Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
21725-Texto Do Artigo-85742-1-10-20101115
21725-Texto Do Artigo-85742-1-10-20101115
Crítica e Reconstrução
Vítor Westhelle'
Sinopse
Este texto examina como a incred ui idade inseriu-se na história do Ocidente no ápice da própria
modernidade, sendo antes de tudo uma crítica às representações religiosas. Porém, a modernidade
significou não só um fim da fé, mas também um recomeço cujo destino e promessas ainda estão
sendo decididos à base da capacidade da teologia de reconstruir um discurso público numa era
em que a religião foi sanada de suas feridas no ambulatório privado da piedade e moral burgue
sas. O texto oferece primeiro um critério para o exame do discurso teológico como um discurso
mítico e examina, então, as condições de possibilidade e impossibilidade de sua desconstrução.
A seguir, discute duas vertentes de reconstrução teológica e suas limitações. Como conclusão, o
artigo oferece uma modesta proposta de entender o discurso sobre a religião como um discurso
transgressivo a margear os saberes disciplinares.
Palavras-chave: Modernidade; Iluminismo; Mito; Representação; Alegoria; Símbolo; Metáfora;
Ironia, Analogia.
Abstraet
This text examines how skepticism inserted itself in the history of Western ideas. Such skepticism
emerging at the c1imax of modernity came about, before ali, as a criticism of religious representations.
However, modernity represented not only an end to faith, but also a new beginning whose fate
and promise are still being decided on the basis of theology's capability to reconstruct a public
discourse in an era in which religion was healed in the private infirmary of bourgeois piety and
morality. The text offers first a criterion for the examination of the theological discourse as a myth,
and then probes the conditions of possibility of its deconstruction. Two avenues for theological
• Professor Titular na Lurheran Schoolof Theology ar Chicago (ISTC), autor de inúmeros artigos
em revistas brasileiras e estrangeiras.
Vitor Westhelle
reconstruction and their Iimitations are discussed. As a conclusion the article offers a modest
proposal for how to understand the religious discourse as a transgressive discourse emerging at
Key words: Modernity; Enlightenment; Myth; Representation; Allegory; $ymbol; Metaphor; Irony;
Analogy.
1 - Abertura
o pós-moderno, como Lyotard o definiu, é "a incredulidade para
com as metanarrativas."1 O que pretendo examinar é como esta
incredulidade inseriu-se na história do Ocidente no ápice da pró
pria modernidade - no iluminismo -, sendo antes de tudo uma
crítica às representações religiosas. E as respostas dadas a esta
crítica ensaiam as mesmas possibilidades do ressurgimento insidi
oso de metanarrativas, da persistente e inquilina presença da
metafísica ocidental, ainda em meio à sua denlJncia e às suas
rupturas. 2 Foi a modernidade, então, que abriu o "fosso abjeto e
vasto" (Lessing) que, nesta era pós-colonial, expande-se para tra
gar as representações não só religiosas, mas todas aquelas com as
quais o mundo ocidental inscreveu sua narrativa, sua ciência, suas
artes como normativas.
A denúncia da mitologia religiosa, do mito vigoroso e colori
do, sofisticou a arte diagnóstica de reconhecer, no logocentrismo
ocidental em geral, não mais do que uma mitologia dissimulada,
anêmica, branca, mas ainda assim, uma mitologia. 3 Esquecer esta
história é repeti-Ia, mas desta vez, como diria Marx, como uma
farsa. O chamado pós-modernismo inscreve-se assim no registro
fáustico da modernidade, ainda que o amplie e multiplique ad
nauseam os gestos ensaiados pela crítica da religião há mais de
dois séculos. Como disse Octavio Paz: "Os homens nunca soube
ram o nome do tempo em que vivem, e nós não somos uma
exceção a esta regra universal. Chamar-se pós-moderno é uma
I Jean-François LYOTARD, The Postmodern Condition, p. xxiv. [N. do E: Para dados bibliográficos
completos deste e dos outros títulos. cf. as Referências Bibliográficas abaixo.]
2 O mais prolixo dos assim chamados pós-modernos, Jacques Derrida (que refutaria o epíteto), faz
dessa observação o ponto agônico de sua filosofia: T.) I do not believe (...) that someday it will
be possible to simp/y, escape metaphysics." (_) "Breaks are always, and fatally, reinscribed in an
old c10th that must continually, interminably be undone." Jacques DERRIDA Positions, p. 17, 24.
3 DERRIDA Hargins of PhJ'losophy, p. 209-71.
9 Ibid., p. 364.
la Cf. ibid. o ensaio de LESSING, Ober den Beweis des Geistes und der Kraft, ibid., p. 221-25.
Hermeneutik, p. 123-41.
13 Certamente aí não está uma novidade radical. A mesma objeção já havia sido levantada pelo
nominalismo contra o realismo medieval ou, se quisermos, mais de um milênio antes pelo
sofismo. O que agora muda é que esta postura é dotada de um consenso cultural e uma
articulação teológica.
2 - Mitologia Religiosa
15 Uma versão elaborada desta teoria encontra-se em Richard V. CHASE, Quest for Hytl7.
18 "Und das Zeitbild. das der grosse Geist entfaltet/Ein Zeichen, liegt vor uns, dass zwischen ihm
und andem/Ein Bündnis zwischen ihm und andem Machten ist." HOLDERLlN, Cedichte
Hyperion. p. 134.
19 Poiesis é assim diferenciada da atividade reprodutiva (rechne), das relações intercomunicativas
(praxisl. da especulaçao contemplativa (rheoria) e da cognição (episteme).
20 HOLDERLlN, l14.'rke, p. 46.
21 5TRAUSS, Streitschriften zur Vertheidigung meiner Schrift über das Leben Jesu und zur
Charakteristik der gegenwJrtigen Theologie, v. 3, p. 61.
22 HOLDERLlN, WÉ'rke, p. 32-39.
23 Veja o epílogo de Helmut Bachmaier, in: HOLDERLlN. Cedichte-Hyperion, p. 295-325.
24 Ao definir a característica fundamental da representaçao religiosa (das Vortsellen), Hegel faz a
seguinte observaçáo: "Das Vortsellen hat daher wohl allenthalben den Widerspruch zu sei nem
Inhalte, kommt aber nicht zum Bewusstsein desselben: Cf. Georg W F. HEGEL Wissenschaft
der Logik, v. 2, p. 60.
25 Hegel faz similar observaçao quando afirma que na representaçao reigiosa "hat alies
nebeneinander ruhig Platz: Cf. HEGEL WÉ'rke, v. 16, p. 153.
Mas uma vez que a mente (Celso lança mão da oportunidade ofe
recida por este fato externo (a encarnação) para trazer à consciên
cia a idéia da união entre Deus e a humanidade, e vê na história
apenas a apresentação desta idéia, o obieto da fé muda completa
mente. Em vez de um fato sensível e empírico, tornou-se em uma
idéia espiritual e divina.26
3 - Alegoria
32 Ibid., v. 3, p. 230-31.
35 LUKÁCS, Estética, v. I, p. 26; cf. a maneira como Karl Popper demarca a separação entre o
âmbito das ciências e o da metafísica em The Logic of Scientific Discovety, p. 34-44. Uma
proposição ainda mais radical é apresentada pelo jovem Wittgenstein. Cf. Ludwig WlITGENsrEIN,
Tractatus fogico-phifosophicus, p. 112-15.
36 O caso mais exemplar desta postura na teologia nos oferece Karl Barth em sua discussão
sobre a relação entre revelação e história: "Geschichte kann wohl ein Pradikat der Offenbarung
werden, aber nie und nimmer wird die Offenbarung zum Pradikat der Geschichte. Wer Geschichte
sagt, sagt damit Nicht-Offenbarung. Geschichte bedeutet in der Theologie genau das was
Pontius Pilatus in Credo: Cf. Karl BARTH, Kirche und Theologie, in: Gerhard SAUTER (Hrsg.),
Theofogie und Wissenschafe Aufsatze und Thesen, p. \59.
37 "A synecdoche could then easily become the logical criterion of an element of an allegory (..J
Quintilian further equates synecdoche with ellipsis, which occurs 'when something is assumed
which has not actually been expressed'." Cf. Angus FLETCHER, Allegory: The Theory of a
Symbolic Mode, p. 85.
38 Ibid., p. 87
40 Ibid., v. 4, p. 448; cf. HEGEL, l#rke, v. 13, p. 512: uMan sagt es daher mit Recht der Allegorie
nach, dass sie frostig und kahl (...) sei."
41 Dionysios AREOPAGITA, Die Hierarcl7ien der Engel und der Kircl7e, p. 105; cf. LUKÁCS, Esté
tica, v. 4, p. 451.
42 Eugéne de Faye descreve a função alegórica corretamente como "Ie procédé qui consiste à
déscouvrir des rapports de ressemblance entre un texte et des idées qui lui son entiérement
étrangéres." Apud Hemi de LUBAC, Exégese médiéval Les quatre sens de l'Écriture, v. 4, p. 12Z
43 BARTH, Die kirchlicl7e Dogmadk, v. 3/1, p. I. O apelo a Barth para ilustrar aqui o procedimento
alegórico não almeja um exame de sua teologia, nem sugere uma equação de sua hermenêutica
com o procedimento alegórico da Escola de Alexandria. O objetivo é apenas ilustrar um
procedimento que, a partir dele, tornou-se muito comum nas assim chamadas teologias pós
críticas ou não-fundacíonalistas.
44 BARTH, Orrenbarung, Kirche, Theologie, in: Walther FUERST (Hrsg.), Diil/ektiscl7e Tl7eologie in
Scl7eldung und BewJhrung: /933-/936, p 159-60.
45 BARTH, Der R6merbrief, p. xii.
46 Ibid., p. viii.
47 Mesmo nos escritos tardios de Barth, onde o caráter histórico do evento de Cristo recebe mais
ênfase, esta característica de sua hermenêutica não muda. A validade histórica do evento de
Cristo está garantida pela fé que a deixa isenta de uma justificação estritamente histórica. Cf.
BARTH, Dogmiltik, v. 312, p. 531-37
48 Fundamentalismo significa tomar como lundamentação aquilo que, por sua própria definição,
não está fundado. O fundamentalismo é assim um produto marginal do alegorismo.
4 - Símbolo
Voltamos mais uma vez a Goethe para uma definição preliminar
da representação simbólica: "Esta é a verdade do simbolismo: um
particular representa o universal não como um sonho ou uma
sombra, mas como uma revelação viva e instantânea do
inescrutável."49 No símbolo, o significado não é circunscrito den
tro dos limites de uma forma finita alheia, mas coloca o finito em
movimento. "O símbolo," escreve Octavio Paz, "opera em direção
oposta à alegoria."50 Schelling chamou esta dinâmica da função
simbólica de história. 51 A história é uma sucessão de imagens
que, ao invés do que faz a alegoria, remete seu observador a bus
car, nos fragmentos oferecidos aos sentidos, traços e pegadas do
infinito nela incorporados. Considerado sob o ponto de vista finito
e histórico, o símbolo é o tecido mesmo da mitologia. Mas sob o
ponto de vista do infinito, do qual o símbolo é um traço, ele se
abre à intuição mística. 52 Todo simbolismo é uma unidade destes
dois pólos. O mito, neste sentido, então é originalmente e gene
ticamente um símbolo, ou um arranjo de símbolos, que recebe
ram uma forma cultural duradoura que lhes permite desempenhar
uma função ritual.
A ênfase no aspecto intuitivo do símbolo já havia sido perce
bida por Kant: "(...) simbolismo é apenas um modo de intuição."53
Mas foi com o romantismo de Goethe e Schelling que este enten
52 Ibid., p. 87-8. Isso também se expressa no aforismo de Schelling: "Die Menschwerdung Gottes
SS HEGEL, Werke, v. 13, p. 397-99; assim também Paul RICOEUR, Interpretation Theo/y: Dis
course and the Surplus of Meaning, p. S4- Z
S6 RICOEUR, Symbolism ofEvi/, p. 343.
57 Paul TILLlCH, Systematic Theology, v. I, p. 238-39; v. 2, p. 9-10.
58 Ibid., v. I, p. 240.
5 - Emoldurando
A alegoria e o símbolo como matrizes interpretativas das representa
ções religiosas ofereceram à teologia estratégias viáveis para a recons
trução das representações sob as condições da modernidade: a pri
75 Veia o excelente estudo sobre a analogia na modernidade apresentada por Michel FOUCAULT,
Tl7e arder of Things: An Archaeology of the Human Sciences, p. 46-77.
76 ARISTÓTELES, Tl7e "Art» of Rl7etoric, 111, xi, 5-6.
77 David TRACY, Blessed Rage for arder: The New Pluralism in Theology, p. IOZ Em uma forma
similar, distinguindo entre a apocalíptica e a doutrina, a dialética e a analogia, ou as clássicas
via negationis e via eminentiae, Tracy desenvolve o mesmo argumento em seu livro Tl7e
Analogicallmagination: Christian Theology and the Culture of Pluralism, 1981.
Referências Bibliográficas
Press, 196Z
BARTH, Karl. Kirche und Theologie. In: SAUTER, Gerhard. (Hrsg.)
Theologie und Wissenschaft: Aufsatze und Thesen. Munique:
Chr. Kaiser, 1971, p. 152-75.
- - o Die kirchliche Dogmatik. 4 Bd. Zurique: Zollikon, 1947-6Z
- - o Offenbarung, Kirche, Theologie. In: FUERSí, Walther. (Hrsg.)
Dialektische Theologie in Scheidung und BewJhrung: 1933
1936. Munique: Chr. Kaiser, 1966.
--o Der R6merbriefZurique: EVZ, 1940.
BAUER, Bruno. Feldzügederreinen Kritik Frankfurt: Suhrkamp, 1968.
CASSJRER, Ernst. The Philosophy ofSymbolic Forms. 3 vols. New
Haven: Yale University Press, 195Z
CASíORIADIS, Cornelius. Os destinos do totalitarismo e outros
escritos. Porto Alegre: LPM, 1985.
CHASE, Richard Volney. Quest for Hyth Baton Rouge: Louisiana
State University Press, 1949.
DERRIDA, Jacques. Hargins of Philosophy. Chicago: University of
Chicago Press, 1982.
- - o Positions. Chicago: University of Chicago Press, 1981.
FLETCHER, Angus. AllegOly.The Theory of a Symbolic Mode.lthaca:
Come" University Press, 1964.
FOUCAULT, Michel. The Order of Things. An Archaeology of the
Vítor Westhe//e
//00 E 55th Street
Chicago-fL 606/5-5/99
Estados Unidos da América