira geração romântica brasileira.
Este volume traçará um caminho sobre o romance da segunda metade do século XIX, ou seja, do desenvol-
vimento do Realismo-Naturalismo no Brasil e em Portugal.
No Brasil, o destaque se dá para duas obras magnas da nossa literatura e que estão tanto na lista da Fuvest,
como na lista da Unicamp. A primeira delas Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, que dá, início
ao Realismo no Brasil, no ano de 1881, e a obra “O cortiço”, de Aluísio Azevedo, publicada em 1890, principal
expoente da tendência naturalista no País.
Ambos escritores são essencialmente a alma do que se produziu no País no período, trazendo, nestas obras,
uma reflexão sobre a condição da sociedade brasileira em seus aspectos psicológicos, históricos e, primordialmente,
sociais.
Machado, conhecido como o “Bruxo do Cosme Velho”, faz uma imersão psicológica numa personagem que
narra suas memórias, depois de morto. Uma ironia fina que cria o pedestal de sua genialidade e destreza com as
palavras, uma profunda análise da burguesia, classe social que, desde essa época, vive suas hipocrisias e falsidades
morais.
Já Aluísio Azevedo vai “chafurdar” na realidade da pobreza e da vida humana em seus aspectos mais áspe-
ros. Influenciado pelas teorias cientificistas em voga, vai criar o chamado “romance de tese”, no qual o meio será
preponderante na constituição dos sujeitos imersos, sempre num círculo depreciativo da vida.
A obra A cidade e as Serras, de Eça de Queirós, publicada em 1901, é a representante da literatura portu-
guesa neste conjunto realista cobrado na Fuvest. Destaca um momento em que Eça resolve fazer as pazes com
um Portugal rural e arcaico que ele criticou durante toda a sua vida, conduzindo um romance que busca equilibrar
tanto o lado positivo da civilização quanto a simplicidade do campo, problematizando a vida de Jacinto entre Paris,
na França, e Tormes, em Portugal.
O Caderno, que abre os estudos com uma obra romântica, fecha com uma pré-modernista, que é o conto
Negrinha, de Monteiro Lobato. Uma crítica aos atos sádicos de uma senhora da sociedade contra uma negrinha
sua agregada. O conto surge com uma espécie de remissão de seus pecados, ditos preconceituosos por grande
parcela da crítica.
É interessante perceber que este conjunto realista possui, essencialmente, uma linha condutora da escola e
do contexto em questão, porém cada uma delas apresenta peculiaridades que serão desenvolvidas individualmen-
te, dissecando seus aspectos técnicos e profundidades artísticas.
Boas leitura e análise!

Lucas Limberti

5
Iracema

José de Alencar
O autor e sua bibliografia de crônica, críticas e várias peças teatrais, como Mãe e
O jesuíta, encenada na época.
José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana
A produção diversificada de Alencar estava
(CE). Formou-se em Direito, em Recife.
voltada ao projeto de construção da cultura brasileira,
Em 1856, teve início a polêmica a respeito de
no qual o romance indianista, buscando um tema na-
A Confederação dos Tamoios, de Gonçalves de Maga-
cional e uma língua mais brasileira, ganhou papel de
lhães, no Diário do Rio de Janeiro. Sob o pseudônimo
destaque.
de Ig, José de Alencar criticou a obra. O resultado foi o
desentendimento com D. Pedro II, amigo particular de
Gonçalves de Magalhães. No mesmo ano, Alencar pu-
blicou seu primeiro romance, Cinco minutos. Em 1857,
escreveu O guarani, como resposta à polêmica.

José de Alencar

O autor e seu período


Alencar não destoa das características gerais do Ro-
Obras mantismo. Seus romances retratam um Brasil e perso-
§ Romances: Cinco minutos (1856), O guarani nagens mais ideais do que reais, pelo menos como ele
(1857), A viuvinha (1869), Lucíola (1862), Diva gostaria que moralmente fossem em sua fantasia ro-
(1865), Iracema (1865), O gaúcho (1870), A mântica e moralismo, e não como objetivamente eram.
pata da gazela (1870), O tronco do ipê (1871),
Guerra dos mascates (1871-1873), Sonho
d’ouro (1872), Til (1872), Alfarrábios (1873),
O romance indianista
Ubirajara (1874), Senhora (1875), O sertanejo
(1875) e Encarnação (1893).

José de Alencar e o
romance indianista
José de Alencar (1829-877) foi o principal romancista
brasileiro da fase romântica. Cearense, cursou Direito
em São Paulo e viveu a maior parte de sua vida no Rio
de Janeiro. Dedicou-se à carreira de advogado e atuou
também como jornalista. Na política, foi eleito, várias Enquanto o branco era identificado como o coloniza-
vezes, deputado e chegou a ocupar o cargo de ministro dor europeu e o negro, como o escravo africano, o ín-
da justiça, que exerceu de 1868 a 1870. dio era considerado o único e legítimo representante
Na literatura, escreveu romances indianistas, da América. Assim, o Romantismo brasileiro encontrou
históricos, urbanos e regionalistas. Foi também autor no índio uma autêntica expressão de nacionalidade
7
e, por meio do indianismo, alcançou algumas de suas Leia um trecho da obra Iracema:
melhores realizações, tanto na poesia quanto na prosa.
Vários fatores contribuíram para a implantação Além, muito além daquela serra, que ainda azula
do indianismo em nossa cultura, entre eles a existên- no horizonte, nasceu Iracema.
cia de uma tradição literária indianista do período Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os
cabelos mais negros que a asa da graúna e mais
colonial – introduzida pela literatura de informação e
longos que seu talhe de palmeira.
catequética e retomada pela épica de Basílio da Gama
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem
e Santa Rita Durão – e a influência da teoria do bom
a baunilha recendia no bosque como seu hálito
selvagem, de Rousseau, cujo representante mais di-
perfumado.
reto, entre nós, era o índio. Outro fator importante foi Mais rápida que a ema selvagem, a morena virgem
a adaptação que os escritores românticos brasileiros corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava
fizeram da figura idealizada do herói medieval: como sua guerreira tribo da grande nação tabajara, o
o Brasil não teve Idade Média, seu “herói medieval” pé grácil e nu mal roçando alisava apenas a verde
passou a ser o índio, o habitante do País no período pelúcia que vestia a terra com as primeiras águas.
pré-cabralino. Um dia, ao pino do sol, ela repousava em um cla-
ro da floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da
oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os
A obra ramos da acácia silvestre esparziam flores sobre
os úmidos cabelos. Escondidos na folhagem os
O começo da história se dá com o guerreiro pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho; o aljôfar d’água ainda a
branco Martim Soares Moreno, amigo dos índios
roreja, como à doce mangaba que corou em ma-
pitiguaras, que habitavam o litoral, perdendo- nhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das
-se nas matas. Martim foi encontrado por Ira- penas do gará as flechas de seu arco, e concerta
cema (anagrama de América), a deslumbrante com o sabiá da mata, pousado no galho próximo,
virgem, filha do pajé Araquém, da tribo dos o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca
tabajaras, habitantes do interior da região.
junto dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e
de lá chama a virgem pelo nome; outras remexe o
Iracema acolheu o jovem branco e levou-o para uru de palha matizada, onde traz a selvagem seus
sua tribo, onde ele foi recebido como hóspede e perfumes, os alvos fios do crautá, as agulhas da
amigo. Ao inteirar-se da celebração que os taba- juçara com que tece a renda, e as tintas de que
matiza o algodão.
jaras faziam a seu grande chefe Irapuã, que vai
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta.
comandá-los num combate aos pitiguaras, Mar- Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra;
tim resolve fugir, naquela mesma noite. Iracema o sua vista perturba-se.
impede, pedindo-lhe que aguarde a volta de seu Diante dela e todo a contemplá-la, está um guer-
irmão Caubi, que poderia guiá-lo pelas matas. reiro estranho, se é guerreiro e não algum mau

8
espírito da floresta. Tem nas faces o branco das O narrador e o foco narrativo
areias que bordam o mar; nos olhos o azul triste
das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ig- O romance é narrado na 3ª pessoa, mas o narrador,
notos cobrem-lhe o corpo. que não é neutro, é também onisciente. Em alguns mo-
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A
mentos, o narrador chega a revelar-se na 1ª pessoa.
flecha embebida no arco partiu. Gotas de sangue
borbulham na face do desconhecido. O narrador se apresenta também em forma de flash
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz back.
da espada, mas logo sorriu. O moço guerreiro
aprendeu na religião de sua mãe, onde a mulher Tempo
é símbolo de ternura e amor. Sofreu mais d’alma
que da ferida. O tempo é psicológico, não dá para precisá-lo. Século
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, XVII – fundação e colonização da cidade do Ceará.
não o sei eu. Porém a virgem lançou de si o arco
e a uiraçaba, e correu para o guerreiro, sentida da Espaço
mágoa que causara.
No capítulo XXXIII, consta que o fato se deu no Nor-
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e
compassiva o sangue que gotejava. Depois Irace- deste do Brasil. O subtítulo informa que é uma lenda
ma quebrou a flecha homicida: deu a haste ao do Ceará.
desconhecido, guardando consigo a ponta farpa-
da. Linguagem
O guerreiro falou:
A força emocional proposta por José de Alencar dá às
— Quebras comigo a flecha da paz?
— Quem te ensinou, guerreiro branco, a lingua- suas personagens uma intensa pesquisa de linguagem.
gem de meus irmãos? Donde vieste a estas matas, O tom poético do livro é uma constante; comparações
que nunca viram outro guerreiro como tu ? metafóricas valorizam uma natureza vibrante. José de
— Venho de bem longe, filha das florestas. Venho
das terras que teus irmãos já possuíram, e hoje Alencar pesquisou termos indígenas e nomes de locais
têm os meus. geográficos, com a intenção didática de resgatar tais
— Bem-vindo seja o estrangeiro aos campos dos termos e explicá-los para o seu leitor contemporâneo.
tabajaras, senhores das aldeias, e à cabana de
Araquém, pai de Iracema.
ALENCAR, José de. Iracema. Em: Obra completa. Op.cit. Problemática e
temas da obra

Análise estrutural da obra


e seus personagens Por que o negro não
se tornou herói?

Personagens Das três etnias que formaram o povo brasileiro,


apenas o índio se tornou herói na literatura ro-
§ Iracema: índia da tribo dos tabajaras, filha do mântica. O branco, por identificar-se com o coloni-
velho pajé zador português, não poderia ser o herói nacional
§ Martim: guerreiro branco (deus romano da naquele momento, porque isso entraria em cho-
guerra e da destruição – Marte) que com o sentimento nacionalista e antilusitano
§ Moacir (filho da dor e do sofrimento): filho de que surgiu após a Independência. O negro repre-
Iracema e de Martim sentava o alicerce econômico daquela estrutura
§ Araquém: o pajé, pai de Iracema social, a mão de obra escravizada e compelida ao
§ Caubi: irmão de Iracema trabalho.
§ Irapuã: inimigo dos portugueses e seus alia- Seria, portanto, um contrassenso econômico
dos, apaixonado por Iracema e social elevá-lo à condição de herói, uma vez que
muitos escritores da época faziam parte da classe
§ Poti: amigo de Martim, guerreiro pitiguara.

9
Resumo dos capítulos
dominante e compactuavam com o regime escra-
vocrata. Capítulo 1
Desse modo, coube ao índio, isento de cono- Para descrever as águas do mar de sua terra natal, o
tações negativas, sociais e econômicas, o papel de narrador faz uso da expressão “verdes mares”. Nesse
herói nacional em nossa literatura romântica.
primeiro capítulo, relata-nos que nesse mar há uma
jangada que deixa a costa cearense. Um jovem guer-
reiro de tez branca, um garoto e um rafeiro seguem
Amor proibido nessa jangada. De maneira muito angustiante, o jovem
As proibições reforçam ainda mais o amor entre exclama “Iracema!”, olhando em direção à praia, se-
a índia e o português. São as primeiras de muitas guido por um amargo sorriso e uma lágrima que escor-
provações que tal união terá de enfrentar. Em li- re por seu rosto.
nhas gerais, o romance estrutura-se no embate en-
tre tudo o que une e o que separa os dois amantes. Capítulo 2
Iracema conduz Martim ao bosque sagrado, onde
A virgem dos lábios de mel, como é descrita Iracema ,
lhe ministra uma poção alucinógena. O guerreiro
está sempre com a natureza a sua volta. Nesse capitu-
branco delira, e a índia adormece entre os seus
lo, há muitas comparações entre ela e a beleza natural.
braços.
Destaque para seus cabelos negros e longos que são
Sucede-se o encontro amoroso entre Martim e Ira-
cema, narrado delicadamente pelo autor. Martim como a asa da graúna, seu sorriso é considerado mais
está inconsciente por ter ingerido a bebida da ju- doce que o favo do jati, ela banha-se e canta como um
rema e a índia deita-se ao seu lado. A frase “Tupã sabiá do mato – há um destaque muito forte para o
já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras” é a lado da beleza natural e selvagem.
sutil indicação de que a união amorosa se realizara. De repente, Iracema ouve um ruído na mata e
Os acontecimentos que se seguem têm como encontra um guerreiro estranho que estava a admirá-
pano de fundo a guerra entre pitiguaras e taba- -la. O rapaz tinha faces brancas, olhos azuis e usava
jaras. Martim escapa de seus inimigos tabajaras e tecidos que lhe cobriam o corpo todo. Seguindo seus
une-se aos vencedores pitiguaras. instintos, a morena lança uma flecha, assim faz um cor-
O casal muda-se então para uma cabana afastada, te no rosto do desconhecido, que começa a sangrar.
localizada numa praia idílica. Com eles vai Poti, o Para sua surpresa, o moço responde com um sorriso
grande amigo de Martim. Lá vivem um tempo de para ela. A índia corre para socorrer o rapaz, arrependi-
felicidade, culminando com a gravidez de Iracema e da de seu ato, largando o arco. Primeiro, ela estanca o
o batismo indígena de Martim, que recebe o nome sangue com a mão; depois, quebra a mesma flecha que
de Coatiabo, ou “gente pintada”. Com o passar do causou o ferimento e lhe entrega a haste, mas guarda
tempo, contudo, o português se entristece por não a ponta para si – isso demonstra um ato de paz entre
poder dar vazão a seu espírito guerreiro e por es- os índios. Iracema estranha o fato do rapaz entender a
tar com muita saudade de sua gente. A bela índia tradição indígena. Fazem as devidas apresentações e
tabajara também se mostra cada vez mais triste. Iracema o declara bem-vindo.
Numa ocasião em que Martim e Poti saem para
uma batalha, nasce o filho, Moacir. Quando os dois Capítulo 3
amigos voltam da guerra, encontram Iracema à
A virgem guia Martim pela floresta até chegar à caba-
beira da morte. O corpo da índia é enterrado aos
na de Araquém, que é o pai de Iracema, um velho pajé
pés de um coqueiro, em cujas folhas se pode ou-
vir um lamento. Daí vem o nome Ceará, canto de de raros cabelos brancos. Ele os espera na porta e os
sua jandaia de estimação, uma ave que sempre a recebe com cordialidade.
acompanhava. Por acreditar que Martim havia sido levado até
ali por Tupã, o deus adorado pelos índios, o pajé rece-
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/estude/ beu bem o jovem branco e, assim, que finalizaram a
literatura/materia_415267.shtml. Acesso em: 4 abr. de 2016.

10
refeição, declarou – o mancebo, homem muito moço, bo pitiguara é chamada desse modo pelos seus inimi-
referindo-se a Martim, senhor de sua cabana, com gos, como forma de lhes ridicularizar, pois potiguara
incontáveis mulheres a servi-lo e um exército de mil significa “comedores de camarão”, enquanto pitiguara
guerreiros para lhe proteger. significa “senhores dos vales”).
Martim, nome que significa filho de guerreiro, Em seguida, jogou seu tacape (arma indígena)
contou rapidamente sua história. ao exército. O guerreiro que o segurava gritava forte-
Há três dias o jovem e os pitiguaras, tribo inimi- mente e o passava adiante. Até que este chegou à mão
ga dos tabajaras, haviam saído para caçar, mas Martim do velho Andira, irmão do pajé, que surpreendente-
se perdeu no campo dos tabajaras. O jovem era um mente o jogou no chão e o pisou.
desbravador que, junto de seu povo, levantou bandeira Todos fazem silêncio, espantados por este ato
nas margens do Jaguaribe, onde habitam os pitiguaras. de ousadia. O velho contraria o chefe dizendo, pela
Lá foi tão bem recebido pelo bravo guerreiro Poti e seu sua experiência no campo (lendas afirmam que lutou
irmão Jacaúna, com quem plantou a árvore da amiza- mais em guerras do que o número de dias vividos), ser
de, que decidiu ficar em sua cabana, enquanto seus melhor esperar que os inimigos venham realmente em
companheiros escolheram retornar à terra natal. Mas suas terras, para somente então lutar e obter a vitória;
agora havia se perdido deles. lembrando que o povo tabajara sempre foi cauteloso.
Irapuã alega tratar da voz indigna de um bêba-
Capítulo 4 do covarde que só ataca o inimigo quando este não
pode se defender.
Iracema trouxe as mulheres que serviriam o mancebo à
cabana. Martin queria que Iracema também fosse sua
serva e quis saber dela por que não poderia; sendo as-
Capítulo 6
sim, ela respondeu que precisava ser casta por motivos O jovem guerreiro branco admira a natureza com nostal-
religiosos: era ela a responsável por guardar o segredo gia de sua terra natal e das pessoas que deixou. Quando
de Jurema (outro ser divino da crença dos tabajaras) Iracema chegou, quis saber o motivo de sua cólera; ele
e somente ela podia fabricar para o pajé a bebida de lhe revelou que possuía uma esposa. Depois de perceber
Tupã. o quanto ela ficou triste com a confissão, disse que sua
No mesmo dia, houve uma festa na tribo para prometida não é tão bonita e doce como Iracema.
comemorar a volta do seu grande chefe Irapuã, que os Caminharam juntos por um tempo na floresta
levaria para lutar contra os pitiguaras. Aproveitando a até chegar ao bosque sagrado de Jurema, lugar que se
distração de toda a aldeia, Martim saiu de sua cabana encontravam os grandes troncos da árvore de Tupã, es-
e tentou encontrar o caminho de volta aos pitiguaras. paço sagrado de onde a virgem retira a bebida do deus:
Iracema, sentindo-se ofendida por seu hóspede um estranho licor verde, o qual preparou para o estran-
sair escondido, pediu que pelo menos esperasse Caubi geiro, para que melhorasse de seu estado melancólico.
(irmão da índia) voltar da caça, para poder guiá-lo com Em seguida, Martim sentiu passar pelo sono da
segurança. Arrependido por seu ato, o jovem obedeceu. morte, mas depois lhe veio a luz e sentiu uma enorme
alegria: reviveu desde as mais antigas lembranças e
Capítulo 5 sentimentos de sua terra natal até o presente. Recupe-
rando-se desse estado de êxtase da alucinação, abra-
Guerreiros tabajaras corriam com suas armas até os
çou a índia com força, sussurrando-lhe seu nome; mas
campos, até que seu chefe soltou o grito de guerra com
em resposta ela se afastou.
uma voz forte e imponente. Durante seu discurso, Ira-
puã reafirmou intensamente os direitos dos tabajaras
sobre todas as terras, enquanto estas foram dadas pelo
Capítulo 7
seu deus Tupã. No entanto, havia homens insolentes Devido a sua consciência, em razão de seu dever em
ultrapassando os limites, como os emboabas, que logo ser casta, fugindo do seu amante, foi surpreendida
estariam em seu terreno junto dos “potiguaras” (a tri- pelo infame Irapuã. Iracema o repreendeu por sua pro-
11
ximidade àquele lugar sagrado; ele respondeu que a Capítulo 10
doce lembrança da índia não o permitiu dormir e então
De volta à sua cabana, Iracema fazia suas tarefas com
começou a segui-la. Após ver a cena do casal se abra-
muita cólera, nem mesmo sua velha amiga ará (uma
çando tão amorosamente, ficou sedento pelo sangue
ave típica da região) conseguiu transformar suas lágri-
do estrangeiro. Enfim, perguntou-lhe com tom maléfi-
mas em um sorriso. Até que ouviu o grito de Caubi, e,
co se com o sangue do guerreiro branco em sua veia a
preocupada a virgem foi correndo até a campina.
índia o amaria.
Deparou-se com Martim e Caubi, que tinha um
Irada, Iracema defendeu seu hóspede, ela não
olhar cheio de ira e armas às mãos, em frente a mais de
deixaria que nada e nem ninguém o machucasse, e se
cem guerreiros tabajaras liderados pelo vil Irapuã, que
Irapuã tinha tal desejo, ele seria punido pela mão da
exigia a entrega do estrangeiro.
índia, pela qual Tupã age. Em reação àquela ameaça,
A índia pediu que o mancebo fugisse à cabana,
o chefe quase lhe bateu com sua arma, mas recuou.
mas ele se recusou, pois seu povo nunca negava uma
Iracema voltou para o bosque onde o cristão
batalha, e caminhou em direção do chefe da tribo.
adormecera, e caiu nos braços do amado. Mas sua
Não demorou muito para que fosse desferido o
alegria em vê-lo passou rapidamente ao lembrar-se da
primeiro golpe contra Martim, resultando na aparição
intenção do guerreiro mais vil dos tabajaras.
dos irmãos índios ao seu lado, que, porém, logo foram
separados pelos guerreiros.
Capítulo 8
Repentinamente, ouviu-se a trombeta de guerra
Quando acordou naquele sagrado bosque, o guerreiro dos pitiguaras na aldeia dos tabajaras, indicando um
branco encontrou a índia muito triste. Ela lhe falou que ataque iminente: todo o exército, incluindo o chefe, re-
Caubi já estava chegando à aldeia e que partiriam com tornou, deixando somente Iracema com o ferido.
o nascer do sol. A tristeza da índia era tamanha que
após Martim tentar consolá-la, advertiu-o que quem
Capítulo 11
quer que a possua morreria, pois ela era filha de Tupã.
Martim lhe disse que esperaria que Iracema Por achar que o toque da trombeta fora um truque da
voltasse a ficar feliz, para então partir. Com tristeza em índia para salvar seu amado, Irapuã foi infenso até a
seus olhos, ela falou que aonde quer que ele fosse, a cabana do pajé. Entrando lá, exigiu a entrega do jovem
lembrança dela estava presente e isto já seria suficiente. branco para cumprir sua vingança. Araquém respon-
Depois de ouvirem o grito de Caubi anunciando deu-lhe que qualquer um que ousar contra o hóspede
sua chegada, o casal voltou à cabana. de Tupã ouvirá o rugir de seu trovão
Depois de uma troca de ofensas, Araquém lan-
Capítulo 9 çou uma palavra terrível contra o chefe e bateu o pé no
chão, abrindo a terra: de seu interminável fundo surgiu
Entrando na cabana, o guerreiro branco acordou o pajé
um gemido, como se arrancado das profundezas.
e lhe avisou que partia. Depois, entraram também Caubi
Sem reação àquele fenômeno, Irapuã deixou
e Iracema, ele mostrava ao pai as caças e a ela foi provi-
a cabana. Já o mancebo não conseguia acreditar no
denciar para Martim o “presente da volta” (quando um
ocorrido, ficou estupefato.
hóspede, parte é tradição que o índio lhe dê um presen-
Martim nunca teve fé nos poderes de Tupã, mas,
te). A índia voltou com uma rede sua, para que, quando
após vivenciar aquilo, percebeu que se ele deflorasse a
ele durma, Iracema esteja nos seus sonhos.
índia, ambos realmente sentiriam sua ira.
Depois de dividir com o pajé a fumaça da des-
pedida, Martim foi guiado por Caubi e seguido por
Iracema. Quando o guerreiro tabajara estava muito à
Capítulo 12
frente, a virgem dos lábios de mel voltou-se ao seu Depois do jantar, Caubi partiu para a grande taba (co-
amado e lhe deu um sincero beijo de despedida, para munidade ou aldeia indígena), enquanto o pajé conti-
retornar à sua cabana, cheia de tristeza. nuava a fumar as ervas de Tupã.
12
Ressoou na noite um grito vibrante. Martim o dia tabajara e de sua natureza inconfiável; no entanto,
reconhecera e avisou a índia que era do canto da atia- esta os ouviu porquanto o cristão, que confiava nela
ti, ave que pertence à praia dos pitiguaras, também plenamente, permitiu.
conhecido como o grito de guerra de seu valente ami- Seu plano de resgate era soar sua trombeta de
go Poti, chefe de sua tribo e de incrível fama por ser guerra para distrair os guerreiros tabajaras e liberar a
valente. passagem do guerreiro do mar (modo de Irapuã cha-
O guerreiro percebeu que seu amigo viera resga- mar Martim, por ter chegado à terra pelo mar) até às
tá-lo, então Iracema foi ao encontro de Poti para lhe ex- margens do ninho da garça, de onde seria guiado pela
plicar a situação, enquanto seu amado permaneceu na estrela morta. Entretanto, era muito perigoso soar a
cabana de Araquém, onde ninguém o poderia machucar. trombeta, pois ele estava sozinho e não trouxera ne-
nhum de seus guerreiros para lhe ajudar a resgatar o
Capítulo 13 estrangeiro.
Depois de encontrar Poti, Iracema lhe explicou com Iracema disse para partirem durante o sono dos
muita cólera toda desventura passada por eles; ele guerreiros tabajaras, enquanto estivessem no bosque
concordou que a raiva de Irapuã não é virtuosa, mas sagrado, recebendo os sonhos alegres do pajé. Após
sim desumana. refletir sobre esse plano, Irapuã o aceita e até mesmo
Os dois se separaram, pois Poti ouvira um baru- elogia a inteligência da índia.
lho e desconfiou de alguém ouvir sua conversa.
Iracema chegou até a cabana e contou tudo ao Capítulo 15
mancebo, levando-os a uma discussão, pois ela não
Martim estava deitado quando Iracema se aproximou
queria que ele saísse à guerra com seu amigo e ele
com seu belo corpo e o recostou à rede; nesse mo-
discordava, afirmando não ter medo do exército de Ira-
mento, o rapaz lutava contra um dilema: se deixaria os
puã, mas sim da tentação que a índia provocava nele e
carinhos da noiva loura ou cederia à sensualidade da
que nunca seria suprida.
índia morena.
Caubi chegou à cabana com notícias de que Ira-
Assim que obteve sua solução, escolheu a vir-
puã vinha com seus guerreiros. Sua irmã lhe ordenou
gem dos lábios de mel e lhe pediu o vinho de Tupã, para
retirar a pedra que cobria a fenda aberta no chão pelo
que tivesse os sonhos de Jurema e que neles pudesse
pajé e permanecer na porta para atrasar os guerreiros.
desposá-la, ainda que ilusoriamente. A virgem cumpriu
Enquanto Iracema acalmava seu hóspede falando que
seu desejo. Assim, seu corpo permaneceu casto e, ao
o deus Tupã os salvaria, o gemido vindo do fundo da
terra ressoou novamente e ambos pularam no buraco. mesmo tempo, tornou-se esposa do guerreiro branco.

Capítulo 14 Capítulo 16

Assim que os guerreiros, dominados pela bebida e sob Ocorre o ritual sagrado da entrega dos sonhos bons
a liderança de Irapuã, alcançaram a cabana inimiga, aos guerreiros, no qual Iracema lhes oferece o vinho
encontraram Caubi de guarda a criticá-los por enfren- de Tupã e seu pai lhes designa cada qual um sonho
tarem seu inimigo em bando, e não em equilíbrio nu- diferente, dependendo de sua personalidade.
mérico. Por não ser autorizada a ver os sonhos, Iracema
A terra rugiu outra vez; de tanto medo, os guer- volta à cabana e guia Martim até seu irmão pitiguara.
reiros cercaram seu líder e o retiram do local. Agora, Durante o reencontro, demonstram alegria e afeto e
em paz, Caubi dormiu na soleira da porta. juntos seguem viagem.
Martim e Iracema estavam perdidos no subter- Posteriormente, Poti aconselha a seu amigo
râneo até ouvirem, magicamente, a voz de Poti pela mandar a virgem embora, porquanto ela atrapalhava
boca de Tupã. O pitiguara queria falar em particular seu ritmo; mas ela insistiu em guiá-los pelo menos até
com Martim. Ele o advertiu sobre a fraqueza da ín- os limites das terras dos tabajaras.
13
Capítulo 17 tribo pitiguara até a batalha. Caso algum dos irmãos
estivesse em apuros, o outro poderia ir ao seu socorro
Logo após saírem dos campos tabajaras, Iracema con-
por meio da guia do animal.
fessa ao guerreiro branco que traiu o segredo de Jure-
No meio do caminho para os campos pitigua-
ma devido ao sonho proibido do amado, e por isso ela
ras, encontrava-se o grande Jatobá, árvore onde nas-
não poderia voltar para sua tribo. Em silêncio, ambos
compartilhavam do mesmo medo: sofrerem a ira de ceu Poti, a qual foi abraçada por Martim de modo a
Tupã por perder a sua virgem. demonstrar seu carinho pelo “irmão”.
Contrariando os pedidos de Iracema e Poti, Martim segue a viagem com Iracema ao seu
Martim decidiu que deveriam parar para descansar. lado esquerdo, o lado do coração, e Poti ao seu lado
Iracema estendeu sua rede ao esposo, que foi dormir direito, o lado da força.
com ela carinhosamente.
O ouvido apurado de Poti o fez acordar e então Capítulo 20
se prepararam ao ataque iminente dos tabajaras velo- Passaram-se três dias de estadia na cabana de Jacaú-
zes vindos pela floresta. na, e o esposo de Iracema sente a tristeza vindo dela.
Decepcionado pela sua falta de sabedoria em Questionada, Iracema lhe conta que sua infelicidade
tomar decisões, Martim pede desculpas ao irmão piti- vinha da presença de ambos na terra que outrora foi
guara e à esposa por não tê-los ouvido. Também pede
inimiga, e cujos guerreiros foram causadores da morte
para que o guerreiro leve Iracema do local, para que
de centenas de seus irmãos.
nenhum deles morra, mas o pedido lhe é negado e
A fim de suprimir sua melancolia, Martim avi-
todos permanecem unidos.
sou ao grande chefe Jacaúna que partia, no entanto
não deveriam ficar tristes, em razão de toda a alegria
Capítulo 18
que passaram juntos.
No momento em que os guerreiros tabajaras encurra- Poti acompanhou seu irmão em viagem, já que
laram os fugitivos, o cão de Poti anunciou a chegada não queria separar-se mais dele.
de seu povo, que se juntou ao trio.
A batalha inicia-se quando Jacaúna ataca Ira- Capítulo 21
puã, seguido de Caubi atacando o guerreiro do mar
De noite, chegaram à foz do rio que banhava as praias
por ter “levado” sua irmã para longe de sua cabana.
povoadas pelos pitiguaras. Devido à importância da fa-
Por outro lado, Martim não o mata a pedido de sua
mília de Poti, eles foram muito bem tratados e os guia-
noiva, e somente se defende. Enquanto isso, Poti lutava
contra o velho Andira. ram através do Rio Taíba até um alto morro de areia de
O guerreiro do mar abandonou Caubi e correu onde se via a alvura da espuma do mar.
em direção à Irapuã. Após dar o primeiro golpe contra O poderoso guerreiro pitiguara contou a Mar-
a armadura de seu inimigo, sua arma se desfaz em pe- tim sobre seu conhecimento da terra de seu povo e
daços. De repente, com grande destreza, Iracema lan- sobre o monte Mocoripe, lugar onde situavam-se.
çou a sua flecha contra o chefe, caindo ferido, porém Martim analisou muito bem a terra e decidiu
não morto. estender sua cabana lá com o devido consentimento
Tocou o pocema (grito) da vitória e cada tribo da esposa, a qual lhe disse que seria feliz aonde quer
voltou à sua terra, com exceção da doce índia que per- que fossem, mas deveria estar ao seu lado.
maneceu no local observando com muita cólera a terra
cheia do sangue de seus irmãos. Capítulo 22
Poti começa a contar ao amigo que seu avô, um gran-
Capítulo 19 de guerreiro chamado Batuireté, adentrou as praias do
Após retirarem-se vitoriosos do confronto, Poti confia continente e expulsou os tabajaras que ali viviam para
a Martim seu cão chamado Japi, que havia guiado a dentro dos campos. Por ser um dos maiores chefes que
14
a nação pitiguara jamais teve, subjugou muitas tribos para se tornar um guerreiro vermelho, filho de Tupã.
até não aguentar mais, e a velhice lhe alcançou. Poti começou a pintar-lhe o corpo com tinta vermelha
Consequentemente, chamou seu filho Jatobá e preta, com figuras que simbolizavam sua agilidade,
(pai de Jacaúna e Poti) para lhe consignar a responsabi- força e bondade.
lidade de toda a nação, em razão de sua incapacidade Para completar a cerimônia, sua esposa lhe esco-
de protegê-los e também pela força e coragem do filho. lheu um nome na língua da nação pitiguara, Coatiabo.
Dali em diante, o velho se estabeleceu em uma
serra bem alta para passar o resto de seus dias conver- Capítulo 25
sando com Tupã. As pessoas não mais o chamavam pelo
Tudo corria bem na cabana: as caças vinham em far-
próprio nome, e sim por Maranguab, o sabedor da guerra.
tura, Iracema adorava brincar pela praia e seu marido
Os três iam ao encontro do sábio para lhe pe-
a admirava.
dir sabedoria. Chegando à cabana do velho, localizada
Até que um dia, enquanto ele a observava, seu
entre as formosas cascatas e coqueiros, encontraram-
olhar se alongou ao mar e avistou um barco com muitas
-no dormindo, careca e com muitas rugas.
velas semelhante aos de sua raça. Vários pensamentos
Seu neto anunciou presença. Quando o velho
começaram a rodeá-lo, como a saudade sentida de sua
abriu os olhos exclamou de espanto, pois nunca tinha
terra e dos seus, e também outra preocupação mais
visto um guerreiro branco, e logo em seguida abaixou
imediata, como a possibilidade de um ataque dos seus
a cabeça novamente. O grupo pensou que ele dormia
inimigos tapuias. Em vista disso, ele começou a evitar a
novamente, mas, depois de um tempo, ele não se le-
índia para que não se aborrecesse por seus pensamen-
vantou e então perceberam que havia falecido.
tos, somente os confiando a Poti.
Em luto, Poti pronunciou o canto da morte, en-
Preocupado, Poti ofereceu o exército de sua tri-
quanto Martim cuidava de seu vaso fúnebre e Iracema
bo para combater a nação inimiga, no momento em
lhe recolhia flores. Desde então, o morro foi chamado
que seu irmão quisesse.
de Maranguape (esse monte realmente existe, e en-
No mesmo dia, chegou a eles um mensageiro
contra-se ao norte do Ceará).
de Jacaúna, para lhes avisar que os tapuitingas aden-
traram os campos e fizeram uma aliança com Irapuã
Capítulo 23 para atacarem juntos os pitiguaras, e que ambos os,
A alegria inunda o coração de Iracema desde que ela guerreiros deveriam voltar para ajudar. Depois de a
começou a morar com o esposo, mais importante do mensagem ter sido passada, Coatiabo manda o men-
que ter criado um ninho de amor, foi ter achado uma sageiro de volta para saberem que estão a caminho.
nova pátria para seu coração. Pela manhã, Martim e
Poti partiam para a caça, ao mesmo tempo que a índia Capítulo 26
banhava-se na lagoa no meio da verde campina (os
Poti interrompeu a caminhada com Coatiabo para lhe
outros índios começaram a chamá-la de Porangaba,
perguntar o motivo de sua face tão fechada e tristo-
pois nele se banhava a mais bela filha de Tupã).
nha. Apesar de querer ir à guerra com o irmão para
Um dia depois dos guerreiros voltarem com a
defender sua nova pátria, o mancebo não queria deixar
caça, Iracema voltou-se a seu marido e lhe disse com
Iracema sozinha na cabana por medo de ela se entris-
muita ternura que estava grávida. Em grande júbilo,
tecer e abandoná-lo, por isso gostaria de ao menos se
Martim afirmou ser de incrível necessidade a presença
despedir. Sob o conselho do guerreiro pitiguara, não
do irmão, que lhe dá força, e da esposa, que lhe dá
cumpriu sua vontade para não se abalar com as pala-
alegria; e assim celebraram.
vras de resposta da índia.
Um pouco mais adiante, o índio atirou uma das
Capítulo 24 flechas do irmão, feitas por Iracema, em um carangue-
Para adotar por completo a nação do amigo e da espo- jo, e o deixou fincado à terra, pois isso era um sinal
sa, Martim precisava passar por uma cerimônia típica para que ela, caso seguisse seus rastros, entenderia
15
que não deveria continuar. Para a esposa ficar menos As palavras doeram em Martim, que tentou ex-
desapontada, o mancebo colocou um ramo de maracu- plicar que só estava a observar o mar devido à luta
já (a flor da lembrança) no meio da arma. com seus inimigos. Ela lhe retrucou dizendo que seu
E assim aconteceu: após encontrar aquela cena, lábio secou para o dela, ele não mais acariciava da
Iracema entendeu a mensagem e recuou, mas todo dia mesma maneira, nem mesmo a olhava com o mesmo
corria para a flecha para ver se seu marido voltou e modo. Chegou a dizer que quando o seu filho nasces-
ficava lá até a noite, deprimida. se, ele poderia partir, pois Iracema morreria por amor e
Durante uma dessas esperas, ela ouviu sua an- ele não teria mais nada o prendendo à terra.
tiga amiga jandaia (um periquito de cabeça amarela)
chamando-a pelo nome, então se relembrou dos felizes Capítulo 29
anos vividos dentre os tabajaras e da cabana de Ara-
Poti seguiu o rastro do irmão até o alto da Jacarenga, de
quém, mas mesmo assim não se arrependeu de sua
onde ele observava a grande igara dos guerreiros bran-
decisão, somente recarregou suas forças.
cos, inimigos de sua raça, com sentimento de vingança.
Agora, eles estavam unidos aos tupinambás e prontos
Capítulo 27 para a guerra. Os dois guerreiros tocaram a trombeta da
Um dia, Iracema avistou os dois guerreiros que retor- batalha para anunciar a aproximação do inimigo e eles
navam, correu até os braços do amado e esqueceu-se correram para o Mocoripe por dentro da mata, para não
de todos os dias de solidão. Eles voltaram vitoriosos da assustarem os inimigos vindos pelo mar.
batalha contra os tabajaras, mesmo estando em união Após Jacúna ser avisado, todos estavam prepa-
com os tapuias do Mearim (outro povo indígena do rados para a guerra que estava por vir.
outro lado da distante serra). Muitos dias se passam até que os guerreiros
Os dois amantes voltam a ser a pura alegria um guaraciabas e tupinambás desembarcam na praia e
do outro, como outrora foram. No entanto, muitas ve- entram em formação de guerra. Eram em grande quan-
zes, no alto morro de areia, bem distante da cabana, tidade, com armas de fogo e brandindo o tacape para
Martim encontrava-se olhando para o grande mar azul intimidar o inimigo, porém, nenhuma tribo luta tão
e ansiava voltar à terra nativa e aos seus, porém sabia bem quanto os guerreiros pitiguaras.
que quanto mais longe Iracema fosse com ele, mais Já de noite, começa a guerra com a primeira
infeliz ficaria. flecha de Poti, que acerta o líder dos guaraciabas. A
Nessa parte do texto, o herói volta a um dile- guerra se desenrolou e novamente os pitiguaras foram
ma: se deveria ficar ou partir; ele estava dividido entre vencedores.
continuar na terra estrangeira com novas aventuras e
diferentes culturas e voltar à terra natal, devido a uma Capítulo 30
forte nostalgia. A princípio, ele gostaria de continuar
Sentindo fortes contrações, Iracema se ajeita em um
na América, com sua doce e amada selvagem, mas co-
coqueiro e com muita dor dá à luz seu filho, o qual
meçou a sentir muita falta da civilização.
chama de Moacir, devido ao sofrimento em meio ao
Após um tempo, Poti nem o acompanhava
qual ele nasceu.
mais até o morro para que seu irmão pudesse refletir
Após lavá-lo no lago, arrumou-o em sua faixa,
melhor. Nem mesmo Iracema ousava ficar perto dele,
adormecido, para carregá-lo em seu flanco.
pois percebera que sua presença o deixava ainda mais
A recente mãe seguiu o rastro do marido e de
consternado.
seu companheiro para lhes mostrar a criança, porém
percebeu que foram à guerra por haver sinais de que
Capítulo 28 foram em direção às praias. Decepcionada, achou re-
A amada de Coatiabo o acusa de estar distante de cor- conforto nos olhos do filho.
po e alma, depois que ele ouve o choro da amada no Na manhã seguinte, Caubi apareceu à tenda da
meio do bosque e vai a seu encontro. irmã para vê-la e avisar que já a perdoou. O guerreiro
16
lhe diz entre risos que o bebê se parece muito com ela. Quando o cão se aproximou do dono e Poti,
Em retorno, Iracema lhe pede para avisar seu pai que eles apertaram o passo de preocupação. Ao chegar,
ela estava morta, para que ele não sofresse tanto pela se deparam com a filha de Araquém sentada ao chão
sua traição. desacordada, com o filho no colo. Seu esposo chamou
Preocupado, Caubi a interroga pela falta de ale- por seu nome, então ela acordou e lhe entregou o filho,
gria em seu semblante. Ela lhe responde que a sua fe- pedindo para recebê-lo com muito amor, explicando
licidade vem do esposo e que, quando ele se ausenta, que seus seios já não o alimentavam mais. Logo após,
sua paz também se vai. a índia morreu.
Poti ajudou Coatiabo a superar a terrível perda
Capítulo 31 e ambos a enterraram próximo ao coqueiro que amava,
pois, assim, quando o vento soprasse, ela poderia pen-
Iracema implorou a Caubi voltar à cabana de seu pai,
sar que é o sussurro do amado ao seu ouvido.
não por vergonha de sua tristeza, mas por ele ser o
único filho restante de Araquém, que o guiaria pela
velhice (o velho sábio já teve vários filhos, mas alguns
Capítulo 33
foram mortos em guerras e outros começaram suas Após quatro anos da partida de Martim, da criança e
próprias famílias). Caubi cumpriu sua vontade, mas do cão à terra natal do guerreiro, eles voltaram ao Bra-
lhe informou que sempre voltaria para visitar ela e seu sil para colonizar e catequizar a terra.
filho. Durante esse tempo, Poti levantou a taba de
O choro da criança fez com que a índia fosse seus guerreiros na margem do rio em que moraram,
até a cabana para amamentá-lo, mas seu leite tornou- esperando que o irmão voltasse. O grande Poti foi o
-se escasso. A mãe chorou muito pelo ocorrido e pre- primeiro índio a ser catequizado naquela região por
parou um mingau para nutri-lo. não querer que a diferença de crença o separasse no-
Depois, saiu com seu filho para a floresta e achou vamente do irmão. Depois, toda a terra se curvou à
um leito de irara (animal carnívoro do Brasil, com paren- palavra do “Deus verdadeiro”.
tesco de cães) com filhotes sem a mãe. Iracema sentou- Martim sentiu seu coração arder da mesma ma-
-se e deu aos cachorrinhos de mamar. Ela sentiu absurda neira que da primeira vez quando pisou a areia, pois
dor, seu peito inchou e começou a sangrar, depois de um várias lembranças lhe vieram à mente. Ele foi visitar a
tempo o leite começou a esguichar. Então, ela afastou terra em que enterrou a amada e lamentou a perda da
os filhotes da irara e deu o leite ao seu filho. A partir pessoa mais bondosa e carinhosa que já conhecera.
de agora, Moacir era fruto de seu sofrimento não só no O seu jeito de apreciar as coisas belas ajudou a supe-
nascimento, mas também na amamentação. ração de Martim. A sua grande amiga ará, que estava
em cima do coqueiro, parou de cantar seu belo nome.
Capítulo 32
Iracema está sentada com o filho no colo quando o fiel
cão de Martim, Japi, corre para a cabana anunciando a
aproximação do dono. Ela tenta se levantar para recep-
cionar o amado, mas os seus membros já estão muito
cansados e ela cai desacordada ao chão.
Japi volta correndo ao dono latindo incessan-
temente enquanto a ará, amiga da índia, canta triste-
mente.
Havia oito dias que a nação pitiguara prevale-
cera novamente na batalha contra os tupinambás, que
estavam cada vez mais unidos aos guerreiros dos ca-
belos do sol.
17
AProfunde seus conhecimentos
1. (UEL) Examine as proposições a seguir e as- Assinale:
sinale a alternativa INCORRETA. a) se apenas 2 e 4 estiverem corretas.
a) A relevância da obra de José de Alencar no b) se apenas 2 e 3 estiverem corretas.
contexto romântico decorre, em grande par- c) se 2, 3 e 4 estiverem corretas.
te, da idealização dos elementos considera- d) se 1, 3 e 4 estiverem corretas.
dos como genuinamente brasileiros, nota-
damente a natureza e o índio. Essa atitude 3. (PUC-SP) A próxima questão refere-se ao
impulsionou o nacionalismo nascente, por texto abaixo.
ser uma forma de reação política, social e Verdes mares bravios de minha terra natal,
literária contra Portugal. onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba;
b) Ao lado de O guarani e Ubirajara, Iracema Verdes mares que brilhais como líquida
representa um mito de fundação do Brasil. esmeralda aos raios do sol nascente, per-
Nessas obras, a descrição da natureza brasi- longando as alvas praias ensombradas de
leira possui inúmeras funções, com destaque coqueiros;
para a “cor local”, isto é, o elemento parti- Serenai, verdes mares, e alisai docemente
cular que o escritor imprimia à literatura, a vaga impetuosa para que o barco aven-
acreditando contribuir para a sua nacionali- tureiro manso resvale à flor das águas.
zação. Esse trecho é o início do romance Iracema,
c) Embora tendo sido escrito no período ro- de José de Alencar. Dele, como um todo, é
mântico, Iracema apresenta traços da ficção possível afirmar que:
naturalista tanto na criação das personagens a) Iracema é uma lenda criada por Alencar para
quanto na tematização dos problemas do explicar poeticamente as origens das raças
país. indígenas da América.
d) A leitura de Iracema revela a importância b) as personagens Iracema, Martim e Moacir
do índio na literatura romântica. Entretan- participam da luta fratricida entre os Taba-
to, sabe-se que a presença do índio não se jaras e os Pitiguaras.
restringiu a esse contexto literário, tendo c) o romance, elaborado com recursos de lin-
desembocado inclusive no Modernismo, por guagem figurada, é considerado o exemplar
intermédio de escritores como Mário de An- mais perfeito da prosa poética na ficção ro-
drade e Oswald de Andrade. mântica brasileira.
e) O contraponto poético da prosa indianista d) o nome da personagem-título é anagrama
de Alencar é constituído pela lírica de Gon- de América e essa relação caracteriza a obra
çalves Dias. Indiscutivelmente, em “O can- como um romance histórico.
to do guerreiro” e em “O canto do piaga”, e) a palavra Iracema é o resultado da agluti-
dentre outros poemas, o índio é apresentado nação de duas outras da língua guarani e
de maneira idealizada, numa perpetuação da significa “lábios de fel”.
imagem heroica e sublime adequada aos ide-
ais românticos. 4. (PUC) Considere os dois fragmentos extraí-
dos de Iracema, de José de Alencar.
2. (UFU-MG) Sobre Iracema, de José de Alen- I. Onde vai a afouta jangada, que deixa rápi-
car, podemos dizer que: da a costa cearense, aberta ao fresco terral
1) as cenas de amor carnal entre Iracema e a grande vela? Onde vai como branca al-
Martim são de tal forma construídas que cíone buscando o rochedo pátrio nas soli-
o leitor as percebe com vivacidade, por- dões do oceano? Três entes respiram sobre
que tudo é narrado de forma explícita. o frágil lenho que vai singrando veloce,
2) em Iracema, temos o nascimento lendá- mar em fora. Um jovem guerreiro cuja tez
rio do Ceará, a história de amor entre branca não cora o sangue americano; uma
Iracema e Martim e as manifestações de criança e um rafeiro que viram a luz no
ódio das tribos tabajara e pitiguara. berço das florestas, e brincam irmãos, fi-
3) Moacir é o filho nascido da união de Ira- lhos ambos da mesma terra selvagem.
cema e Martim. De maneira simbólica, II. O cajueiro floresceu quatro vezes depois
ele, representa o homem brasileiro, fruto que Martim partiu das praias do Ceará,
do índio e do branco. levando no frágil barco o filho e o cão fiel.
4) a linguagem do romance Iracema é alta- A jandaia não quis deixar a terra onde re-
mente poética, embora o texto esteja em pousava sua amiga e senhora. O primei-
prosa. Alencar consegue belos efeitos lin- ro cearense, ainda no berço, emigrava da
guísticos ao abusar de imagens sobre ima- terra da pátria. Havia aí a predestinação
gens, comparações sobre comparações. de uma raça?
18
Ambos apresentam índices do que poderia fictícia.
ter acontecido no enredo do romance, já que d) Moacir, que em tupi quer dizer “filho da
constituem o começo e o fim da narrativa dor”, é levado por Martim para a Europa.
de Alencar. Desse modo, é possível presumir e) o romance é narrado em terceira pessoa,
que o enredo apresenta: com narrador onisciente.
a) o relacionamento amoroso de Iracema e Mar-
tim, a índia e o branco, de cuja união nasceu 8. (UFMG) Todas as passagens de Iracema, de
Moacir, e que alegoriza o processo de con- José de Alencar, estão corretamente explica-
quista e colonização do Brasil. das, exceto:
b) as guerras entre as tribos tabajara e pitigua- A filha de Araquém escondeu no coração a
ra pela conquista e preservação do território sua ventura.
brasileiro contra o invasor estrangeiro. a) Ficou tímida e quieta como a ave que pres-
c) o rapto de Iracema pelo branco português sente a borrasca no horizonte.
Martim como forma de enfraquecer os ad- = Iracema entrega-se a Martim.
versários e levar a um pacto entre o branco b) Iracema preparou as tintas. O chefe, embe-
colonizador e o selvagem dono da terra. bendo as ramas da pluma, traçou pelo corpo
d) a vingança de Martim, desbaratando o povo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a
de Iracema, por ter sido flechado pela índia grande nação pitiguara.
dos lábios de mel em plena floresta e ter-se = O chefe pinta Martim, preparando-o para o
tornado prisioneiro de sua tribo. combate com os tabajaras.
e) a morte de Iracema, após o nascimento de Mo- c) Iracema, sentindo que se lhe rompia o seio,
acir, e seu sepultamento junto a uma carnaú- buscou a margem do rio, onde crescia o co-
ba, na fronde da qual canta ainda a jandaia. queiro.
= Iracema prepara-se para dar à luz a Moacir.
5. (USP) O índio, em alguns romances de José d) O guerreiro branco é hóspede de Araquém. A
de Alencar, como Iracema e Ubirajara, é paz o trouxe aos campos de Ipu, a paz o guarda.
a) retratado com objetividade, numa perspecti- Quem ofende o estrangeiro ofende o Pajé.
va rigorosa e científica. = Iracema protege Martim da fúria de Ira-
b) idealizado sobre o pano de fundo da nature- puã.
za, da qual é o herói épico. e) Rumor suspeito quebra a doce harmonia da
c) pretexto episódico para descrição da natureza. sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não
d) visto com o desprezo do branco preconceitu- deslumbra, sua vista perturba-se.
oso, que o considera inferior. = Martim aparece pela primeira vez a Irace-
e) representado como um primitivo feroz e de ma, que saía do banho.
maus instintos.
9. Em “Iracema” só não se pode dizer que:
6. (Fuvest) “O primeiro cearense, ainda no ber- a) também é conhecida por “Lenda do Ceará”.
ço, emigrava da terra da pátria. Havia aí uma b) a história se passa no Vale do Paraíba, às
predestinação de uma raça?” Eis aí uma refle- margens do rio Paquequer.
xão sob a forma de pergunta que o autor, ......, c) é conhecido como “Poema Americano”.
faz a si mesmo com toda propriedade, e por d) o filho de Iracema é Moacir, em tupi, símbolo
motivos que podemos interpretar como pes- da dor.
soais, ao finalizar o romance ........ . Assinale e) Martim, um aventureiro português, é res-
a alternativa que completa os espaços. ponsável pelo fato de a heroína abandonar
a) José Lins do Rego - Menino do Engenho. sua tribo.
b) José de Alencar - Iracema.
c) Graciliano Ramos - São Bernardo. 10. (UESPI) Após a independência econômica
d) Aluísio Azevedo - O Mulato. e política faltava ao Brasil a independência
e) Graciliano Ramos - Vidas Secas. cultural. Foi com essa vontade de construir
uma literatura autenticamente brasileira e
absolutamente diversa da portuguesa e eu-
7. (Mack-SP) Sobre Iracema, é incorreto afir-
ropeia, que o nosso Romantismo estabeleceu
mar que:
seus parâmetros estéticos e ideológicos. So-
a) o relacionamento entre Martim e Iracema
bre o romance Iracema, de José de Alencar,
seria uma alegoria das relações entre metró-
aponte a alternativa correta.
pole e colônia.
a) Em Iracema, já é possível perceber o desta-
b) Iracema é descrita de uma forma idealizante,
que dado ao papel do negro na construção
comparada com elementos da natureza, ca-
da identidade brasileira.
racterística própria do Romantismo.
b) A fim de valorizar a figura do índio, Alencar
c) o personagem Martim é lendário; nunca
não o idealiza e o retrata de forma minucio-
existiu, tratando-se, portanto, de uma figura
samente descritiva e realista.
19
c) Em Iracema, os personagens se mostram psi- reproduzem um modelo literário que no Bra-
cologicamente densos e, por isso, oferecem sil teve como marco inicial Iracema.
ao leitor a possibilidade de todas as suas ati- e) Em Iracema, diferentemente do que ocorre
tudes e escolhas serem problematizadas do em quase toda sua produção, Alencar opta
ponto de vista psicológico e antropológico. por abordar o tema da identidade nacional de
d) Ao invés de descrever as cenas de amor car- uma perspectiva psicológica e não histórica.
nal entre Martim e Iracema, de forma ex- Justamente por isso, esse romance é conside-
plícita e sensual, José de Alencar prefere rado o ponto alto de sua prosa poetizada.
retratá-las romanticamente, através de um
rico jogo de imagens, comparações, efeitos
linguísticos e sobreposição de imagens.
e) A descrição da cor local brasileira (fauna e
Gabarito
flora) são meros detalhes e não apresentam 1. C
maior importância ou significado no projeto 2. C
literário de José de Alencar. 3. C
4. A
11. (UESPI) Ainda sobre Iracema, de José de 5. B
Alencar, assinale a alternativa incorreta. 6. B
a) O culto ao índio em Iracema, assim como 7. C
também em O Guarani, reflete a necessi- 8. B
dade de “origem”, de mitologia local e da 9. A
construção de uma história essencialmente 10. D
brasileira. 11. D
b) A ideologia e o projeto literário que subja- 12. B
zem à Iracema refletem a forte influência
que Alencar sofreu da literatura romântica
francesa, mais particularmente de Chateau-
briand.
c) Iracema compõe, ao lado de O Guarani e Ubi-
rajara, a fase indianista-nacionalista dos ro-
mances de José de Alencar.
d) Em Iracema, a forma como é representada a
relação entre o índio e o branco tem como
objetivo enaltecer o processo de colonização
e os benefícios da introdução da cultura oci-
dental entre os indígenas.
e) Uma das maiores qualidades literárias de
José de Alencar, e que está presente em Ira-
cema, é a capacidade de entrelaçar a descri-
ção poética, a narrativa e o tom épico.

12. (UESPI) Sobre Iracema, também se pode


afirmar o seguinte.
a) O romance entre Martim e Iracema se desen-
rola transgredindo os códigos literários do
Romantismo. Isto é, não apenas quebra com
a expectativa do leitor, como também não
recorre ao sentimentalismo.
b) Iracema, a guardiã do “segredo da jurema”,
deixa sua tribo para trás e escolhe seguir
Martim, guerreiro branco por quem se apai-
xonara.
c) O próprio José de Alencar chamou seu Ira-
cema, não de romance, mas de “lenda”. Isto
porque encontramos ao longo do livro uma
profícua discussão filosófica e psicológica
acerca das consequências da colonização
portuguesa.
d) Personagens machadianas, como Capi-
tu, Virgília e Sofia, apresentam perfis que
20
AnotAções

21
Memórias Póstumas
de Brás Cubas

Machado de Assis
A barbada machadiana O diálogo com o leitor, a digressão, a metalingua-
gem e um mergulho na psicologia do homem montam
no vestibular – uma esse conjunto de genialidade temperada por uma ironia
apresentação refinada que desnuda as aparências da sociedade bur-
guesa com um cinismo elegante que fazem de Machado
de Assis um dos maiores nomes da literatura mundial.

Seja no plano da forma, através das interrupções,


seja no plano do conteúdo, através de anedotas e
apólogos sobre a vaidade humana, a experiência
visada não muda, (...) Machado carrega a tinta
com maestria – são formas fechadas em si mes-
mo, e neste sentido, matéria romanesca de segun-
da classe, estranha ao movimento global própria
ao grande romance oitocentista.
R, SCHWARZ: Um mestre na periferia do capitalismo - p. 51

Biografia em datas
1839 Nasce Joaquim Maria Machado de Assis, no
O vestibulando pergunta ao professor do cursinho:
dia 21 de junho, no Rio de Janeiro. Filho  do
“Qual o autor que mais aparece no vestibular?”; e
brasileiro Francisco José de Assis e da açoriana
não é nenhum dom divino ou uma premonição quan-
Maria Leopoldina Machado de Assis, morado-
do os professores dão o veredito: Machado de Assis.
res do morro do Livramento.
Criador da Academia Brasileira de Letras, o carioca Ma-
chado de Assis é o maior escritor brasileiro e reconhe- 1849 O autor é cuidado por sua madrinha após o
cido mundialmente por suas qualidades figurando, re- falecimento de sua mãe e de sua única irmã.
correntemente os principais vestibulares do País. Para 1854 Seu pai casa-se com Maria Inês da Silva, com
ter uma ideia, a lista unificada da Fuvest–Unicamp quem Machado continuará vivendo após a
de 2010 a 2012 elencava Dom Casmurro e a lista de morte do mesmo.
2013 a 2015 optou por Memórias póstumas de Brás
1855 Publica “A palmeira”, seu primeiro trabalho e
Cubas, ambas obras magnas do autor.
“Ela”, seu primeiro poema no periódico Mar-
Sem dúvida, suas obras são as representantes
mota Fluminense.
máximas do Realismo, inclusive o início desta escola
literária no Brasil se dá com a publicação de Memórias 1856 Entra para a Tipografia Nacional como aprendiz.
póstumas de Brás Cubas, em 1881, remodelando a li- 1858 Estuda francês e latim com o professor padre
teratura e trazendo conceitos que negaram a prática Antônio José da Silveira Sarmento. Torna-se o
romântica em voga até então. revisor de provas de tipografia e da livraria do
É por isso que o “Bruxo do Cosme velho”, como jornalista Paula Brito, época em que conhece
é conhecido Machado, é grande, e entender suas ino- membros da Sociedade Petalógica, como Ma-
vações é a grande chave para se dar bem no vestibular. nuel Antônio de Almeida, Joaquim Manoel de
Não podemos esquecer que ele começou escrevendo Macedo. Colabora no jornal O Paraíba, e no
sobre o molde alencariano, com romances românticos Correio Mercantil.
como Ressurreição, A mão e a luva, Helena e Iaiá Gar-
1864 Publica Crisálidas, seu primeiro livro.
cia, mas ,sem dúvida, seu reconhecimento se dá pelas
obras realistas. 1867 Nomeado ajudante do diretor no Diário Oficial.
23
1869 Casa-se com Carolina Augusta Xavier de No- § O alienista 
vaes. § Noite de almirante
§ O homem célebre
1873 Nomeado o primeiro-oficial da Secretaria do
§ Conto da escola 
Estado do Ministério da Agricultura, Comércio
§ Uns braços 
e Obras Públicas.
§ A cartomante 
1878 Por motivos de doença, passa uma temporada § O enfermeiro
em Friburgo. § Trio em lá menor
1881 Oficial de gabinete do ministro da Agricultura, § Missa do galo 
Pedro Luis.
Teatro
1888 Oficial da Ordem da Rosa, por decreto do im- § Hoje avental, amanhã luva (1860)
perador. § Desencantos (1861) 
1889 Diretor na Diretoria do Comércio. § O caminho da porta (1863)
§ Quase ministro (1864)
1897 É eleito presidente da Academia Brasileira de
§ Os deuses de casaca (1866)
Letras, fundada por ele um ano antes.
§ Tu, só tu, puro amor (1880) 
1904 Torna-se membro da Academia das Ciências, § Lição de botânica (1906)
de Lisboa. Morre sua mulher, Carolina Xavier.

1908 Falece na cidade do Rio de janeiro, em 29 de


Memórias póstumas
setembro.
de Brás Cubas
Relação das obras

Romances
§ Ressurreição (1872)
§ A mão e a luva (1874)
§ Helena (1876) 
§ Iaiá Garcia (1878 )
§ Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) 
§ Quincas Borba (1891) 
§ Dom Casmurro (1899) 
§ Esaú e Jacó (1904) 
§ Memorial de Aires (1908)

Poesia Volume de Memórias póstumas de Brás Cubas, dedicado pelo próprio


autor para a Biblioteca Nacional.
§ Crisálidas
§ Falenas
Uma escrita renovadora
§ Americanas
§ Ocidentais A posição de Machado de Assis na literatura brasileira
§ Poesias completas é a de renovador – um abridor de caminhos –, pois
revolucionou a narrativa, atribuindo-lhe um tom de
Contos maior verossimilhança e menor superficialidade, e foi
§ A carteira  além de seu tempo, imprimindo à literatura um senso
§ Miss Dollar  psicológico notável.
24
O caráter inovador de Memórias póstumas de de uma filosofia falseada e caricata, cômica e ridí-
Brás Cubas não está na história propriamente dita ou cula, e ainda revestida de perversidade ameaçante
na sequência cronológica dos fatos. A melhor chave contra os vencidos, pois, segundo ela: ‘ao vencedor
para compreender a obra são as reflexões do perso- as batatas’. Assim, parece que Quincas Borba, o
nagem, pois com elas se encadeiam e se misturam os ‘filósofo’, fornecendo pensamento e palavra e fun-
cionando como espécie desclassificada e diminuí-
eventos que ele vive.
da do ‘intelectual independente’ (e excêntrico) – a
quem Brás Cubas leva e ao mesmo tempo não leva
Ao vencedor as batatas – uma
a sério – é capaz de explicitar sem meios termos a
crítica aos “ismos” do final do XIX ‘justificação filosófica’ dos proprietários e suas prá-
A frase significa que os vencedores podem desfrutar ticas na sociedade de classes escravista.”
das batatas nos campos de guerra, onde na luta pela (FACIOLI: 2002, p. 137)

sobrevivência, vence quem é mais forte. A teoria do


Humanitismo é pessimista e aponta para o absurdo da “(...) Humanitismo, a mais célebre das filosofias
existência, opondo-se à filosofia do Humanismo, que machadianas. Como sugere o nome, trata-se de
uma sátira à filosofia oitocentista de ismos, com
valoriza o homem.
alusão explícita à religião comtiana da humani-
“Ao vencido, ódio ou compaixão; ao vencedor,
dade. Os raciocínios fazem pensar em mais ou-
as batatas”.
tras filiações, já que em lugar dos princípios po-
sitivistas afirma a luta de todos contra todos, à
Teoria do Humanitismo maneira do darwinismo social. A própria guerra
(Quincas Borba) generalizada, contudo, não passa de ilusão, pois
tem fundamento monista: Humanitas é o princí-
pio único de todas as coisas, residindo igualmente
nas partes vencida e vencedora, no condenado e
no algoz, de sorte que não há perda alguma onde
parecia haver uma desgraça. Daí que a dor não
existe nem tem cabimento. ‘(...) substancialmen-
te, é Humanitas que corrige em Humanitas uma
infração à lei de Humanitas’.”
Supõe tu um campo de batatas e duas tribos fa- (SCHWARZ: 1990, p. 155)
mintas. As batatas apenas chegam para alimen-
tar uma das tribos, que assim adquire forças para Nos quadrinhos
transpor a montanha e ir à outra vertente, onde
há batatas em abundância; mas, se as duas tri-
bos dividirem em paz as batatas do campo, não
chegam a nutrir-se suficientemente e morrem de
inanição. A paz, nesse caso, é a destruição; a guer-
ra é a conservação. Uma das tribos extermina a
outra e recolhe os despojos. (...) ao vencido, ódio
ou compaixão; ao vencedor, as batatas.

Com a palavra, os especialistas:

“Filosofia caricata e amoral (...) parece explicar – e


no mesmo movimento satirizar e demolir, mediante
a ironia estratégica de Machado de Assis – as prá-
ticas de Brás Cubas e sua classe, com justificações
25
Memórias póstumas de Brás Cubas (em quadrinhos), o ponto de vista irônico sobre o mundo do qual não faz
mais importante romance brasileiro de todos os tem- mais parte.
pos. Moderno avant la lettre, revolucionário na forma Esse narrador possui ainda onisciência relativa,
fragmentária, no tempo narrativo não linear, no estilo já que em certos momentos seu poder de registrar os
realista-irônico, é ao mesmo tempo um dos mais agu- acontecimentos vai além daquilo que vivenciou, porém
dos retratos das elites brasileiras além de repositório enquanto morto permeia profundamente a descrição e
de algumas das passagens mais famosas da literatura comportamento dos outros personagens.
em língua portuguesa.
Tempo
No cinema
O tempo é cronológico, vai de 1805 a 1896, do nasci-
mento à morte de Brás Cubas, porém, a genialidade da
narração se dá no aspecto não linear da maneira como
conduz a narrativa, ou seja, brincando com o tempo cro-
nológico, já que é entrecortada por múltiplas digressões.
Vale lembrar que o tempo da narração (enunciação) é
diferente do tempo da narrativa (enunciado). A história
é contada num presente atemporal, enquanto a história
Após ter morrido, em pleno ano de 1869, Brás se passa num tempo pretérito e determinado.
Cubas (Reginaldo Faria) decide por narrar sua his-
tória e revisitar os fatos mais importantes de sua Espaço
vida, a fim de se distrair na eternidade. A partir
de então, ele relembra de amigos, como Quincas O espaço é o Rio de Janeiro, sendo apresentado seus
Borba (Marcos Caruso), de sua displicente forma- bairros e ruas. Já a Europa é mencionada apenas de
ção acadêmica em Portugal, dos amores de sua passagem, especialmente na ida de Brás para Coimbra.
vida e ainda do privilégio que teve de nunca ter Vale lembrar que Machado de Assis nunca saiu do Rio
precisado trabalhar em sua vida. (1h41 – 2001) de Janeiro e não se arrisca a descrever espaços que
Fonte: http://www.adorocinema.com/filmes/filme-120279/ não conhece.
em 22/03/2015

Lista de personagens
Estrutura da obra § Brás Cubas: é o narrador do livro que vai contar
O ritmo calculado e muitas vezes lento é imposto pelo suas memórias escritas após a morte. É o res-
narrador de Memória póstumas de Brás Cubas, que ponsável pela descrição e apresentação de todos
usa e abusa da digressão, interrompendo a narração os outros personagens. Na condição de “defunto
para tecer comentários, juízos de valor ou filosofar so- autor”, descreve, analisa e avalia com ceticismo
bre suas observações. e pessimismo o homem e sua existência.
§ Virgília: por ser sobrinha de ministro, o pai de
Foco narrativo Brás Cubas a via como possibilidade de acesso
O narrador, Brás Cubas, já morto, resolve contar o va- do filho ao mundo da política. Casa-se com o
zio de sua existência e aproveita para criticar também político Lobo Neves e é amante de Brás Cubas.
as pessoas de seu convívio, desnudando seus defeitos. Ela pode ser considerada o grande amor de
Porém, não deixa de revelar seus próprios defeitos, já Brás e sustenta o caso adúltero para manter as
que na, condição de morto, torna-se isento das con- aparências matrimoniais.
sequências da verdade. Mesmo narrando em primei- § Lobo Neves: casa-se com Virgília e tem car-
ra pessoa, o narrador mostra algum distanciamento, reira política sólida, mas sofre o adultério da
provavelmente por estar morto, o que lhe permite um esposa com o protagonista.
26
§ Dona Plácida: é a “alcoviteira”, uma senhora Logo, os seus defeitos vão aparecendo a cada
representante da classe média, tem uma vida página, entrecortadas por situações de ironia e pessimis-
de muito trabalho e sofrimento e promove os mo. Seus pensamentos são amorais na viagem que faz
encontros adúlteros de Brás e Virgília, sua anti- pela memória de sua própria vida. A esse gênero literário
ga ama, em sua casa. se dá o nome de sátira menipeia, no qual um morto
§ Marcela: é uma prostituta que desperta um se dirige aos vivos para criticar a sociedade humana.
grande amor na adolescência de Brás Cubas.
§ Quincas Borba: amigo de infância do narra-
dor, é o criador da teoria do humanitismo, dou- Resumo do enredo
trina à qual Brás Cubas adere. Ele morre louco. Memórias póstumas de Brás Cubas começa com uma
§ Eugênia: conhecida pela alcunha de “flor da
dedicatória em forma de epitáfio, pura ironia mórbida
moita”, nas palavras de Brás Cubas, já que era
machadiana:
fruto de um relacionamento que se deu atrás
de uma moita e que ele, quando criança, havia Ao verme / que / primeiro roeu frias carnes / do
flagrado. Em determinado momento, o protago- meu cadáver / dedico / como saudosa lembrança
nista se interessa por ela e a beija, porém não / estas / memórias póstumas.
leva o romance adiante, pois ela é “coxa”, ou
seja, manca. Em seguida, uma advertência ao leitor dizendo
§ Cotrim: é cunhado de Brás Cubas em função que escreveu o livro para talvez apenas cinco leitores,
do casamento com sua irmã Sabina. É um ho- aproveitando ironicamente uma confissão de Stendhal,
mem de hábitos rudes, especialmente no trato que afirmou ter escrito um de seus livros para cem lei-
com escravos. tores. Brás Cubas alerta que escreveu o livro “com a
§ Nhá Loló: é parente de Cotrim e apresentada pena da galhofa e a tinta da melancolia”.
por Sabina para o irmão como última possibili- Desde pequeno, Brás Cubas já vive os reflexos
dade de casamento. A mocinha morre de febre
da sociedade patriarcal, caracterizado pelos mimos de
amarela aos 19 anos.
seus pais. Haja visto o fato do pequeno Brás ter como
§ Prudêncio: escravo que servia de “brinquedo”
“brinquedo” de estimação o Prudêncio, menino negro
na infância de Brás Cubas. Futuramente, ganha
e escravo que ele montava e brincava de “cavalinho”.
sua alforria.
O curto período destinado ao retrato da época
de escola revela o surgimento de um personagem da
O início do Realismo no Brasil obra, o Quincas Borba, que, inclusive, ganhará um ro-
Memórias póstumas de Brás Cubas é o romance inicia- mance só para ele no futuro. Quincas Borba aparece
dor do Realismo na literatura brasileira, assim como da mais à frente na obra como um mendigo, defendendo
segunda fase do autor. É, sem dúvida, uma das mais o humanitismo, uma mistura da teoria darwinista com
importantes obras da literatura brasileira, como marco o borbismo: “Aos vencedores, as batatas”, ou seja,
inicial do Realismo, bem como um desfile de genialida- uma situação em que só os mais fortes sobrevivem ou
de escrita do autor. As memórias de Brás Cubas não devem sobreviver. Na verdade, uma grande ironia de
são cronológicas, optando pelo estilo livre e digressivo. Machado às teorias cientificistas em voga no final do
Machado se separa definitivamente do Roman- século XIX.
tismo, e no próprio Realismo coloca em prática seu es- Na juventude, conhece a prostituta de luxo
tilo pessoal que escolhe como o personagem principal Marcela, a quem Brás dedica a célebre frase: “Marce-
um defunto que vai contar suas memórias. la amou-me durante quinze meses e onze contos de
Brás Cubas decide contar aos leitores o que foi réis”. Esta frase é muito famosa na obra e marca o
sua vida sem esconder nenhuma das mais profundas estilo machadiano, a maneira como o autor trabalha
verdades. Essa sinceridade, livre das moralidades e fal- as figuras de linguagem. Apesar de Marcela ser uma
sidades sociais, só existiam, porque ele estava morto. prostituta de luxo, em nenhum momento o autor men-
27
ciona tais palavras, ou seja, fica a cargo do leitor perce- e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos
ber a relação que se estabelece entre os personagens. contos e fui acompanhado ao cemitério por onze ami-
Brás estava de fato apaixonado por Marcela e gastava gos. Onze amigos! Verdade é que não houve cartas
o dinheiro de sua família com presentes, especialmente nem anúncios. Acresce que chovia – peneirava – uma
joias. Seu pai, percebendo a situação, manda o filho chuvinha miúda, triste e constante tão constante e tão
estudar Direito em Coimbra (Portugal), típica atitude triste, que levou um daqueles fiéis da última hora a in-
da burguesia da época. tercalar esta engenhosa ideia no discurso que proferiu
Brás Cubas vai contrariado e triste para a Euro- à beira de minha cova: — “Vós, que o conhecestes,
pa e, por lá, a vida não se mantém em sua mesmice. Na meus senhores, vós podeis dizer comigo que a natu-
universidade, vive as boemias e vida pregressa. Logo, reza parece estar chorando a perda irreparável de um
formado e em posse do diploma, retorna ao Brasil repe- dos mais belos caracteres que cobrem o azul como um
tindo a vida de muitos filhos da burguesia que só pos- crepe funéreo, tudo isso é a dor crua e má que lhe foi
suem a formação acadêmica por imposição social, mas, à natureza as mais íntimas entranhas; tudo isso é um
é claro, ele não tinha nenhuma aptidão para o trabalho. sublime louvor ao nosso ilustre finado”.
Em certo momento da narrativa, Brás Cubas tem seu
segundo amor: Virgília. Brás foi aconselhado por seu
pai a casar com ela, que era parente de um ministro,
pois via no casamento com ela um futuro político. Po-
rém, ela casa com Lobo Neves, que tira de Brás a noiva
e a candidatura a deputado.
Mesmo sendo tradicionalmente abastada fi-
nanceiramente, a família dos Cubas se construía à ma-
neira burguesa e isso não era bem visto no mundo das
aparências. Por isso, entrar na política era, sem dúvida,
uma maneira de ascensão social.
No decorrer da história, vão morrendo as pes-
soas que o circundam, amigos, amantes e familiares:
sua noiva pretendente Nhá Loló morre de febre ama-
rela, morre também o Quincas Borbas, Dona Plácida e Memórias póstumas de Brás Cubas. Ilustrado por Cândido Portinari.
outros.
Brás Cubas decide inventar um remédio que
Comentário
curasse todos os males da humanidade. Porém, preso
a esta ideia fixa, abre a janela e recebe um vento enca- Parece claro que a situação de “defunto autor”,
nado e morre de pneumonia. diferente de “autor defunto” (...) não desman-
O protagonista não conseguiu alcançar nada cha a verossimilhança realista. A todo momento,
que desejava e sua vida foi repleta de negativas, de Brás exibe o figurino do gentleman moderno, para
desmerecê-lo em seguida, e voltar a adotá-lo,
frustrações e não realizações.
configurando uma inconsequência que o curso do
romance vai normalizar.
Trechos (Scharz, Roberto In Um mestre na periferia do
capitalismo. Machado de Assis. p.19)

Capítulo I - Óbito do autor


[...] expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira O narrador é um defunto que resolve escrever
do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara suas memórias. A dedicatória serve-nos como um bom
de Catumbi. Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos exemplo da ironia, do pessimismo e do humor que irão
28
marcar esse livro de pseudo biografia do defunto Brás empenhava-se num grande feito, vem uma corrente de
Cubas, mas também dá legitimidade ao narrador, evi- ar e acaba com tudo!
tando, assim, a ambiguidade sugerida pelo título, que Ele se despede da mulher mais formosa entre as
exigiria a presença de um narrador que não Brás Cubas outras, que nada mais é do que Virgília.
para contar suas memórias.
A conclusão do capítulo dá mostra da ironia Chimène, qui l’eût dit? Rodrigue, qui l’eût
que irá marcar a narrativa e do emprego de digressões. cru?
Brás Cubas menciona no Prólogo a genealogia de seu (Chimène, quem o teria dito? Rodrigue, quem o teria
próprio texto, reportando-se aos precursores de sua acreditado)
forma narrativa, referindo-se obviamente aos textos de Virgília entra, vê Brás pálido e relembra do
Laurence Sterne. passado e de suas lembranças. Conta-lhe notícias, e o
autor percebe que não há mais aquela paixão que os
O emplasto uniu no passado. Um sujeito lhe contava sobre fatos
Brás Cubas tem a ideia de inventar um emplasto, an- políticos e econômicos. Outra ironia, pois eram assun-
tes de morrer: o “Emplasto Brás Cubas”, um emplasto tos que não interessam a um sujeito à beira da morte.
anti-hiponcondriaco. Ela vai embora e volta dias depois, como tinha
Além de ajudar as pessoas, o medicamento o combinado com seu filho Nhonhô, pois não queria ficar
faria enriquecer, além de ter seu nome divulgado pela mal falada numa visita a um homem solteiro. Com cin-
marca, fazer fama. A ironia é que ele morre de um ven- co anos, Nhonhô foi cúmplice, ao flagrar o caso de Brás
to encanado. e sua mãe, porém era muito pequeno para entender o
que acontecia.
Genealogia No meio da conversa, o autor entra em delírio.
Nada mais burguês do que traçar a genealogia da fa-
mília e se gabar de ter tradições. Delírio
O fundador da família era Damião Cubas, que O delírio durou de vinte a trinta minutos. Nele, Brás se
tinha esse nome devido ao seu trabalho com tonéis encontra com um barbeiro chinês e se vê preso a um
e que viveu no século VIII. Damião teria juntado re- livro fechado que alguém tentava abrir. Por fim, volta à
cursos financeiros como lavrador, além das atividades forma humana e monta num hipopótamo contemplan-
como tanoeiro (cubas). Com esse dinheiro, seu filho, do a redução dos séculos.
Luís Cubas, estudou em Coimbra. Porém, a família des- Chega ao Éden, avista uma figura feminina: a
prezava, Damião, considerando apenas Luís, pois havia Natureza, ou Pandora, que está prestes a engoli-lo.
formação. Muitas estranhezas e calamidades passam até que vê
Para atribuir importância a sua árvore genea- seu hipopótamo ser transformado no seu próprio gato,
lógica, o pai do autor dizia que o sobrenome era um o Sultão, que brincava junto à porta de seu quarto.
apelido herdado de um cavaleiro que, na luta contra os
mouros (África), teria quebrado trezentas cubas. Razão contra sandice
Personificação de dois estados mentais:
A ideia fixa Sandice × Razão.
Criar o emplasto era sua ideia fixa. Não pensava em
outra coisa. Transição
Confessa que Virgília foi seu pecado de juventude e
Em que aparece a orelha de uma senhora conta a história da data de seu nascimento: 1805.
Ocupado com a invenção do emplasto, Brás recebe um
golpe de vento que o deixou doente. Por não se tratar Naquele dia
corretamente, morre numa sexta-feira, como dizia: dia Ironia da família que o visitou em seu nascimento e
de azar. Vale o ressaltar da ironia do destino: quando ficava dizendo coisas sobre seu futuro promissor. João,
ex-oficial de infantaria, via um olhar de Bonaparte na
29
criança; Ildefonso, o beato, imaginava-o cônego, senão lutos, eram a minha feição verdadeiramente máscula.
bispo. Seu pai, Bento, não se preocupava com o futu- Como ostentasse certa arrogância, não se distinguia
ro, apenas orgulhava-se de o filho herdar sua beleza e bem se era uma criança com fumos de homem, se um
inteligência. Em 1806, conta da festa de seu batizado, homem com ares de menino. Ao cabo, era um lindo
mas não desenvolve muito a história afirmando que garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e
pouco foi lhe contado. espotas, chicote na mão e sangue nas veias, [...]
Sim, eu era esse garção bonito, airoso, abastado;
O menino é pai do homem e facilmente se imagina que mais de uma dama inclinou
Desde cedo, ganha o apelido de “menino diabo”; e se diante de mim a fronte pensativa, ou levantou para mim
o menino é o pai do homem, logo, o homem é filho do os olhos cobiçosos. De todas, porém, a que me cativou
diabo. logo foi uma... não sei se digo; este livro é casto, ao
O capítulo narra as diabruras de Brás, especial- menos na intenção; na intenção é castíssimo. Mas vá
mente fazendo o menino Prudêncio, filho de uma das lá; ou se há de dizer tudo ou nada. A que me cativou foi
escravas, de seu brinquedo como cavalinho. uma dama espanhola. Marcela, a “linda Marcela, como
Uma fala de Brás que resume seu olhar para si: lhe chamavam os rapazes do tempo. [...]
“Dessa terra e desse estrume é que nasceu esta flor”. Era boa moça, lépida, sem escrúpulos, um pou-
co tolhida pela austeridade do tempo, que lhe não
Um episódio de 1814 permitia arrastar pelas ruas os seus estouvamentos e
Aos seus nove anos de idade, um fato político impor- berlinda, luxuosa, impaciente, amiga de dinheiro e de
tante recai sobre o País: cai Napoleão, e sua família faz rapazes. Naquele ano, morria de amores por um certo
um jantar para comemorar, com o objetivo de agradar Xavier, sujeito abastado e físico – um pérola [...]
a família real portuguesa (vale lembrar que 1808 é a
data que a família real vem para o Brasil). Marcela / uma reflexão imoral
Doutor Vilaça, que fazia glosa (versos rimados), O capítulo XVI se inicia com uma ironia: a ideia de
encantava as senhoras. Brás fazia birra e foi tirado da amor. Uma vez que Marcela explorava Xavier, como
mesa; decide se vingar do doutor glosador, que enten- passava a fazer com Brás; assim como os joalheiros
deu como culpado da demora em servir sua sobremesa. não são vistos na gramática. Fica clara essa irônica re-
Depois do almoço, Brás seguiu Vilaça e flagrou- flexão, quando o narrador relaciona o amor ao poder
-o com Dona Eusébia. Quando percebeu que o casal se financeiro.
beijava, o menino “dedou” o ocorrido, e como Vilaça
era um homem casado, todos riram constrangidos. O Capítulo XVII - Do trapézio
pai de Brás lhe deu uma bronca, mas, no dia seguinte, e outras coisas
já achava graça do menino. Típica educação mimada.
Do trapézio e outras coisas
Um salto
Numa digressão que se apoia em um título metalin-
guístico, o capítulo dá um salto para a época do pe-
ríodo escolar. Ironia sagaz, que, na verdade, oculta a
importância da educação na vida das pessoas.
Vale lembrar da apresentação de um amigo de
infância, o Quincas Borba. Agora, a história pula para
1822, ano da Independência.
Cena do filme “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, com Brás e Marcela.
O primeiro beijo
Tinha dezessete anos; pungia-me um buçozinho que Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos
eu forcejava por trazer a bigode. Os olhos, vivos e reso- de réis; nada menos. Meu pai, logo que teve aragem
30
dos onze contos, sobressaltou-se, achou que o caso ex- troca. O capítulo é de uma ironia que coloca Brás como
cedia as falas de um capricho juvenil. interesseiro e aproveitador.
– Desta vez, disse ele, vais para Europa; vais
cursar uma universidade, provavelmente Coimbra; que- Volta ao Rio
ro-te para homem sério e não para arruador e gatuno. Depois de se bacharelar, peregrinou pela Europa, mas
E como eu fizesse um gesto de espanto: – Gatuno, sim recebe uma carta dizendo que sua mãe estava muito
senhor; não é outra coisa um filho que me faz isto... doente. Ele resolve voltar.
Sacou da algibeira os meus títulos de dívida, já
Triste, mas curto
resgatados por ele, e sacudiu-mos na casa.
Chegando ao Rio, o autor relata a sensação de voltar
– Vês, peralta? É assim que um moço deve zelar
ao passado e os lugares-comuns do sofrimento de sua
o nome dos seus? Pensas que eu e meus avós ganha-
mãe. Lá estavam seu pai, sua irmã, já casada com Co-
mos o dinheiro em casas de jogo ou vadiar pelas ruas?
trim, seu tio João e dona Eusébia, todos tristes. No dia
Pelintra! Desta vez ou tornas juízo, ou ficas sem coisa
seguinte de sua chegada, sua mãe faleceu. Pela pri-
nenhuma.
meira vez, o narrador sentia a morte verdadeiramente
Estava furioso, mas de um furor temperado e
de perto.
curto. Eu ouvi-o calado, e nada opus à ordem da via-
gem [...] Curto, mas alegre
Com ironia e recursos digressivos, o capítulo descreve
Visão do corredor os motivos da sinceridade do narrador. Segundo ele,
Marcela é comparada a um personagem das Mil e uma é na morte que o indivíduo se liberta das máscaras
noites, que se humilhava por sua amante. Seu pai, o sociais, assumindo seus defeitos, uma vez que não terá
tio cônego e o condutor da carruagem o levam à força mais que prestar contas de seus atos aos conhecidos.
da casa de Marcela. Ele foi colocado em um navio e
mandado para Lisboa. Três dias depois, já na embar- Na Tijuca
cação, Brás queria jogar-se ao mar, repetindo o nome Acompanhado de Prudêncio, uma espingarda, charu-
de Marcela. tos e livros, Brás Cubas retirou-se para a chácara da
família na Tijuca, pois não quis morar com sua irmã
A bordo Sabina. Isso sete dias após a morte de sua mãe.
O pai de Brás comunicou ao capitão as intenções suici- Lá permaneceu melancólico por mais sete dias,
das do filho, que com poesias e conversas o fez desistir o suficiente para reanimar-se: “era preciso viver!”. Iro-
do intento. nia do curto luto por sua mãe. Já pensando em sair e
retornar, foi avisado por Prudêncio que se mudavam
Bacharelo-me
para a casa vizinha dona Eusébia e sua filha (“A flor
Brás vira um folião e não se preocupa com os estudos
da moita” – fruto de seu romance com Vilaça). Brás se
em Coimbra. Participava de serões e boemias, extrava-
envergonha, pois lembra do caso de 1814, mas Pru-
gâncias e aventuras. dêncio alerta que foi ela quem vestiu o corpo de sua
mãe e ele resolveu fazer uma visita.
Almocreve
Brás se desequilibrou em cima de um jumento, mas O autor hesita
surgiu um almocreve (um carregador) que o ajudou, Seu pai pede que vá ao Rio para agradecer ao regente,
segurando o asno. Ele pensou em dar a ele três das pois tinha planos de torná-lo deputado e casá-lo com
cinco moedas que carregava, porém, pensou melhor sua pretendente: Virgília.
e, como foi uma ajuda sem nenhum interesse, deu só
uma moeda de prata e ainda ficou pensando que podia Virgília?
ter dado as de cobre, já que o carregador, pobre-diabo, Virgília? Mas então era a mesma senhora que alguns
havia o ajudado de bom gosto sem querer nada em anos depois...? A mesma; era justamente a senhora,
31
que em 1869 devia assistir aos meus últimos dias, e A flor da moita
que antes, muito antes, teve larga parte nas minhas Entrava Eugênia cruzando o olhar com o de Brás. Uma
mais íntimas sensações. Naquele tempo contava ape- borboleta preta invadiu a sala (superstição de morte).
nas uns voluntários. Não digo já lhe coubesse a pri-
mazia da beleza, entre as mocinhas do tempo, porque A borboleta preta
isto não é romance, e, que lhe maculasse o rosto ne- A digressão da borboleta reflete sobre as leis da
nhuma sarda ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía natureza e a justificativa da consciência diante do erro.
das mãos da natureza, cheia daquele feitiço, precário Brás Cubas conclui que mesmo se a borboleta fosse
e eterno, que o indivíduo passa a outro indivíduo, para azul ou cor de laranja, não teria mais segura a vida, já
os fins secretos da criação. Era isto Virgília, e era cla- que não seria impossível que a atravessasse com um
ra, muito clara, financeira, ignorante, pueril, cheia de alfinete para recrear dos olhos.
uns ímpetos misteriosos; muita preguiça e alguma de-
voção, – devoção ou talvez medo; creio que medo. Aí Coxa de nascença
tem o leitor, em poucas linhas, retrato físico e moral Eugênia chamava a atenção de Brás, mas quando ca-
da pessoa que devia influir mais tarde na minha vida; minhavam para conhecer a chácara, o autor percebeu
era aquilo com dezesseis anos. Tu que me lês, se ainda que a menina mancava. Perguntou se ela havia machu-
fores viva, quando estas páginas vieram à luz, – tu que cado o pé, mas a própria Eugênia informou que ela era
me lês, Virgília amada, não reparas na diferença entre coxa de nascença.
a linguagem de hoje e a que primeiro empreguei quan-
do te vi? Crê que era tão sincero então como agora; a Bem-aventurados os que não descem
morte não me tornou rabugento, nem injusto. Conflito de Brás por ela ser bonita, porém “coxa”.
– Mas, dirás tu, se você não guardou na retina
da memória a imagem do que fui, como é que podes O caminho de damasco
assim discernir a verdade daquele tempo, e exprimi-la O autor volta ao Rio de Janeiro e diz: quanto a Eugê-
depois de tanto anos? nia, Brás afirma que não foi cínico, foi homem! Achava
Ah! Indiscreta! Ah! Ignorantona! Mas é isso ridículo casar-se com uma moça “coxa”.
mesmo que nos faz senhores da terra, é esse poder de
restaurar o passado, para tocar a instabilidade das nos- A propósito de botas
sas impressões e a vaidade dos nossos afetos. Deixa Digressão sobre o uso das botas. O vazio da mente e
lá dizer o Pascal que o homem é um caniço pensante. ocupação com coisas fúteis.
Não; é uma errata pensante, isso sim. Cada estação da
Enfim!
vida é uma edição, que corrige a anterior, e que será
O encontro com Virgília enfim aconteceria.
corrigida também, até a edição definitiva, que o editor
dá de graça aos vermes.
A quarta edição
Contanto que... Brás classifica-se como sua quarta edição, ainda mal
Político ou casado? Brás pergunta a seu pai que diz acabada, mas ornada luxuosamente. Convidado para
serem importantes as duas coisas. O pai de Brás ex- jantar com Conselheiro Dutra, Brás quebra o relógio no
plica que Virgília é filha do Conselheiro Dutra, político caminho e, quando para em uma ourivesaria, reencon-
importante que poderia alavancar a almejada carreira tra Marcela, já velha e maltratada. Ele demonstra total
(pelo menos do pai de Brás) de deputado. falta de interesse naquela que seria responsável por
seu suicídio antes da ida para Coimbra.
A visita
Brás precisava ainda visitar dona Eusébia, quando che- O vizinho
gou conversou sobre sua finada mãe. Neste momento, Ainda com Marcela, vê um vizinho entrar com sua filha
há um rangido de porta e um chamado: mamãe… de quatro anos.
32
Na sege É minha!
Com o relógio consertado, Brás subiu na sege e se foi. Pequenos dramas de consciência ironizam em porme-
nores a despreocupação com coisas maiores.
A alucinação “É minha!”, comemorava Brás Cubas após con-
Brás tem alucinações vendo no rosto de Virgília as quistar Virgília em suas danças. Brás encontra moeda
mesmas marcas de velhice de Marcela. Depois, somem. de meia dobra de ouro no chão: “É minha!”, repetiu e
botou-a no bolso.
Que escapou a Aristóteles Ele entrega a moeda ao chefe de polícia e sen-
Brás nomeia o episódio com Marcela de “solidariedade
tiu-se melhor! A isso ele determina a “lei da equiva-
do aborrecimento humano”, um capítulo do qual Aris-
lência das janelas”: cada janela que se fecha deve ser
tóteles teria se esquecido de escrever. compensada por outra aberta, numa analogia à mora-
lidade de seus atos.
Marquesa, porque eu serei marquês
Virgília se encanta por Lobo Neves e Brás é informado O embrulho misterioso
por Conselheiro Dutra de que os planos para sua filha Este capítulo denuncia a hipocrisia comporta-
haviam mudado. Virgília caiu na lábia de Lobo Neves; mental do narrador que fez um alarde por conta da
perguntou-lhe se ele prometeria torná-la baronesa e moeda que tinha achado, se colocando como um ho-
ele respondeu “Marquesa, porque eu serei marquês”. mem bom, porém com o dinheiro mais farto não fez o
mesmo.
Um Cubas
Brás Cubas andava pela orla do Botafogo no dia
Com o fracasso do casamento do filho, o pai de Brás
seguinte, quando tropeçou em um embrulho e, como
fica indignado dizendo: “Um Cubas!”.
não havia ninguém por perto, levou-o para sua casa.
No embrulho, havia cinco contos de réis e moe-
Notas
das novas, tudo arrumado. Sem ter certeza do que fa-
Brás, em aspecto digressivo, expõe uma lista com notas
zer com aquilo, foi a um evento na casa de Lobo Neves.
do que viu durante o enterro do seu pai. Ele utilizaria
Na festa, estava o chefe de polícia, que contou
para escrever um capítulo chamado “triste e vulgar”,
a todos o caso da moeda de meia dobra de ouro que
mas depois abre mão.
Brás havia encontrado e devolvido ao dono. Todos o
A herança admiraram, inclusive Virgília.
Com a morte do pai, surge uma típica situação burgue- No dia seguinte, Brás voltou a pensar nos cinco
sa: um embate entre Brás Cubas, sua irmã Sabina e seu contos e decidiu que não era um crime ficar com eles,
cunhado Cotrim sobre a divisão da herança. pois foram achados. Para ele (nesta nova situação),
aquilo era um sinal de sorte.
O recluso Acabou por levar o dinheiro ao Banco do Brasil
Brás vive uma reclusão e raramente saía de casa. e depositou em sua conta. O mais irônico da situação é
que na agência do banco ainda havia quem o elogias-
Um primo de Virgília se pela moeda de ouro encontrada e devolvida.
Luís Dutra era um primo de Virgília que contava com . . . . . . .
Brás Cubas como um crítico de seus poemas. Em frente ao portão da chácara de Lobo Neves,
Brás e Virgília trocam um beijo. O título do capítulo
Virgília casada descrito apenas por pontos, dá a entender este aspecto
Brás volta ao Rio e fica sabendo do casamento de Vir- secreto do ato adúltero típico do Realismo.
gília com Lobo Neves.
Brás encontra a moça, ainda mais bela, e a con- A pêndula
vida para valsas em bailes até ganhar a simpatia de Brás perde o sono e se enche de fantasia por conta do
Lobo Neves. ocorrido.
33
O velho diálogo de Adão e Eva mente: “Trabalhando”.
Leia o capítulo inteiro abaixo. Para um leitor que não
é proficiente em Machado de Assis, este diálogo pode O abraço
não significar muita coisa, porém, uma das máximas Ao se despedir, Quincas abraça Brás e rouba seu relógio.
do realismo psicológico machadiano se dá em função
Um projeto
do não dito, da entrelinha. O adultério é, sem dúvida,
Brás se compromete a ajudar Quincas e procurá-lo no-
uma das características mais marcantes do Realismo e,
vamente. Este capítulo faz parte das pequenas culpas
neste caso, o sexo entre Brás Cubas e Virgília é descrito
que Brás carrega; depois se despede, abandonando o
de forma magistral, desfilando a genialidade do autor
peso na consciência com a mais deslavada tranquilida-
que dá a entender com reticências, sem banalidades
de. Comprometeu-se em procurá-lo e arranjar um local
descritivas e clichês do ato em questão.
para ele trabalhar.
Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Virgília . . . . . . !
O travesseiro / fujamos
Brás Cubas . . . . . . . . Quando encontra Virgília, esquece de Quincas. Propõe
Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . a Virgília para fugirem juntos e ela não aceita, pois não
..............?.......................... queria sair de sua zona de conforto.
.........................
Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A transação / olheiros e escutas
......................................... Virgília diz que não amava mais Brás. Ele diz que é um
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . .! . . . doido, mas que ainda podiam se encontrar em uma
......................................... casinha solitária, em alguma rua escura.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .!
Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ? As pernas
Brás Cubas . . . . . . . ! Brás chegou ao Hotel Pharoux, onde costumava jantar.
Vigília . . . . . . . . ! Foi levado por suas pernas, inconscientemente, uma
(OC, p. 570)
espécie de vontade própria e, por isso, dedicou um ca-
pítulo próprio ao acontecimento.
O momento oportuno
A casinha
Brás questiona o porquê de seu romance com Virgí-
Após jantar, encontrou em sua casa um bilhete de Vir-
nia só avançar agora e que tudo era uma questão de
gília; nele, ela dizia que algumas pessoas desconfia-
oportunidade.
vam do romance deles e, logo, precisavam terminar. Ele
Destino vai até a casa de Virgília e pede para fugir novamente,
Em relação ao seu caso com Virgília, Brás afirma que é mas ela se recusa.
destino: “Seja o que Deus quiser”. O melhor a fazer foi, então, a casinha que fora
comprada na região da Gamboa servindo de esconde-
Confidência rijo para o adultério. Brás não aguentava mais olhar
Confidência de Lobo Neves a Brás sobre a melancolia para a cara de Lobo Neves e de seu filho. Quem cui-
de sua carreira. Neste momento, Lobo Neves nem des- daria da casa (alcova) seria uma conhecida de Virgília.
confiava da relação adúltera de sua esposa.
O vergalho
Um encontro Brás reconhece Prudêncio, seu escravo da infância,
Brás reencontra Quincas Borba, agora mendigo. Ele sendo açoitado em praça pública, e intercede por ele.
pede dinheiro a Brás e pergunta como ganhar outra
nota de cinco mil réis como a que havia ganhado do Um grão de sandice
amigo. Brás, que nunca trabalhou, responde ironica- Em mais uma digressão, após o caso do Prudêncio, ele
34
casou. Foi quando conheceu a família de Virgília. Ela é
muito grata a sua ama.

Comigo
O autor faz uma digressão sobre como contaria a um
filho que ele seria fruto de práticas adúlteras.

Ilustração de Portinari para o capítulo “O vergalho”. In: Memórias póstu- O estrume


mas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
A consciência de Brás Cubas pesou sobre ele, que diz:
conta a história de Romualdo (Tamerlão) – general tár- “o vício é muitas vezes o estrume da virtude”.
taro, fundador do Segundo Império Mongol. Quando
perguntavam por que se transformou em Tamerlão, ele Entrevista
dizia que depois de adoecer precisou tomar tanto tár- Os encontros já não eram mais novidade. Porém, mes-
taro que virou o Rei dos Tártaros, por isso todos riam. mo assim, ambos sentiam ciúmes.
Logo, decide retornar a falar da casinha na Gamboa.
A presidência
Dona Plácida Alguns meses depois, Lobo Neves vem com a notícia
Dona Plácida era a alcoviteira, ou seja, a senhora que que se tornaria presidente de uma província.
morava na casinha, que era uma espécie de mundo
particular de Brás e Virgília. A princípio, dona Plácida Compromisso
não gostou de sua função, sentia nojo, mas Brás a con- Após deixar a casa, Brás Cubas deixa Virgília sozinha
venceu com histórias e uma novela inventada em torno neste momento de decisão. Se arrepende e decide visi-
do romance proibido. tá-la para manter as aparências.
Dona Plácida era uma espécie de sogra de
Cubas. Em forma de agradecimento, ele deu para ela De secretário
aqueles cinco contos que havia encontrado na praia. Na casa de Lobo Neves, Brás recebe o convite para
seguir com ele para o Norte, onde seria secretário. E
O senão do livro
Cubas aceitou.
Momento digressivo que emprega alguns dos recursos
machadinhos mais comuns: a metalinguagem e o leitor A reconciliação
incluso. Além do mais, justifica o estilo digressivo. Brás não sabia se era certo seguir para o Norte com
O bliblilômano Lobo Neves e Virgília. Sua irmã Sabina o visita e propõe
Brás diz ter que suprimir o capítulo anterior, pois nele uma reconciliação, ele aceita emocionado lembrando
haveria um “despropósito”, já que não desejava críticas. da infância com a irmã. Conhece Sara, sua sobrinha, já
com cinco anos. Deixa para trás as velhas desavenças
O luncheon com Cotrim.
O narrador reflete sobre seu jeito ébrio de escrever. Os parentes não entenderam o porquê de sua
Certa vez, Virgília perguntou a dona Plácida se ela es- partida junto com a família de Lobo Neves.
tava descontente, porém, ela negou, dizendo que Vir-
gília era a única pessoa de quem gostava no mundo. Questão de botânica
Brás lhe colocou uma prata no bolso do vestido. Brás se sentiu feliz, pois tinha uma mulher que o ama-
va, e iria viver próximo a ela como secretário de seu
História de dona Plácida marido.
Dona Plácida era filha de um sacristão da Sé com uma
doceira. Com apenas dez anos, perdeu o pai e com 13
quinze anos casou-se com um alfaiate. Quando o mari- Cotrim convenceu Brás de não ir para a província com
do morreu, teve de sustentar sua mãe e filha. Nunca se a família de Lobo Neves.
35
Foi publicada a transferência de Lobo Neves e Brás Era ele
Cubas, quando ele decidiu contar a Virgília que não Lobo Neves surpreende Virgília saindo da casa de dona
iria mais. Porém, a viagem estava cancelada, já que o Plácida. Lobo Neves entrou na casa completamente
decreto da nomeação tinha a data do número 13 e ele desconfiado. Dona Plácida disse que Virgília estava de
achava que isso dava azar. visita; sem hesitar, Virgília informou que já estava de
saída e que iria junto com o marido. Brás Cubas se
O conflito escondeu.
Lobo Neves não assumiu o motivo verdadeiro de sua
desistência. Equivalência das janela / bilhete
Dona Plácida fechou a porta e falou para Brás esperar
O cimo da montanha um pouco antes de ir embora, segurando seu ímpeto
Brás e Virgília passam a se amar ainda mais, depois da de partir.
decisão de não mais ir à província.
O filósofo
O mistério Quincas defendia o humanitismo, mas Brás Cubas não
Virgília conta algo a Brás Cubas que o fez estremecer e, estava disposto a filosofias do amigo. Brás compara
em seguida, foi amparado maternalmente pela mulher. seus pensamentos a uma peteca, ora em Quincas, ora
No entanto, ele não revela o que é aos leitores. no bilhete de Virgília.

Geologia 31
Morre Viegas, que é parente de Virgília. Tanto ela como Lobo Neves foi novamente nomeado presidente da
Lobo Neves (que encobria a mesma expectativa) espe- província, uma semana depois, e uma simples inversão
ravam alguma herança dele. de algarismos resolveu tudo, ou seja, a data de publi-
O melhor colóquio de Adão e Caim cação foi dia 31.
Viegas não deixou nenhuma herança e frustrou as ex-
O almoço
pectativas de Virgília.
Brás almoçou no Hotel Pharoux e sentiu um certo alívio
Uma carta extraordinária da partida de Virgília.
Brás conta de uma carta e um relógio de Quincas
Borba. Nela, Quincas diz que não era mais mendigo
O humanitismo
“Humanitas” é a substância em que se compõe todos
e agradecia o “empréstimo” de seu relógio. Diz estar
os homens. Comparado ao bramanismo (organização
desenvolvendo a teoria do “humanitismo” e chegou a
hindu de castas). A vida é o Humanita, e a única coisa
pensar no termo “borbismo” (referência ao seu nome).
negativa seria não nascer.
O jantar / suprimido
Brás vai a um jantar na casa de Cotrim e senta ao lado Parêntesis
de dona Eulália, conhecida como Nhã Loló, filha de Da- Brás abre parêntesis (digressão) para registrar máxi-
masceno. Após sair da mesa, Brás foi chamado por sua mas que criou (epígrafe a discursos sem assunto). Por
irmã Sabina, que cogitou Nhã Loló como sua futura es- exemplo:
posa. No jantar, Nhã Loló não tirou os olhos de Cubas
“Suporta-se com paciência a cólica do próximo.”
que contemplava seu corpo sob o vestido que usava.
“Matamos o tempo; o tempo nos enterra.”
No teatro, Brás constata que, por conta das rou-
“Um cocheiro filósofo costumava dizer que o
pas, a nudez passa a ser algo desejado, encorajando a
gosto da carruagem seria diminuto, se todos
vontade de reprodução da espécie.
andassem de carruagem.”
O autor quer suprimir o capítulo, pois o acha “Crê em ti; mas nem sempre duvides dos ou-
perigoso. Decide, enfim, suprimir o capítulo. Suprimir tros.”
não suprimindo, famosa ironia machadiana.
36
“Não se compreende que um botocudo fure o explicação prática e repetitiva do eu, diz Quincas Borba
beiço para enfeitá-lo com um pedaço de pau. no capítulo dos cães.
Esta é a reflexão de um joalheiro.”
“Não te irrites se te pagarem mal um benefício: O programa
antes cair das nuvens, que de um terceiro andar.” Cubas redigiu seu programa de acordo com princípios
do humanitismo, para fundar um jornal.

Epitáfio / desconsolação O desatino


O sonho do casamento com Nhá Loló é desfeito por Brás Cubas avisa a imprensa de seu jornal oposicionis-
sua morte, fruto da febre amarela. ta, porém Cotrim tentou impedi-lo, pois isso poderia
barrar uma vaga no ministério.
Na câmara
Mulheres turcas aparecem em uma visão de Brás , O problema insolúvel
quando estava na câmara de deputados acompanhan- Cotrim assinou notas em outros jornais afirmando que
do um discurso de Lobo Neves, dois anos após a morte não tinha nada a ver, nenhuma influência nos ideais
de Nhá Loló. colocados por Brás, que achava não haver necessidade,
de tornar pública uma briga familiar.
De uma calúnia
Brás Cubas contou sobre Virgília, num baile, em 1855, Teoria do benefício
a um oficial da marinha. Quincas Borba, a pedido de Brás Cubas, expôs sua opi-
nião acerca da suposta ingratidão de Cotrim.
A barretina
Para o filósofo, tudo era explicado pela “teoria
O autor retoma o capítulo 13 e diz que ele não foi
do benefício”: aquele que é beneficiado sai de um es-
inútil. Ele, impulsionado por Quincas Borba, deixa de
tado de privação para um estado neutro, ou seja, indi-
lado a melancolia e resolve ir em busca de um cargo
ferente, e logo a memória da ajuda recebida se esvai;
de ministro.
enquanto aquele que beneficia um necessitado sai de
um estado neutro para um estado sublime, causado
Os cães
pela alegria de ter ajudado outrem, bem como por sen-
Brás informou a Quincas que pretendia morar sozinho
tir-se superior a este outrem, situação que fica gravada
e isolado na Tijuca, porém, Quincas o convenceu a lu-
na memória com maior firmeza.
tar, remetendo ao humanitismo.
Daí que Cubas esperava alguma gratidão de
O pedido secreto Cotrim por suas benfeitorias, enquanto Cotrim não le-
Cubas não entendia e ainda questionou a disputa por vava o passado em conta.
ossos entre um homem e um cão. Daí Quincas Borba
Rotação e translação
sentenciou o homem “sabe que tem fome” – afinal,
Tudo na vida é ciclo de nascimento e morte e cada
a morte é definitiva para o ser, enquanto a fome vai
homem tem diversos nascimentos e mortes ao longo
e volta.
da vida, um movimento de rotação e de translação,
Não vou / utilidade relativa define o narrador.
Dona Plácida estava doente. Brás pensou em não fazer Lobo Neves conclui seu movimento de trans-
nada porque já havia lhe dado cinco contos de réis lação; quando ia se tornar ministro, ele faleceu. Brás
(aqueles que ele achou). Levou-a ao hospital, onde Cubas admite que teve um ou dois minutos de prazer
veio a falecer uma semana depois. ao saber desta morte.
Virgília chorava lágrimas verdadeiras durante o
Simples repetição enterro e Brás não exprimiu sentimentos, “levava uma
Um carteiro fingindo se apaixonar por dona Plácida pe- pedra na garganta ou na consciência”. O ambiente do
gou seu dinheiro (cinco contos de réis) e sumiu. Uma cemitério desagradava nosso narrador.
37
O alienista A semidemência
Brás Cubas teve um sonhou e acordou achando ser um Quincas Borba foi para Minas Gerais e, na volta, estava
nababo (homem poderoso e ostentador de riqueza), louco. Queimou seus livros do Humanitismo e prometia
imaginando uma revolução social em que trocaria as reescrevê-los.
pessoas de papéis para observar seu comportamento. O que mais entristeceu Brás, que já estava ve-
Foi taxado de louco quando contou isso para lho, é que Quincas tinha ciência de que estava enlou-
Quincas. Em alguns dias, surgiu um alienista e, ao ana- quecendo, e ainda brincava com o fato, dizendo que
lisá-lo, disse que estava completamente são. Brás disse seria mais uma ação do Humanitas. Recitava longos
que um pouco de sandice não faz mal. capítulos de livros, chegou a inventar uma dança sacra
para cerimônias religiosas do humanitismo.
Os navios do Pireu Quincas Borba morreu, ainda defendendo suas
O alienista explicou que na Grécia antiga havia o “ma- filosofias.
níaco ateniense”, que acreditava que todos os barcos
que atracavam no porto de Pireu eram seus e aquilo Das negativas
era sua felicidade. Comparou a situação do criado de O último capítulo apresenta intenso pessimismo, ou
Brás Cubas: cuidava da casa do patrão como se fosse niilismo. Uma vez que o defunto autor reforça de ma-
dele, e aquilo o alegrava. neira intensa o ceticismo de toda a sua narrativa pela
negação irônica da paternidade. Ele considera isso
Orgulho da servilidade como um saldo positivo frente a sua existência vazia.
Quincas teve uma opinião divergente em relação à
comparação do maníaco ateniense a seu criado. Este último capítulo é todo de negativas. Não al-
cancei a celebridade do emplasto, não fui minis-
Fase brilhante tro, não fui califa, não conheci o casamento. Ver-
Devido à análise de Quincas Borba, Brás Cubas para- dade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa
benizou-o e afirmou que não poderia estar louco, como fortuna de não comprar o pão com o suor do meu
dissera o alienista. Ao saber dessa suspeita, Quincas rosto. Mais; não padeci a morte de Dona Plácida,
estremeceu. nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas
Cubas entra em uma ordem de caridade com umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará
Cotrim. Quincas Borba o apoiou, mas lembrou que sua que não houve míngua nem sobra, e conseguinte-
verdadeira religião deveria ser o humanitismo. mente que saí quite com a vida. E imaginará mal;
porque ao chegar a este outro lado do mistério,
Dois encontros achei-me com um pequeno saldo, que é a derra-
Em alguns anos, Cubas cansou-se do trabalho na Or- deira negativa deste capítulo de negativas: – Não
tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o le-
dem e deixou um donativo suficiente para que ganhas-
gado da nossa miséria.
se o direito a um retrato seu na sacristia. Época da
morte de Marcela, que viu morrendo no hospital da
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás Cubas.
Ordem. Também encontrou Eugênia (Vênus manca) vi- São Paulo: FTD, 1991.
vendo em um dos cortiços que ele visitava distribuindo
esmolas.

38
AProfunde seus conhecimentos
1. No trecho a seguir, o narrador, ao descrever encarapitado no tejadilho: Sr. Brás Cubas, a
a personagem, critica sutilmente um outro rejuvenescência estava na sala, nos cristais,
estilo de época: o Romantismo. nas luzes, nas sedas, – enfim, nos outros.”
“Naquele tempo contava apenas uns quinze b) “Minha mãe era uma senhora fraca, de pou-
ou dezesseis anos; era talvez a mais atrevida co cérebro e muito coração, assaz crédula,
criatura da nossa raça, e, com certeza, a mais sinceramente piedosa, – caseira, apesar de
voluntariosa. Não digo que já lhe coubesse bonita, e modesta, apesar de abastada; te-
a primazia da beleza, entre as mocinhas do mente às trovoadas e ao marido. O marido
tempo, porque isto não é romance, em que era na Terra o seu deus. Da colaboração des-
o autor sobredoura a realidade e fecha os sas duas criaturas nasceu a minha educação
olhos às sardas e espinhas; mas também não (...)”
digo que lhe maculasse o rosto nenhuma sar- c) “Na vida, o olhar da opinião, o contraste
da ou espinha, não. Era bonita, fresca, saía dos interesses, a luta das cobiças obrigam
das mãos da natureza, cheia daquele feiti- a gente a calar os trapos velhos, a disfarçar
ço, precário e eterno, que o indivíduo passa os rasgões e os remendos, a não estender ao
a outro indivíduo, para os fins secretos da mundo as revelações que faz à consciência;
criação.” e o melhor da obrigação é quando, à força de
ASSIS, Machado de. Memórias póstumas de Brás embaçar os outros, embaça-se um homem a
Cubas. Rio de Janeiro: Jackson, 1957. si mesmo...”
d) “O alienista notou então que ele escancara-
A frase do texto em que se percebe a crítica
va as janelas todas desde longo tempo, que
do narrador ao Romantismo está transcrita
alçara as cortinas, que devassara o mais pos-
na alternativa:
sível a sala, ricamente alfaiada, para que a
a) [...] o autor sobredoura a realidade e fecha
vissem de fora, e concluiu: – Este seu criado
os olhos às sardas e espinhas [...]
tem a mania do ateniense: crê que todos os
b) [...] era talvez a mais atrevida criatura da
nossa raça [...] navios são dele; uma hora de ilusão que lhe
c) Era bonita, fresca, saía das mãos da nature- dá a maior felicidade da terra.”
za, cheia daquele feitiço, precário e eterno, e) “Pareceu-me então (e peço perdão à crítica,
[...] se este meu juízo for temerário!) pareceu-me
d) Naquele tempo contava apenas uns quinze que ele tinha medo – não de mim, nem de si,
ou dezesseis anos [...] nem do código, nem da consciência; tinha
e) [...] o indivíduo passa a outro indivíduo, medo da opinião. Supus que esse tribunal
para os fins secretos da criação. anônimo e invisível, em que cada membro
acusa e julga, era o limite posto à vontade
do Lobo Neves.”
2. Todas as alternativas sobre o narrador de Me-
mórias póstumas de Brás Cubas, de Machado
de Assis, estão corretas, EXCETO: 4. Observe o trecho a seguir e julgue as afirma-
a) Analisa o ser humano, focalizando o seu tivas.
lado negativo, seus defeitos morais. Começo a arrepender-me deste livro. Não que
b) Conta a história de forma regular e fluente, ele me canse; eu não tenho que fazer; e, real-
preocupando-se com a compreensão do leitor. mente, expedir alguns magros capítulos para
c) Informa que a causa de sua morte foi uma esse mundo sempre é tarefa que distrai um
ideia fixa, a obsessão com o emplastro Brás pouco da eternidade. 
Cubas. Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas.
d) Não hesita em apontar seus próprios erros
e imperfeições, pois está a salvo dos juízos a) Este fragmento é de um romance pretensa-
alheios. mente biográfico, escrito por um “defunto
e) Não vê com bons olhos a figura do crítico, autor”.
chegando mesmo a ridicularizá-lo. b) A ironia, o pessimismo e o desmascaramento
das ilusões estão presentes no livro.
3. Todos os trechos extraídos de Memórias pós- c) “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma
tumas de Brás Cubas  expressam a ideia de criatura o legado da nossa miséria”. Frase do
que o ser humano sempre se mira num espe- fim do romance, que encerra o desencanto
lho social, o olhar do público, EXCETO: do autor diante da vida.
a) “Então, – e vejam até que ponto pode ir d) Memórias póstumas de Brás Cubas é seu pri-
a imaginação de um homem, com sono, – meiro romance, tendo sido escrito na frase
então, pareceu-me ouvir de um morcego romântica.
39
e) O texto revela uma forma trabalhada, limpa dizer uma palavra, ou, quando muito, um –
e perfeita. Em sua obra, o rigor formal não “ai, nhonhô!” – ao que eu retorquia: “Cala
exclui a clareza. a boca, besta!” – Esconder os chapéus das
visitas, deitar rabos de papel a pessoas gra-
5. Por suas características, não se encaixa na ves, puxar pelo rabicho das cabeleiras, dar
prosa machadiana o trecho que aparece na beliscões nos braços das matronas, e outras
alternativa: muitas façanhas deste jaez, eram mostras de
a) Este último capítulo é todo de negativas. um gênio indócil, mas devo crer que eram
Não alcancei a celebridade do emplasto, não também expressões de um espírito robusto,
fui ministro, não fui califa, não conheci o porque meu pai tinha-me em grande admi-
casamento. ração; e se às vezes me repreendia, à vista de
b) A leitora, que é minha amiga e abriu este gente, fazia-o por simples formalidade: em
livro com o fim de descansar da cavatina de particular dava-me beijos.
ontem para a valsa de hoje, quer fechá-lo às
pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não
6. Indique a frase que, no contexto do frag-
faça isso, querida; eu mudo de rumo.
mento, ratifica o sentido de “o menino é o
c) Não sei se lhe meti algumas rabugens de pes-
pai do homem”, citação inicial do narrador.
simismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevia-a
a) fui dos mais malignos do meu tempo
com a pena de galhofa e tinta de melancolia,
b) um dia quebrei a cabeça de uma escrava
e não é difícil antever o que poderá sair des-
c) deitei um punhado de cinza ao tacho
se conúbio.
d) fustigava-o, dava mil voltas a um e outro
d) Não sou criança, nem idiota; vivo só e vejo
lado
de longe; mas vejo. Não pode imaginar. Os
e) alguma vez lhes puxei pelo rabicho das ca-
gênios fazem aqui dois sexos como se fosse
beleiras.
uma escola mista. Os rapazes tímidos, ingê-
nuos, sem sangue, são brandamente impeli-
dos para o sexo da fraqueza; são dominados, 7. Para reforçar a caracterização do “menino
festejados, pervertidos como meninas ao de- diabo” atribuída ao narrador, é utilizado
samparo. principalmente o seguinte recurso estilísti-
e) O pior é que era coxa. Uns olhos tão lúcidos, co:
uma boca tão fresca, uma compostura tão a) Amplo uso de metáforas que se reportam aos
senhoril; e coxa! Esse contraste faria suspei- comportamentos negativos do menino.
tar que a natureza é às vezes um imenso b) Seleção lexical que emprega muitos vocábu-
escárnio. Por que bonita, se coxa? Por que los raros à época, particularmente os adjeti-
coxa, se bonita? vos.
c) Recurso frequente ao discurso direto para
Texto para as próximas 2 questões. exemplificar as traquinagens do garoto.
d) Utilização recorrente de orações coordena-
(...) Um poeta dizia que o menino é o pai do das sindéticas aditivas.
homem. Se isto é verdade, vejamos alguns e) Emprego significativo de orações subordina-
lineamentos do menino. das adjetivas restritivas.
Desde os cinco anos merecera eu a alcunha
de “menino diabo”; e verdadeiramente não
8. Leia o texto a seguir.
era outra coisa; fui dos mais malignos do
Quincas Borba mal podia encobrir a satisfa-
meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e
ção do triunfo. Tinha uma asa de frango no
voluntarioso. Por exemplo, um dia quebrei
prato, e trincava-a com filosófica serenida-
a cabeça de uma escrava, porque me nega-
de. Eu fiz-lhe ainda algumas objecções, mas
ra uma colher do doce de coco que estava
tão frouxas, que ele não gastou muito tempo
fazendo, e, não contente com o malefício,
em destruí-las.
deitei um punhado de cinza ao tacho, e, não
– Para entender bem o meu sistema, concluiu
satisfeito da travessura, fui dizer à minha
ele, importa não esquecer nunca o princípio
mãe que a escrava é que estragara o doce
universal, repartido e resumido em cada ho-
“por pirraça”; e eu tinha apenas seis anos.
mem. Olha: a guerra, que parece uma cala-
Prudêncio, um moleque de casa, era o meu
midade, é uma operação conveniente, como
cavalo de todos os dias; punha as mãos no
se disséssemos o estalar dos dedos de Huma-
chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa
nitas; a fome (e ele chupava filosoficamente
de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma
a asa do frango), a fome é uma prova a que
varinha na mão, fustiga - va-o, dava mil vol-
Humanitas submete a própria víscera. Mas
tas a um e outro lado, e ele obedecia, – al-
eu não quero outro documento da sublimi-
gumas vezes gemendo – mas obedecia sem
dade do meu sistema, senão este mesmo

40
frango. Nutriu-se de milho, que foi planta- 10. Leia as proposições a seguir sobre o livro Me-
do por um africano, suponhamos, importa- mórias póstumas de Brás Cubas, de Machado
do de Angola. Nasceu esse africano, cresceu, de Assis.
foi vendido; um navio o trouxe, um navio I. Memórias póstumas, texto narrado em
construído de madeira cortada no mato por primeira pessoa, tem como personagem
dez ou doze homens, levado por velas, que principal Quincas Borba, o defunto autor
oito ou dez homens teceram, sem contar a de que fala o livro, fundador do Huma-
cordoalha e outras partes do aparelho náuti- nitismo – filosofia que defende a luta de
co. Assim, este frango, que eu almocei agora todos contra todos.
mesmo, é o resultado de uma multidão de II. O emplasto que Brás Cubas pretendia in-
esforços e lutas, executados como único fim ventar para a cura da hipocondria que
de dar mate ao meu apetite. atinge a humanidade foi o causador,
Machado de Assis. Memórias póstumas Brás Cubas. segundo a retórica do próprio autor, da
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. morte do narrador das Memórias póstu-
mas.
A filosofia de Quincas Borba – a Humanitas III.O triângulo amoroso entre Lobo Neves,
– contém princípios que, conforme a expla- Virgília e Brás Cubas redundou numa tra-
nação do personagem, consideram a coope- gédia: a morte do narrador, relatada por
ração entre as pessoas uma forma de: ele depois de morto.
a) lutar pelo bem da coletividade. IV. O tempo no romance machadiano é tipi-
b) atender a interesses pessoais. camente realista, pois Brás Cubas reme-
c) erradicar a desigualdade social. mora de forma linear e sem flashbacks
d) minimizar as diferenças individuais. desde a infância até a velhice.
e) estabelecer vínculos sociais profundos. Com base na leitura das proposições anterio-
res, é correto afirmar que:
9. No capítulo “Ao leitor”, em Memórias póstu- a) apenas a afirmativa I está correta.
mas de Brás Cubas, de Machado de Assis, o b) apenas a afirmativa II está correta.
protagonista afirma que o livro foi escrito c) apenas a afirmativa III está correta.
com “algumas rabugens de pessimismo” e d) apenas a afirmativa IV está correta.
“com a pena da galhofa e a tinta de melanco- e) todas as a afirmativa estão corretas.
lia”, reflexões que retornam, com semelhan-
te tonalidade, no capítulo final: “Não tive 11. [...] e tudo ficou sob a guarda de Dona Pláci-
filhos, não transmiti a nenhuma criatura o da, suposta, e, a certos respeitos, verdadeira
legado da nossa miséria”. dona da casa.
Custou-lhe muito a aceitar a casa; farejara
1. Brás Cubas – personagem contraditório
a intenção, e doía-lhe o ofício; mas afinal
que é – revela-se, ao longo da história, cedeu. Creio que chorava, a princípio: tinha
um personagem otimista, alegre e gene- nojo de si mesma. Ao menos, é certo que
roso, deixando para Marcela onze contos não levantou os olhos para mim durante os
de réis como legado para o filho que tive- primeiros dois meses; falava-me com eles
ram. baixos, séria, carrancuda, às vezes triste. Eu
2. Discípulo fiel da filosofia do Humanitis- queria angariá-la, e não me dava por ofendi-
mo, que apregoava a igualdade e a frater- do, tratava-a com carinho e respeito; force-
nidade entre os seres, Brás Cubas adota java por obter-lhe a benevolência, depois a
a máxima de seu mestre Quincas Borba: confiança. Quando obtive a confiança, ima-
“verdadeiramente há só uma desgraça: é ginei uma história patética dos meus amores
não nascer”. com Virgília, um caso anterior ao casamento,
3. Dizendo-se um “autor defunto”, o volú- a resistência do pai, a dureza do marido, e
vel narrador pode contar toda a história não sei que outros toques de novela. Dona
de trás para a frente, começando de sua Plácida não rejeitou uma só página da no-
trágica morte, passando por seu malsuce- vela; aceitou-as todas. Era uma necessidade
dido casamento, até chegar à infância e da consciência. Ao cabo de seis meses quem
ao nascimento. nos visse a todos três juntos diria que Dona
Lendo as proposições anteriores, concluímos Plácida era minha sogra.
que: Não fui ingrato; fiz-lhe um pecúlio de cinco
a) apenas as afirmativas 1 e 2 estão corretas. contos, os cinco contos achados em Botafo-
b) apenas as afirmativas 1 e 3 estão corretas. go, como um pão para a velhice. Dona Pláci-
c) apenas a afirmativa 2 está correta. da agradeceu-me com lágrimas nos olhos, e
d) todas as afirmativas estão corretas. nunca mais deixou de rezar por mim, todas
e) todas as afirmativas estão incorretas. as noites, diante de uma imagem da Virgem,
41
que tinha no quarto. Foi assim que lhe aca- de toda a gente, é um sol opaco e reles, de
bou o nojo. .................... e .................... .
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. As duas palavras que aparecem no final desse
trecho, no lugar dos espaços pontilhados, po-
Considerando no contexto da obra a que per- dem servir para qualificar, de modo figurado,
tence, este excerto revela que: a mescla de tonalidade estilísticas que caracte-
a) a dominação dos proprietários era abrandada riza o capítulo e o próprio livro. Preenchem de
por sua moralidade cristã, que os inclinava à modo mais adequado as lacunas as palavras:
caridade e à benevolência desinteressada. a) acaso e invernia.
b) a dependência da proteção dos ricos podia b) Finados e ritual.
forçar os pobres a transigir com seus pró- c) senzala e cabaré.
prios princípios morais. d) cemitério e carnaval.
c) os brancos, mesmo quando pobres, na socie- e) eclipse e cerração.
dade escravista do Império, demonstravam
aversão ao trabalho, por considerá-lo pró- 13. (Fuvest)Examine as seguintes afirmações re-
prio de escravos. lativas a romances brasileiros do século XIX,
d) os senhores mais refinados, mesmo numa nos quais a escravidão aparece e, em segui-
sociedade escravista, davam preferência a da, considere os três livros citados:
criados brancos, mas, dada a escassez des- I. Tão impregnado mostrava-se o Brasil de
tes, eram obrigados a grandes concessões escravidão, que até o movimento aboli-
para conservá-los. cionista pode servir, a ela, de fachada.
e) os agregados, de que Dona Plácida é exemplo II. De modo flagrante, mas sem julgamentos
típico, consideravam-se membros da família morais ou ênfase especial, indica-se a
proprietária e, por isso, tornavam-se indo- prática rotineira do tráfico transoceânico
lentes, resistindo a aceitar os empregos que de escravos.
lhes eram oferecidos. III.De modo tão pontual quanto incisivo, ex-
põe-se o vínculo entre escravidão e práti-
12. CAPÍTULO LXXI
ca de tortura física.
O senão do livro A. Memórias de um sargento de milícias.
B. Memórias póstumas de Brás Cubas.
Começo o arrepender-me deste livro. Não C. O cortiço.
que ele me canse; eu não tenho que fazer; As afirmações I, II e III relacionam-se, de
e, realmente, expedir alguns magros capí- modo mais direto, respectivamente, com os
tulos para esse mundo sempre é tarefa que romances:
distrai um pouco da eternidade. Mas o livro a) B, A, C.
é enfadonho, cheira a sepulcro, traz certa
b) C, A, B.
contração cadavérica; vício grave, e aliás ín-
c) A, C, B.
fimo, porque o maior defeito deste livro és
d) B, C, A.
tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o
e) A, B, C.
livro anda devagar; tu amas a narração direi-
ta e nutrida, o estilo regular e fluente, e este
14. (Fuvest) Em quatro das alternativas abaixo,
livro e o meu estilo são como os ébrios, gui-
registram-se alguns dos aspectos que, para
nam à direita e à esquerda, andam e param,
bem caracterizar o gênero e o estilo das Me-
resmungam, urram, gargalham, ameaçam o
mórias póstumas de Brás Cubas, o crítico
céu, escorregam e caem...
J. G. Merquior pôs em relevo nessa obra de
E caem! – Folhas misérrimas do meu cipres-
Machado de Assis. A única alternativa que,
te, heis de cair, como quaisquer outras belas
invertendo, aliás, o juízo do mencionado crí-
e vistosas; e, se eu tivesse olhos, dar-vos-ia
tico, aponta uma característica que NÃO se
uma lágrima de saudade. Esta é a grande
vantagem da morte, que, se não deixa boca aplica à obra em questão é:
para rir, também não deixa olhos para cho- a) ausência praticamente completa de distan-
rar... Heis de cair. ciamento enobrecedor na figuração das per-
Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas.
sonagens e de suas ações.
b) mistura do sério e do cômico, de que resul-
Nas primeiras versões das Memórias pós- ta uma abordagem humorística das questões
tumas de Brás Cubas, constava, no final do mais cruciais.
capítulo LXXI, aqui reproduzido, o seguinte c) ampla liberdade do texto em relação aos di-
trecho, posteriormente suprimido pelo au- tames da verossimilhança.
tor: d) emprego de uma linguagem que evita cha-
[... Heis de cair.] Turvo é o ar que respirais, mar a atenção sobre si mesma, apagando-se,
amadas folhas. O sol que vos alumia, com ser assim, por detrás da coisa narrada.
42
e) uso frequente de gêneros intercalados – por Marcela amou-me durante quinze meses e
exemplo, cartas ou bilhetes, historietas etc. onze contos de réis; nada menos. Meu pai
– embutidos no conjunto da obra global. logo que teve aragem dos quinze contos so-
bressaltou-se deveras; achou que o caso exce-
15. Quincas Borba, personagem criado por Ma- dia as raias de um capricho juvenil.
chado de Assis, era autor de Humanitas, fi- — Dessa vez, disse ele, vais para Europa,
losofia única, eterna, comum, indivisível e vais cursar uma Universidade, provavelmente
indestrutível, que pregava a eterna luta do Coimbra, quero-te homem sério e não arrua-
homem pela sobrevivência, ressaltando o dor e não gatuno.
predomínio dos mais espertos. E como eu fizesse um gesto de espanto:
Existe uma máxima sobre a qual ele resume — Gatuno, sim senhor, não é outra coisa um
suas explanações sobre essa filosofia. Assi- filho que me faz isso.
nale-a. Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas
a) Devagar se vai ao longe.
18. De acordo com essa passagem da obra, pode-
b) Ao vencedor, as batatas.
se antecipar a visão que Machado de Assis
c) Quem tudo quer tudo perde.
tinha sobre as pessoas e sobre a sociedade. A
d) O essencial é invisível para os olhos.
esse respeito, assinale a alternativa correta.
e) Não se jogam pérolas aos porcos.
a) O amor é fruto de interesse e compõe o pilar
das instituições hipócritas.
AUXILIARES b) O amor, se sincero, supera todas as barreiras,
Algum tempo hesitei se devia abrir estas inclusive as financeiras.
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto c) O caráter autoritarista moldava as relações
é, se poria em primeiro lugar o meu nasci- familiares, principalmente entre pai e filho.
mento ou a minha morte. Suposto que o uso d) Havia medo de que a marginalidade envol-
vulgar seja começar pelo nascimento, duas vesse os jovens daquela época.
considerações me levaram a adotar diferente e) O amor era glorificado e apontado como o
método: a primeira é que eu não sou propria- único caminho para redimir as pessoas.
mente um autor defunto, mas um defunto
autor, para quem a campa foi outro berço; o Capítulo III
segundo é que o escrito ficaria assim mais
galante e mais novo. O emplasto
Memórias póstumas de Brás Cubas – Machado de Assis
Com efeito, um dia de manhã, estando a pas-
16. Essa é a abertura do famoso romance de Ma- sear na chácara, pendurou-se-me uma ideia
chado de Assis. Dentro desse contexto, já dá no trapézio que eu tinha no cérebro. Uma
para se ver o tipo de narrativa que será ex- vez pendurada, entrou a bracejar, a pernear,
plorada. Assinale a alternativa correta a esse a fazer as mais arrojadas cabriolas de vola-
respeito. tim, que é possível crer. Eu deixei-me estar
a) A narrativa decorre de forma cronologi- a contemplá-la. Súbito, deu um grande salto,
camente correta, de acordo com a passagem estendeu os braços e as pernas, até formar
do tempo: infância, juventude, maturidade e um X: decifra-me ou devoro-te.
velhice. Essa ideia era nada menos que a invenção de
b) A linearidade das ações apresenta cenas de um medicamento sublime, um emplasto an-
suspense, dado o comportamento inusitado ti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa
dos personagens. melancólica humanidade. Na petição de pri-
c) Não há como prever o final da narrativa, já vilégio que então redigi, chamei a atenção
que seu enredo é, propositadamente, com- do governo para esse resultado, verdadeira-
plicado. mente cristão. (...)
d) A ação terá, como cenário, os diversos cen- Machado de Assis – Memórias póstumas de Brás Cubas
tros cosmopolitas do mundo.
e) O autor usa o recurso do flashback devido a
sua intenção de iniciar o romance pelo “fim”. 19. Relativamente ao trecho lido, responda
em que tipo de foco narrativo ele está es-
truturado?
17. Considerando o que você já leu e/ou viu so-
bre o livro Memórias póstumas de Brás Cubas
20. Destaque uma frase que contenha palavra
e atentando ainda para as considerações que
que justifique sua resposta.
Brás Cubas faz no trecho lido quanto à ma-
neira de começar a escrever seu livro, res-
ponda: Brás Cubas contou sua história pelo 21. Traduza a expressão anti-hipocondríaco, que
“uso vulgar” ou ele fez de forma diferente? aparece no 2º parágrafo.

43
22. Memórias póstumas de Brás Cubas utiliza c) o que o levou a escrever suas memórias fo-
recursos estilísticos extraordinários, como a ram duas considerações sobre a vida e a mor-
digressão e a metalinguagem. Defina-os. te.
d) vai começar suas memórias pela narração de
23. A cronologia tradicional dos fatos, dentro da sua morte.
narrativa, faz com que a assimilação do en- e) vai adotar a mesma sequência narrativa uti-
redo seja mais fácil. Machado de Assis, em lizada por Moisés.
Memórias póstumas de Brás Cubas, rompe
essa tradição e opta por um início “às aves- 27. (Fuvest) Definindo-se como um “defunto
sas”. Identifique esse recurso estilístico e autor”, o narrador:
explique-o, considerando a obra citada. a) pôde descrever sua própria morte.
b) escreveu suas memórias antes de morrer.
24. (FGV-SP) Machado de Assis, a rigor, não foi c) ressuscitou na sua obra após a morte.
seguidor fiel de nenhuma escola literária. d) obteve em vida o reconhecimento de sua
No entanto, temos de convir que o autor não obra.
deixou de aceitar concepções próprias do: e) descreveu a morte após o nascimento.
a) Neoclassicismo.
b) Ultrarromantismo.
28. (Fuvest) Segundo o narrador, Moisés contou
c) Realismo.
sua morte no:
d) Futurismo.
a) promontório.
e) Modernismo.
b) meio do livro.
c) fim do livro.
25. (EU-Ponta Grossa) A ironia, apontada como d) intróito.
uma das características marcantes da obra
e) começo da missa.
realista de Machado de Assis, tem como fon-
te:
a) a origem humilde do autor, que o leva a sa- 29. (Fuvest) O tom predominante no texto é de:
tirizar a burguesia. a) luto e tristeza.
b) os preconceitos sociais da época, que margi- b) humor e ironia.
nalizaram o autor. c) pessimismo e resignação.
c) uma visão crítica da sociedade, que caracte- d) mágoa e hesitação
riza a ficção realista. e) surpresa e nostalgia.
d) as ideias republicanas do autor dentro de
uma sociedade monarquista.
e) saudosismo do autor em relação à época do
Império.
Gabarito
1. A
As questões 26, 27, 28 e 29 referem-se ao 2. B
trecho seguinte: 3. B
“Algum tempo hesitei se devia abrir estas 4. C
memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, 5. D
se poria em primeiro lugar o meu nascimen- 6. E
to ou a minha morte. Suposto o uso vulgar 7. D
seja começar pelo nascimento, duas consi- 8. B
derações me levaram a adotar diferente mé- 9. E
todo: a primeira é que eu não sou propria- 10. B
mente um autor defunto, mas um defunto 11. B
autor, para quem a campa foi outro berço; a 12. D
segunda é que o escrito ficaria assim mais 13. B
galante e mais novo. Moisés, que também 14. B
contou a sua morte, não a pôs no intróito, 15. B
mas no cabo: a diferença radical entre este 16. E
livro e o Pentateuco.” 17. Brás Cubas narra a sua história de modo ori-
Machado de Assis. Memórias póstumas de Brás Cubas. ginal, de maneira ziguezagueante e digres-
siva, fazendo intervenções e conversando
com o leitor e, principalmente, deixando de
26. (Fuvest) O autor afirma que: lado a linearidade da narrativa e, portanto,
a) vai começar suas memórias pela narração de indo contra o que seria o “modo vulgar” de
seu nascimento.
se narrar.
b) vai adotar uma sequência narrativa invulgar.
18. A
44
19. O texto está estruturado na 1ª pessoa do sin-
gular, com narrador onisciente.
20. “Com efeito, um dia de manhã, estando a
passear na chácara, pendurou-se-me uma
ideia no trapézio que eu tinha no cérebro.”
Os pronomes “me” e “eu” deixam claro que é
o próprio narrador quem conta a história.
21. Como a “ideia fixa” do narrador era a de in-
ventar um emplasto que eliminasse TODOS
os males do mundo, tal emplasto seria, por
certo, anti-hipocondríaco, uma vez que o hi-
pocondríaco tende a se medicar muitas ve-
zes mais do que o necessário. A medicação
exagerada seria extinta com a invenção do
emplasto, portanto.
22. A digressão é o expediente usado pelo narra-
dor para desviar o foco principal da história
e introduzir um comentário (crítico, literá-
rio, filosófico) alheio à narrativa de base.
A metalinguagem, por sua vez, consiste no
fato da linguagem se debruçar sobre a pró-
pria linguagem, é quando o autor nos conta
sobre o processo narrativo, ou quando nos
conta acerca das ideias que o cercavam para
a construção do livro dentro do próprio livro.
23. Esse recurso é identificado como flashback
ou, ainda, como mera “narrativa não linear”;
nele o autor foge da estruturação clássica de
“início, meio e fim” e coloca esses pontos ao
acaso, sem se preocupar com a ordem. Em
“Memórias póstumas de Brás Cubas”, nosso
defunto autor vai nos contando sua trajetó-
ria através da morte e passando aleatoria-
mente pelas outras fases da vida.
24. A
25. D
26. E
27. A
27. C
29. B

45
O cortiço

Aluísio Azevedo
Apresentação a degradação de maneira tensa culmina em desfechos
mortais, por ciúmes ou atração sexual.
  A classe baixa e humilde da sociedade e a clas-
se em ascensão são reunidas em agrupamentos huma-
nos. O próprio cortiço é colocado com um personagem
central. O espaço se caracteriza como algo de suma
importância para o desenrolar da narrativa, pois vai
determinar o comportamento dos personagens. O Cor-
tiço se estrutura em três espaços distintos, que em con-
sequência determinam o elenco social: o sobrado do
Miranda, a venda de João Romão e o próprio cortiço.

Tendência naturalista

O cortiço é sem dúvida a obra que fundamenta uma Naturalismo


tendência literária chamada de Naturalismo no Brasil. substantivo masculino
Essa tendência tem início no Brasil com a publicação 1. condição, estado do que é produzido pela natureza.
de O mulato, de Aluísio Azevedo, no ano de 1881, no 2. fil doutrina que, negando a existência de esferas
entanto, é O cortiço que engloba todas as característi- transcendentes ou metafísicas, integra as realidades
cas necessárias para compor o chamado “romance de anímicas, espirituais ou forças criadoras no interior da
tese” e os pressupostos cientificistas característicos do natureza, concebendo-as redutíveis ou explicáveis nos
final da segunda metade do século XIX. termos das leis e fenômenos do mundo.
Em O Cortiço, a história gira em torno de dois
portugueses, Miranda e João Romão, a princípio um
contraponto entre a riqueza luxuosa do primeiro e a
Estilo de época e
miséria e avareza do segundo. Os caminhos de João estilo individual
Romão para atingir o mesmo plano econômico serão O Naturalismo marca uma oposição ao mundo ideali-
aterradores. Além disso, ele vai buscar também uma zado do Romantismo, dando prosseguimento enquan-
ascensão social. Romão não vai medir esforços e escrú- to tendência ao Realismo. O trabalho se incumbe do
pulos para tal. Este é o viés naturalista em questão, ou materialismo e do cientificismo que analisa as minú-
seja, um mundo de atitudes que pensam no fim sem se cias da natureza humana e da sociedade, o determi-
preocupar com os meios em uma conduta justificável, nismo do meio social, da raça e do momento histórico.
que trata a visão realista das obras naturalistas. João Um dos princípios norteadores do trabalho de H. Taine.
Romão é fruto do meio em que luta severamente para
sobreviver e prosperar, e atropela todos que atraves-
sassem seu caminho.
Aluísio Azevedo segue o molde
de Eça de Queirós ou de Zola por trazer
como técnica as minúcias da descrição,
a precisão analítica e a crítica social.
Além disso, o autor trabalha com ver-
satilidade no emprego dos diálogos,
fisiologismo traduzindo como eram os
ambientes dos cortiços cariocas do fi-
nal do século XIX. Espaços estes, onde
47
Estrutura da obra 3. O sobrado (palacete) onde mora Miranda, repre-
sentando o poder socioeconômico mais elevado
e almejado por João Romão, que está no espaço
intermediário e deseja atingir o sobrado, espaço
mais alto; para isso, dirige todas as suas ambi-
ções.

Tempo
Não há uma determinação exata de tempo no que diz
respeito à especificidade de datas, porém, é possível
situar a narrativa nos anos que antecedem a Abolição
da Escravatura (1888).

Personagens
Em, O cortiço, Aluísio Azevedo opta por construir per-
Separado em 23 capítulos, O cortiço é um romance de sonagens que configuram tipos sociais, ou seja, que
narrativa quase linear com um enredo simples e orgâ- em sua característica individual vai projetar a classe
nico No plano da ação, os conflitos entre personagens e/ou o coletivo que ela faz parte.
se constroem pela lógica da oposição, seja no plano da Outro aspecto que deve ser analisado são as re-
personalidade, do aspecto físico ou econômico. lações de oposição entre as personagens que vão sus-
tentar os conflitos pelo aspecto dialógico e antitético.
Foco narrativo Por exemplo:
O foco narrativo é em terceira pessoa, com narrador § João Romão × Miranda;
onisciente que faz pequenas interferências sem, neces- § Jerônimo × Firmino;
sariamente, criar uma intenção de moralização ou juízo § Piedade × Rita Baiana;
drástico de valor. § Bertoleza × Léonie.

Espaço João Romão


O espaço é, sem dúvida, algo que necessita de uma
atenção especial na análise desta obra, uma vez que
a tese do romance é comprovar que ele determina o
comportamento das pessoas. Basicamente, a obra se
passa no Rio de Janeiro, especialmente no bairro de
Botafogo, onde se localizava o cortiço de João Romão.
Conhecido como romance de espaço, é possível anali-
sar o espaço sobre três óticas:
1. O próprio cortiço, em sua condição física, que
abriga pessoas pobres e os trabalhadores da Por Victor Vieira
pedreira;
2. A quitanda de João Romão, que é considera- Chegou como um imigrante português pobre no Bra-
da como um espaço intermediário, já que ela sil, mas acaba se tornando um homem rico, o dono
media as relações de transformação social de 1 do Cortiço. Seu poder vai se constituir a partir do mal
para 3, ou seja, da situação social de pobreza caráter e de sua falta de escrúpulos. Foi empregado de
de João Romão, para a condição riqueza; outro português na venda que o enriqueceu. Tornou-se
48
dono de cortiço e de uma pedreira nas proximidades. Rita Baiana
Ele sonhava em ter um sobrado como o de seu vizinho
Miranda. É, sem dúvida, um vilão da história.

Miranda
A exemplo de João Romão, Miranda é imigrante portu-
guês, enriqueceu graças ao dote da esposa Estela com
o comércio de tecidos. Ele é socialmente respeitado e
com o objetivo de afastar a mulher dos caixeiros, com-
prou um sobrado vizinho do cortiço de João Romão,
que inclusive queria comprar um pedaço de terra nos
fundos de sua propriedade para aumentar o quintal. É
proporcionalmente inverso à constituição de João Ro-
mão, especialmente no início do romance, já que tem
título de fidalguia e comenda. Socialmente respeitado. Rita Baiana se recusa ao casamento por se considerar
uma mulher livre, ela simboliza a sensualidade e o se-
Bertoleza xualismo da mulher brasileira. O seu rebolar e sua dan-
ça cativam e, em alguma dimensão, excitam os homens
do cortiço, inclusive sendo atribuído característica zoo-
mórficas aos seu comportamento e descrição física.
Ela era amante de Firmo, mas se entrega ao português
Jerônimo. Em função disso, Jerônimo e Firmo acabam
brigando, num jogo de vinganças que culminará com a
morte de Firmo depois de uma tocaia.

Jerônimo
Jerônimo é mais um personagem português da histó-
ria e se enquadra na obra como um trabalhador da
pedreira. Ele possui por volta de 35/40 anos, é alto,
Bertoleza e João Romão - Por Belmonte barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados, pescoço
de touro e cara de Hércules, olhos de boi de canga.
Escrava de um velho cego a quem pegava mensalmen- Veio para o Brasil com o objetivo de cuidar da pedreira
te para trabalhar numa quitanda como se livre fosse.
de João Romão. Inicialmente, João era um homem bom
Depois da morte do homem de quem ela era escrava,
e honesto, mas que se deixou levar pela forte atração
passou a viver como mulher de João Romão e tam-
exercida sobre ele por Rita Baiana. Em função disso,
bém como sua empregada, ajudando na construção
ele vai abandonando a mulher e a filha para dedicar-se
de riqueza, em quem confiava cegamente, tanto que
a uma vida desregrada ao lado de Rita Baiana.
confiou ao amante suas economias.

Estela Pombinha
“Senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza”. Es- Pombinha é a típica personagem influenciada negati-
tela é a mulher de Miranda e vive com ele um romance vamente pelo materialismo histórico e principalmente
de aparências. Ela tem origem rica e é adúltera e man- pelo meio. Inicialmente, a jovem simboliza a pureza,
tém “relacionamento amoroso” com os empregados a virgindade, mas, depois do casamento, acaba tor-
do marido no armarinho. nando-se amante da madrinha, Léonie, e prostituta.
49
Piedade mente no bairro de Botafogo. Sempre economizou e
É a esposa de Jerônimo, uma portuguesa ignorante e trabalhou muito duro para enriquecer, passando por
mal vestida. dificuldades e privações: dormia na própria venda e
comia o que dava por quatrocentos réis por dia pela
“Teria trinta anos, boa estatura, carne ampla e escrava Bertoleza que era quitandeira e desde a morte
rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes de seu amante, outro português que puxava carroça
pouco alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, com carga superior às suas forças. Ela entregou seu
fisionomia aberta; um todo de bonomia toleirona dinheiro para João Romão para que ele guardasse. Dia
(...) expressão de honestidade simples e natural.” após dia, ela passou a depender totalmente de João
Romão, que propôs morarem juntos.
Léonie
Era prostituta e usava roupas exageradas e barulhen- Bertoleza “concordou de braços abertos, feliz
tas de “cocote à francesa”, saltos altos, luvas de vinte em manter-se de novo com um português, por-
botões que cobriam todo o braço, sombrinha vermelha que, como toda a cafuza, Bertoleza não queria
com rendas cor-de-rosa, chapéu de imensas abas for- sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o
radas de veludo, lábios pintados de vermelho, pálpe- homem numa raça superior à sua”.
bras tingidas de violeta, cabelo artificialmente pintado
de loiro. Cuidava muito bem da afilhada Juju. João Romão comprou alguns pedacinhos de
terreno no entorno esquerdo da venda e construiu
Zulmirinha uma pequena casa de duas portas, com as economias
Filha do Miranda e de Estela, Zulmira é frágil e pálida, de Bertoleza. A quitandinha fica na parte da frente da
sempre triste. Existe uma dúvida quanto à sua pater- casa e o fundo se destinou para um dormitório. Berto-
nidade e, por isso, foi desprezada pelo pai por não ter leza pagava mensalidade de vinte mil réis a seu dono,
certeza de que é sua filha, e pela mãe por achar que um velho cego de Juiz de Fora. João Romão falsificou
é filha do Miranda mesmo. Termina casando-se com uma carta de alforria, evitando, assim, as despesas e
João Romão. o envio mensal do dinheiro. Bertoleza mais uma vez
se emociona como ato e fica agradecida. Três meses
Firmo depois deste ocorrido, morreu o dono de Bertoleza. Os
Firmo representa o típico malandro carioca, um mulato dois filhos não iriam procurar uma escrava, pois nem
jogador de capoeira. Sempre quis arranjar um emprego a conheciam, o que, de alguma maneira, tranquilizou
em repartições públicas e era uma espécie de faz-tudo: João Romão.
“delgado de corpo e ágil como um cabrito”. Bertoleza era, ao mesmo tempo, criada e aman-
te. Depois de se passar um ano, João Romão se vale das
Botelho
economias que ajuntou para comprar mais pedaços de
Botelho é um velho que vegeta à sombra do Miranda
terra, ampliando seu terreno ao fundo da venda. Tudo
e sofre de hemorroida, dizia conhecer todo o Rio e as
às custas de sua malandragem, roubando material, so-
fofocas e os podres de todas as pessoas.
turnamente, de construções vizinhas. Ele construiu as
três primeiras casinhas que deram início ao cortiço.
Outras personagens
Henrique, Alexandre e Augusta (pais de Juju, afilhada
“Estes furtos eram feitos com todas as cautelas
de Léonie), Marciana (mãe de Florinda), Florinda (que e sempre coroados do melhor sucesso, graças à
engravidou de Domingos, caixeiro de João Romão). circunstância de que nesse tempo a polícia não se
mostrava muito por aquelas alturas.”

Enredo da obra Ao lado direito da venda de João Romão, sur-


João Romão começou trabalhando como empregado ge Miranda, português negociante de tecidos que se
de um verdureiro, dos treze aos 25 anos, especifica- muda para o sobrado para afastar sua mulher, Estela,
50
de seus empregados, já que sabia das traições e não O próspero negócio de João Romão irrita e en-
pelo motivo alegado aos colegas: para evitar a fragili- che de mágoa o Miranda, que:
dade de sua pálida filha Zulmirinha.
(...) não suporta a “exalação forte de animais
“Dona Estela era uma mulherzinha levada da cansados” e o “bafo, quente e sensual que o em-
breca: achava-se casada havia treze anos e du- bebedava com o seu fartum de bestas no coito”.
rante esse tempo dera ao marido toda a sorte e Inveja do outro português que fez fortuna sem
desgosto.” precisar “roer nenhum chifre”.

Já no segundo ano de casamento, Miranda já Miranda agora se ocupa em busca de um título


flagrara os adultérios de sua esposa e só não se sepa- de nobreza. Dá festa e movimenta as conveniências
rou dela por causa do dote que recebera, puro interes- sociais.
se financeiro e social. Henrique, filho de um fazendeiro freguês de Mi-
randa, chega de Minas Gerais para terminar os cursos
“Prezava, acima de tudo, a sua posição social e preparatórios para Medicina e fica hospedado na casa
tremia só com a ideia de ver-se novamente po- de Miranda. Dona Estela toma ares maternais pelo jo-
bre...” vem. Henrique é contido e só sai de casa com o Miran-
da pela manhã.
Odiavam-se e dormiam em quartos separados. Na casa, vivem alguns criados; são eles:
Algumas poucas vezes, não resistindo ao desejo, pro-
§ Isaura, mulata ainda moça;
curava a mulher. Porém, ela fingia dormir e, depois,
§ Leonor, negrinha virgem, porém maliciosa, ligei-
ria e gargalhava dele. Miranda se afasta, arrependido,
ra e viva como um moleque;
mas ela conseguiu segurá-lo e, enfim, se entrega tendo
§ Valentim, filho de uma escrava alforriada por
todo o domínio da situação.
Dona Estela, que “gosta” muito dele, dando a
Miranda “gozou-a loucamente, com delírio, com Valentim liberdade, dinheiro e levando-o consi-
verdadeira satisfação de animal no cio”. go a passeio;
§ Botelho, o velho parasita que foi empregado do
Esta situação dura pelos menos dez anos e Es- comércio e corretor de escravos que acaba na
tela estava sempre propensa a se relacionar com os completa miséria. É contra o movimento abo-
caixeiros do marido. licionista e exalta os militares. Odeia Valentim,
A desavença entre os dois portugueses, Miran- que, sabendo disso provoca-o.
da e João, se dá quando o primeiro resolve comprar
“(...) caminhando para os setenta anos, antipá-
pedaços de terra de seu imóvel e, em contrapartida, tico, cabelos brancos, curto e duro como escova,
João quer comprar um pedaço do sobrado. barba e bigode do mesmo teor.”
João Romão inicia a construção de sua esta-
lagem e sua única preocupação é aumentar os bens; Miranda conta as peripécias de sua esposa a
para isso, não medem esforços, comem os piores le- Botelho, que óbvio sempre dá razão ao dono da casa.
gumes da horta, não comem um ovo produzido pelas Portanto, Botelho comporta-se da mesma ma-
galinhas e aproveitam os restos de comida dos traba- neira quando Estela detona o marido.
lhadores. Certa vez, Botelho encontra Estela numa situa-
Agora, João Romão soma 95 casinhas em sua ção constrangedora:
estalagem, para desespero de Miranda, que se inco-
“Estela entalada entre o muro e o Henrique”.
modava com o cortiço do lado de sua casa. O nome
dado é “Estalagem de São Romão”. Miranda ergue um Estela fica assustada e diz que não fazia nada;
muro para separar sua casa do cortiço. quando vê Botelho e Valentim envergonha-se.
51
“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, ra melhor do que estavam vivendo depois do suicídio
abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de do marido de Dona Isabel.
portas e janelas alinhadas.
§ Albino é lavadeiro e por viver entre as mulheres
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de
se comporta como elas, que o tratam como do
uma assentada, sete horas de chumbo. Como
que se sentiam ainda na indolência de neblinas mesmo sexo. Efeminado que era, no carnaval
as derradeiras notas da última guitarra da noite saía vestido de dançarina pelos bailes dos tea-
antecedente, dissolvendo-se à luz loura e terna da tros. Porém, não sai do cortiço desde que apa-
aurora, que nem um suspiro de saudade perdido nhou dos estudantes de uma república, quando
em terra alheia.” foi cobrar a roupa lavada das colegas.
§ Jerônimo propõe-se a trabalhar na pedreira por
Os ambulantes começam a movimentar o espaço setenta mil réis, mas João Romão acha a soma
e torna-se intenso pouco depois. Leandra, apelidada de... muito alta. Jerônimo paga os doze vinténs do
almoço e acompanha João Romão. Atravessam
“Machona foi a primeira lavadeira que se pôs a o cortiço, enquanto as lavadeiras continuam seu
trabalhar. Ela é portuguesa feroz, com pulsos ca- labor em cantoria, apesar do clima muito quente
beludos e grossos, anca de animal do campo.”
com o sole escaldante do Rio de Janeiro. João
Romão, com o poder de sua condição, passa por
Tem duas filhas e um filho que não se parecem
trás de Florinda e dá uma palmada na parte de
fisicamente:
trás do corpo. Ela reage bradando: “diabo de
§ Ana das Dores, casada e desquitada do marido; galego”. João Romão, inescrupuloso que era,
§ Neném, ainda moça virgem; novamente apalpa a moça, que se defende com
§ Agostinho, grita igual ou melhor que a mãe. regador cheio de água.
Depois foi a vez de Augusta Carne-Mole: Jerônimo e sua mulher, Piedade de Jesus, che-
gam ao cortiço chamando atenção de todos. As lavadei-
“Augusta Carne-Mole, brasileira, branca, mulher
ras fuxicam sobre a boa aparência de Jerônimo e sobre a
de Alexandre, um mulato de quarenta anos, sol-
qualidade dos objetos que carregam na mudança.
dado de polícia, pernóstico, de grande bigode
preto...” § Marianita é a filha do casal que está no colégio
e visita os pais aos domingos e dias santos.
§ Depois vieram Leocádia, mulher do ferreiro Bru-
Jerônimo é um trabalhador exemplar e modifi-
no;
cou o serviço na pedreira, fazendo, inclusive, com que
§ Paula, cabocla velha, meio idiota;
seus companheiros mudassem seu comportamento e
§ Marciana e a filha Florinda;
seguissem seu exemplo de seriedade.
§ A velha Isabel, mãe de Pombinha;
Rita Baiana retorna de Jacarepaguá com o
§ Pombinha, bonita, loura e pálida, com jeito de
Firmo e com ela a alegria, depois de três meses, re-
mocinha de boa família. Conhecida como “a
voluciona o cortiço, pois todos querem saber de suas
flor do cortiço”, é querida por todos, pois além
novidades.
de tudo escreve as cartas, ajuda as lavadeiras,
Leocádia pergunta à Rita por que não se casa
tira as contas, lê o jornal para quem quiser. É
com Firmo. Rita responde:
noiva de João da Costa;
§ João da Costa, querido pelos colegas e pelo pa- “Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a
trão, é do comércio. gente é escrava.”
Pombinha não havia menstruado e, por isso,
não poderia se casar; seu casamento será a felicidade Rita Baiana agita seu retorno e junto com Al-
da mãe, pois voltariam a viver numa condição financei- bino prepara um jantar do Norte para o Firmo e um
52
amigo. E durante a noite, participarão do tradicional Jerônimo fica encantado com Rita e não con-
pagodinho de violão. segue ver mais nada do que acontece, nem ninguém e
Pombinha escreve cartas para o pessoal do cor- percebe que está apaixonado por Rita.
tiço aproveitando o domingo. Jerônimo volta para almoçar em casa no dia
Por volta das três da tarde, Firmo e seu amigo seguinte, diferentemente do que costuma fazer e man-
Porfírio chegam com violão e cavaquinho. Ao mesmo da a mulher avisar João Romão que não irá trabalhar.
tempo do jantar de Rita, das Dores recebe seu homem Piedade acha estranho o comportamento do marido
com um companheiro do comércio. Os dois estavam e quer saber o que ele tem, se ele está doente, com
vestidos de fraque e chapéu alto. Agostinho, Machona medo, de que seja febre amarela. Várias mulheres do
e Neném estão ajudando das Dores e acabam ficando cortiço foram visitá-lo e Rita disse que ele estava assim
para o jantar. por conta de sua chegada.
Jerônimo e Piedade são convidados paras os Jerônimo diz que se encantou ao ver Rita dan-
dois jantares, no entanto, contidos que eram, ficam em çar e ela prepara um café bem forte. Sai logo em segui-
casa comendo o seu cozido à moda da terra e bebendo da. A chegada de Piedade deixa Jerônimo ranzinza e
seu vinho verde. rejeita também a companhia da mulher com seu cheiro
O alarido vem agora da casa do Miranda. azedo, que passa seu serviço para a Leocádia.
Ao sair, Piedade encontra com Rita portando
“Saía de lá uma terrível gritaria de hipes e hurras,
virgulada pelo desarrolhar de garrafas de cham- café misturado com cachaça parati e um cobertor gros-
panha.” so para dar um suadouro em Jerônimo. Obviamente,
Piedade resolve ficar e sorri meio a contragosto, pois
Em função do barulho, a família de Miranda vira acha tudo aquilo muito estranho, uma mulher cuidan-
alvo de fofoca. Leocádia conta mais uma fofoca envol- do seu homem. Jerônimo segue as recomendações de
vendo Dona Estela, dizendo que a viu atracada com Rita, toma a cachaça e o suadouro e quando Rita volta,
Henrique e maldizem também o namorinho de Zulmiri- ele segura sua mão e passa o braço esquerdo em sua
nha com um estudante. cintura, como forma de reconhecimento, porém o que
Jerônimo dedilha um fado triste com sua guitar- se vê é um desejo insaciável.
ra. Firmo, em contrapartida, toca um chorado baiano
para afastar a melancolia e tristeza daquelas canções. “Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro,
Jerônimo fica curioso com aquela música e resolve ou- escapou-lhe das garras com um pulo.”
vir de perto, distraindo-se com aquela música estranha.
Junto a sua mulher, vai até aquela grande roda em vol- Piedade conversava com Rita na porta, quando
ta de Firmo e Porfiro. Vê Rita Baiana “surgir de ombros um escândalo explode no cortiço. Leocádia e Henrique
nus, para dançar”. se encontravam no capinzal nos fundos do cortiço, ela
Jerônimo não consegue desgrudar os olhos de aceita entregar-se sexualmente ao rapaz em troca de um
Rita Baiana: coelho. Quando ouve um barulho, Henrique foge, mas
não tem jeito, Bruno surpreende Leocádia ainda deitada
“(...) o mistério, a síntese das impressões que ele tentando vestir a saia e lhe dá uma tremenda surra. Le-
recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente o
ocádia tinha pedido a Henrique para fazer-lhe um filho,
meio-dia; ela era o calor vermelho das sestas da
para que pudesse servir como ama de leite, provoca o
fazenda; era o aroma quente dos trevos e das
ferreiro, dizendo que ele não presta sequer para fazer
baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras;
era a palmeira virginal e esquiva que se não torce
um filho. Bruno expulsa Leocádia de casa. Albino tenta
a nenhuma outra planta (...) uma nota daquela reconciliar o casal, mas não adianta; ele a expulsa de
música feita de gemidos de prazer, uma larva da- casa e ele começa a jogar pela janela todos os pertences
quela nuvem de cantáridas que zumbiam em tor- da mulher. As mulheres do cortiço assistem ao “espetá-
no da Rita Baiana e espelhavam-se pelo ar numa culo”, algumas com indiferença. Leocádia faz o mesmo
fosforescência afrodisíaca.” com as coisas do marido quebrando tudo e Bruno surge
53
com um porrete. As pessoas o desarmam e João Romão cificamente no Rio de Janeiro. A necessidade de habi-
com Alexandre aparecem para colocar fim na bagunça. tação para as classes pobres menos favorecidas levou
Bruno explica que não conseguiu ver quem estava com ao surgimento de grandes cortiços em centros urbanos.
Leocádia e ela, defendendo-se, nega tudo e diz que Bru- Os miseráveis se reuniam nos cortiços para tentar ga-
no já queria terminar com ela e estava inventando des- nhar a vida nos grandes centros, mantendo seu com-
culpas. Alexandre pede que o marido receba a mulher portamento baseado na necessidade de sobrevivência
de volta numa tentativa de apaziguar a situação, porém e no desejo de uma vida melhor. Em função disso, al-
Bruno recusa-se, assim como Leocádia, que se dispõe a guns temas, como a prostituição (caso de Pombinha),
apanhar o que resta. Rita não aceita que Leocádia cha- o enriquecimento ilícito (João Romão), a manutenção
me um carregador e coloca suas coisas em sua casa, da riqueza e o casamento dotal (Miranda).
saindo depois com a amiga. A falta de escrúpulos está presente como atitu-
Jerônimo odiava café, depois da doença e de de normal neste ambiente completamente degradante,
Rita passa a tomar toda manhã uma xícara de café deixando aflorar os sentidos mais animalescos, como a
bem grosso e dois dedos de parati “pra cortar a fria- sexualidade, as taras, a venda da virgindade por meio
gem”. Ele muda seu comportamento, marca do deter- do casamento, como condição para a ascensão eco-
minismo social, sua energia é afrouxada e ele se torna nômica, assim como o homossexualismo masculino ou
contemplativo e amoroso. feminino. A dita zoomorfização, processo de animali-
É o processo de abrasileiramento de Jerônimo zação dos instintos humanos, mostra-se como produto
que se estabelece como uma crítica ao determinismo de uma situação de miséria determinada pelo meio.
social de um ambiente degradante, como é o caso do Outro ponto fundamental é a ironia do narra-
Cortiço. dor no que diz respeito à abolição da escravidão. João
Abrasileira-se, e um exemplo disso é que o vinho Romão recebe a visita de um grupo de abolicionistas
verde português é substituído pela cachaça; as comidas no exato momento que acaba de entregar Bertoleza à
portuguesas pelas brasileiras. Começa também a fumar. polícia e aos antigos donos. Fato que desencadeia o
Diferentemente do marido, Piedade se adapta suicídio de Bertoleza.
apenas exteriormente, mas ainda conserva suas tradi- Jerônimo sente uma atração doentia por Rita
ções e os hábitos morais do passado, o que a torna Baiana, que, por sua vez, não mede as consequências
mais triste. Estranha quando o marido passa a dormir de seus atos para manter o que supõe seja a sua liber-
no sofá da salinha e, mais tarde, numa rede perto da dade de mulher.
porta de entrada, inclusive, num certo momento, ele se A base do romance naturalista é o retrato de
nega a ficar com ela. Piedade fica mal e chora amaldi- uma sociedade degradada, na qual João Romão é pre-
çoando a mudança para a estalagem. miado pela imoralidade, cumprindo seus objetivos às
Automaticamente, este distanciamento da mu- custas da desgraça alheia.
lher determina uma aproximação de Rita, eles estão
sempre conversando. Jerônimo inventando estar preo-
cupado com a Leocádia que está de quatro meses, vai No cinema
visitar Rita sempre. Jerônimo é o primeiro a chegar e o O filme O cortiço baseia-se no romance naturalista com
último a sair em noites de samba. Está definitivamente o mesmo nome, de Aluísio Azevedo. A obra cinemato-
apaixonado por Rita. gráfica foi produzida em 1977 e retrata, à semelhança
do livro, a realidade da sociedade do século XIX. O fil-
me foi dirigido por Francisco Carvalho Jr. e tem duração
Problemática e de 110 minutos. Grandes atores da época em que foi
principais temas produzido fazem parte de seu elenco, como Betty Faria,
O cortiço revela um traço de realidade ligado ao cresci- Mário Gomes e Antônio Pompeu.
(Fonte: http://canaldoensino.com.br/blog/
mento urbano desenfreado nos grandes centros, espe- assista-gratis-ao-filme-o-cortico-de-aluisio-azevedo)

54
modificava nos pesos e medidas. Uma das suas gran-
des conquistas foi adquirir com esse dinheiro “arreca-
dado” uma pedreira que ficava atrás de seus terrenos.
Mudou-se para um sobrado vizinho um portu-
guês chamado Miranda, um comerciante que sofria
com o adultério de sua esposa. A desculpa de sua mu-
dança era que ali seria um lugar melhor para o cres-
cimento de sua filha, Zulmira. Porém, a realidade era
que ele queria afastar Dona Estela, sua esposa, de seus
amantes.
Miranda queria adquirir terrenos que ficavam
ao lado de seu palacete e fazer de jardim, mas João
Romão recusava-se a vender por puro capricho.
João Romão tinha uma estalagem que ocupa-
Resumo dos capítulos va todos seus terrenos que totalizavam 95 casinhas. A
água era abundante e o local era próximo da pedreira,
Capítulo 1 o que atraiu muitos trabalhadores, especialmente da
pedreira, e lavadeiras. O cortiço e o desenvolvimento
A história começa com a estruturação descritiva do
das construções irritou Miranda.
personagem João Romão, um português que traba-
lhou numa venda desde muito jovem, até que seu
patrão voltou a Portugal e ele herdou o estabeleci-
Capítulo 2
mento. Desde então, seguiu firmemente seu objetivo Miranda invejava cada vez mais João Romão, e em dois
de enriquecer. anos o cortiço cresceu. João Romão sem nunca usar
Bertoleza é uma escrava amigada de um por- um terno, vivendo com uma escrava, acaba enrique-
tuguês que fazia fretes na cidade e que morre pelo cendo mais que Miranda, o que o irrita.
excesso de carga em sua carroça. Com a morte de seu Miranda era casado por interesse, mantinha seu
companheiro, Bertoleza abriu-se para João Romão e relacionamento para não perder os dotes que recebera
com o avanço da intimidade entre os vizinhos, João se em função desta união. Diante dessa disputa, Miranda
tornou responsável pela negra, seu “caixa, procurador busca uma outra forma de se colocar acima de seu
e conselheiro”. oponente e que, talvez, não fosse assim tão fácil de ele
Romão falsificou uma carta de alforria que de- conseguir; que era comprar o título de barão.
sobrigava o pagamento dos vinte mil réis mensais ao Eis que veio instalar-se junto a Miranda a figura
dono de Bertoleza. Esta era mais uma forma de acú- de Henrique, um jovem de 15 anos, filho de um clien-
mulo de capital. O dono de Bertoleza logo morreu e a te fazendeiro. A casa de Miranda já estava bem cheia,
carta nunca trouxe preocupações para o casal. moravam, além de Miranda, Dona Estela e Zulmira
Romão inicia um processo de ampliação de po- (com 12 anos), mais três criados: Isaura, uma jovem
der local, e começa a adquirir os terrenos próximos à mulata, Leonor, uma negrinha virgem, e Valentim, filho
venda e à quitanda. Junto com Bertoleza, roubavam de uma escrava que Dona Estela tinha alforriado.
materiais de construção da vizinhança durante a noite Além desses, ainda havia Botelho, um velho
para a construção de casinhas e quartos em seus ter- amargurado ex-funcionário de Miranda, mas agora já
renos, para serem alugadas. Seu processo de acúmulo não prestava para nada nem tinha família.
passava por cima de tudo e de todos, para enriquecer Certo vez, ele flagrou a Dona Estela se agar-
João ainda deixava de pagar sempre que podia sem rando com o jovem Henrique no jardim. Era esperto,
nunca deixar de receber. Ludibriava seus fregueses, pois sabendo dos segredos de ambos, sem revelar a
mudava o valor das cobranças, abusava dos juros e ninguém, mantinha sua posição favorável na casa. Ao
55
falar a sós com Henrique, deu a entender que esse si- de funcionando como tipos sociais que compõem a
lêncio não seria gratuito: acariciava-o constantemente estruturação do espaço. Após encerrar essa exaustiva
e elogiava a beleza de Henrique, ou seja, Botelho com descrição de tantas figuras do cortiço, o narrador se
crenças militares também apresenta tendência homos- concentra na venda à entrada da estalagem, em que
sexuais. Domingos e Manuel atendiam inúmeros fregueses no
balcão, enquanto João Romão, seu patrão, e Bertoleza
Capítulo 3 atendiam no estabelecimento ao lado servindo refei-
O cortiço se desenvolve e a descrição de seus morado- ções. Neste espaço, surge um estranho que quer falar
res se assemelham a de animais (“machos e fêmeas” com o dono do estabelecimento.
ao invés de homens e mulheres.), o processo de zoo-
morfismo. Capítulo 4
Alguns personagens vão sendo apresentados O estranho que ali chegou se apresenta, ele se chama
de maneira espiral, como se todos fossem frutos des- Jerônimo, a João Romão como um indicado para traba-
te ambiente degradante. As primeiras são as mulheres lhar em sua pedreira. O salário que deseja é de setenta
que estavam lavando roupas. mil réis, mas João aceita pagar apenas cinquenta.
Leandra, apelidada de “Machona”, era uma João leva Jerônimo para conhecer a pedreira
lavadeira portuguesa com três filhos: Maria das Do- elogiando o lugar, ao mesmo tempo que fala mal dos
res, conhecida como “Das Dores”, mulher separada, seus contratados.
Nenen, jovem ainda donzela, e Agostinho, um menino Antes de contratá-lo, João procura saber se seu
levado. Augusta Carne-Mole, também lavadeira, era novo empregado irá estabelecer moradia no cortiço e
brasileira e casada com Alexandre, um mulato soldado se fará compras e refeições em seu estabelecimento,
de polícia. Tinham filhos pequenos, um deles era Juju pois assim garante que o salário diferenciado que lhe
e Léonie. pagará voltará, de alguma maneira, ao seu bolso.
Leocádia, uma outra lavadeira portuguesa, era
casada com Bruno, um ferreiro. A vizinhança atribuía Capítulo 5
fama de leviana a ela.
Jerônimo e Piedade de Jesus, sua esposa, mudaram
A “Bruxa”, na verdade se chamava Paula, além
-se para o cortiço no dia seguinte de sua contratação.
de lavadeira, era respeitada como rezadeira, benzedei-
Ocuparam a casa de número 35, os vizinhos diziam
ra e feiticeira. Marciana tinha mania de limpeza, era a
que tinha má sorte, por conta de que, antiga moradora
filha virgem de Florinda, outra lavadeira.
tinha morrido ali.
A mais respeitada das lavadeiras era Dona Isa-
Jerônimo era um português muito forte e tra-
bel, pois viu seu marido suicidar-se e, mesmo assim,
balhador, sua qualidade refletiu prontamente nos re-
educou muito bem sua filha, a Pombinha.
sultados da pedreira. Romão viu seus lucros subirem e
Pombinha tinha um pretendente chamado João
aumentou o salário de seu novo empregado. Jerônimo
da Costa, que trabalhando no comércio. Por ainda não
passou a ser respeitado pela vizinhança por seu com-
ser moça adulta, Dona Isabel não autorizava Pombinha
portamento.
a se casar.
Albino é outro personagem, um sujeito fra-
co, pobre e afeminado, sempre rodeado de mulheres
Capítulo 6
e também lavava roupas. Saía do cortiço apenas no Num domingo, chega Rita Baiana e se torna o assunto
carnaval. Ainda foi comentada Rita Baiana, lavadeira de todos, justamente por ser festeira, comportando-se
que adorava uma festa, e que estava sumida do cortiço de forma “diferente”. Então, cumprimentava um a um,
desde que se engraçou com um torneiro. comentava sobre suas diversões no carnaval, em Jacare-
O narrador cria muitos personagens que não paguá. Prometeu que naquela noite haveria um pagodi-
seguem a lógica tradicional dos romances, na verda- nho de violão na estalagem e todos ficaram animados.
56
As mulheres preparavam as casas para receber Leocádia juntou o pouco seu que restou e de-
seus homens. Pombinha escrevia cartas para os mora- cidiu sair do cortiço. Rita Baiana disse que sairia junto
dores que eram analfabetos. com ela para ajudar, o que gerou curiosidade de todos.

Capítulo 7 Capítulo 9
Assim, o cavaquinho e o violão começaram a se aque- Todas as manhãs, Jerônimo tomava o café e parati, re-
cer para a festa. Miranda espiava da janela a bagunça, ceitados pela Rita Baiana “pra cortar a friagem”. No
assim que o amante de Rita, Firmo, chegou à sua casa, trabalho, ele mudou de comportamento, passou a dar
junto com Porfiro, seu amigo.
mau-exemplo. Abriu mão de todas as tradições portu-
Jerônimo foi convidado, mas preferiu ficar na
guesas e absorveu os costumes brasileiros, as músicas,
porta da sua casa tocando cantigas portuguesas, con-
as refeições e danças. Claro, tudo isso colocado por
tudo, foi atraído pela música alegre e juntou-se ao
conta de sua paixão pela mulher brasileira.
povo. Logo, havia diversas pessoas dançando.
Jerônimo não dava mais atenção para Piedade,
Quando Rita Baiana entrou na dança, o portu-
inclusive na cama, e avançava cada vez mais para Rita
guês Jerônimo ficou enfeitiçado pela beleza da brasi-
Baiana.
leira. Para ele o tempo parou, não viu o mesmo passar
e quando se deu conta, já era a hora de ir trabalhar. Piedade percebeu a situação de seu marido e
resolveu procurar ajuda com Paula, a Bruxa. Ela tirou a
Capítulo 8 sorte nas cartas, mas foi em vão. Firmo, amasio de Rita,
Jerônimo não passou bem e se recolheu para dormir percebeu também o clima com Jerônimo.
em casa na hora do almoço. Com a fofoca do povo do Outra confusão no cortiço: Florinda, filha vir-
cortiço, o mal-estar de Jerônimo logo era de conheci- gem de Marciana (até então), aparece grávida e sua
mento de todos. mãe descontrolou-se e a atacou violentamente até
Algumas vizinhas foram visitá-lo com remédios, descobrir o homem responsável pelo ato: Domingos, o
mas ele não gostou. Até que chegou Rita Baiana e o caixeiro da venda.
alegrou. Ela preparou para ele um café com parati (pin- A confusão rolou até chegar à venda, onde João
ga) e fez recomendações a Piedade. Romão, espécie de prefeito local, fez o papel de juiz,
Numa das visitas de Rita, Jerônimo deu em interrogando e decretando punição a Domingos, que
cima dela, devido ao desejo que só crescia desde que a também era seu funcionário. A pena seria ter que se
viu dançando no pagode. Ela fugiu e ameaçou contar casar, senão seria demitido. João prometeu ainda que,
tudo à sua mulher. Já Piedade percebeu o clima, mas caso Domingos preferisse fugir, ele arcaria com o dote
não questionou nada. de Florinda, o que acalmou os ânimos de Marciana.
Nesse momento, surgia uma confusão sexual À noite, Augusta e Alexandre receberam a visita
no cortiço. Henrique deu um coelho branco para Le- da comadre Léonie, a cocote que cuidava da filha do
ocádia, que se entregou ao jovem. Bruno, seu mari- casal, Juju. Esta visita também interessava a todos na
do, descobriu e armou uma briga que trouxe grande estalagem, já que Leónie vivia como prostituta desfru-
confusão ao cortiço. Henrique conseguiu fugir sem ser tando de festas e roupas luxuosas. Por conta de sua
reconhecido. independência, ela não recebia discriminação entre os
Com o orgulho ferido, Bruno mandou Leocádia moradores. Algumas mulheres do cortiço, invejavam-na,
embora de casa e jogou todos seus pertences para pois não precisava de marido para ter boa vida.
fora. Quando teve oportunidade, Leocádia se vingou, Juju vestia-se de maneira diferente também, o
destruindo tudo que restava na casa. Alguns vizinhos que fazia dela uma pessoa admirada pelos moradores.
riam, outros ficavam preocupados, não havia indivi- Já Pombinha, era a garota mais educada do lu-
dualidade naquele lugar. A coisa se agravou quando gar, e se interessava por essa vida da amiga Léonie.
Bruno tentou bater na mulher e todos se misturaram Certo dia, Léonie convidou Pombinha e sua mãe para
numa confusão. jantar em sua casa.
57
Capítulo 10 prestar depoimento na secretaria de polícia, aonde foi
acompanhado por vários moradores curiosos que res-
Com o sumiço de Domingos, Marciana foi procurar por
ponderam junto a ele a todas as perguntas.
João Romão para acertar a promessa de dote que ha-
Jerônimo era cuidado por Rita e Piedade, e uma
via feito. Ele se fez de desentendido e não garantiu
noite após o ocorrido, todos já voltavam à rotina. Ape-
nada para ela.
Quando Marciana chegou em sua casa, des- nas a Pombinha mudara seu cotidiano. Naquele do-
contou a desgraça em sua maior mania, a limpeza do- mingo, havia atendido ao convite de Leónie e havia
méstica. Ao mesmo tempo que isso acontecia, Florinda sido abusada sexualmente por ela enquanto sua mãe
chorava, irritando ainda mais sua mãe, que tentou ba- dormia por ter bebido vinho.
ter-lhe novamente, o que fez com ela fugisse de casa. Confusa, Pombinha resolve caminhar sozinha
Marciana entrou em choque com a atitude de pelo cortiço, e pensa em “tornar-se mulher”.
Florinda e iniciou a armar confusão com João Romão, a
quem considerava culpado pelos últimos acontecimen- Capítulo 12
tos. Ele foi enérgico, mandando-a embora da estalagem. Pombinha tem sua primeira menstruação e sua mãe
Miranda ganhou o título de barão e fazia uma entende como dádiva divina. Todos ficaram sabendo
festa para comemorar. João Romão, que só se preocupa- e João da Costa se apresentou para que ele fosse sua
va em ficar rico, agora, por inveja, queria se tornar barão. noiva.
Para mostrar sua força, João Romão saiu pelo
Jerônimo foi para um hospital e Rita ficou sozi-
cortiço a impor seu poder reclamando de tudo e de
nha, já que Firmo foi proibido de entrar na estalagem.
todos. Chamou a polícia para levá-la presa e somente
Bruno se arrependeu de ter expulsado Leocádia
a Bruxa se impressionou com tudo aquilo.
de casa e a Bruxa lhe diz que sua mulher ainda o ama-
Neste mesmo domingo à noite, a festança no
va, por meio das cartas. Bruno foi até Pombinha para
cortiço aumentou, contrapondo-se à festa de Miranda.
ela lhe escrever uma carta.
Durante as danças, Jerônimo e Rita Baiana se insinua-
Pombinha se interessou pela relação, pois seus
vam e, num certo momento, Firmo, que lutava capoei-
olhos mudaram em relação aos homens e mulheres.
ra, partiu pra cima do português.
E eis que chega o dia de seu casamento.
Rita não disfarçava certo contentamento em ver
dois homens brigando por ela e Piedade estava preo-
cupada com a vida do marido. Ao que, de pronto, Firmo
Capítulo 13
enfiou uma navalha em Jerônimo. O cortiço e o bairro crescia, tanto que surgiu um cortiço
O cortiço estava um caos e a polícia chegou ao concorrente, o “Cabeça-de-Gato”, levantado por outro
local quando outro conflito se armou: ninguém queria português.
que os soldados entrassem, pois sabiam que, quando João Romão incentivou a intriga entre os mo-
isso acontecia, todas as casas eram invadidas e destru- radores. Até os moradores de cada cortiço tinham sua
ídas. Jerônimo ficou recolhido em casa, quando todos denominação: os carapicus eram do São Romão (esta-
protegiam a estalagem, montando uma barricada. belecimento de João Romão) e os cabeças-de-gato, do
A resistência se rompeu quando a casa de Mar- concorrente.
ciana, a de número 12, pegou fogo que se estendeu Firmo, que havia sido expulso do São Romão,
para outras casas. Em seguida, caiu uma tempestade. era um dos mais respeitados dos cabeças-de-gato,
considerado um líder por suas habilidades.
Capítulo 11 No entanto, após três meses, João Romão no-
Ninguém desconfiou, mas foi a Bruxa que colocou fogo tou que o cortiço vizinho não era uma grande ameaça
no cortiço e Joao Romão logo começou a planejar a e que, por fim, ajudava no movimento dos seus negó-
recuperação cobrando algo a mais dos seus inquilinos cios, com o crescimento do bairro. Aí mudou o foco de
para cobrir os custos. Antes disso, precisou ir à cidade sua intrigas: Miranda.
58
João começou a enrolar o bigode e mudou seus Mudou sua rota e foi ver Rita que, ao vê-lo cheio de
costumes, usava chapéus, casacos, lia jornais e roman- sangue pelo corpo e com a navalha que fora de Firmo,
ces. Contratou pessoas para servir pratos e, finalmente, entregou-se completamente a ele. Fizeram planos de
encontrou uma maneira de investir seu dinheiro. fugirem da estalagem e viverem juntos.
Numa conversa de Romão com Botelho, o velho
Capítulo 16
lhe deu uma ideia: que conquistasse Zulmira, a filha de
Miranda, por conta da herança. Piedade passara a noite acordada e, quando amanhe-
Botelho poderia ajudar, pois tinha influência, e ceu, foi à rua procurar notícias. Quando voltou ao cor-
João tentou pechinchar no acordo, mas cedeu ao que tiço, ela já sabia que seu marido estava bem, mas havia
Botelho queria. fugido de casa. Descobre que Firmo estava morto e
Poucos dias depois, João Romão já era convida- entendeu tudo o que havia acontecido.
do de Miranda para jantar. Apesar da falta de costume Rita chega feliz ao cortiço, e Piedade parte para
de participar de eventos como esse, o dono do cortiço cima dela, primeiro com ofensas, depois fisicamente.
arranjou-se e lá foi. Como de costume, o cortiço todo parou para ver a bri-
No retorno para casa, encontrou Bertoleza, ga: os portugueses apoiavam Piedade e os brasileiros,
maltratada pelo trabalho, suja e já dormindo. a Rita. A briga se espalhou e todos começaram uma
João pensou que, se ela morresse, seu caminho grande confusão.
estaria livre com Zulmirinha. João Romão protegeu sua venda e Miranda
chamou a polícia. A confusão aumentaria, pois nesse
Capítulo 14 momento se aproxima um bando vindo dos cabeças-
-de-gato que vinham vingar a morte de Firmo.
Rita e Firmo mantiveram seus encontros alugando
um quarto de uma velha na Rua de São João Batista, Capítulo 17
já que um não poderia entrar no cortiço. Mas Firmo
A batalha teve início, em, instantes via-se a casa 88
percebeu que cada vez menos Rita e já desconfiava
pegando fogo. Mais uma vez, a responsável foi a Bru-
de alguma traição, que foi confirmada quando soube
xa, que fez o trabalho perfeito, pois o fogo não dava
que na mesma época Jerônimo havia saído do hospital.
sinais de baixar. Surpreendentemente, os cabeças-de-
Prometeu se vingar.
-gato, diferente dos policias no último incêndio, não se
Rita cuidava de Jerônimo, que ainda estava de
aproveitaram da situação, mas recuaram por considerar
cama. Piedade sofria em silêncio.
uma briga injusta. Até ajudaram a salvar os bens de seus
Jerônimo e mais dois amigos, Zé Carlos e Pata-
inimigos.
ca, fizeram uma emboscada para Firmo em vingança.
A confusão no cortiço crescia e a Bruxa sorria
vendo o cortiço ser consumido pelo fogo.
Capítulo 15 Tudo se acalmou com a chegada dos bombeiros.
Naquela mesma noite, os três foram ao bar frequen-
tado por Firmo (Garnizé). Pataca entrou sozinho e se Capítulo 18
fez de amigo de Firmo oferecendo-lhe mais bebidas. Durante o incêndio, o velho Libório, pedinte do cortiço,
Firmo confessou seu interesse em atacar e se vingar correu para sua casa para pegar uma riqueza. Vendo
de Jerônimo ainda naquela noite. Pataca aproveitou-se isso, João Romão o seguiu e pegou de surpresa o velho
da situação para saber quais armas ele levava e atraiu- arrastando um enorme embrulho. Em meio às chamas,
-o para a emboscada: alegando ter visto Rita na praia os dois brigaram, quando uma parte do teto caiu sobre
convenceu Firmo de segui-lo. o velho, então o dono da estalagem pegou o embrulho
Jerônimo e seus comparsas pegaram Firmo na e fugiu.
praia e bateram nele até a morte. Jogaram o corpo ao mar. No dia seguinte, a cena era terrível, havia ca-
Jerônimo pagou seus ajudantes e voltou ao dáveres queimados no meio do pátio, entre eles o da
cortiço percebendo que já não gostava de sua mulher. Bruxa e de Libório.
59
Miranda consolava João, mas após o primeiro Foram Pataca e Piedade para a casa dela, con-
incêndio havia feito um seguro, e este, segundo o dei- versaram e beberam mais, até que ele a atacou no
xara mais rico ainda. O português já planejava recons- chão da cozinha. Senhorinha acordou com o barulho e
truir sua estalagem, com ainda mais casas. Miranda encontrou os dois juntos, com Piedade toda vomitada.
admirou sua sagacidade.
Romão contou o dinheiro do Libório e começou Capítulo 21
seus planos de ampliação do cortiço.
Bertoleza dormia no chão, nos fundos do armazém, e
Capítulo 19 João Romão em seu quarto, todo reformado, com pa-
pel de parede, móveis novos e cama de casal. Miranda
Além de reconstruir casas, Romão construiu um sobra-
já havia concedido a mão de sua filha Zulmira. Dona
do mais alto que o de Miranda. E começou a se com-
portar como um burguês (aplicava em ações da bolsa, Estela já procurava uma data para o casamento, mas
amizade com barões, frequentava cafés etc.). Bertoleza ainda estava em sua casa.
Miranda e Botelho questionavam o status do Romão pensou em matá-la e foi até onde ela
relacionamento de Romão com uma escrava, a Berto- dormia e a olhou por um tempo pensando no que faria
leza, que percebia o distanciamento de seu amasio. Ela dela. Ela acordou e ele assustado pensou se ela des-
percebia a mudança do comportamento, o cheiro de confiava de algo.
outras mulheres e a ausência de interesse dele, mas Agostinho, filho de Machona, morreu violen-
ainda o admirava. Bertoleza já não esperava amor, mas tamente num acidente na pedreira. João lamentou:
respeito a todos os anos de serviços prestados. “morrer assim uma criança que não faz mal a nin-
Botelho disse a João Romão que poderia pedir guém, e não Bertoleza, que tanto o atrapalha!”.
a mão de Zulmira, uma vez que Miranda já havia apro-
Botelho e João procuravam uma maneira de re-
vado. Bertoleza ouviu a conversa e não pôde segurar
solver o “problema” da Bertoleza. Bertoleza entrou e
suas lágrimas.
xingou João Romão, pois não queria ser descartada,
Jerônimo já estava trabalhando em outra pe-
dizendo que “quem lhe comeu a carne haveria de roer
dreira e vivia com Rita Baiana. Ele viciou-se nas be-
seus ossos”.
bidas, nas danças, já não sabia mais economizar, mas
vivia feliz. Botelho e João tiveram uma ideia, a de denun-
Piedade emagreceu muito e descobriu nas be- ciar Bertoleza ao seu dono, já que Romão havia falsi-
bidas a fuga de sua tristeza, e os vizinhos a elegeram ficado a carta de alforria da negra, portanto, ela ainda
a nova Pombinha, agora sobre o nome de Senhorinha. era escrava.
Um dia, Piedade foi cobrar a mensalidade do co-
légio e encontrou Jerônimo nos braços de Rita Baiana. Capítulo 22

Capítulo 20 Bertoleza ficou esperta e acordava com qualquer baru-


lho durante a noite, sabia do risco que corria.
Na entrada do cortiço, que estava mudado e mui-
O armazém se tornou um centro de distribuição
to desenvolvido, agora havia um jardim e uma placa
de mercadorias para vários comércios.
“Avenida São Romão”. Havia estudantes, funcionários
públicos, artistas e não só lavadeiras e operários como Léonie ainda visitava o lugar levando Juju para
antigamente. visitar Alexandre e sua mulher. Essas visitas continua-
Piedade colocou a filha para dormir depois de vam causando alvoroço e admiração entre os morado-
chegar em casa e foi à vizinhança procurar o que fazer. res, principalmente a partir de quando, junto a Léonie,
Na casa de das Dores se embebedou. Quando João estava Pombinha que se cansou do noivo, se aventurou
Romão viu a bagunça, mandou todos para as suas ca- com outros até perder o marido. Foi morar com Léonie
sas. Piedade até quis bater de frente, mas foi impedida e virou prostituta.
por Pataca, que já a assediava e tinha interesse nela Dona Isabel rejeitou a postura da filha, mas por
há algum tempo. dependência financeira aceitou.
60
Léonie e Pombinha se tornaram as grandes
damas da cidade enricando a partir dos desejos dos
homens. Pombinha tinha no cortiço uma “aprendiz”, a
filha de Jerônimo.
Piedade não trabalhava e estava entregue à
bebida e era abusada todos dias por homens que se
aproveitavam de sua condição. Ela e sua filha passa-
ram a ser mal vistas e foram expulsas. Foram para o
Cabeça-de-Gato, que estava cada vez mais miserável.

Capítulo 23
Botelho avisa o português que o dono de Bertoleza já
estava sabendo da situação. O “dono” de Bertoleza
chegou acompanhado de policiais e, cinicamente, João
Romão disse que não sabia de onde tinha vindo aquela
negra.
Num ato de plena decepção e traição, Bertoleza
é surpreendida na cozinha; a escrava percebe a em-
boscada e se mata enfiando a faca enferrujada em que
descamava peixes em sua barriga.
No mesmo tempo que chegava à estalagem
uma comissão de abolicionistas para trazer um diplo-
ma de sócio benemérito a João Romão. Ele, como se
nada tivesse acontecido, pede para que eles o aguar-
dem na sala de visitas.

61
AProfunde seus conhecimentos
1. Na obra-prima de Aluísio Azevedo, O cortiço: 4. Sobre o Realismo, assinale a INCORRETA.
a) podem-se perceber as características bási- a) O Realismo na Literatura manifesta-se na
cas da prosa romântica: narrativa passional, prosa. A poesia da época vive o Simbolismo.
tipos humanos idealizados, disputa entre o b) O romance social, psicológico e de tese é a
interesse material e os sentimentos mais no- principal forma de expressão do Realismo.
bres. c) O romance realista deixa de ser apenas dis-
b) transporta-se o leitor ao doloroso universo tração e torna-se veículo de crítica a insti-
dos miseráveis e oprimidos migrantes que, tuições, como a Igreja Católica, e à hipocri-
fugindo da seca, se abrigam em acomoda- sia burguesa.
ções coletivas. d) A escravidão, os preconceitos raciais e a se-
c) consagra-se, na literatura brasileira, a prosa xualidade são os principais temas, tratados
naturalista, marcada tanto pela associação com linguagem clara e direta.
direta entre meio e personagens quanto pelo
estilo agressivo. 5. O cortiço, obra naturalista:
d) vê-se renascer uma prosa forte, de cunho re- a) traduziu a sensualidade humana na ótica
gionalista, característico da década de 30, do objetivismo científico, o que se alinha à
que retrata nossas mazelas, em estilo seco. grande preocupação espiritual.
e) verifica-se uma forte relação entre o meio b) fez análises muito subjetivas da realidade,
em que vivem os personagens e sua vida pouco alinhadas ao cientificismo predomi-
pessoal, relação essa baseada no sentimen- nante na época.
talismo romântico. c) explorou as mazelas humanas de forma a in-
citar a busca por valores éticos e morais.
2. Sobre o Realismo, assinale a alternativa IN- d) não pôde ser considerado um romance engaja-
CORRETA. do, pois deixou de lado a análise da realidade.
a) O Realismo e o Naturalismo têm as mesmas e) tratou de temas de patologia social, pouco
bases, embora sejam movimentos diferentes. explorados nas escolas literárias que o pre-
b) O Realismo surgiu como consequência do cederam.
cientificismo do século XIX.
c) O Realismo surgiu na Europa, como reação Texto para as questões de 6 a 8.
ao Naturalismo.
Jerônimo bebeu um bom trago de parati,
d) Gustave Flaubert foi um dos precursores do
mudou de roupa e deitou-se na cama de Rita.
Realismo. Escreveu Madame Bovary.
— Vem pra cá... disse, um pouco rouco.
e) Emile Zola escreveu romances de tese e in-
— Espera! Espera! O café está quase pronto!
fluenciou escritores brasileiros.
E ela só foi ter com ele, levando-lhe a cháve-
na fumegante da perfumosa bebida que ti-
3. Dos segmentos abaixo, extraídos de O cor- nha sido a mensageira dos seus amores [...]
tiço, de Aluísio Azevedo, marque o que não Depois, atirou fora a saia e, só de camisa,
traduza exemplo de zoomorfismo. lançou-se contra o seu amado, num frenesi
a) Zulmira tinha então doze para treze anos e de desejo doido.
era o tipo acabado de fluminense; pálida, Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços;
magrinha, com pequeninas manchas roxas ao sentir na sua pele a carne quente daquela
nas mucosas do nariz, das pálpebras e dos brasileira; ao sentir inundar-se o rosto e as
lábios, faces levemente pintalgadas de sar- espáduas, num eflúvio de baunilha e cuma-
das. ru, a onda negra e fria da cabeleira da mu-
b) Leandra [...] a Machona, portuguesa feroz, lata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e
berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca peludo colo de cavouqueiro os dois globos
de animal do campo.  túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas
c) Daí a pouco, em volta das bicas era um zun- dela; sua alma derreteu-se, fervendo e bor-
zum crescente; uma aglomeração tumultuo- bulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe
sa de machos e fêmeas.  pela boca, pelos olhos, por todos os poros do
d) E naquela terra encharcada e fumegante, na- corpo, escandescente, em brasa, queimando-
quela umidade quente e lodosa começou a -lhe as próprias carnes e arrancando-lhe ge-
minhocar, [...] e multiplicar-se como larvas midos surdos, soluços irreprimíveis, que lhe
no esterco.  sacudiam os membros, fibra por fibra, numa
e) Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de
um mulato pachola, delgado de corpo e ágil anjos violentados por diabos, entre a verme-
como um cabrito [...].  lhidão cruenta das labaredas do inferno.
62
6. A atração inicial entre Rita e Jerônimo não a) o idealismo, o comportamento determinista.
acontece na cena descrita. Segundo o texto, b) a ênfase no aspecto material da vida, o com-
pode-se inferir que ela se relaciona com: portamento sofisticado.
a) uma dose de parati. c) as comparações dos seres humanos com ani-
b) a cama de Rita. mais, a promiscuidade.
c) uma xícara de café. d) a representação objetiva da vida, o endeusa-
d) o perfume de Rita. mento do ser humano.
e) o olhar de Rita. e) a fuga à realidade, o positivismo exacerbado.

7. O enlace amoroso, seja na perspectiva de 10. O Realismo e o Naturalismo são movimentos


Rita, seja na de Jerônimo: surgidos na segunda metade do século XIX,
a) é sublimado, o que lhe confere caráter gro- marcado por transformações econômicas,
tesco na obra. científicas e ideológicas. Sobre esses dois mo-
b) é desejado com intensidade e lhes aguça os vimentos, assinale a alternativa incorreta:
ânimos. a) Para o escritor realista, a neutralidade dian-
c) reproduz certo incômodo pelo tom de ritual te do tema é imprescindível. Para isso, usa
que impõe. a narrativa em terceira pessoa. O naturalista
d) representa-lhes o pecado e a degradação observa também esse princípio, acrescen-
como pessoa. tando uma aproximação das ciências expe-
e) é de sensualidade suave, pela não explicita- rimentais e da filosofia positivista.
ção do ato. b) O Realismo brasileiro teve poucos seguidores
e uma de suas figuras marcantes foi Machado
8. Pode-se afirmar que o enlace amoroso entre de Assis. Euclides da Cunha, com Os sertões,
Jerônimo e Rita, próprio à visão naturalista, foi outra figura de destaque no movimento.
consiste: c) O Naturalismo é considerado um prolonga-
a) na condenação do sexo e consequente reafir- mento do Realismo, pois assume todos os
mação dos preceitos morais. princípios e as características deste, acrescen-
b) na apresentação dos instintos contidos, sem tando-lhe, no entanto, uma visão cientificis-
exploração da plena sexualidade. ta da existência. No Brasil, o Naturalismo foi
c) na apresentação do amor idealizado e reves- iniciado por Aluísio Azevedo, que publicou O
tido de certo erotismo. mulato, Casa de pensão e O cortiço.
d) na descrição do ser humano sob a ótica do d) Ambos, Machado de Assis e Aluísio Azevedo,
erótico e animalesco. iniciaram-se na estética romântica. Poste-
e) na concepção de sexo como prática humana riormente, o primeiro seguiu a estética rea-
nobre e sublime. lista, e o segundo, a estética naturalista.
e) A fase realista de Machado de Assis pode ser
observada nos seus contos e romances. Entre
9.
eles, se destacam Memórias póstumas de Brás
O despertar do cortiço
Cubas, Quincas Borba e Dom casmurro, obras
em que abordou temas como o adultério, o
Daí a pouco, em volta das bicas era um zun-
parasitismo social, a loucura e a hipocrisia.
zum crescente, uma aglomeração tumultuosa
de machos e fêmeas. Uns, após outros, lava-
11. Acerca do romance O cortiço, de Aluísio Aze-
vam a cara, incomodamente, debaixo do fio
vedo, não é correto dizer que:
de água que escorria da altura de uns cinco
a) todas as personagens, por serem muito po-
palmos. O chão inundava-se. As mulheres
bres, enveredam pelo mundo do crime ou da
precisavam já prender as saias entre as co-
prostituição.
xas para não as molhar; via-se-lhes a tosta-
b) as personagens, ainda que todas sejam po-
da nudez dos braços e do pescoço, que elas
bres, possuem temperamentos distintos, tais
despiam, suspendendo o cabelo todo para o
como Bertoleza, Rita Baiana e Pombinha.
alto do casco; os homens, esses não se pre-
c) homens e mulheres são, na sua maioria, ví-
ocupavam em não molhar o pelo, ao contrá-
timas de uma situação de pobreza que os
rio metiam a cabeça bem debaixo da água e
desumaniza muito.
esfregavam com força as ventas e as barbas,
d) as personagens, na sua maioria, sejam ho-
fossando e fungando contra as palmas das
mens ou mulheres, vivem quase que exclusi-
mãos. As portas das latrinas não descansa-
vamente em função dos impulsos do desejo
vam [...]
e da perversidade sexual.
AZEVEDO, Aluísio de. “O Cortiço”,
São Paulo: Martins, 1968, p. 43. e) a vida difícil das personagens, tão ligadas à
criminalidade e à prostituição, é condicio-
São características desse texto, consideradas nada pelo meio adverso em que vivem e por
típicas do Naturalismo, entre outras: problemas biopatológicos.
63
12. A propósito de O cortiço, de Aluísio Azevedo, e) Exploração de um tema em que o ser huma-
é correto afirmar que: no é aviltado pelo mais forte; predominância
a) trata-se de um importante exemplar do na- de elementos anticientíficos, para ajustar a
turalismo brasileiro. Nele, as personagens narração ao ambiente degradante dos perso-
são animalizadas e dominadas pelos instin- nagens.
tos. A obra marca a história de trabalhado-
res pobres, alguns miseráveis, amontoados 14. Em O cortiço, o caráter naturalista da obra
numa habitação coletiva. faz com que o narrador se posicione em ter-
b) a narrativa é um retrato da sociedade bur- ceira pessoa, onisciente e onipresente, preo-
guesa do século XIX e pode ser considerada cupado em oferecer uma visão crítico-analís-
uma das obras-primas da ficção romântica tica dos fatos. A sugestão de que o narrador
brasileira porque focaliza a heroína Rita é testemunha pessoal e muito próxima dos
Baiana em sua multiplicidade psicológica. acontecimentos narrados aparece de modo
c) todo o livro é marcado pela desilusão e pelo mais direto e explícito em:
abandono dos ideais realistas. Defendendo a) Fechou-se um entra-e-sai de marimbondos
os valores de pureza e retorno à vida pacata defronte daquelas cem casinhas ameaçadas
do campo, há nele fortes indícios do Roman- pelo fogo.
tismo que se anunciava no Brasil. b) Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes
d) narrado em primeira pessoa, O cortiço é uma que se despejavam sobre as chamas.
análise da psicologia e da situação dos imi- c) Da casa do Barão saíam clamores apopléti-
grantes no Brasil. Os perfis psicológicos e cos...
as análises de comportamento conduzem a d) A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à
história à idealização da mestiçagem brasi- boca de uma fornalha acesa.
leira, representada pela ascensão social dos e) Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu
portugueses Jerônimo e João Romão. estalar o madeiramento da casa incendiada.
e) o tema da mulher idealizada é constante
nessa obra. A figura da virgem sonhada é 15. Sobre os autores do Realismo/Naturalismo,
simbolizada pela lavadeira Rita Baiana e numere a 2ª coluna de acordo com a 1ª.
constitui uma forma de denúncia dos pro- 1. Machado de Assis
blemas sociais, tão frequentes nos livros fi- 2. Aluízio Azevedo
liados à estética naturalista. ( )Em O Cortiço, as ideias naturalistas se
conjugam para revelar as misérias exis-
13. O caráter naturalista nessa obra de Aluísio tentes na capital do País.
Azevedo oferece, de maneira figurada, um ( )O autor inova na literatura brasileira pelo
retrato de nosso país, no final do século XIX. seu senso de coletividade, pela descrição
Põe em evidência a competição dos mais for- de multidão.
tes, entre si, e estes, esmagando as camadas ( )Escreveu um romance, em que ataca o ra-
de baixo, compostas de brancos pobres, mes- cismo, o reacionarismo clerical, a estrei-
tiços e escravos africanos. No ambiente de teza do universo provinciano e descreve a
degradação de um cortiço, o autor expõe um lenta e difícil ascensão social do mestiço
quadro tenso de misérias materiais e huma- brasileiro.
nas. No fragmento, há várias outras caracte- ( )Autor de obras-primas, como Quincas Bor-
rísticas do Naturalismo. Aponte a alternativa ba e Dom Casmurro, é irônico, pessimista
em que as duas características apresentadas e crítico. Suas tramas quebram a estrutu-
são corretas. ra linear e seu estilo é refinado e elegan-
a) Exploração do comportamento anormal e te, esmerando-se na correção linguística.
dos instintos baixos; enfoque da vida e dos ( )Na sua 1ª fase, estava comprometido com
fatos sociais contemporâneos ao escritor. o idealismo romântico. Na 2ªfase, mais
b) Visão subjetivista dada pelo foco narrativo; maduro, fazia a análise psicológica e so-
tensão conflitiva entre o ser humano e o cial de temas da burguesia da época: o
meio ambiente. adultério, o parasitismo social, o egoís-
c) Preferência pelos temas do passado, propi- mo, a vaidade, o interesse, além da con-
ciando uma visão objetiva dos fatos; críti- fusão entre razão e loucura.
ca aos valores burgueses e predileção pelos A sequência correta é:
mais pobres. a) 1, 1, 2, 1 e 2.
d) A onisciência do narrador imprime-lhe o pa- b) 2, 2, 1, 2 e 1.
pel de criador, e se confunde com a ideia de c) 1, 2, 1, 1 e 2.
Deus; utilização de preciosismos vocabula- d) 2, 2, 2, 1 e 1.
res, para enfatizar o distanciamento entre a e) 2, 2, 1, 1 e 1.
enunciação e os fatos enunciados.
64
16. O seu moreno trigueiro, de cabocla velha, re-
luzia que nem metal em brasa; a sua crina
Gabarito
preta, desgrenhada, escorrida e abundante 1. C
como as das éguas selvagens, dava-lhe um 2. A
caráter fantástico de fúria saída do inferno. 3. A
O fragmento anterior pertence ao romance O 4. A
cortiço, de Aluísio Azevedo. 5. E
a) A descrição da personagem exemplifica um 6. C
típico recurso do movimento literário a que 7. B
se filiou o autor. Que movimento foi esse e 8. D
qual o recurso aqui adotado? 9. C
b) Exemplifique, com duas expressões retiradas 10. B
do texto, a resposta que você deu ao item 11. A
anterior. 12. A
13. A
14. E
15. D
16.
a) O autor, utilizando-se de comparação, re-
duz a personagem ao nível animal, como
é típico do Naturalismo.
b) As expressões são “crina (cabelo) preta”
e “como éguas selvagens”.

65
A cidade e as serras

Eça de Queirós
Introdução

A cidade e as serras é um romance da terceira fase


de Eça de Queirós. Marcada por sátiras destrutivas à
sociedade portuguesa, encontramos, nessa fase, uma
espécie de pacificação no artista, passando a substituir
o pessimismo amargo das obras anteriores por uma
visão mais otimista de sua pátria. Especificamente, o corrido por um homem moreno, que levanta com faci-
tom amargurado do autor socialista é substituído por lidade, apanha-lhe a bengala e diz: – Oh Jacinto Ga-
momentos de esperança e reconciliação com o caráter lião, que andas tu aqui, a estas horas, a rebolar pelas
do homem lusitano. pedras?. (QUEIRÓS, Eça de. Op. cit., p. 9.). É o próprio
A segunda parte de A cidade e as serras é mar- D. Miguel. Desde então, Galião passa a admirar ainda
cada pelo elogio a esse mundo, tantas vezes esquecido mais o infante, a ponto de colocar em casa um retrato
por causa do burburinho dos grandes centros. É aqui de seu salvador e, embaixo, a bengala que ele apa-
que o protagonista encontrará o refúgio e o refrigério nhara. Ao saber que D. Miguel seguira para o desterro
para sua alma cansada de procurar felicidade na cultu- em Sines, afirma que também não ficará em Portugal.
ra e na ciência. A primeira parte do romance passa-se, Viaja para França com a mulher e com o filho, Cintinho,
em Paris, onde Jacinto só se sente seguro e protegido menino amarelinho, molezinho, coberto de caroçois e
no meio da multidão, da tecnologia e do conforto, por- leicenços.
tanto, passa a viver na capital francesa e não pretende Após comprar o palacete em Campos Elísios,
sair. O narrador, Zé Fernandes, não poupa sua ironia Jacinto Galião morre de indigestão. A viúva continua
ao descrever a alta sociedade que cerca seu amigo. A em Paris e deixa o menino decidir para onde ir quando
segunda parte revela outra face de Jacinto, que des- crescer. Cintinho cresce sempre doente e casa-se com
cobriu na vida campestre a alegria de viver que lhe a filha rechonchuda do Desembargador Velho. Antes
faltava em Paris. É assim que o novo Jacinto reencontra de morrer, deixa-a grávida. Assim, nasce Jacinto, três
a felicidade na vida simples, em sua quinta de Tormes, meses e três dias depois de sua morte. O menino cres-
e passa a desprezar Paris. A partir desse conflito é que ce saudável e tem facilidade para aprender as letras, a
nasce a narrativa. tabuada e o latim e, por isso, é sempre admirado pelos
colegas por sua inteligência e não padece sofrimentos,
do amor, só experimentou o mel. Os amigos chamam-
Análise da obra -no “Príncipe da Grã Ventuara”, por ser sempre um
A narrativa de Jacinto, em Paris, inicia com seu avô, D. indivíduo de sorte, para quem a vida sempre sorri e
Galião, que uma tarde, em Portugal, escorrega numa traz alegrias e prazeres. Jacinto concebe a ideia de que
casca de laranja e cai sobre o lajedo. D. Galião é so- o homem só é superiormente feliz quando é superior-
67
mente civilizado. Em seu conceito, homem civilizado é das notícias que Zé Fernandes lê para ele. Pede que
aquele que adquire todos os conhecimentos da cultura o amigo espere, pois tem uma carta para escrever. Zé
e multiplica a potência de seu corpo através dos meca- Fernandes depara-se com um aparelho com um funil
nismos inventados. Esta ideia de Jacinto impressionara e um cordão que emerge de um orifício, depois de
os nossos camaradas de cenáculo, que tendo surgido desenvolver sua curiosidade por todo o aposento da
para a vida intelectual, de 1866 e 1875 [...] estavam biblioteca. Do tal aparelho sai uma voz a sussurrar.
largamente preparados a acreditar que a felicidade dos Jacinto convida Zé Fernandes para jantar com
indivíduos, como a das nações, se realiza pelo ilimitado ele e uns amigos: um psicólogo feminista e um pintor
desenvolvimento da mecânica e da erudição. Um dos mítico. Por estar mal vestido com as roupas feitas pelo
moços do cenáculo, Jorge Calende, reduz a teoria de alfaiate da serra, Zé Fernandes recusa o convite. Preci-
Jacinto a uma forma algébrica: suma ciência × suma sa entrar em toda aquela civilização lentamente, com
potência = suma felicidade. cautela para não rebentar.
Um tempo depois, José Fernandes recebe uma Jacinto leva o amigo à sala de jantar para con-
carta do tio, que pede a sua volta a Guiães para geren- vencê-lo a ficar. Zé Fernandes espanta-se com o que
ciar seus bens. Afonso Fernandes sofre das hemorroi- vê: apenas dois copos para dois tipos de vinhos, um
das. José Fernandes sente saudades da serra e arruma Bordeaux rosado e champanhe. Além de vários tipos
as malas assoviando um fado meigo. Assim, comunica de águas em garrafas bojudas num aparador. Zé Fer-
a Jacinto que parte para Guiães. Com um surdo gemi- nandes indaga se Jacinto ainda é o mesmo tremendo
do, Jacinto recua de espanto e piedade: Para Guiães!... bebedor de água. Jacinto observa as garrafas e desa-
Oh Zé Fernandes, que horror! lentado nega a pergunta do amigo. Justifica que as
José Fernandes, durante todo o período que águas de cidade estão contaminadas, cheias de micró-
permanece em Portugal, recebe apenas algumas linhas bios. Não acha uma boa água que o satisfaça. Justifica
de Jacinto, escrevinhada à pressa no tumulto da civi- também não ter nunca apetite.
lização. Devido à morte do tio num setembro muito Quando hospedado no 202, Zé Fernandes vai
quente, Zé Fernandes volta a Paris. todos os dias ao quarto de Jacinto, sempre às nove
José Fernandes passou sete anos em Guiães. horas da manhã. Depara-se com o amigo banhado e
Quando está em Paris, encontra Jacinto ao descer a barbeado envolto num roupão de pelo de cabra do Ti-
avenida dos Campos Elísios, em direção ao 202. O bete, diante de sua penteadeira lotada de utensílios de
abraço que nos enlaçou foi tão alvoroçado que meu tartaruga, marfim, prata, aço e madrepérola. Jacinto
chapéu rolou na lama. José Fernandes repara nas mu- penteia-se com escovas diferentes, mudando-as todos
danças do palacete: há um elevador ligando os dois os dias.
andares. Muito espaçoso, tapetado, com um divã, uma Madame de Oriol faz uma uma visita. Devido
pele de urso, um roteiro das ruas de Paris e prateleiras a uma inundação do dia anterior, está muito curiosa,
gradeadas com charutos e livros. José Fernandes trope- porém, decepciona-se por encontra tudo seco. Jacinto
ça numa pilha monstruosa de livros novos na bibliote- lamenta dizendo que é uma lástima não ter ao menos
ca, onde há mais de trinta mil volumes de livros. José
Fernandes não contém a admiração.
Interrompido pela campainha do telefone, Zé
Fernandes aproveita para examinar sobre a mesa de
trabalho uma estranha e miúda legião de instrumentos
de metal. Ao tentar manejar um, uma ponta pica seu
dedo. Nesse instante rompeu de outro canto um tique-
-tique-tique açodado, quase ansioso. Jacinto acudiu
com a face no telefone:
– Vê aí telégrafo!... Ao pé do divã. Uma tira de
papel que deve estar a correr. Jacinto não quer saber
68
caído uma parede. Assim que a Madame de Oriol sai e da Força por novas e mais poderosas acumula-
para ouvir um sermão nas Madalenas, Jacinto convida ções de Mecanismos. E nessas semanas de Abril,
Zé Fernandes para passar o domingo nalguma coisa enquanto as rosas desabrochavam, a nossa agita-
simples e natural. da casa, entre aquelas quietas casas dos Campos
No gabinete de Jacinto, Zé Fernandes encontra Elísios que preguiçavam ao sol, incessantemente
a Condessa de Trèves com o ilustre historiador Danjon. tremeu envolta num pó de caliça e de empreitada,
Mesmo sem entender a utilidade deles, ela elogia a in- com o bruto picar de pedra, o retininte martelar
finidade de objetos úteis. Naquele gabinete de suntuo- de ferro. Nos silenciosos corredores, onde me era
sa mecânica ela somente se ocupara em exercer, com doce fumar antes do almoço um pensativo cigar-
proveito e com perfeição, a arte de agradar. Toda ela ro, circulavam agora, desde madrugada, ranchos
era uma sublime. O diretor do Boulevard e psicólogo fe- de operários, de blusas brancas, assobiando o
minista, também estão presentes à festa de Jacinto. O Petit-Bleu.
psicólogo lançara recentemente um romance, Couraça,
com grande euforia do público. Quando este exalta sua Para tornar a vida mais fácil, Jacinto passa a
obra, é interrompido pelo Duque de Marizac, que diz adquirir novas máquinas. Há três geleiras sucessiva-
haver um erro no livro. Ele critica o fato de uma duquesa mente abandonadas na copa, utilizadas para refrescar
requintada usar um colete de cetim preto. a Soda-Water e os Medocs ligeiros. Há um instrumento
Os dois homens de Madame de Trèves, o mari- que serve para arrancar delicadamente os pés dos mo-
do, Conde de Trèves, e o banqueiro judeu, Davi Efraim, rangos; outro, de prata e cristal, para remexer a salada.
tentam convencer Jacinto a entrar numa sociedade: a Zé Fernandes testa o último e espirra vinagre sobre os
Companhia das Esmeraldas da Birmânia. Surge tam- olhos de Jacinto, que foge gritando. Jacinto também
bém Antônio de Todelle, moço já calvo, de infinitas obtém uma máquina para lhe abotoar as ceroulas.
prendas [...], conhecia todos os enredos de Paris. A Depois de um bom banho, no dia seguinte, Zé
mulher não pode vir porque esfolou o joelho numa Fernandes nota que, apesar de todas as reformas, Ja-
queda de velocípede. Fumando um enorme charuto, cinto continua melancólico e triste. Dialoga com o Grilo
está no bilhar o grande Dornan, poeta neoplatônico e ouve do criado que Jacinto sofre de fartura. Pensa:
e místico.
Grilo interrompe a todos com o anúncio da che- Jacinto está enfastiado no meio de seus aparelhos
gada do Grão-Duque Casimiro. Precedido por Jacinto, e de seus milhares de volumes repletos de saber...
o grão-duque surgiu. Era um possante homem, de bar-
ba em bico, já grisalha, um pouco calvo. [...] veio aper- Todas os dias, às quatro horas, Jacinto visita
tar a mão às senhoras que mergulhavam nos veludos e Madame de Oriol. Em um desses dias, o telefone toca,
sedas em mesuras de corte. avisando Jacinto que sua amada amiga jantava em
Jacinto recebe a notícia, três dias depois da Enghien com os Trèves. Por ser domingo, Zé Fernandes
festa, de que uma tormenta destruiu a velha igrejinha e Jacinto aproveitam para subir a Basílica do Sacre-
onde estavam sepultados seus antepassados, desde -Coeur.
o tempo de El-Rei D. Manuel. Jacinto acha uma coisa Jacinto aprecia os bairros estreitos e íngremes,
estranha e chega repetir a expressão. Interroga Zé Fer- das mulheres despenteadas cosendo à soleira das por-
nandes a respeito da serra e de Tormes, durante toda tas – o meu fastidioso camarada sorriu àquela liberda-
a noite.
de e singeleza das coisas. Jacinto acha tudo curioso,
menos a basílica., Zé Fernandes e Jacinto admiram Pa-
Jacinto, desesperado com tantos desastres hu-
milhadores – as torneiras que dessoldavam, os ris sob um céu cinzento. Zé Fernandes resolve provocar
elevadores que emperravam o Vapor que se enco- Jacinto com indagações sobre a riqueza, e a civilização
lhia, a Electricidade que se sumia, decidiu valoro- é apenas ilusão. Zé Fernandes tira vantagem da vitória
samente vencer as resistências finais da Matéria sobre Jacinto:
69
Certamente, meu Príncipe, uma ilusão! E a mais Quando chegam a Tormes, descobrem através
amarga, porque o homem pensa ter na cidade a de Melchior que a casa não está pronta, pois Silvério
base de toda a sua grandeza e só nela tem a fonte espera por Jacinto só em setembro. Agoniado, Jacinto
de toda a sua miséria. resolve que irá para Lisboa no dia seguinte. Jacinto se
ajeita numa modesta camisa emprestada por Melchior
Zé Fernandes anuncia que está com sede, de- da mulher e junto de um tamanco. Reparte com Zé
pois de todo discurso socialista. Encontra um amigo de Fernandes o exemplar do jornal. Zé Fernandes promete
Jacinto, Maurício de Mayolle, que abandonara a agita- providenciar algumas coisas essenciais ao conforto do
ção social de Paris e mudara-se para Montmartre. Zé amigo. Jacinto solicita alguns objetos de uso pessoal
Fernandes, que não entendera nada da conversa entre além de lençóis do Hotel de Bragança.
Jacinto e o amigo, perguntou quem é o bruxo. Jacinto Sem ao menos acordar Jacinto, Zé Fernandes
explica, depois de um bocejo, quem é o rapaz e as filo- parte de madrugada. Apenas uma semana depois, lem-
sofias orientais que segue. bra-se do amigo, quando depara-se com suas malas.
Jacinto resolve partir para Tormes. Quando é Resolve telegrafar para o Hotel de Bragança. Demora
comunicado pelo amigo sobre tal intenção, Zé Fernan- muito para obter resposta e então fica sabendo através
des assusta-se. Os restos mortais dos antepassados de Severo, sobrinho de Melchior, que Jacinto ainda está
de Jacinto serão transladados de volta para a capela em Tormes. Na manhã seguinte, um domingo, Zé Fer-
depois da conclusão da obra. Jacinto chega à conclu- nandes vai para Tormes. Chegando lá, encontra a casa
são que é importante e também questão de elegância em melhor estado que no dia da chegada. Zé Fernan-
acompanhar a instalação dos retos mortais do avô no des encontra alguns livros, entre eles um Virgílio, abre
novo jazigo. Sabe que a casa de Tormes está inabitável. o livro e sussurra, recitando um verso.
Jacinto decide mandar pintar, assoalhar e envidraçar Zé Fernandes é acordado por Jacinto. Percebe
a casa, já que a partida só se dará em abril. De Paris, que o amigo mudara. Decidira por ficar em Tormes.
mandará tapetes e camas. Nesse dia, almoçara um prato cheio de ovos com chou-
Zé Fernandes sugere que é hora de partirem riço e passeara pelo campo. Tomara uma decisão, ficar
para Tormes antes que o tédio volte a tomar conta por dois meses: Enquanto houver chouriço, e a água da
de Jacinto. Finalmente, Jacinto e Zé Fernandes deixam fonte, bebida pela telha ou numa folha de couve, me
Paris de trem em direção a Portugal. A viagem pare- souber tão divinamente!
ce um castigo para Jacinto, pois se sente doente ao Jacinto reclama da rotina das cidades em com-
deixar a civilização. Ao mesmo tempo, na Espanha, o paração com a diversidade de formas da natureza: A
comboio chega atrasado e o trem para Salamanca já mesmice – eis o horror das cidades! Depois da canja e
está em Portugal. Descobre que Grilo, Anatole e todas do cabrito servidos no jantar, Jacinto passa a atacar o
as bagagens não estão no mesmo trem. Jacinto está pessimismo: Oh! Que engenhosa.
só apenas com a roupa do corpo e uma bengala. Os De maneira muito simples, a cerimônia de
empregados Silvério e Melchior não se encontram na translação dos ossos é realizada, pois os ossos do avô
estação a esperá-lo. Galião não se encontravam ali.
Jacinto percebe o desejo de plantar árvores, po-
rém fica chateado ao saber que demoram muito para
crescer. Assim ele tem novas ideias para reformar a
propriedade, fazendo-a ser uma produtora de queijos
finos, muito moderna. Zé Fernandes não disfarça ao
tentar mostrar que a ideia do amigo é absurda, mas
Jacinto não se importa em tomar um grande prejuízo.
Silvério não se mostra muito animado com a missão de
reformar a propriedade e o tempo todo, sempre que
pode, tenta mudar os planos de Jacinto, sugerindo que
70
realize suas ideias em outra de suas terras. Mas tais Síntese do enredo
pensamentos trazem a Jacinto vida e esperança.
José Fernandes narra uma história que tem como pro-
Mesmo sabendo que poderia, Jacinto sai com
tagonista um grande amigo seu: Jacinto. Jacinto, que
Zé Fernandes para ir à Corujeira antes do almoço.
nasceu e sempre viveu em Paris, é rico e herdeiro de
Como previsto, são pegos por uma grossa chuva. São
fidalgos portugueses, vive a suposta felicidade que
resgatados por Silvério com um guarda-chuva verme-
lho e abrigam-se num alpendre. Jacinto toma conheci- uma grande renda mensal lhe proporciona. Vive num
mento, através de Silvério, que existe fome, doença e palacete nos Campos Elísios, no número 202, rodeado
miséria em suas terras. por luxo e conforto, mas não está satisfeito e passa
Ao avistar um menino de um colono, Jacinto in- boa parte do tempo entediado, mesmo considerando a
daga se há gente que trabalha para ele que tem fome. cultura e a tecnologia os únicos meios de se chegar a
Silvério diz: suprema felicidade.
Devido a um acidente na capelinha da pro-
Pois está bem de ver, meu senhor, que há para aí priedade de Jacinto, em Tormes, Portugal, onde estão
caseiros que são muito pobres. Quase todos... É enterrados os ossos de seus avós, o rico herdeiro re-
uma miséria, que se não fosse algum socorro que torna à terra natal de seus antepassados. Ao sentir-se
se lhes dá, nem eu sei!... Este Esgueira, com em útil pela primeira vez, Jacinto reencontra uma grande
que eles vivem... São chiqueiros. A do Esgueira, alegria de viver. Assim, realiza uma série de reformas
acolá... na propriedade: constrói boas casas para os empre-
gados, aumenta seus salários e proporciona médico e
Jacinto resolve ver a casa e sai de lá chateado remédios. Devido a essa atitude, mudanças acontecem
com as condições da moradia e a doença da mulher do em toda a região e trazem prosperidade. Jacinto une-
empregado. -se em matrimônio com a prima de José Fernandes,
Jacinto, por várias vezes, planejou ficar uns três Joaninha, e juntos têm um casal de filhos. Passe a ser
meses em Paris, pois queria mostrar a Joaninha a ci- organizado e responsável e nunca mais volta a Paris.
dade, mas sempre adia a viagem. Zé Fernandes é que
vai a Paris, mas não aguenta durante muito tempo a
cidade. Passa dias sentindo-se entediado, exatamente Estrutura da obra
como antes sentira Jacinto. Todo o tempo em que está A cidade e as serras é um romance dividido em 16
em Paris, as mesmas faces e as mesmas fofocas cercam capítulos, porém apresenta uma divisão de conteúdo
Zé Fernandes. Quando vai visitar o 202, nota que nada em duas partes. Na primeira parte, há um grande des-
mais lembra o período de camaradagem com Jacinto. taque aos valores da vida urbana de Paris (capítulos 1
Agora, tudo está encoberto por lonas. a 8). Nessa parte, Jacinto sente-se desprotegido longe
Zé Fernandes vai ao teatro de variedades, pois do conforto que ele só encontra na cultura e na tec-
foi aconselhado pelo grão-duque, mas detesta a peça
nologia e o considera a vida no campo desumana e
por causa da exploração barata do sexo. Decide visitar
absurda. Claramente, a segunda parte (capítulos 9 a
a escola em que estudou, e depare-se com o desres-
16) é uma oposição à primeira, pois revela o elogio à
peito dos alunos diante da tolerância dos professores e
vida no campo, considerada prazerosa e distante das
fica chocado. Ao sentir-se ofendido por um estudante,
futilidades da vida na cidade. O grande cerne desse ro-
esmurra o rapaz. Resolve partir de Paris. Da janela do
mance é essa oposição, que preenche a narrativa com
trem, despede-se da cidade:
dissertação (argumentação).

– Paris adeusinho, até nunca mais! Na lama do


Foco narrativo
teu vício e na poeira da tua vaidade, outra vez,
não me pilhas! O que tens de bom, que é o teu José Fernandes, amigo do protagonista Jacinto des-
gênio, elegante e claro, lá o receberei na serra de os tempos de escola no bairro latino em Paris, é o
pelo correio. Adeusinho! personagem-narrador. O romance narrado em primeira
71
pessoa, conta com admiração a história de Jacinto, a juntar livros e objetos tecnológicos. Odeia a vida no
quem chama de Príncipe da Grã-Ventura. campo, mas acaba apaixonando-se pela serra de Tor-
mes, terra de seus antepassados, que por se apaixona
Espaço quando vai a Portugal para promover o translado dos
ossos dos avós.
A narrativa apresenta dois espaços principais, que são
Paris e Portugal (Tormes). O grande centro dessa obra José Fernandes
é a divisão do espaço que não é apenas um recurso Zé Fernandes é um homem rústico nascido na serra,
narrativo. O espaço é extremamente importante na ao contrário de seu grande amigo Jacinto. Reluta para
compreensão do enredo. O primeiro espaço representa não se deixar levar pelas ideias do amigo, mas sabe ti-
a visão de Jacinto de que a suprema felicidade só pode rar vantagem do conforto e do luxo proporcionado por
nascer do máximo de cultura e de progresso, sendo ele. Mesmo tendo estudado em Paris, sua educação é
nitidamente um espaço urbano. Sendo assim, é consi- apenas superficial, pois continua preso a seus valores
derado como positivo no início, já que o protagonista rurais.
aproveita para criticar a vida no campo, considerada
por ele abominável. Já o segundo espaço é visto de for- Joaninha
ma negativa, revelando-se para o protagonista como o É prima de Zé Fernandes e caracteriza-se por ser moça
lugar ideal, pois há modéstia do modo de vida, junta- simples e boa, nascida na serra. Casa-se com Jacinto,
mente a pessoas naturalmente bondosas e compreen- com quem tem dois filhos.
sivas. Há também uma comida saborosa, boas águas
e ar puro, todas essas coisas, acabam por convencer
Jacinto a viver para sempre em suas propriedades de
Tormes.

Tia Vicência
Uma senhora simples, boa e religiosa, que é a tia de Zé
Fernandes. Sua aptidão na cozinha satisfaz não apenas
o sobrinho, mas também Jacinto.
Personagens
Grilo
Desde que era menino, foi criado de Jacinto. Normal-
Jacinto mente, aceita todas as decisões do patrão sem recla-
Nasceu e foi criado em Paris, onde seus pais se co- mar. É um homem simples e ignorante, porém é sempre
nheceram e se casaram. É apelidado pelo narrador por capaz de definir exatamente qual o estado de alma de
Príncipe da Grã-Ventura. O avô de Jacinto é Galião, Jacinto, para surpresa do narrador.
que se mudou para Paris depois da queda de D. Mi-
guel. Jacinto tem adoração por cultura e tecnologia, Outras personagens de Paris
dessa forma, aproxima-se de tudo que é moderno, Madame de Oriol, Madame de Trèves, grão-duque Ca-
como forma de atingir-se a felicidade. Tem costume de simiro, Efraim etc.
72
Outras personagens da serra críticas vorazes e mordazes, mas apenas retratar a rea-
D. Teotônio, Silvério, Melchior, Ana Vaqueira, Ricar- lidade. Sendo assim, não havia qualquer falso moralis-
do Veloso, Doutor Alípio, Melo Rebelo, Gertrudes, tio mo mesclado nessas constatações.
Adrião etc. A linguagem e o estilo são, sem dúvida, as
características inconfundíveis da literatura de Eça de
Queirós. Conseguem atingir uma graça e uma leveza
Estilo de época e que dão à sua prosa uma espontaneidade só conse-
estilo individual guida com muito esforço, a partir de construções sin-
O Realismo e o Naturalismo são dois estilos que fazem táticas de acento nitidamente lusitano. Devido à sim-
parte da segunda metade do século XIX e reagem às plicidade e naturalidade das construções sintáticas, o
idealizações românticas. Realismo e o Naturalismo não uso de estrangeirismos (principalmente expressões em
se separam nitidamente na prosa literária portugue- francês), chega a parecer quase natural, quase espon-
sa, o que marca a presença de passagens naturalistas tâneo. A detalhada descrição faz com que o leitor se
em obras consideradas realistas. O Naturalismo torna sinta em cena, como se fosse uma personagem obser-
intensa e radical a visão materialista, crítica e cienti- vadora, sentindo de forma viva o cenário e as persona-
ficista do mundo; depara-se com o lado mais sórdido gens, que são incrivelmente autênticos, ainda que se
do comportamento humano, o que não ocorre no Re- caracterizem, na maior parte, como meros tipos sociais.
alismo. O episódio em que Zé Fernandes, frustrado por O efeito obtido pelas descrições é encantador, pois
não encontrar mais a vulgaríssima Madame Colombe proporciona ao leitor uma visão da capacidade que o
em sua casa, come e bebe em demasia, terminando narrador tem ao apegar-se ao detalhe e tornar vivo o
por vomitar tudo e esquecer a amante, pode ser bom momento em que se passa a ação. Quanto ao cenário,
exemplo disso. natural ou não, por suas minúcias, nada deixa a de-
Pode-se afirmar que, de modo geral, não há nas sejar. Pode-se destacar que boa parte das descrições
obras de Eça de Queirós o psicologismo que marcou a deixa clara a influência de Flaubert, por sua técnica
literatura realista. Em A cidade e as serras, as persona- impressionista de construção de cenários. De acordo
gens podem ser consideradas superficiais e até mesmo com as personagens e seus estados, Eça capta cada
dispensáveis. O autor detém-se mais no confronto en- ambiente através de uma perspectiva sugestiva.
tre a vida na cidade e no campo e não procura apro-
fundar-se na análise do material humano. As atitudes
Problemática e
de Jacinto e Zé Fernandes, no decorrer da narrativa,
revelam outros aspectos do Realismo-Naturalismo que
principais temas
podem ser observados na visão materialista do mundo Muito de determinado período da vida de Eça de Quei-
e no anticlericalismo nitidamente presentes. Já a sim- rós está presente na construção do romance A cidade
plicidade e inocência de tia Vicência levam-na a crer e as serras. Ao menos em parte, suas vivências foram
cegamente na religião, chegando a acender duas ve- repassadas para a obra através de Jacinto e Zé Fernan-
las para proteger os amigos depois de sua partida. Ao des. Claramente, nota-se que o autor soube dar vida e
contrário do comportamento das demais personagens detalhes, ao recriar em sua obra os cenários vistos por
Marcado por traços pessoais que não podem e ele. Exalta a beleza de sua terra natal e ressalta os usos
nem devem deixar de ser mencionados, é o estilo de e costumes locais, suas comidas e bebidas típicas.
Eça de Queirós. Um dos pontos altos de sua prosa e Na primeira parte da obra, a construção das
que gera grande paixão entre os leitores mais aficiona- personagens mantém a tendência caricatural que
dos é a ironia corrosiva presente em sua obra. Porém, acentuou a sátira queirosiana em sua segunda fase.
essa ironia não é capaz de camuflar o forte pessimismo Comportam-se com artificialismo, vestem-se e falam
social de seus livros, outra herança realista. Não era de maneira ridiculamente afetada, os nobres frequen-
objetivo dos realistas reformar a sociedade com suas tadores do 202. Essas personagens de fundo, que são
73
caricaturas sociais, ajudam a tornar a vida de Jacinto concluir seus estudos, após ter sido expulso de sua uni-
insuportavelmente tediosa. Já as personagens da se- versidade por motivos grotescos. Em seguida, volta a
gunda parte fogem dessa visão maliciosa e afetada do tratar de Jacinto e sua filosofia de vida, seus conceitos:
narrador, que se deixa levar pelos apelos emocionais e ele acreditava somente nas ideias, técnicas, a suprema-
troca a crítica maldosa por certa ternura e compreen- cia do homem sobre a natureza e, sobretudo, cidade. O
são dos defeitos e dificuldades humanos. narrador confidencia uma visão crítica a esses ideais de
O tema do livro é, certamente, a comparação Jacinto, no entanto, afirma nunca a revelou a ele, pois
entre a cidade e o campo, fazendo prevalecer o elogio “nunca desalojaria um espírito do conceito onde ele
ao segundo. O grupo de escritores realistas, encabeça- encontra segurança, disciplina e motivo de energia”.
dos por Antero de Quental e Eça de Queirós, tinha um Ainda explorando o modo “jacíntico” de vida, o nar-
sonho: viver em Paris, a cidade e suas luzes, seu mo- rador relata um breve passeio a uma floresta em que
vimento constante, o progresso que a tudo e a todos Jacinto se sentiu obviamente desconfortável. O grande
move sem parar. De certa forma, desvendaram outra contraponto do capítulo é quando o narrador recebe
face de Paris, destacada pela miséria e sofreguidão da- uma carta de seu tio Afonso Fernandes para que volte
queles que sempre trabalharam para o bem-estar dos à sua terra natal para cuidar de suas propriedades, já
privilegiados. Frustrados pela realidade do grande cen- que não tinha mais forças para fazê-lo. Por sete anos,
tro urbano foram sonhos socialistas do antigo Cená- José Fernandes, atraído inicialmente pela sopa doura-
culo, mas não foram esquecidos. Foi dessa forma que da da tia Vicência, entrega – se à vida no campo, tão
Paris não lhes mostrou um cenário de justiça social e maldita por Jacinto, que viu a partida de seu amigo
liberdade; pelo contrário, deixou clara a gravidade das como um atestado de óbito. Após esse tempo, em que
diferenças e distâncias sociais. viveu muito atarefado e nem deu atenção aos livros de
direito que levou consigo pensando em manter algum
estudo, Zé Fernandes vê a morte de seu tio Afonso, o
Resumo por capítulo casamento de sua afilhada Joaninha e retorna a Paris.

Capítulo 1 Capítulo 2
Há a introdução pelo narrador do seu amigo Jacin- Retornando a Paris, o narrador encontra Jacinto man-
to. Esse amigo vive desde sempre em Paris. A trans- tendo os mesmos padrões de elegância, mas sempre
ferência dos “Jacintos” para França é narrada como ressalta algo de desgastado na vivacidade do amigo.
consequência do desfecho da Guerra Civil Portuguesa Chegando à residência de Jacinto, nos Campos Elísios,
(primeira metade do séc. XIX): o avô de Jacinto, fidalgo 202, encontra tudo em seu lugar de sete anos antes,
Jacinto Galião, era leal (sem nenhuma séria motiva- com exceção a algumas inovações tecnológicas: um
ção) a D. Miguel e, quando este foi exilado, aquele o elevador, a eletricidade, o ar aquecido, o telégrafo. Tais
seguiu. Essa mudança para Paris já acompanhou seu inovações o espantam. Quando comenta com Jacinto
filho Cintinho, garoto doentio que passou pela vida, sobre a volta à “civilização”, não é possível ter certeza
“como uma sombra”. Ao morrer tuberculoso, nasceu de um tom de admiração ou sarcástico, de quem vê
o Jacinto amigo do narrador – parece que será impor- pouca utilidade em tantos trecos. É evidente no próprio
tante perceber a ausência da figura do pai para este Jacinto certo sentimento da irrelevância daquilo tudo.
personagem. Jacinto é boa-sorte em todos os sentidos: Em seguida, José Fernandes é convidado para
destaque no colégio, cercado de amizades “puras e permanecer e jantar com demais convidados – um psi-
certas”, praticou o amor de forma livre – “só expe- cólogo feminista e um pintor mítico. De início, recusa-
rimentou o mel”, dedicava-se à filosofia. E sempre o -se, mas aceita ao menos conhecer a sala de jantar. Lá
mundo parecia estar a seu favor! Era alguém invejá- tem contato com os diversos pratos, formas de servir
vel. Aqui, o narrador rapidamente se identifica como e demais aparatos que se contrapõem totalmente ao
José Fernandes, português erradicado na França para que viveu em seus últimos sete anos. O narrador vai
74
embora, então, ressaltando as “maravilhas” vividas Na sequência participa de uma discussão sobre
por Jacinto, o considerando realizado pela “felicidade o livro recém-lançado pelo psicólogo presente à festa.
perfeita”. Esta constatação do autor, no entanto, não Ao se gabar de sua obra, ele afirmava que “nunca pe-
converge com a narração por ele mesmo feita do com- netrara tão fundamente na velha alma humana”. No
portamento de seu amigo… Pura ironia. entanto, seu discurso é quebrado por uma observação
de outro convidado, Marizac, que estranha a cor preta
Capítulo 3 do colete usado por uma de suas personagem, consi-
José Fernandes continua a descrever a rotina de seu derando que é uma cor incomum, inapropriada a uma
amigo, sempre destacando as tecnologias inovadoras “uma duquesa, e do gosto mais puro”. O psicólogo
que ele utiliza e a incongruente apatia que este sente “assume” seu erro, mas não consegue evitar o pensa-
em relação a elas. Jacinto assume, em alguns momen- mento que percorre a todos: de que ele nunca esteve
tos, seu claro descontentamento com a própria cida- em intimidade com uma duquesa. Mais uma vez, põe-
de, que antes tanto admirava. Um tubo do sofistica- -se a ciência versus natureza, a teoria versus prática.
do lavatório do 202 se rompe jorrando água fervente Novamente, o narrador encontra-se com Jacinto, que
por toda casa, que expele vapor e logo é cercada por discute o investimento na exploração de uma mina
polícia e curiosos. O incidente se torna a notícia do de esmeraldas na Birmânia com um banqueiro judeu.
dia, o que pode ser visto como uma crítica à futilidade Questionando a existência real de esmeraldas com
da imprensa da época. Da imprensa e da “sociedade” estudos científicos, o anfitrião recebe a resposta que
também, representada por uma senhora que visita a resume toda conversa: “Há sempre esmeraldas desde
casa à procura de vestígios da desgraça – “Estou mor- que haja acionistas!”.
rendo por admirar as ruínas!”. Nada muito diferente Três dias após a festa, Jacinto recebe de Por-
do que hoje se tem: o gosto pela desgraça alheia, pela tugal a notícia de que uma de suas terras sofreu um
tragédia. Aqui, o narrador questiona a vida amorosa deslizamento que cobrira uma igrejinha que guardava
de Jacinto, que revela manter cortesãs na cidade, mas os restos mortais de seus avós. Ele decide, então, que
não se envolver muito com elas. Tal trecho suscita dú- deve ser gasto todo dinheiro necessário para recuperar
vidas quanto ao comportamento sexual de Jacinto. tudo que foi danificado.
Percebemos que, por diversas vezes, o narrador trata
Jacinto como “meu Príncipe”. Teoricamente em alusão Capítulo 5
ao título de “Príncipe da Grã-Ventura”. Por fim, Jacinto Depois da sequência de contratempos causados pelas
decide o passeio que farão no domingo: vão ao Jardim falhas das modernidades do 202, do encanamento es-
das Plantas para verem a girafa. tourado, da falta de energia, do elevador emperrado,
Jacinto ainda insistiu em adquirir mais equipamentos
Capítulo 4 que teoricamente facilitariam sua vida, mas acabavam
A festa no 202 caracteriza a sociedade parisiense, seus por criar mais problemas. Ao mesmo tempo que acu-
assuntos, seus personagens, suas futilidades. Tal festa mulava mecanismos, adquiria muitos novos livros, tais
era realizada a pedido do grão-duque, que pescara um que se infiltravam por toda a residência, atrapalhando
peixe raro o qual desejava cear. A organização da festa qualquer caminhada pelos seus corredores. José Fer-
já se inicia com um novo boicote da tecnologia sobre nandes, o narrador, desentende-se com diversos exem-
Jacinto: falta energia elétrica a toda residência. No en- plares espalhados por sua cama e acaba adormecendo
tanto, o episódio foi logo resolvido com a garantia de e sonhando com um mundo feito somente de livros e
estabilidade por um engenheiro da Companhia Elétrica. impressos.
Participando da festa, José Fernandes relata a Pela segunda vez, o narrador deixa de focar Ja-
admiração dos convidados sobre as tecnologias manti- cinto para apresentar uma experiência pessoal. Se, na
das na residência de Jacinto. Ao mesmo tempo demons- primeira vez, este esteve atraído pela vida no campo,
trava o desgosto do anfitrião ao desenrolar explicações. agora ele esteve preso à paixão: conheceu Madame
75
Colombe com quem conviveu por sete semanas. Nesse com criados. Apesar de casados, moravam em casas
tempo, em que constantemente visitava a mulher em separadas. José Fernandes foi viajar pela Europa. Aca-
seu quarto, Zé Fernandes se desfez de seus bens todos ba por revelar que o melhor dia de viagem foi quando,
em favor dela, até que não a encontrou mais. Caiu em em Veneza, encontrou um inglês que conhecia Portu-
desgraça, embebedou-se, delirou, vomitou sua paixão, gal e com ele relembrou sua terra. Voltando a Paris,
morreu e renasceu. Ao se libertar da paixão, volta a encontra Jacinto ainda mais aborrecido e envelhecido.
dispensar atenção a Jacinto, que permanecia na mes- O narrador sugere que isso pudesse ser motivado pela
ma: desgostoso com o cotidiano, com a sociedade pa- plenitude da vida de Jacinto, que tinha todas as tecno-
risiense. Tanto que nem dera muita atenção à aventura logias facilitadoras da vida à mão. Mas Jacinto crê que
vivida por seu amigo. Apesar de tudo isso, ao receber o tédio de viver é resultado da própria vida, somente,
de José Fernandes a sugestão de mudar de ares para o não se restringindo a ele. Entregou-se ao pessimismo,
campo, por um tempo, recusa imediatamente. O narra- leu “de Eclesiastes a Schopenhauer”, tentou se em-
dor questiona Grilo, empregado da casa, sobre o que penhar em festas, religiões e no humanitarismo, mas
estaria acontecendo com seu patrão. Este afirma que tudo o entediava. No dia do seu aniversário de 34
ele estaria “sofrendo de fartura”. anos, desprezava todos os cartões e presentes que re-
cebia. Ainda lembrando-se de sua terra de origem, José
Capítulo 6 Fernandes questiona que fim levou a reconstrução da
No começo desse capítulo, é citada uma relação entre igrejinha que fora soterrada, mas Jacinto nem sabe. O
Jacinto e Senhora de Oriol, que parece abalada com a narrador aproveita para novamente discutir a questão
notícia de que esta estaria jantando com outros cava- social: compara a situação dos pobres da cidade que
lheiros. Jacinto aceitou a sugestão do narrador de irem não contam com nenhum apoio, aos de sua terra que,
a uma basílica, no alto de um morro (Montmartre). Lá ao menos, podiam contar com a bondade da vizinhan-
chegando, ao avistar do alto a cidade, José Fernandes ça. O capítulo acaba com um momento “poético”,
teceu algumas críticas à “maravilhosa civilização”, cheio de simbolismos, com Jacinto andando pela casa,
que ali se resumia a uma mancha cinza, e Jacinto se encarando todos os equipamentos, estante, livros, teo-
rendeu, enfim, considerando que todas aquelas tecno- rias, conhecimentos e indo, melancolicamente, dormir.
logias não passavam de uma ilusão. Isso foi a gota,
d’água para que o narrador deixasse de usar ironias Capítulo 8
sutis e passasse a expor claramente sua posição em Começa a primavera e Jacinto informa a Zé Fernandes
relação às modernidades e suas burrices. Todas as te- que partirão para Tormes, onde ficam suas terras em
orias de Jacinto são contrapostas. E ele concorda. Ain- Portugal. Recebera a notícia que a igrejinha fora re-
da lá encontra Mauricio de Mayolle, colega de Jacinto construída e decidiu que acompanharia o traslado dos
envolvido em filosofias, metafísicas e energias. Após a restos mortais de seus antepassados para lá. A viagem
saída de Mauricio, Jacinto novamente tece sua opinião: para as serras, no entanto, teria de levar um pouco
tudo não passa de uma maçada! Ao final, Jacinto re- de Paris, segundo os planos de Jacinto. Nesse perío-
vela um desejo: construir uma casa naquele lugar para do, houve um súbito reavivamento de seu gosto pela
observar a cidade ao longe e “dominar a cidade”. cidade: encantou-se com toda mobilidade que Paris
proporcionava. Mas esse encantamento acabou, assim
Capítulo 7 que foi enviada a última caixa para Tormes.
Jacinto continua com suas visitas à Senhora de Oriol, Em um dos transbordos para um trem, o criado
que vai acompanhado de Zé Fernandes. O narrador Grilo, que guardava a bagagem pessoal dos dois ami-
aproveita para descrever a rotina da moça, inundada gos, perdeu-se e, com sorte, chegaria em um dia ou uma
de aparências, revistas, tradicionalismo, falsa caridade. semana. Tal ausência só foi notada quando chegaram a
Até que um dia encontra na residência dela seu ma- Tormes. Lá, além de estarem sem qualquer bagagem,
rido, transtornado por saber que ela o estaria traindo descobriram que Silvério, procurador de Jacinto, ima-
76
ginava que eles só chegariam meses depois. Todas as a natureza: queria plantar árvore, criar animais. Tomou
caixas de mobiliários enviadas com antecedência de algumas metas, como construir um curral, uma queijaria,
Paris não haviam chegado. Foram recebidos, então, por um pombal. Zé Fernandes faz uma observação de cunho
Melchior, um serviçal que não pode ajudar muito, senão social: todo esse gosto pela natureza e todos planos de
com um prato de comida e humildes enxergas (colchões trabalhá-la só eram possíveis para alguém como Jacin-
de palha). A falta de conforto incomodava Jacinto, que to, que tem “a vida ganha”, mas não seria para meros
decidiu partir para Lisboa assim que possível, mas ao assalariados. Esta observação é uma prévia do que virá
mesmo tempo as belezas do campo e a clara visão do no capítulo seguinte. Enfim, nenhum dos planos mirabo-
céu noturno o agradavam. José Fernandes, que partiria lantes de Jacinto se concretizou, pois Melchior e Silvério
para Guiães na manhã seguinte para encontrar com sua tinham certa resistência a tais inovações.
tia Vicência, prometeu enviar algumas roupas e utensí-
lios básicos que salvariam Jacinto até sua ida a Lisboa. Capítulo 10
Um dia antes de Zé Fernandes voltar a Guiães, ele
Capítulo 9 acompanha Jacinto para uma visita a Silvério, em que
Zé Fernandes recebeu suas malas que estavam perdi- trataria de assuntos de suas terras. O tempo que até
das. Tentou contatar Jacinto em Lisboa, mas ele nunca então estava aberto começou a mudar e uma tempes-
respondia. Até que encontrou com um familiar de Mel- tade interrompeu o trajeto. O narrador viu esse mo-
chior que passara por Tormes e lá vira Jacinto. Surpre- mento como um desafio, uma prova, para saber até
so com a permanência de Jacinto nas serras por mais onde iria o romance de seu príncipe pelas serras, pois
de cinco semanas, o narrador vai ao encontro de seu poderia se resumir a uma paixão ao calor do sol de
príncipe. Chegando a Tormes, depara-se com o casarão verão ou ter se tornado um amor que resistiria às tem-
bem arrumado, mas de forma simples, sem todos os pestades e ao inverno. O próprio Jacinto parece aceitar
mecanismos que foram encaixotados no 202. Jacinto o desafio, consciente de que precisa conhecer o campo
também está renovado, se mostra-se disposto, tão ani- em bons e maus dias.
mado com a nova vida que nem se preocupa com tais Os dois amigos e Silvério são surpreendidos por
caixotes, que foram enviados, por engano, para outra uma pobre criança, com aparência doentia. Jacinto se
Tormes, na Espanha. espanta com a situação do menino e vai até a casa de
Zé Fernandes cada vez mais se surpreende e sua família, cuja mãe está doente. Ao ver a triste situa-
admira as novas filosofias de Jacinto, que supervaloriza ção daqueles que também são seus empregados, Jacinto
a natureza e suas criações, jogando por terra todo pes- se choca por nunca ter imaginado que em um lugar tão
simismo que outrora elogiava em Shopenhauer. Ago- belo como aquele poderia haver tanta miséria. Decide,
ra, ele encontrava inspiração nas plantas e nas águas, então, empenhar esforços e dinheiro para mudar aquela
comunicava-se alegremente com a gente humilde do realidade: construir novas casas, contratar médicos, au-
interior. Assumiu, inclusive, que guardava milhares de mentar salários. Silvério não acredita em tudo que ouve,
livros no 202 que nunca tinha lido e, agora, apreciava contesta a falta de bom senso nessas medidas, mas aca-
mais do que nunca a leitura de livros como Dom Qui- ta, afinal, Jacinto também é seu patrão.
xote e a Odisseia. Era outro homem.
O enterro dos ossos dos Jacintos antepassados, Capítulo 11
que era o motivo inicial da visita, tornou-se uma ceri- O tempo passa entre idas e vindas de Zé Fernandes, de
mônia muito simples, uma vez que nem se sabia quem Guiães a Tormes, de Tormes a Guiães. Há um breve co-
eram os tais antepassados. Foram sete ossadas e meia mentário sobre a falta de uma mulher para se relacionar
– uma era de criança – levadas para a nova igrejinha. com Jacinto. Este se esquiva, comparando as mulheres
Até nesse singelo momento Jacinto encontrou beleza. da região a legumes, muito nutritivos, mas distantes da
O narrador observou que o interesse de Jacinto em con- beleza poética das flores que só habitavam as cidades.
templar a natureza evoluiu para um desejo de agir sobre Nesse período, o narrador vê Jacinto recuperar o gosto
77
pelas coisas da “civilização”: além de todas as mudan- apreciar um vinho e encontraram o tio João Torrado,
ças sociais propostas, agora pretendia construir uma um velho conhecido na região como profeta e que logo
escola, uma farmácia, uma biblioteca e até uma sala de identificou Jacinto como o “pai dos pobres”, chegan-
projeções em suas terras, para trazer cultura para aquele do ao ponto de suspeitar que nele pudesse estar Dom
lugar. Todas as obras da construção de seu “reinado” Sebastião reencarnado – crença baseada no Sebastia-
mexem com a economia local, tanto que Jacinto começa nismo, um movimento que acreditava na volta do rei
a ser visto como um benfeitor, quase um santo, pelos D. Sebastião como um messias. Chegando à Flor de
moradores da região. Alguns até o imaginam ocupando Malva, Jacinto se encanta pela beleza das terras, das
facilmente um cargo político. plantações, das construções. E também de Joaninha,
com quem se casaria em breve.
Capítulo 12
Capítulo 15
No aniversário de 34 anos de José Fernandes, Jacinto
participou de um almoço em Guiães, no qual conquis- Cinco anos depois, Jacinto já somava dois filhos – um
tou a simpatia de tia Vicência pelo gosto pela comida, casal – e se tornara um pai responsável, cuidando com
pelos seus planos para Tormes e com uma caldeirinha zelo de suas propriedades, que um dia serviriam a seus
de água benta como presente. O narrador apresentou- descendentes. Ainda que tenha cedido novamente a
-lhe suas terras, sua biblioteca. Este capítulo, muito algumas modernidades, como a instalação de telefo-
breve, termina com a chegada de outro convidado, nes em Tormes (sua residência), em Flor de Malva (casa
Dom Teotônio, para a festa de Zé Fernandes. do sogro), em Valverde (residência do médico) e em
Guiães (casa de Zé Fernandes), Jacinto encontrou um
Capítulo 13 equilíbrio, sendo prova disso que alguns dos aparatos
que, finalmente, chegaram nos caixotes perdidos fo-
A festa não saiu como Zé Fernandes planejou. Todos ram levados direto ao sótão da casa. Talvez isso tenha
convidados se demonstraram incomodados com a pre- se dado por pressão de Joaninha, que valorizava a ru-
sença de Jacinto, que se trajou muito elegantemente dez da serra. Até Grilo, criado de Jacinto, adaptou-se
com suas roupas vindas de Paris. A cada nova tentativa à nova rotina e concordou com o narrador, afirmando
de integrar os presentes contando histórias engraçadas que seu patrão “brotou” para uma nova vida.
de sua estadia no 202, o aniversariante não era corres-
pondido e o que se via eram sorrisos condescendentes, Capítulo 16
cochichos e nada mais.
Nos anos que se seguiram, Jacinto pensou em retornar
Entre os homens, soube-se que havia descon-
por alguns dias ao 202, levar seus filhos para conhecer
fiança de que Jacinto seria um miguelista (partidário
a “civilização”. Mas Joaninha, espertamente, reclama-
da volta do conservadorismo e de D. Miguel ao poder),
va um cansaço ou outro e convencia seu marido a per-
o que os deixava insatisfeitos. Imaginavam até que
manecer nas serras. José Fernandes pensava o mesmo,
o próprio D. Miguel estava com ele em Tormes. Após
mas, sem uma mulher que o segurasse, o realizou: foi
a refeição principal, todos jogaram cartas e, ao sinal
a Paris e lá encontrou as mesmas pessoas no mesmo
de uma tempestade, partiram. Tia Vicência riu com Zé
movimento incessante, na mesma superficialidade. In-
Fernandes e Jacinto contando da desconfiança dos se-
venções, jornais, crimes, maquiagens, pratos, transpor-
nhores da região.
tes, propagandas, tumultos… Nada era novidade, tudo
desapontava o narrador. Todos os aparatos da cidade
Capítulo 14
se resumiam a duas funções únicas: “o lucro e o gozo”.
Noutro dia, Zé Fernandes e Jacinto partiram para Flor Em uma visita ao 202, reviu as estantes, os livros, os
de Malva, residência do tio Adrião, que não pôde estar carpetes e os móveis cobertos por lonas empoeiradas,
na festa de José por conta de um furúnculo, e da prima e pensou que tudo aquilo, em algum momento, seria
Joaninha. No caminho, pararam numa taberna para tido como velharia para os que lá fossem habitar. Tudo
78
que era tanta modernidade seria história, passado. Vol-
tando a Tormes, tornou a estar feliz quando encontrou
Jacinto, Joaninha e seus filhos, Teresa e Jacintinho. Este
último carregava nas mãos uma pequena bandeira
que chamava de “bandeira do castelo”, que o narra-
dor logo associou à ideia de um castelo montado por
Jacinto, seu “príncipe da Grã-Ventura”, na “natureza
campestre e mansa”, “tão longe de amarguradas desi-
lusões e de falsas delícias”.

79
AProfunde seus conhecimentos
1. Os romances de Eça de Queirós costumam 5. Considere o enunciado abaixo e as três pos-
apresentar crítica a aspectos importantes sibilidades para completá-lo.
da sociedade portuguesa, frequentemente Em “A Cidade e as Serras,” de Eça de Queirós,
acompanhadas de propostas (explícitas ou através das personagens Zé Fernandes e Ja-
implícitas) de reforma social. Em A cidade e cinto de Tormes, que vivem uma vida sofisti-
as serras: cada na Paris finissecular, percebe-se:
a) qual o aspecto que se critica nas elites por- I. uma visão irônica da modernidade e do
tuguesas? progresso através de descrições de inven-
b) qual é a relação, segundo preconiza o ro- tos reais e fictícios.
mance, que essas elites deveriam estabelecer II. uma consciência dos conflitos que a vida
com as classes subalterenas? moderna traz ao indivíduo que vive nas
grandes cidades.
Texto para as próximas duas questões. III.uma mudança progressiva quanto ao
modo de valorizar a vida junto à natureza
E agora ali estava aquele último Jacinto, um e os benefícios dela decorrentes.
Jacintículo, com a macia pele embebida em Está(ao) correta(s):
aromas, a curta alma enrodilhada em filoso- a) apenas I.
fias, travado e suspirando baixinho na miúda b) apenas II.
indecisão de viver. c) apenas III.
– Ó Zé Fernandes, quem é essa lavradeirona d) apenas I e II.
tão rechonchuda?  e) I, II e III.
Estendi o pescoço para a fotografia que ele
erguera de entre a minha galeria, no seu 6. “(...) É uma bela moça, mas uma bruta...
honroso caixilho de pelúcia escarlate: Não há ali mais poesia, nem mais sensibili-
– Mais respeito, Sr. D. Jacinto... Um pouco dade, nem mesmo mais beleza do que numa
mais de respeito, cavalheiro!... É minha pri- linda vaca turina. Merece o seu nome de Ana
ma Joaninha, de Sandofim, da Casa da Flor Vaqueira. Trabalha bem, digere bem, conce-
da Malva. be bem. Para isso a fez a Natureza, assim sã
Capítulo VIII e rija; e ela cumpre. O marido todavia não
parece contente, porque a desanca. Também
é um belo bruto... Não, meu filho, a serra é
2. O trecho acima mencionado acontece quando maravilhosa e muito grato lhe estou... Mas
Jacinto de Tormes resolve partir para Portu- temos aqui a fêmea em toda a sua animali-
gal (onde nunca estivera). Com base nele e dade e o macho em todo o seu egoísmo...”
no que conhece de A cidade e as serras, res- Eça de Queirós. A cidade e as serras.
ponda:
Neste excerto, o julgamento expresso por Ja-
a) Por que Jacinto vai a Portugal?
cinto, ao falar de um casal que o serve em
b) Onde nascera Jacinto e por quê?
sua quinta de Tormes, manifesta um ponto
de vista semelhante ao do: 
3. Quem é a “lavradeira” a quem se refere, no a) Major Vidigal, de  Memórias de um sargento
texto, Jacinto de Tormes e o que acontecerá de milícias, ao se referir aos desocupados ca-
entre os dois mais tarde? riocas do tempo do rei.
b) narrador de Iracema, em particular quando
4. se refere a tribos inimigas e a franceses.
SUMA CIÊNCIA c) narrador de Vidas secas, principalmente
X quando ele enfoca as relações sexuais de Fa-
SUMA POTÊNCIA biano e Sinha Vitória.
d) Anjo, do Auto da barca do inferno, ao con-
O ideal exposto anteriormente faz parte da denar os pecados da carne cometidos pelos
filosofia de vida de importante personagem humanos.
de Eça de Queirós. O mesmo pode ser encon- e) narrador de O cortiço, especialmente quando
trado em: se refere a personagens de classes sociais in-
a) O primo Basílio. feriores.
b) O crime do padre Amaro.
c) A cidade e as serras. 7. (Unicentro) A única passagem que NÃO en-
d) Os maias. contra apoio em A cidade e as serras, de Eça
e) A ilustre casa de Ramires. de Queirós, é:
80
a) Em A cidade e as serras, José Fernandes, de profundamente Jacinto, que eu o senti, no
rica família proveniente de Guiães, região silêncio em que caíramos, suspirar de puro
serrana de Portugal, narra a história de Ja- alívio. Depois, muito gravemente: Tu dizes
cinto de Tormes, seu amigo também fidalgo, que na Natureza não há pensamento... Ou-
embora nascido e criado em Paris. tra vez! Olha que maçada! Eu... Mas é por
b) A cidade e as serras explora uma grave tese estar nela suprimido o pensamento que lhe
sociológica: ser-nos preferível viver e proli- está poupado o sofrimento! Nós, desgraça-
ferar pacificamente nas aldeias a naufragar dos, não podemos suprimir o pensamento,
no estéril tumulto das cidades. mas certamente o podemos disciplinar e im-
c) Para Jacinto, Portugal estava associado à pedir que ele se estonteie e se esfalfe, como
infelicidade, enquanto Paris associava-se à na fornalha das cidades, ideando gozos que
felicidade; ao longo do romance, contudo, nunca se realizam, aspirando a certezas que
essa opinião se modifica. nunca se atingem!... E é o que aconselham
d) No romance, dois ambientes distintos são estas colinas e estas árvores à nossa alma,
enfocados ao longo das duas partes em que que vela e se agita que viva na paz de um so-
o livro pode ser dividido: a civilização e a nho vago e nada apeteça, nada tema, contra
natureza. nada se insurja, e deixe o mundo rolar, não
e) Já avançado em idade, Jacinto se aborrece esperando dele senão um rumor de harmo-
com as serras e tenciona reviver as orgias nia, que a embale e lhe favoreça o dormir
parisienses, mas faltam-lhe, agora, saúde e dentro da mão de Deus. Hem, não te parece,
riqueza. Zé Fernandes? Talvez. Mas é necessário então
viver num mosteiro, com o temperamento de
8. (Fuvest) O romance A cidade e as serras, de S. Bruno, ou ter cento e quarenta contos de
Eça de Queirós, publicado em 1901, é de- renda e o desplante de certos Jacintos...
senvolvimento de um conto chamado “Ci- Eça de Queirós, A cidade e as serras.
vilização”. Do romance como um todo pode
afirmar-se que: Considerado no contexto de A cidade e as
a) apresenta um narrador que se recorda de serras, o diálogo presente no excerto revela
uma viagem que fizera havia algum tempo que, nesse romance de Eça de Queirós, o elo-
ao Oriente Médio, à Terra Santa, de onde de- gio da natureza e da vida rural:
veria trazer uma relíquia para uma tia velha, a) indica que o escritor, em sua última fase,
beata e rica. abandonara o Realismo em favor do Natura-
b) caracteriza uma narrativa em que se anali- lismo, privilegiando, de certo modo, a obser-
sam os mecanismos do casamento e o com- vação da natureza em detrimento da crítica
portamento da pequena burguesia da cidade social.
de Lisboa. b) demonstra que a consciência ecológica do
c) apresenta uma personagem que detesta escritor já era desenvolvida o bastante para
inicialmente a vida do campo, aderindo ao fazê-lo rejeitar, ao longo de toda a narrativa,
desenvolvimento tecnológico da cidade, mas as intervenções humanas no meio natural.
que ao final regressa à vida campesina e a c) guarda aspectos conservadores, predominan-
transforma com a aplicação de seus conheci- temente voltados para a estabilidade social,
mentos técnicos e científicos. embora o escritor mantenha, em certa medi-
d) revela narrativa cujo enredo envolve a vida da, a prática da ironia que o caracteriza.
devota da província e o celibato clerical e d) serve de pretexto para que o escritor criti-
caracteriza a situação de decadência e alie- que, sob certos aspectos, os efeitos da revo-
nação de Leiria, tomando-a como espelho da lução industrial e da urbanização acelerada
marginalização de todo o país com relação que se haviam processado em Portugal nos
ao contexto europeu. primeiros anos do século XIX.
e) se desenvolve em duas linhas de ação: uma e) veicula uma sátira radical da religião, em-
marcada por amores incestuosos; outra vol- bora o escritor simule conservar, até certo
tada para análise da vida da alta burguesia ponto, a veneração pela Igreja Católica que
lisboeta. manifestara em seus primeiros romances.

9. (Fuvest) Já a tarde caía quando recolhe- 10. (Fuvest) Leia o trecho de A cidade e as ser-
mos muito lentamente. E toda essa adorá- ras, de Eça de Queirós, e responda ao que se
vel paz do céu, realmente celestial, e dos pede.
campos, onde cada folhinha conservava Então, de trás da umbreira da taverna, uma
uma quietação contemplativa, na luz doce- grande voz bradou, cavamente, solenemen-
mente desmaiada, pousando sobre as coi- te: — Bendito seja o Pai dos Pobres! E um
sas com um liso e leve afago, penetrava tão estranho velho, de longos cabelos brancos,
81
barbas brancas, que lhe comiam a face cor efeito expressivo das prosopopeias ou perso-
de tijolo, assomou no vão da porta, apoiado nificações na descrição das serras e de seus
a um bordão, com uma caixa a tiracolo, e cra- acidentes.
vou em Jacinto dois olhinhos de um brilho
negro, que faiscavam. Era o tio João Torrado, 12. (PUC) Eça de Queirós escreveu em 1901 o
o profeta da serra… Logo lhe estendi a mão, romance “A cidade e as serras”. A primeira
que ele apertou, sem despegar de Jacinto os parte da narrativa acontece em Paris; a se-
olhos, que se dilatavam mais negros. E man- gunda, em Tormes, Portugal. Nessa obra, Eça
dei vir outro copo, apresentei Jacinto, que se afasta do romance experimental natura-
corara, embaraçado. — Pois aqui o tem, o lista; abandona, então, no dizer de Antônio
senhor de Tormes, que fez por aí todo esse Cândido, a crítica ao clero, à burguesia e à
bem à pobreza. O velho atirou para ele brus- nobreza e dá apoio às novas camadas sus-
camente o braço, que saía, cabeludo e quase citadas pela indústria e vida moderna. Está
negro, de uma manga muito curta. — A mão! mais próximo das estruturas portuguesas
E quando Jacinto lhe deu, depois de arrancar que tanto criticara. Assim, desse romance
vivamente a luva, João Torrado longamente como um todo, não é correto afirmar que:
lhe reteve com um sacudir lento e pensativo, a) desde o início, o narrador apresenta um
murmurando: — Mão real, mão de dar, mão ponto de vista firme, depreciando a civiliza-
que vem de cima, mão já rara! [...] Eu então ção da cidade.
debrucei a face para ele, mais em confidên- b) o personagem José Fernandes (Zé) relata a
cia: — Mas, ó tio João, ouça cá! Sempre é história do protagonista Jacinto de Tormes,
certo você dizer por aí, pelos sítios, que el- valendo-se de sua própria experiência para
-rei D. Sebastião voltara? indicar-lhe um caminho.
(Eça de Queirós. A cidade e as serras). c) Jacinto sofre uma regeneração em contato
a) No trecho, Jacinto é chamado, pelo velho, estreito com a natureza, numa atitude de
de “Pai dos Pobres”. Essa qualificação indi- encantamento e lirismo e integra-se, por
ca que Jacinto mantinha com os pobres da fim, na vida produtiva do campo
serra uma relação democrática e igualitária? d) o personagem protagonista se transforma,
Justifique sua resposta. mas sente-se incompleto porque não con-
b) Tendo em vista o contexto da obra, explique segue o amor de uma mulher e nem tem a
sucintamente por que o narrador, no final do possibilidade da constituição de um lar.
trecho, se refere a “el-rei D. Sebastião”. e) o protagonista, supercivilizado, detestava a
vida do campo e amontoara em seu palácio,
em Paris, os aparelhos tecnicamente mais
11. (Unesp) Leia o trecho abaixo e responda:
sofisticados da época.
“Brancas rochas, pelas encostas, alastravam
a sólida nudez do seu ventre polido pelo
vento e pelo sol; outras, vestidas de líquen
e de silvados floridos, avançavam como pro-
as de galeras enfeitadas; e, de entre as que
se apinhavam nos cimos, algum casebre que
para lá galgara, todo amachucado e tor-
to, espreitava pelos postigos negros, sobre
as desgrenhadas farripas de verdura, que
o vento lhe semeara nas telhas. Por toda a
parte a água sussurrante, a água fecundan-
te… Espertos regatinhos fugiam, rindo com
os seixos, de entre as patas da égua e do
burro; grossos ribeiros açodados saltavam
com fragor de pedra em pedra; fios direitos
e luzidios como cordas de prata vibravam e
faiscavam das alturas aos barrancos; e muita
fonte, posta à beira de veredas, jorrava por
uma bica, beneficamente, à espera dos ho-
mens e dos gados… “ Ao longo deste trecho
de A cidade e as serras, Eça de Queirós se
serve repetidamente da prosopopeia ou per-
sonificação, figura que consiste em atribuir
a seres inanimados qualidades próprias de
seres animados (particularmente qualida-
des humanas). Releia o trecho e explique o
82
Gabarito
1.
a) O conservadorismo e a futilidade.
b) Relação assistencialista.
2.
a) Porque uma capela, no solar de Tormes,
a que continha os ossos de seus ante-
passados desde 1500 (governo do rei D.
Manuel, o venturoso) caíra durante uma
tempestade; Jacinto a mandara recons-
truir e, agora, partia para entronizar os
“seus mortos” na igrejinha que julgava já
estar pronta segundo suas ordens ao pro-
curador.
b) Jacinto nascera em Paris porque o avô,
D. Jacinto Galião, abandonara o país de
origem quando o rei que ele adorava, D.
Miguel, fora exilado. Fora para Paris este
avô de Jacinto, levando, ainda menino,
Cintinho, o pai do protagonista. Em Pa-
ris, na Campos Elíseos, 202, nascera o
protagonista, alcunhado “O Príncipe da
Grá-Ventura” pelo narrador do romance,
José Fernandes.
3. É Joaninha, prima do narrador José Fernan-
des. Mais tarde Jacinto se casará com ela.
4. C
5. E
6. E
7. E
8. C
9. C
10.
a) Não, sua relação era paternalista assis-
tencialista, mantendo-se distinção de
classe e de privilégio entre ele e os cam-
poneses. Por mais que ele dê esmolas e
tente melhorar a vida dos camponeses, a
estrutura socioeconômica, da qual ele é
beneficiário, continua.
b) Nesse momento, o narrador retoma o
principal mito português: a volta de D.
Sebastião, assim associa o paternalismo
rural de Jacinto, que retorna da França
para Portugal, ao messianismo sebastia-
nista.
11. As prosopopeias fazem uma aproximação
entre os elementos paisagem e homem, au-
mentando a identificação do leitor com a na-
tureza descrita.
12. C

83
Negrinha

Monteiro Lobato
Sobre o autor § 1924 - A caçada da onça
§ 1924 - Jeca Tatuzinho
(Monteiro Lobato) § 1924 - O noivado de Narizinho
§ 1927 - As aventuras de Hans Staden
§ 1928 - Aventuras do príncipe
§ 1928 - O gato Félix
§ 1928 - A cara de coruja
§ 1929 - O irmão de Pinóquio
§ 1929 - O circo de escavalinho
§ 1930 - Peter Pan
§ 1930 - A pena de papagaio
§ 1931 - Reinações de Narizinho
§ 1931 - O pó de pirlimpimpim
§ 1932 - Viagem ao céu
§ 1933 - Caçadas de Pedrinho
§ 1933 - Novas reinações de Narizinho
§ 1933 - História do mundo para as crianças
§ 1934 - Emília no país da gramática
Monteiro Lobato nasceu em 18 de abril de 1882, em § 1935 - Aritmética da Emília
Taubaté, São Paulo. Foi um dos mais influentes escrito- § 1935 - Geografia de Dona Benta
res brasileiros. Muito criticado pelo seu conservadoris- § 1935 - História das invenções
mo, especialmente entre os modernistas, chegando a § 1936 - Dom Quixote das crianças
ser, considerado por muitos, preconceituoso, além de § 1936 - Memórias da Emília
um crítico voraz da Semana de Arte Moderna, pois jul- § 1937 - Serões de Dona Benta
gava o movimento fruto de teorias meteóricas e passa- § 1937 - O poço do Visconde
geiras. De alguma maneira equivocou-se em relação ao § 1937 - Histórias de Tia Nastácia
seu vaticínio, pois antagonizou aquela que foi a maior § 1938 - O museu da Emília
e mais importante escola literária e artística dos últi- § 1939 - O Picapau Amarelo
mos tempos. § 1939 - O minotauro
Foi um importante editor, criando, em 1918, a § 1941 - A reforma da natureza
“Lobato Editora”, além de ser o criador da Literatura § 1942 - A chave do tamanho
Infantil no Brasil. § 1944 - Os doze trabalhos de Hércules 
Formou-se em Direito e atuou como promotor § 1947 - Histórias diversas
público. Antes de seu falecimento, em 1948, em São
Paulo, Lobato também teve uma passagem política. Outras obras-temática adulta
§ O Saci Pererê: resultado de um inquérito (1918)
Obras § Urupês (1918)
§ Problema vital (1918)
Literatura infantil § Cidades mortas (1919)
§ 1920 - A menina do narizinho arrebitado § Ideias de Jeca Tatu (1919)
§ 1921 - Fábulas de Narizinho § Negrinha (1920)
§ 1921 - Narizinho arrebitado § A onda verde (1921)
§ 1921 - O Saci § O macaco que se fez homem (1923)
§ 1922 - O marquês de Rabicó § Mundo da lua (1923)
§ 1922 - Fábulas § Contos escolhidos (1923)
85
§ O garimpeiro do rio das Garças (1924) Apresentação
§ O choque (1926)
§ Mr. Slang e o Brasil (1927)
§ Ferro (1931)
§ América (1932)
§ Na antevéspera (1933)
§ Contos leves (1935)
§ O escândalo do petróleo (1936)
§ Contos pesados (1940)
§ O espanto das gentes (1941)
§ Urupês, outros contos e coisas (1943)
§ A barca de Gleyre (1944)
§ Zé Brasil (1947)
§ Prefácios e entrevistas (1947)
§ Literatura do minarete (1948)
O conto “Negrinha” apresenta as ações das perso-
§ Conferências, artigos e crônicas (1948)
nagens centradas na figura da pobre órfã adotada e
§ Cartas escolhidas (1948)
aquilo que acontece a sua volta. O conto mostra uma
§ Críticas e outras notas (1948)
realidade em que a palavra negrinha, ao invés de ser
§ Cartas de amor (1948)
um adjetivo, tornou-se um nome próprio. Narrado em
terceira pessoa, o narrador apresenta a personagem
Contexto órfã desde o seu nascimento até a sua morte. Dona
Inácia é patroa de Negrinha, caracterizada pela igreja
Monteiro Lobato enquadra-se no Pré-modernismo,
como “excelente senhora”, uma vez que era uma mu-
muito mais por uma questão ideológica do que por lher de muitos dotes, e que contribuía com sua rique-
época de publicação, pois produziu antes e depois de za regularmente com a Igreja. Daí, a ironia na fala do
1922, data da Semana de Arte Moderna que inicia o reverendo dizendo que Dona Inácia era uma: “dama
Modernismo. Situações como o artigo publicado no de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e
Jornal O Estado de São Paulo criticando a exposição da moral”. Para Dona Inácia, a Negrinha era como se
de Anita Malfatti, o famoso “Paranoia ou Mistifica- fosse um animal doméstico, sem direitos, apenas so-
ção”, e uma postura em defesa de um Brasil Oficial brevivendo. Apesar disso, tudo que Dona Inácia fazia
no sentido de que o negro e o pobre ocupavam seu na sociedade era para construir a imagem de uma boa
lugar pormenorizado em suas obras, inclusive sendo senhora, mas tratava de maneira cruel a Negrinha em
colocados como preguiçosos e tipos fracos, como é sua casa. Qualquer coisa era motivo para que Negrinha
o caso do “Jeca Tatu” de Urupês. Historicamente, o apanhasse, recebesse xingamentos etc.
Pré-modernismo se dá na consolidação da República Um dos exemplos que marca o sadismo e cruel-
e temporalmente tem início com a publicação de Os dade da patroa é a cena em que ela pede para a Negri-
sertões, de Euclides da Cunha, e seu fim, em 1922, nha abrir a boca e engolir um ovo recém-cozido.
com a Semana de Arte Moderna, em são Paulo. Havia Da metade para o final do conto surgem as
muita expectativa em torno do Brasil, porém, com o duas sobrinhas de Dona Inácia para passar as férias
surgimento do regime republicano, ela foi de alguma de dezembro. O que a princípio parecia uma coisa boa,
maneira frustrada, pois a desigualdade continuou, pois pela primeira vez Negrinha pode brincar, logo se
apenas a elite participa da política, as oligarquias se propõe uma realidade cruel, em que fica claro que ela
mantiveram no poder e os conflitos sociais, como a Re- é adotada e, mais do que isso, sempre colocada numa
volta da Vacina, o Cangaço, a Guerra do Contestado e situação como se fosse um bichinho, um animal de es-
a Revolta da Chibata, eclodiram no Brasil. timação mesmo.
86
Quando as meninas vão embora, dado o final das
férias, a vida da pobre Negrinha volta ao normal, com os
achaques da “Santa Inácia”, como ironicamente descre-
via Lobato. Fato que é preponderante na narrativa, uma
vez que diante da retomada de sua solidão existencial
e de sua condição zoomórfica frente ao tratamento de
sua dona, pouco tempo depois que as meninas brancas
vão embora, ela morre. Seu falecimento deixa nítido que
o fato de ela adoecer, na verdade, é um grito contra o
mundo, um desfile de seu desgosto. Fraca e estado de
delírio, ela fica lembrando das brincadeiras que teve com
as garotas brancas, brinquedo e bonecas.
Zoomorfização forçada
Trecho O processo de zoomorfização em que a menina forço-
samente se encontra denuncia sua condição, no que
— Traga um ovo.
diz respeito às ações da patroa que a trata pior do que
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a
se trata um animal.
ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na preliba-
ção da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera.
Seus olhos contentes envolviam a mísera criança Hipocrisia social e religiosa
que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula
Outro ponto importante de análise surge da postura
alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo che-
social que sua patroa adota, sendo socialmente uma
gou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
mulher que contribui com a Igreja e bem vista por to-
Negrinha aproximou-se. dos. Inclusive sendo bem falada pelo reverendo, mas
— Abra a boca! que, no final das contas, revela uma atitude hipócrita,
Negrinha abriu a boca, como o cuco, e fechou os pois a verdade é que ela era cruel com a Negrinha e
olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da seu álibi está no fato de que conferia donativos para
água “pulando” o ovo e zás! na boca da peque- a Igreja.
na. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos
amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negri-
nha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas Foco narrativo
só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo”.
O conto  “Negrinha”, de Monteiro Lobato, é narrado
em terceira pessoa. Toda a narrativa vem carregada de
Temas e principais conflitos carga emocional muito forte.
Em alguns momentos, o narrador dá espaço
Violência infantil e racial para o discurso direto, sobretudo nos diálogos.

Temas que trazem à tona uma força contemporânea


para a narrativa de Lobato, o conto “Negrinha” que Tempo
está no livro de mesmo nome, denuncia, de alguma
maneira, a violência contra a criança negra. Com iro- O conto relata a população brasileira das décadas ini-
nia, Lobato elabora o retrato negativo “da excelente ciais do século XX. O tempo da narrativa está atrelado
senhora”, a “ótima Dona Inácia”, apontando, por meio ao período do nascimento de Negrinha e de sua pre-
de chavões, a hipocrisia da sociedade: “a caridade é a matura morte. Desde o nascimento da órfã, sua vida é
mais bela das virtudes cristãs...”; “quem dá aos pobres narrada e, ao final, com sua morte, há o desenlace do
empresta a Deus”. conto.
87
Violência contra a criança na literatura brasileira
São vários e vários os pretextos para, também em nome da boa
educação da órfã, dona Inácia exercer o seu sadismo. Os casti-
gos impingidos à Negrinha aliviam a alma da malvada mulher,
servem “para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom
tempo”. Como os pequenos escravocratas, que montaram sobre
as crias da casa, a velha senhora joga-se em fúria sobre Negri-
nha. O garoto Brás Cubas exerceu esta prática com o menino
escravo de sua casa e também montou sobre ele. A senhora, já
adulta, revive esta prática lúdica e tirânica ao tratar a garotinha
como a um brinquedo. A menina negra que nunca brincara e
que jamais tinha visto uma boneca de pano ou de louça, como o
leitor saberá ao final do conto, era ela própria tratada e judiada
como a uma boneca – não de pano, porém de carne e osso. Ela
vivia, horas a fio, sentada num canto da sala ao pé da senhora,
enquanto esta bordava ou recebia visitas, e sua única diversão
era olhar, de hora em hora, o cuco do relógio. Muitas horas, ab-
solutamente imóvel com seus olhos assustados, Negrinha era
uma boneca triste.
A babá adolescente, na figura, parece mais carregar uma boneca de louça sobre suas costas. As duas não
estão lá muito contentes, mas não deixam de demonstrar certa cumplicidade. Olham na direção do fotógrafo
fixamente, talvez um pouco fatigadas porque a realização de uma fotografia não era instantânea como nos dias
de hoje. Tirar uma fotografia demandava alguns minutos. Assim, era preciso guardar um pouco da emoção inicial
até que tudo estivesse terminado”.
Fonte: Nalu da Silva Rocha e André Cordeiro (UFT) In: Conversando com Lucrécia e Negrinha:
Dois casos de violência contra a criança na Literatura brasileira.
http://ojs.gc.cuny.edu/index.php/lljournal/article/view/1346/1426 em 31/08/2015.

Espaço talidade escravocrata, mesmo décadas após a abolição.


Nele, é narrado a história de uma pobre órfã negra, filha
de escrava, que é criada por Dona Inácia, viúva e sem
filhos, inconformada com a abolição da escravatura.

Personagens

Negrinha
Era uma pobre órfã de sete anos.

“Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos


ruços e olhos assustados”; “(...) magra, atrofiada,
com os olhos eternamente assustados”

O conto “Negrinha”, escrito em 1920, possui um enredo D. Inácia


que se passa no Brasil, mais precisamente na casa de É a patroa de Negrinha, classificada como “excelen-
Inácia, em uma fazenda. Espaço onde persisteta men- te senhora”, especialmente pela Igreja, pois era rica,
88
possuía dotes e contribuía regularmente com a Igreja.
Como mesmo dizia o reverendo: “dama de grandes vir-
tudes apostólicas, esteio da religião e da moral”.

“D. Inácia era viúva sem filhos e não suportava


choro de crianças”; “era má demais e apesar da
Abolição já ter sido proclamada, conservava em
casa Negrinha para aliviar-se com uma boa roda
de cocres bem fincados!…”

Reverendo
É um coadjuvante que funciona como o representante
somente para reforçar a ideia de “virtuosa senhora”,
de Dona Inácia.

Criada nova
Surge no conto no momento em que Negrinha engole
um “ovo quente”, após a reclamação da mesma. Em igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas
outro momento, surge outra criada, mais amena e que as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de
não a destratava. jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dan-
do audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa se-
Duas sobrinhas nhora em suma — “dama de grandes virtudes apostó-
As sobrinhas brincam com a Negrinha, achando-a ex- licas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
travagante por nunca ter visto uma boneca. Surgem na Ótima, a dona Inácia.
história, do meio para o final. Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-
-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a
Cuco calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não
Metáfora do tempo, que aparece no conto como um suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia,
elemento que traz fantasia para Negrinha, quando ele longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
apitava as horas. No final, o cuco aparece mais uma — Quem é a peste que está chorando aí?
vez, alertando que o tempo de Negrinha na terra esta- Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pi-
va se esvaindo. lão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha
da filha e afastava-se com ela para os fundos do quin-

Leia o conto na íntegra tal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.


— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem ra-
Negrinha zão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entan-
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Pre- guem pés e mãos e fazem-nos doer...
ta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada,
olhos assustados. com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus pri- anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pon-
meiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, tapés. Não compreendia a ideia dos grandes. Batiam-
sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondi- -lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o
da, que a patroa não gostava de crianças. mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas,
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não anda-
do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na va. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal,
89
estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, — Ai! Como alivia a gente uma boa roda de
ao pé de si, num desvão da porta. cocres bem fincados!...
— Sentadinha aí, e bico, hein? Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda,
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas. os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva
— Braços cruzados, já, diabo! e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Pu-
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o xões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom!
susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia bom! bom! gostoso de dar) e a duas mãos, o sacudido.
uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta
engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de
e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés
as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante. e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo,
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
lhe iam a espichar trancinhas sem fim. Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de
Que ideia faria de si essa criança que nunca ou- quando em quando vinha um castigo maior para de-
vira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, sobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo.
barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, Foi assim com aquela história do ovo quente.
mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa- Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do
-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de
com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a carne que ela vinha guardando para o fim. A criança
bubônica. A epidemia andava na berra, como a gran- não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com
de novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim que a mimoseavam todos os dias.
— por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-na — “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é
e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria peste — e foi contar o caso à patroa.
um gostinho só na vida — nem esse de personalizar Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de
a peste... derivativos. Sua cara iluminou-se.
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, ci- — Eu curo ela! — disse, e desentalando do
catrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca,
houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne a rufar as saias.
exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma — Traga um ovo.
atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a
nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da
descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passa- tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos
gem. Coisa de rir e ver a careta... contentes envolviam a mísera criança que, encolhidi-
A excelente dona Inácia era mestra na arte de nha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de
judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa se-
escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar nhora chamou:
o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime — Venha cá!
novo — essa indecência de negro igual a branco e Negrinha aproximou-se.
qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma — Abra a boca!
mucama assada ao forno porque se engraçou dela o Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os
senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água
ruim, a sinhá!”... “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na
mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negri- até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente,
nha em casa como remédio para os frenesis. Inocente pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chega-
derivativo: ram a perceber aquilo. Depois:
90
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, sa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação
ouviu, peste? com o cuco.
E a virtuosa dama voltou contente da vida para Chegaram as malas e logo:
o trono, a fim de receber o vigário que chegava. — Meus brinquedos! — reclamaram as duas
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta meninas.
vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesá- Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
ria — mas que trabalheira me dá! Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão
minha senhora — murmurou o padre. galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma
— Sim, mas cansa... criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus. que dormia...
A boa senhora suspirou resignadamente. Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira
— Inda é o que vale... uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinque-
Certo dezembro vieram passar as férias com do. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas — É feita?... — perguntou, extasiada.
meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de E dominada pelo enlevo, num momento em
plumas. que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arru-
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as mação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão, o
irromperem pela casa como dois anjos do céu — ale- ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça.
gres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem âni-
novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, mo de pegá-la.
certa de vê-la armada para desferir contra os anjos in- As meninas admiraram-se daquilo.
vasores o raio dum castigo tremendo. — Nunca viu boneca?
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... — Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se
Quê? Pois não era crime brincar? Boneca?
Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha — Como é boba! — disseram. — E você como
levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela se chama?
alegria dos anjos. — Negrinha.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe As meninas novamente torceram-se de riso;
chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disse-
o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, ram, apresentando-lhe a boneca:
pestinha! Não se enxerga”? — Pegue!
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como
que de angústia moral — sofrimento novo que se coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria
vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito,
encorujou-se no cantinho de sempre. como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e
— Quem é, titia? — perguntou uma das me- para as meninas, com assustados relanços de olhos
ninas, curiosa. para a porta. Fora de si, literalmente... era como se pe-
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspi- netrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho
ro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho
vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de
brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns ins-
afora. tantes assim, apreciando a cena.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brin- Mas era tal a alegria das hóspedes ante a sur-
car! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a doloro- presa extática de Negrinha, e tão grande a força ir-
91
radiante da felicidade desta, que o seu duro coração Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infi-
afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. nita. Mal comia e perdera a expressão de susto que ti-
Apiedou-se. nha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de
passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envene-
ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E in- nara-a.
coercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos. Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalen-
Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a tara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão
coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vi-
primeiras que ela ouviu, doces, na vida: vera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-
— Vão todas brincar no jardim, e vá você tam- -se de alma.
bém, mas veja lá, hein? Morreu na esteirinha rota, abandonada de
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto,
ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a
Compreendeu vagamente e sorriu. de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos...
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi na- E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa
quela surrada carinha... farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mão-
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança zinhas de louça — abraçada, rodopiada.
é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E
ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza tudo regirou em seguida, confusamente, num disco.
dois momentos divinos à vida da mulher: o momento Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o
da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos cuco lhe apareceu de boca aberta.
— definitivo. Depois disso, está extinta a mulher. Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da Foi-se apagando. O vermelho da goela des-
boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maiou...
maravilhosa do mundo que trazia em si e que desa- E tudo se esvaiu em trevas.
brochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se Depois, vala comum. A terra papou com indife-
elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa rença aquela carnezinha de terceira — uma miséria,
— e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de trinta quilos mal pesados...
coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava! E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas
Assim foi — e essa consciência a matou. impressões. Uma cômica, na memória das meninas ri-
Terminadas as férias, partiram as meninas le- cas.
vando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão — “Lembras-te daquela bobinha da titia, que
habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, nunca vira boneca?”
inteiramente transformada. Outra de saudade, no nó dos dedos de dona
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava Inácia.
tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, — “Como era boa para um cocre!...”
amenizava-lhe a vida.

92
AProfunde seus conhecimentos
Para responder às questões 1 e 2, leia o frag- d) resistência da senhora em aceitar a liberda-
mento do conto “Negrinha”, de Monteiro de dos negros, evidenciada no final do texto.
Lobato. e) rejeição aos criados por parte da senhora,
que preferia tratá-los com castigos.
Negrinha era uma pobre órfã de sete anos.
Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de ca- 3. Leia o fragmento do conto “Negrinha”, de
belos ruços e olhos assustados. Monteiro Lobato, integrante da coletânea
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus “Negrinha”, e assinale o que for correto.
primeiros anos vivera-os pelos cantos escu- “Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica,
ros da cozinha, sobre velha esteira e trapos dona do mundo, amimada dos padres, com
imundos. Sempre escondida, que a patroa lugar certo na igreja e camarote de luxo re-
não gostava de crianças. servado no céu. Entaladas as banhas no trono
.................................................................. (uma cadeira de balanço na sala de jantar),
E tudo se esvaiu em trevas. ali bordava, recebia as amigas e o vigário,
Depois, vala comum. A terra papou com indi- dando audiências, discutindo o tempo. Uma
ferença aquela carnezinha de terceira – uma virtuosa senhora, em suma – ‘dama de gran-
miséria, trinta quilos mal pesados... des virtudes apostólicas, esteio da religião e
E de Negrinha ficaram no mundo apenas da moral’, dizia o reverendo. Ótima, a dona
duas impressões. Uma cômica, na memória Inácia. Mas não admitia choro de criança.”
das meninas ricas. a) Tendo em vista o fragmento acima, pode-se
– “Lembras-te daquela bobinha da titia, que afirmar que uma das principais característi-
nunca vira boneca?” cas do conto é a ironia.
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona b) A personagem dona Inácia é construída a
Inácia. partir do contraste entre aparência (“exce-
– “Como era boa para um cocre!...” lente senhora”, “dama de grandes virtudes
apostólicas”) e essência (“dona do mundo”,
“não admitia choro de criança”), conforme
1. Considerando o fragmento anterior, é corre-
mostra o fragmento acima.
to afirmar: c) Apesar de a personagem dona Inácia dar a
a) Em “Negrinha”, conto-título de livro de impressão de ser uma ex-senhora de escra-
Monteiro Lobato, editado em 1920, o autor vos, cruel e autoritária, ela se mostra, em
apresenta, de forma crítica e mordaz, o tra- sua essência, sensível e preocupada com
tamento cruel a que é submetida a pequena amenizar as dores alheias, como se pode in-
escrava, maltratada até a morte. ferir a partir desse fragmento.
b) Para o pré-modernista Monteiro Lobato, a d) O conto é narrado em primeira pessoa por
infância é um período a ser celebrado pela um narrador testemunha, um agregado da
alegria e vontade de viver, tema que anima casa de dona Inácia.
o conto “Negrinha”. e) Ao desnudar a imagem da “boa dona Inácia”
c) Como escritor romântico, Monteiro Lobato como mulher desumana e sádica, o conto
cria a personagem Negrinha como aquela põe em evidência a questão da aparência
que dá alegrias a Dona Inácia, sua patroa, versus essência. Do mesmo modo, eleva a
por estar sempre a seu lado. figura de Negrinha ao desvendar-lhe a hu-
d) Negrinha é uma das personagens mais mar- manidade e a inocência, materializadas no
cantes da literatura infantil de Monteiro Loba- simples desejo de ser criança.
to, o autor que inaugurou o gênero no Brasil.
e) No conto “Negrinha”, Monteiro Lobato re- 4. (Unicamp) Quanto ao conto “Negrinha”, de
lembra uma pequena companheira de infân- Monteiro Lobato, é correto afirmar que:
cia, vizinha das terras de seu avô. a) O narrador adere à perspectiva de dona Iná-
cia, fazendo com que o leitor enxergue a
2. A narrativa focaliza um momento histórico- história guiado pela ótica dessa personagem
social de valores contraditórios. Essa e se torne cúmplice dos valores éticos apre-
contradição infere-se, no contexto, pela: sentados no conto.
a) falta de aproximação entre a menina e a se- b) O modo como o narrador caracteriza o con-
nhora, preocupada com as amigas. texto histórico no conto permite concluir que
b) receptividade da senhora para com os pa- Negrinha é escrava de dona Inácia e, portan-
dres, mas deselegante para com as beatas. to, está fadada a uma vida de humilhações.
c) ironia do padre a respeito da senhora, que c) A maneira como o narrador comenta as
era perversa com as crianças. características atribuídas às personagens

93
contrasta com as falas e as ações realizadas
por elas, o que caracteriza um modo irônico
de apresentação.
d) o narrador apresenta as falas e pensamentos
das personagens de modo objetivo; assim, o
leitor fica dispensado de elaborar um juízo
crítico sobre as relações de poder entre as
personagens.

5. Monteiro Lobato está cronologicamente vin-


culado ao:
a) Modernismo.
b) Parnasianismo.
c) Pré-modernismo.
d) Concretismo.
e) Romantismo.

6. O sadismo de Dona Inácia pode ser visto em


qual situação?
a) No trato com as roupas de Negrinha.
b) Na relação com o clérigo.
c) Com o ovo enfiado quente em sua boca.
d) Com a falsa sensação de infância.
e) Com o calçado apertado.

Gabarito
1. A
2. D
3. E
4. C
5. C
6. C
94

Você também pode gostar