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Jesus – Terapeuta e Cabalista – Parte 3

Hokhmah-Sabedoria

Com efeito, ‘tmimá’, "simples", "honesto", poderá ser lido como ‘hematim’
se permutamos a letra hei, "espírito", por álef, "energia".
O coroado por seu próprio discernimento interior, que procede do alto, do
ascensional, é antes de mais nada um ‘matim’, um ser que se
"corresponde" com a realidade circundante.
Ajustado como uma lente fotográfica sobre sua câmara, o olho simples ou
perfeito, o olho por onde tem início o ingresso de luz no corpo-lâmpada,
aceita o que percebe sem dividi-lo, porque sabe que a condição de todo
viageiro que quer chegar a seu destino é a derrubada de todos os muros, a
boa disposição para tudo, a coragem.
Uma vez saídos ao mundo, não há volta ao ponto de partida.
No percurso, os lírios do campo, os pássaros, as nuvens, a água, o vento, o
sol, as estrelas, as árvores são um alfabeto que temos que aprender a ler
porque a natureza é uma parábola do sobrenatural, o inverso da trama do
espírito.
E assim como não há retorno ao ponto de expulsão, do mesmo modo não
há, para a cabeça, nada de estático.
Sendo ela imagem do céu, da abóbada celeste, bem disse Jesus em Mateus
8,20: "As raposas têm suas tocas, e as aves do céu seus ninhos, mas o
Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça".
Como devemos interpretar as alusões de Jesus?
Negativa ou positivamente?
Queixa-se ele ou antes celebra a não existência de um ponto de apoio?
A versão grega diz ‘kefalin-klini’.
Esta última palavra significa "leito", "cama", "reclinatório", mas também
"féretro" ou "ataúde".
Podemos suspeitar, então, que deter-se é, de certo modo, morrer; porém,
precisamente porque sabe disso, há no Filho do Homem algo imortal,
dinâmico, criador porque viageiro, eterno porque livre.
Somos neguentrópicos e enquanto vivemos lutamos para combater o
mortífero efeito da lei da gravidade com o vivificante impulso da lei da
levitação.
Não só não tem o homem onde apoiar a cabeça mas ainda não deve apoiá-
la em lugar nenhum.
Pelo menos enquanto seu périplo não se encontre com a Hokhmah ou
Sabedoria, enquanto o orvalho que ilumina a Coroa ou Kether não tenha
perfurado sutilmente o crânio, e a memória cósmica não tenha sido ativada,
luz sobre luz.

A segunda sephira com freqüência aparece associada ao hemisfério cerebral


esquerdo, ao lógico, racional, ao passo que, segundo veremos, a terceira
sephira — Binah ou Entendimento — está associada ao analógico, ao
irracional ou espontâneo.
Costuma-se denominar a Sabedoria o "princípio ativo"; ou ainda, o "pai" em
alguns círculos cabalísticos, e em outros, a "filha", hipostasiada na forma da
Tora.
Azriel de Gerona, no século XII, escreveu que Jokmá é "a força do possível,
do virtual, uma potência simples que determina a forma, as substâncias em
transformação".
E muito provável que aludisse ao conteúdo semântico da palavra, visto que
Hokhmah tem implícito o vocábulo ‘koaj’, "força", e também ‘móaj’,
"cérebro", donde podemos ler que a Sabedoria é a energia, a força do
cérebro, idéia não de todo errônea se considerarmos que na inevitável
lateralidade de nossa aprendizagem conferimos à mão direita, regida pelo
hemisfério esquerdo, uma parte mais ativa e determinante que à mão
esquerda.
E, todavia, a Sabedoria é oculta e talvez inescrutável, pelo que podemos
conhecê-la unicamente por seus atos, através de suas manifestações.

Na passagem de 1 Coríntios 2,6 lemos: "É portanto uma sabedoria a que


pregamos entre os perfeitos, mas não a sabedoria deste mundo, nem a dos
grandes deste mundo, condenados a perecer. Falamos a sabedoria de Deus,
misteriosa e secreta, que Deus predeterminou antes de existir o tempo,
para a nossa glória".
Esta sabedoria oculta, que a Cabala chama também de Hokhmah Nisteret,
tem sua causa no ponto invisível sobre o qual o iniciado percebe a
reverberação da gota de orvalho.
Saímos ao mundo em busca daquilo que, sem o saber, já possuímos.
Deixamos nossa casa para terminar por dar-nos conta de que, na realidade,
como diz Provérbios 24,3: "É com sabedoria que se constrói a casa".
Nesse sentido, é certo que a Sabedoria é causa unidimensional do
tridimensional Entendimento ou segunda sephira.
Se repassarmos o versículo original, nos defrontaremos com o fato de que
"se constrói" é em hebraico ‘ibané’, palavra que tem as mesmas letras que
Binah.
É a ordem relampagueante percorrida pela Árvore Sefirótica, da Coroa à
Sabedoria e da Sabedoria ao Entendimento.
Porém, se tudo já está em nós, por que sair em sua busca fora de nós?
Qual é o verdadeiro norte da bússola?
"Senhor — diz-nos João 14,5 — não sabemos para onde vais. Como
podemos reconhecer o caminho? Jesus lhe respondeu: 'Eu sou o caminho'”.
Pelo manifesto, em direção ao imanifesto, pelo visível, ao invisível.
Os olhos, embora projetados para fora, têm suas radiações óticas nos
lóbulos occipitais, junto à nuca; é sobre a chamada fovea centralis, zona do
olho localizada próximo ao ponto cego, que se forma a imagem mais nítida.
Que surpreendente paradoxo constitui o fato de que, para converter-nos em
caminho, tenhamos que sair pelos Caminhos, que, para entender as "muitas
moradas da casa do Pai", devamos explorar sua aberta natureza, viver
apaixonadamente, fundir-nos com o mundo, e que, para ver mais
claramente, muitas vezes tenhamos que fechar os olhos!
Pois "ninguém subiu ao céu senão o que desceu do céu", nos diz João 3,14.
A vinda do Filho do Homem ao mundo, a chegada dos homens à vida não é
para sua própria condenação, senão para que a vida mesma "seja salva"
por seu intermédio.
Nessa passagem vemos até que ponto o desenvolvimento do Adão natural,
e sua posterior conversão em ser sobrenatural, não supõem a negação de
sua humanidade, mas sim sua mais plena afirmação, sua auto-iluminação,
seu incendimento.
"Aquele que opera a verdade — prossegue João —, vem à luz."
Porque o sentido original de operar, na verdade, não pode ser senão
manifestar-se, é pelo evidente que é possível diagnosticar e, em suma,
curar.
O terapeuta, como o educador, tira, extrai, desnuda o que é bom e o que é
mau para que o organismo se fortaleça entre seus muitos atos e desfaça e
tome a fazer sua rota vital.
Se a Sabedoria é a causa causorum e está relacionada, topograficamente,
com o hemisfério esquerdo, o mais racional dos dois no dizer dos
neurologistas, sua função equivaleria ao plano, ao projeto que logo tomará
corpo, quer dizer, se fará consciente de si mesmo, se erigirá através de
Binah no Entendimento.
Uma importante passagem do Livro da Criação nos diz que devemos
"entender com sabedoria e ser sábios com entendimento", o que em
linguagem cabalística significa "hebín be-jokmá u-jajem be-bina", isto é:
emprega o hemisfério esquerdo para conhecer o direito e o direito para
conhecer o esquerdo.
Une em ti o pai à mãe, faz do macho, fêmea e da fêmea, macho.
Retorna ao tálamo de tua própria cabeça e observa esta maravilha: no
quiasma ótico parte das fibras procedentes da retina se cruzam e as
restantes continuam seu caminho.
As fibras nervosas que atravessam o quiasma (que significa "cruz",
"cruzamento"!) até o lado oposto não estão selecionadas ao acaso, mas são
as que procedem do lado interno da retina.
De tal modo que o cintilho ótico direito transporta mensagens
correspondentes unicamente a objetos vistos à esquerda do campo visual, e
o cintilho ótico esquerdo, mensagens correspondentes a objetos vistos à
direita do campo visual.
Essa inversão especular nos remete a uma reveladora passagem do Zohar
que fala do "espelho brilhante" sobre o qual o olho pode permanecer e
"encher-se tão completamente de beleza que, por fim, penetra no mais
íntimo do ser e inunda a alma com uma luz sempre duradoura. E a alma,
tendo abarcado o significado interno da luz que a inunda, se aquece em sua
irradiação e se satisfaz a todo momento com o prazer que emite".
Essa espécie de unio — como a chamam os místicos — de fato já ocorre,
pois, ao recriar o mundo com seu olhar, o homem inverte, através do
espelho de sua mente, o campo visual exterior.
Só deve, pois, dar-se conta do que se dá volta.
E isto para que a famosa lei da Tábua de Esmeralda — documento
hermético que sustenta que: "O que está embaixo é como o que está em
cima, e o que está em cima é como o que está embaixo; por estas coisas se
fazem os milagres de uma só coisa. E como todas as coisas provêm do Uno,
pela mediação do Uno assim todas as coisas foram criadas desta coisa única
por adaptação", o que lhe permite entender essa idéia também num sentido
horizontal: tão profundo é nosso interior quanto o exterior a nossos olhos,
pois tudo faz parte de uma mesma entidade. Se compararmos as palavras
"espelho", ‘reí’, com "luz", ‘or’, observaremos que só se diferenciam por
duas letras: o yod (o Pai) no caso do espelho, e o vav (o Filho) para o caso
da luz.
Ou seja, a chamada Identidade Suprema é, do ponto de vista da Cabala, a
luz que o espelho nos devolve.
Todavia, cada espelho tem duas faces, a brilhante e a opaca.
A visível e a invisível.
Estas são Holchmah e Binah respectivamente, enquanto que Kether ou
Coroa seria "a luz celeste" que se desloca entre seus átomos, seu
verdadeiro sustento e realidade.
Ao falar dessas três primeiras sephiroth, o Zohar nos diz que "Deus é o
mestre com manto branco e face resplandecente. O branco de seu olho
forma quatro mil mundos, e os justos deste mundo herdarão, cada um,
quatrocentos mundos iluminados pelo branco do olho. Milhões de mundos
têm sua base e seu suporte em sua cabeça. O orvalho que brota de sua
cabeça e dela emana ressuscitará os mortos no mundo futuro. Este orvalho,
que é o maná dos justos, é transparente como o diamante, embora emita
todas as cores... A brancura de sua cabeça lança luz em todas as direções".

Esse espaço simbólico que o Livro do Esplendor denomina a Face Maior,


está composto de três naturezas de princípios superpostos: macho, fêmea e
filho.
Quer dizer que no cruzamento da Sabedoria com o Entendimento, apelando
ao apoio da Coroa, o iniciado descobre o que os cabalistas denominam o
mundo dos ascendentes, nossa filiação com os mestres.
Algo semelhante se depreende claramente do relato evangélico da
Transfiguração: "E se transfigurou na presença deles — anota Mateus 17,2
— e seu rosto brilhou como o sol, e suas vestes tornaram-se brancas como
a luz. E eis que apareceram Moisés e Elias falando com ele".
Momento em que o Criador recomendará aos discípulos, Pedro, Tiago e
João, que prestem atenção ao "Filho amado", ouvindo-o, levando em
consideração suas palavras.

A palavra grega utilizada na passagem e que equivale a "transfiguração", é


‘metamorfósi’, vocábulo que tem o eco lepidóptero da crisálida que passa,
através do calor e da luz, à fase de mariposa.
Por isso, dizia Dante que o homem é uma "mariposa angélica" se aceita o
suplício doloroso da transfiguração interior, se é capaz de fazer de seus atos
asas, de seus pensamentos estrelas, de seu coração uma lâmpada viva em
que brilha o fogo do Espírito.
Em seu Sepher ha-Hokhmah ou Livro da Sabedoria, Eleazar de Worms,
mestre do século XII, escreve: "O Criador mostrou a Moisés um espelho
brilhante que é chamado a 'coroa suprema".
Esse espelho teria uma face opaca, a coroa, e uma face brilhante, a luz que
a atravessa.
Por mediação desse espelho Moisés conheceu a arte dos reflexos que se
propagam pelos labirintos cranianos e redescobriu o Bereshit, o Princípio
Único, esse Pacto de Fogo, essa Aliança de Luz cujo crisol era impossível de
olhar de frente, sob pena de ficar cego.
Pareceria que unicamente nos é dado — com olhos humanos — ver o
criado, pois o Criador é demasiado vasto para o tamanho de nossos
cristalinos.
Quando Jó contempla as maravilhas da Criação é-lhe dito que os céus são
um "espelho fundido".
Diante de um tal espelho, qual a pupila que há de resistir à sua dança
termonuclear, à brilhante pétala de um relâmpago caído da flor da
tormenta?
Como temos a tendência de confundir a imagem projetada com a luz que a
gera, a imersão em nosso próprio tálamo exige do discípulo
responsabilidade no discernir.
Tozan, um mestre zen nascido na China no século IX, escreveu em seu
Samadhi do Espelho Ilusório: "É como contemplar-se no espelho.
Observam-se a forma e o reflexo. Tu não és o reflexo, mas o reflexo és tu".
Essa inata tendência a confundir-nos em meio às imagens-ídolos pode
dissipar-se quando transformamos nosso narcisismo em verdadeiro amor,
quando nossas palavras encarnam em nossos gestos.
Entre os antigos nahuatls do México, a definição do sábio incluía a de ser
"um espelho" para os outros, quer dizer, em um torná-los conscientes de si
mesmos através do vazio.
"Sede cumpridores da palavra (poitís) e não apenas ouvintes; isto
equivaleria a vos enganar a vós mesmos — diz São Tiago 1,22 — Aquele
que escuta a palavra sem a realizar, assemelha-se a alguém que contempla
num espelho a fisionomia que a natureza lhe deu: contempla-se, mas, mal
se afasta, já se esquece de como é. Mas aquele que procura meditar com
atenção sobre a lei perfeita da liberdade (aleuterías), e nela persevera, não
como ouvinte que facilmente se esquece, mas como cumpridor fiel do
preceito, este será feliz no seu proceder".
O verdadeiro espelho de um homem são seus semelhantes, porém a luz que
o une a eles transcende a um e a outros.
Se buscarmos as palavras hebraicas correspondentes à "lei perfeita",
encontraremos Tora tmimá, o que indica que o discípulo deve utilizar os
textos como veículo de sua libertação, do mesmo modo que faz uso do
espelho como utensílio de autoconhecimento.
"As palavras da Tora — costumava dizer o rabi Natan, um mestre talmúdico
— são como vasos de ouro. Quanto mais são esfregados e polidos, mais
refletem o rosto de quem neles se olha. Se as puseres em prática, as
palavras da lei te farão resplandecer o rosto".
É tradicional no meio hebreu considerar a Tora como um espelho: o que
nela lemos num sentido é registrado pelo cérebro em outro.
Por isso o cabalista dá volta às palavras em sucessivos ‘drash’, em
contínuos jogos de paronomásins, aliterações e anagramas com o fim de
achar o direito do reverso, os enlaces da trama.
De modo semelhante, o terapeuta tem de ser um espelho para seu
paciente, o qual, através de sua própria anagnose ou exame, pode chegar a
descobrir-se, endireitar o torto, tornar-se destro por meio do sinistro.
Se somarmos os valores numéricos das três primeiras sephiroth, Coroa,
Sabedoria e Entendimento (Kether = 620 + Hokhmah = 73 + Binah = 67 =
760 = 13), obteremos o número-chave do "amor", ahabá, mas também o
do "Uno", ejad.
Por isso se diz que o Bereshit, o Princípio Único, está na cabeça: "E à sua
cabeça, Deus", anota Miquéias 2,13.
Se multiplicarmos 2 por 13, obteremos o número 26, correspondente ao
Tetragrama ou Nome Inefável.
Mais: "em ou à cabeça deles" é em hebraico ‘berosham’ e contém as
palavras ‘ab’, "pai", ‘em’, "mãe", e ‘bar’, "filho", os três unidos pelo "fogo",
‘esh’; o que coincide com o que já nos dizia o Zohar: "Sabedoria que se faz
manifesta produz Entendimento... Sabedoria é o pai, Entendimento, a
mãe...".
A verdadeira família de um nazareno é espiritual, uma comunidade com
seus ascendentes.
A verdadeira força de um terapeuta é sua linhagem apolínea.
Fílon de Alexandria, falando dos terapeutas, diz: "Buscam com zelo tenaz a
solidão, mas não se afastam em demasia, já que amam a vida em
comunidade e procuram socorrer-se uns aos outros em caso de ataques de
ladrões. Em cada residência existe uma habitação consagrada chamada
santuário ou isolatório no qual ingressam para cumprir os ritos secretos da
vida religiosa".
Essa passagem não nos lembra Mateus 6,6: "Mas tu, quando orares, entra
em teu quarto, fecha a porta e ora a teu Pai em segredo (cripto) e teu Pai,
que vê em segredo, em público te dará a recompensa"?
Se decodificarmos a palavra "no princípio", Bereshit, em outras duas
palavras, podemos obter ‘bait’, "casa", e ‘rosh’, "cabeça".
Mas também, obviamente, o "fogo", ‘esh’, que ilumina a ambas.
A cura pelo fogo é a cura pela verdade.
O objetivo do trabalho especular — de speculum, "espelho" — é observar as
órbitas de nossas estrelas interiores, porque toda consideração — ‘con
sidus’ indica os "astros" — deve conduzir-nos a restabelecer a harmonia
com o mundo, com o meio circundante.
Em 1 Coríntios 3,14, lemos: "Manifestada será a obra de cada um, porque o
dia a fará conhecer, pois pelo fogo será revelada, e a obra de cada um,
qualquer que seja, o fogo a provará".
Toda inteligência celeste refletida pelo espelho é com freqüência um
símbolo solar.
Mas também um símbolo lunar.
Os sábios taoístas saíam pela manhã a recolher orvalho em seus espelhos,
pois esse é o alimento da imortalidade que em linguagem cabalística se
denomina "ressurreição dos mortos".
O espelho é o instrumento clássico de Psique, e para Al-Ghazali, o corpo é o
lado opaco do espelho, enquanto que seu lado brilhante representa a alma.
Novamente nos defrontamos com a mesma idéia: para dar-se conta tem-se
que dar a volta.
Por isso, os nazarenos estudavam a natureza do divino para em seguida
compreender o divino da natureza.
"Duas vezes ao dia — continua dizendo-nos Filou de Alexandria em seu
tratado sobre a contemplação — os terapeutas costumavam entregar-se à
oração, ao nascer do dia e por volta do entardecer. Ao surgir do sol
suplicavam por um dia brilhante, brilhante de verdade, quer dizer, em que a
luz celestial enchesse suas inteligências; ao pôr-do-sol rogavam por suas
almas para que, liberadas da perturbação dos sentidos e das coisas
sensíveis, e refeitas no tribunal das deliberações que são elas mesmas,
pudessem seguir as pegadas da verdade. No tempo que entremeia o
amanhecer e o entardecer, dedicavam-se inteiramente a exercícios
consistentes, a ler as Santas Escrituras e interpretar as alegorias contidas
na filosofia de seus antepassados, pois entendiam que as palavras do texto
literal são símbolos de um sentido oculto que se torna claro ao desenterrar-
se o que elas encobrem".

Pertence à tradição dos estudos cabalísticos inferir uma palavra de outra,


subtrair uma radícula de uma raiz para assim compreender como, de certo
modo, a raiz chegou a ser o que é ou o que a alimenta na frondosa árvore
da linguagem bíblica.
Se considerarmos agora a segunda sephira, Hokhmah, a Sabedoria, nela
veremos a palavra ‘jamá’, "sol".
Melhor ainda: aliterando-a, obtemos ‘ke-jamá’, "como o sol", resultando daí
que toda sabedoria é heliocêntrica, verdadeira, restauradora, cálida,
ardente, luminosa, geradora, doadora de vida.
Não obstante, os fogos do sol, que determinam essa Lei de Fogo, são
também perigosos.
Talvez por esse motivo nos adverte um apólogo do Talmud: "Com que
podem comparar-se as palavras da Lei? As palavras da lei podem
comparar-se ao fogo. Como o fogo, elas vêm do céu e como o fogo são
duradouras. Se um homem delas se aproxima em demasia, se queima, e se
se afasta, se congela. Se constituem seu instrumento de trabalho, salvam o
homem. Se se serve delas como meio de ruína, causam a sua perdição.
O fogo deixa marca em todos os que o usam. Assim também faz a lei. Cada
homem dedicado ao estudo da Tora leva impresso o selo do fogo em seus
atos e em suas palavras".

Já em Jeremias 23,29, lemos: "Não se assemelha ao fogo minha palavra?",


elemento que tornará a arder em Atos 2,3: "Apareceram-lhes então uma
espécie de línguas de fogo, que se repartiram e repousaram em cada um
deles".
Porém a utilização dessa energia solar, apolínea — pois Apolo foi também
pai de Esculápio, o deus médico —, requer que o terapeuta ou o cabalista
encarnem primeiro o que dizem: que tenham passado a prova de fogo.
A cura a que se entregarão com língua, coração e mãos é cauterização e
bálsamo, porém também navalha de aço candente que divide o irremediável
do que ainda é saudável, pois a saúde é maior que cada uma das partes do
organismo.
A saúde tem a ver com a totalidade.
Daí que Jesus assinala, com surpreendente maestria: "Se tua mão ou teu
pé te faz cair em pecado, corta-os e lança-os longe de ti: é melhor para ti
entrares na vida coxo ou manco, que, tendo dois pés e duas mãos, seres
lançado no fogo eterno. E se teu olho for causa de queda (‘skandalizei’
indica "tropeço", quer dizer, deter-se, por uma queda, em meio ao caminho
da vida!), arranca-o e lança-o longe de ti. Melhor te é entrar com um só
olho na vida, que, tendo dois, ser lançado no fogo do inferno" Mateus, 18,8.

Estranho dilema esse que assinala dois fogos: o da vida e o do inferno


(Gehena), o que ilumina e o que queima.
O que nos eleva e o que nos abate.
O do inferno está em relação com o inverno, com o mundo tenebroso dos
mortos, com o subsolo, com o fogo vulcânico talvez.
Sua cor é opaca e carece da cálida luz que o vivo emite.
Contrariamente, não terá a verdadeira saúde a ver com o transparente,
com o superficial — no sentido de estar sobre a superfície, sobre a bela pele
da terra — e também com o dinâmico? O infernal quer tudo para si; por
isso, Hades é também Plutão, o Rico, guardião de seus mananciais de ouro
e prata, enterrado em vida.
O celestial — ‘tin zoín’ "a vida" —pertence a Zeus, o Vivo Zeus, que, como
escreve Ésquilo, "é tudo o que está por cima de tudo". Helíades, frag. 80.
O celestial olha a terra com amor, enquanto o infernal se vê corroído pela
inveja, pelo ressentimento e olha para o céu com ansiedade.
Um fogo eterno não pode ser senão produto de uma ambição eterna, de um
desejo insaciável.
Porém o fogo circunstancial, em seu momento, é a chispa sobre a qual
sopramos o cristal de nossa lâmpada.
O olho ou a mão que deve ser arrancada é a que tende à fixidez; o membro
que, separando-se da totalidade, não se dá conta de que a regra de ouro do
metabolismo é o aberto, a homeostase, a homeotermia — nem muito nem
pouco calor — e a sincronia.
Um belo conto popular de origem mongol ilustra este princípio.
Um dia todas as partes do corpo entraram em disputa.
Nenhuma mais queria estar a serviço de outras.
Os pés disseram às pernas: 'Não as levaremos mais; ide sozinhas'.
As mãos exclamaram: 'Não trabalharemos para mais ninguém; trabalhem
vocês'.
A boca sussurrou: 'Estou farta de alimentá-los; não mastigarei mais comida
para a barriga'.
Os olhos disseram: 'Também nós estamos cansados. Agora olhem vocês'.
E então, como as partes do corpo estavam em guerra entre si, deixaram de
ajudar-se.
Não passou muito tempo até que começaram a debilitar-se e se tornaram
enrugadas e secas.
Quase que imediatamente, se deram conta de todos os infortúnios que
essas disputas traziam e decidiram reconciliar-se e ajudar-se como antes.
Os olhos tornaram a olhar, os pés a caminhar, as mãos voltaram ao
trabalho e a boca a comer.
Unidas, todas as partes vivem agora em boa saúde.

O pensamento gnóstico atribui várias conotações complementares à


Sabedoria: ela é o "primeiro criador universal", mas é também o "silêncio
eterno".
O silêncio como matriz da palavra, o vazio como suporte do cheio.
Freqüentemente os cristãos gnósticos, e certamente também os cabalistas,
descrevem Deus como um corpo bivalente cuja natureza inclui elementos
tanto masculinos quanto femininos.
O trabalho que nos é exigido é redescobri-lo em nós mesmos.
Transformar-nos em andróginos espirituais.
Voltar a ser crianças.
No Evangelho Segundo Tomé está dito: "Estas crianças de peito
assemelham-se aos que entram no Reino dos Céus".
Eles (os discípulos) perguntaram-lhe: Se formos pequenos, entraremos no
Reino? Respondeu-lhes Jesus: "Quando reduzirdes dois a um e quando
fizerdes o interior como o exterior, e o exterior como o interior, e o de cima
igual ao de baixo, e quando fizerdes do macho e da fêmea um só e o
mesmo ser, então entrareis (no Reino)".
Labor de unificação interior que é um redescobrimento, uma teshubá em
sentido bíblico: a resposta da vida à pergunta da luz.
Porém, para que o Espírito interrogue, remova e se manifeste, o discípulo
deve antes abrir-se.
Cruzar seus hemisférios através do corpo caloso do cotidiano, única ponte
para o maravilhoso, já que na mesma fonte gnóstica de Tomé somos
advertidos: "Procura conhecer o que está diante dos teus olhos, e o que te
é oculto te será revelado".

Continua

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