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MARIA REGINA CELESTINO DE ALMEIDA Metamorfoses indigenas Identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro 2+ edigao } 1 | | CAPITULO IL O projeto de colonizacao e os aldeamentos: fungoes e significados diversos As populacdes indigenas foram indispensiveis ao projeto da colonizacao tanto na América hispanica quanto na portuguesa, sobretudo em seus primérdios, quando a pouca disponibilidade de capitais, a abundancia de terras, a alta densidade demografica indigena e a rarefeita populagao euro- peia eram caracteristicas predominantes. Somem-se a isso as concepgoes de sociedades fortemente hierarquizadas por parte daqueles que para case dirigiam e delineavam um projeto colonizador que deveria garantir altos lucros e baixos custos, e “cuja reproduce ou reiteracio temporal depen- deria sobretudo de uma oferta eldstica de homens, terras ¢ alimentos”." Conclui-se dai que a alternativa mais vidvel ¢ racional para a exploragao econémica do Novo Mundo nao podia, absolutamente, prescindir dos po- vos indigenas: através de relacdes de aliancas e/ou de conflitos, os europeus buscavam obter deles as terras, 0s alimentos e 0 trabalho, necessdrios aos seus empreendimentos coloniais. © Rio de Janeiro nao fugiria a regra. No decorrer de trés séculos, seu es- pago colonial modificou-se ¢ ampliou-se bastante com 4 incorpora¢ao dos sertoes ¢ de seus habitantes através das expedigées de descimento, resgate e guerras justas, que deslocavam os indios de seus locais de origem para integr4-los aos noves nticleos portugueses e/ou a forga de trabalho na cida- dee em seus arredores. As expedicdes de descimento tiravam 0s indios de suas aldeias de origem para reuni-los nas novas aldeias criadas junto aos mlicleos portugueses e constituiram sempre a principal fonte de origem reprodugio das populagées indigenas nos aldeamentos, tendo sido por- tanto atividades fundamentais para a Coroa. Os resgates (troca de prisio- neiros condenados ao sacrificio para torné-los escravos) ¢ as guerras justas 88 ‘Metamorfoses indigenas (realizadas contra os grupos hostis aos portugueses e/ou que recusassem a evangelizaco) foram as duas formas legais de escravizacao indigena man- tidas, grosso modo, por quase todo 0 periodo colonial. Essas trés formas de integracao dos indios 4 colénia portuguesa deram margem a indmeras disputas na legislagao e na pritica, como se veré mais adiante, O conceito de sertao, tao essencial no estudo desta tematica, ¢ entendi- do aqui em sua concepgao colonial, ou seja, nio apenas em termos geogri- ficos, mas também numa perspectiva cultural e mével, pois ao se aplicar a regides onde a administracao portuguesa ainda nao se fazia presente mo- dificava-se frequentemente ao longo do tempo. O sertao era visto como 0 mundo da desordem e da barbirie, habitado por indios selvagens; espaco, portanto, que devia ser preenchido pela ordem colonizadora? Os aldeamentos foram o palco privilegiado para a insergéo das popu- Jagées indigenas na ordem colonial ¢, a julgar pelas intensas disputas que se estabeleceram em torno deles, pode-se inferir o consideravel interesse que despertavam nos varios segmentos sociais da colnia. Indios, colonos, missionaries ¢ autoridades locais e metropolitanas enfrentavam-se na le- gislacao ¢ na pratica por questées relativas a realizagdo de suas expectati- vas quanto 4 formagao e ao funcionamento dessas aldeias. Lembrando o alerta de Sidney Mintz para as muitas possibilidades de significados que uma mesma aco pode comportar, de acordo com a posigao social dos individuos, deve-se reconhecer que o ingresso dos indios nas aldeias tinha, evidentemente, significados diversos para eles e para os demais agentes sociais da colénia,* Do século XVI ao XIX, as aldeias indigenas integraram o projeto de colonizagio , ao longo desse tempo, adquiriram diferentes fungGes e sig- nificados para os indios, colonos ¢ missiondrios. A realizacao das expec tativas desses grupos dependia das relagdes de alianga ¢ disputa que se estabeleciam entre eles na vivéncia colonial. Tais expectativas se alteraram ao longo dos séculos por varios fatores, incluindo, além das diferentes légi cas dos periodos da histéria da colonizagao, a dindmica das relagdes entre 0s atores envolvidos. Afinal, os sujeitos ¢ os grupos sociais se constroem nas experiéncias de suas relacdes historicamente vivenciadas com outros sujeitos e outros grupos.* O projeto de colonizagio € 9s aldcamentos 9 0 projeto colonial: associacao entre Coroa e Igreja Os projetos de colonizagao, longe de serem reduzidos a esfera do econd- mico, devem ser vistos em sua perspectiva global de empreendimento politico, econémico e religioso. Afinal, na Europa do Antigo Regime, so- bretudo nos paises ibéricos, o temporal ¢ o espiritual estavam fortemente associados ¢ os ideais da conquista ¢ da colonizagao tiveram sempre um forte cardter religioso. Se a conquista do territério podia ser feita por meio da violéncia ¢ da destruigio da organizacao social dos grupos indigenas, 0 projeto de colonizacao implicava a reorganizagao dessas populagdes de formaa integré-las.4 nova ordem que se estabelecia. A legislaga0 indigenae as missées religiosas cumpririam o papel de rearticular estruturas sociais para incorporar as populages indigenas na ordem colonial. Conforme ex- pressio de Todorov, a eficacia do colonialismo ¢ superior & do escravismo, e os defensores dos indios, entre os quais Las Casas, utilizaram sempre © argumento de que, bem tratados, 5 indios seriam muito mais tteis Coroa.’ Afinal, as populagées indigenas deviam servir 4 colonizagao nio apenas como mao de obra, mas também como stiditos responsaveis pela garantia, ocupagio e manutengio da terra ¢, portanto, as coroas ibéricas tinham mais interesse em integrd-las de forma pacifica do que em dizima- las através das guerras ou simplesmente escravizé-las, Além disso, nao se pode esquecer a dimensao religiosa da expansao, que incluia como um de seus ebjetivos primordiais a cristianizagio dos povos do Ultramar, como evidencia a observagdo inicial em inimeros des- pachos reais dirigidos aos vice-reis, governadores ¢ bispos: “Porquanto a primeira e principal obrigacao dos reis de Portugal é promover a obra da conversio por todos os meios ao seu aleance” ‘As coroas ibéricas associaram-se a Igreja no projeto colonial, dando 4s missdes religiosas a funcao de expandir a evangelizacio e abrir novas fronteiras. Através do Padroado Real Portugués, Coroa ¢ Igreja estabele ciam uma alianga estreita, definindo direitos ¢ deveres, que conferiam & primeira o titulo de “patrono das missbes catdlicas e instituigées eclesids- ticas na Africa, Asia ¢ Brasil”.’ As ordens religiosas, muito superiores ao clero secular em termos éticos, disciplinares e intelectuais, tiveram, entao, por iniciativa do préprio monarca portugues, um papel essencial na co- 0 ‘Metamorfoses indigenas lonizagao do Brasil: encarregavam-se da evangelizacao dos indios, com 0 objetivo de transforma-los em stiditos cristaos que garantiriam a ocupa¢ao do territério sob a administragao portuguesa e constituiriam a mao de obra necessdria a ser repartida entre colonos, missiondrios e Coroa. Cabe destacar a peculiaridade das missées religiosas na América, que inovaram ao estabelecer a pratica de reunir ou reduzir indios de diferentes etnias em aldeias novas criadas especialmente para esse fim, com regras préprias ¢, de modo geral, préximas aos micleos da colonizagio.* No Brasil, a Companhia de Jesus destacou-se das demais ordens, ten- do alcangado no Rio de Janeiro colonial consideravel poderio politico ¢ econdmico, que lhe foi conferido, em grande parte, pelo importante papel na integragao dos indios A colénia, desde a guerra da conquista. Superio- res aos membros das demais ordens em formagao intelectual, disciplina ¢ eficiéncia, os padres da companhia foram, desde cedo, privilegiados pelas autoridades metropolitanas no tocante As questdes indigenas na América portuguesa. Chegaram com Tomé de Souza e foram os tinicos a desafiar, no Brasil, colonos e autoridades pela escravizacio irregular dos indios. A atuagao dos jesuitas nas colénias tem sido objeto de discussées e con- trovérsias que, em geral, tendem a classificd-los nos extremos de santos martires da colonizac4o ou de espertos empresdrios pré-capitalistas, numa visdo dualista entre 0 ideolégico ¢ 0 econdmico, reduzindo e simplifican- do extremamente a complexidade do processo colonial. Sem intengao de aprofundar essa discussao, cabe ressaltar que se 0s préprios projetos de colonizagao das monarquias devem ser vistos em sua perspectiva global de empreendimento politico, econdmico e religioso, como pensar sobre uma ordem religiosa, criada na Europa da Contrarreforma, que assumiu nitida- mente com a Corea portuguesa a missio de levar para o Ultramar a verda- deea salvagio do Evangelho? Parece licito afirmar que o principal objetivo da companhia era religioso, ¢ se adquiriu forga politica e econémica no decorrer dos trés séculos da colonizagao, isso se deu de forma concomitan- te ao esforco ideolégico da catequese. Cabe lembrar que 0 sucesso da con- versio e da prépria Companhia de Jesus na América portuguesa dependia fundamentalmente do sucesso do empreendimento colonial, ao qual os jesuitas igualmente se dedicaram. Estabeleceram-se na regio, fundaram © colégio, criaram aldeias, instalaram fazendas e desenvolveram outras © projeto de colonizasio ¢9s aldeamentos a atividades econémicas com as quais construiram considerdvel patriménio, para o que exploraram, nao resta divida, o trabalho dos indios ~ aldeados e escravos ~ e dos escravos negros. Para a realizagao de seus objetivos nao abriam mao do poder temporal e da coergao fisica, A forga politica que al- cangaram em varias regides da América decorria, no meu entender, do re~ conhecimento por parte das autoridades da eficiéncia de sua atuacao junto as populagdes indigenas, principalmente no que diz respeito & organizagao © ao funcionamento das aldeias indigenas, tio essenciais para a expansao das fronteiras portuguesas. No Rio de Janeiro, foram responséveis pela or- ganizacio e pelo funcionamento da maior parte delas, incluindo as mais importantes, que atravessaram os trés séculos da colonizagao. As principais aldeias do Rio de Janeiro ea ocupacao do territério O Rio de Janeiro fora ocupado por razées estratégicas, ¢ suas condigées geograficas contribuiram para que mantivesse sempre as funcdes milita- res ¢ defensivas para as quais as aldeias indigenas desempenharam papel fundamental. Sao Lourenco, sob a direcao do principal Arariboia e admi- nistracao espiritual ¢ temporal dos padres da Companhia de Jesus, ini- ciou a politica de aldeamentos no Rio de Janeiro. Estabeleceu-se, como visto anteriormente, para que os temiminés aliados dos portugueses nao se ausentassem do Rio, garantindo a ocupagio ¢ a soberania do territério para Portugal. Eram grandes as expectativas das autoridades colonials e mnetropolitanas em relagio a esses indios, A terra era dada como recom- pensa pelos servigos prestados ao rei, mas implicava uma série de obriga- bes. Os novos séditos cristaos do rei constitufam a principal forca militar contra 08 indios hostis ¢ os estrangeiros, que continuaram ameacando a regido até o século XVIII, e deviam prestar servigos essenciais para autori- dades, missionarios ¢ colonos, sob sistema de rodizio ¢ pagamento prévio. Ao grande chefe temiminé foram concedidas terras escolhidas por ele na banda d’além, as quais Ihes foram passadas por escritura de sesmaria. As intmeras concessées feitas a Arariboia, das quais trataremos mais adiante, Jo aos sdo reveladoras da extrema dependéncia dos portugueses em rela 92 Metamorfoses indigenas. indios aliados ¢ dos agrados feitos as suas liderancas, sobretudo nos sécu- los XVI e XVIL Consta que a aldeia de $2 Lourengo se estabeleceu inicial- mente no Rio de Janeiro em tetras dos jesuitas Por questées de defesa, tal qual aparece no mapa quinhentista de Luis Teixeira, sob a denominacio de Aldeia de Martinho. Desde entao, o bravo Martim Afonso destacou- se como auxiliar infatigavel do capitao-mor em todos os combates contra os franceses e os tamoios, Em 1570, o padre Goncalo de Oliveira se refe ria a “aldeia de Martim Afonso Arariboia, de muita gente temimind, toda crista”,” gente essa provavelmente misturada aos tupiniquins, tupinambas, goltacazes ¢ talvez outros que devem ter saido juntos do Espirito Santo. Em 1573, Arariboia foi com sua gente para a banda defronte da cidade ¢ se entregou aos cuidados de sua aldeia, que se estendeu da montanha de Sao Lourenge por todo o lugar denomi nado Praia Grande até os areais de Icarai, ¢ aumentou de ma: a que jem 1578 no haviam terras para serem dadas (,,,] aos parentes que os principais daquela aldeia queriam mandar vir {...] a fim de com cles con viverem como eles mesmos alegaram."” E de se supor que a segunda aldeia do Rio de Janeiro, Sao Barnabé, foi criada a fim de abtigar parentes e amigos dos principais de Sio Lourenco: Vasco Fernandes, Antonio Salema, Salvador Correa, Antonio da Franca e Ferndo Alvares requercram terras, compreendendo quatro léguas da ban- da dalém do rio Macacu, alegando “por si e seus irmaos haverem man Gado vir da serra seus parentes para povoarem a capitania e nio Ihes ser Possivel acomoda-los na sua aldeia por ja serem muitos ¢ Poucas as terras pelas doacdes feitas aos colonos portugueses”" A terra Ihes foi concedida por despacho de Salvador Correia de Sd em 1578 e confirmada em Lisboa em 1583." Foi também administrada pelos jesuitas ¢ estabeleceu-se, de inicio, em terras do colégio, em Cabucu, de onde se transferiu para a regido de Ma- cacu.! Além dos temiminés, ha informacées de que a aldeia reunia indios moromomins' e goitacazes. E provavel, no entanto, que incluisse também indios tupiniquins e tupinambds, que haviam se misturado aos demais nas aldeias do Espirito Santo. © projeto de colonizagao ¢ os aldeamentas O Rio de Janeiro nos primordios da colonizagdo, Fonte: Luiz Teixeira. Carta do Rio de Janciro, ¢.1573-1578 apud Goaracy, 1944, p. 95. o4 Metamorfoses indigenas Essas duas aldeias iniciaram a ocupacdo da capitania nos arredores da cidade ainda no século XVI, Nessa época, ao longo do litoral, explorava- se 0 corte do pau-brasil, produziam-se agticar ¢ mantimentos (mandioca, milho, feijao, arroz) e, em menor escala, algodao e tabaco.!5 No entanto, a capitania se expandia, e era necessdrio ocupar novas areas, 0 que ainda se daria com a guerra contra estrangeiros ¢ indios hostis. A aldeia de Sao Pedro se estabeleceu em Cabo Frio por questies estratégicas, pois, ao se iniciar o século XVII, a regio ainda era reduto dos tamoios, que, aliados aos franceses, contrabandeavam o pau-brasil, constituindo um obstaculo A colonizagao portuguesa. Holandeses ¢ ingleses também faziam ali suas ineursdes, Apés a ofensiva de Constantino Menelau, governador do Rio de Janeiro, com 400 indios de Sepetiba ¢ portugueses voluntarios, foram langadas as bases para a ocupagao da regido, que se daria com o estabeleci mento de duas aldeias a cargo de dois descendentes de Arariboia: seu neto, Martim de Sousa, principal de Sao Lourengo, e Amador de Sousa, seu filho, principal da aldeia de Sao Barnabé.! Ambas seriam administradas pelos religiosos da Companhia de Jesus. Porém, por nao haver indios suficientes em Sao Barnabé e em Sido Lourengo, segundo o padre superior da primeira, para a manutengao das quatro aldeias, decidiu-se que deveriam vir indios ‘do Espirito Santo, com os quais se fundaria apenas uma aldeia. Para tal, 0 teitor do colégio solicitou sesmaria, e em 1617 iniciou-se a aldeia com 500 indios trazidos pelos jesuitas daquela capitania. A maior parte deles veio da aldeia de Reritiba e, entre eles, com certeza, havia muitos goitacazes, aos quais se juntaram os seguidores de Constantino Menelau, que deviam in- cluir alguns tamoios, pois em 1620 0 provincial visitou o local e batizou um grupo de meninos tamoios, “com a maior alegria dos pais” Sua funcao principal era combater, além dos estrangeiros, outros goitacazes ¢ tamoios que “infestavam’” a regio, ¢ © fizeram com extrema violéncia, sendo por isso muitissimo elogiados. O padre Antonio de Matos ressaltou 0s abjetivos defensivos da aldeia, afirmando que, para eles, jesuftas, 0 principal seria Procurar a conservagio ¢ salvagio do gentio vizinho daquele lugar cha- mado Goitacazes, aos quais até agora nao pode haver entrada por sua bar- baria € 0 sitio em que vivem ser muito defensivel por razdo dos brejos € Jagoas com que os estrangeiros se embaragam." projeto de colonizagio ¢ os akdeamentos 95 Mais tarde, outros goitacazes ¢ guarulhos préximos 4 regiao foram ali aldeados,” aumentando o contingente populacional da aldeia que se man- teve sempre como a mais populosa do Rio de Janeiro. A aldeia de Sao Pe- dro parece ter cumprido bem sua fungio de defesa. pois se destacou pela violéncia no ataque aos indios hostis e aos estrangeiros, razio pela qual, como veremos, teve forte poder de barganha junto 4 Coroa. Convém ressaltar a situagéo peculiar de Cabo Frio, que, tendo se tor- nado capitania no século XVII ¢ constituide circunscrigao 4 parte, sujcita ao governador-geral da Bahia, que nomeava as autoridades locais, esteve sempre dependente do Rio de Janeiro, poisa fiscalizagao, o policiamento a arrecadacio fiscal competiam aos seus governadores, por estarem mais préximos.” Em termos econémicos, Cabo Frio no teve muito destaque, tendo se especializado mais em atividades extrativistas, como a pesca, in- dlusive de baleias, ealgumas ilegais, como o corte de madeiras ¢ a extragao de sal," embora no final do século XVIII contasse com 25 engenhos e nove engenhocas.”? Foi sempre uma area muito visada por estrangeiros, dai sua importincia estratégica, bem come a forga da aldeia de S40 Pedro na re- gido, que se notabilizou por suas atividades de defesa. A dependéncia de Cabo Frio em relaco ao Rio, no entanto, nao foi uma excecdo. As fungées militares da cidade do Rio somaram-se as de cida- de polo, a partir da qual outras regides eram incorporadas 4 colonizacao, num processo continuo de lutas frequentes no apenas contra os inimigos estrangeiros, mas principalmente contra os indios que em varias regiées opunham forte resistencia 4 colonizagao. Por suas condicées naturais, 0 Rio adquiriu o importante papel de entreposto comercial ¢ porto de ex- portacdo para a metropole. Porto principal numa regiao onde as condigoes geogrificas, além de permitirem sua comunicagdo direta com as dreas de produgéo agricola dos arredores (desde reconcavo da Guanabara, pro- dutor de agicar nos séculos XVI e XVI, até a regio das minas, no XVII, 0 vale do Paraiba, produtor de café no XIX), impediam o crescimento de outras cidades que Ihe fizessem concorréncia.”” Apesar da considersvel is proeminéncia politica e econémica que as fungdes militares, comerc © portuarias deram a cidade do Rio de Janeiro desde 0 século XVI, as ca- deias de montanhas que a circundavam dificultavam seu crescimento € expansio, fazendo com que a urbanizago de seus arredores ocorresse em. 56 Metamorfoses indigenas consequéncia de seu préprio desenvolvimento. As cidades circunvizinhas cresciam, enti, sem autonomia, ligadas & cidade metrépole, da qual de- pendiam.™ As novas areas incorporadas 4 ordem colonial desenvolviam- se vinculadas em termos econémicos, politicos e militares & capitania do Rio de Janeiro, A regiao sudoeste da baia de Guanabara seria ocupada também no inicio do século XVII com o estabelecimento de duas aldeias, S40 Francisco Xavier de Itinga (depois Itaguai), sob a administragao dos jesuitas, ¢ Mangaratiba, sob o provavel controle de Martim de $4. Ambas foram criadas por iniciati- va das autoridades coloniais, mais interessadas, talvez, nos diferentes servi- G08 que seus indios podiam prestar em variadas atividades do que propria- mente para garantir a ocupagao da drea, como ocorrera em Cabo Frio. Os préprios jesuitas deviam, com certeza, ter tido grande interesse em ter uma aldeia instalada nas imediagdes de sua grandiosa fazenda de Santa Cruz, Apesar de Joaquim Norberto de Souza e Silva ter destacado controvér- sias sobre as origens da aldcia de Sao Francisco Xavier de Itaguai (inicial- mente chamada Itinga), baseado na opinido de Pizarro de que ela teria sido fundada por Martim de $4, nao ha razdes para se duvidar da hipétese do marqués de Lavradio, sustentada por Serafim Leite e bastante comprovada pela documentacao.* Segundo estes tiltimos, a aldeia teria se originado a partir da catequese de indios carijés da lagoa dos Patos, estabelecidos pelos jesuitas na ilha de Marambaia, de onde foram transferidos para o sitio de Itaguai, préximo a sua fazenda de Santa Cruz.”* Q jesuita Francisco Carnei- 70, reitor do colégio, ao visitar os padres em missdo com os indios carijés, na regio de Laguna, constatou a impossibilidade de ali fixar residéncia de- vido aos ataques frequentes dos paulistas ¢, dadas as necessidades de indios no Rio de Janeiro, optou por descer os que estivessem de acordo. Em 1627, por decisao sua e ordem de El-rei e de Martim de Si, realizou um descimen- to de 400 almas ¢ estabeleceu os indios em terras do colégio, em Guaratiba, com ordem de que se Ihes dessem mantimentos e ferramentas pelo espago de seis meses até os indios lavrarem as terras ¢ se sustentarem.2” A aldeia deve, portanto, ter sido fundada pelos jesuitas, por ordem de Martim de $4. Sio Lourengo, $0 Barnabé, $40 Pedro ¢ Sao Francisco Xavier de Itinga foram as quatro principais aldeias do Rio de Janeiro que aparecem com mais frequéncia na documentagio e atravessaram praticamente todo o pe- freq ag; Pp © projeto de colonizagio eos aldeamentos 7 riodo colonial. Estiveram todas sob a administracao dos jesuitas ¢ foram criadas, de acordo com Serafim Leite, para atender objetivos de defesa: 08 sitios em que ficaram as trés aldeias S. Lourengo (Niteréi), 8. Francis co Xavier (Itinga-Itaguai), $. Barnabé (Macacu) caracterizam sobretudo © pensamente de defesa 4 roda do incomparivel centro geografico flumi- nense, que éGuanabara, uma de cada lado da baia, ¢ outra no fundo dela, formando o tritngulo defensive da cidade. S. Pedro de Cabo Frio cra como que a guarda avangada, para a defesa do Promontério, onde de vez em quando os inimigos se atreviam a rondar.* Além. dessas, 0s jesuitas criaram mais duas aldeias de pouca expressio na capitania: a aldeia dos coroados, no século XVIII, as margens do rio Bossarahi, a trés léguas da vila de Cantagalo, ¢ a de Nossa Senhora das Neves ¢ Santa Rita, estabelecida no final do século XVII, préximo 4 fox do rio Maca¢ e & Fazenda de Sant’Ana da Companhia de Jesus. De acordo com Silva, esta iltima foi criada com a intengSo de atrair os indios guarulhos para o trabalho nas lavouras ¢ para fazer frente aos temiveis goitacomo- pis,” inimigos dos portugueses.”” Nossa Senhora da Guia de Mangaratiba foi a primeira aldeia nao jesui- tica do Rio de Janeiro. Estabelecen-se com indios tupiniquins, trazidos de Porto Seguro por Martim de Sd, aos quais depois se misturaram outros, vindos de diversas aldeias. Martim de $4 demarcou e cedeu parte de suas terras para os indios se estabelecerem e nela cultivarem. Foi sempre uma aldeia pequena, que nao contava com a assisténcia dos jesuitas, ¢, até 0 século XVIII, nao teve missionarios residentes. No século XVII foi paleo de violentos conflitos contra autoridades nao reconhecidas pelos indios, conforme veremos mais adiante.” A capitania da Paraiba do Sul (ex-Sao Tomé), localizada entre a do Rio de Janeiro ea do Espirito Santo, esteve sempre (tal come a de Cabo Frio) estreitamente vinculada a primeira, Fracassadas as primeiras tentativas de ocupacio, devido principalmente as hostilidades dos goitacazes, a entéo chamada capitania de $0 Tomé retornou 4 Coroa portuguesa, em 1619, ficando sob a jurisdi¢do da do Rio de Janciro.” © donatario abandonou a capitania ¢ foi para o Espirito Santo 98 “Metamorfoses indigenas endo encontrando as trés nacdes barbaras de indios goitacomopis, goaita- caguagus € goitacajacoritos alguma resisténcia tornaram a povoar a terra, que ultimamente deixaram no ano de 1630, por extingui-los desde a costa do mar, até o interior do sertio, as duas aldeias catdlicas de Cabo Frio de Reritiba.” No inicio do século XVII, os “Sete Capitaes dos Campos dos Goitaca- zes”, moradores notaveis do Rio de Janeiro, requereram aquelas terras com © projeto de criar gado. Eles as receberam em sesmarias entre 1627 ¢ 1631, em recompensa por servicos prestados 4 Coroa nas lutas contra franceses ¢ indios. Dai se originou a colonizagao dessa regidio, que, possuida e povoa- da por moradores do Rio de Janeiro, teve, como diz Vivaldo Coaracy, sua histéria intimamente ligada aquela cidade.** Os até entio temiveis goita- cazes, jé bastante reduzidos pelos ataques dos indios das aldeias jesuiticas nao duvidaram sacrificar seus antigos ddios e se coligaram. [...] Tiveram pois de ceder o terreno jé a intrepidez dos conquistadores, jé & superiori- dade das armas de fogo, ¢ os que fugiram buscando no amparo das ma- tas a conservacéo da existéncia foram seguidos, deixando os campos ¢ as florestas cheios de cadaveres, ¢, aprisionados ¢ reduzidos, foram por fim catequizados pelos padres da companhia e vieram aumentar a povoagio da aldeia de Sao Pedro. Em 1648, problemas e dificuldades na ocupagao ¢ delimitacao das ter- ras dedicadas principalmente 4 pecudria deram a Salvador Correa de Sie Benevides, entao governador do Rio de Janeiro, a oportunidade de tornara dividi-las com os capitaes, beneficiando a si préprio, aos beneditinos e aos jesuitas. Isso deu inicio a uma s¢rie de conflitos, que se intensificaram com a constitui¢io da capitania de Parafba do Sul, doada em 1674 ao visconde de Asseca, por influéncia de seu pai, o governador Sé e Benevides, junto ao rei. As disputas nao terminaram ¢ apés a ocupacao da regido por tropas do reino, em 1752, 0 rei decidiu-se pela compra da capitania.” Os indios continuavam muito presentes nessa histéria, tanto nas peti- es que se faziam ao rei para justificar as mercés solicitadas quanto nos sertées adjacentes, ainda desafiando os portugueses: quando, em 1656, os pen Boyeue wee un exe oe ‘0 projeto de colonizagio.e os aldeamentos 29 moradores de Campos encaminharam ao governador do Rio de Janeiro peticdo para a criacdo de uma vila, alegavam a necessidade de que “se po- voem as terras deste Estado e principalmente pelo fructo que se tira da domesticagao e paz dos gentios e conservacao de suas almas”.”” $6 no final do século XVII seria criada uma aldeia indigena na regiao, com a redugaéo dos indios guarulhos, que, apés a derrota das goitacazes, continuavam do- minando a regido circunvizinha, atacando fazendas no vale do rio Muriaé e fazendo incursées até Macaé.* Santo Antonio de Guarulhos foi criada com indios guarulhos reduzi- dos por capuchinhos franceses (desde 1659) ¢ aldeados pelos italianos em 1672. Uma Carta Régia de 1699 colocou-a sob administracao dos capuchos da Provincia da Concei¢ao e, o Alvara de 1700 concedeu-lhe duas léguas de terra. Os padres capuchos foram muito exigentes e rigidos com os in- dios, o que provavelmente incentivava as fugas bastante frequentes. Ao se iniciar o século XVIIL, a aldeia se encontrava em situa¢ao precaria e dispu- tas por questdes de terra desencadearam sérios conflitos entre os jesuitas, a Camara da Vila de Sao Salvador e os indios guarulhos, que, reagindo violentamente, “estendiam suas correrias a Macaé, trucidando os viajantes que se dirigiam ao Rio de Janeiro e aos mais moradores daquela paragem, afugentando-os e roubando-os’. Extinta pelo abandono dos indios no final do século XVIII, o aforamento de suas terras serviu para financiar a aldeia de Sao Fidélis,“° que entao se formava com indios coroados ¢ muitos guarulhos que voltaram a se aldear. Em meados do século XVII, 0s capu- chinhos italianos aldearam outros indios guarulhes no rio S. Jodo de Ipuca, entre Bacaxé ¢ Macaé, formando a aldcia de Ipuca, que pouco aparece na documentagio.* No final de século XVIII ¢ inicio do XIX, os indios coroados, guaru- lhos ¢ puris constituiam ameacas 4 ocupa¢do portuguesa nos sert6es norte e sul do Rio de Janeiro, préximos 4s atuais fronteiras dos estados de Minas Gerais e So Paulo, respectivamente. Atacavam os portugueses no médio vale do Paratba, regido para onde a ocupacdo portuguesa se expandia pela necessidade de novas terras principalmente para criagao de gado, que, em expansio desde o século anterior, ganhava novo impulso nos anos 1700. A necessidade de abastecer as minas de ouro e a abertura de caminhos para elas incentivou o desenvolvimento da produgao de agticar e de man- 100 Metamorfoses indigenas timentos, bem como a penetracdo de paulistas que estabeleceram fazendas agricolas ¢ pastoris no interior da capitania,* ‘Ao se finalizarem 08 anos 1700, o Rio de Janeiro, capital da colénia des- de 1763, jA se tornara principal centro comercial e portudrio do Brasil. A cidade contava com cerca de 45 mil habitantes; abrigava, desde 1751, 0 se~ gando Tribunal da Relacio da colnia; ¢ a Assembleia Municipal recebera, ‘em 1757, 0 titulo de Senado da Camara.** Nao obstante, os sert6es da capi tania continuavam povoados por “indios bravos”. Os puris ¢ os coroados enfrentavam-s¢ ¢ eram um obstaculo ao avango da ocupagao que, no norte fluminense, s¢ dava a partir dos Campos dos Goitacazes, seguindo em di- redo inversa ao curso do rio Paraiba.* _Ambos haviam deixado a serra da Mantiqueira acossados pelos hotocudos ¢ estendiam-se pelos sertdes norte ¢ sul do atual estado do Rio, proximos ao rio Paraiba, onde foram funda- das as ultimas aldeias. “Assustados os fazendeiros com suas depredagies, pelos assassinatos que viam cometer diariamente em pessoas de sua familia ou conhecimento, abandonaram as suas fazendas na margem setentrional do Paraiba; os in- dios acorogoados com este triunfo redobraram de animo ¢ vieram perse gui-losna margem oposta do rio, mais audazes c atrevidos do que nunca.** ‘As tiltimas aldeias do estado do Rio foram fundadas para que os fazen- deiros pudessem se instalar em paz na regidio com suas lavouras e criagao de gado.* As margens do rio Paraiba estabeleceramse trés aldeias pata abri- gar esses indios que, a0s poucos, eram reduzidos pelos capuchos italianos e portugueses: Sao Fidélis (1779), &s margens do rio Paraiba, foi fundada com indios coroados por capuchinhos italianos ¢ com os rendimentos da extinta aldeia de Santo Antonio de Guarulhos; $40 José de Leonissa da Aldeia da Pedra, as margens do rio Paraiba na coniluéncia com o rio Pomba, esta- beleceu-se para aldear os puris, que, inimigos dos coroados, ndo deviam ficar na mesma aldeia. Nao obstante, dadas as dificuldades na escolha do Jocal e na submissio dos puris, eles sé se aldearam alguns anos depois, em Santo Anténio de Pédua, que, instalada na margem meridional do Paraiba, na confluéncia com 0 rio Pomba, acabou incluindo, além dos puris, seus inimigos coroados. tor a s O-wol 10 0 projeto de colonizagio e of aldeamentos “OUpeUT ‘P61 ‘AND op esinbsad ap ormogepy ‘osvertey op ong op ooMoAsIy sbry ‘OSOPIED VOLTEUIE]Y OID ‘IlOY “[RiO[OS woods eu sopeutzoy seUD}pUy soyaLuRappe sled © ay SEAN NS) s)3p14°S HE'S vwop.yg 29 aiV'S i TROOT op J » o 12 ‘Metemorfoses indfgenas Na regiao sul do Rio de Janeiro, também préximo ao rio Paraiba, ou- tros puris ¢ coroados se aldearam no final do século XVIII ¢ inicio do XIX nas aldeias de Sdo Luiz Beltrio, Valenga e Santo Antonio do Rio Bonito, fundada em 1824-25 para abrigar os indios fugitives da aldeia de Valenga.”" Esses aldeamentos tardios no serao objeto de andlise no Ambito deste trabalho. Apesar de terem se estabelecido com objetivo semelhante ao dos demais no sentido de expandir as fronteiras e garantir a soberania para Portugal, diferencas fundamentais se apresentam quanto & integragao dos indios e suas relagdes com os colonizadores. © tempo era outro e no se inclui nos periodos aqui priorizados. Algumas aldeias, como jé foi dito, atravessaram os trés séculos da co- lonizagao e, apesar das lacunas ¢ dificuldades para se pensar sobre sua manutengdo ¢ reproducdo demogrifica ao longo desse tempo, algumas consideracées so possiveis e necessirias para fundamentar uma das mi- nhas principais hipéteses, a de que as aldeias coloniais foram também um espaco indigena, no qual os indios encontraram possibilidades de se adap- tara colénia, recriando suas tradigées ¢ identidades. Manutengdao e reproducdo nas aldeias: aspectos demograficos ‘A anilise sobre a reproduco demogrdfica nas aldeias coloniais é tarefa complicada, dada a escassez de fontes, sobretudo de dados quantitativos que, até o século XVIII, além de raros, apresentam limites intrinsecos a0 seu carater protoestatistico. Nao obstante, o cruzamento de alguns dados numéricos com fontes qualitativas permite delinear certas tendéncias de- mogréficas que apontam para a confirmacdo de algumas hipéteses que te- nho procurado demonstrar ao longo deste trabalho. Uma das caracteristicas basicas das aldeias, desde suas origens, era seu constante reabastecimento com novos contingentes humanos através de descimentos subsequentes, do ingresso de indios vencidos nas guerras contra os portugueses, ou dos transferidos de outras aldeias ou regides por motivos variados, inchuindo solugées para cativeiros considerados injustos. As informagées sobre as chegadas de novos grupos as aldeias do Rio de Ja- Neiro sao esporddicas, porém pode-se conjecturar que escassearam ao lon- go do tempo, a medida que mais usualmente os recém-chegados vinham © projeto de colonizagao ¢ os aldeamentos 103 dos arredores, vencidos pelas guerras ou simplesmente descidos. A aldeia de Sao Pedro, por exemplo, até meados do século XVII, incorporava in- dios guarulhos, goitacazes e tamoios; Sio Barnabé também recebeu indios goitacazes nos anos 1600 e muito provavelmente outros de que nio se tem. informagées. O mesmo, nao resta divida, ocorria nas demais aldeias. Sio Lourenco, por exemplo, para a qual se transferiu em dada ocasido aaldeia de Sao Barnabé, tinha como caracteristica receber indios de outras regides, talvez por sua reconhecida estabilidade ¢ proximidade do Rio. ‘Os descimentos eram, pois, importantes intrumentos de manutengdo populacional nas aldeias, pelo menos por certo tempo. Ressalte-se, no en- tanto, que transferiam para elas populacées inteiras, mantendo dessa forma em seu interior 0 equilibrio entre os sexos e havendo portanto condigdes favoraveis ao crescimento vegetativo. Alids, de todos os grupos étnicos nos primérdios da colénia, os indios eram os tinicos com essa caracteristica demografica. Nao obstante, a mortalidade nas aldeias era altissima, prin- cipalmente no século XVI, quando, segundo Anchieta, “nunca ninguém cuidou que tanta gente se gastasse em tio pouco tempo”.* As epidemias eram frequentes na sociedade do Antigo Regime, tendo ceifado, também na Europa, milhares de vidas, pelo menos até o século XVII, mas seus efei- tos nas aldeias foram especialmente devastadores, nao sé pela falta de an- ticorpos dos indios para doengas europeias, como também pelos grandes aglomerados ali reunidos ¢ pela desestruturacao das atividades produtivas que as doengas acarretavam. A situagao deve ter sido muito mais grave nos primeiros tempos, conforme os relatos dos missiondrios, cujas narrativas dio conta de verdadeiras catstrofes populacionais, consideradas por eles momentos de grandes desafios, nos quais se esmeravam em cuidados ¢ dedicagao aos indios, que, nao obstante, morriam aos milhares.” Apesar dos poucos dados disponiveis para se pensar 0 movimento po- pulacional nas aldeias do Rio de Janeiro, a tabela na pagina 105, embora extremamente lacunar, permite algumas reflexdes. Além de pouco confid: veis e esparsos, 0s dados quantitativos sobre o ntimero de habitantes nas aldeias séo heterogéneos, aparecendo em formas ¢ anos diversos, dai serem apresentados por século, especificando-se 0 tipo de informacao ¢, quando possivel, o ano a que se refere. Sdo Lourengo ¢ Sao Barnabé, aldeias do século XVI, deviam ter, juntas, no final do século, 3 mil habitantes,” redu- 104, ‘Metamorfoses indigenas zidos em 1689 para 330 e 843, e, em 1759, para 113 e 280, respectivamente.* Sio Barnabé apresenta um movimento semelhante ao de Si Lourenco, com uma queda vertiginosa do século XVI ao XVII e outra menos acen- tuada até o XVIIL surpreendendo, porém, com um crescimento da popu: lacdo, no final dos anos 1700, que se reduz novamente no século seguin- te. Em Sao Lourengo, a populagao sofreu também uma queda brutal do século XVI ao XVII, depois outra redugdo considerivel até o século XVII © a partir dai apresenta certa estabilidade. $40 Pedro manteve, segundo as informagdes, uma estabilidade populacional ao longo dos trés séculos, tendo sofrido declinio significative no século XTX." Sao Franciso Xavier de Itinga apresenta pequenas oscilagées com tendéncia a diminui¢ao. De acordo com Leite, na década de 1640, quando os padres da Companhia se retiraram das aldeias, mais da metade dos indios abandonou as aldeias de Sio Lourenco e Itinga.** Sobre Mangaratiba pouco se pode dizer, mas é interessante observar um possivel despovoamento no século XVII eum crescimento no XIX, época em que os indios se empenhavam em defender as terras da aldeia ¢ os lideres por eles reconhecidos, Sobre Santo Anténio de Guarulhos nao encontrei informagoes. Do exposto, percebe-se que $40 Lourenco e Sao Barnabé apresentam uma redugao maior, o que se explica, talvez, por serem aldeias mais anti- gase mais préximas a cidade, tendo, desde cedo, enfrentado problemas de invasio de terras e grande nimero de aforamentos em seu interior. Além. disso, ambas foram criadas com muitos indios e numa €poca em que, con: forme informacées, as guerras ¢ as epidemias deviam ser mais frequentes. Além disso, as fugas, outra modalidade de esvaziamento das aldeias, de viam ser mais constantes quando as condigées de sobrevivéncia no sertao eram maiores e os indios, menos adaptados a situagdo de aldeados, viam- se mais facilmente atraidos por ele. Para a Amazonia do século XVIII, existem mapas de descimentos e de populagio, cujos dados cruzados entre si ¢ com outras informagées de fontes discursivas apontam para baixo crescimento vegetativo nas aldeias, altissima mortalidade, fugas intensas ¢ consequentemente reprodugio demografica realizada basicamente através de descimentos.* No Rio de Janeiro, os dados sobre descimentos e populace das aldeias nao sao su- ficientes para se estabelecer uma relagao entre eles, porém, o quadro aqui os XVI-XIX 105 Oprojeto de colonizayio-©os aldeamentos “pSgl wa opeorgnd ‘orxay rn9s ap opdnposnu] ep erep “Oggr ap exfoa.zod ‘oxre}iod sas axap anb « afou,, owoa (psgr) ealig 10d sopeirasade oys Sopep sa55q 44. “yD ‘0p ‘Jad on sasauayy ap e590 21N7] ap PUUD ‘eprosodsop as-vawszuosua owe ajonbeu eeu ‘epose> gz EYL wsApye v anb vizp q¢9] 19 10peusoAoH op LIL, “get d pr UpsgT eATS “sonprarput DOP 9p P9193 Woo seuwdnoyp Qf ap urervssed vote 9 vYapye BOULOD s{2Bp1j LAVA so|pUT sop s9gduyiquy sv “apts opunsag, {Ip “20p ZG] ‘OaIaUL[ ap ony Op eIUNpIdes wp somAysIP SOLIPA 9p OpStaD99q] “HED "20p ‘ONNETTEN £912 °SOp ‘BIVG BP [P195 Bq OW OPRYDEIY OFOIC] OP WILD "SF 'Y ‘EC 'A ‘LE "POP NV ‘SIA TGSI "194 Ov SazZAUAVY Op avs9g ZIT ACS RD S6THGRGET “PAYS 9H0T ‘qry |) ay ae, = fae xq8 ‘pproa | jet F tr | sie oot |. ace | i] -emSuep | amy | ke. stun #5 | sap | TH | eH ca aps2usy on | ee | 00h ose 00% ares be we wy | “a capag org 689 ‘Ose't StL 00s 7 | b ‘ary ay 924 sqnusea : N29) or | ose ete ons a ay “ea | ae aay | se | aH) ouaNOT or Dol | is wat ore | OF O00 os ] jeeOS8E) 861 | SPRT | SRT | OCST | PIBT | dédt | OBLE | OSd1 | Get 1697 6891 | dt9T (ah “191 | IAK IAX 9 I XIX 01895 Tax omnees ae cheas | MRPIY XIX-IAX Sopnogs - OATOURL VP OTY Op seyPpre sep erIjeIZ0Wep opsenwy 106 Metamorfoses indigenas apresentado cruzado com informagées de fontes qualitativas apontam para a estabilidade das aldeias ao longo dos séculos, apesar da tendéncia para a diminuico populacional. Tal situagao é significativamente contras- tante com a da Amazénia no século XVIII, onde a intensa oscilagao do niimero de habitantes evidencia que os descimentos ¢ as fugas foram os principais movimentos populacionais da regio. Tais caracteristicas talvez fossem semelhantes as do Rio de Janeiro no século XVI ¢ na primeira me- tade do XVII, confirmando a opiniao de Schwartz sobre as caracteristicas demograficas de dreas da América, que variavam conforme as regides € os diferentes estigios do desenvolvimento da colonizagao.* A fuga eo aban- dono das aldeias foram sempre uma realidade também no Rio de Janeiro, bem como a preocupacao das autoridades em manter 0s niveis populacio- nais em seu interior, tendo havido alguns momentos em que se erdenou © retorno de todos os indios as aldeias, dado seu esvaziamento. Contudo, se observarmos a flutuacdo demogréfica das aldeias do Rio de Janeiro a longo prazo, pode-se concluir pela provivel reproducio interna através do crescimento vegetativo, que devia incluir grande mesticagem, Afinal, os descimentos se tornavam escassos, a mortalidade ja nao atingia os ni- veis catastréficos dos primeiros tempos, pelo menos entre os aldeados, ¢ as fugas, embora ainda frequentes, no alcancavam as proporgoes iniciais que, deacordo com as narrativas de Anchieta, chegavam a esvaziar aldeias inteiras, como ocorria na Amaz6nia no século XVIIL. Os indios continua- vam fugindo e rebelando-se, mas muitos iam vinham, conforme se veri mais adiante. Para reforgar meu argumento, ha dois casos de aldeias extin- tas cujos indios voltaram a se aldear por vontade prépria. Santo Antonio de Guarulhos foi abandonada pelos indios, talvez por excesso de rigidez por parte dos padres capuchos, e muitos de seus indios voltaram a se aldear em Sao Fidélis.*” Sao Francisco Xavier de Itinga extinguiu-se pela expulsio dos indios que se abrigaram na aldeia de Mangaratiba ¢ através de recursos juridicos conseguiram, alguns anos depois, restabelecé-la.* Situacdo bem diversa ocorria na Amaz6nia na mesma época, onde as fugas eram muito frequentes e a preocupagao maior das autoridades, quan. do as aldeias foram transformadas em vilas ¢ lugares, era incentivar 0s des- cimentos e manter os niveis populacionais nos povoades.*” Enquanto isso, no Rio de Janeiro, os maioxes problemas enfrentados pelas autoridades era 0 projeto de colonizacio c 0s aldeamentos 107 defender as terras ¢ os direitos dos indios que, em vez de fugir, como seus pares na Amazénia, lutavam juridicamente e pelas armas para manter as terras ¢ aldeias, ameacadas pela presenga cada vez maior de nao indios em seu interior. Os indios das aldeias do Rio de Janeiro, além de terem menos opgdes de sobrevivéncia nos sertées cada vez mais restritos no sudeste da colénia setecentista, ja constituiam provavelmente, em sua grande maioria, uma geracao avancada de indios aldeados, que nasciam, s¢ misturavam ¢ se reproduziam nos espacos dos aldeamentos. © padre jesuita Pero Rodri- gues, em 1697, discorria sobre 9 esvaziamento dos sert6es € dificuldades cada vez maiores em se realizar descimentos. Isto € as continuas guerras dos brancos, e desejo de a todos os gentios fazerem escravos, tem consumido ¢ gastado todo o gentio, que havia ao Jongo destas trezentas Iéguas de costa do Brasil, e sendo tantos como for- migas agora nao ha nenhum, sendo junto das fortalezas ¢ povoacées dos portugueses, algumas aldeias de indios cristdos, ¢ se nossos religiosos nfo tiveram cuidado de os amparar ¢ defender das unhas¢ dentes dos brancos, ja nao houvera nenhum.* Embora os sertées do territério que constitui hoje o estado do Rio de Janeiro ainda estivessem repletos de indios até o final do século XVII e inicio do XIX, quando as tiltimas aldeias se estabeleceram para recolher ‘os coroados € puris, nas regides mais préximas ao nucleo da capitania, o sertdo se restringia e, junto com ele, as op¢ées dos indios para abandona- rem as aldeias. Com o desenrolar da colonizagio, tornava-se cada vez mais seguro para eles viver na condigo de aldeados, o que explica seu empenho em conservar suas aldeias, apesar das dificuldades e discrimina¢ées. Tudo isso aponta paraa confirmagao da ideia de que, ao longo dos trés séculos da colonizagio, os indios transformaram-se, adaptando-se e identificando-se a partir das aldeias em que viviam, mantendo-se como grupo especifico que lutava para garantir os direitos que a lei lhes concedera na condi¢ao de aldeados. Sem negar a tendéncia geral dos aldeamentos para a diminuigao continua da populacao indigena que, embora lentamente, tendia a se diluir entre os demais moradores (sobretudo depois das reformas pombalinas, com a intensificacao dos arrendamentos em suas terras e a presenca cada 108 -Metamorfoses indigenas vez maior de brancos, mesticos ¢ negros), importa constatar que os grupos diminutos de indios, por mais misturados que estivessem, mantiveram-se, até meados do século XIX, vendo-se e sendo vistos como indios aldeados. Os descimentos e os acordos com os indios Os descimentos eram a principal fonte de origem e reprodugio de popu- lagées indigenas nos aldeamentos e, por essa razdo, constantes € incen- tivados desde o Regimento de Tomé de Souza até 0 Diretério de Pombal, como bem lembrou Perrone-Moisés." A catastrofe demografica desen- cadeada pela conquista mantinha-se com a altissima mortalidade pro- vocada pelas guerras, maus-tratos ¢ principalmente pelas epidemias que periodicamente assolavam as aldeias. Deduz-se dai o papel fundamental das expedicdes de descimento como instrumento basico de “povoamen- to” das aldeias (e da propria colénia em seus primérdios) e despovoa- mento dos sertées, num processo continuo de crescimento de povoados ¢ extincao de povos. Tais expedicées constituiam atividade importante e dispendiosa, que mereceu, além de copiosa legislacio, cuidados ¢ aten- 40 especiais por parte das autoridades, sobretudo no século XVII, épaca de guerras incessantes, expansao de fronteiras ¢ formacio da maior par- te das aldeias no Rio de Janeiro. Ao tratar da defesa da terra ameagada pelos holandeses na década de 1610, Martim de $4 explicitou que as principais providéncias consistiam os por pontos do litoral que pudessem servir de desembocadouro de inimigos ¢ em reparar as fortifica- em fazer descer os indios do sertao e distrib g6es da cidade e seu porto. Seu relatério de despesas informa que a maior parte delas era feita com descimentos ¢ pagamentos de servigos dos indios. ‘Os gastos com os 400 indios que, por ordem sua, desceram dos Patos com ‘o reverendo Francisco Carneiro, a fim de formar a aldeia de Sao Francisco Xavier de Itinga, e que, portanto, deviam ser sustentados por seis meses, incluiam pecas de ferramentas, alqueires de farinha, milheiros de anzdis, grande quantidade de peixes para sustento dos indios, facas, tesouras, pen- tes, varas de pano de algodio, caldeirao de cobre, uma canastra encourada, varas de lona, quatro botijas de azeite ¢ duas libras de cera em rolo.® © projeto de colonizagéo ¢ os aldcamentos 109 As propostas de descimento se faziam com presentes ¢ promessas de yantagens temporais, sem nenhuma alusao ao sistema de trabalho. O pa- dre Joio Daniel descreveu com detalhes as praticas realizadas na Ama- z6nia no século XVII, revelando que, para agradar os indios e evitar as desisténcias e fugas, preocupavam-se em “pouco a pouco os ir acariciando, ¢ conquistando com dadivas, para Ihes ir entranhando amor, e para lhes fazer conhecer, que 05 nao buscam para os fazer escravos, mas para os tra- tar como filhos”.® A lei procurava coibir as irregularidades e, desde 1587, estabeleceu a obrigatoriedade da presenga missionaria nas expedigdes de descimento, situagdo esta que mais ou menos se manteve ao longo do pe- tiodo colonial, embora algumas vezes os missiondrios tenham perdido a exclusividade na conducao dessas atividades. A Lei de 1611, por exemplo, estabeleceu que os administradores leigos das aldeias podiam comandar as expedigdes de descimento.* Os descimentos deviam ser, de acordo com a lei, voluntdrios, e em geral transferiam grupos inteiros das aldeias de origem. incluindo, grosso medo, mais de um principal,® cuja adesao era essencial para que eles se concluissem com sucesso. A ameaca de exterminio e escravizacao so- mada as dificuldades crescentes de sebrevivéncia nos sertdes — dadas as guerras intensas com seus contrarios e estrangeiros, a diminuicio das terras livres, as alteracées no meio ambiente e consequentemente as difi- culdades cada vez maiores na exploracdo dos recursos naturais ~ foram, com certeza, as molas mestras que incentivavam os indios a se aldear. E importante lembrar as diferencas regionais e temporais no que se refere aos apresamentos dos indios nos sertées e consequentemente as ameagas sobre suas chances de sobrevivéncia, que influenciavam as possibilida- des de aliangas € acordos. Regiées ¢ conjunturas especificas alteravam as agdes € reagdes dos colonos, missiondrios ¢ indios nos sertées da colénia. SituacGes cadticas, no entanto, nao impediam os indios de negociar suas. perdas, buscando garantir as melhores possibilidades de sobrevivéncia, como se percebe na documentagio. Sobre um descimento realizado em. 1624, Martim de Sé refere-se “a alguns principais que antes de se abala- rem do Rio Grande com sua genté quiseram ver a disposigao da terra ¢ o- modo [...] no tratamento dos outros”. Em carta de 1697, 0 jesuita Pero Rodrigues, ao tratar de um descimento na capitania do Espirito Santo, 110 ‘Metamerfoses indigenas afirmou que “veio um principal de quatro aldeias a ver se era verdade 0 que no sertio Ihe diziam dos padres para que com mais certeza pudesse vir com sua gente”, A vontade dos indios emerge dos documentos como fator relevante para seu ingresso nos aldeamentos e dependia do balan- go entre as dificuldades enfrentadas no sertéo ¢ as condi¢des que lhes eram oferecidas. Tais condigdes eram, segundo as fontes, avaliadas pelos principais, mas nao necessariamente accitas por todos os seus seguidores, pois, de acordo com sua tradicao, os grupos tupis dividiam-se facilmen- te em facgées quando discordavam de seus chefes ¢ as relagdes com os brancos acentuavam essa caracteristica. Insatisfacdes e descontentamentos por parte dos indios, principalmen- te dos seus chefes, podiam colocar a perder todo o esforgo praticado para a realizagao de “pazes” ou descimentos, No Rio de Janeiro, houve o caso Gitado por Simao de Vasconcelos em que alguns principais voltaram do meio do caminho por nao terem recebido o mesme “facallhdo” com que 0s portugueses agraciaram um deles.* Os descimentos implicavam gran- des gastos, pois, além do custo das expedig6es (pagamento dos indios ¢ alimentagao de todos), eram necessdrios muitos presentes. Os instrumen- tos de ferro eram o principal atrativo para alded-los, como bem ilustra a resposta de um indio ao missionario que o persuadia a convencer © grupo a deixar a aldeia de origem: “Ld tem, responden o indio, machados, e facas para fazerem suas rocas, ¢ por isso ndo necessitam de sair”.” Na verdade, o descimento se fazia por acordos entre os portugueses € os chefes indigenas ¢ as descrigées de Joo Daniel, embora da Amazénia no século XVII, sdo pertinentes por informarem com detalhes sobre os cuidados e a antecedéncia com que se preparava a acolhida dos novos al- deados com os quais, segundo ele, iam 0s maiores gastos-dos missionarios: Mas no caso que finalmente se resolvam a sair dos scus matos, ¢ descer para alguma missao se ajusta primeiro o descimento no ano antecedente porque dando palavra os indios de sairem também Iha dio 03 Missiond- ios de os irem buscar no ano seguinte; ¢ no os tiram logo 1°) para Ihes darem tempo de fazerem as colheitas das suas rogas; 2*) para entretanto Ihes fazerem rocas, searas ¢ casas na missio onde os querem ajuntar ou em alguma paragem que julgam mais acomodada, se € que querem fundar © projeto de colonizagao ¢ os aldeamentos nl missdo de novo: cuidam pois em prevenir-lhes e preparar-lhes a hospeda- gem com dilatados rogados de maniba, searas de milhe ¢ frutas por outros indios mansos ja batizados, de que sempre se vale nestes descimentos: fazem casas, preparam-se com grandes provimento de ferragem, panos, Aguas ardentes, bolérios e muitas outras miudezas.” A documentagio ¢ farta em exemplos dos esforcos da Coroa para agra- dar as liderangas de forma que os descimentos e acordos de paz se concluis- sem com sucesso, sobretudo em reas de grandes contlitos. E interessante observar 0 episédio ocorrido no inicio do século XVIII, na regio sul, com os minuanos. Era, sem duvida, uma situa¢ao critica para os portugueses, ei guerra constante com os castelhanos em regio repleta de indios hostis, © que explica em grande parte o interesse e empenho das autoridades em aliciar aqueles indios. O governador da Colonia do Sacramento foi procu- rado por trés caciques e um lingua,” que desejavam se tornar catélicos e estabelecer pazes com os portugueses, com a condic3o de que fosse loca lizada e devolvida uma sua irma e sobrinha india crista, que fora levada para o Rio de Janeiro. Ressaltando a importancia de tais pazes com “indios bravos, guerreiros, importantes e numerosos na regido”, o governador deu parecer favoravel as exigéncias dos indios, com 0 qual concordou o Conse- lho Ultramarine sugerindo que: VM sé teria a ganhar com aquelas pazes por serem aqueles indios [...] 05 mais poderosos que hd naquelas campanhas que dizem passam de 5 mil e 86 0 gentio manso que est debaixo da VM catélica the leva vantagem em niimero mas ndo em Animo porque sio muito guerreiros. [...] Que VIM. haja por bem que se escreva ao governador do Rio de Janeiro onde se diz que a dita assiste e achando-se viva a mande paraa dita Colénia para ir para a companhia de seu irmao ¢ tie © que s¢ entende querendo cla ir voluntariamente e sendo cativa se compre para o dito efeito por conta da Fazenda Real,” Em 1745, 0 termo de ajuste de pazes entre o superintendente de guerra, capitio-mor Antonio Gomes Leite, ¢ a nagio do gentio Acroasti, estabele- cido formalmente pelo escrivio das tropas no sertio da capitania do Piaui, m2 Motamorfoses indigenas evidencia a seriedade conferida pelos portugueses as “pazes” feitas com © “gentio bravo” que os desafiava nos sertées. Os contratantes aparecem como parceiros de um acordo firmado em igualdade de condigées com promessas e exigéncias de ambas as partes. De acordo com o documento, © superintendente de guerra recebeu muito benignamente, no sertao de Gilboés, o embaixador da nagao Acroasti com 50 homens de guerra de sua guardae, depois de Lhe ter mandado fazer vestido, ¢ praticado repetidas vezes, en- trando ao ajuste das pazes lhe disse prometiaem nome de 8, Majestade que ‘Deus Guarde a paz sem mais lhe fazer guerra e que seriam conservados debaixo da sua protecdo ¢ defendidos das nagées inimigas, que estariam ‘em sua inteira liberdade como os que tinham ficado prisioneiros da guerra passada, que nenhum branco Ihe faria dano ou vexagae alguma, ¢ que teriam toda a terra que lhes fosse necessaria para suas rogas, sem. que pes- soa alguma os pudess¢ perturbar ou inquietar e que com cles estariam nas suas aldeias Pes, Missionarios ensinando-os para serem cristaos e filhos de Deus, e tratar deles com tudo o que lhes fosse necessario.® Diante da situacdo cactica de guerra nos sertées ¢ da ameaga constante de escravizacao e exterminio, hd de se convir que a proposta devia ser, sem. duvida, bastante sedutora, sobretudo se levarmos em conta que, naquele momento de guerra ¢ empenho pela paz, os portugueses pareciam tratar os indios em condigées de igualdade, ¢ estes provavelmente se sentiam como tais, como demonstra a postura de seu embaixador ao apresentar suas promessas ¢ exigéncias “em seu nome ¢ de toda a sua nacao que con- tava de duas aldeias muito grandes”. Prometia nao fazer mal a brancos e dar-hes mantimentos para toda a viagem, porém, ao chegarem ao local onde se situariam as aldeias, deveriam receber rogas e ferramentas e que- riam, para os administrar, somente aquele capitao-mor, por ser valente, temido pelo gentio e de bom coragéo, Quanto ao padre, queriam aquele “que os scus parentes tinham visto na guerra ajudando a conduzi-lo, ecom cles praticado”, Tratava-se do padre missionario frei Jodo da Purificacao, religioso de Santo Antonio, e © projeto de colonizagiio ¢ ws aldeamentos 1B queriam mais destes padres para as suas aldeias, que as duas se haviam de Partir em mais, por ser muita a gente, ¢ que ele dito capitao-mor e padre haviam de ir esperar ¢ conduzir a sua gente toda e que cle jé ia ajuntar a gue estava espalhada por fora das suas terras ¢ porém a caminho pois Ki nio podiam ficar muito tempo por causa das guerras com outras nagées.” © capitio-mor prometeu tudo cumprir, mas tal resolugio deu margem a imtimeras discussdes, dados os altissimos custos que o transporte ¢ o sus- tento por um ano de cerca de 3 a 4 mil indios (ou mais, conforme os dife- rentes cdlculos) significariam para a Fazenda Real. Sessenta mil cruzados* foi a quantia solicitada e muita tinta se gastou em argumentos que pro- curavam analisar a relagao custo-beneficio de tamanho empreendimento. Argumentos favordveis destacavam as grandes vantagens de ter aqueles “indios bravos” como aliados e © capitio-mor insistia no cumprimento da resolugao como unica forma de garantir a paz. As posigées contrarias alegavam, no entanto, os altos custos da operacao que de forma alguma garantiria a paz com gentio que jd dera provas de tio grande hostilidade ¢ inconstancia. Em vez de cumprir ¢ acordo, sugeriam o envio de bandeira fortificada para derrotar os indios na guerra. A solugao, no entanto, nao éra tao simples, pois, como lembraram as yozes contrarias, 08 gastos com tal expedigao seriam também exorbitantes e nada Ihes poderia garantir a vit6ria ¢ a paz. A sugestio final foi conciliadora: propunha que os indios fossem transportados para um lugar mais proximo e estabelecidos em al deias ja existentes, o que diminuiria os gastos ¢ aumentaria as possibilida- des de paz com os brancos. © documento aponta para a importancia das aliangas e dos acordos de paz com os indios que nao cram absolutamente unilaterais, Promessas, exigéncias, recuos e colaboragdes se faziam de ambas as partes, indepen- dentemente de serem cumprides ou nao. Sem subestimar aforca maior dos Portugueses que, sem divida, em casos extremos eram capazes de compor expedigdes militares de envergadura e promover grandes massacres, como fizeram imimeras vezes, cabe reconhecer que essa nao era a solugao mais simples, ¢ nem sempre vidvel, o que reforca a ideia da complexidade das relagées com os indios, cujo maior ou menor poder de barganha variava conforme as circunstancias. na Metamorfoses indfgenas Os aldeamentos: funcées ¢ significados diversos Terra e protecdo para os indios E, sem diivida, dificil discorrer com seguranga sobre os significados ¢ ex- pectativas dos indios em rela¢io aos aldeamentos, dadas as lacunas das fontes. Contudo, ha indicios suficientes na documenta¢io, sobretudo na. quela referente aos conflitos, para se afirmar que a colaboracao dos indios com os portugueses n&o se resumia absolutamente 4 submissdo passiva a uma ordem colonial que lhes era imposta sem que tivessem nenhuma pos- sibilidade de manobra, como costuma ser sugerido, de modo geral, pela historiografia. Os variados registros sobre suas disputas lancam algumas luzes sobre os diferentes interesses que os impulsionavam. Requerimentos e petigées feitos por eles e/ou pelos padres solicitavam terras, 0 direito de no serem escravizados e de trabalharem para quem quisessem, cargos, aumentos de salarios, ajudas de custo e destituico de autoridades nao re- conhecidas por eles, indicando, pelo menos, algumas das suas expectativas na condigao de aldeados. Somem-se a isso os varios acordos de paz e de descimentos estabelecidos com os portugueses que inclujam sempre pro- messas de terra ¢ protecio, condigées minimas, pode-se dizer, das suas aspiragées no ato de se aldear. JA foi visto como os indios do Grande Gato aldearam-se no Espfrito Santo, por vontade propria, a fim de escapar de ‘uma situa¢ao que para eles era desesperadora. Para isso conseguiram dos portugueses quatro embarcagGes enviadas especialmente para buscé-los. Alguns anos mais tarde, quando Arariboia concordou em ficar no Rio com sua gente, certamente nao o fez para estar a disposicao dos colonizadores numa aldeia criada para satisfazer interesses alheios. Dificil pensar tal pos- sibilidade principalmente se lembrarmos o extremo grau de dependéncia dos portugueses em relagao aos indios ¢ que estes tiltimos estavam de volta sua terra, onde através da alianca com os portugueses passaram a exercer papel de destaque na defesa da col6nia, o que conferiria a seu chefe posi¢ao muito privilegiada na capitania. Sao Barnabé foi criada para atender aos interesses dos proprios indios. Sao raz6es suficientes para se acreditar que se aldear podia significar para os indios a op¢ao pelo mal menor diante da opressio ¢ violéncia da ‘© projeto de colonizacio c os aldeamentos us conquista e da colonizacao. Ao se aldearem, os indios se tornavam stdi- tos cristios e buscavam se adapter a um novo espace fisico e social, onde aprendiam novas regras ¢ comportamentos que Ihes permitiam novas es- tratégias de luta ¢ sobrevivéncia no mundo colonial em formacao. Ressal- te-se que ser stidito cristéo nao implicava absolutamente uma condi¢io de igualdade. Na sociedade tdo fortemente hierarquizada do Antigo Regime, cada sidito ocupava seu lugar na escala social (inclusive os escravos), mas todos tinham, além das obrigagées, direitos, entre os quais os de pedir ¢ obter mercés ¢justica do seu rei. Os indios aldeados eram sujeitos a uma le- gislaco especial e ao trabalho compulsdrio, mas, apesar dessas condigdes limitadas e opressivas, os aldeamentos indigenas lhes facultavam algumas garantias que, inicialmente junto com os padres, ¢ depois por conta pré- pria, esforcaram-se em defender ~ tanto juridicamente quanto pelas armas, come sera visto oportunamente. ‘Terra ¢ protecdo, ao que parece, foram os principais atrativos para 0s indios aldearem-se, sobretudo se considerarmos que, com o desen- volvimento da colonizacio, os sertdes, além de se restringirem, ofere- ciam-lhes cada vez menos possibilidades de sobrevivéncia. O exemplo dos indios piros, estudados por Peter Gow,” para os quais a vida na flo- resta significava massacres, guerras ¢ escravizacGes, nos induz a pensar que para os povos indigenas da colénia, muito provavelmente, os sertées também adquiriam cada vez mais tais significados. A vida nas aldeias surgia, portanto, como 0 refiigio no qual os indios ingressavam com ¢x- pectativas préprias, conforme evidenciam os acordos de paz e de desci- mento vistos anteriormente. Tal como as escolas para os indios piros, a terra das aldeias, embora restrita se comparada 4 vastidio dos sertées, era vista por eles como patriménio conquistado nos acordos e aliancas feitos com os portugueses, patriménio pelo qual Jutaram, utilizando-se dos titulos de terra, conforme os padrées da colénia. As expectativas e os interesses dos indios nas aldeias serao mais amplamente analisados na segunda parte do trabaho, que trata de sua vivéncia e ressocializacao nas aldeias, incluindo os varios conflitos, disputas ¢ negociagées entre eles préprios e com os demais segmentos sociais da colénia. Por ora, importa constatar que as aldeias tinham para eles fungées e significados préprios que, até o século XIX, esforcaram-se em garantir. cit ‘Metamorfoses indigenas Suditos cristaos para a Coroa ¢ 0s missiondrios A Corea e os missionarios, especialmente os jesuitas, tinham, como se viu, objetivos ambivalentes quanto a integracdo dos indios 4 colnia, pois vi- savam torné-los siiditos cristdos e forca de trabalho contra a pressio con- tinua dos colonos mais interessados em té-los como mao de obra ou como. fidis seguidores, numa espécie de exército particular para lhes garantir sta tus e seguranga. Tal ambivaléncia refletiu-se ma legislacao indigena que procurou resolver o dilema entre a necessidade do trabalho dos indios e de sua alianga, mantendo-os por quase todo o periodo colonial divididos em dois grandes grupos: os aldeados e os escravos, Nao se questionava a legitimidade da escraviza¢ao, com a qual todos concordavam, inclusive os jesuitas,” mas discutia-se quais indios deveriam ser escravizados e em que circunstancias, Duas formas de escravizagao indigena consideradas legiti- mas mantiveram-se, grosso modo, durante quase todo o periode colonial: a que se fazia por meio das guerras justas ¢ a das expedigdes de resgate.”” Convém ressaltar que ambiguidades e ambivaléncias nao constituiam absolutamente uma exclusividade da legislagfo indigena; na sociedade do Antigo Regime, as leis definiam-se no cotidiano das relacées entre os agentes sociais ¢ conforme as situacées praticas que iam surgindo. Assim, legislacao ¢ pratica caminhavam juntas, visto que muito frequentemente a primeira se fazia para regulamentar o que jd se praticava em larga escala, conforme os “usos ¢ costumes da terra”, expressio, inclusive, bastante uti- lizada para justificar comportamentos tidos como ilicitos. ‘As oscilagées da legislaco cram, portanto, tipicas do exercicio do poder no mundo colonial, numa época em que havia pouca diferenga entre o pi- blico ¢ 6 privado ¢ as decisdes legais dependiam, em tltima instancia, do arbitrio do monarca, que recebia evidentemente influéncias dos seus con- selheiros e dos varios agentes sociais interessados nas questées. A Lei de 1570 definia a guerra justa como a que fosse autorizada pela Coroa ou pe- los governadores ou a travada em legitima defesa contra ataques de tribos antropofagas."” Legislagées posteriores nao tardaram a estender esse con: ceito que os colonos ampliavam ainda mais por sua propria conta, Havia duividas se a recusa ao evangelho justificaria ou nao a guerra justa, 0 que na pritica, muitas vezes, ocorria. O viajante espanhol Cristovao de Acuiia O projete de colonizagio eos aldcamentes uy narra que um dos métodos utilizados pelos colonos era visitar uma aldeia paga, deixar li uma cruz, encarregando os indios de traté-la com respeito. Ao voltar, algum tempo depois, encontravam a cruz no chio e, acusando os indios de desrespeito a Igreja Catélica, justificavam a escravizacio de toda a aldeia."" As tropas de resgate comercializavam com grupos aliados seus indios prisioneiros condenados 4 morte, que se tornavam escravos legitimos por determinados periodos ou por toda a vida, também conforme as variagoes das leis, E interessante observar um depoimento de Vieira sobre essa priti- cana Amaznia do século XVII. As tropas chegavam as aldeias indigenas e, mostrando, além das mercadorias, os mosquetes ¢ arcabuzes, diziam ter ordens de nao sair dali sem determinado numero de escravos, Segundo ele, isso se fazia de tal forma que os indios, amedrontados e desejosos das fer- ramentas, buscavam capturar outros indios para a troca. As instrugdes 2 escolta militar que acompanhava os dois jesuitas nessas expedigdes soavam como um convite ao desrespeito a lei: 0 capitao de oito soldados encar- regado de assistir aos dois jesuitas missionarios na conversio dos indios devia observar a lei, mas fazer o maior numero possivel de cativos, que se di governador; 10 para as pessoas que trocaram as mercadorias; oito € meio idiriam da seguinte maneira: de cada 52 escravos, 27 e meio iam parao para os soldados e seis para os indios remadores da expedigao." ultime item revela que entre as regalias concedidas aos indios aliados inchuia-se a possibilidade deter escravos. Controvérsias e conflitos ocorriam com frequéncia para decidir sobre a legitimidade dessas formas de escravizacdo, que se ampliavam ou se restringiam na leiena pratica conforme a pressao ¢ forga dos interessados. As definigdes de guerra justa ¢ as condigdes de escravizagao através dos resgates variavam com a lei ¢ davam margem a extrapolagées e irregula ridades por parte de colonos ¢ autoridades também interessadas nas es- cravizagdes, sobretudo em regides onde a venda de indios como escravos constituia consideravel fonte de renda, como Belém e Sao Paulo. Nessas regides, onde as atividades econdmicas nao geravam grandes lucros, 0 apresamento de indios para a venda adquiria notavel importancia. De acordo com Joao Lucio de Azevedo, 0 comércio de escravos podia ser fon- te de arrecadacao para a Corea, que recebia 0 quinto dos cativos feitos em. ‘ ug ‘Metamerfoses indigenas guerra justa." Em 1718, a catedral de Sao Luis precisava ser reconstruida ¢ 0 rei autorizou uma expedicdo para capturar 200 indios, cujo produto de venda financiaria as obras necessdrias.“ Em 1720, uma Ordem Régia de d. Jodo V reclamava contra a falta de descimentos pelos quais recebia 38000 por cabeca.®* Embora essas atividades nao garantissem altos lucros, podiam ser significativas diante da pobreza das regiées. Nao cabe aqui uma explanagao exaustiva sobre a legislacao indigena, repleta de decretos, bandos, leis, alvards e cartas régias que continuamente se sucediam e se anulavam, mas importa constatar que as leis construiam- se, anulavam-se ¢ reconstrufam-se em fun¢do do jogo de forgas na colé- nia entre os atores envolvidos e sua capacidade de influenciar 0 rei e seus conselheiros.** Essas disputas influenciavam nao apenas o estabelecimento das leis, mas principalmente as possibilidades de sua aplicagao na colénia. As decisées da metrépole e seu cumprimento dependiam das disputas, ¢ se, inimeras vezes, decisées favoraveis aos indios nao se cumpriram, a reci- proca foi verdadeira, pois nao foram poucas as queixas dos colonos contra indios e jesuitas que se recusavam a cumprir as determinagées do reino. padre Antonio Vieira participou intensamente das disputas sobre a legislacdo indigena e seu cumprimento na colonia ¢ exerceu, no século XVI, forte influéncia sobre ambos. Em 1655, no Maranhio, participou de uma junta para decidir sobre a legitimidade dos cativeiros feitos em expe- digdes de resgate € guerras justas ¢ denunciou rigorosamente o mau uso da lei por parte dos moradores, autoridades ¢e membros de outras ordens religiosas que escravizavam ilegalmente milhares de indios no norte do Brasil.‘’ © préprio Vieira, no entanto, abria mio de suas exigéncias con- forme as necessidades de cooperar com os colonos ¢ resguardar o projeto dos aldeamentos. De acordo com Hemming, ele instruia seus missionarios ajulgar sobre a legitimidade dos cativeiros com a maior tolerincia possivel em relac3o aos interesses dos colonos." As presses, no entanto, variavam conforme a regido, a época e as circunstancias, maior ou menor necessi- dade do servico dos indios e dindmica das relagées de alianca e disputas entre os grupos. Nao se pode perder de vista o alto grau de dependéncia dos portugue- ses em relacdo aos indios aliados e que, apesar de todas as irregularida. des, havia séria preocupagao por parte da Coroa em coibir os abusos e 0 projeto de colonizagio © 6¢ aldeamentos ng defender a politica de aldeamentos. Os indios ilicitamente cativados de- viam se estabelecer nas aldeias jesuiticas e nao foram raras as ocasides em que isso ocorreu, Além disso, deve-se ressaltar que os interesses da Coroa em resguardar os aldeamentos ¢ os direitos dos indios como seus stiditos nao devem ser entendidos como dnica ¢ exclusivamente orientados por objetivos econémicos ou estratégicos, por mais importantes que tenham sido. Da mesma forma, 0s cuidados e atengdes especiais concedidos aos principais também nao devem ser interpretados como politica de manipu- lagdo de chefias e descaso com os demais indios. Nao resta ditvida de que estes diltimos nao dispunham dos mesmos privilégios e, muito provavel- mente, seu acesso aos procedimentos legais devia se dar por intermédio de seus principais ¢ de outras autoridades leigas ou eclesiasticas, mas isso nao Thes retirava 0s direitos da condicao de siiditos que a Coroa ¢ a legislagao respeitavam ¢ procuravam assegurar. A sociedade do Antigo Regime era rigidamente hierarquizada, mas nessa hierarquia cada um tinha suas fun- bes e, de acordo com as ordenagées afonsinas, os Reis, que em lugar de Deus na terra so postes para reger, c governar © povo nas obras que ho de fazer, assim de justica, como de graga, ou mercés devem seguir 0 exemplo daquele, que ele fez, ¢ ordenou, dando, e distribuindo nio a todos por uma guisa, mas a cada um apartadamente, segundo o grau c condigio ¢ estado que for.” ‘A justiga constituia, pois, valor essencial na ordem do Antigo Regime ¢ como tal era bastante valorizada pelos reis e seus conselheiros. Assim como afirmou Lara, “manter a paz € a justiga era algo fundamental no exercicio do poder do soberano, que se distribuia ¢ se fazia presente em todo o reino através de uma estrutura hierérquica de jurisdigées € alga- das” Por isso, todos os stiditos do Império tinham direito de fazer chegar ao rei suas peti¢des por justia e mercé, € este, orientado por seu conselho, procurava atendé-los. As consultas do Gonselho Ultramarino sao fartas em exemplos dos casos de pessoas simples e pobres que recorriam a Sua Majestade para atender aos seus interesses € necessidades, abrindo-se para clas processos que inclaiam os mais variados pareceres. Tais consultas apontam para uma preocupacao por parte da Coroa em procurar, através 120 ‘Metamorfoses indigenas de seu conselho, esclarecer as situagées para, com justiga e parcialidade, julgar as reivindicagées de seus siiditos ¢ atendé-las na medida do possivel. Neste sentido, pode-se citar a consulta de 1690 para decidir sobre o destino de cinco indios tapuias que, procedentes de Pernambuco, encon- trayam-se no reino, sobrevivendo as custas do Conselho de Sua Majestade. Esses indios, entre eles um principal (cujo nome indigena ilegivel consta no documento), haviam sido enviados ao reino pelo governo de Pernambuco com recomendagao de que nao retornassem aquela capitania por terem sido motores da rebeliao ¢ guerra ocorrida no Rio Grande, Diante disso, cabia ao conselho deliberar sobre o procedimente a ser adotado com os ditos indios, devendo ser esclarecido, de inicio, se eram escravos legitimos ‘ou nao, pois, caso o fossem, deveriam ser entregues a alguns conventos, onde seriam bem tratados. Tal possibilidade foi descartada ao se constatar que tinham sido alvo de um injusto ¢ brutal ataque por parte dos portu- gueses que, por interpretar mal suas atitudes, haviam degolado 14 deles, tendo “reservado” o principal que ali também se encontrava. © conselho nao considerou conveniente o retorno desses indios a Pernambuco pela possibilidade de se aliarem aos gentios hostis que continuavam a guerra com 0s portugueses. No entanto, para garantir-Thes bom tratamento ¢ evi- taras despesas do conselho com seu sustento, sugeriu que fossem enviados as aldeias jesuiticas no Rio de Janciro, onde seriam bem assistidos. Além disso, aconselhou o rei a ordenar que pelos Armazéns se lhe dé 0 mantimento ¢ aguada ¢ 0 mais que for necessirio para a viagem, [..,] s¢ fardem por estarem despidos e ser justo [...], devendo-se dar ao Principal |...] quatro vinténs cada dia e cada um dos outros Indios uma Farda a cada ano que importe dois mil ¢ quinhentos xéis ¢ que tudo se entreguc ao reitor do Colégio da Cia.” Essa consulta é bastante reveladora dos direitos ¢ garantias oferecidos também aos indios comuns, sem nome nem cargo de destaque. De acordo com o documento, os cinco indios nao eram sequer aldeados, e a consulta, na verdade, se estabeleceu por iniciativa das proprias autoridades metro- politanas, com. a intengéo de averiguar se eram escravos legitimos, como havia sido informado pelo representante do governe de Pernambuco. Ao projeto de colonizagio ¢ os aldeamentos aL constatar a ilegalidade da escravizacao e a ocorréncia de um ataque injusto € violento contra eles, o conselho procurou meios de garantir-lhes con- digdes dignas de sobrevivéncia. Havia um principal entre eles, inclusive privilegiado nos beneficios, mas deve-se observar sua condi¢io bastante diversa da de um Arariboia, por exemplo, ¢ que ndo permite, me parece, inclui-lo entre as liderangas especialmente prestigiadas pela Coroa. Néo obstante essa situac4o comum em que se encontrava, pode o dito principal, cont seus quatro companheiros, beneficiar-se das garantias da lei, através de procedimentos legais que Ihes foram concedidos por iniciativa das pré- prias autoridades metropolitanas. © parecer do conselho parece expressar uma séria preocupacao em assegurar condigdes de sobrevivéncia dignas e satisfatorias para esses indios, pois, além de garantir-Ihes a viagem de volta 0 aldeamento entre os inacianos, sugeriu ao rei ordenar ao provincial que quando vai ou manda visitar as Aldeias do Rio Grande ou pelos missio. narios dela se mande informar do capitao-mor e oficiais da camara dos inconvenientes que pode haver em serem restituidos estes indios para que ndo os havendo os restituam e quando os haja se facam diligéncias por suas mulheres c filhos para que se conduzam a0 Rio de Janeiro no pataxo da visita e possam Viver com eles.” Nove meses depois dessa consulta, o reitor do Colégio do Rio de Ja- neiro informou ao rei que tendo considerado melhor ficarem 0s cinco in- dios amotinadores perto dos portugueses, estabelecera-os na aldeia de Sio Lourengo, “onde vivem até o presente quictos ¢ assistidos com aquele sal4- rio e farda que V. Majestade foi servido conceder-lhe”.” Apesar da legislacao ambigua ¢ frequentemente desrespeitada, o exem- plo citado evidencia os cuidados e interesses por parte da Coroa ¢ das. autoridades da metrépole em coibir os abusos dos colonos ¢ autoridades locais para preservar 0 aldeamentos ¢ os direitos dos seus novos stiditos indigenas, Nas capitanias do Rio de Janeiro e de Sio Paulo nio faltaram deniincias e conflitos por irregularidades semelhantes as feitas por Vieira no norte da colénia. As atividades de apresamento de indios para venda ram também lucrativas e atraentes no Rio de Janeiro, tendo adquirido, segundo Salete Neme, foros de atividade econémica, seguinde em grau 12 ‘Metamorfases indigenas mais moderado a iniciativa tomada pela capitania de Sao Vicente." De acordo com Serafim Leite, em fins do século XVI ¢ nas primeiras décadas do XVII, as entradas ao sertao no Rio de Janeiro multiplicaram-se: iam em busca dos carijés, no atual estado de Santa Catarina, atingindo por vezes 0 Rio Grande do Sul e, no sertdo do Rio de Janeiro, procuravam alcangar ‘05 goitacazes do rio dos Bagres, os gesseragus, além da serra dos Orgaos, ¢ 08 guarulhos ¢ pacobas do rio Paraiba.” Jesuitas, indios e colonos, prin- cipalmente paulistas, enfrentavam-se por conta disso. Escravizagées indi- genas ilegais e em larga escala dificultavam as expedicdes de descimento ¢ comprometiam a politica de formacio de aldeias, tio caras, como se viu, ao projeto da Coroa. Em 1619, o padre Antonio de Matos queixava-se das dificuldades en- frentadas pelos padres no sertao, referindo-se especialmente 4 missao dos carijés, na lagoa dos Patos, que os jesuitas faziam a peticao de Salvador Correa de $4, administrador das minas dessa provincia. “Tinham ordens de descer 0 gentio para as capitanias de S. Vicente, Rio de Janeiro, Cabo Frio...” mas trouxeram pouca gente por boicote dos paulistas que além de dificultarem 0 acesso as embarcagGes, desencorajaram os indios a seguir com os padres, dizendo-lhes que seriam enviados 4 Bahia, Pernambuco ou até vendidos em Portugal." Em meados do século XVI, os jesuitas ainda mantinham sua missao na lagoa dos Patos¢ continuavam enfrentando problemas com os paulistas, conforme testemunhe do padre Francisco Carneiro, que, em 1648, escre- veu ao P. Geral Caraffa dizendo que “aldear 14 os indios neste momento era 0 mesmo que junté-los para os irem cativar os moradores das capitanias de 8. Paulo e Santos”.” O apresamento de indios em larga escala prejudicava a politica de aldea- mentos ¢ as autoridades, embora também interessadas nas escravizagées, esforcavam-se em punir irregularidades. Martim de $4, por exemple, filho do governador Salvador Correa de $4, que mais tarde também se tornou governador, parece ter se especializado no negocio de resgatar indios no sertao para vendé-los como escravos, o que nao o impediu de clamar con- tra os abuses ¢ pregar a necessidade de proteger ¢ agradar os indios alia- dos, atitude, alids, bem de acordo com os principios da legislacéo. Antonio Knivet, marinheiro inglés que, feito prisioneiro dos portugueses, serviu projet de colonizagio ¢ 05 aldeamentos 13 ao governador e ae filho, narrow imimeras de suas aventuras em busca de indios por ordem de Martim de $4. Numa delas, no rio Paraiba 4 procura dos puris, negociou por escambo com o morubixaba™ 70 escravos, dos quais, por promessa de seu senhor, esperava receber pelo menos um, mas decepcionow-se, pois afirmou que “quando chegou ao Rio vendeu-os todos endo me deu nenhum”*? Em 1624, 0 mesmo Martim de Sd escreveu ao governador do Rio de Janeiro sobre um. descimento de 600 almas que tentara empreender no Rio Grande sem sucesso, porque moradores paulistas os tomaram de as- salto no caminho, matando alguns principais e repartindo a gente entre si. Denunciou outra entrada dos paulistas ao sertio, na qual ocorreram muitas mortes ¢ cativeiros dos gentios, alertande que, com tantas indul- géncias aos abusos dos paulistas, nao seria possivel cumprir o real servi- 0, principalmente no que dizia respeito ao resgate dos Patos e mais na- ges, e que se Vossa Majestade nao “mandar acudir com apertadissimas ordens [...] se estragard todo esse sertio”™ A necessidade de manter os aliados 0 levava a solicitar do reino cuidados especiais a fim de agradar aos indios de forma que pudessem contar com eles. Além de “quantidade de pélvora, arcabuzes, municdes ¢ mosquetes para a gente da terra, [...] enxadas, pas e machados para cortar matos e fazer roga”, é surpreenden- te vé-lo solicitar quantidade de sardinha e bacalhau para o gentio da terra que ¢ 0 manti- mento deste Reino com que 0s possa agradar ¢ contentar ¢ algum vinho mais para ele que serd de muito efeito para 0 servico de V.M... E, sobretu- do, resgate para contentar o gentio eo obrigar a que o ajude na ocasiioe sirva no que o houver mister. De pano de linho, facas carnicciras , pentes, tesouras, espelhos, velérios, fitas.'®! Tal solicitagao evidencia a dependéncia dos portugueses em relacdo aos indios aliados e a consciéncia das autoridades sobre a necessidade de agra- da-los. Cabe lembrar que o projeto da colonizac4o estava em construgio ¢ dependia fundamentalmente da colaboracao das populagoes indigenas, que, no inicio do século XVIL, eram, em termos numeéricos, infinitamente superiores a qualquer outro grupo social presente no Rio de Janeiro. No fi- a ‘Metamorfoses indigenas nal do século XVI, a cidade contava, segundo Anchieta, com 150 vizinhos portugueses e cerca de 3 mil indios integrados 4 colonizagao nas aldeias de Sao Lourenco e Sao Barnabé.'” Os indios eram a mao de obra basica para todos os servicos da Coroa e dos colonos. As expedicées ao sertio para conquistar territérios, aprisionar indios, realizar descimentos ou buscar metais preciosos cram atividades essen- ciais, principalmente no século XVII, e contavam com a participagao intensa e indispensivel de indios ¢ jesuitas. Oficios da década de 1670 afirmam a importancia desse servico, para o qual os indios eram im- prescindiveis, devendo as aldeias entregi-los sempre que necessirio. Si0 muitos os requerimentos daqueles que pediam indios das aldeias para terem melhores condicées de servir 4 Coroa, tanto nas lavouras e pas- tagens quanto nos servigos de entradas ao sertdo, para os quais seguiam com enormes contingentes. Em 1714, o servigo das Minas arrebanhava “todos os indios e 0 governador do Rio comegou a pedir os das aldeias em cépia tao intolerdvel, que se Ihes desse quanto pedia, nio ficaria nas aldeias quem lavrasse os campos com que se sustentassem os indios ¢ suas familias”. E importante lembrar que o Rio de Janeiro foi também responsavel pela defesa e ocupacao de dreas mais distantes para as quais enviava grandes contingentes militares constituidos basicamente de indios, como foi o caso da guerra contra os holandeses ¢ da ocupacao da regido sul, principalmente da Colénia do Sacramento. Em 1697, 0 padre Pero Redrigues, da Compa nhia de Jesus, considerava que os trés principais inimigos dos portugueses eram og negros dos quilombos, os aimorés e os franceses, e que a principal arma contra eles eram os indios aldeados.'* Em 1720, Aires de Saldanha foi para a regio sul fazer frente aos franceses ¢ castelhanos levando 3 ou 4 mil indios. De acorde com as fontes, as expedicdes seguiam com um pequeno numero de brancos ou mamelucos acompanhados de milhares de indios flecheiros sob o comando de seus principais, que deviam ser especialmente bem cuidados. Sobre isso ¢ interessante lembrar um episddio das narrativas de Knivet: encontrava-se num acampamento com uma tropa pronta para enfrentar os tamoios, quando chegou um reforgo de 80 flecheiros com seu principal e o comandante da tropa nao hesitou em manda-lo dormir no chao para que aquele principal tomasse sua rede.1”” ‘© projeto de colonizagio e os aldeamentes as Mao de obra para os colonos Descer indios, constituir ¢ administrar aldeias eram atividades interessan- tes também para 05 colonos, pois podiam significar a possibilidade de ter controle sobre um grande contingente de indios ou privilégio na repartigao do seu trabalho, e, néo raramente, eles pediam permissao para realizé-las, principalmente no século XVII, quando os escravos negros eram caros ¢ pouco acessiveis.°* O proprio Martim de Si fundou a aldeia de Mangara- tiba com indios que ele descera de Porto Seguro. Os descimentos por ini ciativa de particulares foram com frequéncia permitidos, pois interessava 4 Coroa contar com os préstimos e recursos de seus stiditos para realizar atividade tao importante e dispendiosa. Contudo, houve sempre sérias res- trigdes quanto a administra¢ao particular das aldeias, mesmo para aqueles que haviam sido responsaveis por seu estabelecimento. No inicio do século XVIII, tais solicitagdes deram margem a amplas disputas na legislagao ena pritica," Em 1635, 0 pedido de administragao dos indios feito por Rodri go Miranda de Henriques, capitio-mor do Rio de Janciro, obteve parecer negativo do conde do Prado, que sugeriu ao rei ...] extinguir esta propriedade dos indios que os capitées-mores querem acrescentar a sua jurisdi¢ao tratando-os como escravos, servindo-se de les ¢ repartindo-os porque Ihes parece ¢ convertendo- em seu proveito 0 procedido de scu suor e trabalho [...] que [,..] ado permita VIM. que os capities-mores a titulo de administradores se fagam senhores absolutos de gente que nem Deus nem V.M. quis que o fossem. Remato este meu parecer com que 0s governadores-gerais do Brasil nao tém administragio particular sobre os indios.” Em resposta a solicitages de moradores do estado do Maranhio ¢ da capitania da Paraiba para exercer a administragio de indios descidos as suas custas, a carta régia de 1702 estabeleceu sua proibi¢io, determinando que o tinico prémio que se poderia “dar as pessoas que os descerem & sua custa sera o de se repartirem s6 com elas durante a sua vida fazendo a re parti¢ao a respeito do tempo dos salirios".!"' No Rio de Janeiro, em 1703, ‘Antonio Machado foi autorizado a descer indios maripaqueres do distrito 126 “Metamorfoses indigenas. de Magé, “sem que tivesse senhorio sobre eles” ¢ com a recomendagio de que viessem apenas os voluntarios aos quais deviam ser dadas terras e do- mesticagio “pela nossa fé"22 Dos exemplos citados, deduz-se que as aldeias podiam estabelecer-se a partir da iniciativa dos particulares, proibindo-se, no entanto, a adminis- tragdo sobre elas, Nao obstante, apesar das poucas ¢ insuficientes informa- es sobre a administracio particular de indios no Rio de Janeiro, até por sua ilegalidade, ha indicios claros de sua ocorréncia, inclusive entre setores proeminentes na capitania, como a Ordem dos Beneditinos e a familia Sa, como se vera oportunamente. Martim de Sé, mais de uma vez governador da capitania, especializara-se na negociagao com indios, ¢ fundara a aldeia de Mangaratiba muito provavelmente com a intengao de obter o controle sobre os indios ali estabelecidos, o que indubitavelmente conseguiu, apesar das disposicdes em contrario para que ele sé tivesse “administracao deles no que toca a guerra, [...] no que toca ae governo e bem da paz ¢ doutrind- Jos” A questao sobre a administracao particular de indios ¢ aldeias sera. mais aprofundada no capitulo 4, referente ao trabalho dos indios. Por ora, cabe constatar que as autoridades, apesar de se interessarem e até incenti- varem as iniciativas de particulares para o descimento dos indios ¢ 0 esta- belecimento das aldeias, esforgavam-se por coibir seu dominio sobre elas. Houve ocasides em que as préprias autoridades encarregaram morado- res de constituir aldeias, como ocorreu no inicio do século XIX, no vale do Paraiba, com a aldeia de Valenca. José Rodrigues da Cruz, fazendeiro da regido, havia se aproximado dos coroados, auxiliando-os ¢ recebendo-os em sua fazenda, 0 que levou o vice-rei, interessado na conversio desses indios, a encarrega-lo de alded-los com gastos publicos. A resposta do fa- zendeiro a essa solicitagao evidencia que, ainda no século XIX, em regides mais distantes do nticleo da capitania do Rio de Janeiro, os colonos po- diam se interessar pela administragio de indios, pois 0 mesmo solicitava “a ir tratar com os ditos indios nas suas prdprias aldeias ¢ alojamentos, fa~ cilitando-me 0 governo os indios mansos que eu pedir para me servirem de intérpretes; ¢ ficando eu responsdvel pela minha conduta a respeito da administragio dos ditos indios ...”"* As aldeias podiam se formar também a partir de outras e, as vezes, por solicita¢io dos colonos. Em 1678, por exemplo, o Conselho Ultramarino, Q projeto de colonizagio eos aldeamentos ur aconselhado pelo ouvidor-geral do Rio de Janeiro, considerou de grande utilidade a criagdo de uma aldeia entre as vilas de Canancia ¢ Iguape para que os indios auxiliassem os moradores na exploragao de oure, A aldeia seria criada com a transferéncia de indios das muitas aldeias do Rio e de So Paulo, onde, segundo os moradores, havia muitos desocupados, sem fazer servigo a Sua Majestade."* Nao eram apenas os moradores pobres que pediam a fundagao de aldeias para o atendimento de suas necessida- des, Em 1675, o visconde de Asseca ¢ demais donatdrios da recém-criada capitania de Paraiba do Sul solicitavam ao Conselho Ultramarine 0 direito de retirar 10 casais de diversas aldeias de indios para que pudessem fundar outra em sua capitania."* Dois anos mais tarde fizeram nova peti¢ao para que os padres superiores das aldeias de Reritiba, Cabo Frio, Sao Barnabé e Itinga (todas aldeias grandes e de indios mansos) Ihes dessem, sempre que pedissem, todos os indios necessdrios que seriam pagos na forma do estilo, para com eles reduzir os bravos e aumentar as capitanias, 0 que incluia trabalhar em suas terras ¢ cuidar do gado."” O visconde obteve parecer favordvel, mas as decisdes da Metrdpole e seu cumprimento na colénia dependiam da cooperagio dos indios e dos missionérios, para os quais 0S aldeamentos nao se reduziam, absolutamente, a redutos de mao de obra. Em 1695, um morador, que pedia indios para fundar uma vila, reclamava contra os padres superiores por nao terem cumprido a provisio dada ao -visconde de Asseca, No mesmo ano, Manuel Jordao da Silva, interessado em fundar uma vila no Rio Grande, distrito do rio da Prata, solicitava a0 reitor do Colégio do Rio de Janeiro 50 casais de indios das aldeias de Reritiba, Cabo Frio, Sio Barnabé e Vitéria ¢ mais 30 solteitos das aldeias de Sao Paulo, necessdrios para essa povoagao, O reitor negou o pedido e a povoagio nao se fez, Trés anos mais tarde, o mesmo Manoel Jordéo da Silva acusava os padres da companhia de serem donos das aldeias por nao terem cumprido a ordem de Sua Majestade, dando-lhe todos os indios que precisasse.'* Os pardgrafos acima sublinham 0 papel da dinfimica das relagées entre os varios agentes sociais no que se refere a realizado de suas expectativas quanto as fungées dos aldeamentos. As situagdes € possibilidades modifi- cavam-se frequentemente conforme as regides, épocas ¢ circunstancias. Se na sociedade do Antigo Regime as leis se faziam ¢ s¢ transformavam de 18 Metamorfosesindigenas acordo com pressées locais ¢ influéncias dos varios agentes sociais na me trépole, incluindo os conselheiros do Ultramarino, importa ressaltar que a grande maioria delas tinha carater exclusivamente local. A diversidade regional da colénia, somada as imensas diferencas entre os varios grupos indigenas contatados e suas relacdes com os brancos, impunha um consi- deravel limite a legislacdo indigena de cardter geral. Embora algumas leis tenham sido gerais, com muita frequéncia eram estabelecidas para respon- der a deteminada questo especifica ¢ localizada, podendo ser estendida ou nao a outras regides, como foi o caso do Diretério de 1757, feito inicial- mente para a Amazénia e depois estendido para o resto do Brasil. Afinal, a quem serviam os aldeamentos? O quadro até aqui esbocado procurou demonstrar que a construcao ¢ 0 funcionamento das aldeias indigenas interessavam aos diferentes grupos sociais na colonia, embora se apresentassem a eles com fungdes ¢ significa- dos diversos. Em principio e conforme a legislago, deviam, portanto, ser vir a todos e especialmente 4 Coroa. Na pratica, contudo, a realizagiio dos interesses de uns esbarrava muito frequentemente, como se viu, nos dos demais, ¢ sua realizagao dependia entéo das disputas travadas entre ¢les. Os indios, em situagdo subalterna, foram sempre os maiores perdedores, mas nem por isso deixaram de lutar e obter alguns ganhos. Uma compara. ¢4o entre as disputas em torno dos interesses particulares nas aldeias das capitanias do Rio de Janeiro e de Sao Vicente é interessante e necessaria por duas razées: primeiro, por serem regides tao proximas ¢ intimamente ligadas ¢, nao obstante, apresentarem diferencas significativas quanto 4s relagdes entre indios, missiondrios e colonos; em segundo porque tais dife- rencas contribuem para reforcar meu argumento sobre as varias expectati- vas dos agentes sociais em relagdo as aldeias, evidenciando também que a legislagao e seu cumprimento dependiam do jogo de forcas entre os atores interessados, desenvolvido em contextos histéricos especificos, que po diam beneficiar ora uns ora outros. Assim, se na capitania de Sao Vicente pode-se dizer que os aldeamentos atendiam principalmente aos intereses dos moradores, 0 mesmo no ocorreu em outras regides. A aldeia de Sto

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