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Ficha Técnica 

Título: Tudo o Que Não Vemos 


Título original: The Reality Bubble 
Autor: n 9789892347967 
Revisão: Pedro Prostes 
Capa: Maria Manuel Lacerda 
ISBN: 9789892347967 
  
LUA DE PAPEL 
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© 2019, Ziya Tong 
Autorizada a tradução da língua inglesa da edição intitulada THE REALITY BUBBLE, publicada pela Penguin Canada.  
Edição portuguesa publicada por acordo com International Editors’ Co., The Cooke Agency International e Rick Broadhead &
Associates Inc.” 
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor 
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Ziya Tong 
 

TUDO O QUE NÃO VEMOS 


 
 
 
 
 
 

The Reality Bubble 


Blind Spots, Hidden Truths, and the
Dangerous Illusions that Shape Our World 
 
Traduzido por 
João Carlos Silva 
Para a minha família 
Até ao século XX, a realidade era tudo aquilo  
que os humanos fossem capazes de tocar, cheirar, ver e ouvir. Desde a
primeira publicação do mapa do espetro eletromagnético,  
os humanos aprenderam que aquilo que conseguem tocar, cheirar, ver e
ouvir é menos do que um milionésimo da realidade.  
Noventa e nove por cento de tudo aquilo que vai afetar  
os nossos amanhãs está a ser desenvolvido por humanos que usam
instrumentos e trabalham em frequências da realidade  
que não são humanamente sensíveis. 
R. BUCKMINSTER FULLER 
Introdução 

Todos temos um momento na vida em que acordamos para uma realidade


mais vasta. Para Ann Hodges, esse momento chegou no dia 30 de
novembro de 1954, precisamente à 1h46 da tarde, quando estava deitada
no sofá. O que ela sentiu nesse dia não foi tanto uma epifania mas mais
uma realidade dolorosa, quando um “míssil cósmico” de cor verde lima
cruzou o céu límpido da tarde, atravessou o telhado da sua casa, fez
ricochete num aparelho de rádio e a atingiu em cheio, de lado.  
Ann tornou-se uma celebridade instantânea: passou a ser a única pessoa
conhecida jamais atingida por um meteorito. Ao fim desse dia, já havia
centenas de pessoas, incluindo representantes dos media nacionais,
concentradas no seu pátio das traseiras, a fotografar o objeto extraterrestre,
a registar os danos sofridos pela casa e a olhar, num misto de espanto e
horror, para a marca negra, do tamanho de uma bola de futebol, que o
impacto lhe deixara na anca. 
Como estava a fazer uma sesta, Ann não deu pela queda espetacular da
bola de fogo. Houve testemunhas que a viram a atravessar três estados; os
aparelhos de televisão tiveram anomalias por causa da interferência
externa; e em Montgomery, no Alabama, a mais de cem quilómetros dali,
o estrondo sónico projetou um rapaz da bicicleta em que seguia. Quanto
aos habitantes locais, quando a estrela cadente finalmente atingiu o seu
ground zero, na localidade de Sylacauga, a maior parte pensou que tinha
ouvido um avião a cair ou uma bomba a explodir. 
No entanto, passadas umas semanas, como sucede com todos os
incidentes bizarros, toda a agitação já tinha esmorecido. Os jornalistas
fizeram as malas e voltaram para casa e os vizinhos regressaram às suas
vidas quotidianas. E se é verdade que, nesse dia, o meteorito causou
impacto em todos, só a perspetiva cósmica de uma pessoa foi alterada para
sempre. Para Ann Hodges, o universo, com os seus meteoros, chuvas de
cometas e supernovas, deixara de ser um lugar à parte, algures “lá longe”.
Nada disso. O cosmos, se quisesse, era bem capaz de nos entrar em casa e
de nos acordar com uma bofetada. 
 
Longe de serem idílicos e tranquilos, os céus são um inferno. Temos
chamas descontroladas e colunas asfixiantes de gás venenoso; a escuridão,
o caos e a destruição violenta estão praticamente por todo o lado. Na
verdade, se olhar esta noite para o céu na direção de Sagitário, mesmo por
cima da seta do arqueiro, verá na nossa galáxia um buraco negro
supergigante que, neste preciso momento, oculta tudo o que se encontra
no seu horizonte. 
Este é o universo em que vivemos. Mas não é isso que sentimos. O facto
de o leitor e eu estarmos neste momento relativamente calmos, o facto de
não nos encontrarmos tomados por um pânico absoluto perante o caos
total e completo que se encontra suspenso sobre as nossas cabeças, deve-
se a vivermos numa bolha, uma bolha física chamada atmosfera. Do
espaço, esta cúpula é claramente visível. É uma película fina e de um
branco azulado que funciona como um campo de forças planetário:
bloqueia radiações letais, mantém a temperatura dentro de uma amplitude
pequena (em comparação com os extremos que se registam no espaço) e
incinera a maior parte dos meteoros que, de outro modo, pulverizariam a
superfície da Terra. 
Enquanto seres humanos, também vivemos dentro de outra espécie de
bolha: uma bolha psicológica que molda as nossas ideias sobre o mundo
de todos os dias. Esta é a nossa “bolha da realidade”. Assim como as
rochas que viajam a uma velocidade supersónica têm dificuldade em
penetrar na atmosfera terrestre, também os factos indesejáveis e as ideias
desconhecidas quase nunca ultrapassam a membrana da bolha da
realidade. Ela protege-nos de pensar nas forças “lá longe” que estão
aparentemente fora do nosso controlo e permite-nos prosseguir com o dia
a dia das nossas vidas. 
Mas os problemas surgem com uma força redobrada e assistimos a isso
repetidamente. Sejam as bolhas do imobiliário ou as bolhas da bolsa, ou as
bolhas políticas, estar numa bolha significa, por definição, que temos uma
perceção deformada da realidade. E, no fim, todas as bolhas partilham o
mesmo destino: inevitavelmente, rebentam. 
Por isso, faríamos bem em ter presente que até as nossas conceções mais
estáveis do mundo podem ser viradas do avesso. Durante mais de 200
anos, pensou-se que o universo era governado pela física newtoniana – e
depois apareceu Einstein. Mas nem sempre é preciso um génio para
alargar a nossa visão do mundo. Às vezes, isso pura e simplesmente
acontece. Para Ann Hodges, foi quando um meteorito lhe entrou uma
tarde, como um torpedo, pelo telhado de casa. E, para si, pode ser por
causa do livro que tem neste momento nas mãos.  
 
Nós, humanos, temos a tendência para pensar que possuímos um retrato
fiel do mundo, mas muitas vezes estamos enganados. E isso é porque
todos nascemos com um ângulo morto. Na verdade, temos dois: um em
cada olho. Da mesma forma que seríamos incapazes de ver todo o ecrã do
cinema se nos dessem um lugar manhoso atrás do projetor, há uma área na
parte de trás dos nossos globos oculares onde não crescem recetores de
luz, porque é precisamente aí que o nervo ótico se liga ao nosso cérebro.
E, no entanto, apesar de a área que ela eclipsa ser relativamente grande
(nove luas cheias no céu podiam caber neste lapso de visão), a maior parte
de nós nunca sequer reparou nisso. 

A melhor maneira de ver aquilo que não conseguimos ver é com os


nossos olhos. Sendo assim, vamos espreitar. Tape o olho esquerdo e olhe
para a bola em cima com o direito. Agora, sempre com o olhar fixo na
bola – tendo consciência de que a cruz está lá, mas não a fixando –
comece a mover a cabeça lentamente para a frente e para trás: aproxime-se
e afaste-se do livro. Vai reparar que a certa altura a cruz desaparece de
repente; sai da visão. Facto extraordinário: esta mancha branca não é
registada pelo cérebro como uma espécie de vazio. Em vez disso, o nosso
cérebro compensa o vazio e, através da nossa própria versão percetual de
Photoshop, até preenche corretamente a cor de fundo. Os nossos ângulos
mortos são perfeitamente camuflados. Não vemos a nossa própria
cegueira. 
Seria de pensar que um ângulo morto assim tão óbvio teria sido detetado
há muito tempo, mas isso só aconteceu quando um físico francês chamado
Edme Mariotte começou a dissecar um olho e reparou no feixe de nervos
ligados à retina. Interrogou-se então sobre se não estariam a bloquear-nos
a visão. Fazendo ele próprio algumas experiências com a sua visão,
descobriu aquilo que, no século XVII, rapidamente se tornou uma mini
sensação. Foi uma delícia para os nobres da corte real, que se deleitaram
com o truque de se fazerem desaparecer uns aos outros sem terem sequer
de piscar os olhos. A lenda diz que, do outro lado do Canal da Mancha, o
Rei Carlos II fazia este truque visual com os seus prisioneiros,
decapitando-os visualmente no cérebro antes de os executar na vida real. 
Claro que os ângulos mortos não estão apenas nos nossos olhos;
também estão no que se encontra à nossa volta. A palavra francesa, angle
mort, diz tudo: anualmente, só nos Estados Unidos, acontecem 840 mil
acidentes de automóvel só porque não somos capazes de ver qualquer
coisa muito grande a vir na nossa direção, até que ela entra de repente no
nosso ângulo de visão. 
 
O filósofo Ludwig Wittgenstein afirmou em tempos que “os aspetos das
coisas que são mais importantes para nós estão escondidos por causa da
sua simplicidade e familiaridade”. Pondo as coisas de outra maneira,
muitas vezes não somos capazes de ver as coisas que estão à frente do
nosso nariz. Já todos tivemos essa experiência: andámos à procura das
chaves por toda a parte quando elas estavam mesmo à nossa frente, na
bancada da cozinha. 
Cada um de nós, individualmente, pode ser cego face àquilo que é
evidente, mas coletivamente, como sociedade, também pode ser assim.
Pensem neste facto curioso: no século XXI, existem câmaras por todo o
lado, exceto nos locais de onde vem a nossa comida, de onde vem a nossa
energia e para onde vai o nosso desperdício. Como é possível que a
espécie mais poderosa do planeta seja cega à forma como sobrevive? 
Pode dizer-se que nós, os humanos modernos, interagimos com a
natureza como se vivêssemos numa bolha. É a razão pela qual, no Reino
Unido, um em cada três jovens adultos não sabe que os ovos provêm das
galinhas, um terço das crianças acredita que o queijo cresce em plantas e
uns extraordinários 40 por cento dos jovens não fazem ideia nenhuma de
que o leite vem das vacas. Para estes miúdos, a comida vem de onde é
óbvio que vem: “Dah!” Do supermercado, claro. 
Não é que os jovens não sejam inteligentes; o que se passa é que o seu
foco de atenção mudou. A criança média nos Estados Unidos passa 45
horas por semana a olhar para meios eletrónicos e apenas meia hora no
exterior em atividades extraescolares. Sendo assim, não é de estranhar que
o mundo cultural oculte o mundo natural. Mergulhada neste ambiente, a
criança norte-americana média consegue reconhecer mil logotipos de
empresas, mas é incapaz de identificar dez plantas ou animais da zona
onde vive. 
Os adultos não estão muito melhor. De dentro da bolha, a origem da
nossa maior fonte de energia – o combustível que alimenta a nossa
economia global – é também uma grande desconhecida. Perca um bocado
de tempo a fazer perguntas à sua volta e depressa descobrirá que a pessoa
média não faz nem ideia do que é o petróleo. O líquido com que enchemos
os depósitos de combustível dos nossos carros para chegarmos ao trabalho
não provém da polpa de dinossauros, mas cada depósito de combustível é
alimentado realmente por mil toneladas de vida antiga. Então qual é a
espécie extinta que alimenta as nossas idas e vindas? E o que provocou
essas valas comuns gigantes que, cozinhadas à pressão, se transformaram
nos ricos campos de petróleo negro que hoje perfuramos para obter
energia? 
Por fim, somos excecionalmente cegos àquilo que deitamos fora. Dos
excrementos ao lixo e aos resíduos tóxicos, vivemos na ilusão de que é
possível fazer desaparecer os dejetos ou de que eles podem ser levados
pela água com um simples carregar de um botão, como que por magia. O
facto de os nossos desperdícios irem para algum lado, de a nossa própria
poluição ser capaz de encontrar o seu caminho para chegar aos alimentos
que consumimos, à água que bebemos e ao ar que respiramos, é uma das
razões para a raça humana estar hoje, literalmente, na merda. 
A questão é que a nossa ignorância como espécie seria muito mais
simples de ultrapassar se não fôssemos também tão inteligentes. No fim
de contas, somos os animais mais espertos ao cimo da Terra. Somos os
primatas com superpoderes. Somos capazes de voar à velocidade do som e
comunicar através do planeta à velocidade da luz. A nossa espécie
descobriu como mexer no ADN e alterar os próprios códigos que
governam a vida. 
Mas o problema é que a vida está a desaparecer. 
Cientistas dizem-nos que estamos atualmente no meio da sexta grande
extinção. Na Terra, das abelhas às zebras, as populações animais caem a
pique. No mar, as reservas de peixe desaparecem e os recifes de coral
sofrem do fenómeno de branqueamento. Os glaciares estão a derreter. As
secas aumentam. Os incêndios florestais estão descontrolados. A
população está a explodir e o clima está a mudar. A perceção angustiante
da catástrofe aproxima-se de dia para dia e, no entanto, quando esticamos
os braços… é apenas para tirar mais uma selfie. 
O facto de algures nas nossas mentes sabermos que a civilização está à
beira do desastre explica a nossa obsessão cultural com o apocalipse
zombie. Estas fantasias negras vêm de algum lado. Todos sabemos que as
coisas andam muito, muito mal, mas viver numa bolha significa que, por
agora, somos capazes de o ignorar. Em vez disso, canalizamos o nosso
incómodo coletivo sob uma forma de diversão, fazendo troça do nosso
próprio medo de um aparente desastre social iminente. Das séries de
televisão aos guias de sobrevivência, “brincamos” com a construção de
bunkers e com o armazenamento de armas e de alimentos. Em cidades à
volta do mundo, dezenas de milhares de pessoas reúnem-se em “marchas
zombie”, maquilhadas de forma assustadora e vestidas com andrajos,
coxeando ao som cavo do cântico que anuncia um único e bizarro desejo. 
E o que é que os zombies querem? Os zombies querem céééérebros.  
Vale a pena perguntar se seríamos capazes de subsistir se não existisse
uma estrutura social para assegurar a sobrevivência. Porque, quando
pensamos nisso, o nosso sistema de sociedade funciona precisamente
porque nós nos comportamos em conformidade com ele, como se
fôssemos zombies desprovidos de cérebro. A população humana chega
quase aos oito mil milhões e marcha ao ritmo dos tambores capitalistas:
comer, trabalhar, comprar e dormir. Bom, isto até podia ser alguma coisa,
se gostássemos dela, mas não gostamos. A sério, já encontraram alguém
na vida que goste de andar ao ritmo desta corrida de ratos? 
Assim, uma vez que a humanidade enfrenta consequências graves e que
a maior parte de nós nem gosta daquilo que faz, a questão que se coloca é:
porque é que o fazemos? 
O grande mito, argumento eu, é que fomos educados a acreditar que não
há outra maneira de o fazer. Dizem-nos simplesmente que é assim que o
sistema funciona. Mas e se houver uma outra maneira? E se este “mundo
real” em que estamos tão envolvidos não for de todo nada real? E se
conseguíssemos dissipar o nevoeiro que envolve os maiores ângulos
mortos da humanidade para podermos ver com mais clareza e começar a
descobrir o que se encontra para lá da nossa bolha de realidade? 
Uma frase famosa de Proust é: “A verdadeira viagem de descobrimento
não consiste em procurar novas paisagens, mas em ter novos olhos.” E,
por isso, a nossa viagem deve principiar exatamente onde estamos: a olhar
para o mundo comum, quotidiano, onde vivemos, de uma forma nova e
extraordinária. 
 
Em Eles Vivem, o filme de culto de ficção científica realizado por John
Carpenter em 1988, um nómada chamado John Nada apodera-se de um
par de óculos especiais que revela “verdades” que os cidadãos comuns não
são capazes de ver. Quando os põe e olha para anúncios em revistas,
cartazes ou na televisão, vê as mensagens verdadeiras que lá estão:
obedecer, consumir, respeitar e continuar adormecido. 
Como parábola moderna, o filme teve impacto. A sua influência pode
ser vista em filmes, jogos de vídeo e arte de rua, como na série Obey de
Shepard Fairey, nos cartazes políticos de Hal Hefner e em memes na
Internet. A mensagem secreta do filme é esta: se ao menos existissem uns
óculos assim, as pessoas podiam começar a questionar porque é que a
realidade não é o que parece. 
Felizmente, existe mesmo uma coisa dessas. 
Neste livro, vamos aventurar-nos ao mundo que nos rodeia e não está à
vista, mas em vez de óculos de ficção usaremos lentes científicas para
trazer para debaixo da luz pontos de vista que estão escondidos. E vamos
fazer isso porque os instrumentos científicos são, de uma maneira muito
real, os nossos novos olhos, dando-nos capacidades sobre-humanas para
ver e para ouvir que estão muito para lá do que os nossos sentidos são
capazes de se aperceber. 
Nos programas sobre crimes reais, vemos muitas vezes uma amostra
daquilo que a ciência moderna é capaz de revelar. Uma sala bonita e limpa
pode parecer perfeitamente normal a olho nu, mas depois de os
investigadores a pulverizarem com luminol – um produto químico que
reage ao ferro contido na hemoglobina – e apagarem a luz, o brilho azul
néon do produto ilumina salpicos de sangue na parede – e revela um
arrepiante local de um crime. 
Temos a tendência para acreditar que ver é crer, mas há imensa coisa
que não conseguimos ver sem ajuda. O mesmo é verdade para o mundo à
nossa volta. A nossa visão é fraca em comparação com os instrumentos
científicos mais avançados. Os telescópios permitem-nos ver galáxias a
mais de 13 mil milhões de anos-luz de distância, e com microscópios
eletrónicos podemos ampliar até ao nível atómico para ver e tocar os
alicerces essenciais do nosso universo. 
Então, nas páginas que se seguem, a realidade vai parecer às vezes
bizarra e desorientadora. É como cair na toca do coelho no País das
Maravilhas. Vamos diminuir de tamanho, ou ficar gigantes e até daremos
connosco a perceber a linguagem de outros animais. Aplicar esta lente
científica ao mundo à nossa volta altera radicalmente as ideias que
fazemos dele, permitindo-nos questionar o que nos rodeia, o que nos
sustenta e, o que talvez seja o mais importante, o que nos controla. 
 
Enquanto jornalista e autora de programas de ciência, passei mais de
uma década a entrevistar alguns dos maiores cientistas e pensadores do
mundo – e a aprender com eles. Uma das grandes vantagens de trabalhar
com cientistas de muitos campos fascinantes é que isso me deu um vasto
espetro de conhecimento científico, permitindo-me partilhar e comunicar
o saber de um grande número de disciplinas. Estas disciplinas diferentes
são como as peças de um puzzle. Individualmente, cada uma dá-nos uma
pista do que está a acontecer, mas só quando as juntamos somos capazes
de ver o quadro completo. 
E agora, mais do que nunca, precisamos de ver com clareza, porque nos
encontramos numa encruzilhada crítica da história humana. A nossa
espécie está bloqueada numa rota de colisão fatal, uma rota que ameaça
extinguir a vida na Terra precisamente porque a nossa visão da realidade é
incompatível com a verdade científica. Em vez disso, o que chamamos de
“senso comum” deixa-nos cegos há já muito tempo. 
Neste livro, examinaremos dez dos maiores ângulos mortos da
humanidade. A primeira parte começa com uma apresentação dos ângulos
mortos com que todos os indivíduos nascem e revela como a ciência e a
tecnologia nos permitem ver para além dos nossos limites biológicos.
Com esta nova forma de visão, faremos a viagem através do mundo de
todos os dias para revelar aquilo que os nossos olhos são incapazes de
distinguir. 
Na segunda parte, olharemos para os nossos ângulos mortos coletivos e
investigaremos a forma como, enquanto sociedade, caímos na cegueira de
uma forma voluntária. Focar-nos-emos nos aspetos mais críticos da nossa
biologia básica – comida, energia e desperdícios – e veremos como a
ciência transformou radicalmente o sistema de suporte de que as nossas
vidas dependem – e criou um mundo que é quase completamente opaco
para a pessoa comum. 
Por fim, na terceira parte, examinaremos os ângulos mortos
intergeracionais. São formas de pensar no mundo que parecem naturais,
ou inevitáveis, mas que são, na verdade, maneiras de ver herdadas e
passadas de geração em geração. Examinaremos aqui a forma como
navegamos através das imensas dimensões do espaço e do tempo, como o
peixe da fábula, que não conhece a água em que nada. 
Carl Sagan afirmou que “a nossa espécie precisa, e merece-a, de uma
cidadania com mentes despertas e um conhecimento básico de como
funciona o mundo”. Este livro é uma humilde tentativa de dar resposta a
essa necessidade. Comecemos então. 
PARTE UM 

ÂNGULOS MORTOS
BIOLÓGICOS  

O QUE ESTÁ À NOSSA VOLTA 



O Frasco Aberto 
Onde acaba o telescópio, começa o microscópio.
Qual dos dois tem o panorama mais grandioso? 
VICTOR HUGO 

Dondidier desapareceu num abrir e fechar de olhos, mas este


desaparecimento não fazia parte do número de circo. Como noticiou o
Hamilton Daily Times no dia 16 de agosto de 1913, foram rapidamente
enviados para o local detetives com cães pisteiros para tentarem descobrir
o artista, desaparecido dois dias antes da noite de estreia. Felizmente, o
espetáculo não foi adiado. Na sexta-feira à noite, o acrobata foi visto por
um membro da troupe circense, escondido na tenda principal. O caso
chegou aos jornais, mas para o público a grande história não foi tanto o
seu misterioso regresso e sim o seu valor. A estrela do circo estava
avaliada em 500 dólares (o que hoje seriam mais de 12 mil dólares, perto
de 11 mil euros); uma quantia obscena fosse qual fosse o ponto de vista,
visto que Dondidier era apenas uma pulga. 
Um século antes do brilho dos holofotes de Hollywood, o maior
espetáculo do mundo era mínimo: era o circo de pulgas. Era uma sensação
internacional e multidões percorriam grandes distâncias até cidades como
Nova Iorque, Paris e Londres para ver os parasitas atuar. Havia as pulgas
bailarinas, as pulgas que travavam duelos com espadas, as pulgas
disparadas de canhões, as pulgas halterofilistas, as pulgas equilibristas, as
pulgas dançadoras de tango e as pulgas trapezistas. O público, espantado
pelas ousadas proezas em miniatura, aplaudia a mais detestada de todas as
criaturas: a Pulex irritans, a pulga humana sugadora de sangue e
transmissora de doenças, que fora colocada sob as luzes da ribalta e
tornara-se uma estrela. 
A popularidade do circo de pulgas estava, em parte, no seu segredo bem
guardado. A grande questão, no fundo, é: como se treina uma pulga? Os
insetos, encontrados literalmente no sofá do casting, eram fugitivos hábeis
e podiam facilmente saltar do palco e escapar. Sob perguntas insistentes,
os adestradores de pulgas, ou “professores”, como eram formalmente
conhecidos, lá acediam a revelar um truque para domar as minúsculas
feras: para manter os animais sempre controlados, guardavam-nos numa
prisão invisível. 
Como? As pulgas eram colocadas num pequeno frasco de vidro, que era
em seguida cuidadosamente selado. Sendo parasitas sem asas que
evoluíram para pular para cima dos hospedeiros e conseguir a sua refeição
de sangue, as pulgas têm pernas como molas que lhes permitem saltar
mais de cem vezes a sua própria altura e, além disso, a resistência para dar
mais de 30 mil saltos. Só que, dentro do frasco, estas proezas atléticas
funcionavam contra elas: quando pulavam, os seus corpos batiam com
força, e repetidamente, contra a tampa. 
Para evitar a dor, as pulgas aprenderam depressa; em vez de saltarem
muito, saltavam menos – e assim não batiam na tampa. Quando chegavam
a esta fase, explicavam os professores, podia tirar-se a tampa que os
insetos já não fugiam. Para as pulgas, a liberdade estava só a um pulo de
distância, mas a armadilha tinha sido colocada nas suas mentes. 
Era uma boa história. Suficientemente boa para satisfazer os mais
curiosos – só que não era verdadeira. E embora esta versão do treino de
pulgas possa ainda hoje encerrar uma lição para a sociedade humana, seria
inútil com as próprias pulgas. Como os “professores” sabiam muitíssimo
bem, era impossível treinar os pequenos sugadores de sangue; é que, se se
colocar uma pulga dentro de um frasco e se tirar a tampa, o inseto, está
bem de ver, foge. 
Mas, quando espreitavam através de lentes de aumentar, as pessoas
juravam ver as pulgas a dançar e a fazer equilibrismos, por ordem do seu
mestre. Ou seja, a questão permanece: como é que os insetos realizavam
os seus números incríveis? O que se passa é que este número divertido
tinha um lado negro. Para as pulgas, era uma verdadeira tortura. 
Os insetos, vestidos com tutus cor-de-rosa e colados a minúsculas
sombrinhas, não eram participantes voluntários no espetáculo. As suas
trelas de fio metálico dourado eram arneses que os aprisionavam. Por
exemplo, as pulgas “futebolistas” jogavam com uma bola minúscula
embebida em citronela, uma substância tão repelente para elas que a
afastavam assim que havia contato. As “malabaristas”, por outro lado,
eram mantidas deitadas de costas com cola e o movimento das pernas
fazia rolar por cima delas uma bolinha de cotão. Quanto aos músicos da
“orquestra” de pulgas, estavam presos a cadeiras de uma caixa de música,
cada um deles com um instrumento miniatura fixado às pernas. Depois,
com uma pancada em cada um – ou, às vezes, de forma mais sádica, com
a ajuda de uma chama acesa por baixo –, começavam a espernear com as
patas livres, dando a impressão de que estavam a agitar-se ao ritmo da
música. 
Agora, antes de darmos a deixa de entrada ao pequeno violinista,
devemos recordar-nos de que, para a pessoa média, a vida de uma pulga
não vale nada. Nem cem vidas. Ou mil. Nem pestanejaríamos perante um
Armagedão global das pulgas; ficaríamos bem contentes por nos vermos
livres delas. Mas, estranhamente, quando as pessoas hoje vêm no
YouTube pulgas “halterofilistas” a puxar pequenas carroças ou pulgas
“acrobatas” a caminharem sobre cordas bambas, quando tudo se passa
num ecrã a uma escala com a qual conseguimos interagir, com os insetos
ampliados como micro estrelas de cinema, a reação altera-se: Estão a
magoar as pulgas! As trelas estão a estrangulá-las! Isto é crueldade sobre
os animais! Lembrem-se: é mais do que provável que estas pessoas, nas
suas próprias casas, esmagassem instantaneamente os parasitas e lhes
dessem com inseticida. 
A questão é esta: enquanto gigantes, os seres humanos têm tendência
para tratar a vida pequena como se fosse insignificante. Como o
especialista em pulgas e entomologista Tim Cockerill já observou: “Às
vezes, numa cidade como Londres, vemos uma partícula pequeníssima a
flutuar no espaço ou a pousar numa mesa, ou na nossa própria cerveja no
pub, e a maior parte das pessoas não pensa nela como se fosse vida. Pega
nela e afasta-a, como se fosse uma partícula de pó, ou de cotão, ou outra
coisa qualquer, mas na realidade trata-se de diversidade animal. Se
dedicarmos um instante a observar essa partícula, abre-se um mundo
inteiramente novo.” 
E é verdade. De facto, já se descobriu assim espécies inteiramente
novas.1 
 
Robert Hooke [1635-1703] era um gigante intelectual, mas, por causa
da escoliose e da doença de Pott, também era corcunda. Considerado por
alguns como o Leonardo da Vinci de Inglaterra, deixou um número
impressionante de contributos nas áreas da astronomia, biologia, física,
paleontologia e até arquitetura. Desenvolveu a teoria de que a luz era uma
onda, provou a existência do ar, definiu os limites da visão humana,
descobriu e batizou a célula, deduziu que os fósseis eram restos de coisas
que em tempos tinham vivido, e propôs a ideia, então inconcebível, de que
as espécies podiam desaparecer por extinção. Mas, hoje, é mais conhecido
por um desenho icónico: uma ilustração ampliada de uma pulga. 
Ocupando quatro páginas, o inseto ampliado, “apresentado com a
precisão anatómica de um rinoceronte”, como escreveu Allan Chapman,
historiador de Oxford, apareceu como desdobrável no bestseller
Micrographia, publicado por Hooke em 1665. E embora a personalidade
flagrantemente difícil de Hooke o tenha tornado impopular entre os
colegas académicos2, o seu livro valeu-lhe pelo menos muita popularidade
entre o público. Em Micrographia, mostrou as maravilhas do mundo
ampliado: ilustrações de ferrões de abelhas, de patas de moscas, de dentes
de caracol (possuem mais de 20 mil) e até de ácaros do queijo. O
pormenor das imagens ainda hoje é capaz de espantar muitas pessoas,
mas, para os que viam pela primeira vez estes “corpos minúsculos”, o
livro era, no mínimo, impressionante. 
Por causa de Micrographia, a pulga foi elevada à condição de musa
microscópica. E, inspirado pelas ilustrações de Hooke, outro homem
decidiu aprofundar ainda mais o conhecimento do mundo do minúsculo.
Utilizando lentes cada vez melhores, até conseguir uma ampliação de 270
vezes3, Anton van Leeuwenhoek foi um contemporâneo de Hooke cujos
poderosos microscópios caseiros eram tão bons que lhe garantiram o título
de “pai” de uma nova área: a microbiologia. 
Conseguindo ampliar até ao nível do mícron, ou de um milionésimo de
metro, Van Leeuwenhoek conseguia ver muito para além da capacidade do
olho nu. E foi assim que um dia, ao examinar umas gotas de água de
chuva que tinha recolhido numa panela, fez uma descoberta assombrosa.
Mexendo-se debaixo dos seus olhos, numa escala extraordinariamente
pequena, havia pequenas criaturas a nadar no líquido. Eram mais pequenas
do que qualquer coisa que ele já tivesse visto. Chamou-lhes animalcules. 
É importante recordar que aquilo a que hoje chamamos micro-
organismos não existia oficialmente no século XVII. Van Leeuwenhoek
foi o primeiro a ter acesso a um mundo que antes era invisível ao olho
humano. Por isso, quando em 1673 começou a documentar as suas
descobertas, numa série de cartas dirigidas à Royal Society de Londres, os
principais cientistas da época não se mostraram apenas céticos: pensaram
que ele estava com alucinações ou, provavelmente, louco. 
No entanto, uma coisa que Van Leeuwenhoek tinha a seu favor era o
facto de ser prolífico. E, à medida que começou a olhar de perto para as
coisas do quotidiano, elas transformaram-se em maravilhas ampliadas. Em
1673, orientou a sua lente para a força da vida que passa através de todos
nós, quando colocou sob o microscópio uma gota do seu próprio sangue.
Acontece que o líquido continha sólidos: ele viu, a correr pelas nossas
veias, células sanguíneas, que descreveu como “glóbulos” côncavos. 
Em 1677, espiou uma forma de vida inteiramente nova e descobriu os
protozoários. Criaturas tão “pequenas, perante a minha vista, que calculei
que mesmo que cem destes animais fossem postos em fila uns a seguir aos
outros, não seriam capazes de atingir o tamanho de um simples grão de
areia”. Nesse mesmo ano, fez a sua maior descoberta, ao examinar outro
fluido corporal, o seu próprio sémen. Tornou-se a primeira pessoa a ver
células vivas de esperma, aumentadas e “a moverem-se como uma cobra
ou uma enguia a nadar na água”. 
Em 17 de setembro de 1863, numa carta à Royal Society, Van
Leeuwenhoek revelou que tinha orientado o seu trabalho de detetive para
a higiene oral. Ao observar a placa, ou “matéria branca”, entre os seus
dentes, abriu um portal para uma nova dimensão: “Vi então quase sempre,
com grande espanto, que na dita matéria existiam muitos pequenos
animálculos vivos, a moverem-se muito bem. Os maiores… tinham um
movimento muito forte e rápido, e cruzavam a água como faz um peixe.
Os da segunda espécie… às vezes giravam como um pião… e estes eram
bem mais numerosos.” 
Ali, na sua própria boca, encontrara uma metrópole de vida na fronteira
mais remota do mundo microscópico. Ainda hoje são os mais pequenos
seres vivos que conhecemos. Van Leeuwenhoek tinha descoberto as
bactérias.4  
Mas na comunidade científica ainda havia fortes dúvidas sobre as suas
ousadas alegações. Numa carta a Robert Hooke, o holandês escreveu:
“Enfrento muita oposição e oiço muitas vezes que só conto histórias
inventadas sobre os pequenos animais.” E por isso a Royal Society
solicitou ao eminente Hooke que repetisse e confirmasse as descobertas de
Van Leeuwenhoek. 
Hooke já tinha espreitado por um microscópio, mas quando chegou à
ampliação de Van Leeuwenhoek aquilo que viu era intrigante e
“ultrapassava o entendimento”. E, no entanto, era verdade. Na sua carta à
Royal Society, comunicou: 
 
“Aqui envio os testemunhos de oito pessoas credíveis; algumas das quais afirmam ter visto
10 mil, outras 30 mil, outras 45 mil pequenas criaturas vivas, numa quantidade de água tão
grande como um grão de milho miúdo (são necessários 92 para atingir o tamanho de uma
ervilha, ou a quantidade de uma gota natural de água)… De acordo com alguns dos
testemunhos aqui incluídos, podem encontrar-se nada menos de 45 mil animálculos numa
quantidade de água do tamanho de uma semente de milho miúdo. Daqui se segue que numa
gota normal desta água não haveria menos de 4.140.000 criaturas vivas, cujo número, se
duplicado, resultaria em 8.280.000 criaturas vivas vistas na quantidade de uma gota de água,
quantidade essa que posso, com verdade, afirmar que distingui.” 
 
Sob a lente de vidro do microscópio, tinha-se aberto de par em par uma
pequena janela, e o universo que através dela revelado era gigantesco. 
 
Tendemos a esquecer que, à escala das coisas vivas, somos enormes.
Parece-nos que a realidade tem uma escala humana, mas na verdade 95
por cento das espécies são mais pequenas do que o polegar humano. Até
pequenos animais como as pulgas são gigantescos em comparação com as
formas de vida microscópicas que os habitam. Como diz a velha rima
“Siphonaptera”: “As pulgas grandes têm pulgas pequenas / Nas costas
para as morderem / E as pulgas mais pequenas têm pulgas mais pequenas /
E assim por diante, até ao infinito”. Em suma, até os nossos parasitas têm
parasitas. Perante isso, vale a pena parar um momento para pensar
exatamente no que é um “parasita”. O termo implica uma pequena criatura
cuja própria existência e modo de vida é um incómodo. As pulgas são
apenas uma entre a imensidade de espécies que desprezamos. E com
razão: está mais do que provado que a pulga da ratazana foi hospedeira da
bactéria Yersinia pestis, que matou milhões de pessoas em todo o mundo,
mais especificamente relacionada com a Peste Negra, a pandemia que
atingiu o seu auge na Europa do século XIV.5 Por causa disto, alguns já
questionaram se as pulgas são sequer necessárias. Como alguém já
escreveu na Net: “Há criaturas que não servem qualquer fim. As pulgas
são um exemplo. Não polinizam flores, não são predadores nem destroem
quaisquer insetos nocivos. Na verdade, sugam sangue de pessoas e
animais distraídos, ao mesmo tempo que passam organismos prejudiciais
para as suas correntes sanguíneas!” Mas a pulga não é a única apontada
como “indigna” de permanecer viva. Temos atitudes semelhantes para
com as baratas, os mosquitos, os ácaros, os percevejos, as vespas, as
traças, as aranhas, as moscas e muitos dos pequenos insetos indesejáveis
que pululam à volta das nossas casas. Decidimos que animais devem viver
e devem morrer. Dividimos os animais entre aqueles que admiramos ou
dos quais retiramos vantagens – insetos que são belos ou têm uma
finalidade, como as borboletas e as abelhas – e aqueles que preferiríamos
exterminar, em especial quando competem pelos nossos alimentos no
reino da agricultura. 
Por causa disso, desencadeámos a nossa própria “Peste Negra”, uma
guerra química sem quartel contra estes pequenos invasores. À escala do
planeta, os produtos agroquímicos e os pesticidas tornaram-se uma
indústria de muitos milhares de milhões de dólares que cresce ano após
ano.6 Mas, na tentativa de eliminar parasitas indesejados, lançamos todos
os anos sobre as nossas plantas e os nossos solos mais de dois milhões de
toneladas de pesticidas. Não surpreende que estejamos a fazer mal não só
aos insetos de que não gostamos; estamos também a destruir os insetos de
que gostamos. 
Os cientistas afirmam que estamos a presenciar um colapso catastrófico
de populações de insetos. Um estudo alemão concluiu que, em reservas
naturais protegidas, o número de insetos tinha caído a pique, em 80 por
cento. Rodolfo Dirzo, um ecologista da Universidade de Stanford,
documentou um declínio de 45 por cento à escala global das populações
de insetos nas últimas quatro décadas. E na Lista Vermelha da União
Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), 42 por cento dos
3.623 invertebrados que são seguidos estão sob ameaça de extinção.7 
No nosso desejo de exterminar insetos, perdemos a noção de como eles
são fundamentais para a sobrevivência humana, mas o efeito em cascata
faz-se sentir de imediato na cadeia alimentar. Como avisa o biólogo
britânico Dave Goulson, estamos “atualmente a caminho de um
Armagedão ecológico. Se perdermos estes insetos, então entrará tudo em
colapso”. É que os insetos não ajudam só com a polinização. Eles são os
homens do lixo da natureza e, ao mesmo tempo, recicladores. Como
observa Goulson: “Sem insetos, não teríamos a maior parte das frutas e
dos vegetais que gostamos de comer, e também coisas como café e
chocolate. Os insetos também ajudam a desfazer folhas, árvores mortas e
cadáveres de animais. Ajudam a reciclar nutrientes e voltam a
disponibilizá-los. Se não fossem os insetos, acumular-se-iam na paisagem
as carcaças de vacas e cadáveres.” 
Não seremos só nós a sentir os efeitos. Os pássaros que se alimentam de
insetos já começaram a desaparecer. O número de pássaros na Europa caiu
em 400 milhões nas últimas três décadas. Algumas aves cantoras, como a
petinha-dos-prados, viram as suas populações diminuir em até 70 por
cento. 
Não vemos estas coisas a acontecer – e este é, potencialmente, o nosso
defeito fatal: não reparamos que alguma coisa está a desaparecer até ao
momento em que ela desaparece mesmo. 
 
No fim, o que acabou com o circo das pulgas foi o desaparecimento da
sua estrela. O pequeno espetáculo brilhou glorioso durante bem mais de
cem anos, mas foi obrigado a desmontar a tenda quando a pulga humana
provou não ter capacidade para enfrentar, não os inseticidas, mas o
aspirador.8 De um ponto de vista comercial, foi o custo de importar pulgas
que tornou o negócio inviável. Como observou o professor Tomlin, um
dos últimos grandes treinadores de pulgas: “Tenho propostas de todo o
mundo para fazer digressões com o meu espetáculo, mas há um problema:
quando se chega a esse país há pulgas? Fui à Suécia e de 15 em 15 dias
tinha de mandar buscar pulgas a Maiorca, em Espanha.” 
Já nos vimos praticamente livres da pulga doméstica, mas os nossos
corpos continuam a hospedar muitas espécies menos conhecidas.
Felizmente, quer para elas quer para nós, elas fazem as suas vidas
sossegadamente, como pequenas companheiras que não conseguimos
sentir ou ver. Talvez precise de respirar fundo ao ler isto, mas neste
preciso momento a sua cara está cheia de ácaros parasitas Demodex,
aracnídeos de oito patas cujos familiares mais próximos são as aranhas.
Um estudo determinou que, pelos 18 anos de idade, 100 por cento das
pessoas testadas são portadoras destes ácaros.9 Instaladas nos orifícios dos
nossos poros e encaixadas nas nossas pestanas, as criaturas noturnas
emergem todas as noites, movimentando-se nos nossos rostos a uma
velocidade de oito a 16 milímetros por hora, para se alimentarem e
procurarem parceiros. Os cientistas ainda não têm bem a certeza do que é
que elas comem. Pode ser o sebo, ou gordura, que os nossos poros
segregam, ou podem fazer autênticos festins com células mortas ou
bactérias da nossa pele. Mas há uma coisa que os cientistas sabem:
embora estes ácaros tenham boca, não possuem ânus, e a acumulação de
comida significa que, quando morrem, explodem e espalham a matéria das
suas entranhas, que acaba nas nossas caras. E a matéria fecal serve de casa
a espécies ainda mais pequenas, porque à boleia, nas entranhas dos ácaros,
estão formas de vida ainda mais prolíficas: bactérias. 
Mas uma bacteriazinha do rosto não é nada se pensarmos que os seres
humanos estão cobertos, da cabeça aos pés, de micróbios. E a diversidade
de espécies é absolutamente espantosa. Em amostras recolhidas nos
umbigos de 60 pessoas, investigadores da Universidade Estadual da
Carolina do Norte que trabalham no “Projeto Biodiversidade Umbigo”
encontraram um verdadeiro jardim zoológico de bactérias, um total de
2.368 espécies, mais de metade das quais eram, até aí, desconhecidas da
ciência. O umbigo de uma pessoa até albergava uma bactéria que se
julgava existir apenas em território japonês. E essa pessoa nunca tinha ido
ao Japão, por isso, como é que ela lá tinha ido parar? Bom, as bactérias
são viajantes globais. Até quando inspiramos uma pequena quantidade de
ar estamos a experimentar um safari de espécies microbianas de todo o
mundo, como assinalou o microbiólogo Nathan Wolfe: “A poeira dos
desertos da China movimenta-se sobre o Pacífico para a América do Norte
e mais para Leste, para a Europa, acabando por dar a volta ao globo. Essas
nuvens de poeira contêm bactérias e vírus dos solos de origem, tal como
outros micróbios que foram apanhando do fumo de fogos de queima de
lixo ou do nevoeiro sobre os oceanos que atravessam.” 
Em amostras de ar recolhidas por cientistas do Laboratório Nacional
Lawrence Berkeley descobriu-se que o ar que respiramos contém até
1.800 espécies de bactérias. Estas formas de vida bacteriana não estão
apenas em nós e à nossa volta; fazem parte de nós. Por exemplo,
engenheiros da Universidade de Yale descobriram que a simples presença
de uma pessoa numa sala acrescenta ao ambiente, em cada hora, 37
milhões de bactérias. Aquilo que consideramos ser o nosso corpo é, na
verdade, apenas metade nosso. E embora exista o mito de que as células
bacterianas são em número superior às células humanas numa proporção
de dez para um, investigações recentes provaram que estamos bastante
mais equilibrados. Um corpo humano médio tem 30 biliões de células
humanas e cerca de 39 biliões de células bacterianas, o que significa que
só estamos ligeiramente em desvantagem, numa proporção de 1,3 para
1.10 
Claro que isto levanta outra questão: quem controla as coisas? Elas ou
nós? 
Desta perspetiva, a relação humanos-micróbios não é tanto parasítica e
sim mais simbiótica. Apesar do mal que se diz de alguns germes,
aprendemos a viver juntos, na maior parte dos casos, numa relativa
harmonia.11 Quando nascemos, no entanto, estamos relativamente livres de
bactérias12 e é ao longo da vida que vamos dando boleia à maioria dos
viajantes microscópicos. É por isso que, se recolhermos amostras
microbianas de gémeos idênticos, descobrimos que os micróbios que neles
habitam possuem ADN diferentes. 
Está a tornar-se evidente que sem bactérias a nossa vida estaria em risco,
porque os apelidados “micróbios bons”, como os probióticos, são
necessários para um sistema imunitário saudável. Por exemplo, uma
espécie designada Bacterioides fragilis encontra-se com abundância nos
intestinos da maior parte dos mamíferos, incluindo 70 a 80 por cento dos
humanos. Uma molécula da superfície da célula, designada polissacarídeo
A, aumenta a produção de células T reguladoras, o que por seu turno
impede a inflamação intestinal. Cientistas que trabalharam com ratos de
laboratório livres de germes descobriram que as suas células T reguladoras
funcionavam mal, mas que assim que a B. fragilis era introduzida nos seus
organismos a sua saúde melhorava e a sua imunidade era restaurada. 
As bactérias também nos ajudam a realizar tarefas vitais para a
sobrevivência, como comer. Se é um fã de massa, tartes ou batatas fritas,
então enche a barriga graças à Bacteroides thetaiotaomicron. Assim como
as vacas têm bactérias no rúmen, ou pança, que as ajudam a digerir a
celulose e a transformá-la em gorduras, os humanos dependem da B.
thetaiotaomicron para criar as enzimas que permitem processar alimentos
de origem vegetal com amido. 
Mas as bactérias não estão só encarregadas de regular os nossos
organismos; também têm missões mais elevadas. Como observou Rick
Stevens, um dos fundadores do Projeto Microbioma Terra: “Cinquenta por
cento da vida na Terra é ‘invisível’ e, no entanto, é responsável por tornar
o planeta habitável.” Os cientistas sabem agora que as mais ínfimas
formas de vida na Terra têm a responsabilidade de fazer com que sistemas
a uma escala planetária funcionem – e isto inclui o próprio ar que
respiramos e os alimentos que comemos. E embora os humanos andem
por aí como se fossem as criaturas mais poderosas à face do planeta, quem
na verdade põe todo o espetáculo a mexer são os micróbios. 
Para começar, produzem o gás que é vital para a vida multicelular – o
oxigénio. E embora nos tenham ensinado que o oxigénio é produzido
essencialmente pelas árvores, na verdade só 28 por cento tem origem nas
florestas tropicais. A vasta maioria do oxigénio é criada no mar, pelo
fitoplâncton e pelas algas. A origem desta fotossíntese é, no entanto,
exatamente a mesma, já que plantas e algas têm algo em comum: foram,
em tempos, tomadas de assalto por bactérias. 
Há mais de dois mil milhões de anos, as cianobactérias desenvolveram
um superpoder extraordinário: a capacidade de transformar a luz do Sol
em alimento. Usando a energia da estrela mais próxima de nós,
começaram a transformar a água e o dióxido de carbono em açúcares,
produzindo oxigénio como produto secundário. Ao longo do tempo,
algumas destas cianobactérias permaneceram aquáticas e continuaram
livres e independentes no oceano13, enquanto outras foram absorvidas por
algas, tornando-se hóspedes permanentes alojados nas suas organelas, os
cloroplastos.14 À medida que espécies de algas evoluíram, foram migrando
para terra, tornando-se os antepassados das árvores e plantas modernas. O
que quer dizer que estes engenheiros muito pequenos e muito antigos são
quem controla todas as plantas que realizam a fotossíntese. E são eles os
responsáveis por todo o oxigénio que respiramos. 
Debaixo dos nossos pés encontra-se outro ecossistema imensamente
ignorado. O solo abriga um terço de toda a vida no planeta e a sua
biodiversidade é vibrante. Uma simples colher de chá de terra de um
jardim contém uma população de aproximadamente mil milhões de
bactérias. Em termos de biomassa, é o equivalente a mais ou menos duas
vacas por hectare. Uma mão cheia de terra da floresta contém mais
micróbios do que o número de pessoas sobre a Terra, e num quilo de solo
saudável há mais micróbios do que todas as estrelas que existem na nossa
galáxia. Van Leeuwenhoek nunca poderia ter adivinhado a vastidão do
universo que encontraria sob o microscópio. Mas ainda hoje, mais de três
séculos depois da sua primeira descoberta, muito deste cosmos
subterrâneo de bactérias, arqueas, fungos, protozoários, algas e vírus
continua por explorar. Até agora, a ciência apenas conhece 0,001 por
cento das espécies microbianas. 
O solo, evidentemente, é essencial em termos alimentares. Sem um bom
solo, passaríamos fome. E hoje compreendemos um dos papéis fulcrais
que certas bactérias desempenham no crescimento das plantas. É que
estas, como todos os seres vivos, precisam de azoto para o seu ADN. No
solo, estas bactérias têm a capacidade de pegar no azoto atmosférico e de
o transformar para lhe dar uma forma – como o amoníaco – que as plantas
sejam capazes de utilizar. Na sua essência, as bactérias que modificam o
azoto comportam-se como minúsculas “saquetas solúveis de fertilizante”
no solo, fornecendo às plantas os seus nutrientes químicos e, ao mesmo
tempo, enriquecendo todos os animais da cadeia alimentar. 
Para além dos seus habitats na Terra e nos oceanos, também foram
encontradas bactérias a vogar na atmosfera. Cientistas que acompanharam
investigadores de furacões da NASA colheram um metro cúbico de ar a
cerca de dez mil metros de altitude e encontraram mais de 5.100 espécies.
O nosso planeta está literalmente cercado por uma bolha de bactérias. Só
agora começamos a descobrir o que é que estes pequenos seres estão a
fazer lá em cima. Alguns cientistas acreditam que eles têm um papel
fundamental na criação de nuvens e na produção de chuva, enquanto
outros afirmam que eles podem estar a reciclar nutrientes nas camadas
superiores da atmosfera. Há pelo menos uma coisa de que temos a certeza:
longe de serem insignificantes, as mais pequenas formas de vida na Terra
desempenham um papel essencial na criação dos sistemas que sustentam a
vida no planeta. Há muito tempo que somos cegos aos serviços invisíveis
que as bactérias prestam, mas, na verdade, devemos-lhes a nossa vida. 
 
O nosso primeiro ângulo morto é o facto de a realidade não ter uma
dimensão humana. Aquilo a que chamamos realidade não passa de um
pedaço minúsculo no grande esquema das coisas. E embora raramente
pensemos no tamanho, este é provavelmente o atributo mais importante da
existência de um animal: define onde, como, e até durante quanto tempo15
se vive sobre este planeta. Mas quando se trata da vida sobre a Terra, o
tamanho tem os seus limites. 
Por exemplo, a vespa parasita designada por vespa-fada-voadora só tem
200 mícrones de comprimento. É mais ou menos o tamanho de uma
ameba, o que quer dizer que uma família de cinco destas pequenas vespas
caberia confortavelmente no ponto final no fim desta frase. Mas o que é
incrível em relação à vespa-fada-voadora é que, ao contrário de uma
ameba, não é um organismo unicelular. É uma forma de vida multicelular
complexa, que foi capaz de encaixar uma quantidade impressionante de
material biológico numa estrutura inacreditavelmente diminuta. Estes
animais possuem no seu corpo a arquitetura biológica básica de um
coração que bate, asas, patas, um aparelho digestivo e um cérebro que
funciona. Então, como é que isto tudo encaixa? Para a vespa-fada-
voadora, ser pequena tem um preço elevado e é pago em células
cerebrais. 
Cientistas descobriram que, quando chegam a adultas, as vespas-fadas-
voadoras sacrificaram os núcleos de 95 por cento dos seus neurónios, que
é onde o material genético está armazenado na célula. O que isso quer
dizer é que, para um inseto, é praticamente impossível ficar mais pequeno.
Mas para bactérias sem cérebro, ainda há espaço para encolher. Enquanto
no ponto final no fim de uma frase podiam caber cinco vespas-fadas-
voadoras, era possível encaixar lá, nesse mesmo espaço, centenas de
milhares de bactérias unicelulares. Quanto a tamanho, as bactérias são
então as guardiãs desta fronteira-limite. A vida multicelular não consegue
tornar-se mais pequena porque não há espaço para os seus ingredientes
essenciais: proteínas e ADN. Ou seja, muito literalmente, a vida não
consegue espremer-se para conseguir entrar lá dentro. 
No lado oposto do espetro estão os gigantes: os animais multicelulares
que têm a nossa dimensão e aqueles que são ainda maiores. Quais são
então os limites das grandes coisas vivas? Porque é que na vida real não
há King Kongs16, Godzillas ou mulheres com 15 metros de altura? A
primeira pessoa a abordar essa questão foi também, nem a propósito, uma
espécie de Golias: o famoso contemplador de estrelas e revolucionário
científico Galileu Galilei. 
O que Galileu percebeu foi que o tamanho não só é importante como
pode ser uma questão de vida ou de morte. Na obra Discursos e
Demonstrações Matemáticas Relacionadas com Duas Novas Ciências,
escreveu: “Quem não sabe que um cavalo que caia de uma altura de três
ou quatro cúbitos parte os ossos, enquanto um cão que caia da mesma
altura ou um gato de uma altura de oito ou dez cúbitos não sofre qualquer
ferimento? Também inócua seria a queda de um gafanhoto da altura de
uma torre ou a queda de uma formiga da distância da Lua.” Em resumo:
porque é um animal grande sofreria uma queda mortal e um animal
pequeno sairia ileso? 
O brilhantismo de Galileu esteve em compreender que, se fosse possível
continuar a fazer crescer um animal, a certo ponto ele começaria a entrar
em colapso devido ao seu próprio peso. Tal como uma árvore já não
conseguiria suportar o peso de imensos e pesados ramos, também uma
mulher gigante de 15 metros não seria capaz de dar um passo sem partir os
ossos dos seus membros.17 Para os gigantes da Terra, são as leis da física,
e a gravidade em especial, que colocam um limite às coisas. 
Mas os mais atentos de entre vós devem estar a pensar: então e os
dinossauros? E as baleias? Os maiores sáurios tinham a altura de um
prédio de quatro andares e até as baleias azuis medem sensivelmente o
mesmo que três autocarros escolares colocados em fila. Então, como é que
são assim grandes? O que acontece é que estes imensos animais evoluíram
por via de alguns estratagemas realmente impressionantes. 
Os dinossauros contornaram o problema do peso dos ossos tornando-se
ocos. Os répteis titânicos, como hoje sucede com os pássaros que deles
descendem, tinham ossos leves e ocos com grandes bolsas de ar no
interior. Na verdade, 10 por cento do volume corporal do T. rex era ar, e
cientistas descobriram, através do estudo dos esqueletos de saurópodes,
que 90 por cento do volume dos seus ossos era ar. As baleias resolveram o
problema evoluindo na água. Como todas as coisas vivas, as células de
uma baleia contêm uma solução salina. Pondo as coisas em termos mais
simples, ser essencialmente composto por água salgada e nadar em água
salgada permite a estes gigantes atingirem tamanhos imensos e pesarem
até 144 toneladas, porque, como vivem no oceano, essencialmente não
têm peso.18 
Há, no entanto, outro meio invisível capaz de afetar o tamanho de um
animal e, tal como a água para as baleias, é qualquer coisa em que mal
reparamos: o ar. Esse vaporoso cocktail que todos respiramos tem mudado
significativamente através dos tempos. E, com ele, o tamanho da vida
também tem mudado. 
Se fosse possível entrar numa máquina do tempo e atrasar o relógio
entre cem e 400 milhões de anos, como a Alice descobriríamos um País
das Maravilhas de dimensão gigantesca. Porque este foi o tempo dos
gigantes. Nesse mundo antigo, os cogumelos atingiam a altura de casas,
libélulas do tamanho de falcões cruzavam os céus e até as pulgas dos
dinossauros tinham dez vezes o tamanho das suas homólogas modernas. 
Os invertebrados podiam crescer à vontade porque, para eles, o tamanho
dos ossos não era um problema. Mas havia outra coisa que limitava o seu
crescimento. Kirkpatrick Sale, o autor de Human Scale, descreve assim o
problema: “Se uma minhoca fosse dez vezes maior, o seu peso seria mil
vezes maior e a sua necessidade de ar mil vezes maior, mas a superfície
através da qual absorveria oxigénio seria somente cem vezes maior, por
isso obteria apenas um décimo do ar de que necessitava e morreria
imediatamente.” Sendo assim, como é que as minhocas pré-históricas
cresceram e mesmo assim foram capazes de sobreviver? A resposta está
na concentração de oxigénio. Hoje, na nossa atmosfera, o oxigénio
representa 21 por cento do ar, mas durante o Carbonífero19 a sua
concentração era muito mais elevada, cerca de 35 por cento. Para animais
como as minhocas, que respiram não pela boca, mas através de poros na
pele, cada inspiração significava um impulso mais poderoso e continha o
oxigénio suficiente para conseguirem sobreviver.20 
Podemos dar-nos por felizes por não haver hoje baratas do tamanho de
cães a passear pelas nossas cozinhas. O gigantismo dos insetos teve um
fim quando outro animal assumiu uma posição de protagonismo. Há 150
milhões de anos, os dinossauros evoluíram para um novo tipo de predador
voador: os pássaros. Entre os que procuravam fugir depressa, os que eram
mais leves e aerodinâmicos tinham mais sucesso do que os grandes e
gordos. A evolução favoreceu um tamanho corporal mais pequeno para
efeitos de fuga, e aí os insetos começaram a encolher.21 
O tamanho de uma espécie não é acidental. É uma interação muito
afinada – e por tentativas – entre a espécie e o mundo que ela habita. Ao
longo de largos períodos de tempo, as flutuações de tamanho, do nanismo
ao gigantismo, foram frequentemente um reflexo de mudanças
significativas no ambiente. Mas, em termos gerais, nos últimos 500
milhões de anos a tendência tem sido para os animais crescerem. Isto é
especialmente notável entre os animais marinhos, cujo corpo médio
aumentou neste período cerca de 150 vezes.22 
Mas estamos outra vez a começar a ver grandes mudanças. Cientistas
descobriram que muitos animais estão a encolher.23 Em todo o mundo,
espécies de todas as categorias – peixes, pássaros, anfíbios, répteis e
mamíferos – estão a ficar mais pequenas, e o calor parece ser um dos
principais culpados.24 Por exemplo, os animais que vivem nos Alpes
italianos viram as temperaturas aumentar três ou quatro graus Celsius
desde os anos 1980. Aí, mesmo a uma altitude de mil metros, ondas de
calor fizeram subir as temperaturas alpinas a picos de 30o C. Para evitar o
sobreaquecimento, as camurças passam agora mais tempo a descansar do
que a pastar e, por causa disso, em apenas algumas décadas, as novas
gerações de camurças são 25 por cento mais pequenas, e em comparação
com as anteriores são anãs. Também debaixo de água as temperaturas
começaram a subir, e uma consequência disso é que a água transporta
menos oxigénio e se torna mais anóxica. Cientistas que estudam 600
espécies de peixes afirmam que as grandes mudanças de tamanho estão
iminentes e que por volta do ano de 2050 os peixes terão encolhido em
cerca de um quarto. 
Encolher envolve potencialmente um problema ainda maior: uma queda
abrupta de população. Analisando os dados da pesca comercial de
cetáceos ao longo de quatro décadas, investigadores chegaram à conclusão
de que os cachalotes diminuíram significativamente de tamanho – entre
quatro e cinco metros – nos anos anteriores ao colapso das suas
populações. Assim, para os biólogos, a diminuição de tamanho constitui
um primeiro sinal de alerta, um aviso de que uma espécie pode estar em
risco. 
Mas nem todos os animais estão a encolher. As espécies domésticas que
criamos para nos servirem de alimento, como os porcos e as vacas, por
exemplo, estão a aumentar mais, e mais depressa, do que em qualquer
momento da história. Desde os anos 1930, os perus mais do que
duplicaram de tamanho, e desde 1950 os frangos para produção de carne
quadruplicaram. 
Para monitorizarem estas mudanças, investigadores canadianos
prosseguiram a criação de linhagens de frangos não modificadas,
comparando-os com os nossos “Frankensteins modernos”. Ou seja,
continuam a criar estas estirpes-referência como se elas fossem cápsulas
do tempo vivas. Isso permite aos investigadores a comparação com as
estirpes selecionadas para criação comercial, como por exemplo a Ross
308 de 2005. Recebendo a mesma comida, e medida com a mesma idade,
a estirpe de 1957 pesava 905 gramas, a de 1978 chegava a 1.808 gramas e
a de 2005 atingia 4.202. A diferença é enorme. Em comparação com as
aves dos anos 1950, os frangos modernos têm peitos 80 por cento maiores
e o seu tamanho geral aumentou 400 por cento. 
 

 
Isto tem uma consequência. À medida que fomos deliberadamente
criando animais maiores para nos servirem de alimento, o nosso apetite
também cresceu. Em 1960, o norte-americano médio comia anualmente
12,7 quilos de frango, e hoje esse número é de 40,8 quilos, mais do
triplo.25 Não é surpresa nenhuma que, enquanto beneficiários de toda esta
carne barata, os humanos também tenham começado a mudar de tamanho.
Nos últimos 150 anos, o que é, em termos relativos, um período curto, a
altura humana aumentou extraordinariamente. Nos países industrializados,
onde há abundância de alimentos, crescemos dez centímetros. E não nos
expandimos apenas verticalmente, mas também horizontalmente – de
modo que todos os países da Terra viram subir as suas taxas de
obesidade.26 No total, considera-se que 2.200 milhões de pessoas em todo
o mundo têm peso a mais, ou são obesas, e os adultos têm uma
probabilidade três vezes maior de serem obesos do que tinham em 1975.
Hoje, no mundo inteiro, os animais selvagens estão a diminuir de
tamanho, mas os seres humanos e os seus animais domesticados estão a
insuflar. 
 
Galileu foi a primeira pessoa no mundo a ter uma noção da escala
colossal da realidade.27 Conhecido hoje como o “Pai da Ciência”, não só
foi o primeiro a desbravar os céus com um telescópio, como foi o primeiro
a espreitar por um microscópio e a documentar a humilde pulga. Galileu
teve a sorte de viver num tempo em que o fabrico de vidro fazia
progressos rápidos, em especial a arte de fazer óculos. Então, como agora,
as pessoas por volta dos 40 anos eram afetadas por presbiopia, ou seja, por
causa do envelhecimento, o globo ocular perde flexibilidade, tornando
mais difícil, por exemplo, ler. Na Holanda, os mestres vidreiros tinham-se
especializado em fabricar lentes para óculos, e foram eles os criadores dos
primeiros instrumentos rudimentares que nos permitiram observar escalas
até então nunca vistas. 
O objetivo dos fabricantes de lentes pode ter sido melhorar uma visão
deficiente, mas sem querer fizeram muito mais do que isso. Quando
ampliaram a nossa visão, revelaram que a humanidade tinha estado
inconsciente de duas escalas imensas que coexistiam secretamente com a
sua própria escala. Os mundos macro e micro tornavam-se visíveis, e com
esta nova e melhorada capacidade de visão veio a compreensão de que não
habitamos só uma realidade, mas sim três. 
Pela primeira vez na história, éramos capazes de prolongar os nossos
sentidos humanos. E, por causa disso, os primeiros microscópios e
telescópios eram considerados quase invenções mágicas. O fabrico de
óculos era um negócio de grande concorrência e cheio de segredos, de tal
modo que ainda há discussão sobre as patentes destas primeiras invenções.
A conceção dos primeiros microscópios simples e compostos, no entanto,
é geralmente atribuída ao fabricante de óculos Zacharias Janssen, que
começou a desenvolver as suas novas ferramentas em 1590; a primeira
patente do telescópio foi apresentada 18 anos depois, em 1608, pelo
mestre fabricante de lentes e de óculos Hans Lippershey.28 
Galileu era um cientista e não um fabricante de óculos, mas assim que
dedicou o seu génio a analisar como eles eram feitos, conseguiu logo
melhorá-los. Em 1609, engendrou um aparelho a que chamou occhiolino,
ou “pequeno olho”, um microscópio capaz de ampliar até 30 vezes, ou
seja, dez vezes mais do que a criação de Janssen. E nesse mesmo ano
construiu o seu primeiro telescópio, uma luneta que rivalizava com o
invento de Lippershey. Em agosto de 1609 até o ultrapassou, com um
novo protótipo de telescópio, um instrumento que ampliava oito vezes e
que apresentou ao senado veneziano. E em outubro ou novembro já tinha
construído um telescópio capaz de ampliar 20 vezes. Foi com ele que
apontou aos céus. 
A visão humana pode ser limitada, mas é incrível pensar naquilo que o
olho humano é capaz de ver mesmo sem a ajuda de equipamento. Numa
noite límpida, uma pessoa com boa visão pode detetar o tremeluzir de uma
única chama de vela a 2.760 metros.29 Mas, dependendo do tamanho de
um objeto, ou do seu brilho, somos na verdade capazes de ver muito mais
longe do que isso. A Lua, por exemplo, está a 385 mil quilómetros de
distância, e o nosso Sol é tão brilhante que é capaz de nos cegar mesmo a
uma distância de 150 milhões de quilómetros. E qual é o maior objeto que
somos capazes de ver sem auxílio de um telescópio? É Saturno, que se
encontra a 1.500 milhões de quilómetros. Até somos capazes de ver uma
galáxia para lá da nossa: Andrómeda, que brilha com a luz de um bilião de
estrelas. Cintila como uma vela a 2,5 milhões de anos-luz, ou 25 triliões
de quilómetros. 
E tudo isto está incluído por defeito na nossa visão básica, que
avaliamos ao olhar para uma pirâmide de letras negras conhecida como
tabela de Snellen. Boa capacidade de visão – ou aquilo a que também se
chama visão 20/20 – é quando somos capazes de enunciar corretamente as
letras pequeninas na oitava linha da tabela. Mesmo em tempos antigos,
uma boa visão era altamente valorizada. Não é preciso dizer que, na
escolha dos melhores guerreiros e caçadores, era uma caraterística crucial
para eliminar aqueles que não eram capazes de distinguir o inimigo ou a
presa. Mas os nossos antepassados tinham um teste de visão bem
diferente, que não era feito no consultório do oftalmologista, mas ao ar
livre, de noite, sob o manto das estrelas. 
O asterismo conhecido, entre outras designações, como Papagaio de
Papel fica na constelação da Ursa Maior. Consiste em sete pontos de luz e
forma no céu aquilo que parece ser uma concha gigante. Fixando a
segunda estrela a contar da esquerda na pega, temos Mizar, que brilha a 78
anos-luz de distância. Mas quase em coincidência com Mizar está uma
estrela mais ténue, três anos-luz atrás dela. Chamamos-lhe Alcor, mas para
os astrónomos sufistas era conhecida como Al-Suha, ou “a esquecida”.
Para o antigo exército persa – e, segundo alguns, para os índios norte-
americanos, do outro lado do mundo –, Alcor era a escala de Snellen da
natureza: ou seja, a capacidade para distinguir estas estrelas duplas
funcionava como o teste para avaliar uma visão perfeita.30 
Sendo uma boa visão tão valorizada pelos exércitos, não surpreendeu
que o exército holandês referenciasse e adotasse de imediato a luneta de
Lippershey. Galileu também encontrou potencialidades comerciais no seu
telescópio e procurou vendê-lo aos venezianos. “O poder do meu
canocchiale [telescópio] para mostrar objetos distantes tão claramente
como se estivessem próximos dá-nos uma vantagem inestimável em
qualquer ação militar em terra ou no mar”, assegurou ao Doge. “No mar,
seremos capazes de ver as bandeiras deles duas horas antes de eles nos
poderem ver; e quando tivermos determinado o número e o tipo das naves
inimigas, conseguiremos decidir se queremos persegui-las e iniciar batalha
ou bater em retirada. Da mesma forma, em terra deve ser possível, a partir
de posições elevadas, observar os campos inimigos e as suas
fortificações.” 
Mas, afinal, não foram as ideias de Galileu sobre estratégia militar que
mudaram para sempre a forma como olhamos o universo, foi antes
qualquer coisa absolutamente casual que aconteceu uma noite, quando ele
estava ao ar livre a descansar. Em vez de apontar o telescópio para as
luzes da cidade, Galileu ergueu-o para o céu. Através da lente, começou a
examinar o maior e mais luminoso objeto do céu noturno, a Lua. E aquilo
que viu foi, para ele, completamente inesperado. A Lua, essa esfera
perfeita no céu, não era só um balão brilhante e de superfície suave.
Olhando mais de perto, conseguia agora ver que tinha crateras. E
montanhas. E vales e elevações de terreno semelhantes aos que existiam
na Terra. A Lua, e ele ficou chocado ao descobrir isso, tinha uma
paisagem. Para Galileu, foi uma revelação absoluta. 
Apontando o telescópio para cima todas as noites, num “espanto
infinito”, rapidamente começou a observar outros objetos celestes. Foi
com as suas observações de Vénus que Galileu mudou o nosso
entendimento do lugar que ocupamos no universo. O que ele percebeu era
que Vénus tinha uma sombra e que, exatamente como sucedia com as
fases da Lua, mudava de um disco crescente para cheio quando estava
diante do Sol. Para ele, isso só podia significar uma coisa. Vénus não era
apenas uma “estrela errante”31: tinha um percurso. E mais ainda: esse
percurso não era feito a orbitar a Terra. Era a orbitar o Sol. 
Foi, em todos os sentidos da palavra, uma descoberta revolucionária.
Até então, tínhamos acreditado que o universo girava à nossa volta. As
descobertas de Galileu desfizeram essa ideia e provaram a teoria do
heliocentrismo de Copérnico32, que colocava o Sol, em vez da Terra, no
centro do universo. Mas não haveria grande exaltação à volta da
descoberta de Galileu. Para a Igreja, tratava-se de uma observação
perigosa. Na Bíblia, a humanidade tinha sido colocada claramente no
centro do universo, por Deus. Acreditar em Galileu implicava que as
palavras da Sagrada Escritura eram falsas. 
Por isso, em 1616, o astrónomo foi chamado pela Inquisição Romana e
investigado por heresia. O livro de Nicolau Copérnico Sobre as
Revoluções das Esferas Celestes já tinha sido proibido e foi decretado que
também Galileu tinha de ser silenciado. Deixava de poder sugerir, de
forma oral ou escrita, que a Terra se movia à volta do Sol. Foi um
momento notável, porque, embora sempre tivesse sido dito “ver para
crer”, a Igreja insistia para não acreditarmos naquilo que conseguíamos
ver com os nossos próprios olhos. Galileu tinha descoberto um ângulo
morto, mas a Igreja queria que as pessoas permanecessem cegas. No
imediato, Galileu aceitou a imposição, mas 16 anos depois iria ser
novamente julgado. 
Desde os dias dos primeiros telescópios, a nossa visão científica apurou-
se tremendamente e hoje somos capazes de ver tão longe que até olhamos
para trás no tempo, para o começo do universo. Em todo o globo, centenas
de observatórios salpicam o planeta, perscrutando a noite como grandes
olhos robóticos brancos. Construímo-los em cidades, no alto de
montanhas, em desertos remotos e até enviámos telescópios para o espaço.
O que este extraordinário nível de visão significa é que só temos de
escolher um ponto no céu e depois, simplesmente, esperar. 
Foi precisamente isso que astrónomos da NASA fizeram em setembro
de 2003. Apontaram o telescópio Hubble Ultra Deep Field para uma zona
a seguir à Lua que parecia completamente vazia, sem uma única estrela
visível a olho nu. As imagens obtidas revelaram-se, contudo,
extraordinárias: esse “vazio” estava repleto de dez mil globos de luz, cada
um deles uma galáxia como a nossa Via Láctea, albergando centenas de
milhares de milhões de estrelas cintilantes. A partir dessa porção de céu
noturno, os cientistas calcularam que existem no nosso universo pelo
menos cem mil milhões de galáxias, com um sextilião de estrelas.33
Pensem como isto é incrível: estamos rodeados por
1.000.000.000.000.000.000.000 de gigantes estelares, mas eles são
demasiado ténues para os nossos olhos os verem.34 
Olhamos há milénios para as estrelas, mas só recentemente ficámos a
saber que estes pontinhos cintilantes de luz são na verdade enormes
reatores nucleares, bolas de gás luminoso quente que são autênticas
fornalhas de fusão atómica – até Alcor, “a esquecida”, que mal é visível,
faria o nosso Sol parecer um anão se se aproximasse e, com um brilho 13
vezes maior do que ele, incendiaria o nosso céu inteiro. É quase um
número de ilusionismo cósmico que, a partir do ponto em que nos
encontramos, as coisas mais imensas que existem no universo nos
apareçam como se o céu fosse uma placa de Petri e as estrelas não
passassem de partículas. 
 
O tamanho é físico, mas é igualmente uma construção mental com a
qual temos de lidar. O problema é que os nossos cérebros não são muito
bons a processar como as coisas podem tornar-se imensamente grandes,
ou pequenas, quando saem dos nossos limites de perceção. Como
observou a escritora inglesa Helen Macdonald: “Em questões de escala,
somos muito maus. As coisas que vivem no solo são demasiado pequenas
para nos importarmos com elas; as alterações climáticas são demasiado
grandes para as imaginarmos.” E, ao contrário, quando as escalas
aumentam, as coisas, os objetos e os números tendem a tornar-se difusos,
num fenómeno a que os investigadores chamam “cegueira de escala”. A
vastidão do universo e o mundo quântico infinitesimal podem ser
fundamentais para a nossa existência, mas na maior parte do tempo
vivemos quase sempre sem reparar nas escalas maiores ou mais pequenas
em que habitamos. 
Para ilustrar aquilo que quero dizer, imaginem por um momento um
pequeno cupcake. Deve ser fácil. Agora, imaginem dez. Continuem a
aumentar o número e vejam se são capazes de imaginar 50 cupcakes, ou
cem. A resolução dos bolinhos vai-se perdendo, mas o seu conjunto deve
continuar a ser visível. Mas agora vamos dar um salto: tentem imaginar
mil ou cem mil cupcakes. À medida que o número cresce, em especial
para um milhão, ou mil milhões, perde-se completamente a nossa
capacidade para ter a perceção da escala, quanto mais dos cupcakes
individualmente. Isto pode parecer uma questão sem importância, e é,
quando a questão é banal, como no caso dos cupcakes, mas quando a
questão é séria as implicações são maiores. 
Podemos viver num mundo de big data, mas somos insensíveis aos
grandes números. E os números que as notícias nos transmitem todos os
dias são-nos, na maior parte, incompreensíveis. Sejam a desflorestação
anual de 18,5 milhões de hectares35, os 20 biliões de dólares da dívida
norte-americana, os 1.676 milhões gastos anualmente em armas ou os 20
milhões de pessoas à beira da fome e da miséria, quando chegamos a
números grandes o resultado é o mesmo: os nossos olhos abrem-se e
ficamos perdidos na enormidade. Como José Estaline terá dito: “Uma
morte é uma tragédia; um milhão é uma estatística.” 
Por causa disso, a cegueira de escala pode ser monstruosa. É que
quando perdemos o nosso sentido de escala não somos capazes de sentir –
e quando não conseguimos sentir perdemos a capacidade de reagir
adequadamente. Uma equipa de investigadores norte-americanos que
examinava este sentido de escala quis perceber qual o efeito de atribuir
preços de mercado a uma escala de danos causados à vida.
Especificamente, queriam saber qual era a perceção do “custo” de
reabilitar milhares de aves marinhas vítimas de um derramamento de
petróleo. 
Para determinar quanto é que as pessoas estariam dispostas a pagar para
remediar o problema, a magnitude do hipotético desastre foi multiplicada
por dez de cada vez. Os investigadores descobriram que, se o número de
aves empapadas em petróleo fosse de dois mil, 20 mil ou 200 mil, a
proposta de ajuda financeira era sensivelmente a mesma. Ou seja, a escala
não era um fator. Em média, as pessoas mostravam-se dispostas a pagar
cerca de 80 dólares para ajudar duas mil aves, mas quando o número subia
para 20 mil dispunham-se a doar 78 dólares, ou seja, menos dois, e
quando o número aumentava cem vezes, para 200 mil aves, a proposta era
de 88 dólares. Isto é: mais 198 mil aves, mas uma diferença de apenas oito
dólares. 
Se somos confundidos tão facilmente por uma mudança de escala de dez
vezes, imaginem o que sucede quando o fator é de um milhão. Os nossos
microscópios são tão poderosos que hoje somos capazes de ampliar
objetos mais de cem milhões de vezes, o que nos permite observar e
mover os próprios elementos constituintes do universo: os átomos.36 Os
físicos sabem, contudo, que até esta perspetiva está a mudar e que há
muito mais para lá dos limites daquilo que mesmo as nossas tecnologias
mais avançadas são capazes de distinguir. Atualmente, o que se crê ser o
extremo mais longínquo do universo subatómico – a menos de
0,0000000009 ioctómetros – é aquilo que é conhecido como o
comprimento de Planck: um espaço que é 10-35 mais pequeno, ou 35
ordens de grandeza mais pequeno, do que a nossa escala atual, ou aquilo
que consideramos a nossa “realidade” diária. Para apresentar de outra
forma a escala deste pequeníssimo espaço, digamos que um único átomo
de hidrogénio tem dez biliões de biliões de comprimentos de Planck. Em
comparação com a medida de um único comprimento de Planck, um
átomo é absolutamente gigantesco. 
Passando para o extremo oposto da escala, o universo observável
estende-se por 1026 metros, ou 92 mil milhões de anos-luz. Também esta
distância é, para nós, inimaginável. Para dar alguma perspetiva, um ano-
luz fica apenas a dez biliões de quilómetros de distância. E o simples ato
de contar até mil milhões, quanto mais 92, levar-nos-ia mais de 30 anos.
Carl Sagan afirmou: “O senso comum funciona lindamente para o
universo a que estamos acostumados, para escalas de tempo de décadas,
para um espaço entre um décimo de milímetro e alguns milhares de
quilómetros, e para velocidades muito inferiores à velocidade da luz.
Quando deixamos esses domínios da experiência humana, não há razão
alguma para esperar que as leis da natureza continuem a obedecer às
nossas expetativas, uma vez que as nossas expetativas dependem de um
conjunto limitado de experiências.” 
As nossas experiências dizem-nos que a realidade tem uma dimensão
humana, mas a nossa tecnologia diz-nos que não. Na escala verdadeira das
coisas, nós somos gigantes microscópicos – ao mesmo tempo enormes e
ínfimos. E, no entanto, até dentro deste inimaginável reino sem fronteiras,
ocupamos um “lugar” surpreendente. Colocados entre estas realidades
micro e macro, encontramo-nos mais próximos, à escala, dos confins mais
distantes do universo conhecido do que do comprimento de Planck. 
 
Da próxima vez que estiver sozinho num quarto, pare um pouco e pense
que tudo à sua volta, cada superfície, cada sopro da sua respiração, cada
centímetro da sua pele nua, está vivo e a fervilhar de vida invisível. E
depois lembre-se que visto lá de cima do céu, por exemplo a partir de um
avião que passa, você também é uma particula invisível. 
O génio de Galileu esteve em compreender que aquilo que os humanos
podiam ver era apenas uma parte da realidade. E embora tenha sido o
primeiro a ver para lá da velha visão mundial, ficou perturbado pela forma
como outros se recusaram a abrir os olhos.37 Em 1632, em Diálogo sobre
os Dois Principais Sistemas Mundiais, escreveu: 
 
“Em última análise, as minhas observações convenceram-me de que alguns homens, com
um raciocínio absurdo, definem primeiro na mente uma conclusão que, seja por ser deles ou
seja por a terem recebido de alguém em quem confiam inteiramente, os impressiona tão
profundamente que é impossível tirar-lha da cabeça. Argumentos que apoiem a sua ideia fixa,
sejam engendrados por eles próprios ou ouvidos de outros, por muito simples e estúpidos que
possam ser, ganham de imediato a sua aceitação e aplauso. Por outro lado, recebem tudo o
que for apresentado contra, por muito engenhoso e concludente que seja, com desdém ou
fúria – quando não ficam mesmo doentes. Fora de si, tomados pela paixão, alguns deles nem
hesitariam em congeminar formas de suprimir e silenciar os seus adversários.” 
 
Galileu deu uma pancada na bolha da realidade – e foi punido por fazer
isso. Depois da primeira acusação, em 1616, deixou de poder possuir,
defender ou ensinar a astronomia de Copérnico. Em 1633 foi julgado outra
vez, agora pela Inquisição Romana, e considerado culpado. Por causa da
sua fama e da sua idade, o grande astrónomo foi, contudo, poupado ao
castigo reservado aos hereges – a tortura e a morte. Foi condenado a
passar o resto da vida sob prisão domiciliária. 
É revelador constatar que dois dos maiores vultos da ciência – Van
Leeuwenhoek, o pai da microscopia, e Galileu, o pai da astronomia
moderna – tenham sido alvo de troça durante anos por verem a verdadeira
natureza da realidade. No fim, coube-lhes a última palavra: Van
Leeuwenhoek foi reconhecido pela Royal Society e tornou-se uma figura
eminente entre os seus pares; Galileu é agora considerado um dos maiores
pensadores de sempre. Mas Galileu, também conhecido como “o pai da
ciência moderna”, deixou mais do que um legado científico. 
Em 12 de março de 1737, 95 anos após a sua morte, o túmulo de Galileu
foi assaltado. O ladrão foi Anton Francesco Gori, um professor, que
cortou três dedos de Galileu quando o cadáver estava a ser trasladado de
um túmulo temporário para a Basílica de Santa Cruz, em Florença. Era
comum a prática de cortar dedos e outras partes do corpo de santos
mortos, pois pensava-se que as relíquias tinham poderes sagrados. Gori
estava a prestar homenagem a Galileu elevando-o à categoria de mártir,
como se fosse um santo secular da ciência responsável por estilhaçar
velhas crenças e por nos libertar com o seu pensamento. 
Só quase dois séculos depois, em 1927, foi encontrado o primeiro dos
dedos perdidos de Galileu. Encontra-se hoje em exposição no Museu
Galileu, em Florença. Para os que conhecem a história, é difícil não
entender o simbolismo. Lá está, num frasco de vidro, a apontar em desafio
para os céus, o dedo do meio de Galileu. 

1
Tim Cockerill descobriu um dia uma nova espécie de vespa parasita quando ela “se suicidou” e caiu
dentro da sua chávena de chá. 

2
Provavelmente, já ouviu a famosa citação de Newton: “Se vi mais do que outros, foi por estar de pé
sobre os ombros de gigantes.” (Realce meu) A frase é citada com frequência como um exemplo do
poder da humildade. Só que, hoje, alguns académicos acreditam que pode ter sido a versão ao jeito
do século XVII de uma manifestação de desprezo entre cientistas. Surgiu numa carta escrita por
Newton a Hooke quando estavam envolvidos numa discussão sobre quem devia receber um crédito
científico no campo da ótica. E deve notar-se que Hooke era um homem baixo.

3
Pensa-se, a partir dos seus desenhos, que Van Leeuwenhoek terá construído alguns instrumentos
capazes de ampliar objetos até 500 vezes.

4
As bactérias orais são prolíficas: “Há 20 mil milhões de bactérias nas nossas bocas e reproduzem-se
de cinco em cinco horas. Se passar 24 horas sem lavar os dentes, esses 20 mil milhões transformam-
se em 100 mil milhões!” 

5
“A pulga matou milhões de pessoas em todo o mundo […] e está indissociavelmente ligada à
história da Peste Negra. No homem, como demonstraram Yersin e Simond, esta doença é causada
pelo trio bactéria (Yersinia pestis)/ ratazana / pulga (Xenopsylla cheopsis).”

6
Os fabricantes de pesticidas defendem que, sem estes, o mundo enfrentaria maiores dificuldades
alimentares, mas cientistas dizem que a alegação é exagerada, e que a maioria das explorações
aumentaria a produtividade se reduzisse a utilização de pesticidas.

7
Embora seja necessária mais investigação científica, há números que estão a fazer soar alarmes em
todo o mundo. Um estudo recente em Porto Rico descobriu que 98 por cento dos insetos terrestres
tinham desaparecido ao longo de um período de 35 anos. Nos ares, o número era de 80 por cento. Em
termos de peso total, os insetos ultrapassam normalmente os humanos cerca de 17 vezes. Sem eles,
são de esperar consequências catastróficas. Isto é assim porque os insetos constituem a base da nossa
cadeia alimentar. Se os insetos entrarem em declínio, um efeito de dominó, conhecido como “cascata
trófica invertida”, começará a derrubar outras espécies que dependem deles.

8
A Pulex irritans não está extinta. Ainda pode ser encontrada na Grécia, Irão, Madagáscar e até no
Arizona.

9
A idade parece ser um fator, já que os bebés têm menos ácaros.

10
As células bacterianas são muito mais pequenas do que as células humanas – embora sejam
muitas, representam apenas cerca de 0,2 quilos do nosso peso.

11
Há quase dois mil milhões de espécies de bactérias, a vasta maioria das quais são inofensivas para
os humanos. 

12
Em termos relativos, mas não completamente. Existem bactérias na placenta. “Os cientistas
detetaram bactérias no fluido amniótico, no sangue, no cordão umbilical, na membrana que rodeia o
feto e até no primeiro cocó dos bebés.” 

13
Uma espécie em especial faz isto hoje de uma forma brilhante. Descrito como “o micróbio mais
importante de que nunca ouviu falar”, o Prochlorococcus é responsável pela produção de um total de
20 por cento do oxigénio que respiramos.

14
Tal como as mitocôndrias, os cloroplastos têm o seu próprio ADN, que vem das cianobactérias.

15
Animais pequenos tendem a ter vidas mais curtas. 

16
O maior macaco primata no registo de fósseis é o Gigantopithecus blacki, com três metros de
altura. O seu tamanho condenou-o, no entanto, de uma forma diferente: durante a Idade do Gelo, os
alimentos disponíveis tornaram-se insuficientes para sustentar o macaco gigante. 

17
Para mais dados sobre tamanho, sugiro ao leitor o trabalho “On Being the Right Size”, de J.B.S.
Haldane.

18
Outro fator que os cientistas julgam capaz de afetar o tamanho que os animais marinhos atingem
tem que ver com a perda de calor. Os mamíferos marinhos crescem mais e têm mais gordura à
medida que vão aumentando de volume em relação à superfície. Isto permite-lhes gerar mais calor e,
ao mesmo tempo, perder menos através da superfície da pele. 

19
O Carbonífero situa-se especificamente entre o período Devoniano, há 358,9 milhões de anos, e o
início do Permiano, há 298,9 milhões.

20
Possuir um volume maior em relação à superfície queria também dizer que a quantidade de
oxigénio continuaria a ser relativa à dimensão do corpo, por isso os animais também não morreriam
por envenenamento por falta de oxigénio. 

21
Há muitos casos interessantes de mudanças de tamanho por causa do ambiente. A regra de Foster é
relevante. Afirma que, em ilhas, os animais grandes tendem a desenvolver corpos mais pequenos,
devido a restrições nas fontes de alimento, e que os animais mais pequenos tendem a crescer, por
causa dos limites que os seus predadores conhecem. Um exemplo pode ser encontrado entre os
mamutes: uma espécie de mamute que viveu em Creta há 3,5 milhões de anos só atingia cerca de um
metro, à altura do ombro.

22
Analisando mais de 17 mil espécies marinhas, investigadores descobriram que, desde a primeira
evolução dos animais, os seus volumes corporais aumentaram cinco vezes. 

23
Como sempre, existem exceções. Por exemplo, as mudanças climáticas estão a fazer aumentar de
tamanho as aranhas-lobo. 

24
Historicamente, os cientistas têm documentado casos de nanismo entre mamíferos durante
períodos de aquecimento na história da Terra. E durante o chamado Máximo Térmico do Paleoceno-
Eoceno, uma fase de aquecimento de três graus que aconteceu há 55 milhões de anos, alguns
mamíferos diminuíram de tamanho em cerca de um terço, enquanto insetos como escaravelhos,
formigas e abelhas encolheram em três quartos.

25
O consumo médio de carne vermelha e de aves em 1960 era de 75,3 quilos; a projeção para 2017
era de 98,8 quilos. 

26
Estão classificados como obesos 20 por cento dos habitantes de Tonga e Tuvalu e até a Coreia do
Norte registou um aumento de 1 por cento. 

27
As primeiras observações publicadas da utilização de um microscópio estão no Apiarium de
Galileu, de 1625. Foi em 1624 que ele observou pela primeira vez uma pulga com um microscópio.

28
Há três pessoas associadas à invenção do microscópio, já que foram apresentados dois registos de
patente com um intervalo de apenas algumas semanas. Zacharias Janssen também é frequentemente
mencionado como inventor. Os primeiros telescópios eram muito simples, constituídos por dois
pedaços de vidro a alguma distância um do outro para ampliar objetos distantes.

29
A nossa capacidade para detetar luz é tão grande que cientistas descobriram recentemente que, de
perto, somos até capazes de detetar o ínfimo brilho da luz de um único fotão. 

30
Está determinado que o antigo teste de Mizar é equivalente ao teste atual que identifica uma visão
20/20.

31
Os planetas não eram diferenciados das estrelas, para além do facto de que pareciam ser
“errantes”. 

32
Os sete axiomas do heliocentrismo, são: “1) Não há um centro no universo; 2) O centro da Terra
não é o centro do universo; 3) O centro do universo está próximo do Sol; 4) A distância da Terra ao
Sol é impercetível, em comparação com a distância às estrelas; 5) A rotação da Terra explica a
aparente rotação diária das estrelas; 6) O ciclo anual aparente de movimentos do Sol é causado pela
rotação da Terra em volta dele; 7) O movimento retrógrado aparente dos planetas é provocado pelo
movimento da Terra, a partir de onde se faz a observação.”

33
Usando novas técnicas, investigadores reavaliaram os dados e calcularam que algumas galáxias
podem ser quase duas vezes maiores do que originalmente se pensava.

34
“As galáxias mais ténues têm um décimo bilionésimo do brilho que o olho humano pode
distinguir.”

35
O número, em campos de futebol, é igualmente alucinante e difícil de imaginar: 60.720.000
campos de futebol. 

36
A unidade mais pequena que conseguimos ver com um microscópio eletrónico é um angström, que
é 1 x 10-10.

37
Galileu era tão controverso que a Igreja Católica precisou de 350 anos para admitir, em 1992, que
ele e Copérnico tinham razão.

Bomba Mental 
Nunca me tinha ocorrido, mas as coisas são realmente assim:
todos nós, na Terra, caminhamos sobre um mar escarlate e efervescente de chamas,
escondido nas suas entranhas.  
Nunca pensamos nisso. Mas o que sucederia se a fina crosta sob os nossos pés se
transformasse em vidro e víssemos de repente… Eu tornei-me vidro. Eu vi – dentro de
mim. 
YEVGENY ZAMYATIN 

Os detetives no local não tinham muitas pistas. A cena era arrepiante.


Duas mulheres idosas estavam caídas no chão do apartamento: uma fora
encontrada com a cabeça debaixo de uma cadeira, a outra embrulhada
num tapete. Retiraram das vítimas pedaços de unhas e amostras de cabelo
e de pele. As mulheres encontravam-se mumificadas. 
A polícia de Viena descobriu os corpos das irmãs em 1992. Estavam
mortas há anos. Os vizinhos não tinham dado pela ausência delas, já que
viviam quase em reclusão. Muitos partiram do princípio de que tinham
simplesmente feito as malas e ido para outro lado. Mas os banqueiros
mostraram-se mais curiosos do que os vizinhos, provavelmente porque as
irmãs tinham bastante dinheiro. Por isso, quando as contas deixaram de
ser mexidas, começaram a surgir perguntas, e por fim a polícia resolveu
investigar. 
A notícia da morte das irmãs depressa chegou às companhias de
seguros. E embora não se suspeitasse de crime, as seguradoras precisavam
mesmo assim de saber qual delas tinha morrido primeiro, pois a
companhia com a apólice da herdeira tinha a ganhar uma grande
quantidade de dinheiro. A equipa forense viu-se num beco sem saída e
pediu ajuda aos físicos da Universidade de Viena. Para resolver o caso, os
cientistas iriam desenvolver uma nova ferramenta com a capacidade de
“ver” o corpo de uma forma completamente nova: uma espécie de relógio
capaz de identificar com precisão a hora da morte. 
Para explicar como funciona este relógio, temos em primeiro lugar de
recuar a 1763. Nesse ano, quem andasse a caminhar nas ruas empedradas
de Harwich podia ter escutado duas mentes brilhantes embrenhadas numa
conversa profunda. Samuel Johnson e James Boswell estavam a discutir as
ideias de George Berkeley, um famoso filósofo irlandês. Para a época, o
argumento de Berkeley era bastante radical. Ele acreditava que não somos
capazes de ver as coisas como elas realmente são; em vez disso, aquilo
que sabemos do mundo baseia-se nas nossas impressões sensoriais. Posto
de outra forma: para Berkeley, as nossas perceções fazem com que as
coisas nos pareçam “reais”; isto é, uma mesa ou uma cadeira apenas
existem até ao ponto em que podem ser percebidas, o que significa que
tais objetos só existem nas nossas mentes. O que perturbava as pessoas
nessa altura, e continua hoje a perturbar-nos, era que, se apenas somos
capazes de ver o mundo que existe nas nossas mentes, como é que temos a
certeza de que o mundo material sequer existe? 
Parece um enigma impossível, mas Johnson estava convicto de que era
possível provar – e de uma maneira bastante simples – que o argumento
de Berkeley estava errado. Reza a história que ele enfrentou o problema
filosófico com uma solução decididamente não filosófica. Como iria ele
refutar a asserção de Berkeley? Boswell viu Johnson dar um pontapé
numa grande pedra, ao mesmo tempo que gritava: “Refuto ASSIM!” 
Foi desta maneira que Johnson contribuiu para a história da filosofia
com uma nova falácia: o argumentum ad lapidem, ou “argumento da
pedra”. Porque, na verdade, ele não tinha refutado Berkeley coisa
nenhuma. A dor nos dedos dos pés de Johnson era até exatamente aquilo
que Berkeley teria antecipado: uma dor que só era real por ter sido criada
pela sua mente.  
Esta mesma questão da realidade externa é hoje discutida não apenas
por filósofos, mas também por cientistas. Será que existe um mundo “aí
fora”, ou será que é necessária uma consciência para que ele seja
percebido? Aquilo que vemos não é de certeza o que existe objetivamente.
Em vez disso, aquilo que vemos baseia-se nos nossos mecanismos
sensoriais humanos específicos. Por exemplo, como Robert Lanza e Bob
Berman escrevem em Biocentrism, a chama de uma vela, oscilante e
amarela, não pode ser percebida sem nós. 
 
“A chama é […] apenas um gás quente. Como qualquer fonte de luz, emite fotões em
pequenos feixes de ondas de energia eletromagnética […] Estas ondas eletromagnéticas
invisíveis atingem uma retina humana, e se (e apenas se) acontecer que cada uma das ondas
meça entre 400 e 700 nanómetros de comprimento, de pico a pico, então a sua energia é a
exata para fazer chegar um estímulo aos oito milhões de células cónicas da retina. Cada uma,
por sua vez, envia um impulso elétrico a um neurónio vizinho, e o processo vai-se
desenrolando, a 400 quilómetros por hora, até atingir o lobo occipital do cérebro, quente e
húmido, na parte de trás da cabeça. Aí, em cascata, um complexo de neurónios é acionado
pelo estímulo que chega, e percecionamos subjetivamente esta experiência como uma
luminosidade amarela a acontecer num lugar que fomos condicionados a chamar ‘o mundo
externo’.” 
 
O mesmo é verdade para objetos físicos duros, como rochas. Não há
nada de sólido numa rocha. É composta por um conjunto efervescente de
átomos e de partículas subatómicas cintilantes, cuja maior parte é espaço
vazio. A perceção que Johnson teve ao dar um pontapé na pedra naquele
dia foi uma sensação de pressão, quando os eletrões de carga negativa na
cobertura exterior da rocha repeliram os eletrões de carga negativa que
compunham a cobertura exterior do seu sapato. Não houve contato sólido;
houve apenas pressão, que o seu cérebro traduziu como sensação. Dos
nervos dos seus dedos do pé até à espinal medula e ao cérebro – foi assim
que Johnson teve a perceção de ter dado um pontapé numa pedra. Até
hoje, ninguém conseguiu refutar efetivamente George Berkeley. Nem
mesmo Albert Einstein foi capaz de provar em termos definitivos que a
realidade existe. Numa carta que escreveu em 1955, afirmou: “É essencial,
para a física, que se assuma a existência de um mundo real
independentemente de qualquer ato de perceção. Mas isto é uma coisa que
não sabemos [o ênfase vem do original].” 
Embora não possamos afirmar com segurança se a realidade existe
independentemente de um observador, o que sabemos é que o mundo
físico é muito mais estranho do que aquele que os nossos olhos percebem.
Para começar, pensamos habitualmente nos nossos corpos como separados
e distintos do mundo exterior, mas a ciência moderna afirma-nos que não
existe isso de “lá fora”; na verdade, não há um lugar em que o nosso corpo
acabe e o mundo comece. 
 
Se se souber como olhar, é possível fazer desaparecer uma montanha
inteira. Foi precisamente isto que uma equipa fez no município de Gifu,
no Japão. Aí, o monte Ikeno ergue-se acima da paisagem. Com os seus
cumes cobertos de neve e um rio a serpentear pelo sopé, parece uma
paisagem de bilhete postal. 
Mas escondido no interior, um quilómetro e meio abaixo do cume, está
um laboratório de alta tecnologia à altura do esconderijo de um vilão num
filme de James Bond. No interior desta antiga mina de zinco, técnicos
vestidos com macacões brancos com capuzes vigiam um tanque de aço da
altura de um edifício de 12 andares cheio com 50 mil toneladas de água
ultrapura. É o observatório de neutrinos Super-Kamiokande, ou Super-K,
uma gigantesca instalação subterrânea construída para detetar algumas das
mais pequenas partículas subatómicas conhecidas do universo. Para “ver”
estas partículas invisíveis, o teto e as paredes do observatório estão
cobertos com 11 mil lâmpadas de vidro brilhantes, feitas à mão, para
captar pequenas cintilações de luz de neutrinos. São os tubos
fotomultiplicadores. 
Foi aqui, nas profundezas do coração da montanha, que esta “câmara
fotográfica” de cem milhões de dólares tirou a mais extraordinária das
fotografias do Sol. A imagem está pixelizada, mas é instantaneamente
familiar: um núcleo absolutamente branco, rodeado de amarelo brilhante
que passa a cor de laranja e com ondas de vermelho. Mas o que é
intrigante é isto: como foi possível tirar uma imagem do Sol a partir do
interior profundo de uma montanha, sem janelas que permitissem a
entrada de luz? A resposta está naquilo que o Super-K procura. Enquanto
uma câmara normal capta fotões, ou partículas de luz, o Super-K capta e
mostra imagens de um tipo de partícula diferente. Ele anda à procura de
neutrinos: partículas tão pequenas e que se movem tão depressa que são
capazes de atravessar mesmo a matéria mais densa. 
Imaginem um bloco de chumbo estendido ao longo de um comprimento
de um ano-luz, ou seja, de 9.500 biliões de quilómetros.38 Agora
imaginem outra coisa: disparar uma corrente de neutrinos através de uma
das extremidades desse bloco. Parece inacreditável, mas metade das
partículas atravessá-lo-ia sem qualquer problema e sairia do outro lado.
Com uma massa próxima de zero, e sem carga elétrica, os neutrinos são
assim chamados por serem neutros e não serem atraídos por outras
partículas subatómicas. São também inimaginavelmente insignificantes.
Para um neutrino, o espaço entre átomos de chumbo é como um abismo
imenso e, por isso, é relativamente fácil passar entre eles. 
Na vida de todos os dias, os nossos olhos e os nossos dedos dos pés
doridos de dar pontapés em pedras enganam-nos e levam-nos a acreditar
que a matéria é sólida, mas trata-se de uma ilusão. Logo no início do
secundário aprendemos que os átomos são essencialmente compostos de
espaço aberto. Por exemplo, se conseguíssemos ampliar o núcleo de um
átomo de hidrogénio para o tamanho de uma bola de golfe, e o tivéssemos
na palma da mão, o eletrão a girar à volta encontrar-se-ia a um quilómetro
de distância. Mas para compreender como um neutrino é pequeno seria
preciso imaginar que esse átomo enorme teria, digamos, o tamanho do
sistema solar. E a essa escala, então, a bola de golfe nas nossas mãos teria
mais ou menos o tamanho de um neutrino; em comparação com o
tamanho de um átomo ele é assim minúsculo. 
Mas estas imagens simples não nos dão o quadro completo. Porque, ao
nível subatómico, os neutrinos não têm um “tamanho” per se. Os físicos
afirmam que os neutrinos são “partículas do género de pontos, com
posições incertas”; têm menos de um milionésimo da massa de um
eletrão, e é por isso que conseguem mover-se livremente e relativamente
sem oposição até nos espaços de maior densidade. 
À escala subatómica, os nossos corpos, como as montanhas, também
são essencialmente espaços vazios. Para os neutrinos, nós somos como
fantasmas, e em cada segundo passam através dos nossos corpos cem
biliões de neutrinos, como se nem estivéssemos lá. Mas por sermos
bombardeados por tantos – estão constantemente a ser gerados pela fusão
nuclear do Sol e pela destruição de supernovas –, de vez em quando, dado
o seu imenso número, um neutrino choca com outra partícula subatómica,
e isso permite a sua deteção por um observatório de neutrinos.39 Aquilo de
que os cientistas do Super-K estão à espera é destas raras colisões.
Quando um neutrino atinge um eletrão na água ultrapura, produz uma
pequena centelha azul de luz de neutrino, semelhante a um boom sónico
ótico. Isto resulta numa luminosidade azul caraterística, designada como
radiação de Cherenkov. 
Ao fim de 503 dias de exposição, a capturar todos os dias cerca de 15
“pixels” de neutrino, o Super-K já tinha recolhido um número suficiente
destes breves flashes de neutrino – que tinham passado não só para baixo,
através da montanha, mas para cima, através da terra –, para conseguir
formar a imagem do Sol a brilhar, esplendoroso, no exterior. 
À imagem criada pelos neutrinos chama-se neutrinografia. E o que torna
tão extraordinária a neutrinografia do Sol elaborada pelo Super-K é o
facto de ela provar que aquilo que parece o mundo sólido à nossa volta,
desde as pedras às montanhas, é, na verdade, vazio e poroso. Mas, como
veremos a seguir, há outra técnica de imagiologia científica que pode ser
usada para olhar para dentro de nós – e que revela a mesma coisa. 
 
Lorde Londesborough, Em Sua Casa 
144 Picadilly 
Uma Múmia de Tebas vai ser desenfaixada às duas e meia 
– convite formal, 1850 
 
No século XIX, a alta sociedade britânica estava tomada pela
Egitomania. Era uma herança da campanha egípcia de Napoleão, que meio
século antes tinha iniciado as escavações arqueológicas. Arqueólogos e
exploradores estavam a revelar o espantoso poder de um império antigo,
em tempos tão imenso como era então o Britânico e que agora jazia em
ruínas. As expedições ao deserto pilharam os antigos túmulos e templos
egípcios, enquanto na Europa colecionadores privados arrebatavam as
antiguidades que durante milhares de anos tinham permanecido intocadas.
 
Por causa deste fascínio, colecionadores ricos começaram a organizar
festas onde se “desembrulhavam” múmias. Os convidados juntavam-se à
volta dos corpos mumificados, maravilhando-se perante as pedras
preciosas e amuletos que iam sendo revelados à medida que as faixas de
tecido enroladas à volta dos corpos eram retiradas, de uma forma teatral.
Estes cadáveres eram recordações com muita procura. Como escreveu em
1833 o aristocrata francês Abbot Ferdinand de Géramb, “dificilmente seria
respeitável regressar do Egito sem aparecer com uma múmia numa mão e
um crocodilo na outra”. E as múmias eram assim destruídas em
espetáculos de matiné, para os ricos divertirem os seus amigos. 
No entanto, já para o fim do século, nasceu uma nova loucura quando
em 1895 um físico alemão, o professor Wilhelm Roentgen, chamou a
atenção do público para uma nova descoberta extraordinária. Chamou-lhe
raio X.40 Os misteriosos raios eram capazes de penetrar em matéria sólida,
permitindo às pessoas verem através da pele humana e até ao osso. 
Era uma coisa extraordinária. As imagens intrigaram a sociedade
vitoriana. As pessoas estavam tão entusiasmadas com a tecnologia que,
como observou um autor, o aparelho de raios X tornou-se uma espécie de
iPhone dos anos 1890. Em pouco tempo esta nova forma de “super visão”
estava por todo o lado. Pelo menos para as múmias, os raios X, ou
radiografias, foram um alívio. Apenas alguns meses depois da
apresentação do raio X, o físico Walter König examinou com aquela
tecnologia a múmia de uma criança egípcia, tornando-se pioneiro de uma
forma não invasiva de observar restos humanos, mantendo-os preservados
para a posteridade. 
Claro que os raios X não eram só usados nos mortos. Os médicos, em
especial, foram rápidos a perceber as vantagens que eles traziam. Se,
antes, a localização exata de ossos partidos dependia exclusivamente do
palpite acertado de um médico, agora, com a visão por raio X, era possível
identificar as áreas atingidas antes de uma operação. Esta capacidade para
ver através da carne tornou-se especialmente útil na frente de batalha, já
que os médicos conseguiam determinar a localização exata das balas e
estilhaços alojados nos corpos de soldados feridos. 
O poder da visão por raio X também não se limitou a domínios médicos
ou científicos. Tornou-se igualmente muito popular entre o público em
geral. Em feiras e festas, os “retratos de ossos” tornaram-se uma nova
atração e as pessoas faziam fila para ver pela primeira vez a imagem
chocante dos seus esqueletos. Os raios X também revelaram as
deformidades ósseas dominantes na era vitoriana. Em relação às mulheres
que vestiam de acordo com a moda do tempo, os raios X revelaram que
uma vida inteira passada sob o aperto de corpetes em forma de ampulheta
significava costelas dobradas e órgãos esmagados. 
Mas a nova tendência não revelou somente os efeitos secundários da
indústria de beleza, também provocou alguns. O empresário britânico Max
Kaiser desenvolveu aquilo a que chamou o sistema Tricho, para remoção
de cabelo. Em 1925, já tinha expandido o negócio e aberto sucursais em
mais de 75 pontos nos Estados Unidos. As mulheres que lá iam retirar o
buço eram submetidas a até 20 doses de radiação. 
Como sucede com qualquer tendência em ascensão, o negócio dos raios
X esteve, durante um tempo, ao alcance de todos, e qualquer pessoa, fosse
construtor, farmacêutico ou negociante de vinho, podia abrir o seu próprio
laboratório e ser considerado suficientemente competente para ler uma
radiografia. A tecnologia tornou-se tão generalizada que até à década de
1950 era possível encontrar em grandes armazéns os chamados
“fluoroscópios”, que eram despreocupadamente postos à disposição dos
clientes para que estes pudessem ver como ficavam os seus pés dentro de
um par de sapatos e, desse modo, perceber se assentavam na perfeição.
Mas os efeitos secundários dos poderosos raios não tinham passado
despercebidos. A loucura dos exames raio X começou a esmorecer à
medida que foram surgindo mais relatos de perda indesejada de cabelo,
bolhas, inchaços e queimaduras, bem como de cancro e até de morte. Era
irónico: apesar de ser possível “ver” melhor do que nunca, não tínhamos
sido capazes de ver os danos que isso provocava antes de ser demasiado
tarde. 
A radiação, como os cientistas estavam a descobrir, não é toda igual: há
raios diferentes, com graus de penetração diferentes. A radiação alfa, por
exemplo, é razoavelmente fraca e pode ser detida por qualquer coisa tão
simples como uma mão estendida. Os raios alfa nem sequer são capazes
de penetrar nas células da camada exterior da pele. Por causa disso, no
tratamento de cancros, a radiação alfa, sob a forma de rádio-223, é
habitualmente usada para destruir massas cancerosas. Inseridas no tumor,
as partículas alfa matam as células cancerosas, mas, como não são capazes
de penetrar muito longe, as células saudáveis em redor permanecem
intocadas. 
A radiação beta, por outro lado, vai um pouco mais longe. Emitindo
partículas de uma massa mais pequena, esta forma de radiação consegue
penetrar alguns centímetros no corpo humano, mas pode ser detida por
uma folha, relativamente “sólida”, de plástico ou de alumínio. O carbono-
14 radioativo na atmosfera é uma forma de radiação beta que mal
consegue penetrar na camada de pele morta mais exterior dos nossos
corpos. Mas, como veremos em breve, esta forma de radiação beta tem
outras formas engenhosas de abrir o seu caminho. 
Quanto aos raios gama e aos raios X, estes dois tipos de radiação são os
que apresentam uma penetração maior: são capazes de viajar através do
corpo como se ele nem estivesse lá. Mas não são capazes de atravessar
materiais como os neutrinos. Lembrem-se: um neutrino é capaz de viajar,
sem ser detido, através de 9,5 biliões de quilómetros de chumbo, enquanto
alguns centímetros bastarão para travar um raio X. A espessura e a
densidade do cálcio nos nossos ossos são suficientes para bloquear raios
X, e é isso que cria as imagens dos nossos esqueletos. Tecidos moles,
como a nossa gordura, músculos e pele, são mais permeáveis e, por isso,
materiais compostos por elementos de um número atómico mais alto,
como o cálcio, ou balas feitas de chumbo, bloqueiam a maior parte do
feixe de raios X, criando a silhueta branca que nos é agora familiar. 
Quanto às nossas células, na maior parte dos casos os raios X passam
através delas sem causar danos, mas, enquanto radiação ionizada com
energia suficiente para arrancar os eletrões a um átomo, de vez em quando
podem desfazer a estrutura molecular de uma célula, causando uma
mutação no ADN.41 É por isso que doses grandes ou frequentes de
radiação são perigosas: é que literalmente bombardeiam as células. E,
como se fosse um jogo de roleta russa, cada tiro aumenta a probabilidade
de causar dano. 
Já terão reparado que, para proteger radiologistas e pessoal médico, as
portas e janelas das salas de raios X dos hospitais modernos estão
protegidas com chumbo, e que, durante os exames, os doentes têm de usar
um colete de chumbo para proteger as partes do corpo que não estão a ser
examinadas. A expetativa não é que nenhum dos fotões consiga passar –
alguns conseguirão sempre –, mas que, com o seu número atómico
elevado, o escudo de chumbo bloqueie a esmagadora maioria deles. 
Os aparelhos de inspeção de bagagens na segurança dos aeroportos
estão igualmente revestidos de chumbo. Uma vez que os raios X destacam
objetos de alta densidade, os agentes de segurança são alertados para a
presença potencial de armas ou de bombas. Se alguma vez se interrogou
porque é que os passageiros têm de tirar da bagagem os laptops e as
câmaras fotográficas quando passam pela segurança, é porque os raios X
não são capazes de vez através destes materiais impenetráveis, tornando
difícil a deteção de objetos que possam estar escondidos neles. 
Passou mais de um século desde a descoberta do raio X, e a maior parte
de nós dá por garantido que as máquinas de raios X nos permitem ver
aquilo que em tempos não éramos capazes. Mas, de certa maneira, cada
nova forma de visão revela um tipo de cegueira diferente. Assim como a
máquina de raios X consegue detetar contrabando mas é cega em relação à
bagagem, o Super-K consegue ver o Sol, mas é cego quanto à montanha.
Às vezes, para ver uma coisa que antes estava escondida, perdemos de
vista outra coisa.  
No debate de 1763 entre Johnson e Boswell, a essência era se existiria
ou não uma distinção real entre aquilo que está nas nossas mentes e o que
está fora, no mundo físico. À escala humana, tendemos a ver “sólido” e
“real” como a mesma coisa, mas à escala subatómica o mundo à nossa
volta é uma dança constante de partículas intermutáveis. Os que os
modernos instrumentos científicos nos revelaram é que não só não existe
uma grande distinção entre nós e as coisas à nossa volta, como os nossos
corpos são compostos das coisas à nossa volta. Aquela pedra e os dedos
do pé de Johnson, como em breve descobriremos, têm ambos as suas
origens na mesma coisa. 
 
Em 1957, um trabalho científico agora conhecido como Artigo B2FH
mudou para sempre a forma como nos vemos na Terra. B2FH vem dos
apelidos dos seus autores; os astrónomos Geoffrey e Margaret Burbidge,
William Fowler e Fred Hoyle. Nesse paper, delinearam a teoria da “poeira
estelar” sobre as origens do universo vivo. E, hoje, a maior parte de nós
possui provas sólidas de que toda a vida, e toda a matéria que compõe a
nossa realidade material, provém de elementos criados pelas estrelas. 
Em termos técnicos, chama-se nucleossíntese estelar. O que isso
significa é que todos nós somos a ressurreição física de estrelas mortas. E
isso é porque toda a vida na Terra, cada corpo, nasce de uma galáxia de
explosões. Segundo a astrónoma da NASA Michelle Thaller, o ferro que
torna o nosso sangue vermelho foi feito nos derradeiros momentos antes
da morte de uma estrela. Para todos nós, então, o nosso próprio sangue
começou com uma morte espetacular num sistema solar. 
As próprias estrelas nascem em berçários moleculares. À medida que
nuvens de gás compostas essencialmente de hidrogénio se unem sob a
força da gravidade num movimento em espiral para o interior, os átomos
de hidrogénio começam a fundir-se e a constituir um núcleo a uma
temperatura muitíssimo elevada. A fusão de quatro núcleos de hidrogénio
cria um novo elemento, o hélio, e é a projeção desse fluxo de energia
gerado pela reação nuclear maciça que sustenta a estrela, impedindo-a de
entrar em colapso sob a pressão do seu próprio peso.42 Uma estrela
permanecerá estável enquanto estas duas forças opostas – a que explode e
a que implode – se equilibrarem. 
Mas o combustível que é o hidrogénio acaba por esgotar-se e a estrela
começa a utilizar o único outro combustível à sua disposição: a camada de
hélio que produziu através de fusão nuclear. Ao fundir três átomos de
hélio, começa a formar o elemento seguinte: carbono. O carbono forma
então oxigénio, e o oxigénio transforma-se em silício e enxofre. O
processo de fusão de elementos mais leves para formar elementos mais
pesados é a reação em cadeia da “nucleossíntese estelar”43, que continua
em ascensão pela tabela periódica até a estrela chegar a ferro, ponto em
que se torna tão pesada que a energia deixa de ser queimada para fora e,
em vez disso, é toda absorvida.44 O resultado é uma explosão tão imensa e
espetacularmente violenta que a estrela moribunda brilha mais do que
todas as outras estrelas da sua galáxia juntas. É a lendária supernova. É a
partir desta explosão estelar que são feitos os elementos primários da
tabela periódica: o carbono dos nossos corpos, o silício dos nossos
telemóveis, o urânio que usamos para fazer bombas e dar energia às
cidades. Quase toda a matéria que nos rodeia resultou da morte de uma
estrela.45 
As supernovas são tão poderosas que até podem atirar átomos para
outras galáxias. O processo é conhecido como “transferência
intergaláctica” e astrofísicos na Northwestern University calcularam que
aproximadamente metade da matéria que compõe os nossos corpos nem
sequer é da Via Láctea. Em termos atómicos, os terrestres são seres
extragaláticos, já que metade das partículas dos nossos corpos provém de
galáxias bem distantes. Como escreveu o astrobiólogo Caleb Scharf no
livro The Zoomable Universe: “Em termos simples, todos nos
condensámos. As propriedades físicas fundamentais do universo
conspiraram para reunir um conjunto de átomos e de moléculas que antes
tinham estado a ocupar um volume um milhão de biliões de vezes maior
[...] Há cinco mil milhões de anos, os seus átomos estavam cerca de dez
milhões de vezes mais espalhados pelo cosmos do que estão agora.” 
E alguns destes átomos são tão antigos como o próprio Big Bang. Na
verdade, 98 por cento dos átomos de hidrogénio no nosso corpo datam do
início do universo. 
As moléculas que nos rodeiam também são antigas. Gostamos de pensar
que a água que bebemos é limpa, mas os cientistas acreditam que a água é
mais antiga do que o Sol. Da próxima vez que der um gole, pense que a
água que está a beber já foi uma nuvem, um icebergue e uma onda, que
vagueou e serpenteou entre desfiladeiros no fundo do mar. Antes de entrar
no seu corpo, passou, em média, três mil anos no oceano e apenas uma
semana no céu antes de cair sob a forma de chuva. Encerrada em glaciares
permanece mais tempo, podem ser milhares ou centenas de milhares de
anos. Depois, um dia, por fim, derrete, passando duas semanas em
correntes e rios antes de correr para o mar. E este ciclo tem-se repetido
muitas e muitas vezes ao longo dos 4.500 milhões de anos em que a Terra
tem andado a orbitar o nosso modesto Sol. 
Não é só a água que é reciclada. A maioria do carbono que constitui os
nossos corpos, aproximadamente dois terços, provém das plantas que
comemos e do dióxido de carbono que elas expiram, mas o terço restante
vem de carbono que ficou aprisionado em depósitos de gás e petróleo
enterrados há centenas de milhões de anos. Quando queimamos estes
combustíveis fósseis, eles libertam para a atmosfera os átomos de carbono
que constituíram os organismos dos primeiros animais aquáticos que
existiram há 500 a 600 milhões de anos; das primeiras plantas terrestres de
há 475 milhões de anos, dos primeiros répteis, insetos e anfíbios de há 350
a 400 milhões de anos; e dos dinossauros que andaram pela Terra como
gigantes entre 230 e 65 milhões de anos atrás. Por isso, de alguma
pequena maneira, nós somos a ressurreição atómica de um dinossauro. 
O que isto quer dizer é que, enquanto o nosso corpo está constantemente
a renovar-se, a criar em cada segundo milhões de novas células, a matéria
atómica que compõe essas células é tão antiga como o tempo. Como se
fossem microscópicas peças de Lego, os átomos usados para construir
cada um dos nossos corpos já foram usados biliões de vezes antes, e os
átomos que estão agora no nosso corpo voltarão a ser usados biliões de
vezes. 
A um nível intuitivo, sabemos que a vida é um ciclo: “És cinza e em
cinza te tornarás; és pó e em pó te tornarás.” O berçário de nova vida é
literalmente o leito da morte do apodrecimento e da decomposição. Só que
os cientistas, agora, são capazes de assistir a esta ressurreição à medida
que ela se desenrola. Na universidade inglesa Sheffield Hallam, em
Sheffield, Malcolm Clench, um professor de espectrometria de massa, foi
o primeiro a seguir átomos que se deslocaram de um organismo, após a
sua morte, até se incorporarem de maneira visível no corpo de uma nova
vida. 
Produtores da BBC contataram Clench, pois estavam a trabalhar num
documentário sobre a ciência da decomposição e queriam encontrar uma
forma visual de mostrar aos espetadores o processo de passagem da morte
à vida no preciso instante em que ele estivesse a acontecer. Para isso,
Clench concebeu um jardim do “Pós-Vida”, criando plantas hidropónicas
a que foi dando um nutriente especial contendo azoto-15. O azoto é
essencial para a vida, por ser um componente essencial do nosso ADN. E
se o azoto-14 está em toda a parte na atmosfera, e é muito comum, o
azoto-15 é excecionalmente raro e a sua percentagem na natureza é de
apenas 0,3 por cento; ou seja, é improvável encontrá-lo por acaso. 
As plantas dadoras de Clench foram criadas para serem sacrificadas.
Depois de decompostas, a matéria morta foi transformada em líquido. Esta
“sopa de morte” alimentou novos rebentos, que até aí tinham crescido
apenas com o abundante isótopo azoto-14. Usando um espetrómetro de
massa46, que identifica e isola átomos e outros compostos pelas respetivas
massas, Clench conseguiu então gerar uma imagem com a localização
exata do azoto, mostrando até onde tinha ido nas folhas das novas plantas.
Usando instrumentos especiais de imagiologia, foi possível ver o azoto-15
presente nas folhas iluminar-se e mostrar um brilho branco. As “marcas da
morte” atómicas do isótopo raro só podiam ter uma origem: eram a
ressurreição atómica da planta dadora morta. 
A vida e a morte são um ciclo. É assim que a natureza funciona. Na
floresta de Tongass, no Alasca, é visível um processo semelhante. Mas,
aqui, o que os cientistas procuram é salmão nas árvores. Em geral,
imaginamos animais a comerem plantas, mas neste caso são as plantas que
se alimentam dos restos de animais. 
Todos os anos, quando centenas de milhões de salmões regressam aos
rios e riachos para desovar, morrem e decompõem-se nesses locais,
tornando-se nutrientes químicos para a floresta. Como observa a bióloga
Anne Post, um salmão-cão prestes a desovar contém uma média de 130
gramas de azoto, 20 gramas de fósforo e mais de 20 mil quilojoules de
energia sob a forma de proteína e gordura. Isto quer dizer que, em apenas
um mês, um riacho de 250 metros onde os salmões vêm desovar e morrer
recebe mais de 80 quilos de azoto e 11 quilos de fósforo. 
É por causa disto que Tongass é conhecida como “a floresta do salmão”.
Os cientistas que analisam a vegetação das margens concluíram que entre
um quarto e três quartos do azoto das árvores provém dos salmões que ali
vão desovar. E isso pode fazer uma enorme diferença para o seu
crescimento. O tronco da conífera pichea sitchensis que cresce nestas
margens demora cerca de 80 anos a atingir um diâmetro de 50
centímetros; as árvores-irmãs mais afastadas das margens, que não têm a
“ajuda” do salmão, precisam de bastante mais para chegar a esse ponto –
cerca de três séculos. 
Os chamados anéis de crescimento no tronco destas árvores também
mostram um registo das migrações dos salmões. Nos anos em que estas
são grandes, o azoto-15 presente nas árvores mostra-o de forma muito
evidente. Como vimos, o azoto-15 é muito raro em ambientes terrestres,
mas é comum na rede alimentar marinha. O azoto-15 presente nas árvores
só pode ter vindo de um lugar: dos salmões migrantes. O que significa que
a história das migrações dos salmões está literalmente a ser escrita na
biblioteca da floresta. 
Os humanos não estão à margem deste processo. Também nós estamos
sujeitos a este processo de passagem da morte para a vida. Embora
possamos não gostar de pensar nisso, os cadáveres humanos enterrados
naturalmente também enriquecem o solo e, como sucede com o salmão,
deixamos para trás as nossas assinaturas biológicas. Depois da morte, por
cada quilo de massa corporal seca, o corpo humano médio liberta 32
gramas de azoto, dez gramas de fósforo, quatro gramas de potássio e um
grama de magnésio para o solo de uma campa. E embora todo o processo
de um funeral possa inicialmente matar alguma da vegetação próxima,
acaba por ser atingido um equilíbrio e os nossos cadáveres em
decomposição começam a alimentar o ecossistema.47 Tal como estrelas
moribundas deram origem a vida na Terra, os nossos próprios despojos
atómicos espalhados reformulam-se em novos organismos. Tornam-se,
outra vez, ingredientes de vida. 
Desde o Big Bang que não há matéria nova no universo, mas
sensivelmente nos últimos cem anos os cientistas têm descoberto como
transformar átomos de maneiras que são altamente improváveis de
acontecer na natureza – algumas delas intencionais e outras nem por isso.
Claro que até uma coisa tão banal como queimar uma torrada – ou,
mesmo, fazer pão – representa uma alteração de estrutura molecular. (O
que, de uma perspetiva evolucionária, é bastante impressionante: uma
maneira de pensar na complexidade humana é que somos animais capazes
de modificar a estrutura molecular.) Mas isso não é, nem de perto, a
mesma coisa do que fazer novos elementos, como uma estrela faz. Para
isso são necessárias quantidades inimagináveis de energia, qualquer coisa
muito para lá daquilo que os nossos antepassados teriam sido capazes de
imaginar. 
Hoje, no entanto, possuímos esse poder. Dos 118 elementos da tabela
periódica, 26 são sintéticos – ou produzidos por humanos. Criamos novos
elementos compactando núcleos atómicos através de um processo
chamado fusão. Fazemos com que as partículas colidam, a alta velocidade,
num acelerador de partículas e se fundam num elemento mais pesado. 
Também desenvolvemos o superpoder oposto: a capacidade não só para
fundir átomos como para os cindir. E mostrámos esse poder às 5h29 do
dia 16 de julho de 1945. Uma fotografia tirada pela Secretaria de Defesa
dos Estados Unidos mostra, meio segundo após a detonação, uma bomba a
que foi dado o nome de código Trinity: uma cúpula de 300 metros de
diâmetro ergue-se como uma bolha gigante sobre o deserto Jornada del
Muerto, no Novo México. No seu interior, uma bola de fogo dez mil vezes
mais quente do que o Sol está pronta a explodir e a transformar-se numa
nuvem-cogumelo mortal. 
A Trinity foi a primeira arma nuclear do mundo. A potência da bomba
desencadeou uma energia equivalente a 20 mil toneladas de TNT. Quando
isso aconteceu, fumo e destroços elevaram-se a 11.600 metros,
provocando uma precipitação de confetti radioativos. À superfície, a onda
de choque abriu uma cratera no solo, o calor liquefez a areia e a 16
quilómetros de distância os observadores sentiram que estavam “mesmo
em frente a uma lareira descontrolada”. Pela primeira vez, a humanidade
tinha nas mãos uma potência tão extraordinária como a do Sol. E quando
o dia nasceu, num raio de quilómetro e meio do local do ensaio, nada
permanecia vivo. 
Assim que os Estados Unidos deram a conhecer esta arma de destruição
maciça, foi só uma questão de tempo antes de todos também a quererem.
Nas duas décadas seguintes, os exércitos mais avançados do mundo
precipitaram-se para fabricar as suas bombas, deixando marcas no planeta,
com mais de 500 explosões incandescentes, e atirando para a atmosfera
toneladas de detritos radioativos, até que em 1963 foi assinado o Tratado
de Limitação de Ensaios Nucleares. Depois, as coisas acalmaram. Foram
proibidos ensaios nucleares no espaço, debaixo de água e na atmosfera,
mas ninguém tinha sequer a noção de que os vestígios das bombas
nucleares não se vaporizam e desaparecem simplesmente. Cada detonação
lançou na atmosfera partículas radioativas, atirando as moléculas para um
novo destino. Tal como estrelas a explodirem, as explosões das bombas
tornar-se-iam nova vida. 
Mas, para que exista vida, o elemento carbono é essencial. Toda a vida
na Terra é composta por ele. Exatamente o mesmo elemento de que somos
feitos encontra-se também em pedaços de carvão, minas de lápis e
diamantes. Em coisas vivas, é um elemento essencial em proteínas,
açúcares, gorduras, tecido muscular e ADN.48 As plantas inalam-no
diretamente da atmosfera e os animais, por seu turno, absorvem-no das
plantas que comem. Para os humanos, como para todas as plantas e
animais, o carbono que ingerimos é usado para construir os nossos corpos.
E isso traz-nos de volta ao mistério das duas irmãs mumificadas na
Áustria. 
 
A equipa forense encarregada da investigação à morte das irmãs foi
pedir ajuda a físicos nucleares, porque sabia que para descobrir a idade
das múmias egípcias se usava a datação por radiocarbono. Mas o carbono-
14 que existe na atmosfera, e que é utilizado na datação por radiocarbono,
era neste caso praticamente inútil49; com uma meia-vida de 5.730 anos, o
carbono-14 podia seguramente ser usado para datar tecido orgânico, mas
com um grau de precisão na casa de várias centenas de anos. Para
descobrir qual das irmãs morrera primeiro, os físicos necessitavam de uma
medida a uma escala de tempo humana. 
A solução surgiu-lhes quando perceberam que podia haver uma forma
diferente de datar os cadáveres. Podiam tentar encontrar o pico artificial
de carbono-14 resultante da precipitação causada pelos ensaios nucleares
realizados durante a Guerra Fria. Combinado com oxigénio, o carbono-14
torna-se dióxido de carbono, que é absorvido pelas plantas. Quando os
animais comem plantas, ou outros animais que se alimentam de plantas,
ingerem esse carbono. E uma vez que as células não fazem discriminação,
estes isótopos de carbono seguem o seu caminho na cadeia alimentar. Foi
assim que o carbono das explosões de bombas nucleares se tornou um
elemento essencial de cada ser vivo. 
O carbono-14 é raro no ambiente. Representa apenas um bilionésimo do
carbono no planeta. É possível detetar nos nossos organismos este pico
especial no radiocarbono porque a quantidade de carbono-14 na atmosfera
duplicou durante a era dos ensaios atmosféricos, antes de voltar a cair
abruptamente depois de terem sido proibidos. Os físicos conseguem ler
esta curva como um calendário atómico, porque desde então o
radiocarbono tem-se diluído a uma cadência constante de 1 por cento ao
ano. Assim, se os cientistas fossem capazes de medir a quantidade de
“radiocarbono artificial” dentro de uma célula, como se ele fosse uma
marca do tempo, podiam indicar a data em que essa célula aparecera.50 
A equipa forense possuía agora uma maneira de desvendar o mistério. A
seguir precisavam de uma amostra dos corpos das irmãs que regenerasse
depressa, células que fossem criadas em dias ou em meses, em vez de
anos. 
Já terão ouvido o mito de que a cada sete anos todas as células dos
nossos corpos são substituídas, de forma que, no essencial, nos tornamos
uma pessoa completamente nova. E ainda que seja verdade que todos os
dias perdemos, em média, cerca de 50 milhões de células, as células dos
nossos corpos possuem tempos de vida imensamente diferentes e são
substituídas a ritmos desiguais. Algumas células são como mariposas e
morrem ao fim de uns dias, outras são programadas para ficar connosco
semanas, anos ou até décadas. E, para destruir completamente o mito, há
células tão leais que ficam connosco a vida inteira. 
As células da pele são rápidas a desaparecer. Situadas na linha da frente
dos nossos corpos, são substituídas a cada duas ou três semanas. Toda a
camada exterior da nossa pele, a epiderme, é trocada sensivelmente de
dois em dois meses. Mas não é só nas nossas partes exteriores que há
renovação rápida. Nas nossas entranhas, as células das vilosidades
intestinais têm períodos de vida ainda mais curtos. Expostas a agressivos
ácidos estomacais, sofrem um desgaste tremendo, desfazendo-se e
regenerando-se mais ou menos de dois em dois dias. A velocidade a que
esta substituição celular ocorre também depende da vulnerabilidade das
células. Por exemplo, as superfícies das nossas córneas têm a proteção
acrescida das nossas pálpebras, mas estas células são vitais para ter uma
visão focada e é por isso que temos incorporado um mecanismo de
emergência: se sofrerem qualquer dano, somos capazes de as substituir
com rapidez extrema, num espaço de 24 horas. 
As células dos ossos ficam connosco mais tempo. Em cada década, os
nossos esqueletos desfazem-se e são gradualmente substituídos. As células
do nosso coração duram ainda mais. Na casa dos 20 anos, a sua taxa de
substituição é de cerca de 1 por cento ao ano, mas esta regeneração
abranda e quando chegamos aos 75 substituímos anualmente menos de 0,5
por cento das células do coração. Por isso, se chegar até à bela idade de
cem anos, ainda terá consigo cerca de metade do coração original com que
nasceu. 
Como não há mais absorção de carbono depois da morte, os cientistas
determinaram através da análise de pele e de amostras de cabelo, algumas
das últimas células novas que os corpos das irmãs tinham produzido, que
uma delas tinha morrido um ano antes da outra, em 1988. As suas células
continham mais carbono-14 dos ensaios atómicos. As últimas células
formaram-se no corpo da outra irmã em 1989, o que significa que ela deve
ter vivido durante cerca de um ano junto do cadáver em decomposição da
morta, antes de ela própria morrer no ano seguinte. 
 
Onde acabamos e onde começamos? Quando somos crianças, a resposta
parece simples: eu sou “eu” e tudo o mais está à parte. Na verdade, até as
crianças têm uma compreensão intuitiva da física. Percebem, por exemplo,
a noção de sólidos: dois objetos sólidos não conseguem ocupar o mesmo
espaço e a maior parte dos objetos são rígidos e têm fronteiras estáveis.
São coisas que consideramos de senso comum desde os nossos primeiros
anos, mas na realidade estamos perante um ângulo morto natural. Dada a
escala a que habitamos, percebemos como sólido aquilo que na verdade é
poroso, e o que parece separado dos nossos corpos está, aos níveis
atómico e subatómico, profundamente interligado com tudo. 
Há muito tempo que os místicos perceberam isto. Como observam
Lanza e Berman: “Religiões inteiras (três dos quatro ramos do budismo, o
Zen e a Advaita Vedanta, uma das seitas principais do Hinduísmo, por
exemplo) dedicam-se a provar que um ser separado independente, isolado
do grande conjunto do cosmos, é uma sensação fundamentalmente
ilusória.” Na prática do budismo zen, o objetivo é tornar visível o
invisível. Muito como sucede na ciência, o objetivo é que o praticante zen
compreenda que “não existe separação entre o seu ser e as dez mil coisas”.
O famoso monge budista Thich Nhat Hanh ilustra a ideia em termos não
científicos através da descrição de uma simples flor. Uma flor, explica ele,
não pode existir como uma coisa isolada, porque está intimamente ligada a
tudo o que se encontra à sua volta: 
 
“Olhando uma flor, podemos ver que ela é composta de muitos elementos a que podemos
chamar elementos não florais. Quando tocamos a flor, tocamos a nuvem. Não conseguimos
retirar a nuvem da flor, porque se fôssemos capazes de retirar a nuvem da flor, a flor entraria
imediatamente em colapso. 
Não é preciso ser um poeta para ver uma nuvem a flutuar na flor, mas sabe-se muito bem
que sem as nuvens não haveria chuva nem água para que a flor crescesse. Por isso a nuvem
faz parte da flor, e se enviarmos o elemento nuvem de volta para o céu, então não haverá flor.
A nuvem é um elemento não floral. E o sol… é possível tocar no sol aqui. Se mandarmos
embora o elemento sol, a flor desaparecerá. E o sol é outro elemento não floral. 
E a terra, e o jardineiro… se continuarmos, veremos na flor uma multidão de elementos
não florais. Na verdade, a flor é apenas composta por elementos não florais. Não tem uma
identidade separada.” 
 
Todas as coisas vivas são assim. Não estamos isolados; somos redes. A
vida não conseguiria existir de outra forma. Somos compostos por matéria
e, como toda a matéria, estamos unidos pela segunda lei da
termodinâmica, que afirma que um sistema isolado tenderá sempre para
um estado de caos e desordem. Como sistemas vivos, como matéria
organizada, combatemos esta entropia através de um influxo constante do
mundo exterior. E conseguimos fazê-lo porque as coisas vivas não são
sistemas fechados. Necessitamos de energia do mundo à nossa volta para
manter a nossa existência. De uma forma muito real, aquilo a que
chamamos morte é o momento em que este intercâmbio para e voltamos a
dissolver-nos no caos. Perdemos a nossa solidez e tornamo-nos, outra vez,
partículas. 
A questão de George Berkeley de o mundo material ser “real” ou
somente uma impressão da mente pressupunha que as nossas mentes
fossem feitas de outra “coisa”. Hoje, sabemos que os nossos cérebros – as
nossas mentes – são feitos dos mesmíssimos elementos primordiais que
agora observamos. Devido ao nosso segundo ângulo morto, não somos
capazes de ver como estamos intimamente ligados ao universo à nossa
volta. Que, na realidade, como já afirmou a astrónoma Michelle Thaller,
“somos estrelas mortas, a olhar de novo para o céu”. 

38
Um átomo de hidrogénio tem um protão, nenhum neutrão e um eletrão. Um átomo de chumbo é
muito mais complexo. Tem 82 protões, 82 neutrões e 82 eletrões, e é por isso que o chumbo é um
elemento muito mais denso.

39
Sessenta e cinco mil milhões de neutrinos solares passam, por segundo, através de um centímetro
quadrado perpendicular ao Sol. 

40
William Röntgen recusou-se a registar quaisquer patentes da tecnologia do raio X. Acreditava que
as pessoas deviam beneficiar livremente do seu trabalho.

41
A primeira imagem do próprio ADN foi obtida com raios X. 

42
O nosso próprio Sol funde por segundo aproximadamente 620 milhões de toneladas de hidrogénio,
que transforma em hélio.

43
O leitor mais atento terá reparado que passámos do hélio ao carbono – e que entre um e outro
deviam estar os elementos mais leves: lítio, berílio e boro. Estes elementos são criados cosmicamente
de uma forma diferente, quando um elemento mais pesado é atingido por raios cósmicos.

44
O ferro não consegue libertar energia através da fusão, porque necessita de um input de energia
maior do que a que liberta. 

45
Alguns elementos, como o ouro, são constituídos a partir da colisão explosiva de estrelas de
neutrões. 

46
O MALDI-MS é um sistema de espectrometria de massa que utiliza um laser para isolar átomos e
outros compostos, permitindo aos cientistas verem de que é feito um objeto olhando para a sua massa
e carga. Instrumentos modernos carregam um átomo ou molécula e o laser serve como uma arma de
disparo, desencadeando literalmente uma corrida atómica. Os iões mais leves são os mais rápidos e
os mais pesados são os mais lentos. E assim, com base na sua velocidade e peso atómico, é possível
obter uma imagem dos compostos presentes numa amostra.

47
Mas não com fluidos de embalsamamento ou por cremação, que são maus tanto para o solo como
para as plantas.
48
Quando há uma replicação de ADN, 30 por cento é carbono.

49
A fonte primária de carbono-14 são colisões de raios cósmicos. 

50
Como o radiocarbono resultante dos ensaios nucleares diminui 1 por cento por ano, em 2030 terá
desaparecido. Os organismos nascidos depois desse tempo já não mostrarão quaisquer picos
significativos dos sinais deixados pelas bombas e por isso não será possível datar as suas células. A
menos, claro, que façamos detonar mais bombas. 

Olhos nos Olhos 
Quando não se vê aquilo que não se vê, nem sequer se vê que se é cego. 
PAUL VEYNE 

Para Géza Teleki, era um raro dia de folga. O primatólogo tinha decidido
dar um passeio para desfrutar da paisagem dos altos desfiladeiros do
Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia. Já para o fim da tarde,
encontrou um lugar perfeito de onde podia ver uma luxuriante planície
verdejante. Acomodou-se debaixo de uma árvore à espera do espetáculo
da noite: o grande sol africano cairia em breve sobre as águas brilhantes
do Lago Tanganica. 
A tranquilidade pairava sobre as florestas do vale, mas quando olhou em
redor Teleki percebeu que não estava sozinho. A subir, de direções
opostas, vinham dois chimpanzés machos adultos. Ao atingirem o topo da
elevação, viram-se um ao outro. Ergueram-se nas patas de trás,
caminharam direitos pela relva até ficarem olhos nos olhos e saudaram-se
com suspiros suaves e apertos de mão. Apenas alguns metros à frente de
Teleki, os chimpanzés sentaram-se. Estavam, os três, sentados em silêncio.
Para o primatologista, foi uma experiência profunda e transformadora. Os
chimpanzés tinham ido ali, tal como ele, simplesmente para se sentarem a
ver o maravilhoso pôr do sol. 
Que devemos pensar desta história? Uma vez que somos 99 por cento
chimpanzé, que partilhamos uma grande quantidade do mesmo ADN, é
assim qualquer coisa de tão impossível que eles fossem capazes de
apreciar uma coisa como um pôr do sol? Ou será isso antropomorfismo?
Estaremos a projetar os nossos pensamentos e ideias sobre outras espécies,
vendo o comportamento dos chimpanzés através de uma lente humana? 
Há pelo menos duas maneiras de olhar para esta história – e ambas
revelam que temos um ângulo morto na forma como olhamos para as
outras espécies. Por um lado, temos de admitir que não somos, como
poderíamos pensar, os únicos seres no planeta que olham para as estrelas.
Na verdade, não somos os únicos que resolvem problemas, nem os únicos
comunicadores, nem os únicos animais capazes de amor ou de apreciar a
beleza. 
Mas a outra maneira de olhar para o comportamento dos chimpanzés
pode ser ainda mais extraordinária porque, embora possamos tentar
adivinhar os pensamentos ou emoções dos nossos colegas primatas que
estavam naquela colina, a verdade é que nos está absolutamente vedado
conhecer a experiência deles. Ou seja, até o nosso familiar mais próximo
em termos de evolução pode ver e ter a perceção de um mundo
completamente diferente do nosso. 
A maior parte de nós passa pouco tempo a pensar qual é a perceção do
mundo que outros animais têm. Mas na cidade de Monza, em Itália, foi
aprovada legislação que declarava ilegal manter um peixinho num
aquário. A determinação foi assente no raciocínio de que os peixes têm
boa visão, sendo por disso cruel mantê-los num ambiente fechado que os
obriga a viver com uma “visão distorcida da realidade”. A conselheira
municipal Monica Cirinnà, citada no jornal Il Messagero, afirmou: “A
civilização de uma cidade pode medir-se por isto” – e “isto” era a ideia,
ainda bastante chocante, de que podemos ou devemos ter respeito pela
perspetiva de um animal. 
É verdade que os peixinhos dourados têm uma visão notável. Não só
possuem cones de reconhecimento de cores para o vermelho, verde e azul,
como nós, mas têm um quarto recetor adicional, para luz ultravioleta, o
que significa que lhes está aberta – e está vedada a nós – uma maneira
inteiramente diferente de ver. Se pensarmos nisto, talvez não surpreenda
que os animais tenham uma boa visão: calculamos que seja para
conseguirem sobreviver. Mas o que surpreende é o tipo de informação que
alguns animais conseguem percecionar. 
O peixe-arqueiro, por exemplo, é capaz de distinguir rostos humanos
diferentes. Para espécie aquática, estes peixes têm uma habilidade bastante
única: cospem jatos de água para derrubar presas voadoras, como se
fossem pistolas de água biológicas. São capazes de apontar a um inseto
que voa sobre a água e acertar-lhe com muita pontaria a uma distância de
até 60 centímetros. Esta capacidade especial deu uma ideia a
investigadores das universidades de Oxford e de Queensland: queriam ver
se a pontaria e visão apurada do peixe podiam ser usadas de outra forma.
Por isso, colocaram diante dos peixes imagens de rostos humanos
associados a uma recompensa alimentar e treinaram-nos a usar os jatos
para atingir a imagem de um rosto humano específico num ecrã de
computador. 
Dada a semelhança que existe entre rostos humanos – que possuem a
mesma estrutura básica de olhos, nariz e boca –, até nós, por vezes, temos
dificuldade em fazer identificações na nossa própria espécie. Mas para um
peixe, em especial um peixe com um cérebro tão pequeno e que não
desenvolveu capacidades de reconhecimento facial humano, os resultados
foram assombrosos. Perante uma sequência de 44 rostos novos, sempre
associados a um que já tinha sido treinado para recordar, o peixe-arqueiro
mostrou um reconhecimento visual excelente, escolhendo o rosto certo em
86 por cento dos ensaios.51 Se isso não vos parece impressionante, pensem
se seriam capazes de distinguir o focinho de um peixe-arqueiro no meio de
um cardume de 44. 
Também se sabe que os pombos comuns possuem uma visão altamente
sofisticada. São capazes de distinguir todas as letras do alfabeto,
reconhecer dezenas de palavras, distinguir entre quadros de Monet e de
Picasso e recordar até 1.800 imagens individuais. Conhecedores destes
excelentes poderes de distinção dos pombos, investigadores queriam ver
como seriam eles capazes de realizar uma tarefa altamente complexa:
discernir a diferença entre tumores malignos e benignos em biópsias à
mama. Os tumores malignos que se transformam em cancro são muitas
vezes identificados por microcalcificações no tecido do peito e têm uma
disposição especial. Radiologistas e patologistas podem demorar anos a
desenvolver a capacidade de distinguir entre massas malignas e benignas.
Os pombos não tiveram anos de experiência. Foram treinados durante 34
dias apenas, usando um ecrã táctil ligado a um dispensador de alimento. 
O treino consistiu em mostrar aos pombos imagens num ecrã e em
recompensá-los de cada vez que tocavam numa barra amarela, quando a
biópsia era benigna, ou numa barra azul, para assinalar que era maligna.
Os pombos revelaram-se extraordinariamente certeiros, capazes de
fazerem uma identificação correta, até em novas imagens, com uma taxa
de êxito de 85 por cento. Quando os cientistas resolveram fazer uma
abordagem “de bando” e coligir as respostas de todas as 16 aves treinadas,
a precisão subiu ainda mais. Juntos, os pombos foram capazes de fazer um
diagnóstico certo em 99 por cento dos casos. 
A questão não é se devemos substituir radiologistas por pombos, mas
pelo menos podemos começar a questionar as nossas ideias sobre o
significado de inteligência. Por defeito, o nosso padrão está no patamar da
inteligência humana, mas, já que não vamos afirmar que os pombos são
mais espertos do que os radiologistas, então aquilo que temos claramente
a fazer é reavaliar o que é a inteligência. 
Um aspeto da inteligência é a nossa capacidade para interpretar
informação visual, para entender o mundo que está diante de nós e
responder-lhe. Para os humanos, isso inclui a capacidade de perceção da
informação espacial, de ler palavras e descodificar mapas e de entender
símbolos. Claro que a visão não é obrigatória para qualquer destas
capacidades, mas de certo modo dependemos fortemente dela e é um
auxiliar para navegarmos pelo nosso ambiente. E, no entanto, sem toda
essa sofisticação, um pombo doméstico é capaz de fazer uma coisa que a
maioria de nós não consegue: largada ao acaso a centenas de quilómetros
do seu pombal, a ave será sempre capaz de encontrar o caminho de
regresso a casa – e isso é absolutamente notável. 
Claro que hoje temos GPS, mas imagine que tínhamos inseridas em nós
as capacidades de uma ave migratória ou de um pombo doméstico?
Sabemos hoje que peixes, pássaros, tartarugas, mamíferos, insetos e até
bactérias conseguem detetar campos magnéticos. Se conseguíssemos fazer
o mesmo, como é que isso mudaria a nossa forma de pensar? E tornar-nos-
ia mais “inteligentes”? 
São tudo perguntas retóricas, mas apontam para um facto: vemos o
nosso mundo através da mais estreita das frinchas de perceção. Existem
sobre a Terra pelo menos 8,7 milhões de outras espécies animais, cada
uma com a sua própria forma de perceção. Por isso, peguemos em
algumas destas lentes e vejamos como outras espécies experienciam o
nosso mundo. 
 
A realidade é como uma imagem composta por milhares de milhões de
diferentes pixéis, cada um com a sua perspetiva diferente. O
primatologista Frans de Waal observou: “É isto que torna tão intrigantes o
elefante, o morcego, o golfinho, o polvo e a toupeira-nariz-de-estrela.
Possuem sentidos que ou nós não temos ou que temos de uma forma
muito menos desenvolvida, fazendo com que nos seja impossível perceber
a forma como eles se relacionam com o seu ambiente. Eles constroem as
suas próprias realidades.” 
Ou seja: aquilo que conhecemos como “realidade” não passa de um
ponto de vista fragmentado. A nossa visão, por exemplo, está limitada a
uns meros 0,0035 por cento do espetro eletromagnético. Aquilo a que
chamamos “luz visível” são os comprimentos de onda entre os 380 e os
700 nanómetros. A luz com um comprimento de onda de cerca de 700
nanómetros é vermelha; com 600 é amarelo-laranja; com 500 é verde;
com 400 é azul-violeta. O espetro acima e abaixo destes limites é invisível
para os nossos olhos. Mas nem aquilo de que nos apercebemos como
“cores” existe realmente no mundo exterior. São interpretadas nos nossos
cérebros e dependem do número e do tipo de células recetoras nos nossos
olhos que estão sintonizadas em comprimentos de onda específicos. 
Quando há uma conjugação de sol e chuva, somos capazes de ver a
breve maravilha biológica do arco-íris, a parte do arco que corresponde ao
espetro visível. De um lado e do outro encontram-se os comprimentos de
onda invisíveis que não estamos equipados biologicamente para ver.
Como Philip Morrison escreveu no prefácio de Super Vision: “Indo na
direção da porção visível do espetro eletromagnético, a última fração de
violeta esfuma-se, abrindo caminho a cores ultravioleta, depois a cores
raio X, depois a cores invisíveis ainda mais exóticas conhecidas como
raios gama. Se formos na outra direção, a derradeira fração de vermelho
dá lugar às cores infravermelhas, que sentimos como calor, em vez de as
distinguirmos como cores para além do vermelho. Continuamos nessa
direção e chegamos aos comprimentos de onda mais longos que agora
enchem as ondas aéreas, transmitindo programas de rádio e de televisão,
milhares de milhões de conversas por telemóvel […] sinais de radar de
torres de controlo de tráfego aéreo e de sistemas de defesa aérea.” 
Por outras palavras, pensamos nos raios X como invisíveis, mas isso só
quer dizer que são invisíveis para nós. Ou seja: a invisibilidade não
descreve o raio X, mas a nossa própria capacidade de o ver ou não. Alguns
animais conseguem ter uma perceção da luz em zonas mais amplas do
espetro do que nós; especificamente, ultravioleta e infravermelho. Cobras
como as píton, as boas e as víboras têm entre os olhos e narinas um órgão
sensorial termorrecetor, que lhes permite ver no intervalo de
infravermelhos entre os 750 nanómetros e um milímetro. Mesmo
vendadas, essas cobras conseguem capturar eficazmente a sua presa. E
isso deve-se ao fato de o órgão termorrecetor ser sensível ao calor
irradiado, captando leituras de temperatura individuais e usando-as para
gerar uma imagem no cérebro. É assim que uma víbora consegue “ver” no
escuro um ratinho de sangue quente.  
As abelhas também veem para além do espetro visível. Por exemplo,
uma margarida-amarela pode parecer-nos a nós, humanos, um conjunto de
pétalas amarelas, mas para uma abelha, que consegue ver até ao limiar dos
300 nanómetros em ultravioleta52, a flor está acesa como se fosse uma
pista de aterragem. Os jardins estão cheios destes alvos secretos, invisíveis
para nós, mas acesos para as abelhas de forma a elas encontrarem o seu
néctar. A águia real também distingue luz ultravioleta – usa-a para seguir
os rastos fluorescentes de urina que conduzem à presa53 –, mas tem além
disso uma precisão visual assassina. Enquanto para nós uma boa visão
está nos 20/2054, as águias possuem uma visão 20/5, o que significa que
um objeto visível para nós a um metro e meio será visível para uma águia
a uma distância de seis metros. Isso acontece porque a fóvea do olho de
uma águia – a parte responsável pela focagem – é muito mais profunda do
que a nossa, permitindo-lhe ver de uma forma ampliada, como se fosse
uma teleobjetiva de uma câmara. 
Os olhos de uma águia são tão bons que são capazes de detetar um
coelho a 1.600 metros. É a mesma coisa que distinguir uma formiga no
solo do alto de um edifício de nove andares ou de ter os piores lugares
num concerto de rock num estádio, mas ainda assim conseguir ver na
perfeição as caras dos músicos. As aves de rapina também possuem uma
visão de cor excecional. A fóvea de uma águia está repleta de cones, o que
lhe proporciona uma resolução incrivelmente contrastante. Enquanto os
humanos só têm cerca de 200 mil cones por milímetro no centro da fóvea,
as águias possuem um milhão. É a mesma coisa que ver o mundo num
velho aparelho de televisão, em baixa resolução, ou vê-lo em ultra alta
definição.55 
Os humanos também estão algo limitados pela colocação dos olhos na
parte da frente das cabeças, que permite um campo de visão de
aproximadamente 180 graus. As águias, cujos olhos fazem um ângulo de
30 graus, para trás, desde a linha do meio das cabeças, têm um campo
visual de 340 graus. Mas embora ouçamos com frequência o termo “olhos
de águia”, neste domínio específico os tubarões cabeça de martelo batem
as águias. Com as suas cabeças largas, os poderosos predadores têm uma
visão de 360 graus completos. Não só conseguem ver para a frente e para
trás, mas simultaneamente o que está acima e abaixo deles. 
Até as criaturas “mais baixas” do nosso planeta têm capacidades que só
agora começamos a apreciar. A vida do humilde escaravelho é passada a
transformar fezes acabadas de fazer em bolas que têm duas ou três vezes o
seu tamanho. Em manobras com as patas da frente, como se estivesse a
fazer o pino, este inseto trabalhador usa as patas traseiras para empurrar
para trás o seu tesouro, o mais depressa possível, para longe do monte de
esterco – e dos seus concorrentes. 
Mas como é que ele sabe para onde ir? De cabeça para baixo, com uma
grande bola de fezes a bloquear-lhe a visão, o escaravelho tem mesmo
assim um incrível sentido de direção. Cientistas descobriram que os
escaravelhos sabem onde estão e para onde vão por mapearem os céus. Se
observarem um escaravelho verão que ele de vez em quando sobe ao topo
da bola de esterco e faz aquilo que parece ser uma pequena dança. Sabe-se
desde há algum tempo que aquilo que ele está a fazer, na verdade, é a tirar
uma espécie de instantâneo mental, um panorama de 360 graus do céu.
Comparando uma imagem mental da localização do céu ou da Lua acima
das suas cabeças com o seu mapa dos céus interno, é capaz de determinar
a sua posição e de avançar continuamente em linha reta. 
Mas os investigadores tinham uma curiosidade: em noites sem luar,
como seria? Como é que o escaravelho noturno se safa sem um sinal
indicador brilhante no espaço? Para tentar descobrir, levaram as suas
experiências em recintos fechados a um planetário, onde tinham controlo
absoluto sobre o ambiente celestial. Surpreendentemente, quando
retiraram brilho à lua, os escaravelhos mantiveram a rota. Só existia uma
outra fonte de luz para lhes servir de guia: aparentemente, os escaravelhos
orientavam-se olhando para a Via Láctea. 
Para ter a certeza de que era realmente isso que estava a passar-se, os
cientistas precisavam de testar os insetos e de limitar as suas condições.
Por isso, fizeram-nos usar pequenos chapéus de cartão. Desse modo, os
investigadores podiam determinar se eram realmente as estrelas, e não um
outro sentido qualquer, a orientar os escaravelhos. Aos insetos de um
grupo de controlo foram colocados visores de plástico transparentes, o que
significa que ainda conseguiam ver para cima. Os resultados foram
concludentes: os escaravelhos com os chapéus ficaram desorientados e
deixaram de conseguir determinar onde se encontravam; continuaram a
empurrar as suas bolas de esterco, mas sem objetivo. Já o grupo de
controlo empurrou as suas bolas em frente quase de uma forma perfeita.
Conclusão: estes pequenos seres terrenos estavam mesmo a usar como
bússola uma galáxia distante.56 
O reino animal está cheio de maravilhas, mas que dizer do campeão da
visão? A libélula tem de ser considerada um dos grandes candidatos. Estes
demónios velozes têm 28 mil lentes por olho composto, que juntas
constituem a maior parte da sua cabeça. Também possuem uma visão de
cor sem paralelo. Enquanto os humanos são tricromáticos – possuímos
três proteínas sensíveis à luz, as “opsinas”, que absorvem os
comprimentos de onda vermelho, azul e verde, o que nos dá a
possibilidade de misturar até um milhão de cores –, algumas espécies de
libélulas têm até 30 opsinas de pigmento, o que lhes permite criar uma
paleta vasta de cores literalmente inimagináveis.57 Os insetos também são
capazes de ver em ultravioleta e detetam luz polarizada. Além de tudo
isso, têm outra capacidade espetacular: conseguem ver em câmara lenta. 
Para uma libélula, como para Neo no filme The Matrix, balas disparadas
a alta velocidade pareceriam abrandar e aquilo que nos surgiria como um
borrão acelerado seria uma imagem nítida. É porque nós vemos a cerca de
50 imagens por segundo enquanto as libélulas veem a 300 imagens por
segundo. O que nos parece um filme seria, para uma libélula, uma
passagem de diapositivos. Não surpreenderá por isso que os animais sejam
caçadores tão formidáveis; com a sua visão super, conseguem capturar 95
por cento das suas presas.  
Nunca conheceremos completamente o mundo de maravilhas que está
diante dos nossos olhos. No máximo, só tentamos imaginar como seria ver
o mundo como outros animais o veem. A melhor comparação de como
isso podia ser extraordinário é imaginar um daltónico a pôr uns óculos
EnChroma, que lhe permite ver cores pela primeira vez. É muito frequente
ficarem completamente de queixo caído quando olham em volta, em total
êxtase, para flores coloridas e árvores de um verde viçoso. A experiência
pode ser tão esmagadora que muitas vezes começam a chorar. 
Outro relance do mundo ao qual somos cegos chega-nos de pessoas com
uma condição rara, o tetracromatismo. Os tetracromáticos têm uma
espécie de visão em hipercores, têm a perceção de um mundo mais rico e
vibrante do que uma pessoa média. É porque nascem com quatro células
cones diferentes para a visão da cor, quando a maior parte de nós tem três.
O quarto recetor permite-lhes distinguir mais 99 milhões de sombras e
nuances do que um olho comum é capaz. Esta mutação genética encontra-
se em cerca de 12 por cento de mulheres, mas, deste grupo, só um
pequeno subconjunto tem verdadeiro tetracromatismo. 
Como é então o mundo quando é cem vezes mais colorido? Concetta
Antico, que é tetracromática, descreveu-o como “ver cores em outras
cores”. Em comparação com ela, nós vemos o mundo quase como os
daltónicos. Aquilo que para nós parece um caminho de pedras cinzentas,
acende-se nos olhos dela como um arco-íris de diferentes nuances. Ela
descreve-o assim: “As pequenas pedras saltam para mim em laranjas,
amarelos, verdes, azuis e rosas.” Para além da possibilidade de ver beleza,
esta forma de visão tem uma utilidade prática. Quando lhe perguntaram o
que consegue ela ver que os outros não sejam capazes, Concetta observou:
“Consigo dizer se alguém está doente só de olhar para essa pessoa. A pele
fica cinzenta, fica amarela e há algum verde. Sou capaz de ver quando a
minha filha está doente porque ela perde as cores e fica amarelo-
esverdeada ou talvez lilás esbranquiçada.” Mas nunca saberemos aquilo
que ela quer dizer, já que usa cores para descrever outras cores. E as cores,
para ela, têm um significado bem diferente do que têm para nós. 
As pessoas com afacia [sem cristalino no olho] também são capazes de
ver para lá do comum. Tal como as abelhas e as águias, têm a capacidade
para ver em ultravioleta. A sua condição resulta muitas vezes de cirurgia
ocular, embora possa ter origem numa anomalia congénita. O termo vem
do latim e significa “sem lentes”. A razão pela qual a maioria de nós não
consegue ver em ultravioleta é porque o cristalino humano bloqueia
naturalmente a luz UV. Mas os doentes que foram submetidos a cirurgia às
cataratas e a quem foi extraído o cristalino são às vezes capazes de ver
dentro desta gama do espetro. Claude Monet, o artista impressionista, terá
sido a mais famosa pessoa com afacia. Em 1923, com 82 anos, foi
operado às cataratas e retiraram-lhe o cristalino do olho esquerdo. Quando
Monet voltou a pintar nenúfares, eles já não eram brancos, mas
apresentavam nuances púrpuras escuras e azuis esbranquiçados. Mas, mais
uma vez, nós não vimos aquilo que ele viu. Ele pintou lilases brancos em
cores de malva e lilás, mas estas cores eram diferentes para ele do que são
para nós. Seja como for, fosse qual fosse a cor que os lilases tinham aos
seus olhos, de certeza que não eram brancos. 
A espionagem militar tinha noção deste superpoder do mundo real e
usou doentes com afacia como vigilantes costeiros durante a Segunda
Guerra Mundial. Os submarinos alemães usavam então lanternas UV para
enviar sinais secretos aos seus agentes em terra. A missão dos vigilantes
com afacia era lançar um alerta quando vissem as luzes, que eram
invisíveis a todos os outros. Este exemplo deve ser suficientemente
revelador da dimensão do nosso ângulo morto ao nível da perceção. Pode
haver inimigos mesmo ao largo da costa e eles serão invisíveis para nós,
mas evidentes para os que são capazes de ver. 
Não possuir a capacidade para ver alguma coisa não quer dizer que não
se possa olhar. Apaixonado pelo surf, Mike Sturdivant tinha passado mais
de 30 anos nas águas da Costa do Golfo dos Estados Unidos. Mas em
julho de 2010 aconteceu qualquer coisa de estranho: começou a tossir
sangue. E não era o único. Ao longo das praias da Florida, havia pessoas a
queixar-se de falta de ar, de queimaduras na pele e de visão turva. Para
Sturdivant, tornou-se evidente que havia qualquer coisa na água. 
Uma noite, decidiu pegar na sua luz de UV, que usava no barco para
procurar fugas no motor, para vasculhar a praia a ver se encontrava
alguma coisa. Aquilo que viu foi para lá de surpreendente: “da linha das
dunas à beira da água”, toda a praia tinha um brilho cor de laranja. 
A mais de 200 quilómetros dali, estavam em curso operações de
limpeza do maior derramamento de petróleo no mar na história dos
Estados Unidos. Mais de quatro milhões de barris de petróleo tinham sido
lançados no Golfo do México a partir da plataforma de perfuração
Deepwater Horizon e, além disso, 6,5 milhões de litros de dispersante
Corexit tinham sido atirados para a água para apressar a decomposição do
petróleo. Cientistas descobririam mais tarde que esta combinação de
petróleo e dispersante tinha tornado a água 52 vezes mais tóxica. 
Iluminada por uma luz UV de 370 nanómetros, a mistura tóxica
fluorescia. Um ano após o derrame, Sturdivant fez parceria com James
Kirby, um geólogo da costa da Universidade da Florida do Sul, e deu
início a uma investigação formal. Ao longo de dois anos, os dois homens
enviaram 71 amostras para exame laboratorial. Os resultados eram os que
eles suspeitavam. 
De acordo com o Plano Nacional de Emergência para responder a
derramamentos de petróleo e matérias perigosas, uma praia é considerada
limpa se contiver menos de 1 por cento de petróleo visível numa área-
amostra de um metro quadrado. Mas o dispersante não elimina o petróleo;
dispersa-o. Segundo Sturdivant, o problema é esse: “Toda a operação [de
limpeza] foi concebida para tornar as coisas invisíveis. E é por causa disso
que usam o dispersante. Não é que ele vá ajudar a acelerar a degradação
do petróleo. É porque o torna invisível.” Isto é, torna-o invisível aos
humanos. Alguns animais, é evidente, conseguem mesmo assim vê-lo
perfeitamente bem. 
Mas mesmo que não o consigamos ver, somos capazes de o sentir.
Passados alguns anos, residentes na área do Golfo ainda se queixam de
sintomas estranhos: irritações na pele, dores de cabeça, náuseas,
convulsões, diarreia com sangue, pneumonia, cãibras, confusão mental
aguda e até perdas de consciência. A olho nu, porém, as praias da Florida
parecem perfeitas para aparecerem nas fotografias. 
 
No mundo animal, a visão também assume outras formas. Para além da
capacidade de ver calor, ver em ultravioleta e ver os campos magnéticos
terrestres, também existe a capacidade de ver através do uso do som, ou
ecolocalização. Os morcegos e os odontoceti, ou baleias com dentes,
evoluíram neste sentido de forma independente. Seja no ar ou debaixo de
água, através da emissão de uma série de sons rápidos, que podem ser
zumbidos ou estalidos, e da escuta do eco, os animais são capazes de
determinar a forma, a localização e o movimento dos objetos à sua volta58.
Os morcegos possuem um campo visual acústico de entre dois e dez
metros e, ao perto, conseguem “ver” entre quatro e 13 milímetros, o que é
importante para capturar pequenos insetos. O alcance do sonar biológico
do golfinho comum é de aproximadamente 110 metros, enquanto os
cachalotes, que capturam lulas nas profundezas do oceano, têm o maior
campo de visão: detetam uma presa a 500 metros. 
Como é que sabemos que este sonar biológico permite aos animais
“verem”? O primeiro estudo sobre as capacidades do morcego para voar
em escuridão total foi realizado no século XVIII por Lazzaro Spallanzani.
Decidido a descobrir qual o sentido que os morcegos59 utilizavam,
Spallanzani isolou cada um deles – visão, tato, olfato, paladar e audição –
e eliminou-os um a um. 
Claro que a ideia de que os morcegos são cegos é um mito, mas para ter
a certeza de que não era a visão que lhes permitia evitar obstáculos no
escuro, Spallanzani cegou-os, primeiro cobrindo-lhes os olhos com um
pano e depois, de forma mais cruel, tirando-lhes os olhos. Nas suas notas,
escreveu: “Assim, com uma tesoura, removi completamente os globos
oculares de um morcego […] Atirado ao ar, o animal voou rapidamente,
seguindo os diferentes caminhos subterrâneos de uma ponta à outra, com a
velocidade e a segurança de um morcego saudável. Mais do que uma vez,
o animal foi para as paredes e para o telhado… e finalmente foi para um
buraco no teto com cinco centímetros, onde se escondeu de imediato. Não
consigo manifestar o meu espanto diante deste morcego que era
totalmente capaz de ver mesmo sem os olhos.” 
Estudos com golfinhos – felizmente com os olhos intactos – também
têm dado contributos importantes sobre as suas capacidades. Estudos
controlados com golfinhos em cativeiro determinaram que eles são
capazes de reconhecer formas distintas usando exclusivamente o
biossonar. Investigadores no Laboratório de Mamíferos Marinhos da
Bacia de Kewalo, no Havai, testaram um golfinho chamado Elele
colocando objetos de formas diferentes dentro de uma caixa. Era uma
caixa em acrílico fino, opaco à visão, mas penetrável pelo som. O
treinador ergueu três objetos no ar, mostrou-os a Elele e pediu-lhe para
identificar qual deles correspondia ao que estava na caixa; o golfinho
devia apontar com o bico para o objeto certo. Os resultados de Elele foram
excecionais. Capaz de alternar entre sentidos com à vontade, o golfinho
revelou-se capaz de “ver” o objeto dentro da caixa, quer usando a visão
para encontrar o par para o objeto ecolocalizado, como utilizando a
ecolocalização para encontrar o par para o objeto visível. 
Conta-se com frequência a história de como os golfinhos são
particularmente curiosos por mulheres grávidas e por outros golfinhos
grávidos, nadando e fazendo zumbidos perto da barriga da futura mãe.
Embora isso não esteja confirmado, não surpreenderia se os golfinhos
fossem capazes de “ver” através da carne e no interior dos nossos corpos,
já que o ultrassom que eles usam para a ecolocalização é semelhante ao
ultrassom utilizado nas clínicas para obter imagens dos fetos. 
E como é uma imagem destas? É impossível saber. Mas se alguém nos
pode dar uma pista é Daniel Kish, o Batman do mundo real. Cego desde
bebé, começou a fazer cliques com a língua e a escutar o eco, encontrando
assim uma forma de criar uma imagem mental do mundo. Só aos 11 anos,
quando um amigo lhe perguntou pela primeira vez se estava a usar
ecolocalização, Kish percebeu que fazia aquilo que os morcegos fazem
para “ver”. 
Embora os humanos não possuam as capacidades bem afinadas dos
morcegos para detetar movimentos pequenos e rápidos, Kish desenvolveu
faculdades notáveis. Consegue escutar edifícios e, num instante, saber se
são ornamentados ou absolutamente lisos. Num auditório, é capaz de
ouvir as saídas e sabe habitualmente onde elas estão antes de uma pessoa
com visão as encontrar. Anda de bicicleta pela cidade usando só a sua
capacidade de ecolocalização. Investigadores que estudam a atividade
cerebral de Kish usando ressonância magnética descobriram que a área do
cérebro ativada quando ele faz ecolocalização é a região habitualmente
dedicada à visão. O que isso nos diz é que o seu cérebro regista o som
como visão. Ele não ouve só o som, ele “vê-o”. 
Poucos de nós alguma vez saberão o que é ver como Daniel Kish. Mas
saber aquilo que não sabemos diz-nos algumas coisas. Kish vive num
mundo sensorial que é tão impossível de nós conhecermos como é o dos
morcegos ou o das baleias. É exatamente o mesmo mundo que habitamos,
mas, ao mesmo tempo, é-nos totalmente alheio. E, no entanto, Kish é
humano, sem sombra de dúvida. Isso diz-nos que, embora a forma como
os nossos companheiros animais vejam o mundo nos possa parecer
exótica ou totalmente estranha, não há razão alguma para acreditarmos
que é inferior. 
 
O sentido da visão, no entanto, não é apenas individual. É também
comunitário, porque nos permite imitar e aprender com outros. As
crianças observam com imensa atenção os adultos para copiarem aquilo
que eles fazem, e com os animais isso também é frequente. É por isso que,
usando a visão, é possível ensinar a uma abelha com o cérebro de um
tamanho de um grão de sésamo uma coisa que ela nunca faria na natureza
selvagem: jogar futebol. 
Usando uma abelha de plástico presa à ponta de um pau, investigadores
da universidade Queen Mary, em Londres, começaram por mostrar às
abelhas a amestrar aquilo que deviam fazer. As abelhas viram a abelha
falsa empurrar uma pequena bola para dentro de um círculo. Era a
“baliza”. Quando a bola era conduzida para lá, os animais recebiam uma
recompensa em água açucarada. Ao fim de três experiências de
observação, as abelhas foram então colocadas num estádio em miniatura.
Só pela mera observação das abelhas falsas, eram capazes de reproduzir a
tarefa não natural – e marcaram golo em 99 por cento das vezes.60  
A visão também é um elemento-chave para a memória visual. E o
animal com a mais extraordinária memória visual que a ciência conhece é
Ayumu, um chimpanzé que vive no Instituto de Investigação de Primatas
na universidade de Quioto. Aquilo que torna Ayumu especial é possuir
uma memória eidética, ou fotográfica. Num abrir e fechar de olhos, a sua
mente consegue absorver um panorama completo; frente a um humano,
numa tarefa de memória visual, Ayumu ganhará sempre. 
Na aparência, a tarefa é simples. Qualquer coisa deste género: imaginem
os números de 1 a 9 colocados de uma forma baralhada em pontos ao
acaso de um ecrã. Os nove números acendem ao mesmo tempo e ficam
assim durante pouco mais de meio segundo. Depois de os números se
apagarem, acendem-se blocos de luz branca onde eles estavam e aí
permanecem. A tarefa é tocar, o mais depressa possível e na sequência
correta, nos blocos brancos onde antes apareciam os números de 1 a 9. 
Ver Ayumi executar esta tarefa causa estupefação. Se para um humano,
mesmo olhando para o ecrã durante vários segundos, é difícil processar a
posição de apenas alguns números, imaginem de todos os nove. Num teste
contra o campeão britânico de memória Ben Pridmore, que memoriza em
menos de 30 segundos a ordem das cartas de um baralho acabado de
baralhar, Ayumu foi o claro vencedor. Pridmore registou um acerto de
apenas 33 por cento e o chimpanzé chegou aos 90 por cento. Mas, para
Ayumu, até meio segundo é uma quantidade de tempo considerável: na
verdade, já foi capaz de realizar esta tarefa depois de ver as imagens
durante apenas 210 milisegundos. 
Mas como é que ele consegue? Sabemos que, em geral, os chimpanzés
são melhores do que nós em qualquer coisa chamada subitização, que é a
capacidade de ver e determinar instantaneamente o número de objetos
visíveis, tal como somos capazes de ver num dado o número 4 sem ter de
contar as pintas. Se os humanos são capazes de subitização de até quatro
ou cinco números aleatórios, os chimpanzés conseguem subitizar para
cima de seis. Ayumu é especialmente bom neste campo, mesmo para um
chimpanzé. Bate tanto humanos como chimpanzés, o que sugere que
possui uma memória visual extraordinária. 
Claro que os animais não se limitam a processar o que veem, como
autómatos. São agentes ativos. Como os humanos, comunicam o que
veem no mundo ao seu redor. E embora quase toda a comunicação
aconteça entre a mesma espécie, alguns cientistas aventuraram-se a cruzar
fronteiras e estão a aprender a ver através dos olhos de animais,
ensinando-os a comunicar connosco. 
O comunicador mais famoso do mundo das aves foi um papagaio
cinzento africano chamado Alex. Escolhido ao acaso numa loja de
animais, foi criado pela investigadora Irene Pepperberg e tornou-se tão
conhecido pelas suas capacidades que revolucionou as nossas ideias sobre
inteligência animal. 
Embora Alex tivesse o cérebro do tamanho de uma avelã, possuía as
capacidades cognitivas de uma criança de cinco a seis anos. Pepperberg
treinou-o para responder a perguntas sobre o que via. Mostravam-lhe
objetos e ensinavam-lhe as palavras que os identificavam. Embora a
laringe dos papagaios não tenha cordas vocais, eles possuem uma siringe,
uma caixa de voz que lhes permite imitar os sons produzidos pelos
humanos. Alex conseguia identificar diferentes formas e cores e contava
até oito; sabia a diferença entre “igual” e “diferente” e entre “maior” e
“mais pequeno”; e comunicava com um vocabulário superior a cem
palavras. 
Alex também inventava designações para coisas novas que encontrava.
Por exemplo, surpreendeu os investigadores durante o processo de ensino
de nomes de frutos. Já sabia as palavras “banana”, “uva” e “cereja”, por
ter aprendido os nomes dos frutos que lhe davam a comer. Mas quando
viu pela primeira vez uma maçã, a ave criou a sua própria designação.
Insistiu em chamar-lhe “baneja”. Porquê? Bom, é possível que visse que
era vermelha por fora e amarela no miolo, ou que a tivesse provado e
decidido usar uma combinação dos dois frutos que já conhecida: uma
banana e uma cereja. Seja como for, ficou “baneja”. A partir daí, recusou
sempre chamar-lhe maçã. 
Alex foi também, que se saiba, o único animal a fazer uma pergunta
sobre si próprio. Em dezembro de 1980, viu o seu reflexo no espelho de
uma casa de banho. Virando-se para ele, o papagaio perguntou à tratadora,
Kathy Davidson: “O que é isso?”. Kathy respondeu-lhe que era ele, Alex,
e que ele era um papagaio. Depois de se observar durante mais um tempo,
perguntou: “Que cor?” Kathy respondeu-lhe: “Cinzento. És um papagaio
cinzento, Alex.” Depois de uma insistência que durou algum tempo, Alex,
ao que parece, acabou por perceber. Pepperberg diz que foi assim que ele
aprendeu a cor cinzenta. 
Esta capacidade para descrever o mundo visual não é exclusiva dos
papagaios. Outros animais também aprenderam a comunicar connosco.
Talvez o mais famoso tenha sido Koko, um gorila fêmea. Usando uma
versão modificada da língua de sinais americana, Koko possuía um
vocabulário extenso: era capaz de fazer os sinais de mil palavras e
compreendia mais de duas mil, em inglês. Tal como Alex, Koko era
conhecida por inventar palavras para coisas novas que entravam no seu
espaço. Por exemplo, da primeira vez que viu uma zebra, descreveu-a
como “tigre branco”; um boneco de Pinóquio era identificado como
“elefante bebé”; e da primeira vez que viu um anel chamou-lhe “pulseira
de dedo”. 
É preciso sublinhar que os cientistas ainda debatem se animais como
Koko e Alex possuíam verdadeiramente a capacidade para comunicar. A
ciência exige uma objetividade rigorosa na verificação de resultados, mas
a linguagem é subjetiva e, como todos sabemos, é muitas vezes ambígua.
No estudo da inteligência animal, os cientistas partem muitas vezes de um
princípio chamado Cânone de Morgan. No essencial, afirma que não
devem atribuir-se a um animal processos psicológicos superiores se o
mesmo comportamento puder ser atribuído a qualquer coisa mais simples,
como um erro. 
Eugene Linden, o autor de Apes, Men and Language, descreve a mesma
situação com Washoe, uma chimpanzé e o primeiro símio a aprender
linguagem de sinais: “Há cerca de 50 anos, num lago no Oklahoma,
Washoe viu um cisne e fez os sinais para ‘pássaro’ e ‘água’. Estava a
assinalar simplesmente um pássaro e a água ou estava a combinar os dois
sinais que sabia descreverem um animal para o qual não possuía uma
palavra específica? O debate prosseguiu durante décadas e ficou sem
resolução quando ela morreu.” 
Haverá, no entanto, uma maneira de resolver o debate, através do
controlo do ambiente sobre o qual são colocadas perguntas aos animais.
Na Noruega, cientistas encontraram uma forma inteligente de fazer isto,
ao treinarem cavalos para comunicar com símbolos. A tarefa era simples:
os cavalos eram ensinados a usar os focinhos para apontar para um
quadro, indicando se queriam usar uma manta. Uma barra vertical
significava “tirar a manta”, uma horizontal queria dizer “pôr a manta” e
um símbolo em branco indicava que preferiam “não mudar”. 
Ao fim de apenas duas semanas de ensinamento, durante 15 minutos
diários, os animais eram capazes de usar os símbolos para comunicar. Os
cavalos não estavam simplesmente a identificar sinais visuais; estavam a
tomar decisões com base no tempo que fazia. Nos dias quentes, quando a
temperatura andava entre os 20 e os 23 graus Celsius, todos os dez cavalos
a quem tinham sido colocadas mantas pediam que elas fossem retiradas.
Os cavalos sem manta indicavam “não mudar”. Nos dias frios e chuvosos,
quando a temperatura estava entre os 5 e os 9 graus Celsius, todos os dez
cavalos com manta preferiam “não mudar”, enquanto dez dos 12 cavalos
que não estavam tapados indicavam que a sua preferência era “pôr a
manta”. 
O facto de 20 dos 22 cavalos quererem uma manta em dias frios sugeriu
aos investigadores que os cavalos percebiam de facto os símbolos visuais
e faziam pedidos. Quanto aos dois resistentes, em dias mais frios, quando
as temperaturas estavam entre menos 12 e 1 grau, acabaram por ceder e
juntaram-se aos outros. 
Ainda que estes “cavalos falantes” sejam impressionantes, o melhor
comunicador animal do mundo, pelo menos quanto à utilização de
símbolos visuais, é Kanzi, um bonobo macho que vive em Des Moines, no
Iowa, na Great Ape Trust. Kanzi possui um vocabulário de 500 palavras
sob a forma de símbolos num touch screen, chamados lexigramas, percebe
mais de três mil palavras em inglês e afirma-se que entende frases
completas e instruções.  
Com uma máscara de soldador posta, para que as suas expressões ou
movimentos dos olhos nada revelassem, a treinadora de Kanzi, Sue
Savage-Rumbaugh, realizou experiências em que introduziu frases novas
e pedidos estranhos, para ver exatamente o que Kanzi percebia. Quando
lhe foi pedido que pusesse sal numa bola, Kanzi pegou rapidamente no
saleiro e fez o que lhe era solicitado. Quando a treinadora lhe pediu para
pôr no frigorífico agulhas de pinheiro, Kanzi também não mostrou
qualquer problema em executar a tarefa. E quando lhe pediu para levar a
televisão para o exterior, Kanzi levantou-se, olhou em volta, viu o
aparelho e levou-o lá para fora. 
Para compreender até que ponto isto é extraordinário, é preciso parar e
tentar avaliar o que poderia estar Kanzi a pensar. Muitos humanos têm
dificuldade em perceber uma língua estrangeira. Estes animais não estão
apenas a lidar com uma língua estrangeira, mas com os pedidos de outra
espécie. Se Kanzi é suficientemente esperto para aprender aquilo que
muitos de nós não somos capazes, não é implausível imaginar que possa
ter pensado para que é que a sua treinadora queria pôr no frigorífico
agulhas de pinheiro. O que poderá ter pensado do ser humano que estava à
sua frente antes de se levantar e de, mais uma vez, fazer o que lhe era
pedido? 
Nesta altura, é justo perguntar: se os bonobos e os chimpanzés são
capazes de o fazer, seremos nós capazes? As focas e os golfinhos
entendem os sinais que fazemos com as mãos, os cães e os elefantes
percebem as nossas ordens vocais, os orangotangos até são capazes de
usar iPads para comunicar connosco. Mas o que é que nós percebemos das
linguagens de outros animais? O que será que eles veem e descrevem nas
suas próprias línguas? Como observou a jornalista de ciência Rachel
Nuwer, ao “tentar obrigar macacos a aprender a nossa linguagem, ficámos
cegos em relação à linguagem deles”. Para descobrir isso, um homem tem
passado muita da sua carreira académica a fazer as coisas da maneira
inversa, e desse modo abriu um caminho totalmente novo para examinar
como é que os animais comunicam nos seus próprios termos. O seu nome
é Con Slobodchikoff e já lhe chamaram um Doutor Doolitle dos tempos
modernos. 
Slobodchikoff, professor emérito de biologia na universidade Northern
Arizona, trabalha com cães da pradaria da espécie Gunnison, pequenos
animais muito vocais que se parecem com uma versão norte-americana
dos suricatas61. Com as cabeças saídas das suas tocas, os cães-da-pradaria
estão muitas vezes em alerta máximo contra predadores. Notando que eles
emitiam sinais de alerta, Slobodchikoff começou a gravar os sons que eles
faziam à aproximação de predadores diferentes. Para os nossos ouvidos
humanos, estes sinais são, na maior parte dos casos, os mesmos; pequenos
latidos em sucessão curta, que quase parecem produzidos por um daqueles
brinquedos que guincham. Mas uma análise em computador revelou outra
coisa: cada um destes sinais era único. E através da visualização das ondas
de som dos alertas, num sonograma, Slobodchikoff foi capaz de ver que os
latidos eram claros e distintos para os diferentes predadores. 
Os latidos para “humano”, “falcão”, “coiote” e “cão” têm todos
sonogramas acústicos próprios, com diferentes comprimentos de onda e
amplitudes. E apesar de alguns dos predadores parecerem semelhantes, os
cães-da-pradaria nunca ladram “cão” quando vêm um coiote, ou vice-
versa. Para Slobodchikoff e para a sua equipa de investigadores, os
sonogramas foram uma forma de descodificar a comunicação entre os
roedores, como se se tratasse de uma Pedra de Roseta dos cães-da-
pradaria. 
Mas como é que podemos ter a certeza de que os sinais significam
aquilo que nós pensamos? Slobodchikoff não gravou apenas os latidos de
alerta dos cães-da-pradaria, também registou em vídeo as maneiras como
escaparam. Quando viam um falcão, os animais olhavam para cima,
davam um latido rápido monossilábico e enfiavam-se pelas tocas abaixo.
Quando era reproduzida uma gravação sonora com o mesmo latido, a
resposta era a mesma: os animais olhavam para cima e procuravam no céu
e depois refugiavam-se logo nas tocas. No entanto, quando era
reproduzido o som de um cão, os cães-da-pradaria ficavam alerta, mas não
fugiam. 
Robert Seyfarth tem feito um trabalho semelhante com macacos-vervet.
Os primatas têm diferentes sinais de alerta, ou “palavras”, para falcões,
cobras e leopardos. Os macacos respondem ao alerta de leopardo correndo
por uma árvore acima, mas quando há um alerta de falcão olham para
cima e procuram terreno seguro, escondendo-se no bosque. Quando há
alertas de falcão evitam subir às árvores, presumivelmente porque as aves
de rapina os apanharão mais facilmente lá em cima. Entre o grupo, estes
sinais possuem um significado evidente. Quando um macaco-vervet emite
um alerta para cobra, os primatas erguem-se nas patas de trás e começam a
procurar sinais do predador que espreita entre a vegetação. 
Slobodchikoff levou a sua observação um passo mais longe. Queria ver
como reagiriam os cães-da-pradaria a qualquer coisa abstrata, que nunca
antes tivessem visto, e construiu em cartão círculos, quadrados e
triângulos. Depois, ele e a sua equipa esticaram uma corda entre uma
árvore e a sua torre de observação, penduraram as figuras em cartão a
cerca de um metro do solo e puxaram-nas para trás e para a frente como se
fossem peças de roupa a secar numa corda. Os cães-da-pradaria
responderam às novas “ameaças” produzindo latidos diferentes.
Incrivelmente, os animais tinham sinais distintos para “círculo” e para
“triângulo”, ainda que para a colónia estas formas fossem inteiramente
novas.62 
Slobodchikoff tinha também reparado que os apelos dos cães-da-
pradaria pareciam conter nuances. Pensou se cada um desses apelos não
teria na verdade mais informação, se o sinal para “cão” era o mesmo para
todos os cães ou se os apelos seriam diferentes conforme a raça. Por isso,
fez passar pela colónia quatro cães diferentes: um golden retriever, um
husky, um dálmata e um cocker spaniel. Quando analisou os sons,
descobriu que os cães-da-pradaria emitiam na verdade mais do que
simples alertas a avisar para a presença de um cão. Teve o palpite de que
podiam ser descrições. 
Colocando pessoas no papel de intrusos da colónia de cães-da-pradaria,
Slobodchikoff começou a registar grandes diferenças nos sinais de alerta.
Eram diferentes consoante as pessoas eram baixas ou altas. Também
tinham em conta a forma: os latidos eram diferentes se as pessoas eram
magras ou gordas. E, por fim, surgiu outra distinção incrível: os roedores
tinham latidos específicos dependendo da cor das roupas que as pessoas
usavam. 
Ao controlar as variáveis, Slobodchikoff conseguia descobrir o que
estava a acontecer. Pôs os seus assistentes a caminharem sozinhos pela
colónia, mudando uma variável: a cor da t-shirt. A mesma pessoa andava
pelo terreno com uma t-shirt azul, verde ou amarela. Os resultados foram
nada menos do que extraordinários: os latidos dos cães-da-pradaria eram
realmente descrições dos intrusos. 
Slobodchikoff tinha decifrado aquilo que os animais diziam uns aos
outros sobre nós. Quando um dos seus assistentes usava roupa azul, os
cães-da-pradaria ladravam “alto, magro, humano, azul” e quando a t-shirt
mudava, a informação era “alto, magro, humano, verde”. 
A nossa bolha é a crença na excecionalidade humana: em sermos a
única espécie com consciência suficiente para sentir, falar e pensar. Como
mostram os estudos de Slobodchikoff, os cães-da-pradaria conseguem
descrever com precisão o mundo à sua volta, não porque sejam treinados
para usar rótulos, mas porque estão a comunicar naturalmente aquilo que
veem. 
 
É irónico que digamos que alguém é “cego como um morcego”, porque
os morcegos possuem na verdade duas maneiras de ver. O homem que
descobriu isto, e que em 1944 cunhou o termo ecolocalização, foi o
zoólogo Donald Griffin. Passou a primeira metade da sua carreira
académica a estudar os traços notáveis desta visão sónica e a última
concentrado numa forma específica de cegueira humana: a crença de que
os humanos são os únicos seres conscientes e sencientes da Terra. Este
ângulo morto tem tido uma presença importante nas ciências,
particularmente entre os estudiosos de comportamento animal, que até há
pouco tempo fizeram lóbi contra as provas de consciência animal,
afirmando que os estudos que as apoiavam não tinham sustentação e eram
“não científicos”. 
Tal como muitos pensadores do passado que desafiaram o statu quo,
Griffin deparou com uma barragem de críticas em resposta ao seu trabalho
inicial na área. Um crítico afirmou anos mais tarde que o seu livro de 1976
The Question of Animal Awareness era como “Os Versículos Satânicos da
cognição animal”. Na área de Griffin houve os que lamentaram que um
cientista, em tempos grande, tivesse caído e viram nesta nova
extravagância sobre consciência animal um sinal provável de “senilidade
prematura”. Claro que faríamos bem em recordar que os maiores cientistas
sempre questionaram o papel central da humanidade. Precisamente o pilar
central desta ideia – questionar que o universo gira à nossa volta – foi
aquilo que fez Copérnico ser proibido e Galileu ser preso. 
A excecionalidade humana é, contudo, imensamente persistente.
Referimo-nos aos animais como se fossem objetos. Um animal é uma
“coisa”. A ideia de que os animais são infra-humanos, sem consciência e
inteligência, de que são inferiores, levou-nos a tratá-los como se não
fossem apenas propriedade, mas como máquinas biológicas. Nos
primeiros anos dos testes laboratoriais em animais, a lógica era a de que os
animais não “sentiam”, só reagiam: se “um cão uiva quando o seu corpo é
magoado, a vocalização não é a expressão de dor, mas somente o
resultado de um processo puramente fisiológico, como se fosse um relógio
a soar”. Como se a nossa própria dor não fosse fisiológica. 
Para o primatólogo Frans de Waal, este tipo de pensamento é uma forma
de neocriacionismo, uma espécie de teoria da evolução decapitada. Como
ele escreveu: “Aceita a evolução, mas só pela metade […] Vê a nossa
mente como tão original que não faz sentido compará-la com outras,
exceto para confirmar o seu estatuto de excecional.” É como se a evolução
tivesse parado na cabeça e, no entanto, quando se trata do corpo, sentimo-
nos mais confiantes em relação àquilo que tomamos ou aplicamos nos
nossos corpos depois de o termos testado em animais. Na verdade,
fazemos ensaios de medicamentos em animais antes de os realizarmos
com humanos, precisamente porque acreditamos que os efeitos, dadas as
nossas semelhanças, podem ser extrapolados. 
E, no entanto, também é importante que respeitemos que temos
diferenças e que é tão impossível estar na mente de outro ser humano e
saber como ele vê o mundo como conhecer realmente como é que um
morcego, um chimpanzé ou um escaravelho vê esse mesmo mundo. O
filósofo norte-americano Thomas Nagel observou, num ensaio que se
tornou famoso, “What Is It Like to Be a Bat?” (“Como é ser um
morcego?”): 
 
“Mesmo sem o benefício da reflexão filosófica, qualquer pessoa que tenha passado algum
tempo num espaço fechado com um morcego excitado sabe aquilo que é o encontro com uma
forma de vida fundamentalmente alien […] O sonar dos morcegos, embora seja claramente
uma forma de perceção, não é semelhante no seu funcionamento a qualquer sentido que
possuímos, e por isso não existe razão para supor que seja subjetivamente como qualquer
coisa que possamos experimentar ou imaginar. Isto parece criar dificuldades à noção de como
é ser um morcego […] Quero saber o que é, para um morcego, ser um morcego. No entanto,
se tento imaginar isto, estou restringido aos recursos da minha própria mente, e esses recursos
são inadequados para a tarefa.” 
 
As nossas mentes são como aliens em relação a outras formas de vida
na Terra, como as deles são aliens em relação à nossa. E embora possamos
pensar que os nossos animais domésticos sabem quando estamos
contentes ou nos confortam quando estamos tristes, partimos do princípio
de que eles são capazes de dar o salto quântico que nós próprios não
estamos dispostos a dar na direção contrária. 
Embora possamos nunca vir a saber o que outro animal está a sentir ou a
pensar, já não é um descaramento científico afirmar que eles sentem e
pensam. Assistimos a grandes revoluções no pensamento científico, mas
ainda permanece um certo dogmatismo no capítulo da inteligência animal.
Felizmente, dissipam-se lentamente as noções rígidas do nosso especismo.
Em 7 de julho de 2012, a Declaração sobre a Consciência de Cambridge
foi assinada por um destacado grupo internacional de neurocientistas
cognitivos, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e
neurocientistas computacionais. Juntos, declararam que “provas
convergentes indicam que os animais não humanos possuem os substratos
neuroatómicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de
consciência, em conjunto com a capacidade de exibir comportamentos
intencionais. […] O peso das provas indica que os humanos não são os
únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência.
Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas
outras criaturas, incluindo os polvos, também os possuem”. 
O velho ditado afirma que “os olhos são a janela da alma”. Na ciência, a
existência de uma alma pode ser impossível de testar e inverificável, mas
a existência de uma consciência, não. Os nossos próprios olhos são uma
janela para uma só forma de ver o mundo, uma amostra de consciência
entre milhões de outras formas inimagináveis de o perceber. 
Não podemos confiar nos nossos sentidos para perceber o grande
quadro da realidade. Na verdade, em relação àquilo que nos rodeia, já
revelámos três grandes ângulos mortos. Os nossos olhos nus e o senso
comum far-nos-iam acreditar que somos o centro do universo, isolados e
separados do mundo à nossa volta, e superiores a todas as outras criaturas.
Mas com as lentes de correção da ciência, todas estas três suposições
podem ser desfeitas. 
Conseguimos, contudo, dominar a visão de outra forma. Somos uma
espécie singular, com câmaras e visores de alta tecnologia por toda a
parte. Possuímos as lentes tecnológicas para ver através das vastas
distâncias do espaço, para observar até os mais ínfimos organismos
microscópicos, para olhar através do corpo humano e para espreitar os
próprios átomos que compõem o mundo material. Mas há uma coisa
fundamental que não vemos. Quando chega à questão de como sobrevive
a nossa espécie, somos completamente cegos. 

51
O estudo foi atualizado desde então de modo a incluir imagens de rostos em 3D. Descobriu-se que
“os peixes eram capazes de continuar a reconhecer a imagem mesmo que o rosto sofresse rotações de
30, 60 e 90 graus, passando de vista frontal a perfil”.

52
Embora estudos anteriores tenham feito esta sugestão, um novo estudo detalha a descoberta. Para
já, é necessária mais investigação.

53
As abelhas conseguem ver na faixa entre os 600 e 300 nm. Mas como é que sabemos o que uma
abelha consegue ver? “Conseguimos saber se um animal é capaz de ver luz de um comprimento de
onda específico testando se essa luz atravessa o cristalino do seu olho. Um cristalino humano
saudável bloqueia a luz ultravioleta, por isso não a conseguimos ver. Mas, para outras espécies, ver
ultravioleta pode facilitar a visão com menos luz.” 

54
Uma visão 20/200 define a cegueira em termos legais. Uma pessoa com visão 20/20 deve ser capaz
de ler uma letra E maiúscula na tabela de Snellen a uma distância de 200 pés (cerca de 60 metros),
enquanto uma pessoa com visão 20/200 só consegue vê-la a seis metros.

55
Dito isto, em termos comparativos com a maioria das espécies, testes de acuidade visual humana
mostram que somos capazes de ver muito bem os pormenores. Investigadores que estudaram 600
espécies animais descobriram que a visão humana é cerca de sete vezes mais apurada do que a de um
gato, 40 a 60 vezes mais do que a de um rato ou de um peixinho dourado e centenas de vezes mais do
que a de uma mosca ou de um mosquito.

56
Cientistas têm sugerido que esta capacidade possa ser adotada na criação de algoritmos para robôs
ou carros autónomos, uma forma de as máquinas poderem saber o seu paradeiro sem input ou
interferência humana.

57
Misteriosamente, o animal com o maior número de opsinas é a Daphnia pulex, a pulga-de-água,
cujo genoma apresenta uns extraordinários 46 genes de opsinas. 

58
Mais especificamente: escutando a força do sinal que volta, a direção e o tempo que os ecos levam
a regressar do objeto em que embateram, o cérebro é capaz de realizar uma triangulação e de criar
uma imagem com a forma do objeto. 

59
Em 1938, um estudante de Harvard, Donald Griffin, usou um gravador de som para registar os
sons que os morcegos faziam e que se encontravam acima do espetro de frequências da audição
humana. Esta foi a primeira prova de que os morcegos utilizam a geolocalização. 

60
Abelhas sem treino apenas “marcaram golo” por acaso: 30 por cento das vezes. 

61
Os suricatas pertencem a uma família de mangustos, enquanto os cães-da-pradaria são roedores.
Por isso, embora pareçam semelhantes, são muito diferentes. 

62
Os cães-da-pradaria pareceram incapazes de distinguir a diferença entre um quadrado e um círculo.
PARTE DOIS 

ÂNGULOS MORTOS SOCIAIS  

AQUILO QUE NOS SUSTENTA 



Receita para o Desastre 
Pensem, de vez em quando, no sofrimento  
a cuja visão se poupam. 
ALBERT SCHWEITZER 

O corpo sobre a mesa de autópsias era irreconhecível. Aquilo que em


tempos fora um ser vivo, a respirar, tinha sido radicalmente transformado.
O exame competia ao professor de medicina e pediatria Richard deShazo
e a dois colegas patologistas. Publicado no American Journal of Medicine,
o estudo realizado no Mississippi era pioneiro: iam abrir e dissecar, para
efeitos científicos, um nugget de frango. 
Guardado em formol, o pedaço de fast food foi seccionado
cuidadosamente, colocado numa lâmina e observado ao microscópio.
Preocupada com a crescente epidemia de obesidade no estado – a cidade
de Jackson regista a maior taxa de obesidade nos Estados Unidos, com
mais de um terço da população na categoria de muito acima do seu peso –,
a equipa queria saber mais sobre os alimentos no centro urbano e aquilo
que as pessoas andavam a comer.  
O que os investigadores descobriram deixou-os “pregados ao chão” e
“aturdidos”. Afinal, músculo estriado, ou carne de frango, “não era o
componente predominante” dos nuggets. Nem de perto nem de longe. Os
nuggets eram essencialmente gordura, osso, epitélio (as células que
envolvem os órgãos e a pele), nervos e tecido conjuntivo. Os outros 40 por
cento eram tecido muscular esquelético. 
O frango (ou, mais provavelmente, os frangos) de cada nugget tinha
sido transformado numa pasta amalgamada. Obtido através do processo
que a indústria designa como “aves separadas mecanicamente”, era tecido
forçado, sob altíssima pressão, a soltar-se do osso. Numa entrevista,
deShazo explicou: “É realmente possível soltar aquela coisa através de
vibração e ficamos com estes restos de frango e junta-se tudo, mistura-se
com outras substâncias e resulta numa pasta que se pode fritar e a que se
pode chamar chicken nugget. É uma combinação de frango, hidratos de
carbono, gorduras e outras substâncias que aglutinam tudo. É quase como
estarmos a comer supercola.” 
Às vezes comemos mesmo cola, uma pequena confeção deliciosa que
tem o nome apetitoso de transglutaminase, ou TG. Os seres humanos
possuem esta enzima – quando esfolamos um joelho é o que permite que o
sangue coagule –, embora a versão comercial seja sintetizada a partir de
bactérias ou obtida a partir de plasma sanguíneo de vacas ou porcos. E tal
como é capaz de curar o joelho, também consegue aglutinar as proteínas
contidas em pedaços de carne, de modo a que bocados separados ganhem
a forma de uma peça sólida que parece resultar de um belo corte de carne.
De um jeito muito semelhante à maneira como o monstro do Dr.
Frankenstein foi cosido a partir de partes diferentes de corpos, esta
“Frankencarne” resulta da reunião de restos, às vezes de animais
diferentes.63 Funciona tão bem que até talhantes com experiência podem
ter dificuldade em identificar uma peça feita a partir de restos. Na
indústria alimentar, a “carne reestruturada” mais comum é o filet mignon.
Em salas de banquetes e hotéis que servem em grandes quantidades, este
truque reduz tremendamente os custos em relação às peças mais caras de
carne de vaca. 
Quando falamos de carne, as coisas quase nunca são aquilo que
parecem. Claro que toda a carne está morta, mas alguma está um
bocadinho mais morta do que outra. Em 2015, as autoridades chinesas
desmantelaram uma rede de tráfico de “carne zombie” que operava em 14
províncias. As autoridades confiscaram cem mil toneladas de carne
congelada de porco, vaca e frango que datavam dos anos 1970 e 1980 e
estavam a ser vendidas a restaurantes e bancas de comida locais. Segundo
o Hong Kong Free Press, a carne com 40 anos tinha sido “injetada com
aditivos químicos para ter um aspeto fresco”. Em Chongqing, o epicentro
da rede de tráfico, um disfarce para a fraude era o próprio facto de a região
ser conhecida pela comida bem picante. Assim, se a carne tivesse um
gosto suspeito, o picante serviria de disfarce, embora houvesse uma
questão bem mais séria: estaria esta carne velha também doente, uma vez
que provinha de áreas potencialmente afetadas por gripe das aves, febre
aftosa e pela doença das vacas loucas? O tráfico de alimentos congelados
é um negócio altamente lucrativo. O valor da apreensão feita na operação
na China atingiu os três mil milhões de yuans, qualquer coisa como 381
milhões de euros, o que levou imediatamente os inspetores a concluir que
não seria a última. 
Se é verdade que a carne zombie estava bem para lá do seu prazo de
validade, aquilo que designamos por “fresco” é ainda assim relativo. O
atum que brilha sob as luzes de halogénio do supermercado parece bem
fresco, mas pode ter sido capturado há semanas ou meses e percorrido
meio mundo de barco depois de ter sido congelado e descongelado um par
de vezes. Como o vermelho brilhante do atum se transforma naturalmente
num castanho pouco apetecível, o peixe importado é muitas vezes tratado
com monóxido de carbono, para impedir que a carne em trânsito sofra
uma descoloração. Embora o processo em si seja inofensivo, pode
implicar riscos para a saúde, já que simular frescura pode dissimular,
potencialmente, peixe estragado. Também engana o consumidor, que é
incapaz de dizer se o peixe que está a comprar tem um mês ou acabou de
ser capturado. 
O monóxido de carbono não será capaz de dar ao salmão um aspeto
mais apetitoso. A carne do salmão selvagem é cor-de-rosa porque os
peixes comem alimentos selvagens: krill e microalgas. O salmão criado
em cativeiro é alimentado à base de soja e milho. Por causa disso, a sua
carne não é cor-de-rosa, mas cinzenta. Mas você gostaria de salmão
cinzento? Os especialistas em comércio alimentar suspeitam que não, e é
por isso que os viveiros onde são criados os salmões usam o chamado
SalmoFan, uma gama de cores como se fosse um Pantone, muito
semelhante às amostras de tinta usadas na decoração de interiores, para
que os criadores possam obter um salmão cor-de-rosa como deve ser.
Lançado em 1989 pela empresa Royal DSM, é “o padrão de referência de
cor da indústria para a avaliação visual e a comparação de graus de
pigmentação na carne de salmão percebida pelo olho humano”. Chama-se
ao processo “acabamento de cor” e é possível escolher de uma paleta de
15 nuances, de um cor-de-rosa suave a um vermelho alaranjado forte.
Hoje, 70 por cento do salmão no mercado é de aquacultura – e todo ele é
artificialmente colorido com cantaxantina e a astaxantina, que são
carotenoides sintéticos produzidos a partir de petroquímicos. 
Para os ovos, a mesma empresa vende um YolkFan, que oferece uma
paleta de 16 nuances para colorir as gemas. Na Ásia, os consumidores
preferem uma gema mais pálida, enquanto em países como a Nova
Zelândia a preferem com um laranja forte. Para satisfazer diferentes
preferências geográficas, os produtores de ovos que querem obter o
“brilho dourado” perfeito podem juntar Carophyll vermelho e Carophyll
amarelo à alimentação das aves engaioladas que não saem para o ar livre.
A maior parte das pessoas acredita que é capaz, a partir da cor da gema, de
distinguir entre ovos de galinhas criadas ao ar livre e galinhas de aviários.
Mas, com os aditivos alimentares, podemos ser enganados e a cor, só por
si, não é um indicador de um ovo saudável. Na realidade, a cor é só mais
uma faceta da estratégia de venda. 
Os primórdios da falsa frescura na indústria alimentar remontam aos
anos 1950 e 1960, quando cientistas começaram a envolver a carne em
antibióticos. Como Maryn McKenna escreve no seu livro Big Chicken:
“Centenas de cientistas fizeram experiências envolvendo carnes e peixe
em soluções antibióticas, pulverizando frutas e legumes com produtos
químicos e misturando-os no leite.” O processo foi chamado
“acronização” e tornou-se um dos métodos favoritos para preservar
frangos. Depois de abatidas, as aves eram encharcadas numa solução
antibiótica. Evitando que as bactérias estragassem a carne, conseguia
prolongar-se o prazo de validade e o seu período de comercialização. 
O método conheceu, no entanto, um fim bastante indigno quando
trabalhadores de matadouros começaram a apanhar infeções por
estafilococos, apresentando queimaduras e lesões nos braços e nas mãos.
Não eram os próprios antibióticos a causar as infeções, mas sim estirpes
de bactérias que se tinham tornado resistentes à acronização. O processo
foi interrompido pouco depois. Hoje, os frangos já não estão encharcados
em antibióticos, mas nos Estados Unidos estão encharcados noutra coisa:
lixívia. Parece repugnante, mas na verdade é seguro comer frango lavado
com lixívia, desde que a sua concentração seja baixa, entre 20 e 50 partes
por milhão. O método mata todos os agentes patogénicos transportados
pelos alimentos, como a campylobacter e a salmonela, assegurando que
eles não sobrevivem e não se propagam depois do abate. Mas, na essência,
a lixívia é um ângulo morto químico. Impede-nos de ver aquilo que, de
outro modo, não poderíamos ignorar. 
Do outro lado do Atlântico, o Reino Unido proibiu frangos lavados com
lixívia por razões que têm menos que ver com riscos para a saúde e mais
com o sistema de saneamento básico. Como existem menos medidas de
proteção para as aves nos Estados Unidos, é possível colocar mais animais
dentro de gaiolas ou aviários, o que resulta muitas vezes em mais aves
doentes e numa disseminação maior de matéria fecal e doenças. A
lavagem com lixívia é o garante de eliminação das bactérias antes de as
aves irem para o mercado. No Reino Unido e na União Europeia, contudo,
a lógica é a inversa. O espaço, iluminação e ventilação exigidos para as
aves são maiores do que nos Estados Unidos. A exigência mínima de
espaço nos EUA é de 465 centímetros quadrados por ave. No Reino
Unido, é o dobro. Seja como for, as aves, em especial os frangos, não têm
muito espaço, tendo em conta que são alimentados para serem animais
relativamente grandes, com três quilos.64 
Tudo isto para dizer que, quando se trata daquilo que comemos, os
nossos olhos muitas vezes enganam-nos. 
 
Há anos que as pessoas tentam justificar a regra dos cinco segundos. A
“regra” sugere que, quando um pedaço de comida cai no chão, temos
cinco segundos para o apanhar antes de ele ficar contaminado por
bactérias. Claro que não há nenhuma base científica que sustente isto. Em
vez disso, arranjamos as nossas próprias justificações, como: “Não te
preocupes. É só uma fatia de queijo. Limpa-se facilmente.” Ou “É um
rebuçado, não é uma goma. Não ficou nada agarrado.” A ciência, no
entanto, é perentória: se deixarmos comida cair no chão, ela ficará com
bactérias quase instantaneamente. Então, porque persiste o mito?
Simplesmente porque queremos. Não somos capazes de ver as bactérias e
não parece fazer mal nenhum, por isso a maior parte das pessoas (79 por
cento, segundo uma sondagem) apanha e come alimentos que caem ao
chão. Um rebuçado sujo é uma coisa, mas quando chegamos à suja
verdade do nosso sistema alimentar, será que somos capazes de enfrentar
os factos ou fazemos a mesma coisa e olhamos para o lado porque
queremos? 
Com os alimentos, há coisas que preferimos não saber. E a questão é
esta: nós sabemos que preferimos não saber. Estudos científicos
determinaram que os nossos cérebros rejeitam informação que não nos faz
sentir bem, ou que nos provoca stress, o que é uma das razões para
deixarmos de ligar ao sofrimento. Mas, como escreve Margaret Heffernan
no seu livro Willful Blindness (Cegueira Voluntária): “Não saber, está bem.
A ignorância é fácil. Saber pode ser difícil, mas pelo menos é real, é a
verdade. O pior é quando não se quer saber, porque então deve ser
qualquer coisa muito má. De outra forma, não se teria tanta dificuldade em
saber.” 
Se ao menos tivéssemos uma curiosidade mínima sobre a origem dos
nossos alimentos, não seria difícil entender os factos. Os horrores góticos
da indústria de carnes são bem conhecidos desde que Upton Sinclair
publicou The Jungle, há mais de cem anos. Embora hoje possa ser menos
provável encontrar um rato dentro de uma lata de carne prensada, a escala
do abate de animais cresceu enormemente e a mecanização, no último
século, só terá tornado mais chocantes os matadouros e as explorações de
gado à escala industrial. Como James Pearce observou no ensaio “A Brave
New Jungle”, “talvez a forma mais perspicaz de ilustrar a intensificação
da produção agrícola intensiva de animais durante o século XX (e pelo
século XXI dentro) seja com uma estatística simples: a indústria aviária
mata hoje num dia mais aves do que toda a indústria matou no ano de
1930.” 
E se aqueles que ganham com a carnificina ficam felizes por manter
escondidos os factos e os números, as verdades desagradáveis são as
coisas mais fáceis de ocultar do mundo. Se alguém não quer saber uma
coisa, então não vai sabê-la. 
A repulsa é outro inibidor poderoso. Os “repulsólogos”, ou “nojólogos”,
como alguns cientistas que estudam o tema gostam de se apresentar,
descobriram que a emoção da repulsa é universal – e tem as suas
vantagens. Por exemplo, o facto de nos encolhermos e fazermos caretas
quando vemos feridas ou lesões em carne pútrida é uma vantagem que a
evolução nos deu. O nojo mantém-nos afastados de agentes patogénicos.
Protege-nos da doença. 
Mas muitas das coisas com o potencial de nos causarem nojo deixaram
de estar à vista. Em especial quando se trata de carne barata na indústria
alimentar, vivemos na ignorância total quanto a factos importantes sobre
os nossos alimentos. Factos como: os animais que comemos são
habitualmente alimentados com lixo e excrementos de outros animais.65
Factos como: a maior parte do bacon vem de porcos que foram colocados
numa câmara de gás. E factos como: há bifes nos balcões frigoríficos dos
supermercados que vêm de um animal que foi esfolado vivo. 
Talvez prefira não o saber. Alguns factos fazem com que seja sem
dúvida mais difícil comer, ou pelo menos comprar. De certeza que não são
uma conversa própria para ter à mesa. É desinteressante ler os ingredientes
de, por exemplo, uma nata artificial para café, mas outra coisa
completamente diferente é determo-nos sobre a origem de uma costeleta.
E embora não nos importemos de saber pouco ou nada sobre ingredientes
comuns do dia a dia – fosfato dipotássico, monoglicerídeos, diglicerídeos,
dióxido de silício, estearoil lactilato de sódio, lecitina de soja e aromas
artificiais –, no caso de alimentos que estiveram vivos saber pouco ou
nada é uma forma diferente de opacidade e, pelo menos em parte, uma
questão de consciência. Não saber é uma forma de mantermos limpas as
nossas consciências. 
Regressemos ao capítulo anterior e aos animais cujas vidas interiores e
experiências sensoriais são tão ricas como as nossas. No fim de contas,
somos também animais. E os animais tendem a ter um respeito nato por
outros animais. O consagrado biólogo norte-americano E.O. Wilson
chamou a isto “biofilia”, ou “o impulso para a relação com outras formas
de vida”. Quando estão diante da natureza, muitos humanos sentem
reverência, ou uma ligação, talvez por fazermos parte da natureza. É quase
impossível resistir ao desejo de cuidar e proteger um cachorro ou um
gatinho; poucos são capazes de se aproximar de um cavalo sem querer
pôr-lhe a mão no pescoço. A sensação de proximidade com outros animais
não é alvo de um estudo científico rigoroso, mas as provas nesse sentido
são impossíveis de ignorar. Nós adoramos animais. 
No fundo, as nossas semelhanças são difíceis de negar. A experiência de
uma vaca, ou de uma galinha, ou mesmo de um morcego é, como já
vimos, seguramente diferente da nossa. Não sabemos como é ser vaca,
galinha ou morcego, mas é como ser alguma coisa. Quando pensamos
naquilo que é ser animal, estamos na mesma posição em que estaria um
robô com inteligência artificial (ou um marciano) ao processar a questão
do que é ser humano. Ou seja, o facto de os nossos comportamentos serem
descritos de uma forma desapaixonada não significa que devemos partir
do princípio de que somos incapazes de experiências ricas. E não temos
razões para partir desse princípio em relação a outros animais. Como
observa Thomas Nagel: “Negar a realidade […] do que nunca
conseguiremos descrever ou compreender é a forma mais crua de
dissonância cognitiva.” Não somos capazes de acreditar que cada um de
nós vê e tem uma experiência do mundo que é única e ao mesmo tempo
negamos que outros animais o vejam e experienciem de uma forma
igualmente única. 
A dissonância cognitiva é, na verdade, só mais uma designação para o
incómodo que sentimos quando ambos sabemos uma coisa e fingimos que
não a sabemos. No caso da questão de onde vem a carne, o resultado é um
ângulo morto voluntário, suficientemente grande para esconder um
mecanismo de morte tão arrepiante, tão cruel e de uma tal dimensão que já
alterou a face do planeta de uma forma que o tornou irreconhecível. E se
somos capazes de ignorar, sem pestanejar, vários milhares de milhões de
mortes, que outras coisas se encontrarão escondidas estando à vista de
todos? 
 
Comecemos por olhar para aquilo que está mesmo por baixo dos nossos
pés. Aquilo sobre que nos erguemos é a base sólida da cadeia alimentar.
Até partilha o nome do planeta: é a terra que nos sustenta. Se pensarmos
nisso, é uma maravilha científica: a cornucópia colorida de alimentos no
supermercado, toda aquela variedade – melancias, morangos, couves,
pimentos, espinafres, lichias, couves de Bruxelas, pêssegos, abóboras,
batatas doces – resulta da mesma alquimia de água, sol, ADN e, claro,
terra. 
A qualidade do solo não é fácil de detetar a olho nu, mas agricultores
canadianos descobriram uma técnica invulgar de a tornar mais visível:
enterrando na terra durante cerca de um mês roupa interior de homem
conseguem obter um indicador da saúde do solo. Isso acontece porque a
roupa interior de homem é 99 por cento celulose, ou seja, no essencial,
longas cadeias de moléculas de glucose, que constituem um banquete
espetacular para os residentes microbianos do solo. Ao colocarem pares de
cuecas de homem em lotes de terreno que foram tratados de maneira
diferente, é possível ter uma boa amostra comparativa da riqueza
microbiana do solo. 
Claire Coombs, técnica de investigação no Ministério da Agricultura,
Alimentação e Assuntos Rurais do Ontário, testou este método e enterrou
vários pares de cuecas num campo lavrado usado convencionalmente com
culturas de soja sucessivas, e num campo de plantio direto com uma
excelente rotação de culturas, para ver se existia alguma diferença. Ao fim
de dois meses, a roupa interior no campo lavrado estava praticamente
intacta e até podia ser usada. Mas a roupa interior no outro terreno estava,
no mínimo, desfeita. Só restava o elástico, o resto tinha “quase
desaparecido”. Os micróbios tinham devorado a roupa interior, o que
indicava que o solo crepitava de vida, uma bênção para a terra e para as
culturas. 
Já foi dito que “as civilizações se erguem e caem por causa da qualidade
do seu solo”. Prevendo-se que a população humana ultrapassará os dez mil
milhões em meados do século, ignorar a profunda degradação do solo
seria um tremendo erro de cálculo. Citando um relatório do World
Resources Institute, o autor britânico Nafeez Ahmed escreveu: 
 
“Nos últimos 40 anos, cerca de dois mil milhões de hectares de solo – o equivalente a 15
por cento da área terrestre do planeta (mais do que os Estados Unidos e o México juntos) –
têm sido degradados por atividades humanas, e cerca de 30 por cento da terra arável tornou-
se improdutiva.66 Mas, em média, é preciso um século inteiro para gerar um só milímetro de
camada superficial de solo que se perde através da erosão. 
O solo é, por isso, um recurso não renovável, mas que está a perder-se de forma rápida. 
Estamos a ficar sem tempo. Dentro de apenas 12 anos, afirma o relatório, estimativas
conservadoras sugerem que problemas causados pela subida das águas afetarão as principais
regiões produtoras de cereais da América do Norte e do Sul, da África ocidental e oriental, da
Europa Central e da Rússia, bem como do Médio Oriente, da Ásia do Sul e do Sueste.” 
 
Não há uma causa única para a degradação do solo. Resulta da seca e
agrava-se com a erosão causada pela água e pelo vento devido à falta de
vegetação. Mas resulta também da agricultura industrial: do tremendo
aumento das monoculturas ao uso excessivo, e até à falta de uso, de
fertilizantes. No fim de contas, os cientistas têm estado a lançar avisos
muito sérios, dizendo-nos que a forma como cuidarmos, ou não
cuidarmos, do que está sob os nossos pés afetará em breve dois quintos da
população humana. A situação é tão grave, segundo um funcionário
superior das Nações Unidas, que, à taxa atual de degradação do solo,
poderão não nos restar mais de 60 colheitas. 
Para as sementes, o solo é como um ventre materno. Nutre e alimenta a
vida vegetal para que ela possa desenvolver-se e crescer. Mas apesar de
haver milhões de diferentes tipos de sementes (o famoso Cofre Global de
Svalbard, por exemplo, contém atualmente 890 mil e tem espaço para 4,5
milhões de variedades de culturas), em termos globais apenas 12 espécies
de plantas e cinco espécies animais constituem três quartos de toda a nossa
comida. 
E depender de tão poucas espécies de plantas ou de animais para a
alimentação, e em especial depender de apenas uma variedade de uma
espécie, significa que basta uma doença ou um único acontecimento
meteorológico de grandes dimensões para potencialmente eliminar uma
fonte de alimentação. Já aconteceu. Nos anos 1800, a Fome da Batata na
Irlanda foi provocada por um fungo chamado Phytophthora infestans. Os
camponeses da Irlanda tinham-se visto expulsos das terras, que os
proprietários queriam para criar gado, e tornaram-se dependentes da
monocultura de uma variedade de batata, a lumper irlandesa. Quando a
“praga” chegou, em 1845, a principal fonte de alimentação para três
milhões de pessoas transformou-se numa viscosidade podre e negra. 
O resultado não foi só a fome, mas uma das mais terríveis tragédias da
história. Ao longo de uma década, por causa da fome e da emigração, a
Irlanda perdeu um milhão e meio de pessoas, cerca de um quarto da
população. A recuperação demorou um século. 
As bananas são tão vulneráveis como as batatas. A grande referência
das bananas até à década de 1950 era a variedade Gros Michel, até que um
fungo designado doença do Panamá destruiu as colheitas comerciais. Para
criar um produto idêntico rentável sem diversidade, as plantas de
bananeira, sem sementes, foram propagadas por estaquia, ou seja, eram
clones geneticamente idênticos. Na verdade, consideradas em conjunto, as
bananas são o maior organismo do mundo. E embora muitas pessoas
nunca tenham provado uma Gros Michel, diz-se que não se sabe o que
perdemos, porque a Gros Michel era aparentemente muito mais saborosa
do que a Cavendish, a variedade que agora compramos. A Cavendish
representa hoje 99 por cento de todas as exportações de banana e, sendo
um clone sem sementes, também está ameaçada: uma estirpe nova e mais
letal da doença do Panamá espalhou-se da Ásia para África e Índia e
encontra-se a caminho da América Central. Quando chegar, muitas
variedades de banana, incluindo a Cavendish, podem ser varridas. 
Mas a biodiversidade não está a desaparecer apenas por causa das
plantas que cultivamos para nos alimentarmos. Segundo o World Wildlife
Fund, 60 por cento da perda global de biodiversidade deve-se à utilização
da terra para alimentar os nossos alimentos.67 Ou seja: a terra é usada para
produzir alimentos para animais criados para fornecer carne. E a maneira
como “fazemos crescer” a carne é semelhante à maneira como gerimos as
monoculturas: controlamos as sementes. 
Tal como as bananeiras, muitos dos animais que mantemos em cativeiro
não têm sexo. E também controlamos o seu pool genético. Se seguir o seu
brunch até às origens, verá que o sexo natural foi riscado do mapa. A vaca
que nos dá o leite engravidará em média uma vez por ano, mas
provavelmente nunca verá um boi em toda a vida. É porque hoje, para 95
por cento das vacas leiteiras e para 90 por cento dos porcos, a vida não
começa no piscar de olhos de um animal, mas numa placa de Petri. A
grande maioria destes animais são concebidos por inseminação artificial. 
Para a recolha de esperma, o boi ou é excitado por um macho castrado,
que tentará montar, ou é colocado atrás de um boneco de uma vaca, que na
sua forma mais simples se parece muito com um cavalo de arções de uma
aula de ginástica no liceu. A “ordenha” do boi assume em geral uma de
três formas. O primeiro método, que é o mais comum, envolve uma
vagina artificial. Quando o boi se prepara para montar, o “coletor” corre
para lhe cobrir o pénis com a vagina, o que é uma tarefa e peras, tendo em
conta que a ereção do animal pode atingir os 60 centímetros. Para simular
a realidade, o interior da vagina, em borracha, tem um lubrificante, e as
suas paredes estão cheias de água morna. Usando “estímulo termal e
manual”, o coletor recolhe o sémen do touro. Em centros de inseminação
artificial, os bois passam por este processo de recolha dois ou três dias por
semana e nesses dias são recolhidas ejaculações duas ou três vezes. 
Para touros que não sejam capazes de montar ou que sejam mais difíceis
de conter, o método preferido é o da electro ejaculação. O animal é guiado
para um gradeamento em metal, de modo a que apenas a sua parte traseira
fique acessível. O coletor faz uma massagem rectal ao touro, com a mão
enluvada, para o descontrair. A seguir, uma grande sonda metálica com
elétrodos é inserida no reto e lança nos nervos pélvicos descargas de
eletricidade cada vez maiores. Os veterinários também usam a electro
ejaculação em animais selvagens e em perigo de extinção para obterem
esperma, embora os anestesiem para realizar esse processo. Os touros não
têm essa benesse. 
O último método exige uma forma mais direta de envolvimento
humano. O coletor insere o braço, coberto por uma luva, até ao cotovelo,
no reto do touro, e massaja através das paredes rectais a ampola e as
glândulas adjacentes; na verdade, masturba o animal a partir do interior
até ele ejacular. 
Em geral, pensamos nas vacas como os animais que são ordenhados por
dinheiro, mas, se formos a ver o preço por litro, o esperma de touro é de
longe muito mais valioso. Uma única amostra de sémen pode atingir os
dois mil dólares – sendo que uma ejaculação pode proporcionar 500
amostras.68 A nível de elite, um boi “estrela” pode representar anualmente
sete milhões de dólares e originar mais de 500 mil descendentes. Como
elemento essencial da indústria global de lacticínios, que vale 600 mil
milhões de dólares, o esperma de touro é considerado “ouro branco”. Os
touros que dão origem às melhores filhas leiteiras arrecadam fortunas para
os seus proprietários e acabam por se tornar celebridades. Na indústria
leiteira, o Comestar Leader, o Sunny Boy ou o Toystory são todos nomes
famosos. Estes animais pertencem ao “clube dos milionários”69, não só
pelo dinheiro que fazem, mas especificamente pelo seu nível de produção:
a capacidade para produzir mais de um milhão de doses de esperma. 
Porque é que o esperma é um negócio tão grande? A geneticista
Christine Baes explica: “Uma vaca não produz leite a menos que tenha
dado à luz recentemente, e por isso é que é importante engravidar uma
vaca enquanto ela for fisicamente capaz de aguentar – digamos, uma vez
por ano. Uma vaca vai dar leite durante 305 dias, vai descansar 60 e então
fica pronta a engravidar outra vez.” Reparem que, ao contrário dos touros,
as vacas, que são quem produz o leite de que a indústria depende, não têm
qualquer reconhecimento público. São invisíveis. Ao fim de uma vida a
produzir leite – cerca de 120 copos por dia por vaca – são consideradas
gastas e levadas a um matadouro, para acabarem como comida para cão
ou em hambúrgueres. 
Este “negócio da ejaculação” não é apenas doméstico: Estados Unidos e
Canadá exportam todos os anos, para todo o mundo, doses de esperma no
valor de centenas de milhões de dólares. Apesar das sanções, os Estados
Unidos até exportaram para o Irão esperma de touro no valor de dois
milhões de dólares, já que entrava na categoria de “ajuda humanitária”. É
obviamente caro enviar animais vivos num avião de carga 747, por isso o
esperma segue embalado. 
Por estes dias, com os índices Nasdaq e Dow Jones, tendemos a
esquecer que a bolsa começou como comércio de gado. Mas até os
simples leilões de animais se transformaram hoje em assuntos abstratos e
de alta tecnologia: em vez de mostrarem animais vivos, empresas como a
Genomix fazem leilões de esperma e de embriões. O objetivo é adquirir a
linha genética perfeita. Os compradores olham a caraterísticas como
quilos de carne por vaca, crescimento do animal, facilidade de parto e
presença dos genes pretendidos para aumentar a sua manada. Na verdade,
o esperma taurino tornou-se um bem tão procurado que nos últimos anos
até houve assaltos a estábulos, em que gatunos levaram tubos com
esperma que no mercado negro valeriam dezenas de milhares de dólares. 
Este ouro branco é precioso não só para os negócios privados, mas para
o estado. Sémen criopreservado, ou congelado, é armazenado em azoto
líquido a 196 graus Celsius negativos. Isto permite mantê-lo durante pelo
menos 50 anos – e alguns dizem que pode ser indefinidamente. Na
eventualidade de uma catástrofe em grande escala, ou de uma doença, o
Departamento de Agricultura dos EUA possui como plano B uma
instalação secreta de armazenamento de azoto líquido, como o cofre de
sementes para as plantas. Situado em Fort Collins, no Colorado, o
Programa Animal Nacional de Germplasma é uma espécie de Arca de Noé
genética. A ideia é que o Programa, se alguma coisa varrer populações
inteiras de animais domésticos sobre a Terra, será capaz de “repovoar
espécies inteiras”. Mas de 700 mil amostras de esperma de 18 espécies
animais são ali guardadas, para essa eventualidade. Esperma de espécies
vintage, ou tradicionais, também está guardado na instalação de quase mil
metros quadrados, ao lado de espécies comuns de porco, peru, frango e
gado. 
Manter estas linhas genéticas diversas é importante por outra razão:
impedir a consanguinidade, que é um acaso da inseminação artificial. Com
16 mil filhas, 500 mil netas e mais de dois milhões de bisnetas, um touro
chamado Pawnee Farm Arlinda Chief foi, em tempos, o Genghis Khan do
mundo dos laticínios. Os seus genes podem ser encontrados hoje em 14
por cento de todo o gado Holstein. Mas os fazendeiros acabaram por criar
em conjunto touros e novilhos que descendiam do Chief, e sucede que o
Chief tinha um gene com defeito. Quando ambos os animais contribuíam
com uma cópia dele, o resultado eram abortos espontâneos. Para a
indústria, a perda financeira foi de 420 milhões de dólares. 
O controlo de qualidade é assim essencial para garantir esperma
saudável. Em centros de recolha de sémen, o esperma é analisado ao
microscópio para garantir que os espermatozoides são em bom número,
que se movimentam bem e não apresentam anomalias físicas. Empresas
como a Semex também utilizam “sistemas de avaliação de sémen
assistidos por computador”, que usam software e imagens em vídeo de
alta resolução para avaliar o esperma de acordo com determinados
parâmetros específicos. Mas em alguns lugares o controlo de qualidade
ainda é feito à antiga: o sémen é avaliado pelo cheiro, e também pela
visão. 
Ainda que a descrição do seu trabalho não apareça provavelmente no
LinkedIn, funcionários de empresas como a Finnpig têm de cheirar
esperma e assinalá-lo para rejeição quando alguma coisa não lhes cheira
bem.70 É uma parte importante da produção de porcos. Sabrina Estabrook-
Russett, estudante de veterinária na universidade de Edimburgo,
pormenorizou na revista Modern Farmer a sua experiência como
empregada numa quinta. A trabalhar para um produtor esloveno, aprendeu
o método tradicional para avaliar a qualidade do esperma. O produtor
disse-lhe, num inglês básico: “Testamos com TODOS os sentidos: ver,
ouvir, cheirar, provar… Quando porco jovem, esperma doce. Quando
porco velho, esperma amargo.” Felizmente, ela foi poupada à tarefa da
prova. 
Enquanto produto, o esperma também é oferecido aos compradores em
seleções variadas. O esperma com sexo determinado, por exemplo,
tornou-se agora um bem comum. Para clientes que pretendem que as
fêmeas produzam leite, faz sentido comprar esperma XX. Os jovens
machos não são bem-vindos, a menos que se pertença à indústria da carne.
Um citómetro separa, pelo peso, os cromossomas masculinos dos
femininos, e uma corrente magnética divide o esperma XX do esperma
XY, para que seja possível adquirir esperma que em 90 por cento das
vezes resulte em nascimentos de animais do sexo desejado. 
Algum do esperma é até vendido como “pronto para o robô”, o que
significa que as fêmeas que resultarão dele terão tetas mais capazes de
resistir aos robôs de ordenha mecânica. As vacas leiteiras sofrem com
frequência de doenças relacionadas com a produção, como mastite, que é
uma infeção do úbere. Para lidarem com isto, as empresas, em vez de
mudarem a tecnologia, estão a mudar as vacas. Como afirma um press
release da Semex: “Os reprodutores ‘Prontos para o Robô’ da Sirex
ajudarão as empresas de laticínios a criarem facilmente vacas rentáveis
para linhas de produção automatizadas e robóticas […] Identificámos a
necessidade de produzir vacas adequadas a estes sistemas como uma
exigência essencial dos nossos clientes que já utilizam nas suas fábricas,
ou pensam instalar, tecnologias robóticas automáticas.” 
Quando assumimos o controlo da biologia destes animais domésticos,
não só lhes retirámos a possibilidade de terem sexo, mas também temos a
mão no contador que aumenta o seu número. De um ponto de vista
empresarial, há um incentivo financeiro para aumentar a população de
onde sai o produto. Os porcos, por exemplo, são considerados bons para
pagar as hipotecas – e quando se aumenta o seu número também
aumentam os lucros. Esta taxa cresce anualmente dez vezes. No primeiro
ano, uma suína adulta produz 20 porcos; no segundo ano, dez suínas
produzem 200; no terceiro, 100 porcas produzem dois mil suínos; a este
ritmo, um produtor pode ter, no sexto ano, até dois milhões de porcos.
Mas há consequências: nos anos 1990, uma porca média dava à luz 20
leitões por ano. Hoje, com a reprodução seletiva, o número aumentou para
25 a 30, e algumas até atingem os 40 por ano.71 Este rápido crescimento na
produção animal resultante de inseminação artificial e vendas de embriões
alterou o processo de reprodução e, por causa disso, fez subir imenso a
biomassa de animais domesticados no planeta. 
Existem hoje sobre a Terra mais de mil milhões de porcos domesticados
e 1.500 milhões de vacas domesticadas, e os números anuais de abate da
Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações Unidas
mencionam quase 66 mil milhões de galinhas. O que isto quer dizer, como
assinalou George Musser, editor na Scientific American, é que “quase
todos os animais vertebrados ao cimo da Terra ou são humanos ou são
animais de quinta”. Se incluirmos cavalos, ovelhas, cabras e as nossas
mascotes, 65 por cento da biomassa de mamíferos do planeta é de animais
domésticos, 32 por cento é de seres humanos e só 3 por cento é de animais
em estado selvagem. 
A população humana, atualmente nos 7.500 milhões, está a aumentar a
um ritmo de 1,2 por cento ao ano. Para o gado, os números são o dobro:
2,4 por cento ao ano. Calculando-se que a nossa população atingirá os dez
mil milhões em meados do século XXI, precisaremos de sustentar não só
120 milhões de toneladas de seres humanos adicionais como 400 milhões
de toneladas adicionais de animais de quinta. Em 2050, o espaço físico
necessário para produzir alimentos só para o gado deverá subir de três
quartos de toda a atual terra agrícola para metade de toda a terra existente.
Ponto final. 
 
Uma alforreca e um pepino são 95 por cento água. Os humanos são
cerca de 60 por cento. O que todas as plantas e animais terrestres têm em
comum é que a água faz parte dos nossos corpos; constitui os nossos
alimentos e sacia a nossa sede. Não podemos viver sem ela. Mas quanto é
que sabemos de onde ela vem? 
Claro que a água está lá em cima, nos céus. Na sua essência, as nuvens
são rios flutuantes. E embora no ar pareçam mais leves, têm peso. O
conteúdo de água da nuvem de tipo cúmulo comum, por exemplo, é de
495 mil litros, ou seja, o peso de cem elefantes. As nuvens podem estar
por toda a parte, mas são inconstantes quanto ao onde e quando libertam a
sua chuva. A água de que dependemos – para fins residenciais, agrícolas,
fabris e industriais – provém de duas fontes primárias: os aquíferos a
grande profundidade e a neve e o gelo que derretem dos glaciares. Estas
duas fontes estão a desaparecer. 
Comecemos no alto, nos picos das montanhas. Toda essa água glacial é
a origem dos nossos rios e correntes. Segundo o Serviço Geológico dos
Estados Unidos, “60 a 80 por cento do abastecimento anual de água para
70 milhões de pessoas no Oeste Americano provém das neves das
montanhas”.72 É por isso que deviam ser muito alarmantes as fotografias
de glaciares que estão a desaparecer. Num mundo em aquecimento, o
abastecimento não está a ser garantido sem aquela cobertura anual de neve
a transformar-se em gelo e depois em água. 
O ritmo a que isto está a acontecer é aterrador. Na Colúmbia Britânica,
os glaciares perdem anualmente 22 mil milhões de metros cúbicos de
água. É como se 22 mil edifícios Empire State Building feitos de água
desaparecessem todos os anos dos picos montanhosos. Nas altas
montanhas da Ásia, David Breashears tem documentado a perda de
“reservatórios gelados”. Enquanto cofundador do GRIP, Projeto de
Registo de Imagem e Investigação de Glaciares, ele e outros montanhistas
utilizam fotografias de arquivo para seguir os mesmos percursos usados
no último século por outros trepadores, comparando imagens dos glaciares
antes e agora. Palavras de Breashears: 
 
“Devemos sentir-nos desconfortáveis. A perda destes reservatórios de água congelados
terá um impacto imenso, já que os glaciares abastecem de correntes sazonais quase todos os
grandes sistemas de rios da Ásia. Do Indo ao Ganges e ao Bramaputra na Ásia do Sul, aos
rios Amarelo e Iangtsé na China, centenas de milhões de pessoas dependem parcialmente, em
termos de água, deste grande arco de glaciares a grande altitude. À medida que os glaciares
recuam e libertam água armazenada, as correntes aumentarão temporariamente. Mas quando
estes reservatórios de gelo se esgotarem, ficará ameaçado o abastecimento de água para um
continente em crescimento e sobrepovoado e as consequências nos recursos de água e
alimentares podem ser terríveis.” 
 
Em 2016, o Centro de Jornalismo Investigativo começou a analisar
telegramas trocados entre diplomatas norte-americanos que tinham sido
divulgados pela WikiLeaks. As notas “mostravam uma preocupação
crescente, por parte de líderes políticos e empresariais mundiais, com a
possibilidade de a escassez de água poder provocar agitação em todo o
mundo”. Em particular, a maior empresa alimentar do mundo, a Nestlé,
calculou que se todos na Terra comessem como um norte-americano
médio, o planeta já teria ficado sem água potável há 15 anos. Agora,
quando países como a China e a Índia se aproximam dos padrões
ocidentais de desenvolvimento económico, a sua procura de carne
disparou e isto, em combinação com a tendência para a diminuição dos
glaciares e dos aquíferos, parece conduzir os recursos e a água da Terra a
uma situação “potencialmente catastrófica”. 
O problema é que as ameaças são invisíveis. Já chamaram “crise
invisível” ao esgotamento da água subterrânea usada para a agricultura.
Águas de chuva há muito acumuladas em aquíferos subterrâneos estão a
ser tiradas a um ritmo sem precedentes. E quando esta água desaparecer
levará milhares de anos a ser substituída. Tendemos a pensar que a água
provém da chuva ou de gelo e neve derretidos, mas na verdade
dependemos imenso desta água “fóssil” para a agricultura moderna. Como
observou Tom Philpott, da revista Mother Jones, “viver da água que está à
superfície é como viver do ordenado […]Depender da água subterrânea,
no entanto, é como viver das poupanças”. 
Hoje, à escala global, um terço da água subterrânea está ameaçada. E
este ângulo morto da água subterrânea paira sobre algumas das cidades
mais populosas do mundo. Há, no entanto, uma maneira de ver o que se
passa debaixo do chão – e, com razoável surpresa, consegue-se isso
recorrendo a satélites. A missão GRACE-FO da NASA usa dois satélites
que se seguem um ao outro na mesma órbita. Ao medir constantemente a
distância entre eles, consegue detetar-se alterações no campo de gravidade
que atravessam. E uma vez que as oscilações de água subterrânea alteram
o campo de gravidade, os dados gerados podem ser usados por cientistas
para “ver” o volume de água que está por baixo. O que descobriram é que,
em algumas regiões como o Vale Central da Califórnia, um volume de
desaparecimento de água que costumava levar décadas acontece agora em
pouco mais de três anos. 
A nossa espécie usa todos os anos cerca de 4.600 quilómetros cúbicos
de água, o dobro do volume de todos os rios do planeta. De acordo com as
Nações Unidas, por volta do ano 2050 haverá cinco mil milhões de
pessoas a lutar com a falta de água; em 2025, portanto daqui a muito
poucos anos, 1.800 milhões sentirão “uma escassez absoluta de água”. Por
causa disso, o preço da água está a subir. Um estudo de 2017 conduzido
por cientistas da universidade estadual de Michigan determinou que a
água está prestes a ficar bem mais cara. Calcularam que dentro de cinco
anos um terço da população norte-americana não será capaz de pagar as
contas da água. 
Claro que há sempre a água à superfície. As superfícies frontais trazem
chuva. E a chuva é de borla. Mas o ciclo da água está a mudar. À medida
que, ano após ano, as temperaturas globais aumentam, o ar quente provoca
mais evaporação, levando à ocorrência de secas em algumas áreas e a
inundações catastróficas noutras. As cidades que planeiam usar edifícios e
infraestruturas para recolher água da chuva podem muito bem ser aquelas
que, nos próximos anos, terão água para beber. 
 
A água pode ser escassa para os humanos, mas sempre foi abundante
para os peixes. As populações de peixes, no entanto, enfrentam uma
ameaça diferente. Nos últimos anos têm tido de enfrentar um predador
sem rival, um predador cujas capacidades de caça se tornaram tão
refinadas que superam a capacidade das espécies marinhas para se
reproduzir. Claro que estou a falar de nós. 
Em 1920, desenvolvemos uma nova e invulgar forma de pescar: a partir
do céu. Como então notava um artigo na Aerial Age Weekly, a prática era
aplicada na Virginia, onde “todas as madrugadas, às 5h, um barco voador
com um piloto, um operador de rádio e um observador de peixes sai da
estação para ajudar as embarcações de pesca”. Em 1940, este “novo uso
para os aviões” permitia aos observadores de peixe detetar cardumes
inteiros a partir de uma altitude de entre 180 e 240 metros. Na década de
1970, os aviões de observação já eram usados habitualmente por frotas
comerciais de pesca. As grandes capturas passaram a estar dependentes
desta nova forma de ver os peixes. Não surpreende que um estudo
apresentado ao Serviço Marítimo Nacional de Pescas dos Estados Unidos
afirmasse que 92 por cento dos navios de pesca que recorriam a meios
aéreos deste tipo registavam capturas maiores. 
Para os peixes, esta técnica tem sido devastadora. Com os nossos olhos
a espreitar lá de cima, não têm simplesmente hipótese de fuga. Pelo menos
no Mediterrâneo foi banida a deteção aérea do atum-rabilho. Depois de
frotas pesqueiras da Espanha, França, Itália, Japão e Líbia terem passado a
usar sonar e aviões, os peixes, cercados e encurralados por embarcações
dotadas de alta tecnologia, não tinham hipótese e as suas populações
caíram a pique. Mas a questão essencial é esta. Como os peixes são
menos, tornam-se mais difíceis de apanhar, e por isso necessitamos de
todos os recursos possíveis para capturar os que restam. É a isso que os
cientistas chamam uma “alteração das linhas de base”. No caso do atum-
rabilho do Pacífico, um pescador japonês, Kazuto Doi, observa: “Há 20
anos, costumávamos ver os atuns a nadar debaixo dos nossos barcos em
cardumes que chegavam a ter quatro quilómetros… Agora, já não vemos
nada disso.” Isso acontece porque a população de atum-rabilho do
Pacífico está agora a não mais de 4 por cento dos seus níveis históricos.
Segundo as Nações Unidas, “quase 90 por cento dos recursos de peixe
marinho encontram-se agora explorados ao máximo, explorados acima do
máximo ou exauridos”. Uma parte essencial da dieta de milhares de
milhões de pessoas em todo o mundo está a desaparecer e a maior parte de
nós nem repara nisso. Na verdade, a nossa procura de peixe aumenta. 
Para satisfazer a procura, não só apanhamos espécies selvagens, mas
também criamos peixe. Isso também tem consequências nefastas.
Comprimidos em gaiolas, os peixes podem adoecer, ficar cobertos de
parasitas ou deformados. Inspetores de viveiros de salmão na Escócia
encontram regularmente provas de “lesões sangrentas, defeitos nos olhos,
órgãos deformados, pragas de parasitas marinhos que comem carne” e
mais. De acordo com o grupo de lóbi Scotish Salmon Watch, “a taxa de
mortalidade nas culturas de salmão na Escócia é de 26,7 por cento”. Por
outras palavras, o processo de criação mata, ele próprio, 15 a 20 milhões
dos peixes criados”.  
E depois há os peixes que capturamos sem intenção de comer. As
capturas acessórias, ou “desperdício de peixe” – o peixe que é apanhado,
mas é demasiado pequeno ou não é da espécie ou do sexo desejado – é
vendido para comida para animais. Longe de ser um produto secundário
da indústria das pescas, a farinha de peixe – produzida a partir de peixes
pequenos, com muitas espinhas, apanhados nos seus habitats – representa
uns extraordinários 60 por cento das capturas globais, o que faz dela, sem
dúvida, a parte mais importante da indústria de pesca, mas aquela de que o
consumidor menos sabe. Todos os anos são apanhados 5,4 milhões de
toneladas destes peixes “para deitar fora”, moídos até se tornarem pó e
vendidos essencialmente como suplemento para explorações de animais,
onde são uma fonte barata de proteína. 
Contudo, num oceano cada vez mais exaurido, as frotas de pesca entram
com frequência em áreas ilegais. Nos parques marítimos da Tailândia, os
peixes tropicais são habitualmente apanhados e transformados em farinha
para alimentar os camarões-tigre. São os mesmos camarões que
encontramos às nossas mesas na Europa e na América do Norte. O filme
Grinding Nemo (Moendo Nemo) mostra arrastões que capturam nos
parques até 50 espécies diferentes. A farinha de peixe é produzida, entre
outras coisas, a partir de coloridos peixes de recifes, de cavalos marinhos e
de tubarões bebé ameaçados. À medida que os pequenos peixes
desaparecem, vai havendo consequências quando se sobe na cadeia
alimentar; os peixes jovens não crescem até se tornarem adultos e peixes
que normalmente são apanhados por predadores marinhos maiores são
completamente eliminados, o que deixa esses predadores com muito
pouco para comer. 
O Peru é o maior produtor de farinha de peixe do mundo. E um terço do
que produz vai para as criações de salmão na Noruega. Para produzir em
cativeiro um quilo de salmão são precisos dois a cinco quilogramas de
alimento produzido a partir de peixes pequenos. No Peru, peixes, que
podiam estar a alimentar a população local, estão a ser exportados.73
Também na África Ocidental começaram a surgir, ao longo das costas do
Senegal e da Mauritânia, fábricas de farinha de peixe. No Senegal,
arrastões monstruosos têm retalhado a biomassa de peixe, que passou de
um milhão para 400 mil toneladas. Longe da nossa vista, os frangos do
nosso supermercado estão a ser engordados com peixe de África. Para os
africanos que em tempos viveram ao longo de uma costa com uma das
mais ricas existências de peixe do mundo, é cada vez mais difícil comprar
e comer peixe das suas próprias águas, porque os seus peixes estão a ser
exportados para alimentar os nossos frangos. 
 
Nos anos 1960, cerca de 80 por cento das aves eram vendidas ainda
inteiras, sob uma forma reconhecível. E também é por isso que a galinha
não era então um alimento popular. Arranjar, cozinhar e cortar uma ave
exigia tempo, e por isso a galinha estava principalmente reservada para as
refeições de domingo ou para ocasiões especiais. Mas tudo mudou quando
Robert Baker, professor de ciência alimentar e marketing na universidade
de Cornell, desenvolveu a primeira máquina para tirar a carne de uma
carcaça de ave. 
Conhecido como o Thomas Edison da indústria da carne de aves, Baker
também ajudou a inventar a máquina de desossar e o seu trabalho pioneiro
sobre agentes aglutinadores permitiu que a cartilagem e a carne
permanecessem juntas, criando um novo mercado comercial para a carne
processada. Esta carne “divertida” podia assumir formas amigáveis para
os miúdos: estrelas, corações ou até dinossauros. 
A transformação da ave inteira em partes mais facilmente
comercializáveis – asinhas, coxinhas, peitos… – e em formas processadas
fez aumentar as vendas tremendamente. A indústria que nos anos 1960
valia quatro mil milhões de dólares conheceu uma revolução. A procura
desse tipo de carne disparou e hoje são abatidos todos os anos mais de 60
mil milhões de frangos; a esmagadora maioria, 75 por cento, provém de
aviários. 
Em conjunto com uma campanha de marketing sustentada, os frangos
deixaram de ser aves e tornaram-se marcas e produtos. E, com a procura
crescente, os aviários tiveram de aumentar a oferta. Para isso, a linha de
abate tornou-se cada vez mais automatizada e a desmontagem dos animais
foi acelerada. Hoje, esta é a última paragem para uma ave criada para fins
comerciais: a sua vida não termina às mãos humanas, mas sob a lâmina de
uma máquina. 
Com isto, abrimos um ângulo morto verdadeiramente horripilante. Mas
continuemos, com coragem. 
Na arena da morte de um matadouro, os únicos humanos “vivos” são os
que penduram os frangos de cabeça para baixo em argolas de aço
inoxidável. A linha anda depressa. Em média, para acompanhar o ritmo,
um trabalhador precisará de pendurar até 20 aves por minuto. Depois, a
máquina toma conta do processo. Num cruzamento entre um filme de
terror e uma viagem num parque de diversões, os animais seguem de
cabeça para baixo pelo carril para um banho de água, onde ficam
atordoados quando as suas cabeças são eletrocutadas debaixo de água. 
A seguir vem a máquina da morte. Cada ave cai numa posição em que o
seu pescoço fica fixo entre barras-guia. Aí, uma lâmina circular
motorizada corta-lhe o pescoço. Enquanto os animais sangram, um
sistema de contagem que funciona a partir de uma câmara mantém o
registo do número de aves processadas. Depois de mortas, entram noutra
câmara de alta voltagem. Chamam-lhe um “estimulador”. Durante cerca
de 40 segundos, as aves passam sobre uma placa com elétrodos, o que
provoca contrações dos peitos e induz um movimento das asas para
libertar qualquer energia química que reste nos músculos. Torna os
músculos do peito mais tenros, facilita e acelera o processo de desossar. 
A seguir, os corpos pendurados entram em túneis de escaldagem, a parte
mais comprida da linha, onde o calor da água quente é transferido pelos
folículos das penas das aves, para que estas, na próxima paragem, possam
ser retiradas. A escaldagem pode ser “soft” ou “hard”. A primeira, a 55
graus Celsius, produz aves de pele amarela e a segunda, a mais de 57
graus, resulta em aves de pele branca. 
A linha volta a levar as aves para trás, para as fases finais da operação: o
arrancador de cabeças, onde são decapitadas, e o cortador de pés, onde as
patas são cortadas e as aves são soltas das argolas. 
Nesta fase, com exceção das patas e da cabeça, as aves permanecem
inteiras. Ainda é preciso retirar-lhes as vísceras, arrefecê-las e inspecioná-
las, antes de serem devolvidas à linha. As carcaças são então abertas a
meio. Aí são separadas as partes de trás (coxas e pernas) e da frente
(peitos e asas). As modernas máquinas de desossar conseguem processar
uma ave em 2,5 segundos. 
Na Europa, na Ásia e no Canadá, as fábricas de processamento
conseguem funcionar a velocidades de 175 a 200 apm (aves por minuto).
Numa única central, isso quer dizer 12 mil por hora, ou 96 mil num dia de
oito horas. Só nos Estados Unidos, são criadas para abate, todos os anos,
cerca de nove mil milhões de aves para carne. 
Acelerar o abate para maximizar a eficiência não está a acontecer,
contudo, apenas na criação de aves. A carne é um grande negócio. A
tendência faz-se sentir em toda a indústria e abrange galinhas, porcos e
vacas, que foram em tempos animais de quinta. E estes animais não são as
únicas baixas. Em fábricas nos Estados Unidos, o aumento na velocidade
na linha de processamento está a provocar ferimentos graves em
trabalhadores. Segundo registos da Administração de Saúde e Segurança
Ocupacional, acontecem, em média, duas vezes por semana amputações
em operários. 
Então como é que passámos da quinta para a fábrica? Foi o dono de um
matadouro de Chicago, Gustavus Franklin Swift, o primeiro a inventar a
correia de transporte de animais hoje usada nas fábricas de processamento
de carne. Homem de negócios astuto, sempre em busca de multiplicar os
lucros, Swift viu como era ineficaz transportar de comboio animais
inteiros de Chicago para outras cidades norte-americanas. Nessa altura,
cerca de 60 por cento da massa dos animais era considerada imprópria
para consumo. Cabeças, cascos, ossos e entranhas eram um peso morto e
aumentavam desnecessariamente as despesas de transporte. Swift teve a
ideia de desmantelar antes os animais grandes, como porcos e gado
bovino. No caso dos porcos, podia depois transportar pelo país, em
carruagens frigorificadas, pernas, costeletas, bacon e salsichas. 
Philip Danforth Armour, um contemporâneo de Swift, fundador da
Armour&Company, encontrou uma forma diferente de transformar as
carcaças de animais em alguma coisa mais lucrativa. Fez fortuna com a
embalagem das primeiras carnes, sob a forma de refeições enlatadas, de
chilis a guisados. Mas Armour também maximizou o valor económico dos
animais quando encontrou novos usos para os desperdícios dos
matadouros: as caudas dos porcos passaram a ser usadas em pincéis; os
pelos foram transformados em escovas de cabelo; as tripas foram usadas
como cordas de raquetes de ténis; as gorduras utilizadas no fabrico de
sabões; os ossos tornaram-se fertilizante; e os cascos, depois de fervidos,
passaram a ser cola. 
A zona dos matadouros de Chicago, a Union Stock Yards, tornou-se um
centro de “inovação sem remorsos”. O próprio Armour teve uma frase
famosa, ao afirmar que vendia “tudo, menos o grunhido do porco”. Hoje, a
indústria de carne não gosta que lhe seja aplicada a designação de fábrica,
mas o facto cru é que os animais são completamente olhados como bens:
são criados como “produtos” e vendidos em “unidades”.74 Como Ted
Genoways escreve em The Chain, todo o modelo “é executado com a
precisão de uma fábrica e construído para servir as necessidades de outras
fábricas – as de embalagem, os embaladores, os distribuidores – que estão
mais à frente na linha de montagem. Cada passo pode ser replicado e
repetido vezes sem conta em instalações idênticas ou quase idênticas,
onde quer que os residentes em comunidades próximas autorizem”. 
Se o abate de frangos é desde há algum tempo completamente
automatizado, a morte ainda é uma questão largamente manual para
animais maiores, como porcos e vacas, que têm um valor mais elevado.
Na maior parte dos matadouros, os animais, presos ou atordoados, ainda
são degolados manualmente. O sangue é recolhido numa calha e tratado.
Torna-se fertilizante e alimento para animais, em geral misturado com
ossos moídos, o que é uma ideia bastante desagradável para os
vegetarianos, que podem não saber que este “fertilizante orgânico” é
usado em quase todas as culturas, do milho aos legumes. 
Guloseimas como gomas, doces, marshmallows e geleias também são,
disfarçadas, produtos com origem nos matadouros. O ingrediente
essencial é a gelatina, que é feita da pele, ossos, chifres e tecidos
conectivos recolhidos depois do abate e colocados durante três meses em
pegajosas cubas cor de lima, até o colagénio se desprender. Depois de tudo
lavado, o colagénio é fervido e transformado em folhas de gel ou em pó,
usados em quase todas as sobremesas que têm uma forma. Mas o poder
aglutinador da gelatina não é só usado na alimentação: tornou-se um bem
valioso, presente em quase toda a parte, das cápsulas usadas nos
medicamentos à produção de papel. Todos os filmes fotográficos são
feitos com gelatina – a gelatina é o “filme” que cobre a base de plástico, a
gelatina é o meio que suspende os cristais de halogeneto de prata que
reagem à luz. O que quer dizer que todos os filmes registados em película
– da Guerra das Estrelas a O Senhor dos Anéis – foram projetados através
de restos de um matadouro. 
Os conhecedores chamam-lhe “a indústria invisível”. O processo de
transformar noutros produtos partes incomestíveis de animais, ou
“renderização”, é agora um negócio de muitos milhares de milhões. Só na
América do Norte, mais de 30 mil milhões de quilos de “desperdício
animal” são transformados todos os anos em produtos comerciais. Na
década de 1940, havia partes de animais reutilizadas em cerca de 75
produtos comerciais. A lista é hoje incalculavelmente mais comprida:
anticongelantes, cola, balas, agentes impermeáveis, amaciadores de roupa,
detergentes, pastilha elástica, fogo de artifício, gesso, contraplacado, lápis,
tintas, isolantes e linóleo são apenas alguns dos produtos com restos
animais irreconhecíveis. 
As partes de animais também alimentam a indústria de alimentos para
animais. As vendas de comida para animais domésticos estão a disparar
globalmente. É neste momento uma indústria que vale 66 mil milhões de
dólares por ano. Mas ninguém pergunta de que animais vem essa “carne”.
Além dos restos dos matadouros, ou seja, as partes que nós não gostamos
de comer, como os olhos, as patas ou os miolos, sabe-se que outras formas
de “carnes-misteriosas” encontraram o seu caminho para chegar à
alimentação dos nossos bichos. Investigadores na universidade Chapman,
na Califórnia, examinaram o ADN de 52 alimentos para animais e
descobriram que 16 continham carne de uma espécie que não estava
mencionada no rótulo. Segundo um artigo da revista Modern Farmer, a
indústria dos alimentos para animais tem um segredo sujo. Foram
apanhados produtores a comprar carne de “unidades de ‘renderização” que
se sabe que aceitam animais eutanasiados. Outros relatos dão conta da
utilização de animais mortos na estrada, de gordura utilizada em frituras
de restaurante, de carne estragada de supermercados e de restos de animais
doentes de jardins zoológicos. 
Mais de 70 mil milhões de animais são mortos todos os anos num
ambiente industrializado, mas o que é igualmente chocante é o facto de
toda essa aniquilação ser invisível. Depois da Segunda Guerra Mundial e
do Holocausto, podemos ter pensado que os horrores grotescos das
câmaras de gás tinham tido um fim, mas para os animais o método foi
reintroduzido nas décadas de 1980 e 90 e as câmaras de gás são hoje
amplamente usadas. O CAS, ou atordoamento atmosférico controlado, é
considerado um método humano para insensibilizar porcos e aves antes de
serem abatidos. Mas nas próprias câmaras de gás acontece um sofrimento
incrível. Os animais resfolegam, guincham, têm convulsões e tentam
escapar, à medida que o nível de CO2 vai aumentando. Nos sistemas de
atordoamento elétrico para aves, algumas emergem da água ainda
conscientes e, como a velocidade das linhas de produção é cada vez maior,
animais que não são devidamente presos pelos trabalhadores às vezes
escapam à lâmina automática que é suposta matá-los. Por causa disso, só
nos Estados Unidos, entre 700 mil a um milhão de aves ainda estão
conscientes quando são cozidas até à morte no processo de escaldagem. 
A civilização e uma sociedade educada fizeram-nos crescer na crença de
que estamos acima da barbárie dos animais. Mas dificilmente é assim. Os
nossos métodos clínicos de matar permitiram-nos simplesmente fazer de
conta que não vimos os horrores da produção alimentar. Como escreveu o
autor inglês George Monbiot: “Que loucura dos nossos tempos irá revoltar
os nossos descendentes? Há muitas por onde escolher. Mas creio que uma
delas será a prisão em massa de animais para nos permitir comer a sua
carne ou ovos ou beber o seu leite. Ainda que nos consideremos amantes
dos animais, e esbanjemos mimos nos nossos cães e gatos, infligimos
sofrimentos brutais a milhares de milhões de animais que também são
capazes de sentir sofrimento. A hipocrisia é de uma tal dimensão que
gerações futuras ficarão espantadas por não a termos conseguido ver.” 

63
Depois de examinar 30 livros de receitas de chefes destacados, Ike Sharpless publicou um estudo
intitulado “Making the Animals on the Plate Visible: Anglophone Celebrity Chef Cookbooks Ranked
by Sentient Animal Deaths”. Postos por ordem, verificou-se que o pior infrator era Batali’s Molto
Gusto: Easy Italian Cooking, com uma média de 5,25 mortes por receita e um total de 620 mortes de
animais.

64
O espaço extra na Europa significa, contudo, que os animais estão ligeiramente mais livres para se
mexerem. Com aves que não estão tão doentes ou sujas, há menos necessidade de descontaminação
química. O mesmo é verdade para a diferença nos ovos. Nos supermercados norte-americanos, os
ovos são sempre vendidos refrigerados, enquanto na Europa se encontram à temperatura ambiente.
Isso é porque as condições de postura de ovos nos Estados Unidos são mais sujas e, por isso, os ovos
têm de ser pulverizados com um desinfetante químico. A partir do momento em que são lavados em
água quente, têm de ser mantidos num ambiente refrigerado. 

65“A
palavra ‘lixo’ não é empregue por acaso. Misturado com os cereais pode estar um sortido de
lixo, incluindo vidro moído de lâmpadas, seringas utilizadas e os testículos moídos dos seus animais
jovens. Numa herdade agrícola, há muito pouco desperdiçado.” – Paul Solotaroff, “In the Belly of the
Beast”, Rolling Stone, 10 de dezembro de 2013.

66
Segundo a FAO, das Nações Unidas, 25 por cento da terra do planeta encontra-se degradada, mas
em áreas como a África subsariana, América do Sul, Ásia do Sueste e Europa do Norte os problemas
com a qualidade do solo afetam a utilização de mais de metade da terra. 

67
Na Amazónia desflorestada, 80 por cento da soja cultivada vai para alimentar animais. A terra
desmatada é também usada para pasto de gado bovino. Animais exóticos como jaguares, preguiças e
tamanduás estão a desaparecer da região, onde entre 2011 e 2015 foram eliminados 700 mil hectares
de floresta. Por cada hambúrguer ou asinha de frango há a perda correspondente de animais
selvagens que habitavam áreas ecologicamente ricas como o Congo, a floresta amazónica ou os
Himalaias. Uma vez estabelecida a relação, ela torna-se evidente. Para criar o que não é natural,
estamos a destruir o natural. 

68
Os preços variam. No mínimo, o esperma de boi pode ser vendido por entre cinco a 15 dólares por
amostra; no máximo, com touros Wagyu, o preço por amostra pode atingir os dois mil. 

69
Touros famosos até merecem obituários. 1 de novembro de 1990 – 24 de outubro de 2005.
Internacionalmente respeitado, o 71HO1181 Comestar Leader EX EXTRA era considerado o
verdadeiro touro de lacticínios. Deixou nas filhas, dos pés à cabeça, a marca dos lacticínios,
produzindo grandes produtoras de leite, vencedoras de prémios e uma descendência altamente
classificada, fazendo produtores satisfeitos em todo o mundo. “Em termos de produção de lacticínios
este touro foi responsável por uma força tremenda, com grande textura de úberes e qualidade óssea”,
observou Lowell Linsay, Analista de Descendência da Semex. “Era semelhante às três irmãs em
largura de peito, grandes patas e pernas e, como as irmãs, passou às filhas essas caraterísticas.” O
impacto do líder na indústria far-se-á sentir durante gerações, já que só no Canadá tinha 20 mil filhas
referenciadas. É só por si, seguramente, uma estatística impressionante, mas juntem a isso o facto de
67 por cento dessas filhas terem a classificação GP ou superior (270 EX e 3.411 VG) e é fácil ver
porque é que o Leader continuará a ser lembrado em qualquer parte do mundo em que haja apreço
pelas vacas leiteiras. 

70
“A nossa maneira de trabalhar com este problema tem sido favorecer, com cuidado, um caminho
intermédio. Qualquer semente recolhida do rebanho é analisada pelo seu aspeto e cheiro. Qualquer
desvio de cor, composição ou cheiro é interpretado como anormal e a amostra é rejeitada.” 

71
A elevada taxa de nascimento nos porcos está a levar a uma crescente taxa de mortalidade nas
mães, porque o número de partos está “relacionado com um aumento perturbante de prolapsos – o
colapso do reto, vagina ou útero do animal”. 

72
“Em algumas regiões, a grande maioria da alimentação dos rios de alta montanha provém da chuva
e do degelo de neve, não dos glaciares que derretem.” No entanto, algumas regiões estão dependentes
do degelo de glaciares.

73
Uma destas é a anchoveta, uma espécie de anchova que desde há milhares de anos tem alimentado
os peruanos.

74
No Iowa, por exemplo, o gado é vendido por “unidades animais”, não por contagem de cabeças, e
é medido por peso de acordo com o equivalente do gado de tamanho padrão. Sendo assim, considera-
se que um porco representa 0,4 de uma unidade animal. 

Ouro Negro 
O obscuro, acabamos por o vislumbrar.
Mais difícil é ver o que é claro como água. 
EDWARD R. MURROW 

Estava tudo a correr de acordo com os planos até que apareceram os


pandas bebé. Como de costume, os operadores da Rede Nacional de
Eletricidade tinham os seus olhos treinados fixos nos monitores de
televisão, mas desta vez o aguardado pico não aconteceu. Estavam à
espera de um fenómeno conhecido como “pico de TV”. No Reino Unido,
acontece quando audiências imensas assistem a acontecimentos
desportivos como o Campeonato do Mundo de futebol ou ao último
episódio de séries populares como EastEnders. Quando o programa acaba,
os britânicos têm o hábito de se levantarem todos ao mesmo tempo para
aproveitar o intervalo para a publicidade e preparar um chá. Nos
bastidores, esta tarefa aparentemente inócua desencadeia uma cascata de
acontecimentos. Quando milhões de chaleiras elétricas são ligadas ao
mesmo tempo, a súbita procura de eletricidade reflete-se numa imensa
corrente através da rede. 
Quando é necessária uma potência súbita maciça que ultrapassa a
capacidade de base da rede nacional, os seus operadores têm de recorrer a
uma fonte adicional de potência que está pronta a ser acionada de forma
imediata. Mas no máximo da capacidade não é possível simplesmente
“ligar” uma fonte energética adicional, porque elas são lentas. Se pensa
que ligar o computador demora uma eternidade, então imagine geradores
movidos a combustível fóssil que levam cerca de meia hora a estar
operacionais ou centrais nucleares que ainda demoram mais. Só que,
durante uma pausa para anúncios e para a corrida nacional à chaleira não
há tempo para esta espera; tudo tem de acontecer imediatamente. Por isso,
os engenheiros recorrem a reservatórios. Isto é, quando a procura de
eletricidade é habitualmente baixa, eles bombeiam água para um
reservatório num ponto elevado. Depois, quando a procura conhece um
pico, deixam a água correr para baixo e, no percurso, é acionada uma
turbina hidroelétrica. 
Nesta ocasião específica, tinha começado a passar o genérico final de
The Great British Bake Off, um programa muito popular, e o centro de
controlo da rede estava em estado de alerta, pronto como de costume para
o intervalo de publicidade. Só não tinham previsto o que a BBC
programara a seguir: um documentário sobre a natureza com pandas bebé.
Por causa disso, ninguém foi fazer chá, porque ninguém se levantou.
Segundo um representante da rede nacional, “não houve qualquer aumento
de consumo”. A migração em massa para a cozinha para preparar uma
chávena de chá simplesmente não aconteceu, porque as pessoas ficaram
coladas aos ecrãs de televisão a olhar para os fofinhos animais pretos e
brancos. 
Não costumamos pensar na nossa eletricidade como uma coisa feita na
hora, mas é. É feita no momento em que a solicitamos. Quando
carregamos o telemóvel, como escreve Gretchen Bakke no seu livro The
Grid, a energia que usamos é “tão fresca que, há menos de um minuto, se
vive numa área com turbinas eólicas, ainda era um sopro de pó de carvão
pulverizado a ser atirado para dentro de uma enorme fornalha industrial e
incandescente. Se vive numa zona de rios, então ainda era um jato de água
contido por uma enorme muralha de cimento. Imagine isso. A eletricidade
que está a usar agora era, há cerca de um segundo, uma gota de água”. 
A maior parte de nós nunca pensa na eletricidade, muito menos na rede
elétrica. Em praticamente todos os países é a maior e mais poderosa
máquina que existe, mas ignoramo-la mesmo quando está à nossa frente. 
No final do século XIX e no início do século XX, a relação entre a rede
e as nossas vidas quotidianas era um pouco mais difícil de ignorar. Os
confusos emaranhados de fios pretos das companhias de eletricidade
dominavam os centros das cidades como se fossem teias de aranha
descontroladas. Não havia só as novas linhas de telégrafo e de telefone,
mas existiam também os cabos de eletricidade presos a postes altos, e
todos esses fios não estavam claramente separados. Funcional e
esteticamente, era um pesadelo. Em Londres, fios de 65 instalações
elétricas diferentes estavam pendurados por cima das ruas. O historiador
de tecnologia Thomas Hughes escreveu em Networks of Power: “Os
londrinos que podiam dar-se ao luxo de pagar eletricidade torravam de
manhã o pão com uma variedade, iluminavam os escritórios com outra,
visitavam sócios em edifícios de escritórios próximos que usavam ainda
outro tipo e regressavam a casa caminhando por ruas que eram iluminadas
por mais outro.” 
Nos Estados Unidos, eram emitidas centenas de patentes de dínamos de
tipos diferentes usados para gerar eletricidade de corrente direta, ou DC.
Na década de 1890, só na cidade de Chicago havia 45 companhias de
eletricidade diferentes e cabos de energia dedicados de 100, 110, 220, 500,
600, 1.200 e 2.000 volts. Não é preciso dizer que era uma enorme
confusão.75 
Hoje, pensamos pouco na maneira como nos chega a energia que
podemos acionar com a ponta dos dedos. Damos por garantido que estará
lá quando carregarmos no botão, acionarmos o interruptor ou ligarmos a
ficha à tomada. Esta “normalidade”, como observa Bakke, é um “luxo
cego”. Às vezes, na rua, reparamos numa informação – a foto de um gato
desaparecido, um folheto a anunciar aulas de ioga – presa a um dos postes
na vizinhança, mas é raro olharmos para cima, para a rede de fios que
atravessam a paisagem urbana. 
Reparamos é quando, de repente, ficamos sem energia. 
Depois do sismo de magnitude 9 e do tsunami que atingiram o Japão em
11 de março de 2011, a central nuclear Fukushima Daiichi deixou de
fornecer energia à rede. Quando o sismo aconteceu, 11 dos 54 reatores
japoneses encerraram, deixando o país com um défice energético de dez
milhões de kilowatts. A cidade de Tóquio foi imediatamente colocada sob
dieta energética, com blackouts faseados a racionarem cuidadosamente a
energia despendida. Em algumas áreas, não havia eletricidade durante seis
horas por dia. Sem outra hipótese a não ser adaptarem-se, fábricas
fecharam e restaurantes encerraram, já que não havia energia para
refrigerar ou cozinhar os alimentos, as pessoas ficavam sentadas no escuro
e metade dos comboios deixaram de circular. As caixas de Multibanco
pararam de funcionar, as escadas rolantes e os elevadores só trabalhavam
esporadicamente, era impossível carregar os telemóveis e, sem semáforos,
começaram a dar-se mais acidentes. Até os icónicos anúncios luminosos
no centro de Tóquio ficaram apagados. Em resumo, as coisas não podiam
funcionar como de costume, porque a vida do dia a dia depende tanto da
eletricidade. Como noticiou a NBC News, “uma das sociedades
tecnologicamente mais avançadas do mundo viu-se transformada
instantaneamente numa região com as dificuldades do Terceiro Mundo”.
Sem energia, o Japão caiu simplesmente de joelhos. 
Não são apenas os desastres naturais de grande escala que podem
mandar abaixo a rede. Embora possamos imaginar cenários ameaçadores
em que hackers estrangeiros lançam o caos no nosso abastecimento
elétrico, há uma criatura mais inocente que é responsável por blackouts
mais graves de infraestruturas. Como afirmou John C. Inglis, antigo vice-
diretor da NSA, a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos:
“Acho mais provável a rede elétrica paralisar devido a um desastre natural
do que devido a um ataque cibernético. E, francamente, a ameaça número
um à rede elétrica dos EUA registada até à data são os esquilos.” 
As quebras de energia causadas por esquilos são habitualmente curtas e
limitadas a um único bairro. As árvores são uma ameaça muito maior. Em
2003, o maior blackout na história dos Estados Unidos aconteceu quando
três árvores, cujos ramos tinham crescido demais, derrubaram linhas de
energia em vários pontos da rede, fazendo com que outras linhas tivessem
de suportar o fardo adicional. Como se fosse um dominó elétrico, o
blackout alastrou por 240 mil quilómetros quadrados e, durante dois dias,
50 milhões de pessoas nos Estados Unidos e no Canadá ficaram sem
energia. O resultado foram seis mil milhões de dólares em receitas
perdidas e uma quebra no PIB norte-americano. 
Em resposta a este acontecimento foi criado o Programa de Gestão de
Vegetação das Empresas de Transmissão, que é essencialmente um serviço
regional de desbaste de árvores, para assegurar que árvores e ramos não
interferem com os cabos que transportam eletricidade. Mas para manter
fora do caminho as nada estéticas linhas e torres, elas são erguidas muitas
vezes em terreno acidentado e de difícil acesso, o que torna o desbaste
uma tarefa difícil. Percorrer áreas tão vastas a pé ou de veículo motorizado
é demasiado lento, e é por isso que hoje existe uma profissão
incrivelmente perigosa: a de operador de serra em helicóptero.
Oficialmente conhecidos como “aparadores aéreos”, estes cortadores de
árvores estão equipados com uma serra de 12 metros de comprimento
dotada de dez lâminas circulares que está pendurada verticalmente
debaixo do cockpit. O piloto tem de seguir habilmente um caminho ao
longo das linhas e das torres, aparando as árvores que crescem demasiado
perto. 
Esta solução de alta tecnologia pode solucionar um problema, mas o
desafio muito maior está no fato de a rede estar a envelhecer e a ficar
frágil. Hoje, 70 por cento dos transformadores e linhas de transmissão têm
mais de 25 anos e, por causa das ineficácias da estrutura envelhecida, não
só estão a aumentar as quebras de corrente, como todos os anos sobe o
tempo de reposição do serviço.76 Um cálculo afirma que modernizar e
substituir esta rede integrada nos Estados Unidos custaria mais de cinco
biliões de dólares. 
A mistura de energia que entra na rede é outra fonte de preocupação,
porque a infraestrutura foi originalmente construída para fornecer um
fluxo constante de energia a partir de centrais tradicionais movidas a
petróleo, carvão, gás ou nucleares. Foi projetada como uma forma
centralizada de distribuição de energia. Mas hoje, com a meta de
acrescentar renováveis, é preciso considerar muitas novas formas
descentralizadas de energia e lançá-las na rede. As energias eólica, solar e
geotermal são algumas das renováveis que já nos são familiares, mas hoje
é possível produzir energia a partir de quase tudo – até do queijo. 
 
A Sabóia é uma região pitoresca nos Alpes franceses. Conhecida pelas
suas montanhas boas para esquiar e aldeias acolhedoras no inverno e pelas
deslumbrantes paisagens alpinas no verão, é também afamada pelo queijo
Beaufort. Dois dos produtos derivados do processo de fabrico do queijo
são as natas e o soro de leite. A nata é transformada por exemplo em
manteiga e queijo ricotta enquanto o leite é desnatado para produzir um
preparado proteico para batidos e bebidas energéticas. Mas o líquido que
resta do soro não é deitado fora; é usado para gerar eletricidade. Na cidade
de Albertville, 1.500 pessoas têm as suas casas alimentadas a leite. 
O segredo são microrganismos conhecidos como arqueas, que são
adicionados ao líquido num biodigestor livre de oxigénio, ou anaeróbico.
Aqui, alimentam-se durante quatro dias dos açúcares contidos no líquido
do soro, libertando arrotos microscópicos sob a forma de biogases:
dióxido de carbono e metano. O gás é depois purificado e queimado, de
uma forma muito semelhante ao gás natural, para aquecer água até uma
temperatura de 90 graus Celsius, quase no ponto de ebulição, produzindo
vapor. Este vapor aciona uma turbina, que tem um braço ligado a um
magnete que gira rapidamente dentro de bobinas de fio metálico. O
magnete faz com que os eletrões sejam arrancados aos átomos que
compõem o fio e é esta força magnética que cria fisicamente a
eletricidade. 
Quem não tem um fornecimento de queijo suficiente pode sempre
queimar carvão ou petróleo para produzir o vapor que aciona a turbina. Ou
ferver água usando a desintegração radioativa do urânio-235. (Ou capturar
a energia da água a descer uma montanha, que, como vimos, é como os
britânicos alimentam as suas chaleiras para fazerem todas chá ao mesmo
tempo.) Mas, na maior parte das vezes, o mecanismo subjacente é o
mesmo: produzimos eletricidade fazendo girar uma turbina. 
A nossa civilização é alimentada pelas forças invisíveis da eletricidade e
do magnetismo. Todos a queremos, todos a exigimos, mas a maior parte
de nós nem sequer sabe exatamente o que é. Quando acendemos uma luz –
por exemplo, uma lâmpada de 120 watts na mesa de cabeceira, que faz
passar por ela um ampere de corrente –, o equivalente a seis quintiliões de
eletrões atravessa em cada segundo um único ponto do fio. Mas os
eletrões não chegaram aí vindos diretamente da central de energia. Os
próprios eletrões movem-se lentamente, é a energia que se move
depressa.77 Isso acontece porque os eletrões, enquanto partículas
subatómicas, não correm pelos fios como se estes fossem um cano. O
processo funciona mais como uma onda. Quando ouvimos alguém cantar
à distância, a pressão do som que atinge o nosso tímpano não vem das
moléculas de ar saídas da boca de quem canta. O som é uma onda de
compressão. As moléculas de ar embatem em moléculas de ar adjacentes,
ondulam ao longo do percurso, e o que ouvimos é como se fosse a última
peça a cair de um efeito de dominó molecular, uma reverberação do som
que vem de quem está a cantar. 
A eletricidade é também um efeito ondulante. Ao conduzir pela cidade
ao anoitecer, já viu provavelmente as luzes acenderem-se todas ao mesmo
tempo. Isso é porque a eletricidade não sai do interruptor e vai pela rua
abaixo. Assim que se adiciona um eletrão ao fio numa ponta, um outro
eletrão saltará na outra ponta. Ou seja, à escala atómica, quando o gerador
faz girar o magnete sobre o fio de cobre, arrancando eletrões aos átomos
de cobre, os eletrões agora “sem abrigo” têm de ir para algum lado – e vão
para o átomo disponível seguinte, entrando na sua órbita. Mas quando
fazem isto expulsam o eletrão do átomo vizinho, que por sua vez salta
para o próximo e assim sucessivamente. Mas nem todos os átomos são
acolhedores. Alguns materiais – como a borracha, por exemplo – fecham
as suas portas atómicas a eletrões de fora, fazendo com que os eletrões
tenham mais dificuldade em atravessá-los. A estes materiais chamamos
isolantes. Os metais, por outro lado, têm em geral uma política de portas
abertas. São condutores. Aqui, os eletrões podem mover-se livremente,
tornando rápido e fácil este processo de saltos sucessivos, como se
andassem de porta em porta. 
E é realmente rápido e fácil. O lar canadiano médio usa por mês cerca
de 900 kilowatts-hora para fazer funcionar a máquina de lavar loiça, o
secador, as luzes, a cafeteira de aquecer água, o ar condicionado, o
frigorífico, computadores, televisores e aparelhos eletrónicos. (Por sinal,
trata-se de um dos mais elevados níveis de consumo no mundo, bem
acima dos Estados Unidos.) Mas isso ainda não nos diz muito. O
astrofísico Adam Frank elaborou outro cálculo, determinando quanta
“força de pedal” seria necessária para criar eletricidade para uma casa
comum. Para dar uma ideia da energia que o corpo humano é capaz de
gerar, seriam precisas 50 pessoas a pedalar oito horas por dia durante um
mês para alimentar a casa média. E só uma pessoa? Se pedalasse durante
oito horas por dia, a pessoa média conseguia gerar energia suficiente para
acender uma única lâmpada. 
Se somos muito bons a gerar eletricidade, uma coisa em que não temos
sido bons, pelo menos até há pouco tempo, é a armazená-la. Por isso, da
próxima vez que carregar o telemóvel, lembre-se de agradecer ao peixe
torpedo. Ele é a razão pela qual o seu telefone, ou qualquer um dos seus
gadgets eletrónicos, possui uma bateria. O invulgar peixe, capaz de
atordoar a presa com um choque de 200 volts, fascinou um físico italiano
chamado Alessandro Volta, que nos anos de 1790 se propôs gerar
eletricidade artificial de forma a imitar as suas capacidades. Volta reparara
que o peixe tinha no dorso um órgão com um padrão específico de
câmaras: eram 400 a 500 colunas, todas cheias com uma pilha de 400
discos de geleia, as eletroplacas. 
Um experimentador por excelência, Volta combinou esta observação
com uma coisa de que se apercebera por acaso: o sabor das moedas
metálicas. Descobrira que, se colocasse na língua moedas feitas de metais
diferentes e pusesse uma colher de prata no topo dessa pilha, sentia um
trepidar de eletricidade; era fraco, mas inconfundível. Pôs-se a pensar se,
empilhando mais destes metais, como o peixe torpedo fizera naturalmente,
não seria capaz de gerar mais deste estranho poder. 
A sua invenção tornou-se conhecida como a “pilha”, porque era
exatamente isso: uma pilha de dois metais diferentes, cobre e zinco,
colocados um sobre o outro como panquecas e com um pano ensopado em
água salgada entre cada disco. Ligando um fio ao topo e ao fim da pilha e
colocando outra vez na língua as duas extremidades, Volta descobriu que
passava uma corrente constante, e agora mais forte. Tinha inventado a
primeira bateria do mundo. 
As baterias estão hoje por toda a parte; usamo-las para alimentar os
nossos aparelhos eletrónicos, assim chamados por serem máquinas que
funcionam à base de eletrões. E embora todos os dias nos lembremos de
os carregar (a simples ideia de um telemóvel sem bateria causa angústia),
poucos pensam em como esta energia funciona. 
As baterias de lítio-ião para os nossos aparelhos eletrónicos, ou as de
zinco-carbono, níquel-cádmio ou chumbo-ácida funcionam basicamente
todas da mesma maneira. Uma bateria necessita de dois metais diferentes,
um que gosta de “dar” eletrões e outro que gosta de “receber” eletrões, o
que dá às partículas subatómicas uma direção para se moverem entre o
dador e o recetor. E embora sejam comuns as baterias que cabem no bolso,
a grande demanda, hoje, é criar baterias imensas, do tamanho de edifícios,
capazes de armazenarem quantidades de energia muito maiores, para,
quando for necessário, fornecerem à rede elétrica um acréscimo de
energia. 
Como sucede na Grã-Bretanha quando todos se levantam do sofá
durante o intervalo para publicidade para ir beber um chá, há períodos
previsíveis na vida das cidades em que a procura de energia sobe. Por
exemplo, em tardes quentes de verão em Los Angeles, toda a cidade tem o
ar condicionado ligado, mas ainda é preciso que haja energia disponível
para quando todos regressarem a casa do trabalho, ligarem as televisões e
começarem a fazer o jantar e a usar outros aparelhos. Nem todas as
cidades têm um reservatório capaz de criar uma cascata de água artificial
capaz de gerar energia. Em Los Angeles, a cidade prepara-se para os
momentos de grande procura de energia recorrendo a uma central de
combustão de gás. A instalação de combustível fóssil data dos anos de
1950 e é velha e ineficaz. Por isso, Los Angeles está a mudar e já por volta
do ano 2020 planeia ter a maior bateria de armazenamento do mundo: um
edifício cheio com 18 mil conjuntos de baterias de lítio que podem ser
ligadas em minutos, e não em horas, e fornecer à cidade um acréscimo de
energia durante quatro horas, Na Austrália, a grande bateria Tesla de Elon
Musk já está operacional. Teve o seu primeiro grande teste em dezembro
de 2017, quando a mil quilómetros de distância uma unidade a carvão teve
uma falha e provocou uma quebra de abastecimento. A bateria entrou em
funcionamento no espaço de milissegundos e lançou para a rede 7,3
megawatts, muito mais depressa do que seria capaz um gerador a carvão
mais próximo. 
Enquanto as baterias de antigamente eram grandes e pesadas, demasiado
até para serem instaladas em automóveis, as de hoje são pequenas e leves.
Trazemos iluminação nos bolsos e fomos capazes de miniaturizar os
nossos telemóveis e outros gadgets, ao mesmo tempo que os fabricamos
mais potentes, graças a um novo tipo de bateria alimentada por um metal
chamado lítio. 
O lítio é o metal mais leve da Terra. Foi descoberto por Sorano de
Efeso, um médico grego do século II d.C., que tratava doentes com
problemas mentais nas águas alcalinas da cidade. Ainda hoje, o mesmo
lítio com que alimentamos os automóveis elétricos é usado como
tratamento para a depressão e a desordem bipolar. Os cientistas sabem que
o elemento afeta os níveis de serotonina no cérebro, mas ainda não têm
exatamente a certeza de como isso acontece. 
Um dos maiores depósitos de lítio está escondido debaixo do maior
espelho natural da Terra. O Salar de Uyuni, na Bolívia, o maior lago de sal
do mundo, tem dez mil quilómetros quadrados e envia para o céu um
reflexo incrível quando o sal se encontra coberto por uma fina camada de
água. O espelho é tão grande que pode ser visto do espaço. Quanto ao
lítio, vulcões antigos depositaram o metal em lagos pré-históricos que se
evaporaram, deixando cerca de cinco metros abaixo da superfície a fina
camada de sal, com um depósito de salmoura verde azulada que contém o
“ouro cinzento”. O Serviço Geológico dos Estados Unidos calcula que o
Salar contenha 5,4 milhões de toneladas de lítio, enquanto o governo
boliviano argumenta que será muito mais, uns 100 milhões de toneladas –
ou 70 por cento das reservas mundiais. Mas, por causa da história da
Bolívia, com intervenções de governos estrangeiros e o saque da prata e
do cobre, os bolivianos mostram-se protetores deste seu recurso natural. O
seu objetivo é explorarem as suas próprias minas de lítio, em vez de
abrirem a porta às grandes empresas mineiras. 
A exploração de lítio na Bolívia tem por isso sido lenta a arrancar. O
lítio do seu telemóvel é com toda a probabilidade da Austrália, Chile,
Argentina ou China78, países que têm estado a trabalhar estrategicamente
para dominar o mercado. Os Estados Unidos também produzem lítio, em
depósitos no Nevada. Por cada litro de salmoura, encontra-se um grama
do metal. Para termos uma ideia mais aproximada do que isto representa,
digamos que uma bateria de telemóvel tem entre cinco a sete gramas de
carbonato de lítio – ou lítio em pó –, mas que uma bateria de automóvel
exige até 30 quilos. Para automóveis elétricos topo de gama como o
Modelo S sedan da Tesla, são necessários 63 quilos de carbonato de lítio,
ou o equivalente à quantidade necessária para dez mil telemóveis. 
 
Em 1905, um homem de 26 anos chamado Albert Einstein publicou a lei
do efeito fotoelétrico, mostrando basicamente como é que a luz pode criar
eletricidade. Duas décadas antes, fora observado que alguns elementos,
como o selénio, eram capazes de gerar corrente elétrica quando expostos à
luz, mas ninguém sabia como ou porquê. 
A teoria aceite era a de que a luz era uma onda. E, se assim fosse, então
um aumento da intensidade da luz deveria produzir mais eletricidade. Mas
não foi o que aconteceu. Até a luz fraca podia libertar eletrões da sua
órbita. O génio e a visão de Einstein estiveram em apontar que a luz não
era somente uma onda; era também uma partícula. E se houvesse uma
frequência suficientemente alta destas partículas, ou fotões, mais do que
intensidade, elas eram capazes de fazer saltar um eletrão da órbita de um
átomo e lançá-lo no espaço. Ora, em qualquer instante há uma imensidão
de fotões a embater na Terra. Para terem uma ideia de quantos, pensem
que, num dia limpo, um metro quadrado da superfície do planeta recebe
cerca de mil watts de energia solar. Agora, pensem que a área da Terra é
superior a 500 biliões de metros quadrados. Há bastante energia solar para
aproveitar. 
Os painéis solares que hoje usamos são um resultado direto da
descoberta de Einstein, que lhe valeu o Prémio Nobel. As células
fotovoltaicas usam partículas de luz para libertar eletrões de átomos e criar
uma corrente elétrica. Mas, aqui, os eletrões não saltam para as suas
imediações, são mantidos no interior do material semicondutor. A corrente
pode então ser usada como energia. À medida que as unidades solares
aumentam em eficácia e diminuem de preço, tornam-se, com as baterias
de lítio para armazenar energia, a nossa maior esperança para que a
humanidade faça a transição para a energia não poluente. 
A procura de energia solar está a subir em flecha e em todo o mundo o
número de instalações cresceu 50 por cento. Embora isto seja muito
prometedor, a energia solar, para já, ainda só abastece a rede com uma
quantidade minúscula de energia. Segundo o jornal The Guardian, até na
Europa, onde a energia solar tem um peso maior, fornece apenas 4 por
cento da eletricidade. O problema é que não podemos contar que o Sol
esteja a brilhar quando nos levantamos todos para ir ligar as chaleiras. A
verdade é que, em geral, o Sol brilha quando menos precisamos dele. Em
especial em climas de países no Norte, e no inverno, a maior procura
acontece quando está escuro. Até termos baterias capazes de acumular a
energia da luz do Sol – e até que os governos modernizem a rede (que foi
concebida como um sistema unidirecional, das centrais de energia para as
casas) para fazerem dela um sistema descentralizado que funciona
igualmente bem com instalações solares domésticas que alimentam a rede,
a maior parte dessa energia solar limpa continuará a ser refletida de volta
para o espaço.79 
Uma forma diferente de colher a energia do Sol é explorar o vento, que
é uma coisa que fazemos desde o século I d.C. A Holanda, por exemplo, é
famosa pela sua tecnologia de moinhos, e por volta de 1850 eram mais de
dez mil os que salpicavam a paisagem dos Países Baixos. Quando o Sol
aquece a superfície terrestre, gera ar quente, que sobe e deixa uma área de
baixa pressão. O número de equilibrismo da natureza faz com que outras
moléculas de ar venham a correr de áreas mais frias, de alta pressão,
ocupar esse espaço. Esta interação rodopiante é a força invisível do vento.
Os moinhos colhem esta energia quando ela passa por eles – e a moderna
turbina eólica consegue transformá-la em eletricidade. 
Mas o vento é um animal caprichoso. Aparece quando quer e não sopra
de maneira constante. Às vezes, nem sopra. A rede elétrica, por outro
lado, necessita de uma alimentação permanente e de um equilíbrio perfeito
entre input e output. Nem demasiado, nem demasiado pouco. Isto causa
problemas óbvios. Se as turbinas eólicas não girarem, não há energia. E
quando há uma coisa boa em excesso, então o problema ainda é maior. Se
o vento decide soprar com toda a força, as coisas podem descontrolar-se.
Gretchen Bakke escreveu: “Não é de todo possível baixar a intensidade do
vento. Quando sopra com força […] é possível ver isso nos picos de
energia – bang, bang, bang – dos parques eólicos, a lançarem eletricidade
no sistema, uns atrás dos outros. Inunda a rede; entra pela infraestrutura
dentro como se fosse uma onda a bater num paredão num dia de
tempestade. Nem Los Angeles é capaz de absorver toda a energia
produzida num dia de grande vento no noroeste do Pacífico […] Quando
há demasiada potência nos cabos, eles entram em overload, ou então são
os circuitos que entram em falência para os proteger, e quando fazem isso
fecham, em vez de abrir, as rotas disponíveis para a potência em
excesso.” 
Quando isto sucede, pode dar-se um blackout. 
É um spot muito procurado e por isso é preciso passar por imensos
turistas com selfie sticks até encontrar um local onde seja possível sentar-
se e descansar. Todos os anos, centenas de milhares de turistas viajam até
à costa sudoeste da Islândia para tomar banho sob o sol-da-meia-noite,
beber cocktails e relaxar na mais famosa atração nacional. A paisagem é
espetacular. Incrustadas entre planícies de lava, as águas de uma cor azul
cião lançam vapor para o ar frio e diz-se mesmo que há propriedades
curativas na mistura de sílica, algas e minerais que se encontram na água.
Mas o que surpreende muitos é que a Lagoa Azul não é uma fonte natural.
A experiência parecerá menos mística, mas a verdade é que se trata de
uma atração feita pelo homem e alimentada pela água proveniente da
central de energia geotérmica de Svartsengi, ali mesmo ao lado. 
Dois quilómetros abaixo da superfície, 30 furos trazem para a superfície
água superaquecida que tem estado depositada perto de magma. O solo
vulcânico do país é o que tem permitido à Islândia ter acesso ao poderoso
calor do núcleo da Terra. O vapor aciona turbinas que geram eletricidade e
fornecem água quente para 21 mil casas vizinhas. Hoje, cinco grandes
centrais geotérmicas, em conjunto com a energia hidráulica, fazem da
Islândia um dos poucos países do mundo que usa fontes renováveis para
produzir 100 por cento da sua eletricidade. E ainda que a indústria esteja
em expansão – há 40 países em território geotermicamente rico –, o custo
de fazer perfurações em direção ao núcleo derretido do planeta e a
dependência da localização fazem com que menos de 1 por cento da
eletricidade produzida no mundo provenha de energia geotérmica. Mesmo
assim, à medida que a tecnologia progride, é possível que venha a ter um
papel maior. O Conselho Energético Mundial calcula que o número pode,
no futuro, subir para 8 por cento. 
 
O tremendo poder das quedas de água é outra alternativa aos
combustíveis fósseis.80 Na verdade, nos primórdios da rede esteve uma
central energética situada na “capital mundial das luas de mel”, as
Cataratas do Niagara. A beleza torrencial da natureza é aqui colhida desde
1896, quando pela primeira vez foi usado o poder da água para fazer girar
turbinas gigantes geradoras de eletricidade. Niagara foi o primeiro lugar a
usar a energia de corrente alternada (AC) de Nikola Tesla. Ao inventar
aquilo que é conhecido como “corrente alternada polifásica”, Tesla
conseguiu usar sequências temporizadas de corrente elétrica para criar um
campo magnético rotativo capaz de fazer girar um motor. Este novo tipo
de energia significava que era possível enviar corrente através de fios
para, na outra extremidade, movimentar um objeto através de magnetismo.
A invenção era brilhante e, para os que a viram pela primeira vez, deve ter
parecido mágica. Em pouco tempo, as barulhentas quedas de água levaram
eletricidade à cidade de Buffalo, 32 quilómetros ao sul, e ao fim de poucos
anos as Cataratas do Niagara faziam brilhar as luzes de Nova Iorque.81 
A invenção de Tesla ainda é considerada uma das maiores de todos os
tempos. Na inauguração da Niagara Falls Power Company, ele declarou: 
 
“Temos muitos monumentos de idades passadas; temos os palácios e as pirâmides, os
templos dos gregos e as catedrais da cristandade. Neles estão patentes o poder dos homens, a
grandeza das nações, o amor à arte e a devoção religiosa. Mas o monumento em Niagara tem
qualquer coisa de próprio, mais de acordo com os nossos pensamentos e tendências atuais. É
um monumento digno da nossa era científica, um verdadeiro monumento de sabedoria e de
paz. Representa a subjugação das forças naturais ao serviço do homem, o abandonar de
métodos bárbaros, o alívio da necessidade e do desconforto para milhões.” 
 
Embora Tesla fosse seguramente um visionário, havia coisas que ele não
podia antecipar. No caso da hidroeletricidade, nem todas as paisagens são
abençoadas por quedas de água espetaculares, e por isso elas têm de ser
artificialmente construídas com barragens, que bloqueiam vias cruciais
para animais marinhos que chamam aos rios a sua casa. 
Um dos maiores projetos de construção jamais realizados na Terra foi a
Barragem das Três Gargantas, na China. Construída ao longo do rio
Iangtsé, a barragem não só obrigou a deslocar 1,3 milhões de pessoas,
para abrir espaço para o reservatório de 660 quilómetros, mas teve
também um impacto devastador sobre os peixes. Em tempos, um terço de
todas as espécies de peixe do país viviam na bacia do rio, mas depois da
construção da barragem quatro espécies de carpas registaram um declínio
de 50 a 70 por cento e várias outras espécies animais foram ameaçadas de
extinção, incluindo o golfinho do rio Iangtsé, o baiji, que está agora
funcionalmente extinto. 
Em ecossistemas sensíveis, como a Amazónia e as bacias do rio
Mekong, persistem as mesmas ameaças. E em países como o Canadá,
barragens hidroelétricas impedem que os salmões subam as correntes dos
rios para se reproduzirem. Para contornar isto, empresas hidroelétricas
construíram estruturas que vão do bizarro ao não natural. Escadas para
peixes, que são basicamente piscinas em escada que sobem a barragem,
permitem que os peixes vão fazendo aos saltos o seu caminho corrente
acima, mas durante essa tentativa muitos deles, até 11 por cento, ainda são
apanhados pelas lâminas das turbinas. A água supersaturada –
essencialmente bolhas de ar – é outro problema para os peixes. Quando a
água gira e rodopia por baixo da barragem, gases de azoto concentram-se
em bolhas, e este gás dissolvido concentra-se na água, onde acaba por ser
absorvido pelos peixes. Assim, quando eles respiram, os gases entram na
sua corrente sanguínea. O mal provocado pelas bolhas de gás pode
desorientar os peixes, mas o que é mais grave é que se eles atravessarem
várias barragens e as concentrações atingirem níveis tóxicos, isso mata-os
com frequência. 
Estão agora a ser estudados, como uma hipótese de passagem por cima
das barragens, os chamados “canhões de peixe”. No essencial, como se se
tratasse de um tubo pneumático gigante, uma bomba de vácuo na base da
barragem suga os peixes e puxa-os mais de 30 metros, a 35 quilómetros
por hora, até eles atingirem o topo. O sistema parece absurdo, mas é
menos traumatizante para os peixes do que serem capturados com uma
rede e depois transportados em camião ou helicóptero, que é como alguns
serviços de proteção da natureza levam hoje os animais para os locais de
procriação. 
Mas construir barragens ou desviar um rio não afeta apenas os peixes;
também tem impacto nas pessoas. Países vizinhos e múltiplas
comunidades têm reivindicações sobre os rios, mas estes não respeitam
fronteiras humanas. Por disso, quando aqueles que vivem mais próximos
da nascente alteram o curso de um rio, estão a interferir com uma artéria
crítica tanto de alimentos como de água. 
 
Somos a espécie mais poderosa sobre a Terra porque engendrámos
formas extraordinárias para controlar energia. Uma das mais controversas
provém de uma fonte que é invisível. Pegamos nas mais pequenas
unidades de matéria comum – os átomos – e dividimo-los em partículas
ainda mais pequenas para criar energia nuclear. Para o fazer, usamos um
elemento que se cinde com facilidade: o urânio, em especial o isótopo
urânio-235. Quando o urânio é bombardeado com neutrões, os seus
átomos dividem-se e uma reação em cadeia destes átomos em divisão gera
uma tremenda quantidade de calor. É uma forma high-tech de gerar calor
mas, para lá disso, uma central de energia nuclear funciona muito como a
maior parte das centrais a carvão ou a gás ou até como aquela central na
Sabóia que usa queijo. Como se fosse uma chaleira, utiliza o calor para
ferver a água e criar vapor, e este vapor faz girar turbinas que geram
eletricidade.  
No entanto, como todas as formas de produção de energia, o nuclear
pode ter associados alguns problemas bastante intrincados. O mais temido
de todos é uma fusão. 
Quando o sismo de Tohoku atingiu o Japão, em 2011, provocou um
enorme tsunami. As ondas eram tão grandes e fortes que mesmo depois de
terem viajado 17 mil quilómetros tinham dois metros de altura ao
chegarem à costa do Chile. Muito mais perto do epicentro, a somente 160
quilómetros, estava a central de energia de Fukushima Daiichi, que, apesar
de ter sido construída para resistir a um sismo e a um tsunami de 5,7
metros, se revelou incapaz de suportar as ondas selvagens com 15 metros
de altura. Quando a água se abateu sobre as paredes, foram destruídos os
tanques de combustível para os geradores que se encontravam no nível
zero. Sem energia, as bombas construídas para fazer circular a água de
arrefecimento pararam, provocando o sobreaquecimento dos três reatores,
que levou à fusão. 
As varetas de combustível de urânio do Reator 3 só foram encontradas
ao fim de seis anos. No centro da zona de desastre, os níveis de radiação
atingiram, em alguns pontos, máximos de 650 sieverts por hora – o que
significa que uma pessoa que aí fosse apanhada morreria no espaço de um
minuto. Em vez de pessoas, foram enviados robôs para procurar as varetas
de combustível – e mesmo assim houve vários robôs que morreram
durante a missão. Acabou por ser um robô pequeno, do tamanho de uma
caixa de sapatos, o Little Sunfish, que conseguiu nadar pelo labirinto
inundado do reator e localizar o urânio que tinha derretido através do
chão. 
Onze por cento da eletricidade em todo o mundo provém de energia
nuclear. E embora seja uma fonte energética com má reputação, deve
sublinhar-se que é em geral segura. O problema são esses raros “atos de
Deus” ou acontecimentos imprevistos em que as coisas escapam ao
controlo. Aí, as coisas correm horrivelmente mal. No Japão, 97 mil
pessoas ainda não conseguiram regressar às suas casas e algumas,
provavelmente, nunca voltarão. Calcula-se que limpar a confusão de
Fukushima vai custar uns 188 mil milhões de dólares e o local continuará
contaminado pelo menos durante os próximos 30 a 40 anos. 
 
Num mundo completamente justo, as companhias petrolíferas haviam
de nos pagar para usarmos gasolina. A gasolina é um subproduto tóxico
do processo de destilação de petróleo crude. Algumas das outras coisas
que saem de um barril de crude são: tinta, lápis, pastilha elástica, líquidos
para lavar a loiça, desodorizante, óculos, discos, pneus, amoníaco e
válvulas cardíacas. E também alcatrão, óleos lubrificantes, parafina, óleo
de aquecimento, asfalto e outros ingredientes de produtos industriais, em
especial os constituintes petroquímicos dos plásticos. O diesel é o
combustível para grandes camiões, comboios e máquinas pesadas e tem
uma utilização óbvia – é difícil, sem ele, pôr aviões no ar. A gasolina é um
subproduto do querosene, que no século XIX substituiu o óleo de baleia
como combustível para as lâmpadas de iluminação. As companhias
petrolíferas limitavam-se a despejá-la nos rios mais próximos até
encontrarem uma maneira de a venderem. Isto é, até encontrarem uma
maneira de nós pagarmos por ela. (Se isto vos parece uma insanidade,
pensem que as companhias petrolíferas ainda queimam gás natural à boca
do poço – o mesmo gás natural que usamos para aquecer a casa.) 
Hoje, é impossível imaginar a vida sem gasolina, como pode comprovar
qualquer pessoa que tenha já sido acordada ao domingo de manhã pelo
ronco do soprador de folhas do vizinho do lado. De uma certa perspetiva,
as nossas frotas de automóveis e motocicletas, os nossos jet ski e barcos
de pesca, cortadores de relva e serras não passam de aparelhos caros para
queimar o desperdício tóxico de alguém. Mas de outra perspetiva são
sinónimos de boa vida. Em especial os automóveis. 
No mundo em que vivemos, a gasolina acelera e facilita muitas tarefas.
Isso acontece porque é um conjunto incrivelmente denso de energia. Em
The Upside of Down, Thomas Homer-Dixon calculou o valor calorífico do
crude e determinou que é aproximadamente de 12 mil watt/hora por
quilograma. “Três grandes colheres de petróleo contêm sensivelmente a
mesma quantidade de energia do que oito horas de trabalho manual
humano, e quando enchemos os nossos depósitos estamos a despejar cerca
de dois anos de trabalho manual humano”, escreveu. 
O próprio petróleo, então, é energia no sentido mais verdadeiro da
palavra, e quando se percebe a quantidade de trabalho de que nos liberta é
fácil ver porque é que nos tornámos tão viciados nele. Todos os dias o
mundo usa mais de 90 milhões de barris de petróleo.82 E cada litro dessa
substância antiga tem um poder incrível. Enquanto os humanos
costumavam depender da força dos seus músculos ou da potência dos
animais domesticados para trabalhar os campos, as máquinas alimentadas
a petróleo são hoje capazes de fazer por nós a maior parte desse trabalho.
Ao contrário da energia verde, é altamente portátil, e é por isso que
quando pensamos em petróleo pensamos em automóveis e não em
geradores. Mas nada é mais fácil do que gerar eletricidade a partir de
petróleo, caso se tenha dinheiro para isso, como a Arábia Saudita tem. 
Claro que a gasolina e o diesel não libertaram do trabalho físico apenas
humanos, mas também grandes números de bois e cavalos. A “carruagem
sem cavalos”, também conhecida como automóvel, ganhou especial
importância por causa da capacidade dos motores de combustão interna
para transmutarem em movimento esta energia pré-histórica. O motor de
um carro funciona através da ignição do combustível numa série de
explosões rápidas. Se está num parque de estacionamento com o motor a
trabalhar – digamos que tem um motor de quatro cilindros a quatro
tempos que está a 750 rotações por minuto –, isso significa que há 1.500
faíscas de combustão por minuto. Quando há ignição do combustível, a
força de explosão faz com que um pistão se mova para cima e para baixo,
transformando energia química em energia mecânica para fazer mover o
carro. Ainda hoje temos qualquer coisa que nos recorda como era a vida
antes do advento do motor alimentado a gasolina. O termo horsepower
[cavalo-vapor em português, embora a medida seja ligeiramente diferente]
dá-nos uma ideia de quanta energia equivalente à dos cavalos é produzida
pelos nossos motores. 
A aceleração da utilização de petróleo e o progresso tecnológico rápido
que conduziu a um correspondente aumento de potência foram
promovidos pelos militares. Na Primeira Guerra Mundial, a divisão média
norte-americana usava 4 mil horsepower (hp). Na Segunda Guerra
Mundial, a divisão média usava cem vezes mais gasolina, ou 187 mil hp.
Ainda hoje, os militares são os maiores utilizadores de petróleo. Só os dos
Estados Unidos consomem todos os anos cem milhões de barris de
petróleo.83 
A energia que provém do petróleo não é, então, apenas poder mecânico,
mas também poder do estado. Não é uma coincidência que as
superpotências do planeta sejam as nações que têm acesso e usam a maior
parte do petróleo. A falta de acesso ao petróleo representa falta de poder,
uma lição aprendida desde há muito. Durante a Primeira Guerra Mundial,
tornou-se evidente para Winston Churchill que o petróleo tinha um papel
crucial na estratégia ofensiva. Era possível paralisar um exército cortando-
lhe os abastecimentos de combustível, porque um país sem petróleo não
teria uma fonte de energia para movimentar os seus navios, tanques e
aviões. 
Sem petróleo, não é simplesmente possível travar uma guerra moderna.
O petróleo refinado é um “material indispensável para abrir pistas,
fabricar tolueno [o principal componente do TNT] para bombas, produzir
borracha sintética para pneus… e já sem referir a necessidade do petróleo
enquanto lubrificante para armas e máquinas”. Falamos de guerras
travadas por causa do petróleo como se o petróleo fosse apenas um
objetivo, quando na verdade ele é necessário, desde logo, para travar a
própria guerra. 
Um país sem petróleo é um país que pode ser derrotado rapidamente. É
por isso que, para os arquitetos da guerra, se tornou tão importante
assegurar países produtores de petróleo como o Irão e a Venezuela. Ter o
petróleo deles significava ter um fluxo constante de energia. 
Desde 1973, até 50 por cento de todas as guerras entre estados têm tido
relação com o petróleo e muito do sangue derramado no século XXI foi no
Médio Oriente. O que, do ponto de vista de um geólogo, encerra uma
pergunta curiosa: porque é que existe uma tal abundância espetacular de
petróleo – cerca de 60 a 70 por cento das reservas mundiais – nesta região
específica? 
Para descobrir a resposta, temos de olhar para lá da bomba de gasolina e
dar um mergulho profundo na pré-história, até um tempo em que o mundo
parecia muito diferente, não só no que respeita aos habitantes do planeta,
mas também à sua geografia. Se recuarmos a meados do Cretácico, há 85
a 125 milhões de anos, os continentes encontravam-se muito mais
próximos do que hoje; mas estavam, contudo, só a começar a afastar-se,
depois de se terem fraturado e dividido dos supercontinentes de
Gondwana e Laurasia. 
As massas terrestres iniciavam a sua lenta marcha a caminho das
configurações que hoje reconhecemos. A América do Norte e a Eurásia
tinham começado a mover-se para norte, e a América do Sul, o Médio
Oriente, a África, a Austrália e a Antártida tinham começado a sua lenta
migração para sul. E entre os continentes do Norte e do Sul encontrava-se
um vasto e antigo oceano, em forma de curva, mesmo acima do equador,
desaparecido há muito tempo. 
Chamado Tétis, como a antiga deusa grega do mar, existiu numa altura
em que a Terra era verdadeiramente um mundo aquático. Apenas 18 por
cento do planeta era terra firme e os níveis médios da água eram 170
metros mais elevados do que hoje. Com maior atividade vulcânica e
tectónica, era também um mundo-estufa. Os vulcões expeliam para a
atmosfera grandes quantidades de dióxido de carbono e no final do
Cretácico o CO2 encontrava-se a um nível quatro a 18 vezes superior ao
atual, fazendo com que o planeta fosse muito mais quente do que agora.
Não havia calotas polares; a água estava a uma temperatura entre 10 a 15
graus Celsius, enquanto a temperatura do oceano equatorial era de entre
25 a 30 graus Celsius. O ponto crítico, como defende o geólogo e
oceanógrafo Dorrik Stow em Vanished Ocean, é que a água quente contém
menos oxigénio.84 A falta de oxigénio, associada a uma circulação menos
fluída de água devido às altas temperaturas, criou um ambiente marinho
sufocante que há cerca de 94 milhões de anos conduziu àquilo que criou
os vastos campos petrolíferos no Médio Oriente: um imenso evento
anóxico oceânico85 a que Stow chamou a “Morte Negra”. Neste ambiente,
bactérias anaeróbicas foram decompondo plantas e animais mortos muito
mais lentamente, à medida que eles caíam no leito oceânico. A matéria
orgânica decompôs-se apenas parcialmente, deixando carbono no
sedimento. Enterrados sob camadas de lama e lodo, e ao longo de milhões
de anos, os animais e plantas mortos foram comprimidos e aquecidos pela
fornalha incandescente do centro da Terra. 
O petróleo é isso mesmo: coisas mortas. Muito dele resulta de um
evento de extinção.86 O mundo de alta tecnologia em que vivemos é
alimentado diretamente por um mundo pré-histórico. De cada vez que
ligamos o motor do carro e aceleramos é como se acendêssemos uma pira
funerária que queima antigos resíduos químicos. E como a vida é feita de
carbono, como bem sabemos, com cada combustão os despojos
moleculares destes organismos mortos transformam-se em fantasmas no
céu: são, na verdade, os espíritos do dióxido de carbono. 
Um depósito médio de gasolina contém aquilo que terão sido
aproximadamente mil toneladas de vida antiga. Umas inacreditáveis 23
toneladas de vida pré-histórica estão contidas em cada litro de gasolina. É
o equivalente a lançar no depósito 16 hectares de biomassa para conseguir
andar com o automóvel ou o SUV. Segundo Jeff Dukes, ecologista da
universidade de Utah, “todos os dias [o realce é meu], as pessoas
consomem o combustível fóssil equivalente a toda a matéria botânica que
cresce em terra e nos oceanos durante um ano inteiro”.87 
Ao contrário do petróleo, o carvão foi constituído essencialmente pelas
antigas florestas do Carbonífero, há cerca de 300 milhões de anos. Em
terra, era o tempo dos gigantes. Os arranha-céus desses tempos eram fetos
do tamanho de árvores que se erguiam a 45 metros de altura sobre uma
paisagem coberta de vegetação rica e espessa. Nesta selva quente e
húmida, com insetos enormes a zumbir, as árvores eram muito diferentes
das de hoje. As raízes não eram muito profundas e quando as árvores
caíam os seus troncos imensos e maciços acumulavam-se nos pântanos.
Micróbios capazes de digerir a celulose e a lenhite ainda não tinham
evoluído e, por isso, em vez de apodrecerem, as árvores permaneciam
inteiras e o carbono ficava no seu interior. Com o tempo, à medida que
mais e mais árvores se iam acumulando no solo da floresta, a madeira foi-
se comprimindo em turfa e, ao longo de milhões de anos, transformou-se
no carvão que hoje usamos. 
Estas florestas antigas têm aquecido as nossas casas, feito andar os
transportes, funcionar as máquinas e fábricas e trouxeram-nos a
eletricidade. Mas queimar carvão liberta uma quantidade asfixiante de
poluição. Durante a Revolução Industrial, escureceu os céus, tal como
hoje, na China e na Índia, cria um smog irrespirável. A transmutação
tóxica do carvão também contribui para as alterações climáticas. Isso
acontece porque, por cada tonelada de carvão queimado, é libertado para a
atmosfera quase o triplo dessa quantidade de dióxido de carbono. 
Por causa disto, o carvão está, felizmente, e finalmente, a deixar de ser
usado. Em todo o mundo estão a ser encerradas velhas centrais de energia
a carvão, mas o carvão ainda contribui muito mais do que as renováveis
para a energia que consumimos todos os dias. É responsável por 30 por
cento da eletricidade da rede.88 
O petróleo, por outro lado, e os combustíveis que pomos nos nossos
carros provêm essencialmente de vida marinha. Nos nossos oceanos
antigos, as águas fervilhavam com um conjunto fascinante de criaturas
microscópicas. Tal como uma colher de chá de água salgada revela hoje
uma imensidão de vida, olhar por um microscópio para os mares antigos
levar-nos-ia a ver zooplâncton, fitoplâncton89 e algas, tão ignorantes da
nossa existência como nós somos da deles. 
Uma pergunta frequente é se animais maiores, como dinossauros,
entraram nesta mistura. Embora seja possível, deve assinalar-se que uma
parte significativa do petróleo de hoje foi depositado muito antes de os
dinossauros terem caminhado sobre a Terra. Alguns dos campos
petrolíferos que hoje exploramos têm até 600 milhões de anos. Por isso,
embora aqui e ali algumas moléculas de dinossauro possam estar a ajudar-
nos na viagem até ao supermercado, em termos relativos, e em
comparação com as enormes quantidades de pequenas plantas e animais
que compõem o nosso petróleo, os dinossauros tiveram um contributo
insignificante. 
O que aconteceu foi que este guisado pré-histórico, formado como fluxo
constante de organismos marinhos, morreu e deslizou para o fundo do
mar. Enterrado sob camadas de silte e lama, em condições com baixo teor
de oxigénio, não se decompôs, transformando-se, em vez disso, numa
substância cerosa chamada querogénio. Os geólogos costumam observar
que “o petróleo forma-se de matéria orgânica que ou é ‘cozinhada’ nas
profundezas da Terra durante longos períodos de tempo a baixas
temperaturas ou é ‘cozinhada’ durante períodos curtos a altas
temperaturas”. Com o tempo, as moléculas de querogénio dividem-se em
átomos de hidrogénio e carbono. A mistura líquida mais pesada,
cozinhada entre 50 e 100 graus Celsius, transforma-se em petróleo, e as
misturas mais leves que foram cozinhadas a temperaturas mais elevadas,
de entre 150 a 250 graus, borbulham para câmaras rochosas e tornam-se
gás. 
Juntos, petróleo, carvão e gás constituem a mais antiga bateria da
natureza. Em média, demorou a carregar entre um milhão e cem milhões
de anos. As civilizações modernas só têm energia para funcionar graças
aos organismos microscópicos que capturaram luz solar antiga através de
fotossíntese, tal como a luz do sol alimenta hoje as plantas que por sua vez
são comidas, como se fossem “baterias alimentares”, para dar energia a
animais. A única diferença com os combustíveis fósseis é que não somos
nós a comer esta antiga luz do sol; ela é comida para as nossas máquinas. 
Os estados petrolíferos do Médio Oriente devem a sua riqueza a um
acaso geológico. Encontravam-se no perímetro do oceano Tétis quando os
combustíveis fósseis se formaram. A região ainda é responsável pela
maioria do petróleo do mundo – dois terços – e por um quarto do gás. O
grosso do combustível vem de vida pré-histórica, foi formado por causa
das condições existentes no Cretácico. 
Peço-lhe, querido leitor, que não deixe de reparar que estamos a
começar a ver paralelos com o nosso próprio mundo em aquecimento.
Mesmo agora, enquanto lê isto, há plataformas inteiras de gelo nos polos a
ceder e a cair no oceano. No Equador, a temperatura do oceano à
superfície é como a água de uma banheira, uns muito mornos 30 graus.
Também as águas anóxicas estão a alastrar e, embora não estejam nem de
perto nem de longe nos níveis que existiam durante o Cretácico90,
cientistas já documentaram uma diminuição de 2 por cento nos níveis de
oxigénio dos oceanos durante os últimos 50 anos, sendo que este alastrar
silencioso de água anóxica91 cresceu em mais de 4,5 milhões de
quilómetros quadrados. Para termo de comparação, é o tamanho da União
Europeia. 
Para a maior parte de nós, o que se passa debaixo de água está fora de
vista e fora do pensamento, mas os cientistas que investigam as águas
famintas de oxigénio estão profundamente preocupados. Além de mortes
em massa, localizadas, de organismos do fundo marinho, como estrelas-
do-mar, caranguejos e anémonas, foram detetadas recentemente em águas
muito menos profundas espécies como marlins e peixes-vela, que muitas
vezes se alimentam a profundidades de 800 metros. Investigadores que
estudam peixes-vela ao largo da costa da América Central descobriram
que eles já não mergulhavam tanto por causa de uma imensa bolsa de água
desprovida de oxigénio. Os peixes mantinham-se à superfície porque, se
mergulhassem mais, iriam sufocar. 
Temos tendência para pensar no oxigénio como uma coisa importante
aqui, na Terra, esquecendo que ele, dissolvido, é tão vital para a vida
marinha como para a vida terrestre. Imagine o que sucederia se em
grandes áreas da nossa atmosfera também se registasse uma diminuição
semelhante de oxigénio: asfixiaria toda a vida à nossa volta. 
 
Os humanos são a única espécie na Terra com superpoderes artificiais.
Tomámos o poder dos mortos, o poder do Sol, o poder do vento, o poder
da água e até o poder de átomos invisíveis, colhemos toda essa energia e
transformámo-la de modo a podermos controlar o mundo à nossa volta
para lá das nossas capacidades naturais. E embora tenhamos crescido a ler
histórias do super-homem e das suas capacidades, apresentadas como
extraordinárias, a verdade é que os seres humanos têm agora os mesmos
superpoderes, só que acedemos a eles acionando um interruptor. Tudo o
que o super-homem faz – voar, a visão de raios X, a super força, a
velocidade, a visão térmica, o sopro congelante e até o mais recente super
flare (um sopro explosivo unidirecional que oblitera tudo no raio de meio
quilómetro) –, nós somos capazes de fazer, desde que tenhamos energia
suficiente e a tecnologia certa. Podemos voar à volta do planeta. Podemos
voar para o espaço. Podemos ver e ouvir o que está a acontecer em
diferentes partes do planeta no momento em que está a acontecer. Para os
nossos antepassados que viviam em cavernas, seríamos mágicos. Aos seus
olhos, pareceríamos tão poderosos como deuses. 
A maior parte de nós sabe pouco de onde realmente vem ou como
funciona; a fonte de energia da humanidade é um ângulo morto. Mas o
nosso poder também é a nossa kryptonite. É tão fácil o acesso à energia –
basta carregar num botão ou girar a chave na ignição –, que somos cegos à
quantidade que usamos. A energia de que precisamos para nos manter
vivos é de cerca de duas mil calorias por dia, o que corresponde a
aproximadamente 90 watts – ou seja, o nosso metabolismo é equivalente a
uma lâmpada. Mas precisamos de muito, muito mais, para pormos a
funcionar todas as nossas “coisas” modernas. Como escreve o físico
Geoffrey West: “Agora precisamos de casas, aquecimento, iluminação,
automóveis, estradas, aviões, computadores e assim por diante. Por causa
disso, a quantidade de energia necessária para sustentar uma pessoa média
a viver nos Estados Unidos subiu para uns espantosos 11 mil watts. A taxa
de metabolismo social é equivalente às necessidades totais de cerca de
uma dezena de elefantes.” 
Enquanto sociedade global, estas necessidades são ainda mais
ampliadas. Juntos, usamos aproximadamente 150 biliões de kilowatt/hora
de energia por ano. Os cidadãos do mundo são cerca de 7.500 milhões,
mas a energia que usamos anualmente é suficiente para sustentar uma
população de 200 mil milhões. 
Por causa disto, estamos a lançar para a atmosfera uma quantidade
assustadora de dióxido de carbono. E, no entanto, fazemos muito pouco
relativamente a este problema. Porquê? M. Sanjayan, cientista sénior da
Conservation International, explica: “Neste momento há CO2 a sair de
tubos de escape, há CO2 a sair de edifícios, há CO2 a sair de chaminés,
mas não conseguimos vê-lo. A causa fundamental deste problema é
largamente invisível para a maioria de nós.”92 
Aquilo que não compreendemos e não vemos fisicamente é que os
reservatórios subterrâneos de combustível que estamos a explorar contêm
cinco vezes mais carbono do que o reservatório invisível de dióxido de
carbono na atmosfera. O ciclo do carbono, em que o carbono passa
naturalmente para a atmosfera, demora três anos; permanece nas plantas
em média durante cinco anos, nos solos durante 30 anos, nos oceanos
durante 300 e cumpre o ciclo geoquímico uma vez em cada 150 milhões
de anos. Mas, de uma forma muito fundamental, estamos a interferir neste
ciclo natural ao injetar artificialmente na atmosfera carbono que
encontramos a grande profundidade. Hoje, há 45 por cento mais dióxido
de carbono no ar do que havia antes da Revolução Industrial. Da última
vez que houve no ar tanto CO2 foi há mais de 800 mil anos. 
Depois de a usarmos, a energia para os nossos superpoderes parece
desvanecer-se no ar. Mas essa é a ironia suprema: há países capazes de
entrar em guerra para decidir quem é dono dos hidratos de carbono, e
depois países reúnem-se para decidir quem não é dono do dióxido de
carbono. 
Mas há uma maneira clara de visualizar a concentração de calor de
todos os combustíveis fósseis que são queimados. Segundo o
climatologista James Hansen, o ritmo nunca visto a que o nosso planeta
está a aquecer é o equivalente a lançar todos os dias 400 mil bombas como
a de Hiroxima. 

75
Foi Thomas Edison, o célebre inventor e criador do primeiro aparelho elétrico DC, que começou a
esconder, em Manhattan, o “esparguete negro”, que eram os fios de eletricidade. Depois de muita
persuasão, o presidente da câmara de Nova Iorque aceitou com relutância a proposta de Edison para
escavar as ruas e enterrar 24 quilómetros de cabos para levar “luz elétrica” às casas das pessoas. Mas
o projeto de Edison não perdurou, porque ele acabou ultrapassado por outro inventor célebre: Nikola
Tesla. Os sistemas de distribuição de corrente alternada (AC) de Tesla eram capazes de levar a
eletricidade a distâncias muito maiores. Isto significava que os geradores não tinham de ser grandes
mamarrachos à vista de todos e podiam ser construídos longe das cidades, mas queria também dizer
que a nossa fonte de energia ficaria escondida de nós.

76
Como Bakke assinala, as quebras de energia são de 120 minutos em média nos Estados Unidos e
aumentam de ano para ano; noutros países, são de dez minutos e estão a diminuir.

77
Será talvez uma surpresa saber que os eletrões se movimentam pelos fios de uma forma
incrivelmente lenta – na verdade, mais lenta do que se fossem tartarugas. Falamos de uma velocidade
de deriva de cerca de 1 metro por hora. Enquanto ínfimas partículas subatómicas, os eletrões não são
ordenados. Movem-se de forma aleatória. E, numa corrente alternada (AC), que é a que hoje existe
na rede, os eletrões estão constantemente a avançar e a recuar. 

78
O lítio também é extraído da pegmatite. É um tipo de exploração mineira mais tradicional, em que
o metal é retirado do minério, e é comum em regiões da Austrália e partes da China. 

79
Ou seja, menos toda a energia que foi absorvida na fotossíntese, ou no ciclo hidrológico, ou nas
muitas outras coisas indispensáveis que o Sol fornece.

80
Onde não há quedas de água naturais, a engenharia cria umas artificiais, em que são usados
declives para canalizar água através de túneis, aproveitando a força da gravidade, para conseguir o
mesmo efeito.

81
As Cataratas de Niagara produzem hoje quase dois milhões de quilowatts de energia no lado
canadiano e 2,4 milhões no lado norte-americano. 

82
Até 2020, o número deve aumentar para aproximadamente 100 milhões de barris por dia. 

83
Os picos no preço do petróleo podem ter um grande impacto sobre as forças armadas,
representando um custo de milhares de milhões de dólares por cada 10 dólares de aumento no preço
de um barril. Por causa disso, os militares também apostam na utilização da tecnologia verde e solar.

84
Se pegar em duas latas abertas de refrigerante, deixar uma à temperatura ambiente e colocar a
outra no frigorífico, a mais fria terá mais gás, porque consegue conter mais gás dissolvido. O mesmo
é verdade para a água do oceano. Água mais fria é capaz de “manter” oxigénio, enquanto águas mais
quentes o libertam para a atmosfera.

85
Investigadores dizem que ocorreram a meio do Cretáceo entre dois e sete grandes eventos anóxicos
oceânicos. 

86
Cientistas da universidade de Alberta possuem provas que sugerem que o vulcanismo submarino
pode ter sido responsável por uma extinção maciça há 93 milhões de anos, que conduziu à formação
das mais importantes reservas de petróleo.

87
Quatro litros de gasolina contêm 31 milhões de calorias. 

88
A procura de carvão caiu na Europa e nos Estados Unidos, mas essa quebra tem sido compensada
pela procura na Índia e em outros países da Ásia. 

89
A luz do Sol é responsável todos os anos pela floração de mais de 5.500 milhões de toneladas de
fitoplâncton. Estes microrganismos unicelulares, que captam a luz do Sol, são os produtores
principais da cadeia alimentar, absorvendo a energia solar. A sua morte, ao longo de milhões de anos,
capturou e armazenou esta energia, fazendo do petróleo aquilo que ele essencialmente é: uma bateria
natural gigantesca.
90
O geoquímico Martin Fowler sugeriu que os níveis de anoxia no Cretáceo seriam semelhantes aos
que presenciamos no Mar Morto.

91
“Já com níveis de oxigénio baixos, estas regiões continuam a crescer, horizontal e verticalmente.
Estão incluídas grandes partes do Pacífico oriental, quase toda a baía de Bengala e uma área do
Atlântico ao largo da África Ocidental tão vasta como os Estados Unidos […] A zona ao largo da
África Ocidental cresceu 15 por cento desde 1960 – e 10 por cento só desde 1995. No Pacífico, a 200
metros de profundidade ao largo da Califórnia, os níveis de oxigénio caíram 30 por cento em alguns
pontos ao longo de um quarto de século.”

92
Qual a dimensão de um ângulo morto? É de tal modo abrangente que podemos nem dar pelo
problema quando estamos a conduzir sentados nele. Os automóveis que consomem muito são,
obviamente, parte do problema. Mas o que é menos óbvio é que, dependendo de onde se vive, o
veículo elétrico ou híbrido pode nem ser mais limpo do que um SUV de grande consumo. Cerca de
um terço da nossa eletricidade provém do carvão, que está entre os combustíveis mais sujos. Ou seja,
em alguns lugares, até a solução é parte do problema. Pensem nos combustíveis fósseis usados para
extrair o metal, fundir, fabricar, transportar e montar uma turbina eólica antes de ela chegar ao ponto
de começar a lançar para a rede eletricidade “limpa” e começarão a ter uma ideia de como até os
mais ambiciosos planos para o futuro estão envolvidos na energia do passado.

Lixo & Tesouro 
Estamos rapidamente a tornar-nos uma sociedade de plástico. 
Em breve, teremos mais em comum  
com o Ken e a Barbie do que com o nosso ambiente natural. 
ANTHONY T. HINCKS 

Na nossa imaginação, a paisagem cinzenta e cheia de crateras da Lua está


imaculada. Ainda lá se encontram as icónicas primeiras pegadas humanas,
a bandeira norte-americana e uma placa onde está escrito: “Aqui, homens
do planeta Terra pisaram pela primeira vez a Lua, em julho de 1969 d.C.
Viemos em paz por toda a humanidade.” 
No entanto, ao fim de cinco décadas na Lua, a bandeira começou a
ceder aos elementos. Descolorida pelos impiedosos raios ultravioleta do
Sol, as estrelas e as riscas desapareceram e o nylon tornou-se branco. Mas
os norte-americanos não deixaram apenas uma bandeira na Lua;
colocaram seis. E os viajantes espaciais têm deixado para trás uma pegada
muito mais pesada do que simples vestígios de presença humana. Há 18
mil quilos de lixo esquecido a sujarem a superfície lunar. 
Segundo a NASA, juntamente com 96 sacos de urina e vómito, há botas
usadas, toalhas, mochilas e tubos. Sem caixotes do lixo à mão, os
astronautas também deixaram no local de alunagem revistas, câmaras,
cobertores, pás. E, ao fim de várias missões internacionais, existem agora
na superfície várias naves, incluindo as usadas para efetuar órbitas e andar
na Lua. 
Em comparação com a Terra, a Lua tem uma atmosfera muito fina93, por
isso será preciso passar algum tempo até que o rasto das nossas visitas
sofra erosão e desapareça. Mark Robinson, cientista da universidade de
Arizona State, sugere que o impacto sobre o lixo de micrometeoritos do
tamanho de partículas fará com que as provas da nossa breve passagem
pela Lua se desfaçam e desapareçam dentro de dez milhões a cem milhões
de anos. 
Visto da superfície lunar, o nosso próprio planeta eleva-se acima do
horizonte e brilha na noite como uma lua azul. À distância, parece
imaculado, mas olhando com atenção ver-se-ia uma nuvem brilhante de
lixo espacial a orbitar a Terra. O nosso planeta tornou-se muito parecido
com Pig-Pen, a personagem dos Peanuts que anda sempre sujo e com uma
nuvem de pó à volta. Há agora quase três mil toneladas de lixo espacial
continuamente em redor de nós. 
Claro que nem sempre foi assim. Nos anos 1950, não havia lixo na
órbita terrestre. Só em 17 de março de 1958 é que a órbita terrestre ganhou
o seu primeiro residente permanente. Hoje, este satélite morto, o Vanguard
1, ostenta o título de pedaço de lixo orbital mais velho. Faz uma rotação
completa em volta da Terra a cada 132,7 minutos. Mas já não está só.
Juntaram-se a ele mais de 29 mil outros bocados de lixo orbital que andam
invisivelmente à nossa roda, juntamente com mais de 1.700 satélites
ativos. A Força Aérea dos EUA tem mantido um registo dos destroços em
órbita, que são essencialmente pedaços de foguetões usados e satélites que
deixaram de funcionar, e sabe onde se encontra exatamente um qualquer
objeto que seja maior do que uma bola de beisebol. Há partes que se
soltam e são mais pequenas do que isso. Entre os 670 mil objetos que têm
entre um e dez centímetros há de tudo, desde pedaços de tinta a porcas,
parafusos, bocados de papel de alumínio e tampas de lentes. 
À medida que o tamanho dos objetos diminui, o seu número aumenta.
Existirão cerca de 170 milhões de destroços com um tamanho entre um
milímetro e um centímetro. Mas o facto de serem pequenos não significa
que sejam inofensivos. De acordo com a Agência Espacial Europeia, um
objeto de um centímetro que se movimente a velocidade orbital é capaz de
penetrar nos escudos da Estação Espacial Internacional ou de avariar uma
nave. O impacto teria a energia equivalente à da explosão de uma granada
de mão. 
Mas não nos limitamos a deixar as nossas naves espaciais no espaço.
Também as atiramos para o mar. No Oceano Pacífico, quilómetros abaixo
das ondas, existe um local designado Ponto Nemo que funciona como
cemitério de naves. Escolhido pela sua localização remota (o ponto de
terra mais próximo fica a quase 2.400 quilómetros), é onde as agências
espaciais internacionais deitam fora objetos de grandes dimensões que não
se desintegram quando reentram na atmosfera. Entre 1971 e 2016, mais de
260 naves foram atiradas para Ponto Nemo. A lixeira tornou-se o destino
final para 140 veículos de reabastecimento russos, um foguetão Space X, a
estação espacial soviética Mir e várias das naves de carga da Agência
Espacial Europeia. Jazem todas no leito oceânico, desintegrando-se
lentamente. 
Maravilhamo-nos com estas obras-primas tecnológicas de muitos
milhares de milhões quando elas são lançadas, mas quando passam o
prazo de validade tornam-se lixo. Os humanos são uma espécie
construtora de ferramentas, mas a consequência é que são também uma
espécie produtora de lixo. E embora não tenhamos com as nossas coisas
uma relação de amor-ódio, temos de facto com elas uma relação de “amor-
indiferença”. Desejamos objetos antes de os termos e mais tarde atiramo-
los fora sem voltar a pensar neles. Com o lixo é também assim: tornámo-
nos especialistas a fazer de conta que ele não existe. O lixo espacial, na
verdade, não passa de uma insignificância em comparação com o
desperdício que a nossa espécie gera. Todos os anos produzimos 45
milhões de toneladas de lixo em aparelhagem doméstica, computadores,
telemóveis e outro equipamento eletrónico. É o equivalente a 4.500 torres
Eiffel. É lixo que podia ocultar a linha do horizonte de uma cidade. Mas
não é só não o vermos; a maior parte de nós não sabe para onde ele vai. 
Há coisas que sabemos sobre o nosso lixo. Por exemplo, o líder mundial
em produção de lixo são os Estados Unidos. Em todo o mundo, pessoas
ricas e países ricos produzem mais lixo. Cada norte-americano deita fora
todos os dias 3,2 quilos de lixo, o que equivale a 90 toneladas ao longo da
vida. Como Edward Humes escreve em Garbology, “o legado de cada
pessoa em lixo, 90 toneladas, necessitará do equivalente a 1.100 túmulos.
E muito desse lixo sobreviverá a qualquer lápide tumular, pirâmide de
faraó ou arranha-céus moderno”. 
Mas, mesmo assim, aquilo que deitamos fora é só a ponta do icebergue
de lixo. O que lançamos no caixote – o produto final – não representa
mais de 5 por cento das matérias utilizadas nos processos de produção,
embalagem e transporte. Pondo as coisas de outra maneira: por cada 150
quilogramas de produtos que vemos nas prateleiras, existem fora de cena
outros três mil quilos de desperdícios que não vemos. No total, o mundo
produz aproximadamente três milhões de toneladas de lixo a cada 24
horas. Em 2025, calcula-se que o número duplicará. E se tudo continuar
assim, até final do século teremos, por dia, uns implacáveis dez milhões
de toneladas. 
Não são só as nossas fábricas que criam desperdício. Como seres
biológicos, geramos também os nossos próprios resíduos. E com 7.500
milhões de pessoas no planeta, essa porcaria toda acumula-se. Em The
Origin of Feces, David Waltner-Toews traça a ascensão meteórica dos
excrementos humanos: “No ano 10 mil a.C. havia cerca de um milhão de
pessoas no planeta. Ou seja, 55 milhões de quilogramas de excremento
humano espalhado pelo globo em pequenas pilhas, alimentando
lentamente a erva e as árvores de fruto […] Em 2013, com mais de sete
mil milhões de pessoas na Terra, a produção humana total aproximou-se
dos 400 milhões de toneladas de merda por ano.” 
Sendo tão colossais as quantidades de resíduos biológicos humanos e de
resíduos sólidos resultantes dos processos de produção, é quase um truque
de magia de proporções épicas que tudo isso pareça, simplesmente – puf!
–, desaparecer. 
Mas antes dos dias do carro do lixo, as pessoas tinham de lidar,
literalmente, com a sua merda. Não havia maneira de fugir disso porque
ela ficava ali mesmo à frente, a cheirar mal e cheia de moscas. Os
conhecidos degrauzinhos de Brooklyn, o curto lance de escadas que leva à
porta de entrada de uma casa e de que todos nos lembramos da Rua
Sésamo, não são só uma herança arquitetónica dos holandeses, mas
também uma forma criada no século XIX para lidar com o lixo. As
escadas conduziam à entrada porque nessa altura, em Nova Iorque, as
pessoas atiravam o lixo para as ruas, pela janela. A pilha de lixo chegava
tão alto – às vezes, no inverno, podia ter um metro, quando se misturava
com a neve e com o esterco de cavalo (sendo que este se acumulava a um
ritmo de mil toneladas sólidas e 227 mil litros de urina todos os dias) –
que a escadinha permitia às pessoas elevarem-se acima da porcaria e
entrarem sem problemas pela porta da frente. 
No século XIX, a gestão de resíduos contava com a assistência de cães,
ratos e baratas, mas os principais limpadores de ruas eram os porcos. Nos
Estados Unidos, em cidades com populações acima de dez mil habitantes,
construíam-se pocilgas especificamente para o efeito. O nosso lixo era o
jantar deles, com uma média de uma tonelada de desperdícios digerida por
75 porcos por dia. Não é invulgar encontrar quadros de Nova Iorque
pintados nessa altura que mostram esses porcos à solta. Para os europeus
que os pintavam, os suínos urbanos eram uma novidade, mas para os
nova-iorquinos o cenário desses animais à solta era uma banalidade. 
Até aos anos 1840, milhares de porcos percorriam Wall Street. Hoje, a
área é conhecida pelos seus banqueiros e investidores, mas o nome Wall
Street, do original holandês “de Waal Straat”, vem de uma vedação de 3,5
metros de altura que foi erguida para impedir que os porcos causassem
danos às ruas e aos jardins da vizinhança. 
Em Paris, lixo e dejetos humanos também inundavam as ruas. Os
franceses foram os primeiros a criar um corpo de trabalhadores sanitários
e, quatro séculos antes, começaram a gerir assim os resíduos da cidade.
Mas o lixo nas ruas era um problema constante, e isso levou o rei francês a
emitir um édito, em 1539, para enfrentar o problema: 
 
“Francisco, Rei de França pela Graça de Deus, faz saber a todos os presentes e a todos os
que virão, o seu desprazer pela deterioração considerável sofrida pela nossa boa cidade de
Paris e pelos seus arredores, que em tantos lugares revela uma tal degeneração em ruína e
destruição que não é possível percorrê-los, seja de carruagem seja a cavalo, sem enfrentar
grande risco e incómodo. Esta cidade e os seus arredores passam há muito por este
lamentável estado. Mais ainda, está tão suja e cheia de lama, excrementos de animais, entulho
e outros despojos que todas as pessoas parecem ter julgado certo despejar em frente às suas
portas, contra toda a razão e contra as ordens dos nossos antecessores, o que provoca grande
horror e ainda maior desprazer em todas as valorosas pessoas com influência.” 
 
Em Paris, os resíduos tornaram-se um assunto privado. Em vez de os
lançarem para as ruas, os parisienses receberam ordens para construir
fossas nos quintais. Os bairros cheiravam mal e havia surtos de cólera e
isso tornou-se, inevitavelmente, insuportável.94 Os franceses mudaram
então para um método que os chineses usavam há milhares de anos: gerir
os resíduos da população transformando-os em “solo da noite” – um
eufemismo para designar excremento humano usado como estrume para a
agricultura. 
Nos anos 1800, o que as cidades em crescimento tinham descoberto era
que, pela sua própria natureza, concentravam resíduos numa escala
maciça. As cidades tornaram-se, à falta de um termo melhor, motores de
produção de grandes montes de merda. Os chineses tinham optado por
retirar o excremento de áreas populosas e levá-lo para o campo. Aí,
deixava de ser desperdício. Era ouro castanho. O estrume humano era
devolvido ao solo para alimentar o país. A verdade é que o sistema
funcionou muito bem e, até há pouco tempo, a China era célebre pelos
seus solos férteis e agricultura sustentável. Durante milhares de anos,
cerca de 90 por cento do lixo humano foi reciclado e representava um
terço do fertilizante usado no país. 
Pensemos, por um instante, no nosso próprio contributo digestivo. Em
média, por ano, cada um de nós produz 50 a 55 quilos de fezes e cerca de
500 litros de urina. Mas este “desperdício” contém nutrientes valiosos.
Segundo a Empresa para Cooperação Internacional da Alemanha, numa
base anual isso quer dizer cerca de “dez quilos de compostos de azoto,
fósforo e potássio, os três principais nutrientes de que as plantas
necessitam para crescer – e, ainda por cima, praticamente nas proporções
certas”. Os excrementos de uma pessoa são suficientes para fertilizar e
fazer crescer mais de 200 quilos de cereais durante um ano. 
Os japoneses também identificaram o valor da merda. Durante o período
Edo (1603 a 1868), na área que hoje é Tóquio, os japoneses mantinham
um sistema em circuito fechado e este shimogoe (que pode traduzir-se
como “fertilizante vindo do fundo de uma pessoa”) tornou-se essencial
para a agricultura sustentada. Nas bermas de estradas junto dos campos
eram entregues baldes aos viajantes e era-lhes solicitado que deixassem
para trás os seus desperdícios. Como escreve David Waltner-Toews, “no
século XVII a cidade de Edo enviava carregamentos de vegetais e outros
produtos hortícolas para Osaca, de barco, para serem trocados pelo
excremento humano da cidade. À medida que as cidades e mercados
cresceram (Edo tinha um milhão de habitantes em 1721), e com o
aumento da agricultura intensiva em campos inundados, os preços dos
fertilizantes, incluindo do ‘solo da noite’, aumentaram imenso; em meados
do século XVIII, os proprietários da merda queriam ser pagos em prata – e
não apenas em vegetais.” 
A porcaria tornara-se um bem de valor elevado. Os senhorios podiam
aumentar o preço das rendas que cobravam se o número de inquilinos no
seu prédio diminuísse, porque, com menos defecadores a contribuir para o
rendimento do proprietário, a gestão do edifício tornava-se menos
lucrativa. Neste negócio, gerido através de agentes privados e não do
governo, os preços do shimogoe eram fixados pelos senhorios, o que
provocava conflitos com os agricultores, que eram muitas vezes asfixiados
pelos valores altos. 
Também havia merda boa e merda má. A merda rica cheirava de certeza
igualmente mal, mas tinha um valor mais elevado. Como os ricos tinham
dietas mais variadas, isso resultava, segundo os agricultores, na presença
de nutrientes melhores nas fezes.95 Quanto ao valor, o preço do shimogoe
dependia da procura, mas no auge ascendia a 145 mon por casa. Para
termo de comparação, em 1850 era possível comprar com 100 mon de
cobre uma boa refeição de cogumelos, pickles, arroz e sopa. Nos anos
1800, os resíduos humanos eram tão valiosos que roubá-los se tornou um
crime punível com prisão. 
Foi também elaborada uma tabela a comparar o desperdício humano e o
produzido por outros animais. Num número de 1849 da revista norte-
americana Working Farmer, o eminente agriculturalista alemão professor
Hembstadt é citado desta forma: 
 
“Se uma determinada porção de terra semeada sem estrume produz três vezes as sementes
lançadas, então a mesma porção de terra produzirá: 
Cinco vezes a quantidade semeada quando for usado estrume com ervas velhas, pútridas
ou folhas, despojos de jardim, etc., etc., 
Sete vezes com esterco de vaca, 
Nove vezes com esterco de pombo, 
Dez vezes com esterco de cavalo, 
Doze vezes com esterco de cabra, 
Doze vezes com esterco de ovelha, e  
Catorze vezes com urina humana ou sangue de novilho.” 
 
Mas para os mais conhecedores da fina arte do esterco havia um tipo de
excremento que estava sempre no topo da lista. Se era preciso escolher o
melhor fertilizante do mundo, então o guano não tinha rival. 
Ao longo da história, os homens já entraram em guerra por muitas
coisas, mas a Guerra do Guano, entre 1864 e 1866, pode muito bem ter
sido a primeira travada por causa de uma discussão de soberania sobre
merda de pássaro.96 Para o Peru, o guano era uma autêntica mina de ouro.
A Espanha sabia isso e estava determinada a reafirmar o seu poder e a
tomá-lo à sua antiga colónia. Por causa disso, o Chile entrou nesta guerra
de dois anos e os países sul-americanos lutaram juntos para repelir o seu
antigo colonizador. 
Quando se chegava de barco, sentia-se o cheiro das ilhas Chincha muito
antes de ser possível avistá-las. Com colónias de pelicanos, sulas e
cormorões, o arquipélago peruano albergava mais de um milhão de aves.
Cada uma produzia todos os dias 20 preciosas gramas de dejetos; todas
juntas representavam 11 mil toneladas por ano. Ao longo de gerações, e
numa área com pouca precipitação, os montinhos de cocó transformaram-
se em montanhas. E no início do século XIX o guano nas ilhas Chincha
tinha dez metros de altura. 
Há séculos que as propriedades do guano como fertilizante excecional
eram conhecidas dos locais; chamavam-lhe huanu. O excremento de aves
marinhas é especialmente poderoso por estar cheio de azoto marinho.
Como as aves marinhas se alimentam de grandes cardumes de anchovetas
e de plâncton, funcionam como “bombas biológicas” que transferem o
azoto para ecossistemas terrestres.97 Esta dádiva de fertilidade do solo
tinha um valor tão elevado para os incas que matar uma ave marinha podia
resultar numa sentença de morte. 
Os europeus perceberam o seu valor quando o explorador Alexander
von Humboldt regressou com um guano de uma das suas viagens, em
1804. Os resultados pareceram milagrosos aos agricultores que o
utilizaram nas suas terras pela primeira vez. Solos já esgotados tornaram-
se outra vez férteis e as colheitas aumentaram em 30 por cento. Ao
contrário do estrume comum dos estábulos, o do guano era uma merda
especial: segundo um especialista, era 35 vezes mais poderoso. 
Em 1850, como observa o autor de ciência Thomas Hager, as ilhas
Chincha – pedaços de terra perdidos e cobertos de merda de aves – eram,
“hectare por hectare […] a propriedade mais valiosa ao cimo da Terra”.
Tinha começado uma “guanomania”. Dezenas de toneladas de guano eram
exportadas todos os anos, representando cerca de 60 por cento da
economia peruana. Os norte-americanos, desejosos de assegurar as suas
próprias fontes de guano, aprovaram em 18 de agosto de 1856 a Lei das
Ilhas de Guano, que no essencial permitia aos Estados Unidos
reivindicarem qualquer ilha que encontrassem com depósitos de guano.
Como se afirmava na Secção 1 da Lei: “Sempre que qualquer cidadão dos
Estados Unidos descubra um depósito de guano em qualquer ilha, rochedo
ou caio, que não se encontre sob legítima jurisdição de qualquer outro
governo, e não se encontre ocupado pelos cidadãos de qualquer outro
governo, e assumir pacificamente a sua posse, e o ocupar, essa ilha,
rochedo ou caio pode, por determinação do Presidente, ser considerado
como pertencente aos Estados Unidos.” Até hoje, foram reivindicadas
mais de uma centena de ilhas no Pacífico e nas Caraíbas, e a lei ainda
vigora, embora a maior parte dessas reivindicações não tenha sido
renovada quando o guano se esgotou. 
Na verdade, o problema com as Chincha acabou por ser esse. O guano
era um recurso finito que não podia ser reposto com a mesma velocidade
com que era extraído. Quando foi travada a Guerra do Guano (que a
Espanha perdeu para a frente unida de Chile e Peru), o guano existente já
dava só para mais uma década. Quando ele se acabou, o Peru foi à
falência. 
Houve um homem que viu o desastre a aproximar-se e percebeu que a
Europa estaria em breve metida numa grande merda, falando
figurativamente. Com a fonte essencial esgotada, o negócio do fertilizante
tinha passado para os nitratos do Chile, uma substância branca granulosa
que se encontrava no deserto e que era aquilo que mais se aproximava do
guano. Mas William Crookes, um cientista britânico, fizera as contas.
Pelos seus cálculos, ao ritmo da procura os nitratos também não durariam
mais do que umas décadas. Na sua comunicação presidencial à
Associação para o Progresso da Ciência da Grã-Bretanha, em 1898,
perante uma casa cheia, o respeitado químico lançou o alerta: “A
Inglaterra e todas as nações civilizadas correm o risco mortal de não terem
o suficiente para comer. À medida que as bocas se multiplicam, os
recursos alimentares diminuem [...] Espero indicar uma saída para este
dilema colossal. É o químico que tem de sair em auxílio das comunidades
ameaçadas. É através do laboratório que a fome pode acabar por ser
transformada em abundância [...] A fixação do azoto atmosférico é uma
das grandes descobertas, a aguardar o génio dos químicos.” 
Aquilo que Crookes pedia, com urgência, era o desenvolvimento de
estrume sintético. Mas apesar das suas palavras proféticas, o mundo ainda
não tinha maneira de saber que este fertilizante viria, literalmente, do ar. 
 
Já lhe chamaram a maior invenção de que nunca ninguém ouviu falar.
Sem o processo Haber-Bosch, metade das pessoas do planeta não estariam
hoje vivas. Foi desenvolvido em resposta ao apelo feito aos químicos por
Crookes, para alimentar o mundo sem depender das duas principais fontes
de fertilizante de então: o já quase esgotado cocó de aves peruano e as
reservas estratégicas de nitratos do deserto chileno.98 
O que essas duas primeiras fontes tinham em comum eram serem ricas
em azoto fixado. Ainda que o azoto seja abundante no ar à nossa volta –
constitui 78 por cento daquilo que respiramos –, o tipo de azoto de que as
plantas necessitam de absorver do solo encontra-se sob uma forma
diversa, como azoto fixado. No solo, isso produz-se naturalmente de duas
maneiras. A primeira, e mais extraordinária, é através de relâmpagos.
Durante tempestades, há descargas de eletricidade suficientemente
poderosas para desfazerem as ligações estreitas do azoto atmosférico e o
elemento, ao entrar em contacto com a água, assume forma de ácido
nítrico, que depois se infiltra no solo. A segunda é a partir de tipos de
bactérias que formaram uma relação simbiótica com algumas vagens e
legumes. Usando um complexo conjunto de enzimas, estas bactérias
conseguem quebrar as ligações do azoto, tornando-o disponível para ser
absorvido pelas raízes das plantas.99 
O azoto no ar é considerado “inutilizável” porque a molécula N2
consiste em dois átomos de azoto com uma ligação muito forte – uma das
mais fortes que se encontram na natureza. Os átomos estão de tal forma
unidos que é necessária uma quantidade imensa de energia – perto de
1.000 graus Celsius – para os separar. Assim, embora consigamos respirar
e expirar azoto atmosférico, sob esta forma ele é inerte e não pode ser
absorvido pelos nossos organismos. O azoto presente no nosso sangue, na
nossa pele e no nosso cabelo vem por isso dos alimentos que ingerimos. E
é essencial. O azoto está em cada gene e em cada proteína das coisas
vivas. Sem ele não era possível existirmos, porque funciona como a
espinha dorsal atómica do nosso ADN. 
A genialidade do processo Haber-Bosch foi ter conseguido obter azoto a
partir do ar. Batizado com os apelidos de Fritz Haber, o cientista que o
inventou, e de Carl Bosch, o engenheiro que o industrializou, a invenção
prometeu ao mundo fertilizante em quantidade ilimitada. Tinha finalmente
sido descoberta uma fonte inesgotável, porque o azoto atmosférico está
em toda a parte. Mas apesar deste “estrume sintético” se basear num
inteligente processo químico, não era muito fácil de produzir. Otimizar o
processo para permitir a produção em massa implicava agora, para os
alemães, mais um tremendo desafio: precisavam de construir a maior
máquina do mundo. 
Com quase oito quilómetros quadrados, a fábrica que usaram, em
Leuna, na Alemanha, tinha “o tamanho de uma cidade pequena”.100
Albergava compressores imensos, capazes de sujeitar gases a uma pressão
de 200 atmosferas, mais ou menos a mesma, como Thomas Hager escreve
em The Alchemy of Air, que é necessária para “esmagar um submarino
moderno”. O processo em si não é muito complexo: azoto e hidrogénio
são aquecidos a alta temperatura e a seguir são conduzidos sobre um
catalisador de ferro101, que baixa o limiar energético da reação. A mistura
de gás é então colocada sob tanta pressão e calor que os átomos de
hidrogénio e azoto se quebram e formam uma nova ligação, saindo do
outro lado da máquina sob a forma de amoníaco liquefeito, ou NH3. Ao
tomarem azoto do ar, Haber e Bosch tinham criado uma forma
completamente nova de alimentar plantas. Como diziam os alemães, era
Brot aus Luft. Ou seja, estavam a obter “pão do ar”. 
Fábricas em todo o mundo usam hoje o processo Haber-Bosch para
fabricar fertilizante de azoto sintético. Em 2016, foram produzidas 146
milhões de toneladas. E, à medida que a população humana cresce, a
procura aumenta. Na verdade, a produção de azoto sintético e o aumento
de população estão intimamente ligados. Se alguma vez se interrogou
porque é que a população, em apenas um século, passou de 1.600 milhões,
em 1900, para mais de 7.600 milhões, hoje, é porque deixámos de usar
estrume para fazer crescer alimentos. Esta forma de azoto fixado, em
combinação com o desenvolvimento de pesticidas e de novas variedades
de culturas, trouxe-nos o que é conhecido como a revolução verde. Os
humanos domesticaram a terra e, por causa disso, os seus números
explodiram. Podíamos agora alimentar-nos de uma forma inteiramente
nova, transformando ar em comida com a ajuda de fertilizante sintético. 
Mas falta cair mais um alfinete, como em Matrix, antes de seguirmos
em frente. É que, como metade do azoto na nossa cadeia alimentar é agora
produzido de forma sintética, isso quer dizer que metade do nosso ADN
vem de uma fábrica Haber-Bosch.  

Todos os anos, juntam-se à população do planeta mais 83 milhões de


pessoas. Mais pessoas significa mais resíduos. E desde o desenvolvimento
do processo Haber-Bosch, uma proporção escandalosa desses resíduos
têm sido alimentos por consumir. Só para dar uma ideia, os Estados
Unidos produziram em 2010 mais de 31 milhões de toneladas de comida
que foi desperdiçada. A Agência de Proteção do Ambiente dos EUA diz
que, em peso, isso representa dez vezes mais desperdício de comida do
que bens eletrónicos deitados fora nesse ano. 
Toda a energia usada para fazer crescer, distribuir e vender comida que
acaba por ser deitada fora é então igualmente desperdiçada. Nos Estados
Unidos, só em emissões de estufa, é o equivalente a explorar para nada
todas as reservas offshore de petróleo e gás.102 Numa escala global,
segundo a Organização para a Alimentação e Agricultura das Nações
Unidas, aproximadamente um terço da produção alimentar humana não é
consumida. São uns aterradores 1.300 milhões de toneladas de alimentos
que vão para o lixo todos os anos. 
Para além disto, há outra vertente no desperdício alimentar. E assume a
forma do fertilizante sintético produzido pelo processo Haber-Bosch.
Usamos uma enorme quantidade de fertilizante: por cada pessoa no
planeta há aproximadamente 20 quilogramas de amoníaco espalhados
anualmente pelos campos. Mas só 15 por cento do azoto produzido
artificialmente chega às nossas bocas sob a forma de comida103; a imensa
maioria dos nossos fertilizantes químicos acaba como desperdício. 
Quando as chuvas caem no solo, no início da primavera, compostos de
azoto e fósforo de fertilizantes são arrastados para correntes, rios e lagos e,
eventualmente, acabam no oceano.104 Aqui, a mistura de nutrientes do
escoamento de fertilizantes e de esgotos provoca uma atividade alimentar
febril entre as algas, fazendo com que estas se espalhem por dezenas ou
até centenas de quilómetros quadrados. Sem querer, estamos a fertilizar o
oceano. A “explosão” que daí resulta é, no entanto, fatal. As plantas
marinhas e os animais que vivem por baixo do tapete espesso e viscoso de
algas veem-se privados de luz. E quando o excesso de algas morre e se
afunda no oceano, o monumental processo de decomposição retira à água
imensas quantidades de oxigénio, fazendo com que a vida marinha não
consiga respirar. As espécies que não conseguem mover-se para outro
local não são capazes de sobreviver e o deserto biológico que fica é
conhecido como zona morta. 
Há mais de 500 destas zonas nos oceanos – e estão a aumentar. O
fertilizante que devia provocar o florescimento da vida está a transformar
as linhas costeiras em cemitérios. Ao perturbarmos o equilíbrio da
natureza com os sistemas de sobrevivência que inventámos, criámos um
ciclo vicioso: agora precisamos de mais energia de combustíveis fósseis (o
equivalente a cerca de 1 tonelada de TNT por hectare) para cultivar mais
comida, criando, em troca, mais bocas para alimentar. E todos os anos se
dá uma escalada do ciclo. 
Só o processo Haber-Bosch usa quase 2 por cento da capacidade
energética mundial. E por cada tonelada de amoníaco produzido são
libertadas para a atmosfera duas toneladas de dióxido de carbono. Somos
cegos a este desperdício de azoto no oceano, tal como somos cegos ao
desperdício de dióxido de carbono que não somos capazes de ver. Mas há
uma forma de desperdício que conseguimos ver quando ela se descontrola:
a poluição atmosférica. 

Em novembro de 2014, os habitantes de Pequim batizaram uma nova


cor. Chamaram-lhe “Azul APEC”. Foi o resultado de uma missão iniciada
meses antes, quando o governo central chinês encarregou 434 mil
funcionários nas regiões de Pequim, Shandong, Tianjin, Shanxi, Hebei,
Mongólia Interior e Henan de executarem um plano grandioso. A meta era
ambiciosa: mudar a cor do céu. 
Nos dias que antecederam a chegada dos delegados internacionais à
cimeira desse ano da organização de Cooperação Económica Ásia-
Pacífico (APEC), 11,7 milhões de veículos receberam ordem para sair da
estrada e mais de dez mil fábricas industriais suspenderam a produção.
Sob supervisão rigorosa, cerca de outros 40 mil operários fabris foram
colocados em turnos rotativos, para limitar as suas horas de trabalho e,
consequentemente, o fumo e escapes que emitiam. 
O plano funcionou de forma espetacular. Durante duas semanas, nesse
mês de novembro, o célebre nevoeiro cinzento acastanhado de Pequim
dissipou-se e a poluição atmosférica caiu nuns extraordinários 80 por
cento. No lugar dele, prontas a receber líderes e dignitários estrangeiros e
a imprensa mundial, estavam nuvens brancas macias e um céu azul
brilhante, o azul APEC. Mas pouco depois de a cimeira acabar esse azul
também desapareceu. 
Os cidadãos chineses lembram-se hoje com saudade desse céu azul
APEC de 2014, ou do céu “azul desfile militar” de 2015. Pelo seu lado,
cientistas descobriram porque é que os céus voltam a escurecer tão
depressa quando são eliminadas as restrições temporárias à poluição. O
que se passa é que, depois de acabar essa solução instantânea para um
acontecimento especial, há uma chicotada de resposta da indústria. A
seguir à grande baixa de poluição durante o período do acontecimento, há
um “pico poluidor retaliatório” das empresas, para compensar o tempo e o
dinheiro perdidos.105 Não será propriamente uma surpresa a existência de
uma relação direta entre atividade económica e poluição. 
Em cidades poluídas, o termo “IQA” é tão familiar aos habitantes como
as indicações Celsius ou Fahrenheit. Refere-se ao Índice de Qualidade do
Ar, uma escala que vai de 0 a 500. Só por olharem para o grau de névoa,
os habitantes experientes são capazes de calcular a qualidade do ar.
Quando há alguma névoa no horizonte, está nos 100. Com 200, o
horizonte cinzento já se fechou sobre nós. Nos 300, a névoa da poluição já
está a bloquear a luz do Sol. 
Um IQA de 300, ou mais, já é considerado nocivo para a saúde humana.
Os efeitos sobre a saúde incluem “agravamento sério de doenças cardíacas
ou pulmonares e mortalidade prematura em pessoas com doença
cardiopulmonar e entre os mais velhos; risco sério de efeitos respiratórios
entre a população em geral”. Já fora da escala, no nível 700, o ar é descrito
como fumo industrial. É tão espesso que “sabe a químicos, faz chorar”.
Em 4 de maio de 2017, em conjunção com uma tempestade de areia, o ar
tornou-se literalmente de cortar a respiração. Com um IQA de 905,
Pequim ultrapassou três vezes o limite de risco. 
Nos dias maus, quanto mais nos dias terríveis, passar no exterior uns
meros 20 minutos pode fazer com que as pessoas se sintam doentes.
Tornaram-se comuns gargantas irritadas e tosses sem sintomas de
constipação ou de gripe. E são tosses que parecem nunca passar, em
especial para os que vivem e trabalham perto de fábricas. 
As máscaras faciais usadas pelos chineses já se tornaram icónicas. Mas
em Pequim só uma parte da sociedade anda relativamente à vontade
quando a poluição se descontrola. Os ricos têm dinheiro para protegerem o
seu bem-estar, isolando-se dos céus asfixiantes. 
Na capital, os ricos enviam os filhos para escolas privadas, muitas das
quais possuem gigantescos “recreios-bolha” onde as crianças podem
brincar. Estas cúpulas de ar pressurizado estão equipadas com filtros de
qualidade hospitalar para purificar o ar e garantir um “tempo” perfeito
durante o ano inteiro. Em dias em que o IQA recomenda que as crianças
não saiam para o exterior, elas ficam seguras atrás de portas
hermeticamente fechadas. 
Esta proteção contra a poluição não sai barata. As cúpulas de ar custam
milhões de dólares e mesmo em casa só com dezenas de milhar de dólares
é possível assegurar bolsas de ar limpo em que as famílias consigam
respirar. Os apartamentos em arranha-céus de luxo estão equipados com as
mais recentes tecnologias de ar condicionado e purificação de água, para
transmitir uma aparência de normalidade. 
Os pobres não têm outra escolha a não ser respirar o mau ar que os
rodeia. E isto não acontece apenas na China: ficam na Índia 11 das 12
cidades mais poluídas. Também a Arábia Saudita e o Irão têm cidades
com níveis de poluição que fazem com que seja um risco lá viver.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), que mantém uma base
de dados de três mil cidades em 103 países, mais de 98 por cento das
cidades em países de rendimento baixo e médio não conseguem cumprir
as linhas orientadores da OMS quanto à qualidade do ar, enquanto em
países de rendimento elevado essa taxa de incumprimento cai quase para
metade, para 56 por cento. 
Claro que os nossos organismos têm filtros de ar biológicos
incorporados – os pulmões –, e o seu exame pode revelar a matéria
específica que absorvemos do exterior. O patologista Paulo Saldiva, que
pertence ao comité científico da Escola de Saúde Pública da universidade
de Harvard, e é membro do comité de qualidade do ar da OMS, tem
realizado autópsias aos pulmões de pessoas expostas a poluição
atmosférica ao ar livre. Escurecidos e com marcas de carbono, podem
facilmente ser confundidos com os pulmões gastos de um fumador de
tabaco. 
Todos os dias inspiramos cerca de 23 mil vezes, o que corresponde, em
média, a 12 mil litros de ar. Os pequenos pelos nas nossas narinas e os
cílios que protegem os nossos pulmões filtram as partículas maiores, mas
as mais perigosas são as mais pequenas, chamadas PM2,5, porque a sua
matéria tem um tamanho inferior a 2,5 micrómetros. Em conjunto,
constituem uma tempestade de areia invisível de sulfato, nitratos, carbono
negro, pó mineral, cloreto de sódio e amoníaco, a que chamamos
“poluição”. 
Provenientes do escape dos motores de veículos, de minas, de centrais
energéticas e de caldeiras industriais, estas partículas incineradas têm sido
relacionadas de forma muito direta com o cancro de pulmão, doenças
cardiovasculares e renais e com a asma. Na China, que já é o país com a
taxa mais elevada de cancro de pulmão, os especialistas médicos calculam
que o número de pessoas atingidas por esta doença suba para mais de 800
mil anualmente até 2020. É uma epidemia silenciosa. À escala mundial, a
OMS calcula que três milhões de pessoas morram prematuramente de
poluição atmosférica todos os anos. Em comparação, o número de pessoas
que morre de SIDA é cerca de um terço, 940 mil. 
Quando paramos para pensar, a poluição que produzimos numa base
anual é esmagadora. Inclui: 
 
QUÍMICOS PRODUZIDOS: 30 milhões de toneladas por ano; 
POLUIÇÃO DOS OCEANOS POR PLÁSTICO: oito milhões de toneladas por ano; 
MATERIAIS PERIGOSOS: 400 milhões de toneladas por ano; 
CARVÃO, PETRÓLEO E GÁS: 15 giga toneladas (milhares de milhão de toneladas) por
ano; 
METAIS E MATERIAIS: 75 giga toneladas por ano; 
EXPLORAÇÃO DE MINAS E DESPERDÍCIOS MINERAIS: cerca de 200 giga toneladas
por ano; 
ÁGUA POLUÍDA (contaminada na maior parte pelos desperdícios acima): nove biliões de
toneladas por ano. 
 
Estes são os ingredientes de uma gigantesca bomba tóxica, segundo o
veterano jornalista de ciência Julian Cribb. Globalmente, construímos
todos os anos uma dessas bombas. A diferença é que não há uma explosão
ensurdecedora. O que há, em vez disso, é uma precipitação silenciosa: as
partículas invisíveis infiltram-se nos alimentos que comemos, na água que
bebemos e no ar que respiramos. Cribb escreveu: “É rotina encontrar
agora toxinas industriais em bebés recém-nascidos, no leite materno, na
cadeia alimentar, na água para consumo doméstico em todo o mundo.
Foram detetadas desde o pico do monte Evereste (onde a neve está tão
poluída que não está conforme aos padrões de água para consumo) às
profundezas dos oceanos, dos corações das nossas cidades às ilhas mais
remotas […] O mercúrio encontrado nos peixes que comemos e nos ursos
polares do Ártico é precipitação resultante da queima de carvão e aumenta
todos os anos.” 
É uma ilusão a ideia de que existe uma espécie de mundo “exterior” no
qual possamos viver à parte. A ciência mostra-nos aquilo que os nossos
olhos não são capazes de ver: que tudo o que existe faz parte de uma rede,
parte de um fluxo. O que lançarmos para o ambiente acabará por encontrar
o seu caminho de volta aos nossos corpos. 
 
Nas últimas três décadas, surgiram na China centenas de novas cidades.
O país tem hoje mais de seis centenas, a maior parte das quais eram vilas
ou aldeias até há muito pouco tempo. 
A ascensão da China à posição de domínio económico é uma
consequência do seu setor fabril. Os chineses fabricaram as coisas que o
mundo consumia e fabricaram-nas baratas. A colossal energia usada para
movimentar e alimentar a sua população, produzir bens para exportação e
construir as suas novas cidades significa, sem surpresa, que a China é
responsável pela maior quantidade de poluição por carbono. No fim de
2017, o país era responsável por 28 por cento das emissões globais, uma
parte significativa dos cerca de 41 mil milhões de toneladas de dióxido de
carbono que o mundo emite anualmente. 
Se conseguíssemos visualizar esses 41 mil milhões de toneladas de
CO2, seria o mesmo que olhar para o equivalente, em tonelagem, a 41
montes Evereste.106 O facto de não conseguirmos tornou-se o maior
desafio em qualquer discussão sobre alterações climáticas. Mas há uma
outra forma, mais visível, de ver os efeitos dos desperdícios do
combustível fóssil. Sob esta forma, está em todo o lado à nossa volta.
Refiro-me ao plástico. 
Como observa o Conselho Americano de Química, “a maior parte dos
plásticos baseiam-se no átomo de carbono […] O átomo de carbono pode
ligar-se a outros átomos, até um limite de quatro ligações químicas.
Quando todas as ligações são com outros átomos de carbono, podem
resultar diamantes, ou grafite, ou fuligem. Para criar plásticos, os átomos
de carbono também se ligam a […] hidrogénio, oxigénio, azoto, cloro ou
enxofre.” É chocante pensar nisso, mas há apenas cem anos o plástico nem
sequer existia. Como Edward Humes escreve em Garbology, “o plástico
passou tão depressa de zero a omnipresente que se tornou invisível a uma
perceção consciente. Pare por um instante para olhar para a divisão da
casa em que está. Desde os frascos de comprimidos aos puxadores das
portas dos armários, dos botões das calças ao elástico das meias, da
espuma dentro da almofada, do sofá à tigela em que põe a comida ao cão e
às próteses dentárias… ele está em toda a parte.” 
Um habitante médio da América do Norte usa todos os anos cem
quilogramas de plástico, a maior parte sob a forma de embalagens que são
deitadas fora. No entanto, quando foi inventado, o plástico não só era
duradouro como era feito para durar. Em 1907, o químico Leo Baekeland
desenvolveu-o para substituir uma substância produzida por um inseto da
Ásia Oriental, o besouro da laca. Este inseto segrega uma substância dura,
o shellac, uma goma-laca que era recolhida manualmente pela raspagem
do tronco de árvores. E era este material que a então emergente indústria
elétrica utilizava como isolante dos seus fios. 
Baekeland pensou que tinha de haver uma maneira melhor de conseguir
isto e pôs-se a pensar no desenvolvimento de um substituto sintético. No
laboratório, usando uma mistura de formaldeído e fenol (um ácido
derivado do alcatrão de carvão), produziu uma resina espessa e pegajosa.
Só por si não era especialmente útil, mas quando lhe adicionou materiais
como serradura ou amianto a substância ganhou uma resistência
surpreendente. Melhor ainda: quando a injetou em moldes, descobriu que
era possível moldá-la. Tinha criado o primeiro plástico termofixo do
mundo. Baekeland tinha criado shellac sintético. 
Novos objetos brilhantes feitos com o novo material, chamado
baquelite, apareceram nos Estados Unidos pela primeira vez em 1927. O
material era visto como milagroso. Agora, em vez de se usar marfim para
os cabos dos talheres ou casca de tartaruga para as armações dos óculos,
existia uma alternativa, um plástico que podia ser moldado para ter
qualquer forma. Em 1944, já a baquelite era usada em 15 mil produtos. 
Por esta altura, começou a produção em massa dos plásticos de todos os
dias que hoje usamos. PVC, supercola, velcro, licra, sacos de polietileno e
espuma de poliestireno entraram no mercado nas décadas de 1940 e 1950.
Mas, mesmo assim, a produção global de plástico era inferior a um milhão
de toneladas por ano.  
Desde aí, já produzimos mais de oito mil milhões de toneladas de
plástico. Das quais deitámos para o lixo seis mil milhões. 
Olhamos para os objetos do nosso dia a dia, mas somos cegos aos
processos que estão por trás deles. Por exemplo, quando olhamos para um
frasco de champô em plástico não vemos os derramamentos de petróleo,
os aterros ou a Grande Ilha de Lixo do Pacífico. Como milhares de
milhões de pessoas fazem todos os dias, usamos uma vez uma peça de
plástico, um objeto que durará dez mil anos, e depois atiramo-lo para o
lixo. O absurdo, como observa um popular meme da Internet, é que “a
nossa sociedade atingiu um ponto em que o esforço necessário para extrair
petróleo do solo, enviá-lo para uma refinaria, transformá-lo em plástico,
dar-lhe a forma apropriada, transportá-lo para uma loja, comprá-lo e levá-
lo para casa é considerado um esforço menor do que o que custa
simplesmente lavar uma colher depois de a usarmos”. 
As coisas não foram sempre assim. Até aos anos 1950, era dado valor
aos objetos do lar. As pessoas apreciavam a qualidade. Durante gerações,
foram passando de umas para as outras talheres de prata ou frascos de
perfume ou cadeiras ou mesas de jantar ou estruturas de cama. Tornaram-
se as nossas antiguidades. Mas em 1955 começou a emergir um novo
estilo de vida. Um número de agosto de 1955 da revista Life incluía uma
visão da nova família americana. O título do artigo era “Viver a Deitar
Fora” e a fotografia mostrava um homem, uma mulher e uma criança a
lançarem ao ar, como se fossem confetes, objetos domésticos. A
prosperidade material queria dizer que os produtos passavam agora a ser
concebidos e publicitados para terem uma vida curta. Como proclamava a
Life, “as peças descartáveis diminuem as tarefas do lar”. 
Em breve, além dos plásticos de utilização única, os produtos tinham
“épocas” e esperava-se que os consumidores seguissem “tendências”. A
obsolescência planeada tornou-se uma parte do princípio do design.107 Se
os produtos não passassem de moda, então eram construídos para avariar
ao fim de um tempo, para que outros fossem comprados para os substituir.
É importante lembrar que, em termos relativos, esta mudança é
extraordinariamente recente na forma de pensar da humanidade. Mas teve
um impacto incrível. Hoje, apesar dos apelos nacionais para a proibição
do material, em conjunto com a criação de novas formas de plásticos
biodegradáveis, a produção tradicional de plástico ainda cresce todos os
anos e deve subir até 40 por cento mais durante a próxima década. 
Já se terá interrogado: se os plásticos são feitos de combustíveis fósseis
e se estes foram, em tempos, organismos vivos, então porque é que a
maioria dos plásticos não são biodegradáveis? A razão é semelhante
àquela que faz com que seja tão difícil dividir o azoto no ar. No fabrico de
plástico, as moléculas de carvão são aquecidas sobre um catalisador, mas
o objetivo não é separá-las e sim uni-las, para formarem uma ligação
extremamente forte. Quando esta ligação se dá, o plástico torna-se
quimicamente inerte. Os microrganismos que evoluíram para decompor
matéria orgânica nunca antes encontraram na natureza uma ligação de
carbono deste tipo. Por isso, e apesar dos seus milhares de milhões de
anos de evolução, não possuem as capacidades metabólicas para o
digerir.108 
Se os plásticos não podem ser digeridos, podem ser ingeridos. Já não é
novidade que os cientistas encontraram plástico nas entranhas de tudo,
desde o minúsculo zooplâncton na base da cadeia alimentar marinha a
grandes animais, como peixes, aves marinhas e até baleias. Todos os anos,
acabam nos oceanos entre cinco e 13 milhões de toneladas de plástico, e
todos os anos morrem por ingestão desse plástico 100 mil mamíferos
marinhos e mais de um milhão de aves. Há agora tanto desperdício de
plástico que se calcula que no ano 2050 haverá nos oceanos mais plástico,
em peso, do que peixe. 
Claro que nós fazemos parte da cadeia alimentar e os plásticos têm
andado a encontrar o seu caminho até aos nossos pratos – não só para os
fabricar, mas para chegar à comida que pomos lá dentro. Em 2015,
cientistas que percorreram mercados de peixe nas costas da Califórnia e da
Indonésia descobriram que um em cada quatro peixes tinha plástico nas
entranhas. Este número foi ainda mais elevado num estudo realizado no
Canal da Mancha, que detetou polímeros sintéticos em um terço dos
peixes capturados por arrasto – incluindo bacalhau, arinca e cavala. Na
Escócia, foram encontradas fibras de plástico nuns inacreditáveis 83 por
cento dos camarões de Dublin Bay. E no Canadá investigadores
encontraram microplásticos na maioria das ameijoas e ostras, fossem de
aquacultura ou selvagens. 
 
O ar, a terra e a água acabam por tornar-se nós. No limite, como
escreveu o paleoclimatologista Curt Stagger, somos feitos de desperdício:
“Olhe para uma das suas unhas. Metade da massa dela é carbono e mais
ou menos um em cada oito desses átomos de carbono saiu recentemente
de uma chaminé ou de um tubo de escape […] Em parte, [você é] feito de
emissões.” 
Não são apenas os nossos corpos. Há impérios inteiros construídos em
cima de desperdício. A ascensão súbita da China à condição de
superpotência global deve-se em grande parte à sua estratégia de consumir
eficientemente o lixo norte-americano e de se reconstruir com ele. Depois
de os navios carregados de contentores cheios de produtos fabricados
cruzarem os oceanos, idos da China, e largarem a sua carga nas costas dos
Estados Unidos, não fazia sentido, economicamente, que regressassem
vazios. Houve empresários que aproveitaram esse transporte barato de
regresso para enviarem navios cheios de lixo e desperdícios recicláveis. O
lixo dos EUA tornou-se literalmente o ouro da China – e também a prata,
e o cobre, e o alumínio e o zinco. 
É um exemplo perfeito do velho ditado “o lixo de uns é o tesouro de
outros”. Aproveitar um fluxo contínuo de materiais recicláveis era
seguramente mais barato do que extraí-los em casa; por exemplo, reciclar
aço requer menos 60 por cento de energia do que produzi-lo. Em 2010, os
principais carregamentos da China para os Estados Unidos eram
computadores e material eletrónico, com um valor calculado em 50 mil
milhões de dólares. Já as exportações principais dos EUA para a China,
em volume, eram desperdício de metal e de papel – no essencial, segundo
a descrição de Edward Humes, “um pouco mais de oito mil milhões de
dólares em jornais velhos atados, cartão esmagado, aço ferrugento e latas
de bebida prensadas, tudo vendido a preço de saldo”. Em 2016, a China
tinha-se tornado o maior importador líquido de lixo, recebendo
anualmente 45 milhões de toneladas de restos de metal, papel e plástico de
todo o mundo, com um valor calculado em 18 mil milhões de dólares. 
Cidades grandes e pequenas cresceram em toda a China para reciclar e
aproveitar todo este desperdício. A cidade de Shijiao tornou-se a “capital
das luzes de natal”, com pelo menos nove fábricas a retirarem o cobre de
cerca de nove milhões de quilogramas de luzes de árvore de natal deitadas
fora todos os anos. No Leste, a cidade de Qingdao tornou-se o principal
centro de processamento do plástico do mundo, recebendo um total de
nove milhões de toneladas do plástico importado anualmente pelo país.
No Sueste, na cidade de Guiyu, foram criadas mais de 5.500 empresas
para desmantelar mais de 680 mil quilogramas de computadores,
telemóveis e outro lixo eletrónico, para recolher o ouro, chumbo e cobre
que estão no interior – e que são preciosos. 
Para a China, este foi, financeiramente, um grande negócio, mas em
termos ambientais revelou-se tóxico. Em muitas cidades, trabalhadores
expostos a resíduos perigosos registaram índices mais elevados de defeitos
em recém-nascidos, tuberculose, problemas respiratórios e doenças de
sangue. Ao mesmo tempo, depois de quatro décadas a ser a lixeira do
planeta, a China tornou-se a segunda maior economia do mundo. Como
Adam Minter, autor de Junkyard Planet, afirmou numa entrevista à CBC,
“a China está a enriquecer e, quando se enriquece, deitam-se fora mais
coisas. Quando se deitam fora mais coisas, gera-se mais para
reciclarmos”. 
A China não precisa, literalmente, de levar mais com a porcaria do
mundo. Em 1 de janeiro de 2018 pôs um ponto final nas importações
tóxicas e ergueu uma “vedação verde”, ao proibir a importação de 24 tipos
de yang laji, ou lixo estrangeiro. Quase de imediato, montanhas de lixo
que, se não fosse isso, teriam desaparecido da América do Norte,
começaram a acumular-se em depósitos nos Estados Unidos e Canadá.
Estas pilhas não têm agora para onde ir. 
A proibição chinesa obrigará muitos países desenvolvidos a enfrentar os
seus próprios resíduos ou a encontrar soluções diferentes para o curto
prazo. Isso pode significar mais aterros, mais incineração ou descobrir
outro país para onde exportar. Em alternativa, pode querer dizer que,
finalmente, aprenderemos a lidar adequadamente com o nosso próprio
lixo. 
 
Na comédia de ficção científica Regresso ao Futuro, de 1985, a
máquina do tempo DeLorean estava realmente à frente do seu tempo:
usava lixo como combustível. Hoje, vivemos nesse futuro. Carros, frotas
de autocarros, até os próprios camiões do lixo usam biogás produzido a
partir de lixo. Em cidades como Nova Iorque, que gera todos os anos dois
milhões de toneladas de lixo orgânico (incluindo resíduos alimentares), o
gás recolhido a partir da decomposição nos aterros é engenhosamente
transformado em energia. 
Os campeões desta alquimia do desperdício são, no entanto, os suecos.
Na Suécia, os autocarros funcionam a partir de uma bastante invulgar
mistura de lixo humano, de desperdícios de matadouros e de álcool. As
bebidas alcoólicas têm um grande papel na redução das emissões do país
por serem caras na Suécia, o que leva os habitantes a trazê-las quando
viajam para fora do país. Muitos até ultrapassam o limite permitido pela
alfândega, o que significa que todos os anos centenas de milhar de litros
de cerveja, vinho e outras bebidas são confiscadas nas fronteiras. Em vez
de lançarem esse contrabando pelo cano abaixo, os suecos transformam-
no em combustível, sendo que um litro de bebida resulta em meio litro de
biogás. Este “cocktail gigante”, como é conhecido localmente com algum
carinho, faz andar mais de mil camiões e autocarros na Suécia, além de
um comboio movido a biogás. 
Os suecos são tão bons a transformar o seu lixo que só 1 por cento do
que é produzido nas casas acaba em aterros. Em vez de queimarem
combustíveis fósseis para aquecimento, quase um milhão de casas em
todo o país dependem do aquecimento a partir de lixo incinerado. Por
regra, têm de existir estações de reciclagem num raio de 300 metros em
cada área residencial. Dentro de cada uma dessas estações, sistemas de
vácuo de alta tecnologia aspiram o lixo, encaminhando-o para uma das 32
centrais de incineração, onde é transformado em calor ou em eletricidade.
O sistema é tão eficaz que a Suécia importa lixo, recebendo por isso
dinheiro da Noruega, Reino Unido e Irlanda.109 As instalações do país
cobram aproximadamente 43 dólares por tonelada de lixo, o que significa
um rendimento anual superior a 100 milhões de dólares. 
Também é possível retirar valor dos esgotos. Todos os dias, milhares de
milhões de pessoas em todo o mundo deitam pelos canos abaixo pequenas
partículas de ouro – e, tudo junto, isso tem algum peso. De acordo com
Kathleen Smith, do Serviço Geológico dos EUA, os resquícios de ouro,
prata e platina que estão no lodo dos esgotos equivalem a uma mina
comercial. Os metais preciosos, ainda que sob uma forma microscópica,
provêm do lixo industrial110, de produtos quotidianos como champôs e
detergentes e até de nanopartículas que são cosidas em meias com a
função de reduzir o odor corporal. 
O método de extração funciona sensivelmente da mesma forma como a
indústria mineira retira os metais das rochas, com a utilização de
lixiviados. A exploração mineira de esgotos num ambiente controlado
pode funcionar para limpar resíduos biossólidos, tornando o esgoto um
fertilizante melhor. Claro que também há uma vertente financeira. Um
estudo da universidade do estado do Arizona sobre recuperação de metais
preciosos em esgotos determinou que uma população de um milhão de
pessoas produz anualmente, nas águas residuais, o equivalente a 13
milhões de dólares em metais. Em Tóquio, a central de tratamento de
Suwa já começou a extrair ouro dos esgotos. Espantosamente, a produção
é superior à que teria uma exploração mineira normal. Na mina japonesa
de Hishikari, que possui um dos maiores depósitos de ouro do mundo, são
em média encontrados 20 a 40 gramas de ouro por cada tonelada de
minério. Em comparação, na central de Suwa, podem ser recuperados
1.890 gramas de ouro, quase dois quilogramas, em cada tonelada de cinzas
de lodo incinerado. 
Dir-se-ia que a nossa civilização está, por fim, a lembrar-se de que o
desperdício pode ter valor. Na Europa, engenheiros usam o calor libertado
por esgotos e incineradores para manter edifícios aquecidos, enquanto
imensas centrais de computação, como as da Google e da Agência de
Segurança Nacional, usam água fria proveniente de sanitas e sistemas de
lavagem para baixar a temperatura nas instalações que lidam com
megadados. Vários tabus são responsáveis por um “fator de nojo” que
impede a maioria das pessoas de dar valor à natureza essencial do
desperdício no ciclo de nutrientes. Mas devidamente tratadas, para que
fiquem livres de metais pesados, doenças e organismos, as nossas fezes
podem transformar-se em fertilizante ou, colocadas em digestores
anaeróbios, passar a biogás. Um relatório recente das Nações Unidas
sugere que os resíduos humanos recolhidos para produzir energia tem um
valor potencial de 9.500 milhões de dólares por ano. 
Já a nossa urina, por outro lado, é estéril. Em vez de ser lançada na
corrente tóxica dos resíduos comerciais, hospitalares e industriais que
poluem a água doce, podia ser desviada. O azoto que cada adulto produz
por ano só nessa urina é suficiente para cultivar entre 100 e 250
quilogramas de cereal. Em vez de dependermos tanto de fertilizante
sintético, que acaba mais tarde arrastado e levado para o mar, podíamos
fechar o ciclo dos resíduos. Segundo a OMS, uma só pessoa, com as suas
fezes e urina combinadas, produz todos os anos 4,5 quilogramas de azoto.
Lançando mão da tecnologia moderna, podemos começar a regressar à
velha prática seguida pelos chineses, que ao longo de milénios manteve o
solo rico. 
O matemático Alfred North Whitehead defendeu que “a civilização
progride quando multiplica o número de operações importantes que
conseguimos realizar sem pensar nelas”. Os nossos alimentos chegam-nos
de lugares que não vemos; a nossa energia é produzida de formas que não
entendemos; e os nossos resíduos desaparecem sem termos de pensar
nisso. O facto de termos tantos ângulos mortos em relação à nossa
comida, energia e desperdício está longe de indicar que tenhamos
“progredido” enquanto sociedade. 
Os humanos deixaram de estar em contacto com aquilo que é básico no
seu próprio sistema de sobrevivência. Em vez disso, quebrámos
sucessivamente os grandiosos ciclos naturais de vida, morte e
renascimento. Ao assumirmos o controlo do ciclo de nascimento e
produzirmos animais em pecuária, o gado domesticado supera agora os
mamíferos selvagens numa proporção de 15 para 1. O nosso sistema
alimentar é este. 
Ao exumar túmulos pré-históricos, perturbámos o ciclo da morte. Em
vez de deixarmos enterrados os combustíveis fósseis, libertámos 45 por
cento mais dióxido de carbono do que aquele que estaria naturalmente na
atmosfera. O nosso sistema energético é este. 
E quando deixámos de usar os nossos resíduos para voltar a cultivar
alimentos no solo, fintámos o ciclo de renascimento e voltámo-nos para as
máquinas, para que estas aspirassem azoto da atmosfera de uma forma
artificial. Este é o nosso sistema de resíduos. 
Em troca, a população humana explodiu – exigindo mais alimentos e
mais energia e produzindo mais resíduos –, e em breve seremos mais de
dez mil milhões. Quando ouvimos pessoas afirmar que o “sistema” está
estragado, em geral não é ao sistema que se referem. Mas este é o sistema
que nos sustenta na Terra; é o nosso sistema de suporte de vida. E os
resultados ruinosos que ele provoca aumentam rapidamente:
sobrepopulação, alterações climáticas e zonas mortas. Cada uma delas, à
sua maneira, é mortal. Juntas, são catastróficas. 
Alguém podia sugerir que, feitas as contas, estamos a controlar este
sistema. Este afinal é o nosso sistema, criado por nós. Mas se
conseguimos ver que as coisas estão a seguir um mau caminho, dados os
limites de tempo para a nossa sobrevivência, então porque é que não
estamos a mudar de rumo de uma forma radical? Defenderei a seguir que
isso acontece porque existe outro sistema que nos mantém onde estamos,
um sistema que insiste na manutenção da ordem e do statu quo. Mas, para
o vermos, temos de abrir os olhos para ter noção das dimensões invisíveis
que habitamos. Precisamos de olhar com profundidade para os ângulos
mortos do tempo e do espaço. 

93
Ao contrário da ideia feita, a Lua possui atmosfera, embora seja insignificante em comparação
com a densidade da atmosfera da Terra. O termo técnico para este tipo de atmosfera livre de colisões
é “exosfera de fronteira superficial”. 

94
Em 1832, só em Paris, morreram de cólera 20 mil pessoas.

95
“O solo de noite humano é essencialmente o resíduo do que as pessoas comem depois de terem
absorvido os nutrientes necessários. O solo de noite de uma população que comeu muito peixe e
carne contém geralmente mais azoto e fosfato. As pessoas cuja dieta foi essencialmente vegetariana
(cereais e vegetais) produzem solo de noite em geral pobre em azoto e fosfatos, mas rico em potássio
e sal.” Tajima, Kayo, “The Marketing of Urban Human Waste in the Early Modern Edo/Tokyo
Metropolitan Area” Environment urbain: cartographie d’un concept, Vol. 1 (2007).

96
A Guerra do Guano é também conhecida como Guerra das Ilhas Chincha.

97
Os dejetos de aves retiram todos os anos do oceano 3,8 milhões de toneladas de azoto. O azoto
provém de gases dissolvidos no ar que se misturam com a água e se tornam hidrogénio fixado.
Durante o século XIX, este processo era essencialmente realizado por cianobactérias.

98
Os nitratos tinham um fim duplo: podiam ser transformados em fertilizantes ou em explosivos. Um
carregamento demorava três meses a chegar à Europa. Os alemães, em especial, estavam interessados
em criar a sua própria fonte de nitratos, pois sabiam que em tempo de guerra podiam sofrer um
bloqueio e isso diminuiria a sua capacidade para produzir alimentos e repor as reservas de pólvora. 

99
Hoje, entre 90 milhões e 120 milhões de toneladas de azoto no nosso sistema alimentar resultam de
processos naturais, como bactérias que fixam azoto e relâmpagos.

100
Era duas vezes maior do que a primeira fábrica-piloto, em Oppau, que explodiu, matando 600
pessoas e ferindo 200, depois de o fertilizante armazenado num silo ter solidificado. Misturado com
nitrato de sódio, estava a ser manufaturado para se tornar pólvora, mas a combinação revelou-se
instável e provocou uma explosão que ainda hoje é apontada como um dos maiores acidentes
industriais da história. O Leuna abrange hoje 13 quilómetros quadrados.

101
Depois de muitas experiências, a equipa decidiu-se por ferro com óxido de alumínio e cálcio
como catalisador. 

102
Todo esse dióxido de carbono em excesso pode ser invisível para nós, mas continua a ser lançado.
Só os resíduos alimentares representam anualmente 3.300 milhões de toneladas de CO2. É mais do
que duas vezes e meia as emissões de CO2 de todos os veículos nos Estados Unidos juntos.

103
Em todo o mundo, cerca de 80 por cento do azoto recolhido em colheitas e erva vai para alimentar
gado, em vez de alimentar diretamente as pessoas. Muito desse azoto acaba no esterco dos animais e
depois transforma-se em gás quando está em imensas lagoas abertas junto de centros de exploração
pecuária intensiva ou quando é espalhado pelos campos sem ser devidamente misturado no solo.
Mingle, Jonathan. “A Dangerous Fixation”, Slate, 12 de março de 2013.

104
É possível haver excesso de uma coisa boa. O processo é semelhante ao da alimentação excessiva
de peixes. O que sucede é que adicionámos artificialmente duas vezes mais azoto e três vezes mais
fósforo do que aquele que estaria presente num sistema natural.

105
Os dias de céu azul político são 4,8 por cento mais baixos do que os níveis médios, mas as leituras
nos quatro dias posteriores são 8,2 por cento mais elevadas. 

106
O peso do monte Evereste é de aproximadamente mil milhões de toneladas.

107
O exemplo mais famoso de obsolescência planeada é a lâmpada elétrica. A lâmpada média
incandescente tem hoje uma duração de 1.200 horas. As lâmpadas LED duram cinco vezes mais.
Mas, quando foram inventadas, as lâmpadas duravam muito mais. A verdade é que numa estação de
bombeiros em Livermore, na Califórnia, há uma lâmpada acesa em permanência desde 1901.

108
Existem algumas espécies capazes de biodegradar plástico. A recém-descoberta espécie
bacteriana Ideonella sakainesis, por exemplo, segrega uma enzima que, nas condições ideais de
temperatura, consegue decompor garrafas de plástico.

109
Há um bónus: as emissões de CO2 resultantes da queima dos resíduos são também negativas.

110
“Metais preciosos como o ouro chegam aos esgotos por cortesia de operações de extração de
minério, galvanoplastia, eletrónica e joalharia, ou de catalisadores para a indústria ou para o fabrico
de automóveis.”
PARTE TRÊS 

ÂNGULOS MORTOS
CIVILIZACIONAIS  

AQUILO QUE NOS CONTROLA 



Senhores do Tempo 
Dizem que sou louco porque não vendo os meus dias por ouro;  
e eu digo que eles são loucos por pensarem que os meus dias têm um preço. 
KAHLIL GIBRAN 

No dia 1 de janeiro de 2018, ao meio dia e cinco, várias centenas de


passageiros em Auckland, na Nova Zelândia, entraram numa máquina do
tempo metálica e recuaram a 2017. Foi notícia em todo o mundo, ainda
que a máquina do tempo não fosse uma invenção nova: era o voo 446 da
Hawaiian Airlines, numa ligação regular. A única diferença era que, dessa
vez, partiu pouco depois da meia noite. Rumou a nordeste e cruzou a linha
internacional de data, para o Havai, que tem 23 horas menos do que a
Nova Zelândia, o que significa que aterrou no ano anterior, às dez e 15 da
manhã. 
A linha imaginária que separa o mundo em dois dias é conhecida como
Linha Internacional de Mudança de Data. Criada pela primeira vez em
1884, esta linha norte-sul cruza o mundo a partir do coração do nosso
sistema de tempo global: o meridiano de Greenwich, em Inglaterra. Não
segue o mesmo rumo fixo de uma coordenada de longitude; em vez disso,
e como a linha de data não tem estatuto internacional legal, faz
ziguezagues entre países, que têm liberdade para decidir de que lado
querem estar. 
Por causa disto, alguns países encontram-se agora separados por dois
dias, em vez de por apenas um. Como é isto possível? Há mais de um
século, a Samoa decidiu ficar “um dia para trás”, para poder permanecer
na mesma zona de tempo dos Estados Unidos e assim facilitar as relações
comerciais. Kiribati, que fica ligeiramente mais para leste e tem uma hora
a menos, escolheu ficar do outro lado da linha de data, um dia no futuro.
Depois, em 2011, a Samoa Ocidental exerceu o seu direito soberano de
mudar de ideias. Como a Austrália e a Nova Zelândia se tinham tornado
parceiros comerciais mais importantes, voltou a saltar para o futuro,
avançando de 29 de dezembro para 31 de dezembro (e, desse modo,
prescindindo completamente do dia 30), juntando-se aos países do outro
lado da linha de data. A Samoa Americana, um território dos Estados
Unidos, decidiu, contudo, ficar para trás. Isto quer dizer que todos os dias,
durante duas horas, coincidem na Terra três dias. Quando são 23h30 de
terça-feira na Samoa Americana, são 6h30 de quarta-feira em Toronto e
12h30 de quinta-feira em Kiribati.111 
A política dita a hora, mas a geografia também. Nos polos Norte e Sul,
por exemplo, não há zonas horárias, porque aqui convergem todas as
coordenadas de longitude. A uma latitude de 90o Norte, onde o gelo está
constantemente a mudar, também não há habitantes permanentes, e por
isso neste local no Ártico não há, tecnicamente, uma hora. Os
exploradores polares têm algumas possibilidades quando decidem
escolher uma: pode ser uma hora que lhes seja conveniente, a do seu país
de origem, ou podem utilizar a do meridiano de Greenwich, como os
astronautas que dão todos os dias 16 voltas ao planeta. 
O facto de todos, em todo o mundo, terem os seus relógios acertados de
acordo com um padrão fixado pelo Observatório Real em Greenwich,
Inglaterra, é um indicador de que a forma como habitamos o reino global
do tempo não é exatamente natural. É uma tecnologia e, como muitas
tecnologias, nasceu de uma necessidade prática. 
A razão pela qual o meridiano principal passa por Greenwich e não por
outro lugar qualquer é que esta localidade específica foi palco, no século
XVIII, de uma batalha épica entre os dois guardiões do tempo dessa
época: astrónomos e relojoeiros, que disputavam quem dispunha do
método mais rigoroso para medir o tempo. Os que olhavam para as
estrelas faziam os seus cálculos a partir do céu, como sucedia há
eternidades, enquanto os relojoeiros depositavam a sua fé nas suas
próprias mãos e na sua capacidade de construir máquinas capazes de
medir o tempo. 
Para os marinheiros, a possibilidade de saber as horas não era uma
questão sem importância. Era um caso de vida ou de morte. E era também
uma questão de interesse nacional. Em 1714, o parlamento ofereceu um
prémio de 20 mil libras – o que, em dinheiro de hoje, representaria
milhões – à primeira pessoa que fosse capaz de cartografar com rigor a
longitude. Se a latitude, norte ou sul, podia ser determinada pela posição
do Sol, já a longitude era bem mais difícil de calcular quando se deixava
de ver terra. O céu noturno podia ser usado para navegar, como sucedia há
séculos, mas o processo não era especialmente rigoroso, e claro que os
navegadores podiam querer saber onde se encontravam durante o dia. Era
fundamental, de dia, ter um registo rigoroso da hora, para medir a
distância que um navio tinha viajado para leste ou para oeste. Era fácil
saber as horas localmente, mas só através de uma comparação com a hora
no porto de origem era possível saber a que distância se encontravam. E,
para isso, precisavam de um relógio. 
Como a escritora Dava Sobel escreveu em Longitude, “em todo o
mundo um grau de longitude é igual a quatro minutos de tempo, mas em
termos de distância um grau encolhe, passando de 110 quilómetros no
Equador para praticamente nada nos polos… Por falta de um método
prático para determinar a longitude, cada grande capitão da Era da
Exploração acabou por se perder no mar, mesmo com os melhores mapas
e bússolas disponíveis”. 
No final, o problema acabou por ser resolvido por um mestre relojoeiro
chamado John Harrison, que construiu um relógio de uma precisão tal que
só se atrasava um terço de segundo por dia. E à medida que os relógios do
mar, ou cronómetros, se foram expandido, o Império Britânico também.
Assim, não foram só “armas, germes e aço”, para fazer uma referência ao
livro de Jared Diamond, que ajudaram a Britannia a conquistar novas
terras, foi também o controlo que o império exercia sobre o tempo.
Segundo especialistas em horologia, a tecnologia dos cronómetros
permitiu aos britânicos “dominarem as ondas” e conquistarem novas terras
para lá delas. 
Mas o tempo não é apenas linhas imaginárias. Enquanto dimensão, o
tempo pode ser invisível para nós, mas conseguimos sentir a sua presença.
Podemos ver o efeito do tempo nos nossos corpos à medida que
envelhecemos e testemunhar os seus ciclos no corpo do planeta, através da
sequência sazonal de verdes, vermelhos e brancos. Há muito que as
pessoas dependem da natureza para saber as horas, incluindo sob a bela
forma das flores. Em 1750, o botânico e célebre taxonomista sueco Carl
Linnaeus teve uma ideia inteligente para medir o tempo. Desenhou o
projeto daquilo a que chamou um horologium florae, ou relógio de flores.
Sabendo que certas plantas florescem a certas horas do dia, Linnaeus
defendeu que era possível dizer que horas eram só por olhar para um
jardim e ver quais as espécies que estavam a florescer. 
Linnaeus chamou a estas plantas especiais aequinoctales. Entre as
espécies que ele viu a florescer a determinadas horas estavam os lírios de
um dia, a pilosela ou a tagetes. E, deste modo, um relógio de flores
funcional, como o imaginou o poeta Tom Clark, seria qualquer coisa deste
género: 
 
6h A leiteiriga abre; 
7h A tagetes africana abre; 
8h A pilosela orelha-de-rato abre; 
9h O sonchus fecha; 
10h A lapsana fecha; 
11h O ornitogalo abre. 
 
O relógio de flores de Linnaeus nunca poderia vingar, porque, na
maioria das plantas que ele observou, o momento de abrirem ou fecharem
não dependia de uma hora especial do dia, mas da quantidade de luz que
recebiam. As flores são relógios locais. Durante o longo sol de verão, as
flores na latitude de Uppsala, na Suécia, a norte, não abririam ao mesmo
tempo que as de Brooklyn, em Nova Iorque. 
A visão não é, contudo, a única maneira de ver as horas; também é
possível através do som. Os alarmes dos despertadores e os toques das
escolas são comuns para nós, mas o despertar da natureza ainda é feito
através do canto dos pássaros. Um artigo no The Horological Journal
assegurou que é possível saber as horas através deste “relógio
ornitológico”, se se souber quando é que um pássaro específico canta. Por
exemplo, o tentilhão-verde (“o mais madrugador entre todas as tribos com
penas”) canta entre a 1h30 e as 2h, a toutinegra vem a seguir, entre as 2h e
as 2h30, depois é a vez da ferreirinha, das 3h às 3h30, do melro, das 3h30
às 4h, das cotovias, entre as 4h e as 4h30, do chapim-de-crista-preta entre
as 4h30 e as 5h e finalmente, quase na alvorada, entre as 5h e as 5h30, do
pardal. Mas, mais uma vez, o relógio da natureza não pode ser replicado,
porque depende quer da localização, quer das espécies de aves. 
Para além do ouvido e da visão, há outro sentido que também podemos
usar para saber as horas. Durante a dinastia Song (entre os anos 960 e
1279), os chineses construíram relógios de incenso com os quais
cheiravam o passar das horas. Em A Geography of Time, Robert Levine
escreve: “Este engenho de madeira consistia numa série de pequenas
caixas do mesmo tamanho ligadas entre si. Em cada caixa estava uma
fragrância de incenso diferente. Conhecendo o tempo que cada caixa
demorava a consumir o que tinha no interior, e a ordem pela qual os
incensos ardiam, os observadores conseguiam identificar a hora do dia
pelo cheiro que pairava no ar.” 
Estes são apenas alguns dos métodos que a nossa espécie tem usado
para contar o tempo, mas os humanos não são as únicas criaturas atentas a
isso. Sabe-se que muitos animais – como abelhas, ratos e cigarras, só para
referir alguns – registam com precisão a passagem do tempo. Mas surge
muitas vezes uma questão essencial: será que estes animais indicam a hora
do dia com base em sinais ambientais exteriores, como o sol, ou haverá
algum outro relógio biológico que lhes permite registá-la internamente? 
Um dos estudos mais conhecidos a examinar como é que os animais
experienciam o tempo foi realizado em 1955 pelos cientistas Max Rener e
Karl von Frisch. Sabia-se que as abelhas comuns vão alimentar-se com
frequência todos os dias à mesma hora e que também podiam ser treinadas
para procurar alimento em alturas específicas. Os investigadores queriam
saber se uma mudança na zona horária afetaria o seu comportamento.
Assim, colocaram 40 abelhas numa divisão fechada em Paris e treinaram-
nas para todos os dias procurarem o jantar entre as 20h15 e as 22h15. A
luz, temperatura e humidade na sala eram mantidas constantes. Então,
uma noite, entre momentos de procura de alimento, Renner pôs os insetos
numa caixa e levou-os para o outro lado do Atlântico. Quando voltou a
abrir a caixa, as abelhas encontravam-se numa divisão selada idêntica,
mas em Nova Iorque. 
A questão era: quando é que as abelhas sairiam para se alimentar?
Existiria algum sinal externo relacionado com a posição da Terra e sem
relação com a luz do sol que levasse as abelhas a sair para procurarem
alimento às 20h15, hora de Nova Iorque? As abelhas responderam saindo
a meio da tarde, pelas 15h15, demonstrando que estavam a registar o
tempo internamente, porque em Paris eram precisamente 20h15, hora de
jantar. 
No Pacífico Sul, há uma outra criatura conhecida pelo seu sentido do
tempo: o palolo. Todos os anos, estas minhocas marinhas são
protagonistas de um acontecimento de desova em massa que traz à
superfície da água alguns milhões delas, uma vez que têm o acasalamento
sincronizado com as fases da Lua. Para os locais, esta orgia é também um
festim gastronómico. Um artigo na National Geographic narrava: “As
minhocas são fritas em óleo ou cozinhadas num pão com óleo de coco e
cebolas. Um novo prato do dia surge nos menus dos restaurantes locais:
minhoca palolo sobre tosta. É considerado um prato gourmet.” Na
verdade, no Vanuatu, o acontecimento tem uma importância de tal ordem
que está assinalado no calendário lunar. 
Então, como é que um animal aparentemente simples, como uma
minhoca, sabe ver as horas? Ao estudar uma espécie diferente de minhoca
marinha, a Platynereis dumerilii, a neurobiologista Kristin Tessmar-Raible
encontrou provas de um relógio biológico lunar. Num ambiente
laboratorial, usando lâmpadas LED e comuns, descobriu que as minhocas
criadas num aquário com as luzes constantemente acesas nunca
desenvolviam ciclos reprodutivos. Mas se as luzes fossem ligadas por um
período determinado, como se existisse uma lua artificial, as minhocas
entravam em sincronia com o seu próprio relógio circadiano.112 O
mecanismo exato por trás deste comportamento ainda permanece um
mistério, mas as minhocas possuem efetivamente nos seus cérebros
neurónios sensíveis à luz. Os investigadores acreditam que isto faz
funcionar uma espécie de circuito neural repetitivo, para que “alguma
coisa no corpo preserve a memória dessas iluminações noturnas”. 
Claro que o animal humano também possui um ritmo circadiano. Como
a maior parte dos seres, o nosso ciclo diário está sincronizado com o sol, e
embora não haja uma correspondência perfeita de 24 horas, é
notavelmente próxima. Investigadores da universidade de Harvard
descobriram que o relógio interno de cada pessoa funciona de acordo com
um ciclo de 24 horas e 11 minutos, com uma margem de erro de 16
minutos. 
Havia curiosidade entre cientistas para saber se o ritmo circadiano
humano podia ser enganado, como foi tentado com as abelhas. Em 1972,
para determinar isso, um geólogo chamado Michel Siffre aceitou
participar num estudo financiado pela NASA no qual passaria seis meses
sozinho numa caverna em Del Rio, no Texas. Objetivo? Descobrir como
responderia o corpo humano a um isolamento prolongado. Siffre não
passaria fome. Todas as suas necessidades básicas estavam asseguradas:
haveria alimentos e água em abundância e até lhe era dada a possibilidade
de controlar a temperatura e a iluminação. Mas, para além disso, não tinha
pistas externas, como por exemplo a luz do sol ou as estações do ano, que
funcionassem como relógio interno. 
Para Siffre, um experimentado explorador de grutas, os dois primeiros
meses foram relativamente fáceis. Leu Platão, ouviu discos e explorou o
seu novo ambiente. No âmbito da investigação, havia elétrodos ligados ao
seu corpo para seguirem o cérebro, o coração e a atividade muscular.
Siffre também foi mantendo um diário onde escrevia os pormenores da
experiência. Uma das principais descobertas foi que, sem a luz do dia para
calibrar o seu relógio interno, o corpo de Siffre abandonou o ciclo diário
de 24 horas e encontrou um diferente. Periodicamente, ficava acordado 32
horas e dormia 16. E, algumas vezes, o seu corpo assumiu durante algum
tempo um ciclo de 48 horas, embora a variação em geral oscilasse entre as
18 e as 52 horas. 
Dentro da gruta e sem muita luz, as fronteiras do tempo começaram a
tornar-se difusas. “Acredito que, quando estamos rodeados pela noite – a
gruta estava completamente escura, apenas com uma lâmpada –, a nossa
memória não apreende o tempo”, afirmou ele. “Esquecemo-nos. Ao fim
de um ou dois dias, não nos lembramos do que fizemos um ou dois dias
antes. As únicas coisas que mudam é quando acordamos e quando nos
deitamos. Para além disso, é sempre escuro. É como se fosse um longo
único dia.” 
No 79.º dia, Siffre não só tinha começado a perder a noção do tempo
como tinha começado a perder a cabeça. Sem contacto com o exterior,
sentia uma desolação esmagadora. O seu único “amigo” era um rato que
lhe vinha roubar os víveres. Por isso sentiu uma perda terrível quando um
dia, por acidente, esmagou o rato (estava a tentar apanhá-lo, com uma
frigideira, para tentar domesticá-lo); então, sem ninguém para lhe fazer
companhia, a depressão piorou. Siffre começou a pensar em suicídio.
Mergulhou tanto neste negrume mental que quando uma tempestade no
exterior lhe enviou uma descarga de eletricidade para os elétrodos
cardíacos, estava espiritualmente tão atordoado que foram precisas quatro
descargas antes de lhe ocorrer sequer que tinha de retirar os fios. 
Finalmente, no dia 179, saiu. O estudo tinha sido muito difícil, mas, se
havia uma pequena bênção, era esta: Siffre pensava que tinha estado
menos tempo na gruta. Estudos mais recentes descobriram que o
isolamento de estímulos externos dilata o tempo. Siffre julgava que se
encontrava na gruta há apenas 151 dias.  
 
Enquanto dimensão, o tempo vai muito para além da escala e perceção
humanas. Isso acontece porque a verdadeira natureza do tempo não é só
profunda, mas infinita, indo desde o Big Bang até ao momento atual. Na
cosmologia hindu e budista, a palavra kalpa, do sânscrito, refere-se a este
tempo estendido, com cada kalpa a durar um éon de 4.320 milhões de
anos humanos. Esta extensão do tempo altera as nossas perceções113 e dá-
nos de algum modo um melhor sentido de onde nos encontramos no
contínuo. Imaginem, por exemplo, que se em vez do ano 2020
marcássemos a data a partir de um ponto inicial diferente. Isto é, se não
contássemos a partir do nascimento de Cristo, mas a partir do nascimento
do sistema solar. De que forma diferente olharíamos para o nosso tempo
na Terra se escrevêssemos a data 26 de janeiro do ano 4.543 milhões? 
Na escala hiperimediata, também falamos de tempo rápido. Se ouvirmos
alguém usar as expressões em inglês “estou aí em dois shakes” ou “num
jiffy”, isso significa que será imediatamente. Mas, em eletrónica, um jiffy
tem um significado mais preciso. Refere-se ao período de um ciclo de
energia alternada, ou 1/60 de um segundo. Por outro lado, um shake
equivale a dez nanossegundos, ou 10-8 segundos, e é usado em física
como uma medida para cronometrar as reações em cadeia numa explosão
nuclear. 
Para os não cientistas, aquilo de que em geral falamos quando nos
referimos ao tempo é do que sentimos numa escala humana. Durante a
maior parte da história, o tempo era qualquer coisa de tangível. Os nossos
próprios corpos mantinham o registo do dia e da noite e os corpos celestes
marcavam as nossas estações e calendários astronómicos. O Sol, a maior e
mais brilhante estrela do nosso céu, é o corpo celeste que ainda usamos
para assinalar a passagem do tempo. Para os antigos egípcios, quando o
Sol se punha, a medição do próprio tempo desaparecia, e isto continuou a
ser assim com os relógios de sol romanos. Como rezava a inscrição num
destes relógios de sol, “Absque sole absque usu”. Isto é, “sem Sol, sem
utilidade”. 
O relógio de água, ou clepsidra, foi o primeiro engenho a marcar a
passagem do tempo depois do pôr do sol, usando uma quantidade
específica de água que demorava um tempo determinado a pingar através
de um orifício para um recipiente. A ampulheta, hoje usada
essencialmente como elemento decorativo, também media o tempo usando
a gravidade. 
Em diferentes partes do mundo, o tempo tem sido medido de formas que
podemos agora considerar bastante invulgares. O historiador E.P.
Thompson observou: “Em Madagáscar, o tempo pode ser medido por uma
‘cozedura de arroz’ (cerca de meia hora) ou pela ‘fritura de um gafanhoto’
(um instante). Habitantes de Cross River [na Nigéria] terão dito que ‘o
homem morreu em menos tempo do que leva a assar milho’ (menos de
quinze minutos).” O tempo não era uma construção abstrata, mas uma
medida real baseada na duração habitual de alguns acontecimentos. Mas
todos os métodos de medição de tempo do passado – desde o uso das
estrelas à água e do arroz cozido aos gafanhotos fritos – eram ainda
medidas da transformação de organismos físicos. Só com a invenção do
relógio é que o tempo se tornou uma unidade de medida centrada em si
mesma. 
Hoje, quando olhamos para o relógio de pulso, vemos um tempo que o
próprio relógio criou. Ou seja, o tempo do relógio é uma invenção
humana. Em inglês, a expressão “o’clock” ainda vem daí. “Ten o’clock” é
“ten of the clock”, do relógio. A distinção entre tempo “do relógio” e
tempo vivido costumava ser importante, mas hoje o tempo “do relógio” é
praticamente universal. Poucos de nós medem a hora do dia pela subida
das marés ou pela posição das estrelas. O tempo já não é um fluxo
dimensional que nós, em conjunto com o resto da natureza, habitamos,
mas antes uma construção, uma “coisa” que ordena as nossas vidas e à
qual temos de obedecer. 
Isto não significa que seja uma má ideia termos tempo coordenado.
Antes de estarmos sincronizados, era difícil fazer combinações e a maior
parte dos encontros tinham de acontecer a horas claras e específicas, como
por exemplo ao raiar da aurora. O facto de no passado o tempo ser inexato
queria também dizer que era flexível. E hoje, em muitas partes do mundo,
o tempo ainda não é uma entidade rígida. É por isso que muitas pessoas
adoram a experiência de “andar sem horas”. Para os que viajam, isso
permite-lhes escapar ao ritmo rigoroso do mundo moderno. A ideia é que
o tempo não nos controla, somos nós que controlamos o tempo. 
O tempo localizado foi a forma como medimos o tempo durante a maior
parte da história. Os primeiros relógios mecânicos apareceram por volta
do século XIV e usavam qualquer coisa chamada escape. No essencial, é
um mecanismo com pesos que anda para trás e para a frente e movimenta
uma roda dentada. Isto criou o tique, ou o ritmo, do tempo. Estes
primeiros relógios eram colocados nos centros das cidades e em igrejas e
marcavam a hora dos acontecimentos públicos. Um século depois, no
início dos anos 1500, o ferreiro alemão Peter Henlein inventou o primeiro
relógio. Também se tornou, em 1524, o fabricante dos primeiros relógios
de bolso. Estes relógios portáteis encolheram os aparelhos do tempo de
uma forma semelhante àquela como os computadores pessoais encolheram
para o tamanho dos telemóveis. E, tal como os primeiros telemóveis, estes
novos relógios eram caros. Só os ricos podiam adquirir as criações de
Henlein. 
Os relógios portáteis só se generalizaram no início do século XIX. Para
determinar a longitude, os navegadores tornaram-se os primeiros a adotar
os cronómetros portáteis. Em 1737, só existia um cronómetro, mas em
1815 já eram mais de cinco mil. Na verdade, foram os militares que
popularizaram o uso de relógios de pulso. Em 1880, o fabricante de
relógios suíço Constant Girard produziu em massa dois mil relógios para
oficiais da marinha alemã. Na Primeira Guerra Mundial, estes relógios de
pulso, ou “relógios de trincheira”, como se tornaram conhecidos,
permitiram aos soldados coordenar os seus movimentos sem terem de
vasculhar as mochilas à procura de um relógio de bolso. Para os aviadores,
um relógio de pulso era especialmente útil, pois permitia-lhes manter as
duas mãos nos comandos. 
Mesmo assim, o tempo manteve o seu próprio ritmo local em várias
partes do mundo. E a pressão para criar uma hora global baseada em
medidas europeias encontrou resistência. Como Ian Beacock escreveu na
revista The Atlantic, no artigo “A Brief History of (Modern) Time”, a
mudança do tempo local para um tempo padronizado gerou, em alguns
casos, oposição violenta:  
 
“Em janeiro de 1906, vários milhares de trabalhadores de tecelagens de algodão nos
arredores de Bombaim revoltaram-se. Recusando-se a trabalhar nos seus teares, apedrejaram
fábricas e a sua revolta espalhou-se para o centro da cidade, onde mais de 15 mil cidadãos
assinaram petições e marcharam em fúria pelas ruas. Protestavam contra a proposta para
abolir a hora local em favor da Hora Padrão Indiana, para ficar cinco horas e meia à frente da
de Greenwich. Para os indianos do início do século XX, isto parecia mais uma tentativa para
esmagar as tradições locais e reforçar o poder britânico. Só em 1950, três anos após a
independência da Grã-Bretanha, foi adotada uma zona horária única a nível nacional. Os
jornalistas batizaram esta disputa como Batalha dos Relógios. Durou quase meio século.” 
 
A hora, como em breve veremos, veio beneficiar algumas pessoas à
custa de outras. E à medida que a sua medição se foi tornando mais
precisa, o tempo moderno tornou-se menos flexível. Tendo perdido a
ligação com medidas que somos fisicamente capazes de perceber, o tempo
moderno não é uma medida de organismos ou de acontecimentos. É
impercetível. E este é o nosso ângulo morto: confundimos a nossa medida
humana do tempo com o próprio tempo. O poder do tempo sobre nós está
no facto de ser intangível. No fim de contas, como é que se consegue
controlar qualquer coisa sobre a qual não se tem controlo? 
O relógio de quartzo médio oscila a partir das vibrações impercetíveis
de um cristal a 32.768 Hz. Os relógios atómicos que tudo governam, do
GPS aos nossos smartphones e aos semáforos, medem as vibrações
invisíveis de átomos de estrôncio. Os relógios atómicos do Observatório
Naval dos Estados Unidos possuem uma tal precisão que não se atrasarão
um segundo em mais de 300 milhões de anos, mas até este grau de
precisão nada tem que ver como os mais recentes engenhos horológicos.
Hoje, o mais preciso dos relógios atómicos atrasar-se-á apenas um
segundo em 90 mil milhões de anos. O tempo enquanto medida em si é
agora completamente abstrato. Como Dean Buonomano escreveu em Your
Brain is a Time Machine, “em 1967, um consórcio internacional definiu
um segundo como ‘a duração de 9.192.631.770 períodos da radiação
correspondente à transição entre os dois níveis hiperfinos do estado
fundamental do átomo de césio 133’. A unidade básica de tempo passou a
estar permanentemente divorciada das dinâmicas observáveis dos planetas
e colocada no domínio do comportamento impercetível de um único
elemento”. 
Se outrora o tempo foi subjetivo, hoje é totalmente objetivo. Não é o sol
que nos diz a hora. Em vez disso, andamos às ordens do tempo atómico. A
humanidade inteira foi sincronizada. O tempo já não é um sinal do sol,
mas um pulsar constante que nos é apontado a partir de satélites no
espaço. 
 
Em 2013, uma jornalista da estação de televisão japonesa NHK, Miwa
Sado, de 31 anos, morreu subitamente, com o telemóvel nas mãos, de um
mal conhecido como karoshi, um termo japonês que significa “morte por
excesso de trabalho”. Este termo existe porque, no Japão, a mortalidade
ocupacional é uma doença real. Sado tinha feito nesse mês 159 horas
extraordinárias114 antes de cair vítima de uma falha cardíaca. Segundo o
repórter Jake Adelstein, que trabalha a partir de Tóquio, a sua morte súbita
foi apenas uma entre milhares que acontecem todos os anos resultantes de
provável excesso de trabalho. 
O governo abriu uma investigação e em 2016 publicou o seu primeiro
livro branco sobre karoshi. O relatório indicava que um quinto de todos os
trabalhadores japoneses se encontrava em risco de morte por excesso de
trabalho. De acordo com as empresas investigadas, 22,7 por cento dos
funcionários registavam mais de 80 horas de trabalho extra por mês – o
limiar em que o trabalho a mais se torna um risco de saúde – e outros 12
por cento tinham feito mais de 100 horas extraordinárias. 
A tirania do tempo não é nova – e seguramente que não é exclusiva do
Japão. Há milénios que o tempo estrutura os nossos dias. Já há dois mil
anos as pessoas se queixavam. Numa das suas peças, escrita no ano 224
a.C., o dramaturgo romano Plauto amaldiçoava o relógio de sol com estas
palavras famosas: 
 
Os deuses amaldiçoem o homem que descobriu primeiro 
Como distinguir as horas. Amaldiçoem também o que, 
Neste lugar colocou um relógio de sol, 
Para tão maldosamente cortar e dividir os meus dias 
Em pedaços pequenos! Quando eu era um rapaz 
O meu relógio de sol era a minha barriga – e tinha mais certeza, 
Mais verdade, e mais exatidão do que qualquer deles. 
O relógio dizia-me quando era a altura certa 
Para ir jantar, quando devia comer: 
Mas hoje, porque é que mesmo quando tenho fome, 
Não posso ir a menos que o sol dê autorização. 
A cidade está tão cheia destes malditos instrumentos. 
 
Os relógios de sol de ontem são os digitais de hoje. E embora nos seja
recordado com frequência como o nosso passado ancestral era brutal, vale
a pena lembrar que na sua procura de alimentos o caçador-recolector
trabalhava em média três a cinco horas por dia ou 20 horas por semana.
Materialmente, podemos ter sido pobres, mas quanto a tempo éramos
ricos. E se realmente tempo é dinheiro, então não estávamos assim tão
mal. 
O sociólogo Daniel Bell fez esta observação arguta: a “industrialização
não teve o seu início com a abertura de fábricas”, começou “com a
medição do trabalho”. Dito de outra forma, a invenção da máquina a vapor
ou da máquina de fiar não mudou tanto o mundo como a nossa atitude em
relação ao tempo. Num exemplo notável da expressão “tem cuidado com
aquilo que desejas”, acontece que a ideia de trabalho extraordinário
nasceu entre os fabricantes de tecidos na Europa nos anos 1300. Na Idade
Média, o tempo de trabalho era, como sempre tinha sido, equivalente à
quantidade de trabalho que podia ser feita à luz do dia, do nascer ao pôr do
sol. Na realidade, as coisas eram ainda bastante descontraídas.115 Nas
cidades, os sinos das igrejas assinalavam o início e o fim do dia de
trabalho; para os trabalhadores agrícolas, isso não era necessário, porque
quando estava escuro era impossível trabalhar no campo. Os fabricantes
de tecidos, por outro lado, trabalhavam no interior, nas fiações, e por
haver tantos dias de festa no ano (marcados pelo calendário religioso)
estavam proibidos de fiar durante esses períodos. Isso queria dizer que
nem sempre conseguiam completar o trabalho. Para o conseguirem,
começaram então a pedir mais horas de trabalho e a pagar mais, uma coisa
que hoje é banal, mas que era então desconhecida. No entanto, trabalhar
de noite era ilegal; os que fossem apanhados a trabalhar à luz da vela eram
multados e banidos do comércio para sempre. 
Foi só em 1315 que os proprietários das fiações de algodão começaram
a autorizar o trabalho noturno. Tanto quanto se sabe, foi um dos primeiros
casos de pagamento por tempo contado pelo relógio. Como conta o
historiador Peter Sabel, nas cidades de Artois e Flandres, centros da
indústria de tecido, começou a ser usado o termo clocke des ouvriers, ou
“sino dos trabalhadores”. E em breve um novo ritmo começaria a ser
imposto pelos fabricantes de têxteis. 
Ao contrário dos antigos relógios de igreja, a nova adesão dos
trabalhadores aos relógios, ou Werglocken, era alvo de uma aplicação mais
rigorosa. Para os impedir de fazer batota e de passar o tempo sem fazer
nada, os novos relógios indicavam quando é que os trabalhadores deviam
ir trabalhar, quando começava e acabava a pausa para almoço e quando
deviam terminar, no fim do dia. Os trabalhadores não gostaram tanto desta
nova fórmula como pensaram que iam gostar. Havia multas para os que se
atrasavam e chegavam depois do sino da manhã e foram penalizadas as
tentativas para resistir a este novo esquema. Nos casos mais extremos,
usar o sino para convocar uma resistência armada de trabalhadores ou uma
revolta contra o rei, o vereador ou o próprio homem do sino era punível
com a morte. O historiador Jacques Le Goff observou que esta
transformação temporal constituiu um limiar entre o mundo dos ciclos
naturais, antigos, e o mundo como o conhecemos hoje: “Nas localidades
que produziam tecido, a cidade recebeu o fardo de um novo tempo, o
tempo dos fabricantes de tecido.” 
Na Idade Média era difícil incentivar os tecedores a trabalharem até
morrer, porque não valia assim muito a pena juntar dinheiro para além
daquilo que era necessário para viver. Só quando a era industrial trouxe
consigo uma sociedade de consumo em expansão é que um pagamento
extra passou a conter a promessa de mais luxos e a possibilidade de
ascensão social. Mas o tempo tinha sempre sido considerado precioso e as
pessoas não abririam mão dele com facilidade.116 Foi preciso educar os
trabalhadores. 
O fim do século XVII é a ocasião em que a palavra “pontual” entra nos
nossos vocabulários da forma que a usamos hoje. Antes, tinha uma
conotação diferente e implicava que uma pessoa era demasiado atenta aos
pormenores. No entanto, chegar “a tempo” começou a ser cada vez mais
apontado como uma qualidade. Num panfleto intitulado Conselho
Amigável aos Pobres, o reverendo inglês J. Clayton queixou-se das
“crianças esfarrapadas e que não fazem nada” que não obedeciam ao
tempo. Defendeu que as escolas deviam ter um novo propósito. Em 1755,
escreveu: “Os Académicos são obrigados aqui a levantar-se cedo e a
respeitar as Horas com grande Pontualidade.” Foram colocados sinos nas
escolas para organizar o dia, considerando que um modelo fabril de ordem
repetitiva prepararia os jovens para a indústria e para o trabalho duro.
Como Alvin Toffler escreveu em Choque do Futuro: “As crianças
marchavam de lugar em lugar e sentavam-se em posições determinadas.
Havia campainhas a tocar para anunciar mudanças de aula. A vida interior
da escola tornou-se assim um espelho antecipatório, uma introdução
perfeita à sociedade industrial. As caraterísticas da educação que hoje são
mais criticadas – a arregimentação, a falta de individualização, os sistemas
rígidos de organização, agrupamento, classificação e notas, o papel
autoritário do professor – são precisamente as que tornaram a educação
pública maciça num instrumento tão eficaz de adaptação ao seu lugar e
tempo.” 
Era uma cultura em transição para um mundo fabril assente em
máquinas. Era uma mudança épica. E envergonhar os que desdenhavam
do tempo era uma maneira de a promover. No século XVIII, a
pontualidade e o rigor eram apontados como elementos essenciais de uma
boa cidadania, enquanto a preguiça e o desperdício de tempo no trabalho
eram considerados próprios dos pobres e desleixados. 
Foi por esta altura que Benjamin Franklin proferiu a sua famosa frase
“tempo é dinheiro”. Num ensaio de 1748, intitulado “Conselhos a um
Jovem Comerciante”, escreveu: “Lembrem-se de que tempo é dinheiro. O
que for capaz de ganhar dez shillings num dia com o seu trabalho, e for
divertir-se ou ficar sem fazer nada metade do dia, mesmo que durante a
sua diversão ou ociosidade não gaste mais de sixpence, não deve
considerar essa a sua única despesa; na verdade, também gastou ou
desperdiçou cinco shillings.” 
Os capitalistas industriais eram agora os “donos” do tempo de trabalho
e, dessa forma, eram donos dos operários. Quando se vende o tempo, é
difícil usá-lo como se quer. Aos olhos dos capatazes, o uso não lucrativo
do tempo equivalia a roubo, por isso os hábitos de desperdiçar tempo
tinham de ser erradicados da força de trabalho. Uma maneira de o fazer
era com penalizações. Em County Durham, Inglaterra, Sir Ambrose
Crowley e o filho escreveram 94 regras em The Law Book of the Crowley
Ironworks (o livro da lei da fundição Crowley) que tinham que ver
especificamente com o tempo. Tempo desperdiçado era tempo não pago:
“Este serviço deve ser calculado depois de todas as deduções pelo tempo
passado em tabernas, cervejarias, cafés, para almoço e jantar, para jogar,
dormir, fumar, cantar, ler notícias, em discussões, discórdias, disputas ou
qualquer coisa alheia ao meu negócio, andando por qualquer forma a
vadiar.” 
Mas o tempo das fábricas não ia limitar-se às fábricas ou às escolas.
Estava a alastrar. Depois de passar de dimensão vasta a “valor”, em breve
o tempo iria tornar-se, em si próprio, um produto. 
 
No século XIX, a hora era aleatória. Em 1875, os caminhos de ferro
americanos tinham de operar em 75 zonas horárias em todo o país, com a
maioria das cidades a regularem ainda a sua hora pelo meio dia, quando o
Sol estava no ponto mais alto. Na Alemanha, como escreveu Ian Beacock,
“os viajantes tinham de esclarecer se as partidas se faziam de acordo com
a hora de Berlim, Munique, Estugarda, Karlsruhe, Ludwigshafen ou
Francforte”. Para evitar toda esta confusão, como agora é bem sabido, a
sincronização do tempo e a criação de zonas horárias foi iniciada em
grande parte pelos caminhos de ferro. 
O problema não eram os relógios; nesta altura, já eram bons a medir o
tempo. Mas sem uma estandardização a nível nacional ou continental
eram efetivamente inúteis para conseguir uma coordenação. E, por isso,
dois empresários entraram rapidamente nesta falha temporal e mudaram
de facto para sempre a nossa perceção do tempo. 
Samuel P. Langley foi a primeira pessoa a vender tempo. Em 1867,
enquanto diretor do Observatório Allegheny, em Pittsburgh, Langley
convenceu os responsáveis industriais e comerciais locais a pagarem-lhe
pelos seus sinais sonoros. O seu “relógio-mestre” transmitiria a hora por
telégrafo, de forma a que os “relógios-escravos” dos seus clientes
pudessem sincronizar-se com ele. Empresas como a Western Union e os
caminhos de ferro da Pensilvânia rapidamente se tornaram clientes, com
os últimos a pagarem mil dólares anuais pelos sinais horários do
observatório. 
Leonard Waldo, astrónomo e diretor do observatório Winchester da
universidade de Harvard, foi um passo mais além. Acreditando que os
cientistas eram capazes de fazer melhor, prometeu vender uma hora mais
exata do que aquela que era proposta por Langley (que tinha um ou dois
segundos de imprecisão). O que os dois homens tinham em comum era o
facto de se terem tornado arautos deste novo tempo e começado a
defender o fim das horas locais, a que Langley chamou uma “ficção” e
uma relíquia do passado. 
Mas a nova hora necessitaria de uma reeducação das massas. Numa
carta aos comissários dos comboios, Waldo afirmou que “qualquer serviço
que treine estas pessoas a seguirem hábitos de precisão e pontualidade,
que afetarão todos os empregadores e empregados com a mesma rigorosa
imparcialidade, no que respeita aos salários por tempo gasto será um
grande benefício para o estado”. 
Em 1891, a Companhia de Relógio de Sinal Elétrico começou a vender
um relógio para fábrica, apropriadamente designado Autocrata. O novo
sistema, proclamava o folheto respetivo, “proporciona precisão militar e
ensina aspetos práticos, prontidão e precisão quando é adotado […]
fornecendo aos gestores e supervisores um meio para prolongar o seu
alcance disciplinar para além da sua visão [o destaque é meu]”.  
Em 1893, estavam a ser instalados nas fábricas campainhas e sistemas
de relógio mestre/escravo. Na Feira Mundial de Chicago foi apresentado
um destes novos engenhos: um relógio-mestre ligado a 200 “relógios-
escravos” programados para fazer soar sinos que indicavam aos operários
que deviam ligar e desligar máquinas. 
Para os patrões, o controlo do tempo tornou-se uma nova forma de
poder. Os fabricantes de relógios, ansiosos por venderem os seus produtos,
também entraram em ação, promovendo a pontualidade como uma
qualidade e o atraso como uma falta de disciplina e indesejável. Como
escreveu Robert Levine, os fabricantes de relógios começaram a vender a
ideia de que era importante “vigiar toda a gente”, literal e figurativamente
– uma antecipação, como veremos, do que se seguiria. Também foram
inventados os relógios de ponto, desta vez para assinalar a hora exata em
que cada trabalhador chegava e saía. No espaço de décadas, todas as
empresas que vendiam tempo foram caindo sob a alçada de William
Bundy, que as consolidou numa empresa, a International Time Recording,
mais tarde conhecida por International Business Machines, ou IBM. 
Este “condicionamento tecnológico” atingiu hoje um ponto em que a
hora se infiltrou de tal forma nas nossas mentes que deixaram de ser
necessários relógios de ponto para se saber a importância de chegar a
horas ao trabalho. Milhares de milhões de pessoas em todo o planeta
acordam todas as manhãs ao som de alarmes, viajam em massa para os
trabalhos e chegam e partem às horas determinadas, sem pensarem porque
ou como foram treinadas para a tarefa. Desde a invenção da pontualidade
e da nova insistência para “nunca estar atrasado”, a hora das fábricas
afastou-nos do ciclo da natureza. Pode ter demorado várias gerações, mas,
como escreveu E.P. Thompson, “de todas estas formas – através da
divisão do trabalho; da supervisão do trabalho; de multas; de campainhas
e relógios; de incentivos monetários; de divisões e de formações […]
criaram-se novos hábitos de trabalho e foi imposta uma nova disciplina
horária”. Agora herdamos esta ideia de tempo institucionalizado e
passamo-la a cada nova geração. Embora fosse completamente (e
recentemente) fabricada, permitiu ao tempo das máquinas passar para o
século atual. 
 
Hoje, este tempo das máquinas está por todo o lado. O tempo ainda é
dinheiro, mas em lugares como a Índia ou o Sueste Asiático – onde os
trabalhadores das sweatshops suplantaram os operários europeus dos
têxteis – não é muito dinheiro. Se é possível comprar online uma bela
camisa por 13 dólares, não é só por causa da tecnologia. É porque no
Bangladesh há alguém que a cose e recebe por hora 12 cêntimos.7 
Na Idade Média, a mesma camisa teria custado milhares, se os
trabalhadores medievais recebessem um salário mínimo norte-americano
moderno, como defende a historiadora Eve Fisher. Segundo os seus
cálculos, pelo tempo que levaria a dobrar o fio (480 horas), a tecê-lo (20
horas) e depois a coser à mão o material (oito horas), uma camisa exigiria
em média 508 horas de trabalho. Nos Estados Unidos, onde o salário
mínimo federal está nos 7,25 dólares por hora, produzir à mão essa camisa
teria custado 3.683 dólares. No Bangladesh, poderia ser feita por 65
dólares. 
Claro que, mesmo com mão de obra barata, não realizamos
manualmente todo o nosso trabalho. Na verdade, foi precisamente porque
o fabrico de tecido exigia tanto tempo que na Revolução Industrial as
máquinas de tecer foram das primeiras a ser inventadas e os têxteis foram
dos primeiros produtos fabricados em massa. Fiar e tecer são hoje
processos quase integralmente mecânicos e no fim da linha está o
operário, também a trabalhar com uma máquina, a quem está atribuído o
processo final de coser, que demora horas. É então todo este trabalho
invisível, todo este tempo invisível, que torna uma camisa, que em tempos
levaria 508 horas a ser feita, disponível por uma fração do que a pessoa
que a usa pode ganhar num dia.117 
Trabalhar mais depressa e poupar mais tempo é igual a mais lucro: a
prática tem gradualmente ganhado ímpeto desde que, no início do século
XX, Frederick Taylor lançou a “gestão científica”; a ideia de dividir tarefas
em ações individuais. Nos anos 1960, os especialistas em gestão
otimizaram ainda mais a eficiência quando dividiram ao minuto o tempo
passado no escritório e na fábrica. Um manual publicado pela Associação
de Sistemas e Procedimentos da América propunha aos patrões estes
“dados-padrão universais”, dando-lhes uma ideia de quanto demoravam as
tarefas básicas: 
 
“Abrir e fechar gaveta de ficheiro, sem seleção = 0,04 minutos; secretária, abrir gaveta do
meio = 0,26 minutos; fechar gaveta do meio = 0,27 minutos; fechar gaveta do lado = 0,015
minutos; levantar da cadeira = 0,033 minutos; sentar na cadeira = 0,033 minutos; virar na
cadeira com rodas = 0,009 minutos; andar na cadeira até à secretária ou móvel de ficheiros ao
lado (máximo 1,20 metros) = 0,050 minutos.” 
 
Nos anos 1980, como Andrew Goatly nota no seu livro Washing the
Brain, o ritmo desumanizador tinha entrado nas fábricas têxteis, onde “25
a 30 por cento de todos os trabalhadores administrativos eram
supervisionados por computador em sweatshops eletrónicas, executando
um trabalho aborrecido, repetitivo e em ritmo elevado que exige um
estado de alerta constante e atenção ao pormenor”. 
Avancemos até hoje, em que os operários de fábricas e escritórios são
rotineiramente vigiados e cronometrados para avaliar a produtividade. Na
Pegatron, o segundo maior fabricante chinês para a Apple, “o dia de
trabalho dura geralmente 12 horas na linha de montagem. Há 90 minutos
de interrupções para refeições e idas à casa de banho. Nada de falar. Nada
de estar em pé. Nada de beber água no posto de trabalho. Nada de
telemóveis. Quando se acaba o trabalho mais cedo, é preciso ficar sentado
a ler manuais do empregado […] A tarefa do dia é montar capas de trás do
iPad. A quota é de 600 por dia, ou uma por minuto”. 
E não é apenas na China. Em armazéns da Amazon no Reino Unido,
uma investigação sob disfarce revelou que 74 por cento dos funcionários
tinham medo de ir à casa de banho, porque isso iria prejudicar os seus
objetivos. Muitos até preferiam urinar em garrafas. No Centrelink, um call
centre na Austrália, os funcionários têm de introduzir um código de
identificação de cada vez que querem ir à casa de banho. As pausas são
cronometradas e qualquer coisa superior a cinco minutos vale uma
repreensão. Estes intervalos para ir à casa de banho podem parecer uma
coisa sem importância, mas são uma ilustração muito clara de como
perdemos a dignidade quando o nosso tempo não nos pertence. Segundo
um relatório de investigação elaborado ao longo de três anos para a
organização de beneficência Oxfam, intitulado No Relief: Denial of
Bathroom Breaks in the Poultry Industry [sem alívio: a recusa de
intervalos para ir à casa de banho na indústria aviária], os trabalhadores de
muitos aviários nos EUA vivem sob um tal “clima de medo” que nem se
atrevem a pedir para fazer uma pausa. O que acontece é que “os
trabalhadores defecam e urinam quando estão na linha de produção; usam
fraldas quando vão trabalhar; restringem a um grau perigoso a ingestão de
líquidos e de fluidos; suportam dor e incómodo [que os colocam] em risco
de problemas de saúde graves”. 
Perder minutos significa perder dinheiro. Mas, no nosso sistema
moderno, um minuto é uma vida inteira. Até os microssegundos contam.
E em mais lado nenhum o ritmo das máquinas ultrapassou tanto a
capacidade humana do que nos mercados financeiros globais. Wall Street
faz os seus negócios numa escala de tempo de que o cérebro humano não
consegue sequer ter uma perceção. No passado, os comerciantes viajavam
durante semanas e meses para trocar os seus bens, enquanto hoje o
comércio de ações é uma alucinação de biliões de “compra!” e “vende!”
selados por apertos de mão computorizados trocados à velocidade da luz. 
Entre Nova Iorque e Londres trocam-se hoje informações em cerca de
60 milissegundos, ida e volta. O que quer dizer que dar uma ordem para o
outro lado do Atlântico para efetuar uma transação financeira leva seis
vezes menos tempo do que leva a ler esta frase. Se o tempo sempre foi
invisível para nós, pelo menos antes tinha uma escala humana.
Conseguíamos ver a sombra do relógio de sol ou olhar o ponteiro que
saltava de um segundo para o seguinte. Para os que hoje negoceiam nos
mercados bolsistas118, o tempo financeiro em que fazem as suas operações
é completamente indetetável. Os mercados operam naquilo a que Jeremy
Rifkin chama “computempo”, um borrão de tempo digital que passa por
nós a uma velocidade tão elevada que os relógios já não podem ser lidos
por humanos; só podem ser compreendidos por computadores. 
Para nós, a passagem de um milissegundo119 para o próximo é
impercetível. Na verdade, o cérebro humano precisa de 13 milissegundos
inteiros só para processar uma imagem. Mas, para os computadores, são
estas brevíssimas frestas de tempo dentro da rede, em que os algoritmos
tomam decisões financeiras instantâneas, que são exploradas para alcançar
lucro. Como escreveu Sal Arnica, autor de Broken Markets: “Quando o
investidor comum vê uma cotação, é como se estivesse a observar uma
estrela que ardeu há 50 mil anos.” Mas, dito isto, a verdade é que o tempo
financeiro não opera em todo o mundo de forma igual. Há o tempo de
computador e o tempo humano. Acabámos de ver como é que o tempo
medido pelo relógio é usado para comerciar no mercado global, mas
aquilo que valemos – e por quanto vendemos o nosso tempo – está mais
relacionado com a nossa inteligência, ética de trabalho ou capacidades do
que com o local do planeta em que nascemos. 
O tempo é precioso para todos os seres humanos. De certeza que o meu
tempo não é nem mais nem menos valioso do que o vosso, mas as
recompensas pelos nossos tempos não são idênticas. Nos extremos do
espetro, a diferença é abissal. Em 2018, o multimilionário Jeff Bezos
ganhou 8,96 milhões de dólares por hora, mesmo enquanto dormia. Para
um dalit – antes conhecido como intocável no sistema de castas da Índia –,
o trabalho sujo de limpar latrinas vale 46 rupias por dia, o que,
considerando um dia de oito horas, representa cerca de cinco cêntimos de
dólar por hora. 
 
Uma consequência inesperada de ser um génio publicamente
reconhecido é que parece que nunca se tem tempo para nada. Os
jornalistas andavam sempre à volta de Albert Einstein a fazerem-lhe
perguntas sobre as suas ideias que desafiavam as conceções comuns. Mas
o tempo é tão precioso para físicos teóricos como é para CEOs, e Einstein
tinha em Helen Dukas, a sua secretária, um aliado. Sempre que alguém
telefonava ou aparecia para pedir a Einstein que explicasse a sua teoria da
relatividade, ela tinha instruções para dizer: “Uma hora sentado num
banco de jardim com uma rapariga bonita passa como se fosse um minuto,
mas um minuto sentado em cima de um fogão quente passa como se fosse
uma hora. A relatividade é isso.” O entendimento de Einstein é que não
podia existir de todo o conceito de tempo “correto”. 
Até ao início do século XX, os cientistas tinham vivido sob a impressão,
em termos de investigação, de que o tempo era absoluto. O célebre tratado
escrito em 1687 por Sir Isaac Newton e intitulado Princípios Matemáticos
da Filosofia Natural tinha sido o princípio orientador da física. Nele,
Newton enunciava as suas três leis do movimento, juntamente com os
seus princípios de tempo e espaço absolutos, explicando como funcionava
o universo. Chamamos agora a isto mecânica newtoniana. Na visão
newtoniana, se um relógio fosse suficientemente rigoroso e se estivessem
em vigor os mesmos padrões, então dois relógios – digamos que um
estava na Terra e outro em Júpiter – bateriam ao mesmo ritmo e deste
modo a passagem do tempo seria idêntica nos dois lugares. Afinal, era
assim que os navegadores ingleses determinavam a longitude. 
O que Einstein propôs, e provou matematicamente, era que as coisas
não eram nada assim. Para começar, espaço e tempo não são coisas
separadas; encontram-se unificados. E, por causa disso, qualquer
movimento através do espaço afeta o tempo. Assim, os dois relógios, na
Terra e em Júpiter, que se movem relativamente um ao outro a diferentes
ritmos de velocidade, bateriam de forma diferente e apresentariam, nos
mostradores, horas diferentes. 
Sabemos que isto é verdade, porque os sinais GPS de hoje necessitam
de quatro satélites diferentes para determinar uma localização na Terra. Os
relógios atómicos triangulam a nossa posição medindo a diferença de
tempo que o sinal leva a chegar dos vários satélites. Para o GPS civil,
estes sinais permitem por exemplo medir a latitude, longitude e altitude do
smartphone num centro comercial, com uma exatidão de 4,90 metros. Mas
para o GPS ser rigoroso, os próprios relógios têm de ser absolutamente
exatos e operar dentro do mesmo intervalo de 40 a 50 nanossegundos.
Mas a hora não é igual aqui na Terra e a 20 mil quilómetros de altitude, no
espaço. 
Os satélites andam à nossa volta a uma velocidade orbital de cerca de 14
mil quilómetros por hora, o que, segundo a teoria de relatividade espacial
de Einstein, é suficientemente rápido para fazer com que os seus relógios
andem mais devagar. Concretamente, sete microssegundos mais devagar,
por dia. Em simultâneo, por causa da sua distância para a massa da Terra,
os relógios que estão mais afastados da sua gravidade sentem menos o seu
efeito e andam mais depressa. A Teoria da Relatividade Geral de Einstein
afirma que é isso que se passa. Sem calibragem, os relógios atómicos
alojados em satélites adiantar-se-iam todos os dias 45 microssegundos.
Isto significa que, juntos, os efeitos da relatividade especial e da
relatividade geral fariam os relógios dos satélites (sete microssegundos
atrasados e 45 microssegundos adiantados) estar desfasados todos os dias
38 microssegundos, ou 38 milionésimos de segundo. 
Trinta e oito microssegundos não parece grande coisa, mas se não os
levássemos em conta o erro acumulado acabaria por tornar o GPS inútil.
Segundo Richard Pogge, professor de astronomia na universidade estadual
de Ohio, ao fim de dois minutos as posições espaciais estariam
completamente desfasadas, e com efeitos cumulativos os sistemas de GPS
registariam erros na ordem dos dez quilómetros por dia. 
Sabemos, portanto, que não é apenas uma teoria. Os cálculos são
rigorosos. E embora a física avançada consiga explicar estas diferenças e
traduzi-las de uma forma pela qual somos capazes de compreender como
nos afetam na vida diária, os próprios físicos não têm a certeza de que o
tempo seja, em si mesmo, uma “coisa”; ou seja, se o tempo é uma coisa
que imaginámos ou se o tempo como o conhecemos existe realmente.120 
Pensem nisto: da mesma forma que a matemática tem “números
imaginários” (como i2 = -1, que é mais um conceito do que algo visível),
os físicos também trabalham com tempo imaginário. O tempo real é
aquele que medimos, com relógios, nas nossas vidas diárias. Como
afirmou Stephen Hawking, este “é o tempo que sentimos a passar, o tempo
em que envelhecemos”. Se o tempo real começa com um ponto designado
por Big Bang, a Grande Explosão, e acaba com um ponto chamado Big
Crunch, o Grande Colapso, então em tempo imaginário existe um tempo
que se desenrola para além dessas escalas de tempo – o tempo fora desses
tempos – que nos permite questionar se o tempo como o conhecemos
funciona consoante a “realidade”. Em Uma Breve História do Tempo,
Hawking coloca as coisas desta maneira: 
 
“Isto pode sugerir que o chamado tempo imaginário é realmente o tempo real, e que aquilo
a que chamamos tempo real será apenas um produto das nossas imaginações. No tempo real,
o universo tem um princípio e um fim em singularidades que formam uma fronteira com o
espaço-tempo e na qual as leis da ciência falham. Mas no tempo imaginário não há
singularidades ou fronteiras. Por isso, talvez aquilo a que chamamos tempo imaginário seja
na verdade mais básico, e aquilo a que chamamos real seja apenas uma ideia que inventámos
para nos ajudar a descrever a forma como pensamos que o universo seja.” 
 
Para os físicos, então, o tempo imaginário é qualquer coisa que “existe”
no sentido em que pode ser matematicamente descrito, ainda que não
possa ser sentido. Do tempo do relógio pode dizer-se o inverso. Sentimo-
lo, mesmo que não saibamos até que ponto existe mesmo. Isto é porque
inventámos uma ferramenta de medida, o relógio, que descreve a própria
medida. Um relógio mede o tempo do mesmo modo que uma régua mede
o espaço. Mas uma régua, na verdade, não mede espaço nenhum; mede
intervalos, ou aquilo a que chamamos centímetros ou polegadas –
medidas, como veremos no próximo capítulo, que nós inventámos. 
Como a pedra em que Samuel Johnson deu um pontapé, no capítulo 2, a
realidade do tempo, como a realidade da pedra, pode ser enganadora.
Numa linha semelhante, o destacado físico Brian Greene avançou com
este enigma: e se o tempo não for real e se tratar apenas de uma projeção
mental? Ou seja, talvez não exista uma fronteira invisível entre o passado
a mudar para o presente e depois a levar-nos ao futuro. Talvez o tempo
não esteja algures “lá fora”, porque o tempo é uma projeção, uma projeção
dos nossos cérebros. Como ele escreveu em O Tecido do Cosmos: “Isto
[…] deixa aberta uma questão essencial: será a ciência incapaz de
apreender uma qualidade fundamental do tempo que a mente humana
abraça com a prontidão dos pulmões que absorvem o ar, ou será que a
mente humana impõe ao tempo uma qualidade da sua própria criação, uma
qualidade que é artificial e que por isso não surge nas leis da física?” 
Por outras palavras, o que está a ciência a medir, se as únicas coisas que
os humanos são realmente capazes de experimentar é o momento eterno a
que chamamos agora?121 
Há uma coisa que podemos afirmar com certeza: seja o tempo real ou
não como dimensão ou perceção, nós estamos a viver de acordo com
qualquer coisa fabricada. Einstein provou que não há um pulsar universal
do tempo, e mesmo assim, na Terra, temos as nossas vidas organizadas de
acordo com um sistema de tempo sincronizado. 
 
“Imagine visitar-se a si próprio no futuro”, começa a voz no anúncio. Na
cena, um homem está atrasado, vai a correr e mesmo assim perde o
autocarro para o trabalho. De repente, através da magia da televisão, é
transportado para o futuro, onde fica frente a frente com o seu antigo eu.
As suas duas versões estão a fazer jogging, juntas, numa bela praia, num
dia de sol. O homem mais velho está bronzeado, descontraído e a sorrir.
Vira-se para o seu eu mais jovem e pergunta: “Ainda andas na corrida de
ratos?” 
O anúncio é bem conhecido de muitos canadianos. Nos anos 1990
publicitava o Freedom 55, Liberdade 55, um serviço de planeamento
financeiro da companhia London Life Insurance, assim chamado porque
55 representava a idade ideal de reforma. Em 2010, porém, com a inflação
e os custos crescentes, já começava a parecer cada vez mais improvável
mesmo a hipótese de reforma com a idade legal, 65 anos. Um inquérito da
Sun Life Financial realizado nesse ano mostrou que apenas 28 por cento
dos canadianos acreditava que a reforma aos 65 era realizável. As
expetativas continuaram a mudar e no ano seguinte os títulos de jornal
começaram a interrogar “Será a Liberdade 75 a nova meta da geração dos
boomers?” E em 2017 um novo chavão entrou na linguagem corrente:
“Liberdade 85: Permanecer na Força de Trabalho”. A ideia de reforma
antecipada é hoje, para muitas pessoas, um sonho longínquo. Alguns
poderão pensar: “E a seguir? Liberdade 100?” Ou talvez “Liberdade
Quando Estiveres Morto”? 
A reforma é o pedaço de queijo que é agitado à nossa frente durante a
corrida de ratos. O nosso tempo pessoal, aquilo com que todos nascemos,
está subjugado ao tempo do relógio, que inventámos. Prometem-nos que,
se trabalharmos no duro durante a vida inteira, nos nossos anos seniores
seremos recompensados com tempo livre para fazer exatamente o que
quisermos. Mas, como qualquer pessoa que esteja desempregada há algum
tempo sabe, o tempo de lazer não é, de todo, tempo “livre”. Acontece que
o lazer nos é vendido. O lazer custa dinheiro. 
Mesmo que se tenha todo o tempo do mundo, há muito poucas coisas
que se possam fazer com os bolsos vazios. É possível caminhar, nadar,
jogar xadrez ou ler um livro de uma biblioteca, mas a maior parte das
coisas de lazer foram transformadas em bens e tornaram-se grandes
indústrias. Os praticantes de ioga nos Estados Unidos gastam 16 mil
milhões de dólares em aulas, roupa, equipamento e acessórios. O golfe,
ainda mais de luxo, representa uma indústria de 70 mil milhões de dólares
nos Estados Unidos. A ilusão de tempo livre é o oroboro do capitalismo. O
lazer entrou no mercado de forma a contribuir para a economia. 
Pensem como é que ir às compras, uma atividade que até aos anos 1950
foi vista quase sempre como uma tarefa, se tornou um hobby, ou aquilo
que agora até é conhecido como “terapia de compra”. Ir às compras é hoje
considerado um prazer, uma forma descontraída de passar o fim de
semana. Para além do passeio dominical pelo centro comercial ou pela
Baixa, há hordas que passam agora os dias em “shopping tours” cujo
propósito não é passear e ver pontos de interesse, mas sim ser levado em
autocarros a outlets, a armazéns sem janelas para comprar produtos de
marca com grandes descontos. 
Fazemos compras como se a nossa felicidade dependesse disso, porque
nos dizem que depende, e porque não queremos cometer o pecado de estar
atrasados em relação aos tempos. A moda, dizem-nos, mantém-nos
modernos. Se nos anos 1950 um estilo de saia podia durar uma década,
nos anos 1980 a moda já se tinha transformado em “estações” diferentes.
Mas, durante algum tempo, estas “estações” ainda estavam ligadas às
estações físicas: precisamos de roupas mais quentes no inverno e de peças
mais leves no verão. Nas pistas dos desfiles, fevereiro e março são os
meses em que tradicionalmente são reveladas as coleções outono/inverno,
e em setembro e outubro os modelos vestem as coleções primavera/verão
para o ano seguinte. Mas o ciclo da moda de hoje acelerou muito para
além disso. No mundo da “moda de consumo rápido” há 52 estações por
ano. Assim que qualquer coisa fica na moda, deixa de estar, o que faz com
que os fashionistas comprem desesperadamente mais roupas para se
manterem in. 
Se somos treinados para nos tornarmos escravos perante a moda, não
podemos esquecer os escravos da moda: os trabalhadores invisíveis da
indústria que fazem horas extraordinárias a troco de salários ínfimos para
que retalhistas como a cadeia global Zara possam receber carregamentos
duas vezes por semana e empresas como a H&M e a Forever 21
apresentem novos estilos todos os dias. 
Este ciclo de fabrico a hipervelocidade afeta também o mundo natural.
No documentário RiverBlue, a designer de moda e ativista Orsola de
Castro afirma: “Há uma anedota na China que diz que é possível saber a
cor que está na moda nessa estação só por olhar para a cor dos rios.” Atrás
dela, o rio está tingido pelas tintas dos têxteis. Não é azul, mas magenta. 
A imensa quantidade de energia necessária para fabricar, embalar e
distribuir bens a este ritmo acelerado para uma população de mais de sete
mil milhões levou a uma mudança muito real e física dos padrões
meteorológicos mundiais. Não é uma anedota o facto de a hiperaceleração
do capitalismo através da “moda” estar literalmente a mudar as estações
do ano. A nossa economia está a provocar alterações climáticas. Para os
economistas, isto quer dizer crescimento; para os ecologistas, é igual a
devastação. 
Juntamente com o aumento rápido de incêndios florestais e de furacões
mortais, o aumento das temperaturas tem consequências graves para
espécies que migram e se alimentam com base nas estações. Na natureza,
como vimos antes, o tempo é tudo. Mas em anos recentes, enquanto os
relógios atómicos que sincronizam o nosso mundo moderno se tornaram
cada vez mais precisos, algo de estranho está a acontecer ao relógio da
natureza, porque em toda a parte à nossa volta o seu timing está
desacertado. 
 
Em Central Park era uma quarta-feira à tarde normal. Havia pessoas a
correr em t-shirt e calções, outras a fazerem piqueniques, miúdos a rebolar
e a cair na relva com as caras sujas de gelado. A temperatura estava nos
25,5 graus Celsius, o que seria perfeitamente natural para um dia de verão,
mas olhando à volta havia um sinal de que qualquer coisa não estava certa.
Em todo o parque, as árvores caducas não tinham folhas. Este dia de 2018
com um calor de verão não aconteceu em junho. Era fevereiro.122 
Há acontecimentos meteorológicos estranhos a acontecer em todo o
mundo a um ritmo crescente. Mas só quando se forma um padrão
sustentado é que os cientistas podem atribuir isso a uma alteração
climática. Para os jardineiros em toda a parte, esta alteração é cada vez
mais evidente. Só precisam de olhar para os quintais para reparar que os
seus próprios “relógios florais” começaram a florescer em alturas
invulgares. Segundo um grande estudo realizado pela Sociedade Botânica
da Grã-Bretanha e Irlanda, as plantas estão a dar flor antes da primavera, o
que não era suposto. Em 2016, mais de 600 espécies floriram
antecipadamente, quase o dobro do número do ano anterior. Do outro lado
do Atlântico foi documentada a mesma tendência. Em 2010 e 2012, na
costa leste dos Estados Unidos, floriram plantas mais cedo do que em
qualquer ocasião constante dos registos. Cientistas afirmam que isto
acontece porque aquele momento de temperatura ideal em que as
sementes começam a desenvolver-se tem surgido mais cedo. Para plantas
como a Arabidopsis thaliana, essa temperatura situa-se entre os 14 e os 15
graus Celsius. Picos de calor prematuro estão a afetar muitas plantas, e
cada aumento de temperatura de um grau pode representar um florir
antecipado de 4,1 dias. 
O efeito em cadeia sente-se nos reinos vegetal e animal. O campo de
estudo científico é designado fenologia. Olha para a ocorrência de ciclos
biológicos entre um conjunto de espécies na sua relação com o clima e as
estações. Em muitas espécies, os timings de fontes alimentares, migrações
ou reprodução estão ligados, numa interdependência estreita. E em muitas
espécies tem acontecido uma dessincronização. 
Um exemplo é a relação entre a abelha mineira e a orquídea brassa de
cauda, ou orquídea-aranha. A orquídea produz flores que na realidade se
assemelham a uma abelha, especificamente à abelha mineira fêmea. Desde
1848 que botânicos mantêm registos da altura de floração da orquídea, que
coincidem com o ciclo reprodutivo da abelha. As flores libertam uma
hormona que imita a abelha fêmea e atrai os machos da espécie, que
tentam copular com a flor. Este engano resulta na polinização da orquídea.
Só que o aumento das temperaturas dessincronizou este ciclo reprodutivo.
Por cada aumento de temperatura de um grau Celsius, a floração das
orquídeas dá-se seis dias antes. A mudança na temperatura tem um efeito
ainda mais marcado nas abelhas, com os machos a saírem nove dias antes,
e as fêmeas 15 dias. O resultado é que os machos deixam de “acasalar”
com as flores, preferindo fazê-lo com as fêmeas. É bom para as abelhas,
mas não para as orquídeas, que têm dependido quase exclusivamente das
abelhas mineiras para a sua polinização – que é o mesmo que dizer
existência. 
Para os pássaros que migram entre continentes, a mudança no ciclo de
floração e insetos também está a conduzir a um desencontro.
Investigadores que estudam espécies de aves na América do Norte
determinaram que alguns pássaros estão a chegar bem depois do começo
da primavera. Um velho ditado diz que é o pássaro madrugador que
apanha a minhoca, mas, para algumas espécies que estão a chegar com 15
dias de atraso, as larvas e os insetos que fazem coincidir os seus ciclos
reprodutivos com as plantas em floração já lá não estão, deixando
cansados e famintos os pássaros que acabaram de percorrer um longo
caminho. 
Sucede que os pássaros orientam as suas migrações pelo Sol. Quando o
Sol começa a erguer-se mais cedo, chegou a hora da migração. Só que as
árvores e as plantas estão a orientar a sua “primavera biológica” não pela
luz, mas pela variação de temperatura. Os insetos saem em massa para se
alimentar das folhas jovens antes de as árvores libertarem o seu repelente
natural. E quando os pássaros que vêm da América Central e do Sul
chegam para o seu banquete anual, já se deu um desencontro absoluto e
precipitou-se um efeito em cascata. Como afirmou Stephen Mayor, autor
principal de um estudo, “o desencontro crescente significa que é provável
que menos pássaros sobrevivam, se reproduzam e regressem no ano
seguinte. São pássaros que as pessoas estão habituadas a ver e a ouvir nos
seus quintais.… É como em Silent Spring, mas com um culpado menos
evidente”. 
O culpado difícil de identificar é precisamente o timing – e em todo o
planeta ele está a desequilibrar muitas espécies e ecossistemas. No The
Guardian, Damian Carrington escreveu: “Aconteceram possíveis
desencontros entre aves marinhas e peixes, como papagaios-do-mar e
arenques e araus e enguias-da-areia. A borboleta almirante vermelho e a
urtiga, uma das suas plantas hospedeiras, também estão a dessincronizar-
se.” Este é um efeito-borboleta muito real e o seu impacto pode ser
devastador. 
Os cientistas também estão a registar alterações na própria base da nossa
cadeia alimentar. Os complexos sistemas da natureza estão cada vez sob
maior tensão, das abelhas e insetos que fazem a polinização da grande
maioria das nossas colheitas às mudanças no timing do plâncton nos
mares, que por sua vez afeta os moluscos, peixes, aves marinhas, tubarões
e mamíferos marinhos como focas e baleias. 
As nossas invenções do relógio humano e do ciclo de fabrico – que
governam o nosso comportamento dentro da bolha da realidade –
começaram a provocar o caos no ciclo temporal da natureza. Não só
estamos sujeitos ao ritmo artificial do nosso tempo inventado, como há
espécies nos reinos animal e vegetal que estão a começar a sentir também
esta rutura. As mudanças à nossa volta aceleram e, no entanto, ainda nem
demos conta de que este corte fundamental tem que ver com a nossa
própria criação do tempo. Em vez disso, como nota Bertrand Richard,
perante o “caos climático, os pânicos na bolsa, os sustos alimentares, as
ameaças de pandemias, os crashes económicos, a angústia crónica, o
medo existencial”, nós não abrandamos. Fazemos exatamente o contrário:
carregamos a fundo no acelerador e aumentamos a velocidade. 
Antes de avançarmos, devo mencionar um outro relógio projetado por
cientistas. Este é mais metafórico do que físico. Todos os anos, desde
1947, o Boletim dos Cientistas Atómicos tem usado o conceito de um
relógio em contagem decrescente, até à meia noite, para mostrar a
iminência da destruição humana por causa de alterações climáticas, armas
atómicas e outras tecnologias da nossa própria criação. É conhecido como
o Relógio do Juízo Final. Em 25 de janeiro de 2018, numa carta aberta
dirigida aos líderes e aos cidadãos do mundo, os cientistas anunciaram que
nos encontramos agora altamente vulneráveis à catástrofe, que o relógio se
aproximou um minuto do nosso fim. Está agora nos dois minutos para a
meia noite. 
A questão diante de nós é esta: carregamos no botão para travar o
alarme? 

111
As zonas horárias também não são estáticas. Por exemplo, no inverno, a diferença entre Toronto,
no Canadá, e São Paulo, no Brasil, é de três horas. Em março – com as mudanças de hora nos
hemisférios norte e sul – passa a ser de uma hora. 

112
Isto é, as minhocas têm dois relógios – um circadiano (baseado no dia) e outro circalunar
(baseado no mês).

113
A fundação Long Now está atualmente a construir um relógio para dez mil anos que só terá um
tique uma vez por ano. A ideia é encorajar as pessoas a terem uma visão a longo prazo quando se
trata da natureza do tempo.

114
Não é uma situação exclusiva do Japão. Charles Czeisler, professor de medicina do sono na
Harvard Medical School, documentou a privação de sono em estagiários de hospitais que às vezes
são colocados em turnos de 24 a 34 horas. A falta de sono envolve perigos reais: os estagiários em
privação de sono cometeram 36 por cento mais erros médicos graves e 5,6 vezes mais erros de
diagnóstico. Também aumentou em 61 por cento o risco de se ferirem com um bisturi ou com uma
agulha.

115
Na Inglaterra do século XIV, os camponeses trabalhavam cerca de 150 dias por ano.

116
Um inquérito a 1.018 norte-americanos empregados a tempo inteiro determinou que 41 por cento
preferiam ter tempo a dinheiro. Mas só 30,3 por cento se disseram dispostos a prescindir do salário
atual para ter um horário melhor.

117
Os operários têxteis no Bangladesh são dos mais mal pagos do mundo. Em média, o salário
mensal anda pelos 68 dólares, o que está significativamente abaixo do que é necessário para viver. É
frequente os operários trabalharem sete dias por semana, com horas extra que podem levar os dias de
trabalho a terem 14 a 16 horas.

118
As transações a alta frequência representam agora entre 50 a 70 por cento de todos os negócios
em bolsa.

119
O cérebro humano necessita de 13 milissegundos para processar uma imagem e são precisos entre
cem e 400 milissegundos para pestanejar. Uma transação a alta frequência entre Chicago e Nova
Jérsia, ida e volta, leva só 13 milissegundos. Isso quer dizer que no instante de um pestanejar podem
realizar-se 30 transações.

120
Alguns físicos, por exemplo, sugeriram que “o universo não tem tempo”. 

121
Até a nossa ideia de “agora” opera com desfasamento. Segundo cientistas, o presente psicológico
só tem três segundos e “a nossa consciência anda 80 milissegundos atrasada em relação aos
acontecimentos reais”. Diz o neurocientista David Eagleman: “Quando se pensa que um
acontecimento se dá, ele já aconteceu”. 

122
Em anos recentes, estes surtos de calor não têm sido isolados. O dia 21 de fevereiro de 2018 não
foi um caso único. Também em 2016 e em 2017 as temperaturas foram bizarramente elevadas.

Invasores do Espaço 
A medida é certamente uma ilusão porque não se encontram polegadas por aí – não é
possível pegar numa. As polegadas, na verdade… são imaginárias. 
ALAN WATTS 

Em Inglaterra, é possível dar um passeio pela propriedade privada de


Madonna. É assim porque na lei britânica está consagrado o “direito de
vaguear” pelo campo. Na natureza, esta liberdade – pelo menos para os
animais – é um dado adquirido. Para os pássaros que voam e para os
insetos que andam pelo solo, as linhas traçadas pelos humanos para dividir
propriedade pública e privada não têm quase consequência. Mas para a
nossa espécie, é como se vivêssemos num mundo armadilhado, com fios
ocultos espalhados pelo chão. Como observa Floyd Rudmin, um
especialista em psicologia comunitária, “temos acesso vedado a mais de
99 por cento do mundo à nossa volta e raramente reparamos nisso”. 
Mas em Inglaterra, na década de 1930, um grupo de pessoas reparou.
Eram operários de fábricas no coração industrial de Manchester. A cidade
era então cinzenta e poluída, mas mesmo ao pé havia o chamado Peak
District, uma bela zona campestre com montes arredondados e cobertos de
relva. O problema era que os trabalhadores estavam proibidos de lá entrar.
Isto foi antes de existirem na Grã-Bretanha os parques nacionais, por isso,
se os operários queriam apanhar um pouco de ar e desfrutar da natureza,
significava terem de invadir propriedade privada. 
Assim, em 24 de abril de 1932, um grupo que se autodesignou
“ramblers” [caminhantes ou vagueantes] decidiu realizar um ato de
protesto simples, fazer uma coisa que hoje poucos de nós julgaríamos
“revoltoso”: ir dar um passeio. Mas, sabendo que se fossem apenas alguns
seriam impedidos, os “caminhantes” reuniram um grande grupo. Deste
modo, 400 pessoas puseram-se a subir a Kinder Scout, a maior elevação
do Peak District. 
No início, vigilantes de caça, armados com paus, tentaram impedi-los, e
até houve escaramuças, mas recuaram quando perceberam que eram em
número muito menor. A seguir a polícia interveio e vários dos
caminhantes foram detidos e presos. Foi uma surpresa que isto tenha
funcionado a favor deles. A história espalhou-se depressa e a simpatia da
opinião pública gerou um protesto nacional, à medida que mais pessoas
começaram a exigir o direito de passear pelo campo. A invasão coletiva de
Kinder Scout é hoje conhecida como um dos mais bem-sucedidos atos de
desobediência civil na história britânica e é celebrada todos os anos. Ao
exercerem literalmente as suas liberdades, os caminhantes abriram
caminho à criação de parques nacionais e também abriram a natureza ao
cidadão comum. 
Hoje, em Inglaterra, é possível caminhar por 7 por cento do campo.
Pode não parecer muito (e mostra bem a quantidade de terra que ainda se
encontra interdita), mas é suficientemente significativo. Na Escócia, as
coisas são ainda melhores; os errantes modernos não só têm direitos de
caminhada como têm acesso ao equivalente a Airbnb grátis. Existem
espalhadas pelo campo casas de agricultores vazias conhecidas como
bothies, cabanas abandonadas que são uma relíquia do que ficou
conhecido como Despejos Escoceses, quando populações inteiras foram
afastadas das terras altas rurais. Estas cabanas modestas constituem agora
uma rede informal de alojamento para viajantes, e, embora sejam básicas
– algumas só têm camas e uma lareira –, as bothies tornaram-se uma
tradição escocesa, muito estimada, que proporciona aos viajantes um lugar
grátis para passar a noite. 
Claro que esta liberdade soa maravilhosa, mas tem um outro lado: falta
de segurança. No fim de contas, embora possa parecer maravilhoso
vaguear pelo campo sem restrições, talvez não seja assim tão fantástico
ver um estranho entrar pelo nosso quintal dentro. É que os seres humanos,
como muitos animais, são territoriais.123 Está inscrito nos nossos cérebros.
Os cientistas sabem que os animais, dos insetos aos chimpanzés,
desenvolveram um sentido de espaço pessoal, o que faz sentido, porque,
na natureza, ter o nosso espaço invadido pode ser uma ameaça à
sobrevivência. 
Nos humanos, foram detetadas quatro zonas distintas de espaço pessoal.
Na década de 1960, o antropólogo norte-americano Edward Hall foi o
primeiro a definir e a medir aquilo a que chamou “bolhas” de reação. A
bolha mais próxima que nos rodeia é o “espaço íntimo”. Tem
aproximadamente 46 centímetros em redor do corpo e está reservada à
família, parceiros e amigos próximos. A bolha seguinte é o “espaço
pessoal”. Vai de 46 centímetros a um 1,20 metros e é onde nos sentimos
mais à vontade com conhecidos. A terceira bolha é a do “espaço social”.
Vai de 1,20 a 3,70 metros e é a área reservada a estranhos e novos
conhecimentos. Finalmente, para lá disto, está o espaço público, em que,
na maior parte dos casos, todos têm a liberdade de entrar. Claro que há
exceções e, enquanto criaturas sociais, aspetos como estatuto, sexo e
diferenças culturais, tudo afeta as nossas noções de espaço pessoal
“seguro”, mas em geral estas bolhas definem o nosso sentido de território
mais básico. 
A parte do cérebro responsável pelas nossas sensações de medo ou
segurança é a amídala. Constitui os circuitos neurais que estão por trás das
nossas reações de “lutar ou fugir”. Mas ficou a saber-se, a partir dos raros
casos em que houve danos na amídala, que o sentido humano destas
fronteiras espaciais pode ser apagado. Foi o caso de SM, um doente com
uma lesão significativa na amídala que o impediu de ter um sentido de
espaço pessoal. Tal como Aaron, uma personagem de um episódio da série
Seinfeld que falava demasiado próximo das pessoas, SM parecia
perfeitamente à vontade mesmo em situação de estreita proximidade com
estranhos.  
Observada de perto, a nossa necessidade de espaço será, então, uma
evolução de defesa. Mas há exceções na defesa de territórios maiores –
espaços que estão para lá da ameaça pessoal. No reino animal, pássaros
como o tordo, por exemplo, são agressivos para com outros tordos que
entram no seu território, mas permitem o acesso de aves como a trepadeira
de peito branco, pois as duas espécies têm fontes alimentares diferentes e
não competem. Do mesmo modo, os chimpanzés protegem o seu espaço
da sua própria espécie. E são territórios significativos, de entre 48 a 241
quilómetros. Machos, e às vezes também fêmeas e jovens, patrulham
regularmente as fronteiras para assegurar que os vizinhos chimpanzés não
se infiltram no seu território. E embora os machos vizinhos sejam sempre
atacados como intrusos, as fêmeas férteis são bem-vindas como novas
imigrantes, pelo menos pelos machos. Em geral são marginalizadas de
início pelas fêmeas residentes, mas o acesso acaba por ser-lhes
autorizado. 
Já os humanos são diferentes: gerimos os nossos territórios não apenas
de uma forma física, mas com as nossas mentes. Enquanto espécie,
criámos fronteiras e mapas que nos separam uns dos outros e assinalam
espaços definidos. A separar-nos está também o facto de os nossos
territórios poderem ser imensos; na verdade, aquilo que hoje constitui o
nosso território abrange o planeta inteiro. 
 
Na Finlândia, o povo indígena Sami tem uma unidade de medida muito
especial. Chama-se poronkusema e é definida como a distância que uma
rena pode percorrer antes de ter de parar para urinar. Os Sami, que vivem
há séculos ao lado das renas, repararam que os animais nunca urinam
enquanto caminham. E, portanto, aproximadamente ao fim de cerca de 7,5
quilómetros, uma poronkusema, param e esvaziam as bexigas. Embora
esta medida possa parecer um bocadinho absurda para todos aqueles que
não guardam rebanhos de renas, deve dizer-se que, antes de o sistema
métrico surgir, muitos países e culturas possuíam os seus sistemas bastante
peculiares. É provável que, no futuro, as pessoas também considerem
bizarro o facto de descrevermos a perda irreparável das nossas florestas
tropicais em termos de “campos de futebol”. 
A capacidade que temos para definir e medir o espaço com rigor separa-
nos de outras espécies. Somos os únicos animais com aptidão para
projetar a nossa idealização mental do mundo – usando comprimentos,
larguras, linhas e mapas – e assim definir o espaço físico em redor. Para
compreender de que modo construímos este mundo cartografado é
importante, no entanto, olhar primeiro para a forma como criámos as
unidades básicas de medida. 
A dimensão do espaço, como vimos no capítulo 1, é demasiado
gigantesca para ser apreendida pelos nossos pequenos cérebros e por isso
reduzimos a escala do abismo, dividindo-o em pedacinhos mais pequenos
que somos capazes de entender, coisas de uma dimensão humana. Muito
como a dimensão do tempo, originalmente todas as medidas foram feitas
com corpos. Como Witold Kula escreve em Measures and Men, ao longo
da maior parte da história o corpo humano funcionou como “a medida de
todas as coisas”. Recuando a 2700 a.C., os egípcios usavam o cúbito real,
uma medida que ia de 523,5 a 529,2 milímetros e era sensivelmente
equivalente à distância entre a mão esticada e o cotovelo. O cúbito era
depois dividido em sete “palmos”, cada um aproximadamente com 75
milímetros, e os palmos eram subdivididos em quatro djeba, ou dedos,
com cerca de 19 milímetros cada. 
Estas medidas do antebraço eram populares em todo o mundo. E fazia
sentido. Temos todos braços, por isso era como andar sempre com uma
medida. Os gregos antigos mediam o cubo em 460 milímetros, enquanto a
antiga ulna romana era de 444 milímetros. Não eram obviamente medidas
exatas, mas eram muito semelhantes. Eram também usadas como medida
outras partes do corpo, incluindo o shaku (pé) no Japão, o hasta
(antebraço) na Índia, o chi (mão) na China, o thnang dai (nó dos dedos)
no Camboja e o wa (braço esticado) na Tailândia. 
Mas o problema com as medidas baseadas no corpo, como é fácil de
perceber, é que não são iguais. Por isso, quando os governantes queriam
aplicar impostos a uma população, a medida exata de uma mão cheia ou
de um cesto cheio de trigo ou de 60 passadas de um campo era subjetiva.
Em territórios sujeitos a um governo, como observa o sociólogo Zygmunt
Bauman, todas estas diferentes modalidades de medida tinham de ser
absorvidas pela “imposição de medidas padrão, obrigatórias, de distância,
superfície ou volume, proibindo ao mesmo tempo todas as outras
definições locais, de grupo ou individuais”. As medidas tinham de tornar-
se padronizadas. 
Na Inglaterra medieval, a terra chegou a ser medida pela quantidade
necessária para sustentar uma casa. A unidade de medida era conhecida
como um “hide”. Tradicionalmente, um hide tinha cerca de 48,5 hectares,
mas a sua definição era flexível no sentido em que era mais uma medida
de valor (sob a forma dos impostos que produzia para a família) do que
uma medida de superfície. Um hide de solo fértil, por exemplo, seria mais
pequeno do que um hide de solo pobre. A questão é que a medida do
espaço não era uma coisa perfeitamente definida. Podia ser negociada. 
O primeiro padrão que conhecemos foi promulgado por Ricardo I em
1196. No Tribunal de Medidas, o rei decretou que “por todo o reino
haverá a mesma jarda do mesmo tamanho e deverá ser de ferro”. Mas
Ricardo I também tinha a noção de que, para serem aceites, os seus
padrões tinham de ser vistos como benéficos para o povo. E, por isso,
quando a Magna Carta foi assinada, em 1215, não só fixou limites à
monarquia e deu mais direitos aos barões rebeldes, para garantir o seu
apoio político, como também, de uma forma bastante surpreendente,
delineou os primeiros padrões para a cerveja. Os “direitos” da carta
garantiam que a cerveja seria finalmente idêntica “por todo o reino”,
fazendo assim com que as pessoas não fossem enganadas umas pelas
outras ou por comerciantes gananciosos. 
Como afirma a cláusula 35 da carta: “Haverá em todo o nosso reino uma
medida para o vinho, e uma para a cerveja, e uma para os cereais, a saber:
o quarter londrino. Haverá também uma largura para os panos tingidos, os
russets e os haberjects, a saber: dois ells entre as margens. Os pesos
devem ser padronizados da mesma forma.” 
Ao longo dos séculos, com a subida ao trono de vários monarcas, as
medidas mudaram com frequência, ao sabor dos seus desejos. Durante o
reinado de Eduardo I (1272 a 1307), a medida oficial para os terrenos era
o rod, ou perch (vara). A sua definição parecia uma criação dos Monty
Python: um rod era “o comprimento total dos pés esquerdos dos primeiros
16 homens a saírem da igreja ao domingo de manhã”. Até ao reinado de
Henrique VII (1485 a 1509), a “yard” (jarda) era orgulhosamente definida
como “a amplitude do peito de um saxão”. Henrique substituiu-a pelo
“ell” padronizado, uma medida que era aproximadamente uma jarda e um
quarto e foi pedida emprestada aos vendedores de tecidos franceses. Em
1588 o ell foi então suplantado pela jarda de Isabel I. Esta jarda foi
duradoura; prevaleceu mais de 200 anos. Mas em 1824 outra jarda tomou
o seu lugar, quando Jorge IV encomendou à Royal Society um padrão
imperial. Infelizmente, a sua jarda durou apenas nove anos e 198 dias, já
que a vara oficial padrão ficou danificada no grande incêndio de 16 de
outubro de 1834, que arrasou o edifício do parlamento. 
As medidas não têm estado só sujeitas aos caprichos da história,
também têm diferido de país para país e até de lugar para lugar no mesmo
país. Em The Measure of All Things, Ken Alder escreve que na França
pré-revolucionária se calculava que “sob o disfarce de perto de 800
nomes, o Ancien Régime francês usava umas extraordinárias 25 mil
unidades diferentes de pesos e medidas”. Mas também foram os franceses
que criaram os primeiros padrões de medida “universais”, estabelecendo o
sistema métrico que a maior parte do mundo hoje usa. 
Quando a Revolução Francesa esmagou a monarquia, também deixou
cair a guilhotina sobre as velhas ideias. Os franceses criaram um novo
sistema e declararam que seria “para todo o povo, para todo o tempo”. A
sua grande ideia era afastar o corpo humano – e as complexidades da
forma humana – da condição de fonte principal de perspetiva e, em vez
disso, assentar novas unidades de medida em qualquer coisa de mais
universal: o nosso corpo planetário. Era uma tarefa imensa. 
No verão de 1792, dois astrónomos, Jean-Baptiste Delambre e Pierre
Méchain, saíram de Paris em direções opostas. Delambre dirigiu-se para
norte, enquanto o colega Méchain partiu para sul. Tinham um objetivo
extremamente ambicioso: serem os primeiros a medir o mundo. Para o
conseguirem, iriam seguir o arco meridiano entre Dunquerque e
Barcelona, que passava por Paris. Extrapolando a partir dessa medida,
encontrariam então a distância entre o Equador e o Polo Norte. 
Foi, e continua a ser até hoje, um feito extraordinário. Usando varas de
platina para seguir a linha de longitude, os dois homens calcularam que a
distância entre o Polo Norte e o Equador era de dez milhões de metros e
determinaram que o metro devia ser definido como um décimo
milionésimo da distância entre o polo e o Equador. Com base em
medições efetuadas por satélites, sabemos hoje que a distância exata é de
10.002.290 metros. Delambre e Méchain enganaram-se apenas por um par
de quilómetros, o que significa que o cálculo de um metro estava exato
com um erro de 0,2 milímetros, ou seja, aproximadamente a largura de
dois cabelos humanos. 
Esta medida da Terra foi forjada em platina e no dia 22 de junho de
1799 um protótipo deste metro, designado “mètre des Archives” (metro
dos arquivos), foi colocado nos Arquivos Nacionais em Paris. Em breve
seriam exportadas cópias para outros países, para que eles pudessem usar
a medida. Mas surgiu uma complicação. As cópias podiam sofrer danos e
estavam sujeitas a desgaste. Por isso nasceu um novo metro, o metro
protótipo internacional. Esta barra de platina e irídio seria uma “linha
padrão”. Tinha duas marcas que davam a medida de um metro, evitando
assim o problema de o metro ser danificado nas pontas. O protótipo ficaria
guardado no recém-criado Bureau Internacional dos Pesos e Medidas, em
Sèvres, nos arredores de Paris. Este tornou-se o metro “oficial” e em breve
seria copiado e usado em mais de 30 países.  
Como o incêndio que destruiu o parlamento britânico tinha mostrado,
havia ainda um problema com uma representação física de uma coisa
abstrata. O metro “real” (que representava todos os outros) ainda estava
sujeito a sofrer danos. E, por isso, o metro de platina, enquanto padrão do
sistema métrico, precisava de ser protegido. Em Sèvres, foi criado um
complexo sistema de alarmes contra incêndios e antirroubo. Na Rússia
czarista dos últimos tempos, as medidas oficiais também eram guardadas
em segurança na fortaleza de Pedro e Paulo em São Petersburgo. Mas até
estas precauções extremas não eram suficientemente seguras. Como
escreveu Witold Kula: “O pensamento de que um dia, por causa de um
sismo ou de um incêndio calamitoso, o mundo pudesse ficar ‘sem o
metro’, era na verdade um pesadelo. As novas regras, aplicadas em 1961,
abandonaram o próprio conceito de ‘padrão’. Hoje, o metro verdadeiro ou
invariável é definido como ‘um comprimento igual a 1.650.763,73
comprimentos de onda da luz laranja emitida pelo átomo de Krypton de
massa 86 in vacuo’ e é reproduzível no mundo inteiro em qualquer
laboratório científico devidamente equipado.”  
Assim nasceu o padrão transferível. Em vez de medir uma dimensão
através das suas quantidades humanamente observáveis, o metro tornou-se
uma coisa abstrata, invisível e intocável. Como sucedeu com a medida do
tempo, fomos afastados da possibilidade de ter a perceção das medidas
que nós próprios criámos. Estas medidas são hoje tão exatas que só podem
ser conseguidas por meio de tecnologia avançada. Até a medida a partir do
Krypton está já desatualizada. Hoje, o metro desmaterializado já tem outra
definição. Com a invenção do laser, o espaço já não é apenas uma medida
de luz, mas também uma medida de tempo. Estabilizado através de iodo
molecular, o laser de hélio-néon define o metro do século XXI como “o
comprimento do caminho percorrido pela luz no vácuo durante um
intervalo de tempo de 1/299.792.458 de um segundo”. 
Tudo isto parece altamente complexo para qualquer coisa que devia ser
muito simples. No fim de contas, como sabe qualquer pessoa que já tenha
feito compras na IKEA, a maior parte de nós ainda mede as coisas com os
pés e com as mãos. Mas as medidas têm esta caraterística: elas definem
tudo sobre o nosso mundo e no entanto nós nunca pensamos nelas ou nas
suas origens. Contudo, em silêncio, as medidas definem o próprio sistema
em que vivemos. Como escreveu Ken Alder: “Medir é uma das nossas
ações mais comuns. Falamos a sua linguagem quando trocamos
informações precisas ou trocamos objetos com exatidão. Mas esta mesma
ubiquidade torna as medidas invisíveis. Para cumprirem a sua missão, os
padrões precisam de funcionar como um conjunto de suposições
partilhadas, o cenário que nunca vimos mas no qual alcançamos acordos e
fazemos distinções. Não surpreende por isso que consideremos as medidas
como um dado adquirido e as consideremos banais.” 
Esta banalidade está formalizada no aceitar “as coisas como elas são”. O
mundo sem limites torna-se um mundo medido. A nossa relação pessoal
com o espaço muda. O espaço torna-se uma coisa. Torna-se um ângulo
morto. Mas não questionamos esta abstração. E assim, com o tempo, a
forma como estruturamos o espaço começa a parecer-nos natural ou
inevitável. Mas, como veremos a seguir, as medidas não definem somente
as fronteiras do nosso mundo, também definem quem o ocupa. 
 
O exército dos Estados Unidos faz hoje exercícios em campos de
batalha conhecidos como ambientes de treino sintético. Os militares já
criaram versões virtuais da Coreia do Norte, Coreia do Sul, Nova Iorque,
São Francisco e Las Vegas para servirem de campos de treino simulados,
réplicas completas em três dimensões geradas a partir dos ambientes reais.
A capacidade para efetuar medições de alta precisão é vital, porque elas
passam a representar a realidade. Neste caso, o mapa abre-se e torna-se o
território. 
A ideia é que as unidades do exército conheçam antecipadamente um
terreno de batalha, para o caso de alguma vez terem de o pisar. E embora a
tecnologia tenha melhorado, não é propriamente nova. Já em 1993, num
artigo para a revista Wired, o autor de ficção científica Bruce Sterling
escrevia sobre como os militares estavam a usar o espaço virtual para
bater o seu adversário real: 
 
“O Projeto 2581 é sobre a reprodução virtual e arquivamento do planeta inteiro. A
tecnologia de simulação atingiu hoje um ponto em que as fotografias de satélite podem ser
automaticamente transformadas em paisagens virtuais em 3D. Estas paisagens podem ser
guardadas em bases de dados, e depois usadas como terrenos de treino altamente idênticos
para tanques, aviões, helicópteros, SEALs, comandos da Força Delta. O que quer isto dizer?
Quer dizer que em breve não haverá “território desconhecido” para os militares dos Estados
Unidos. No futuro […] os militares norte-americanos conhecerão todo o planeta como a
palma das suas mãos. Conhecerão outros países melhor do que se conhecem a si mesmos.” 
 
Se a ideia de ter a sua cidade cartografada virtualmente pelo Pentágono
o deixa um tanto desconfortável, pense um pouco nos que, ao longo dos
séculos, sentiram os europeus ao chegar com astrolábios e pequenos
telescópios e outros instrumentos usados em cartografia. Fossem os
espanhóis no Peru, os franceses em São Lourenço, os ingleses em África
ou os próprios Mason e Dixon a atravessar os Estados Unidos, era
inevitável que, depois de os mapas estarem feitos, chegariam agentes de
potências estrangeiras – e logo a seguir, em geral, havia violência. 
Mas a cartografia também é usada para manter a paz e reconciliar
interesses em conflito de uma forma civilizada. Hoje, o Ártico – onde há
petróleo avaliado em 35 biliões de dólares, além de riquezas em pescado e
em minério, sepultado sob o gelo e a água – tornou-se um ponto de
interesse estratégico. Cinco países – Estados Unidos, Canadá, Noruega,
Dinamarca (Gronelândia) e Rússia – têm reivindicações territoriais sobre a
região polar. Quem fica com o quê? 
A lei marítima afirma que cada país pode reivindicar 200 milhas
náuticas (370,4 quilómetros) para lá da sua costa. É a sua “zona
económica exclusiva”. Mas debaixo de água existe também a plataforma
continental, que pode “pertencer” a um país ou a outro. E assim, em casos
onde a margem continental se prolonga para além do alcance da lei dos
mares, os países podem ainda reivindicar outro “limite exterior”, que é
definido como uma de duas coisas: 1) pontos a 60 milhas náuticas [cerca
de 111 quilómetros] do talude continental; ou 2) pontos nos quais a
espessura da rocha sedimentar seja pelo menos 1 por cento da distância
mais curta entre esses pontos e o talude continental. 
Tudo se torna complicado e técnico e é aqui que as linhas que definem
soberania começam a tornar-se difusas. Isso acontece porque onde a
plataforma continental se prolongue para lá de 200 milhas (370,4
quilómetros), um país pode adicionar 350 milhas (648 quilómetros) a
partir da linha de base (ou linha de baixa-mar ao longo da costa) ou 100
milhas (185 quilómetros) a partir do ponto em que a plataforma atinge
uma profundidade de 2.500 metros. E por isso o Canadá apresentou nas
Nações Unidas uma petição para reavaliar onde termina a sua plataforma
continental. A Rússia fez o mesmo, o que vai colidir com a Dinamarca e
provavelmente com a petição canadiana. Entretanto, a Dinamarca e o
governo da Gronelândia também propuseram um novo “limite exterior”,
que iria colidir com a plataforma continental da Noruega. As linhas vão
sobrepor-se umas às outras, como um fio desenrolado. 
Mas, por agora, enquanto o gelo do Ártico resiste, a fricção entre países
por causa dos recursos ainda não aqueceu. Em 2007, no entanto, a Rússia
fez uma reivindicação simbólica sobre o Polo Norte. Num gesto que
provocou controvérsia internacional, cientistas russos viajaram até 4.300
metros debaixo do gelo nos submarinos Mir 1 e Mir 2. O seu propósito era
recolher sedimentos e amostras de água para provar cientificamente a
continuidade do leito oceânico como parte da plataforma continental
russa. Também colocaram uma bandeira russa em titânio, com um metro
de altura, no Desfiladeiro Lomonosov, onde ainda se mantém, nas águas
escuras sob o gelo polar. 
A questão é que os mapas podem estar errados mesmo quando são
rigorosos, porque aquilo que eles realmente afirmam não são as fronteiras
do espaço, mas o alcance do poder. E embora tenham sido usadas a
geologia e a ciência dura para justificar a reivindicação russa ao Polo
Norte, a comunidade internacional não julgou que isso fosse um
argumento convincente. Em entrevista ao The Guardian, Kim Holmén,
diretor de investigação do Instituto Polar Norueguês, rejeitou assim a
reivindicação russa: “Os Estados Unidos e a Europa estiveram em tempos
ligados, os Apalaches e as montanhas escocesas são a mesma formação
geológica, mas por causa disso a Escócia não pode reivindicar que os
Estados Unidos fazem parte do seu território. Estas amostras não podem
provar de uma vez por todas que toda a discussão está terminada.” 
O então ministro canadiano dos Negócios Estrangeiros, Peter MacKay,
também ridicularizou o espetáculo russo de deixar uma bandeira: “Não
estamos no século XV. Não podemos andar pelo mundo a pôr bandeiras e
a dizer: ‘Reivindicamos este território’.” 
Tudo isto é verdade. Sem dúvida que os continentes estiveram em
tempos todos juntos. E há séculos que espetar bandeiras no chão não é
considerado boa diplomacia. Mas o que ninguém viu foi que o
aparentemente irresolúvel problema da soberania sobre o Ártico não foi
causado por qualquer manobra russa. Foi provocado por mapas. As linhas
e fronteiras que traçamos para desenhar países são arbitrárias. Não quero
dizer que as plataformas continentais sejam imaginárias; elas são bem
reais.124 Mas a ideia de que têm alguma coisa que ver com aquilo a que
chamamos nações não passa disso mesmo: uma ideia. E a ideia de que os
mapas conferem propriedade começa a parecer bastante ridícula, quando
dois mapas perfeitamente rigorosos parecem afirmar duas coisas
diferentes. Por outras palavras, a questão não é efetivamente se um dos
mapas está errado. É que, como forma para resolver a questão de quem
detém os direitos a explorar os recursos debaixo do gelo, ambos podem
estar errados. 
 
Em 24 de julho de 1969, o funcionário da alfândega Ernest Murai
recebeu três visitantes especiais em Honolulu, o porto de entrada no
Havai. Os visitantes tinham estado oito dias fora do país, o que não era
particularmente invulgar. O que era invulgar era o ponto de onde tinham
partido. O voo era o da Apollo 11, e bem visível no formulário de entrada,
no espaço reservado ao ponto de partida dos viajantes, lia-se simplesmente
“Lua”. 
A ideia de astronautas regressados à Terra a passarem pelo controlo de
alfândega parece um bocado rebuscada. É evidente que Neil Armstrong,
Buzz Aldrin e Michael Collins não precisaram de vistos ou passaporte
quando viajaram para a Lua, mas para regressarem a casa precisaram de
pedaços de papel carimbados. O mesmo é hoje verdade na Estação
Espacial Internacional. Estes viajantes do espaço circulam livremente à
volta do planeta, 16 vezes por dia, mas quando aterram a NASA tem de
levar-lhes passaportes para poderem viajar outra vez na Terra. 
Quando se pensa nisso, é notável o poder que estes livrinhos em papel
representam, em especial se se considerar que são uma invenção muito
recente. Hoje, para além de serem uma forma oficial de identificação,
revelam quem são os nossos aliados (e inimigos) no planeta. Os
passaportes mais poderosos concedem a maior liberdade. São emitidos por
países que têm alianças com muitos outros. Os indivíduos que possuam
passaportes de Singapura ou da Coreia do Sul, por exemplo, têm acesso a
163 países sem necessidade de visto. O detentor de um passaporte do
Afeganistão, no entanto, tem acesso a apenas 26. 
As pessoas com passaportes “bons” não pensam neste desequilíbrio de
liberdade. Como escreveu o jornalista Kanishk Tharoor, “os cidadãos de
países ocidentais como os EUA raramente têm a noção do enorme luxo
que os seus documentos de viagem constituem. As fronteiras dissolvem-se
perante o suave acenar de um passaporte britânico ou americano; o pior
incómodo é muitas vezes ter de estar em fila num aeroporto para
conseguir um visto”. Em contraste, como nota Tharoor, os refugiados
sírios que viajaram para a Europa de barco, entre a Turquia e a Grécia,
tiveram depois de seguir a pé pelos Balcãs para a Europa Central. E é uma
deslocação cara. Uma viagem de ida deste tipo entre a Síria e a Europa
custa pelo menos três mil dólares. Mas quando se é sírio não é
simplesmente possível entrar num avião e solicitar um visto à chegada. 
Embora os passaportes tenham tecnicamente existido há séculos sob a
forma de “documentos de viagem” (cartas de reis a prometer passagem em
segurança datam do ano 450 a.C.), o passaporte moderno, como o
conhecemos, só existe desde 1914. No seu livro Closed Borders, Alan
Dowty sugere que isso é assim muito simplesmente porque até ao fim do
século XIX não existiam as infraestruturas necessárias. “Eram poucos os
governos” – escreveu – “que tinham realmente controlo total das suas
fronteiras; e não possuíam burocracias suficientemente sofisticadas para
destrinçar entre migrantes legais e ilegais quando estes cruzavam os
postos fronteiriços.” 
Foi só apenas depois da Primeira Guerra Mundial, quando os impérios
se fraturaram em nações mais pequenas, que, para fins de segurança e
controlo de emigração, o passaporte começou a ser usado. Era um tempo
em que os países estavam bem mais preocupados com as pessoas que
saíam pelas suas fronteiras do que com as que entravam. Como o escritor
Stefan Zweig recorda na sua autobiografia O Mundo de Ontem: “Antes de
1914, a terra tinha sido de todos […] As pessoas iam onde queriam e
ficavam o tempo que lhes apetecia. Não havia autorizações, nem vistos, e
dá-me sempre prazer espantar os jovens ao dizer-lhes que antes de 1914
viajei da Europa para a Índia e para a América sem passaporte – e sem que
alguém tivesse visto um.” 
Mas não nos limitámos só a inventar o passaporte. Antes do século
XVIII, o mundo também não tinha estados-nação. Embora em qualquer
dado momento as fronteiras pareçam permanentes, elas têm mudado
enormemente ao longo dos séculos. Se as olhássemos ao longo de um
período de mil anos usando o conceito de imagens sucessivas, veríamos
como avançam e recuam como se fossem ondas, em especial na Europa. E
embora a nossa tendência seja para assumir que as fronteiras têm o papel
importante de separar claramente o que está de um lado da linha daquilo
que está do outro, os vizinhos das localidades de Baarle-Hartog e de
Baarle-Nassau, que pertencem respetivamente à Bélgica e à Holanda,
veem as coisas de uma maneira muito diferente. Aqui, as fronteiras estão
tão bem definidas como um prato de ovos mexidos, graças a duques e
lordes medievais que nessa altura trocaram pedaços de terra da mesma
forma que hoje trocariam moedas. Por causa disso, hoje, dentro de uma
comunidade, há 22 mini Bélgicas que formam enclaves dentro da
Holanda, e sete destes pedaços de terra contêm mini Holandas. O que
significa que há “partes da Holanda dentro de partes da Bélgica que estão
dentro da Holanda”. 
Há localidades cortadas por fronteiras que ziguezagueiam. Algumas
passam mesmo pelo meio de bares e restaurantes, enquanto outras
dividem parques e até edifícios residenciais. Algumas famílias têm casas
de nacionalidade dividida, com uma cozinha num país e a sala noutro. De
acordo com as linhas de fronteira, há diferentes operadores de TV por
cabo e serviços de recolha de lixo. Mas não é tudo. “Há dois governos
locais – o que significa que há duas eleições para dois presidentes de
câmara. Há também dois conjuntos de eleições regionais e nacionais. Há
dois serviços postais. Se se enviar uma carta de um país para o outro (o
que, neste caso, quer dizer para o outro lado da rua), a carta percorrerá um
longo caminho, de Baarle até Amesterdão ou Bruxelas até regressar
novamente a Baarle… E há dois sistemas fiscais, dois sistemas elétricos,
dois sistemas telefónicos, dois sistemas escolares e dois clubes de ténis.” 
Durante algum tempo, os bares do lado holandês da cidade fechavam
mais cedo, e nos restaurantes divididos ao meio podiam iludir-se as regras
simplesmente passando os clientes para o lado belga, onde podiam
continuar a comer e a beber. Mas esta teia de linhas divisórias também
criou vazios financeiros. E embora os residentes tenham de obedecer às
fronteiras, há formas de fazerem o sistema funcionar a seu favor. Os
impostos, por exemplo, são pagos no país para onde abre a porta da frente,
e por isso, em vários casos, houve comerciantes que trocaram a porta de
entrada das suas lojas e assim se mudaram para outro país, de forma a
terem impostos mais favoráveis. 
Tudo isto para dizer que as linhas invisíveis que desenhamos são
importantes, e que embora possam nem sempre separar pessoas ou
culturas, separam leis. 
No caso de Baarle-Nassau e Baarle-Hertog, os habitantes têm
evidentemente mais em comum uns com os outros do que com qualquer
outro grupo no planeta, apesar de viverem em países diferentes. Ao
mesmo tempo, embora um país possa reivindicar ser diferente de outro,
existem sempre dentro das suas fronteiras grupos étnicos, fações políticas
e diferenças religiosas, por muito homogéneo que esse país pareça. Isso
acontece porque há a tendência para fazer coincidir estados-nação com
estados territoriais. Em Mastering Space, John A. Agnew escreveu: “Isto
parece bastante inocente, mas confere ao estado territorial a legitimidade
de representar e de expressar o ‘caráter’ ou ‘vontade’ da nação […] Neste
sentido singular, muitos estados não são claramente nações.” 
Foi sem dúvida o que aconteceu com muitos países em África, quando
as potências coloniais dividiram o continente sem pensarem muito nas
pessoas e nos grupos étnicos que o habitavam. No Corno de África, os
povos somalis viram a sua terra dividida entre a Somalilândia Britânica, a
Somalilândia Italiana, a Somalilândia Francesa, a região somali da Etiópia
e a região somali do norte do Quénia. Em especial para os grupos
nómadas e de pastores, as fronteiras coloniais que restringiam os seus
movimentos significavam muitas vezes a perturbação, ou mesmo a
destruição, dos seus modos de vida. Muitos tinham de se fixar e competir
por recursos, o que conduziu a um aumento dos conflitos. 
Noutros casos, foi o contrário que provocou problemas: grupos étnicos
completamente afastados, sem qualquer partilha de costumes ou uma
herança comum, reunidos dentro de fronteiras. Tomemos como exemplo
um dos mais novos países de África. Em Angola existem dez grupos
étnicos diferentes, que na verdade têm apenas uma coisa em comum:
foram colonizados pelos portugueses e conquistaram a independência em
1975. Os europeus levaram o que puderam quando se foram embora, mas
deixaram as fronteiras e um país que não tinha existido antes. 
Basicamente, ser do mesmo país de outra pessoa não quer dizer ser igual
a ela, do mesmo modo que pertencer a um país diferente não quer dizer
que se seja diferente. Pensem desta forma: há cerca de 6.500 idiomas
falados na Terra. E o idioma é um dos principais elementos unificadores
de uma cultura.125 Dado que existem 195 países, isso significaria que em
média um país contém 33 culturas linguísticas diferentes. Vejamos a
Papuásia-Nova Guiné, com mais de 800 idiomas falados, ou a Indonésia,
com 742. É evidente que as fronteiras nacionais não se transformam em
agrupamentos culturais. As contas não batem certas. 
Há outra forma de olhar para as fronteiras. Gostamos de partilhar os
feriados nacionais, a gastronomia ou os costumes mas nem sempre
estamos dispostos a deixar entrar algumas pessoas. No fundo somos
animais e, enquanto animais, às vezes lutamos por causa de território. As
nossas naturezas animais podem, no entanto, ser saciadas quando há
espaço e recursos em abundância. É por isso que o espaço desconhecido,
como o espaço exterior, não sofre em geral qualquer contestação. Há tanto
espaço no sistema solar e no universo que é absolutamente inútil disputá-
lo. Do mesmo modo, em terras desertas, há milénios que pequenas
populações de nómadas tiveram o direito de vaguear por grandes porções
de território. Como Fred Pearce escreve em The Land Grabbers, as
mudanças que estamos agora a ver são relativamente recentes, porque há
apenas “uma geração os beduínos e os seus camelos vagueavam pelos
desertos do Médio Oriente”. Mas mesmo nessa altura “não havia liberdade
total. Negociavam-se e vigiavam-se propriedade e direitos, mas sem
vedações, leis formais ou fronteiras nacionais”. 
Como os nómadas se adaptam com frequência a lugares inóspitos e
inférteis como o deserto, a estepe, o Ártico ou a tundra, as suas populações
eram tipicamente pequenas e ágeis, tirando partido da vegetação e da caça
quando migravam com animais, segundo as estações do ano. Nas regiões
férteis, porém, as tribos humanas começaram a assentar em casas
permanentes. Há dez mil anos, com o advento da agricultura, fomos
também capazes de constituir pela primeira vez reservas de alimentos. Em
conjunto com povoações desenvolvidas que precisavam de ser defendidas,
mais alimentos significavam também mais pessoas. Havia confrontos
quando o espaço era valioso. E quando os grupos instalados já não
conseguiam expandir-se para outros territórios, evoluiu um novo tipo de
formação de grupo humano: começámos a expandir-nos para cima. Foi a
invenção da hierarquia. 
A hierarquia permitiu a complexidade social e o governo coordenado de
grupos maiores. Na revista New Scientist, Deborah MacKenzie examinou
a evolução das nações, observando que “hierarquias maiores não só
ganharam mais guerras como alimentaram mais pessoas através de
economias de escala, que permitiram inovações técnicas e sociais como a
irrigação, o armazenamento de alimentos, a manutenção de registos e uma
religião unificadora. Seguiram-se as cidades, os reinos e os impérios. Uma
cidade ou região conquistada podia ser subjugada para fazer parte de um
império, independentemente da ‘identidade nacional’ dos seus habitantes”.
Por outras palavras, há milhares de anos os impérios tendiam a ser
multiculturais e isso, na verdade, nunca mudou. 
Mas o grande flagelo das primeiras cidades-estado e impérios não eram
tanto outras cidades-estado e impérios; eram mais aqueles que não se
tinham fixado e não tinham devotado a sua energia à agricultura. Ou seja,
os povos livres: os nómadas. 
Do ponto de vista dos colonos, um nómada é alguém que não liga à
nossa fronteira ou à nossa divisão de espaço. Os que migravam eram em
geral mais saudáveis e mais fortes do que os agricultores. Alguns
andavam a cavalo e caçavam com arco e flechas e, como tal, eram
considerados guerreiros natos. Por isso, os agricultores tinham todas as
razões para temer os nómadas. A história, tal como a conhecemos, está
repleta de conflitos sangrentos entre os dois grupos, desde os tempos
bíblicos até hoje. Mas apesar de os estereótipos serem muitos, será que os
nómadas eram mesmo predadores? Ou eram as presas? 
Há duas descrições de povos nómadas. Uma defende que eram
invasores e extorquiam e atacavam sociedades agrícolas; outra que
protegiam o seu estilo de vida tradicional contra as sociedades agrícolas
expansionistas. Na verdade, as duas são exatas; só depende de com quem
se está a falar. 
O último povo indígena da União Europeia, os sami, sustenta-se através
da pesca e também da pastorícia de renas. E, no entanto, os sami têm de
combater os estados-nação que existem nas suas terras tradicionais. Como
afirmou um sami: “Os governos da Finlândia e da Noruega tentam
ilegalizar a pesca do salmão para os sami e dar novos direitos de pesca a
pessoas ricas que construíram cabines na nossa terra.” Então, a quem
devem pertencer os direitos? A pessoas que vivem no local há milhares de
anos, mas não são “donas” da terra, ou a pessoas que não têm
verdadeiramente laços com a terra, mas são donas da propriedade
privada? 
A questão vai tornar-se cada vez mais pertinente à medida que o
crescimento global da população transformar o espaço e os recursos num
luxo. Agora que vivemos num mundo de estados, consideramos um
pecado ser apátrida. E, contudo, a ideia de uma linha imaginária que
alguém pudesse cruzar e passar de um estado para outro é razoavelmente
recente na história humana. Só em 1648, quando foi assinado o Tratado de
Vestefália, a Europa estabeleceu o conceito nascente daquilo a que hoje
chamamos soberania e pôs fim a séculos de violência. O imperador
Ferdinando II tinha querido impor o catolicismo nos seus domínios (onde
as potências locais eram cada vez mais protestantes). Isto desencadeou a
Guerra dos Trinta Anos, que causaria grande destruição e depressa
envolveu quase todos os países da Europa. 
O conflito sangrento durou entre 1618 e 1648, quando Ferdinando já
estava morto há 11 anos, e resultou em oito milhões de mortes. Os 224
principados, ducados e outros pequenos domínios que então compunham
aquilo que hoje conhecemos como Alemanha (onde se travaram a maior
parte dos combates) perderam, de acordo com algumas estimativas, 20 a
30 por cento da população, o que fez desta guerra uma das mais
sangrentas da história. No fim, todas as partes tinham um enorme
incentivo para assinar o tratado de paz, só para acabar com o pesadelo.
Mas é improvável que alguém soubesse que estava a estabelecer um
precedente que iria mudar o mundo. A nova ideia que foi finalmente
aceite, e que séculos depois abriu caminho às Nações Unidas, era que as
fronteiras dos estados davam aos novos territórios direitos às suas próprias
políticas e práticas religiosas. Era mais ou menos o direito de ser deixado
em paz, em troca do compromisso de deixar os outros em paz. É isso que
hoje queremos dizer, basicamente, quando falamos de soberania. 
A ideia radical teve implicações a nível individual. Agora que o
controlo político já não era exercido numa linha direta, putativamente
através da vontade de Deus, a agir através do rei até ao mais ínfimo dos
súbditos do estado, era necessário um novo alinhamento para definir
precisamente a condição de estado. E ele foi alcançado através do
investimento direto no estado, sob a forma de propriedade privada. O
indivíduo era agora parte de um contrato e tornava-se legalmente
responsável pela terra que possuía, e em contrapartida tinha um interesse
investido na entidade política maior a que pertencia. O estado territorial
colocava-se então no papel de protetorado. Como sugere John Agnew, o
estado tornou-se um “harmonizador da sociedade”. 
Pela primeira vez na história, o indivíduo – o comum – tinha um lugar
importante na sociedade. Como escreveu Brian Nelson, autor de The
Making of the Modern State, “a escolha individual, em especial a escolha
económica, torna-se agora possível”. E com esta interdependência entre o
estado e o indivíduo, surgiu a noção abstrata de “direitos”. Afinal, “a
reivindicação individual ao direito de propriedade […] torna-se válida
apenas até ao ponto em que o indivíduo reconhece as reivindicações de
outros e aceita o dever legal de as aceitar”. E embora a noção de
propriedade privada existisse desde os gregos antigos, para estes a
propriedade não era uma coisa que o indivíduo tivesse o direito de
negociar. As transferências de terras entre famílias eram difíceis e
necessitavam de autorização religiosa e a apropriação de terras privadas
pelo estado era inexistente, exceto em casos de exílio. Só com a criação do
estado moderno viemos a assistir a uma lealdade para com o espaço
abstrato. Para a pessoa comum, a ideia de “o meu país”, “o meu estado” e
“a minha propriedade” só podia evoluir com a ideia de que o espaço em
questão podia ser imaginado como “meu” e comprado e vendido como
uma “coisa”. 
 
As divisões do “espaço” podem não se ver, mas estão por todo o lado.
Até a coluna de espaço por cima da sua cabeça e por baixo dos seus pés
tem direitos associados. Ser proprietário de uma casa é uma maneira de
ser dono de espaço, mas os direitos aéreos e sob a superfície podem
pertencer a outro. Nem sempre foi assim. Durante a maior parte da
história, partia-se do princípio de que um proprietário também era dono do
espaço por cima e por baixo; o espaço que lhe “pertencia” estendia-se até
ao infinito. A ideia baseava-se na doutrina ad coelum, cujas origens
podem ser traçadas até ao século XIII. No essencial, declarava: “Cuius est
solum, eius est usque ad coelum et ad infernos” (“Quem é dono do solo,
possui tudo o que está acima deste até aos céus, e o que está abaixo, até ao
inferno”). Bastante dramático, quando se fala de propriedade imobiliária. 
A ideia de ser dono do espaço até ao reino celestial acabou por ser
puxada para a terra de uma forma bastante improvável. Não foi desfeita
por soldados com espadas ou com armas de fogo, mas por balões de ar
quente e por um criador de galinhas muito zangado. Em 1783, em França,
depois de o primeiro balão de ar quente ter flutuado lentamente sobre os
campos, levantou-se a questão da invasão de propriedade aérea; com o
aparecimento das viagens aéreas por avião, a questão passou para primeiro
plano. A partir do momento em que isso aconteceu, era uma questão de
tempo até serem aplicadas restrições. Em 1925, o Congresso dos Estados
Unidos aprovou a Lei Kelly, que concedia rotas de “alimentação” aos
serviços postais aéreos. Depois, em 1926, a Lei do Comércio Aéreo criou
corredores aéreos que atribuíam ao governo os direitos aéreos sobre todo o
espaço acima dos 500 pés (152 metros) em áreas urbanas. O que
significava que as leis de violação de espaço já não podiam aplicar-se. 
Mas nem a Força Aérea dos Estados Unidos podia violar a santidade do
espaço aéreo. Em 1946, um corajoso criador de galinhas chamado Thomas
Lee Causby, de Greensboro, na Carolina do Norte, levou o governo a
tribunal por invasão do espaço aéreo sobre a sua quinta. A propriedade
ficava a menos de um quilómetro da pista aérea de Lindley, usada pelos
militares na Segunda Guerra Mundial. Todos os dias, quando os aviões
descolavam e aterravam, passavam a não mais de 25 metros dos
galinheiros. O ensurdecedor troar dos motores punha as galinhas em
estado de choque, levando a que deixassem de pôr ovos. Como refere o
processo, “seis em dez […] galinhas morreram um dia ao atirarem-se, em
pânico, contra as paredes. O total de galinhas perdidas desta maneira foi
de cerca de 150”. Causby teve de fechar o seu negócio. 
Em tribunal, Causby ganhou e foi compensado pelo seu sofrimento (e
pelo das aves) pelas passagens aéreas realizadas entre os 25 e os 111
metros – a primeira era a altura mais baixa a que os aviões voaram sobre a
sua propriedade e a segunda estabelecia a zona de travessia pública em
áreas rurais. Embora este veredicto possa, entretanto, ter sido atirado para
livros jurídicos cheios de pó, ainda é recordado por uma coisa: pôs um
ponto final ao ad coelum. O governo não podia reivindicar “a posse” do
espaço até ao solo, da mesma forma que os proprietários de terras também
não podiam prolongar os seus direitos de propriedade indefinidamente até
ao céu.126 
Com a recente chegada dos drones, porém, a lei precisou de
ajustamentos adicionais quanto aos direitos de propriedade aérea. A
Administração Federal de Aviação (FAA) não autoriza que veículos aéreos
não tripulados voem acima dos 400 pés (122 metros), para não
interferirem com os aviões que se deslocam a baixa altitude. Mas com a
capacidade para pairar sobre casas e espreitar por janelas de torres
residenciais, ainda há uma área cinzenta jurídica quanto aos drones e aos
direitos de propriedade. 
Um exemplo: em 26 de julho de 2015, em Bullitt County, no Kentucky,
David Boggs viu horrorizado como William Merideth apontava uma
caçadeira aos seu quadricóptero Phantom novinho em folha e o derrubava
com um disparo ensurdecedor. Merideth alegou que o drone estava a
invadir a sua propriedade, e embora os dois homens discordassem sobre a
altura a que o aparelho voava – Boggs falou em 61 metros e Meredith em
menos de 30 –, o drone estava de qualquer modo no espaço aéreo do
proprietário privado. E assim, de acordo com o juiz, Meredith estava no
seu direito de o abater. 
Quanto mais se sobe, mais espaço aéreo tem sido disputado, medido e
dividido. Os satélites que orbitam o nosso planeta não sobrevoam apenas
propriedade individual, mas países inteiros. E por isso é preciso que estes
se ponham de acordo quanto às fronteiras a partir das quais prescindem
dos seus direitos aéreos soberanos. Embora ainda persistam
desentendimentos, a faixa horizontal entre os 30 quilómetros (onde voam
os aviões e balões capazes de subir mais) e os 160 quilómetros (onde
passam os satélites de órbita mais baixa) é em geral designada como a
zona onde um país perde as suas reivindicações a direitos aéreos. 
Dentro desta faixa existe outra fronteira invisível. Segundo a Federação
Aeronáutica Internacional, que é o organismo que tutela a astronáutica e a
aeronáutica, a linha oficial entre a Terra e o espaço exterior situa-se nos
cem quilómetros. Para lá deste limite, qualquer viajante humano é
considerado um astronauta. Este limiar também é conhecido como linha
de Kármán e é onde a gravidade do planeta começa a perder o seu poder
de atração sobre os engenhos aéreos.127 Sempre que esta linha é cruzada,
aplica-se um conjunto diferente de leis que é diferente das da Terra, tal
como definidas no Tratado sobre o Espaço Exterior das Nações Unidas, de
1967. No espaço, nenhum país pode reivindicar soberania territorial. Mas
é, contudo, irónico que seja lá no alto e não aqui na Terra que o espaço
seja livre e um “domínio para toda a humanidade”. Que aquilo que é
partilhado em comum exista num lugar onde a maior parte de nós não
consegue chegar, quando mais habitar. 
No espaço reina a paz (pelo menos por agora) e são rigorosamente
proibidas armas de destruição maciça. Enquanto domínio aberto a toda a
exploração, as reivindicações de soberania sobre título ou território podem
ser proibidas, mas isso não significa que não haja enganos. Há por
exemplo empresas online que oferecem o direito de “comprar” o nome de
uma estrela, mas nenhuma é reconhecida oficialmente. A União
Astronómica Internacional é o único organismo com poderes para atribuir
nomes a objetos espaciais e, “enquanto organização científica
internacional, dissocia-se completamente da prática comercial de ‘vender’
nomes fictícios de estrelas, nomes de pormenores na superfície ou
propriedade noutros planetas ou luas no Sistema Solar”. 
Se é verdade que os indivíduos não podem reivindicar objetos celestes,
há empresas privadas que preparam a exploração de recursos no espaço. O
Congresso dos Estados Unidos aprovou em 2015 a Lei do Espaço, que
alguns académicos afirmam violar o Tratado sobre o Espaço Exterior.
Com os progressos nos voos espaciais privados, e no espírito do
capitalismo, a lei encoraja a concorrência. Foi atualizada para permitir a
cidadãos dos EUA que “empreendam a exploração comercial e a
exploração de ‘recursos espaciais’”, incluindo água e minerais, abrindo a
porta à potencial exploração mineira de cometas e asteroides, em busca de
metais como ouro, prata, irídio, ósmio, paládio e platina – tal como os
norte-americanos partiram em tempos pelos mares em busca de guano. 
Todos nós existimos numa parcela minúscula da nossa galáxia. Sendo
assim, as nossas reivindicações sobre propriedade no espaço são tão
absurdas como uma formiga afirmar que é dona de toda a propriedade
imobiliária em Nova Iorque. Mas, para cientistas e empresários, esta
demanda para a criação de colonatos no espaço é a nova fronteira. Dados
os recursos limitados da Terra e a nossa população crescente, mudar para
outro planeta é visto por alguns como a “esperança da humanidade para
um futuro para além da Terra”. 
Entretanto, o nosso planeta mãe continua a ser explorado. O mundo sob
os nossos pés contém um valor imenso, já que nele se encontram os
metais que são transformados nos nossos carros, comboios e aviões; os
ingredientes para o gesso, vidro, cimento e tijolos que usamos para
construir as nossas cidades; os minerais que permitem a comunicação
através dos nossos portáveis e telemóveis; e, está claro, a terra onde
crescem os nossos alimentos. Não deve surpreender, então, que o solo seja
o maior de todos os campos de batalha. 
 
Na esquina da Sétima Avenida com a Christopher Street, ao pé de uma
loja de charutos, encontra-se a mais pequena propriedade imobiliária de
Nova Iorque. Com a forma de uma fatia de piza, o pedaço de terra não tem
mais de 3.226 centímetros quadrados. Está lá um bloco de pedra que, em
tom desafiador, tem escrito: “Propriedade da Casa de Hess, que nunca foi
outorgada para fins públicos.” Foi o último pedaço de terra propriedade de
David Hess, que se recusou a desistir da sua luta com a cidade para manter
a sua propriedade privada. 
Em 1910, Nova Iorque começou a comprar terra e a demolir edifícios
para alargar as ruas e construir um metropolitano. Hess recusou vender o
seu edifício de quatro andares, mas foi de qualquer modo obrigado a
abdicar da sua propriedade, por determinação das leis de expropriação.
Deixaram-lhe 3.226 centímetros quadrados. Como se não fosse o
suficiente, a cidade ainda tornou as coisas piores quando pediu a Hess que
doasse o que lhe restava para ser usado como parte do passeio. Hess
recusou, e é por isso que existe hoje essa ínfima parcela de propriedade
imobiliária a proclamar o “despeito”. 
Em 1938, o triângulo de Hess foi vendido por apenas dois dólares por
cada 6,5 centímetros quadrados; o seu preço, ajustado à inflação, seria
hoje superior a 17 mil dólares. Isso significa que a terra custa o
equivalente a mais ou menos 26 milhões de dólares o metro quadrado,
embora a propriedade de Hess inscrita no passeio não valha nada.
Ninguém pode ali cultivar, ou pesquisar ouro ou procurar água. As cidades
são os centros de poder e de capital no mundo e não há centro maior do
que Nova Iorque. Por isso, não é só terra que se paga; paga-se pela terra
escassa que todos querem muito ter. 
O negócio imobiliário é hoje o negócio de compra, venda e troca de
espaço. Mas a ideia de que a terra pode ser “nossa” é – tal como as
medidas, as fronteiras e os estados-nação – outra invenção humana. Ao
folhear catálogos de propriedades é fácil esquecer que esta ideia só tem
umas centenas de anos. Como escreveu, em The Land, Simon Fairlie, o
diretor da revista, “a ideia de que um homem podia ter os direitos sobre
uma faixa de terra, com exclusão de todos os outros, estaria para lá da
capacidade de compreensão dos membros de qualquer tribo ou mesmo dos
camponeses medievais. O rei, ou o senhor da propriedade, poderiam ser
donos de umas terras num sentido da palavra, mas o camponês tinha todo
o tipo dos chamados direitos de ‘usufruto’, que lhe permitiam apascentar
gado, cortar madeira ou apanhar turfa, abastecer-se de água ou cultivar em
vários pedaços de terra em alturas específicas do ano”. 
Eram as áreas “comuns”. Aqui, aldeões e camponeses partilhavam terras
de cultivo e pastagem e áreas florestais. E embora os lotes estivessem
divididos até um certo ponto – um camponês podia ter um pequeno jardim
junto de casa, por exemplo, enquanto outro tinha uma pequena área onde
os seus animais habitualmente pastavam –, ninguém era “dono” da terra
no sentido em que hoje pensamos nisso. Os usos e costumes significavam
mais do que títulos e medidas. 
Pelo uso da terra, os camponeses davam aos lordes e proprietários uma
parte das suas colheitas, juntamente com a sua lealdade. Mas para os
proprietários nem sempre isto era o suficiente, pois tinham a perceção de
que os camponeses não fariam mais nada assim que tivessem produzido
comida suficiente para si e para as famílias. Um desses proprietários,
numa carta ao diretor de uma revista de comércio e agricultura, lamentou-
se: “Quando um trabalhador fica com mais terra do que ele e a família
conseguem cultivar durante as tardes […] o agricultor já não pode
depender dele para um trabalho constante”. Por outras palavras, as pessoas
(muito logicamente) punham-se a descansar assim que tivessem
trabalhado o suficiente para arranjar alimentos. 
Os proprietários, contudo, consideravam esse comportamento como um
sinal de preguiça. Tal como vimos no último capítulo, sobre o tempo, logo
que o espaço se tornou uma abstração e um bem, os interesses do trabalho
e do capital divergiram: os ricos passaram a odiar tanto o não fazer nada
como os trabalhadores passaram a odiar o excesso de trabalho. Uma
motivação essencial dos proprietários para mudar o sistema das áreas
comuns acabou por ser consequência de uma nova forma de lucro: a
Inglaterra estava a tornar-se famosa pela sua lã de alta qualidade. 
Entre os séculos XIV e XVII, proprietários ricos ergueram vedações à
volta de terras de pastagem e expulsaram os camponeses, para
privatizarem a terra para a criação de ovelhas. Com a ajuda do parlamento,
estas expulsões foram aplicadas com a força da lei. Se 80 por cento da
terra fosse propriedade de um titular (como acontecia muitas vezes com os
proprietários ricos), isso significava que podia ser oficialmente fechada
para se tornar terra de pastagem. 
Em meados de 1800, esta apropriação de terras cobria cerca de um sexto
da área de Inglaterra, ou 2,8 milhões de hectares, e ao fim de quatro mil
peças legislativas aprovadas pelo parlamento, o que era até então terra
comum ficou vedada. Para os camponeses, havia pouco a fazer. Como um
deles, com estudos, escreveu ao seu senhorio, em 1824, “se um pobre
homem tirasse uma das suas ovelhas da área comum, a sua vida terminaria
por causa da lei. Mas se o senhor tirasse a área comum às ovelhas de cem
pobres homens, a lei nada diria”. 
Por causa do que podia ser ganho no mercado da lã, mais e mais terra
foi sendo desimpedida. Entre meados e o final do século XVIII e ainda
pelo século XIX dentro, foram queimadas cabanas e milhares de famílias
expulsas à força das terras altas da Escócia, no que passou à história como
“Clearances” [“Limpezas”]. O resultado foi uma migração em massa, com
a maior parte dos expulsos a dirigir-se às terras baixas em busca de
trabalho em fábricas, enquanto outros clãs se meteram em barcos para
tentar encontrar trabalho nos Estados Unidos ou no Canadá. 
Isto representou o início da urbanização. Os despossuídos que já não
conseguiam cultivar os seus alimentos não tinham muitas vezes alternativa
a não ser mudarem-se para os centros urbanos e tornarem-se operários
fabris. Por volta de 1760, tinha começado a Revolução Industrial e as
máquinas estavam famintas por trabalho barato. Além destas expulsões à
força, havia então, também, uma oportunidade, o que resultou na
tendência para o êxodo rural. Na Inglaterra e no País de Gales, em 1801,
65 por cento da população vivia em áreas rurais; exatamente cem anos
depois, só 23 por cento da população permanecia. 
As “enclosures” na Escócia podem parecer uma relíquia de um passado
distante, mas processos quase idênticos estão a desenrolar-se hoje em
países pobres. A Oxfam afirma que, só na última década, 33 milhões de
hectares de terra em todo o mundo (sensivelmente a dimensão da
Alemanha) foram tomados a camponeses e agricultores e vendidos a
investidores estrangeiros. 
Mas nem sempre a culpa é do comprador estrangeiro. Muitas vezes
dizem-lhe que a terra “não está cultivada”, o que sugere que está
desocupada. Mas como especialistas em reforma agrária têm assinalado,
“não cultivada” quer dizer isso mesmo, “não cultivada”, o que não é o
mesmo que não ser de ninguém ou não ser usada. Em África, por
exemplo, como escreveu Fred Pearce, “cerca de quatro quintos dos 2.500
milhões de hectares do continente não são propriedade formal de
ninguém, a não ser do estado. Mesmo sem um título de propriedade, os
habitantes rurais consideram a terra como sua”. 
Como o caso de David Hess ilustra, pode também haver expropriação
quando o governo reconhece um proprietário, mas força a compra da terra
para que ela passe de espaço público a privado. Isto tem acontecido em
grande escala na China. A transformação do país, no espaço de poucas
décadas, de uma imensidão rural atrasada num império de metrópoles
brilhantes implicou a deslocação física de 50 milhões de camponeses
desde os anos 1990, em nome do desenvolvimento económico. Só na
primeira década deste século, quase um milhão de aldeias foram
abandonadas ou arrasadas. Uma investigação da universidade de Tianjin e
do ministério chinês dos Assuntos Civis diz que entre 2000 e 2010 a
China passou de 3,7 milhões de aldeias tradicionais para 2,6 milhões. É o
equivalente a perder três aldeias por dia. 
O Departamento Nacional de Estatística da China calcula que, no ano
2034, menos de 25 por cento da população do país será rural. Esta
tendência, da periferia para o centro, está a acontecer em todo o mundo, à
medida que as pessoas saem do campo para as cidades. A UN-Habitat
calculou que só em 2009, à escala global, três milhões de pessoas
acorriam às cidades todas as semanas, e aponta para que em 2030 um
terço da humanidade viva em centros urbanos. À medida que a população
humana cresce e mais pessoas afluem às cidades, o espaço que temos
disponível diminui drasticamente. 
 
Em Paris, Nova Iorque e Londres, em alguns dos bairros mais caros do
mundo, surgiu um novo fenómeno imobiliário: “apartamentos zombie” e
“casas fantasma”. Não se trata de casas assombradas, mas antes de casas
sem alma. Se são assustadoras, é só por estarem vazias. Em Londres, sete
em cada dez casas nestas áreas de luxo são investimentos para
compradores estrangeiros; em Paris, o número é de uma em cada quatro; e
em Manhattan, entre a Quinta Avenida e Park Avenue, da rua 49 à rua 70,
quase um terço das casas estão desocupadas durante dez meses do ano. As
propriedades estão vagas porque, para os super-ricos estas não são as suas
primeiras casas. São muitas vezes a terceira ou a quarta. Este tipo de
“investimento em terra” acontece nas grandes cidades do mundo inteiro,
com o número de casas vazias a aumentar, por exemplo, em Miami,
Jerusalém, Hong Kong, Vancouver, Dubai, Singapura, São Francisco e
Sidnei. 
Os super-ricos, como os reis e os lordes de tempos antigos, são os donos
da maior parte da terra. Em Inglaterra, quase metade do país é propriedade
de 1 por cento da população. Entretanto, como escreveu Simon Fairlie, “a
maior parte do resto de nós passa metade das nossas vidas de trabalho a
pagar a dívida de um bocado de terra onde mal cabem uma moradia e uma
corda para estender a roupa”. Considerando a quantidade de pessoas nos
centros urbanos, o desequilíbrio é evidente. Em 2018, no Reino Unido,
216 mil casas estavam vazias durante seis meses ou mais; ao mesmo
tempo, 78 mil famílias encontravam-se em alojamentos temporários ou
não tinham casa. Os números nos Estados Unidos eram ainda mais
esmagadores depois da crise financeira de 2008: por cada pessoa sem
abrigo havia cinco casas vazias. Podemos muito bem ser a única espécie
sobre a Terra a impedir ativamente os seus de habitarem um espaço
quando ele se encontra disponível. 
Na China, a discrepância é assustadora. No seu livro Ghost Cities of
China, Wade Shepard escreve: “O país mais populoso do mundo tem sem
dúvida o maior número de casas vazias do mundo.” O desenvolvimento
rápido na China durante o seu boom económico superou a procura de
novas casas. Na sua ânsia de construir, a China usou mais cimento entre
2011 e 2013 do que aquele que foi usado em todo o século XX nos
Estados Unidos. Olhando para a utilização de telefones móveis e da
Internet como forma para medir a quantidade de vida que pode ser
detetada nessas zonas vazias, investigadores da universidade de Pequim
determinaram que existem em todo o país aproximadamente 50 “cidades
cinzentas” que continuam largamente desabitadas. Como se se tratasse de
uma maqueta de arquitetura à escala natural, foram construídos edifícios
de apartamentos, centros comerciais e praças, jardins e parques infantis; só
que, como numa cidade zombie, não há pessoas. As cidades estão vazias. 
Mas, com a migração em massa do campo para a cidade, é legítimo
perguntar para onde vão todas essas pessoas. Atraídas pelas promessas de
trabalho e pela hipótese de alcançarem a riqueza, muitos migrantes
chineses vão viver para as fábricas que os empregam. Como George
Knowles escreveu no jornal South China Morning Post, algumas destas
fábricas parecem campos de trabalho. Em blocos de dormitórios
construídos para albergar 50 mil pessoas há beliches em ferro (às vezes
são 12 por quarto) e os operários usam duches coletivos. Para pagar isso,
veem deduzidos todos os meses dos seus salários cerca 160 yuans (20
euros). 
Em cidades sobrepovoadas como Hong Kong, onde o apartamento
médio de 37 metros quadrados custa dois mil dólares por mês, os pobres
têm, para viver, o mesmo espaço dos prisioneiros que estão numa cela.
Um estudo realizado por um grupo de defesa dos direitos dos inquilinos
determinou que o espaço médio ocupado por famílias que vivem em
cubículos divididos em Kwai Chung, um subúrbio de Hong Kong, é de
4,65 metros quadrados, ou “sensivelmente o tamanho de três cubículos de
casa de banho ou metade de um espaço comum de estacionamento”.
Segundo os Serviços Prisionais de Hong Kong, os prisioneiros têm um
espaço médio de 4,60 metros quadrados por pessoa. Mas, acreditem ou
não, até esse espaço é um luxo para alguns. Em algumas casas
subdivididas de Hong Kong há os chamados “cubículos caixão”, tão
pequenos que não ultrapassam 1,4 metros quadrados. 
Tornámo-nos cegos ao facto de as nossas regras de espaço serem
artificiais e de termos criado um sistema em que nos aprisionamos a nós
próprios. Hoje, os ricos do nosso mundo são proprietários de mansões
fantasma vazias, enquanto os pobres vivem em caixões. 
Em grandes cidades na China, a situação é igualmente extrema. Para os
pobres urbanos, que vivem no centro para evitar grandes viagens de e para
o trabalho, há uma falta terrível de alojamento a preços viáveis e, por isso,
muitos escolheram viver debaixo de terra. Em Pequim, cerca de um
milhão de pessoas vivem numa rede subterrânea de antigos abrigos
antiaéreos. Chamam-lhes a Tribo dos Ratos. As rendas são metade do que
poderiam ser à superfície, uma média de 436 yuans mensais (cerca de 55
euros) por um quarto subterrâneo com cerca de 9,75 metros quadrados,
com cozinha e casa de banho partilhada. As instalações, sobrelotadas, não
são em geral limpas. Num caso documentado, os ocupantes de 80 quartos
alugados dividiam uma única casa de banho. São pessoas que não
conseguem pagar uma coisa tão básica como a luz do dia. Nas palavras de
Zhuang Qiuli, uma jovem pedicura que vive debaixo de terra: “Não há
diferença entre mim e as pessoas que vivem no condomínio de luxo por
cima de mim. Usamos as mesmas roupas e temos os mesmos cortes de
cabelo. A única diferença é que nós não conseguimos ver o sol.” 

123
Para os seres humanos, o espaço também é emocional. É frequente grupos indígenas referirem a
sua ligação espiritual com a Terra. Todos nós já tivemos essa sensação com um lugar que
conhecemos bem. Temos memórias queridas dos nossos lugares favoritos enquanto crescíamos e,
muitas vezes, uma ligação calorosa com as nossas casas.

124
Com um pedido de desculpas ao bispo George Berkeley.

125
Os impérios precisam de uma consonância ideológica para manterem o seu domínio sobre vastas
áreas. Mao percebeu isto bem quando, em 1949, proclamou o mandarim como língua “oficial” da
China. Quando as pessoas perguntam “Falas chinês?”, estão a amalgamar pelo menos oito grupos
linguísticos e centenas de dialetos diferentes. 

126
Como determinou o Supremo Tribunal, “a doutrina legal comum de que a propriedade da terra se
estende até à periferia do universo não tem lugar no mundo moderno”. 

127
O astrónomo de Harvard Jonathan McDowell tem defendido que a linha Kármán devia realmente
ser fixada nos 80 quilómetros, uma vez que já foram observados a esta altitude, sem caírem na Terra,
alguns satélites de órbita elíptica.

Robôs Humanos 
E o que é um bom cidadão?  
Simplesmente aquele que nunca diz, faz ou pensa  
qualquer coisa de invulgar. 
H.L. MENCKEN 

Os Olhos Acima de Nós 


Era visível que o ponto no mapa tinha deixado de se mexer, mas ainda
passou um tempo até as pessoas perceberem que o ponto no mapa tinha
morrido. O ponto era Michael Hall, um ciclista que participava numa
corrida de resistência de 5.500 quilómetros, acompanhada em tempo real
online por uma comunidade de “observadores de pontos”, fãs que seguiam
os ciclistas ao longo da viagem de 13 dias entre Fremantle e Sidnei, na
Austrália. 
Cada ponto tinha a indicação do nome de um atleta, e não era invulgar
pararem aqui e ali, sempre que os atletas interrompiam a sua prova para
descansar, fazer uma refeição ou ir à casa de banho. Havia emissores GPS
nas bicicletas para assegurar que os ciclistas não faziam batota e para, ao
mesmo tempo, permitir aos adeptos seguir em direto os corredores. 
À medida que a corrida se foi desenrolando, as pessoas foram
começando a relacionar-se cada vez mais com os pequenos pontos em
movimento no ecrã. Nas palavras de Belinda Hoare, uma das seguidoras,
“primeiro olhava-se talvez uma ou duas vezes por dia, depois espreitava-
se mais vezes, depois de hora a hora, e por fim o mapa estava sempre
aberto […] Era mesmo como se conhecêssemos estas pessoas”. 
Em 18 de março de 2017, o ponto de Hall estava em segundo lugar
quando às 6h22 da manhã parou de repente, perto do cruzamento da
autoestrada de Monaro com a estrada de Williamsdale. Era o último dia da
corrida e os fãs ficaram sem perceber porque é que Hall teria parado nesse
momento crítico. O que não sabiam é que tinha sido atingido por um carro
e estava morto. Tinham testemunhado a sua morte por GPS. 
Em poucas décadas, o GPS tornou-se tão omnipresente e indispensável
que entrou praticamente em todas as áreas das nossas vidas. A partir do
momento em que saímos à rua com o telemóvel na mão, também nos
transformamos num ponto em movimento.128 E, embora não o possamos
ver, o mundo está envolvido numa grelha de tempo e espaço. Todos nós
estamos sincronizados com ela e podemos ser localizados pelas nossas
coordenadas. Ignoramos quase tudo sobre o papel que os satélites
desempenham nas nossas vidas, mas a bolsa, as telecomunicações, os
percursos de jogging, os ataques com drones, as previsões meteorológicas
locais, as máquinas de Multibanco, os semáforos e a distribuição de
alimentos dependem desta infraestrutura pública que orbita em silêncio
sobre nós. 
Os sinais são controlados pela Força Aérea dos EUA e usados todos os
dias por cerca de mil milhões de pessoas. De noite, às vezes é possível ver
um destes satélites GPS a piscar no céu, como se fosse uma estrela
artificial que reflete o sol. Cada satélite pesa cerca de duas toneladas, e
com os painéis solares abertos pode alcançar uma amplitude de cerca de
35 metros. Orbitando sobre a Terra a uma altitude de 20.200 quilómetros,
faz parte de uma constelação de 24 a 31 satélites GPS que circulam em
volta do planeta a velocidades superiores a 11 mil quilómetros por hora. 
No livro GPS Declassified, Eric Frazier e Richard Easton imaginaram o
que o capitão Cook, que usou estrelas verdadeiras para navegar, poderia
pensar desta tecnologia moderna. 
 
COOK: Para que servem estrelas invisíveis? 
COMANDANTE: Não precisamos de as ver. Os satélites transmitem frequências
eletromagnéticas […] sinais rádio que o nosso equipamento usa para determinar a nossa
posição. Sinais rádio são vibrações muito rápidas que os nossos instrumentos detetam com as
suas antenas, que para eles são como os nossos ouvidos, só que estes são sons que ninguém é
capaz de ouvir. 
COOK: Guia o seu navio por sons que não é capaz de ouvir e que são enviados por estrelas
que não é capaz de ver? 
 
É precisamente isso que fazemos. O ser humano é capaz de ouvir som
numa frequência de entre 20 hertz e 20 quilohertz, mas os sinais GPS são
muito mais altos do que isso. Operando em bandas de 1.227,6 megahertz e
1.575,42 megahertz, estas ondas de rádio, quando chegam ao solo, não são
audíveis por nenhum animal na Terra. Os sinais rádio são incrivelmente
débeis. Como afirmou em tempos Carl Sagan: “A energia total captada
por todos os radiotelescópios do planeta inteiro ao longo de toda a história
é menor do que a energia de um único floco de neve a tocar o chão.” A
afirmação foi feita quando em 1980 gravou o programa Cosmos. Segundo
o astrónomo Frank Drake, que realizou o cálculo original, com as ondas
rádio adicionais que caíram na Terra desde então, a quantidade poderá ser
agora igual a “dois flocos de neve… talvez três”. 
Usando recetores, contudo, somos capazes de captar as ondas débeis
destes sinais quando elas caem sobre nós. E não temos de nos limitar à
oferta de satélites norte-americanos. A Rússia tem os seus satélites
GLONASS, a União Europeia os Galileu e a China o seu sistema de
satélites de navegação BeiDou. Recorrendo a sinais de um ou mais destes
sistemas, além de uma estação base numa posição conhecida, como
referência, os recetores GPS civis de hoje podem agora fornecer a nossa
localização com um erro de um metro e meio (nos anos 1990 a margem
era bem maior, aproximadamente do tamanho de um campo de
futebol).129 
Claro que os satélites GPS, que operam numa órbita terrestre média
(MEO) e dão a volta ao planeta duas vezes por dia, não são os únicos
olhos presentes no céu. Encontramos a maior parte dos satélites de
observação da Terra numa órbita terrestre baixa (LEO), a uma altitude de
dois mil quilómetros, e menos. Cumprindo uma órbita a cada 90 minutos,
estes satélites estão próximos da superfície do planeta e são usados com
frequência para registos meteorológicos, cartográficos ou ambientais.
Muito mais acima, a uma altitude de 35.786 quilómetros, é onde
encontramos os satélites que operam em órbita geossíncrona (GSO) e
geoestacionária (GEO). Estes satélites encontram-se sincronizados com o
período de rotação do planeta130 e são essencialmente utilizados para
telecomunicações, permitindo o acesso permanente e fiável aos sinais a
partir do mesmo ponto na Terra. Como observa o artista e geógrafo Trevor
Paglen, os satélites geoestacionários encontram-se “milhares de vezes
mais distantes” e “continuam a ser luas artificiais numa órbita perpétua
muito depois de expirarem os seus tempos de vida operacionais”. Por
estarem demasiado distantes para serem encaminhados na direção da Terra
e incinerados ao entrarem na atmosfera, quando atingem o fim das suas
vidas estes satélites são atirados, com líquido propulsor que têm a bordo,
para uma altitude de 300 quilómetros, para o que é hoje conhecido como
órbita cemitério. Paglen faz notar que eles continuarão a dar voltas à Terra
e durarão mais do que as pirâmides enquanto despojos da nossa
civilização. Os arqueólogos do futuro não se limitarão a escavar a terra;
descobrirão provavelmente muito do registo humano do século XXI
quando examinarem as nossas máquinas bem conservadas, que espreitam
lá de muito alto nos nossos cemitérios espaciais. 
Para além da LEO, MEO e GEO, há ainda outras órbitas que, por
motivos de segurança, não têm horários conhecidos publicamente. São as
rotas secretas dos satélites espiões. Desde a década de 1960 que a CIA
lança satélites de reconhecimento da classe “Keyhole” (KH) (Fechadura).
Possuem lentes poderosas, capazes de ampliar os mais pequenos
pormenores existentes na Terra, e no entanto permanecem invisíveis ao
público. Como sucedeu com o GPS, as capacidades dos engenhos civis
têm vários anos de atraso em relação àquilo que os militares são capazes
de fazer. Em abril de 2018, a Surrey Satellite Technology Ltd. anunciou
que o satélite Carbonite-2, do Reino Unido, era capaz de gravar vídeo a
cores em alta definição a 505 quilómetros de distância. Usando uma
técnica semelhante à dos especialistas de macrofotografia, é possível usar
os dados de forma a obter imagens tiradas do espaço com uma resolução
até 60 centímetros. E estamos a falar de um engenho civil. Com o
abrandamento de algumas restrições do governo norte-americano, satélites
comerciais como aqueles que a Google utiliza serão capazes de mostrar
imagens com uma resolução de 25 centímetros. Ou seja: conseguirão
mostrar a nossa cara, vista a partir do espaço. 
Os últimos satélites espiões são ainda mais poderosos. Afirma-se que os
satélites de captura de imagens eletrónicas da classe KH-12 possuem a
bordo um espelho principal com um diâmetro de 2,4 metros. É a mesma
dimensão do espelho usado pelo telescópio espacial Hubble, que é
utilizado para fazer imagens de objetos que se encontram dez mil a 15 mil
milhões de quilómetros de distância. Nem é bem possível imaginar a
resolução que estes satélites de reconhecimento possuem quando apontam
as suas lentes, não para o espaço, mas para a Terra.131 Não há grandes
revelações sobre os satélites Keyhole, mas sabemos que os lançamentos
são geridos pelo Departamento Nacional de Reconhecimento, que possui
um avultado orçamento anual, que andará pelos dez mil milhões de
dólares. Os satélites seguem em geral órbitas elípticas polares, o que lhes
permite vasculhar a Terra inteira, de polo a polo, passando pelo Equador
sempre a uma longitude diferente enquanto o planeta por baixo vai
girando do dia para a noite. 
Até os documentos desclassificados sobre satélites espiões estão muito
censurados, por isso aquilo que sabemos sobre as suas localizações é
quase tudo revelado por amadores que rastreiam os seus percursos. Estes
astrónomos amadores têm os olhos treinados para seguir as máquinas
ultrassecretas. São, na verdade, os únicos olhos que observam aqueles que
nos observam. Comunicando através de uma mailing list designada
SeeSat-L, este pequeno grupo de observadores de todo o mundo usa
cronómetros, telescópios e câmaras para acompanhar as trajetórias orbitais
de aproximadamente 400 satélites militares. Como diz um elemento do
grupo, Marco Langbroek, “assim como a Terra tem uma grelha
coordenada, com latitude e longitude, o céu tem uma grelha coordenada e
todas as estrelas têm uma coordenada dentro dessa grelha. E ao usarmos
as estrelas como ponto de referência somos capazes de determinar as
coordenadas de um satélite no céu”. 
Para a maior parte de nós, estes satélites estão fora da nossa vista e dos
nossos pensamentos, mas a realidade é que há milhares de olhos
comerciais, científicos e militares altamente avançados que pairam e
circulam pelos céus acima de nós realizando missões fulcrais para o
funcionamento da sociedade moderna. O geoestratega Nayef Al-Rodhan
observou: 
 
“Qualquer interrupção acidental ou corte deliberado de serviços baseados no espaço
causaria perdas financeiras imensas e outras perturbações. Na verdade, um só dia sem acesso
ao espaço teria consequências desastrosas em todo o mundo. Seriam estranguladas nos
mercados financeiros operações avaliadas em 1,5 biliões de dólares por dia, lançando-os no
caos. De acordo com estatísticas fornecidas pela Associação Internacional do Transporte
Aéreo, mais de cem mil voos comerciais cruzam diariamente o planeta. É óbvio que esses
voos seriam interrompidos por perturbações nas comunicações e a distribuição de serviços de
emergência sanitária seria muito condicionada. Além disso, tornar-se-ia quase impossível
coordenar respostas eficazes às crises. Dada a natureza fundamentalmente transnacional de
quase todas as atividades no espaço exterior, qualquer conflito aqui – ainda que limitado –
teria consequências desastrosas para o grande número de civis que em todo o planeta
dependem da distribuição de serviços com base no espaço. Estrategos contemporâneos
alertam que as estruturas de controlo e comando das forças armadas modernas também estão
a tornar-se criticamente dependentes de elementos baseados no espaço para comunicação,
coordenação, reconhecimento, vigilância, pontaria de alta precisão e outras atividades
militares críticas. A crescente indispensabilidade do espaço para atividades militares
modernas faz dos satélites, em conflitos futuros, alvos ideais.” 
 
Transformar os satélites em alvos deixa todos na Terra excecionalmente
vulneráveis – em especial os países mais desenvolvidos e
tecnologicamente avançados. Um incidente específico revelou o potencial
de uma perturbação séria no espaço. Em 11 de janeiro de 2007, a China
lançou um míssil balístico do Centro Espacial Xichang. O seu alvo era
inofensivo, o Fengyun-1C, um velho satélite meteorológico chinês que
viajava a cerca de 27 mil quilómetros por hora. O míssil transportava um
veículo assassino cinético [que usa a energia para destruir o alvo]132, que
libertou em direção ao satélite, que seguia na direção contrária a uma
velocidade relativa de 32.400 quilómetros por hora. A colisão frontal
destruiu instantaneamente o satélite, desfazendo-o numa nuvem de
destroços que lançou em órbita mais de 35 mil estilhaços, que ainda estão
em volta do planeta. A ameaça dos destroços espaciais para outros
satélites em órbita é seguramente perigosa, mas esta missão deixou bem
clara outra coisa. É que a China, ao mesmo tempo que procedia à
destruição de um velho satélite, estava também a provar a todo o mundo
que possuía a capacidade para destruir um satélite em órbita e cegar os
olhos de outros países. 

Os Olhos À Nossa Volta 


“A senhora do vestido castanho, cabelo louro, que está com o homem de
fato preto, pode por favor recolher essa chávena e pô-la no lixo” – disse a
voz da câmara de vigilância. Esta câmara falante pertence a uma rede de
144 aparelhos deste tipo instalados na cidade inglesa de Middlesbrough.
Há mais de 20 localidades em Inglaterra onde o Big Brother não só nos
observa como nos dá ordens e diz literalmente o que devemos fazer.
Quando se trata de recolher o lixo, não parece que isso seja um problema.
Mas no norte de Londres, onde há câmaras deste género colocadas em
bairros de habitação social, elas são opressivas, em especial quando as
pessoas que estão à porta das suas próprias casas as ouvem dizer que
andam a vadiar. Mas este tipo de vigilância falante não existe apenas em
áreas pobres ou de classe média. Em Mandelieu-la-Napoule, uma das
localidades mais ricas da Riviera Francesa, foram instaladas câmaras de
vigilância falantes que repreendem pessoas por infrações que incluem
estacionamento incorreto, deixar no chão cocó do cão, fazer lixo ou outro
comportamento antissocial. Como escreveu o diretor-adjunto do jornal Le
Parisien, o novo sistema é como “uma voz vinda dos céus para avisar que
não deves pisar o risco”. 
Hoje, todos nós estamos rodeados por câmaras, na sua maior parte
silenciosas. O Reino Unido, pátria de George Orwell, possui a dúbia honra
de ter o maior número de câmaras de vigilância na Europa per capita,
mais de seis milhões, o que dá cerca de uma para cada dez pessoas. O
Reino Unido também utiliza o reconhecimento automático de matrículas
e, com cerca de nove mil câmaras, capta todos os dias 40 milhões de
pedaços de dados sob a forma de matrículas, guardando neste momento
cerca de 20 mil milhões de registos. Um relatório do comissário de
Vigilância por Câmaras, órgão independente do governo britânico,
observa que isto constitui “uma das maiores bases de dados não militares
do Reino Unido”. 
A China não ultrapassou o número de câmaras de vigilância per capita
do Reino Unido, mas, com a sua imensa população, tem seguramente o
maior número a funcionar em qualquer país. Há mais de 170 milhões de
câmaras instaladas, número que até 2020 deverá saltar para entre 400 e
600 milhões. 
Funcionando em conjugação com a Inteligência Artificial (IA) e o
reconhecimento facial, as novas centrais de vigilância na China – com
imensos ecrãs digitais do chão ao teto e resplandecentes secretárias de
comando e controlo – são tão espetaculares como qualquer cenário de um
filme futurista de ficção científica. Numa destas centrais, na cidade de
Guiyang, a base de dados possui uma imagem digital de cada um dos
residentes. No caso dos cidadãos locais, as câmaras, que funcionam em
rede, identificam o rosto de uma pessoa a partir da imagem do seu cartão
de cidadão e acompanham os seus movimentos por toda a cidade durante
uma semana. Ligando o rosto da pessoa à matrícula do seu veículo e
fazendo ligações com a lista de contactos de amigos e família, o sistema
também sabe “quem tu és e com quem te encontras com mais frequência”.
Além de reconhecer rostos individuais, alguns sistemas são capazes de
calcular idade, género e origem étnica. 
Para ver como funciona o sistema de Guiyang, a BBC imaginou uma
experiência inteligente do tipo “Onde está o Wally?”. Lançaram nas ruas o
seu jornalista John Sudworth para descobrir quanto tempo levaria até o
encontrarem. Marcado como “suspeito” para efeito dessa experiência,
Sudworth não teve hipóteses face aos olhos movidos a Inteligência
Artificial. Foi identificado e detido em apenas sete minutos. 
Mas não é só fora de casa que somos seguidos. Por onde quer que se
ande num edifício de escritórios, grande armazém ou centro comercial,
basta olhar para cima e lá estão, por toda a parte, as esferas negras. São
assim, negras, para que a câmara possa olhar para nós, mas nós não
consigamos saber para onde é que ela está a apontar. 
As nossas conversas também são cada vez mais gravadas por ouvidos
invisíveis. Em Everyday Surveillance, William G. Staples escreveu:
“Autocarros públicos em São Francisco; Athens, na Geórgia, Baltimore;
Eugene, no Oregon; Traverse City, no Michigan; Hartford, no
Connecticut; e Columbus, no Ohio, foram equipados com sofisticados
sistemas de áudiovigilância para ouvir as conversas dos passageiros.” E
em Las Vegas, Detroit e Chicago foi instalado o sistema Intellistreets. São
postes de iluminação com microfones e câmaras incorporados, capazes de
gravar secretamente conversas de transeuntes. 
Nos nossos locais de trabalho, até os cubículos dos escritórios são cada
vez mais vigiados. Como assinala um artigo na MIT Technology Review,
esta forma de vigilância de alta tecnologia no escritório é invisível, porque
“os sensores estão escondidos nas luzes, nas paredes, debaixo das
secretárias – onde quer que isso lhes permita obter informações, por
exemplo, onde as pessoas estão e se falam muito e se se levantam muito”.
Tudo isto, está bem de ver, com a justificação de melhorar a produtividade
e reduzir custos. Empresas como a Humanyze fornecem aquilo que
designam como “analisadores de pessoas”. Os funcionários recebem
cartões de identificação com microfones, sensores de Bluetooth e
acelerómetros incorporados, e os dados são tranquilamente recolhidos
enquanto as pessoas andam no seu dia a dia. A ideia é que, ao verem por
onde é que os trabalhadores andam, com quem falam e por quanto tempo,
os chefes possam, por exemplo, perceber quais os departamentos com os
melhores fluxos de informação e tomar decisões estratégicas levando isso
em consideração, inclusive melhorando a comunicação através da
disposição das secções. O sistema também diz aos chefes até que ponto as
pessoas são produtivas, através da análise do tempo que passam a
socializar no trabalho. De uma forma assustadora, os engenhos são mesmo
capazes de determinar “quanto tempo passa um indivíduo sem dizer uma
palavra a ninguém – e, quando essa palavra é pronunciada, onde é que isso
acontece e a quem é dirigida”. 
Neste momento, três quartos das empresas norte-americanas sujeitam os
seus funcionários a vigilância no local de trabalho. De muitas maneiras,
estamos a revisitar um remake em alta tecnologia do taylorismo extremo
de que falámos no capítulo 7, em que os pormenores da produtividade
laboral são “guiados” por princípios de gestão científica. As câmaras,
sensores e sistemas inteligentes são, em si mesmos, uma forma de “super
visão” para a supervisão. E com o atual mercado de vigilância vídeo
avaliado em qualquer coisa como 36 mil milhões de dólares, prevendo-se
que em 2023 atinja os 68 mil milhões, a vigilância está constantemente a
ser-nos vendida como uma ferramenta capaz de produzir eficácia e
segurança. Mas por trás destas promessas funciona uma força mais
sombria, menos benigna. Como escreve Staples, as modernas estratégias
de vigilância são “usadas tanto por organizações públicas como privadas
para influenciar as nossas escolhas, mudar os nossos hábitos, ‘manter-nos
na linha’, avaliar a nossa performance, reunir conhecimento ou provas
sobre nós, avaliar desvios e, em alguns casos, aplicar penalizações”. 
Não é demais repeti-lo: aquilo que sofre mais erosão numa sociedade
sob vigilância é a confiança humana. Em vez de confiarmos uns nos
outros, depositamos essa confiança em olhos que nos espiam, em
localizadores GPS e em máquinas que funcionam em rede. Os
camionistas, que não trabalham dentro de instalações, sentem diariamente
este tipo de avaliação intrusiva. O registo eletrónico tornou-se uma forma
de alta tecnologia de os chefes seguirem a sua performance. E os
proprietários de frotas de veículos dizem estar contentes com os
resultados: afirmam que essa vigilância resulta numa maior utilização do
cinto de segurança, em produtividade mais elevada, velocidades menores,
menos horas extraordinárias e menor consumo de combustível e, por isso,
numa pegada de carbono mais pequena. No papel, parece fantástico, mas
os camionistas contam uma história diferente. Para eles, é opressivo e
desumanizador estarem sob vigilância constante de instrumentos
telemáticos. 
A telemática tem que ver com o registo e acompanhamento de dados a
longa distância, em essencial dados dos veículos – o que inclui, só para
referir alguns, trajetos e estradas, velocidade, tempo de paragem,
aceleração e travagem, uso do cinto de segurança –, e visa manter os
funcionários permanentemente focados e a operar a um nível ótimo,
comportando-se, no essencial, como robôs humanos. No fim de cada
turno, os dados são enviados para um computador e depois transmitidos
para um centro de dados, onde são analisados por algoritmos. Embora seja
bom para o negócio, é humilhante para os camionistas terem de explicar
qualquer desvio de rota ou tempo gasto. Na expressão de um camionista, a
telemática “devia chamar-se ‘intimidamática’”. Outro afirmou que os
dados faziam com que ele parecesse culpado, quando era inocente:
“Partem do princípio de que todos os condutores estão a vigarizar e a
roubar a empresa, só que ainda não os apanharam. A telemática dá uma
perspetiva totalmente nova a este mundo de suposição […] Sempre que
me atiraram com a telemática à cara, foi-me dito que estava ‘a fazer [uma]
pausa extra sem a registar’. Na verdade, o que acontece é que estava a
lidar com clientes furiosos ou insatisfeitos, em defesa da empresa. Mas
claro que partiam do princípio de que estava a roubar a empresa.” 
A telemática pode parecer intrusiva, mas não é nada em comparação
com o novo sistema de vigilância cerebral que existe na China. Aqui, os
trabalhadores recebem toucas especiais, algumas com câmaras, que
registam as suas ondas cerebrais. De acordo com um artigo no South
China Morning Post, “escondidos em capacetes especiais ou chapéus de
farda comuns, estes sensores levíssimos, sem fios, registam
constantemente as ondas cerebrais de quem os tem postos e enviam os
dados para computadores que usam algoritmos de inteligência artificial
para detetar picos emocionais como depressão, angústia ou raiva”. A
tecnologia já é usada de uma forma generalizada e tem sido empregue nas
forças armadas, transportes públicos, fábricas e empresas do estado. Os
seus defensores afirmam que tem aumentado a eficiência e que os
funcionários cometem menos erros. Os adversários contrapõem que o
propósito é limitar até as emoções, para conseguir uma produtividade
elevada, e que o sistema está a transformar os trabalhadores humanos em
máquinas. 
Estamos a ser vigiados, dentro e fora de portas, no trabalho e em casa.
Não há uma esfera em que estejamos livres de vigilância. E ainda que os
nossos medos tendam a ser dirigidos aos hackers que espiam através de
monitores de bebés ou a quem nos possa espreitar pela janela, a maior das
janelas para os nossos mundos privados está todos os dias a olhar para
nós: é o ponto negro das nossas webcams. 
Em 2014, Edward Snowden revelou que o Quartel-General de
Comunicações do Reino Unido (GCHQ) tinha estado a espreitar pelas
webcams dos cidadãos britânicos ao abrigo de um programa chamado
Nervo Ótico.133 Em 2008, durante seis meses, mais de 1,8 milhões de
contas de chat do Yahoo! foram violadas, com agentes a descarregarem
milhões de imagens através das câmaras de portáteis e computadores
caseiros. Na mais privada de todas as esferas, os alvos eram cidadãos
comuns, inocentes. O sistema engoliu tudo o que estava à sua frente,
guardando uma imagem de cinco em cinco minutos. Foi um ensaio para
experiências de reconhecimento facial.134 Claro que as pessoas, em casa,
não faziam ideia de que estavam a ser observadas pelo governo, e por
causa disso 11 por cento das imagens guardadas continham nudez e foram
identificadas como “explícitas”. Os documentos revelados por Snowden
só revelaram aquilo que foi apanhado ao longo de meio ano. 
Juntos, Austrália, Canadá, Nova Zelândia, Reino Unidos e Estados
Unidos constituem a aliança de espionagem Five Eyes (cinco olhos), com
capacidade para vigiar uma imensa população em todo o globo. Ainda não
temos maneira de saber qual o grau de acesso que possuem às nossas
comunicações privadas vídeo e áudio, mas sabemos que os seus sistemas
se vão tornando, ano após ano, mais sofisticados, mais abrangentes e mais
intrusivos. 
Os Olhos nas Nossas Cabeças 
Hoje, há olhos no céu, olhos que nos rodeiam em terra e até olhos que
espreitam a nossa mente. As redes sociais são, à superfície, a plataforma
onde colocamos conteúdos para nos relacionarmos com outras pessoas nas
nossas vidas. É onde partilhamos imagens dos nossos bebés e das nossas
mascotes, do que comemos e das férias que fazemos, e onde dizemos
aquilo de que gostamos e de que não gostamos, revelamos os nossos
sonhos e aspirações. Mas para as empresas que recolhem os nossos dados,
os nossos perfis são, na realidade, dossiês digitais. Revelam as nossas
preferências, as nossas orientações sexuais, as nossas perspetivas
religiosas e as nossas preferências políticas. Guardadas, provam que
aquilo que dissermos pode ser usado contra nós, mesmo que não tenhamos
sido presos. É por isso que em 2018 a Secretaria de Estado dos EUA
propôs um novo formulário para todos os que solicitam um visto de
entrada no país. Num esforço para absorver mais dados para avaliações de
background, os requerentes precisam agora de apresentar uma lista
completa das suas contas em redes sociais, para que possam ser pré-
avaliados. O facto de os nossos posts públicos serem observados pela
polícia e por outras autoridades não é novo. Um estudo de 2013 da
Associação Internacional de Chefes de Polícia afirmava que 96 por cento
das forças policiais utilizam de algum modo as redes sociais, sendo o uso
mais comum (86 por cento) para investigação criminal. Mas quando a rede
é tão grande, há sempre falsos positivos. No documentário Terms and
Conditions May Apply, o humorista Joe Lipari sentiu na pele os efeitos
disto quando pegou numa frase do filme Clube de Combate e a colocou no
Facebook.135 Dizer a coisa errada pode ter consequências graves. Duas
horas depois, uma equipa da força de intervenção SWAT bateu-lhe à porta
e ele passou um ano em tribunal a provar que não era, de todo, um
terrorista. Lipari afirmou que, enquanto veterano do exército norte-
americano, sempre sentira que “estávamos do lado das pessoas. Agora,
vejo que o governo olha para nós todos como potenciais ameaças, por
muito meritórias que sejam, ou tenham sido, as nossas carreiras militares
ou civis”. 
Mas não é só aquilo que postamos em público que é vigiado. É também
aquilo para que olhamos: as nossas buscas, os nossos likes, os nossos
posts e os anúncios em que clicamos são só uma parte do rasto digital que
deixamos. E embora possamos esquecer essas migalhas de cookies ao fim
de estarmos uma hora online, aquilo que dissemos ou pensámos não se
perdeu; é tudo guardado como dados demográficos ou psicográficos nos
servidores dos sites e apps que visitámos e abrimos. 
A IBM calculou que todos os dias cada pessoa deixa uma pegada digital
de 500 megabytes. Isso foi em 2012, o que é história antiga em
comparação com os dados que hoje são recolhidos. Com as pessoas e os
objetos cada vez mais ligados à Internet, seja através de relógios seja
através de aplicações domésticas, a estimativa da IBM é provavelmente
apenas uma fração da pegada digital que hoje deixamos para trás. Isto
porque a maior parte da informação mundial – alguns dizem que até 99,8
por cento – foi criada nos últimos dois anos. Segundo um estudo, o
universo digital conterá 44 biliões de gigabytes de dados em 2020, o
equivalente a 5.200 gigabytes por cada pessoa sobre a Terra. Na imagem
do professor Michael Kosinsky, da universidade de Stanford, se
imaginarmos apenas um dia de dados da humanidade impressos em papel,
dos dois lados, em corpo 12, a pilha de papel chegava ao Sol e voltava
quatro vezes. É uma quantidade impossível de imaginar. 
E que valor têm estes dados? Segundo a revista The Economist, “o
recurso mais valioso do mundo já não é o petróleo, mas dados”. No
primeiro trimestre de 2017, a Amazon, a Apple, o Facebook, a Google e a
Microsoft tiveram lucros de 25 mil milhões de dólares. Só a Amazon
representou metade dos dólares gastos online nos Estados Unidos. Os
nossos dados são valiosos porque é através deles que somos visados
enquanto consumidores. A partir do momento em que ligamos o
computador ou o smartphone e começamos a navegar na Internet, estamos
a ser invisivelmente seguidos. O novo modelo económico é aquilo a que
Shoshana Zuboff, da Harvard Business School, chama “capitalismo de
vigilância”. A professora Zuboff escreveu: “O jogo está em vender acesso,
em direto, ao fluxo da nossa vida diária, à nossa realidade, para influenciar
diretamente e modificar o nosso comportamento para obter lucro. Este é o
acesso a um novo universo de oportunidades de monetização: restaurantes
que querem ser o nosso destino. Vendedores de serviços que nos querem
arranjar os travões. Lojas que nos atrairão como se fossem as sereias de
outros tempos.” 
Tudo isto é feito através da comercialização de dados pessoais, o novo
negócio principal para mais de mil empresas. Embora ouçamos falar com
frequência do modelo de negócio das FAANG (acrónimo para o grupo que
inclui Facebook, Apple, Amazon, Netflix e Google), Sarah Spiekermann,
professora de ética em desenho de investigação e tecnologia no Instituto
de Engenheiros Elétricos e Eletrónicos, lembra-nos que “não são apenas o
Facebook e a Google, a Apple ou a Amazon que recolhem e usam os
nossos dados […] Plataformas de gestão de dados como aquelas que são
operadas pela Acxiom ou pela Oracle BlueKai possuem milhares de
informações pessoais e perfis sociopsicológicos de centenas de milhões de
utilizadores”. A partir do momento em que entramos online, põe-se em
marcha um imenso aparelho, cada vez maior, que recolhe e envia os
nossos perfis para servidores distantes, para que um anúncio feito à
medida possa ser-nos enviado em milissegundos. 
A menos que esteja no ramo da publicidade, provavelmente não ouviu
falar de RTB, ou real-time bidding, leilões em tempo real nos quais é
vendido, na Internet, 98 por cento de todo o espaço disponível para
anunciar. A plataforma automatizada de leilão é semelhante ao Nasdaq,
mas em vez de comprar e vender ações, compra-nos e vende-nos a nós,
ou, mais especificamente, os nossos dados. Para os que exploram este
mercado, é verdadeiro ouro digital. 
É assim que funciona: plataformas de gestão de dados alojam o que é
conhecido como dados primários, secundários e terciários. Na sua forma
mais simples, os dados primários são aqueles em que o site é a própria
fonte – ou seja, são os próprios dados demográficos e de compra e
pesquisa dos visitantes desse site. Os dados secundários são dados de
consumidores recolhidos num site parceiro, através de um acordo. E os
terciários provêm de quaisquer fontes externas que reúnam e vendam os
nossos dados. 
A seguir, estes dados são processados e segmentados em “audiências”
para abastecer mercados pormenorizados: exemplifiquemos com um
homem que gosta de desporto, com 18 a 25 anos, que viva na área de
Toronto e que nos últimos dias tenha gastado online mais de 500 dólares.
Os dados são então exportados e disponibilizados para um leilão em
tempo real. Quando o sistema de troca de anúncios andar à procura de um
homem de 20 anos em Toronto, cujas buscas regulares incluem hóquei, a
sua identidade aparece, permitindo a um e-tailer (um retalhista que vende
bens na Internet) fazer a sua oferta, para que o seu anúncio a vender sticks
de hóquei apareça nos sites que ele visita. 
Quanto aos pormenores do processo, o que desencadeia a ação é a
plataforma do lado da procura. Segundo a descrição de Pete Kluge, group
manager de marketing de produto na Adobe Advertising Cloud, a
“plataforma faz uma oferta sobre cada impressão individual em RTB, com
base naquilo que é conhecido sobre o utilizador, e determina então o preço
certo para fazer uma oferta pela impressão individual desse utilizador”.
Tudo se passa a uma velocidade impressionante e quase impercetível; a
partir do momento em que se começa uma busca até aparecer um anúncio
passam cerca de dez milissegundos. 
Os nossos dados não são apenas imensamente valiosos para a economia
de vigilância, são também um maná para fins políticos. Em março de
2018, Christopher Wylie, antigo diretor de pesquisa na Cambridge
Analytica, veio revelar que a empresa tinha analisado os perfis no
Facebook de 86 milhões de pessoas, cujos dados foram usados para
influenciar tanto o referendo sobre o Brexit no Reino Unido como as
eleições nos Estados Unidos. 
Tudo começou como uma simples proposta na Mechanical Turk, uma
plataforma da Amazon que permite aos utilizadores ganharem pequenas
quantias realizando tarefas banais como inquéritos online, identificação de
objetos em imagens ou ver vídeos na Internet. Desta vez, foi pedido aos
utilizadores que instalassem uma aplicação com um teste de personalidade
chamado “This Is Your Digital Life”, por um a dois dólares por download.
O pedido era simples: tudo o que havia a fazer era realizar o teste de
personalidade enquanto se tinha a conta do Facebook aberta. Mais de 270
mil pessoas descarregaram o quiz, sendo que aproximadamente 32 mil
eram eleitores norte-americanos. 
Os utilizadores foram informados de que a app era “uma ferramenta de
investigação usada por psicólogos”, só que ela não se limitava a reunir
informação sobre cada pessoa que a descarregava. Também abria caminho
pelas contas dos amigos dos utilizadores e por toda a sua comunidade
digital, usando um algoritmo que visava centenas de pontos de dados por
pessoa. Esses dados eram então usados para criar perfis psicológicos
micro orientados. Como observava um artigo no The Guardian, o que a
Cambridge Analytica procurava eram as pegadas digitais: “O algoritmo
[…] faz uma recolha pelos posts aparentemente mais banais e
desinteressantes – os ‘likes’ que os utilizadores vão deixando – para
recolher informação pessoal sensível sobre orientação pessoal, raça,
género, até inteligência e traumas de infância.” 
Os utilizadores foram divididos em tipos – receoso, impulsivo ou
aberto, por exemplo – e foram criadas mensagens políticas para visar essas
caraterísticas específicas e começar a alterar em massa o comportamento
eleitoral. O objetivo da Cambridge Analytica era convencer os indecisos,
usando contra eles a sua própria psicologia. No fim de contas,
apropriaram-se de dados de utilizadores para poderem “não apenas ler as
suas mentes, mas mudá-las”. Isso acontece porque, tal como os “gostos”
das redes sociais são usados pela publicidade para nos vender produtos,
também os nossos perfis podem ser usados para se saber a melhor maneira
de chegar a nós. Como Wylie observa, enquanto as pessoas podem
apresentar versões diferentes de si próprias à família, amigos ou patrões,
os computadores são neutros; registam a pegada digital de todas as nossas
personas. E, como têm este quadro completo, diz Wylie, “os
computadores são melhores a perceber quem nós somos enquanto pessoas
do que até os nossos colegas ou amigos”. 
Na era digital, as nossas vidas tornaram-se livros abertos. Os
utilizadores fora dos Estados Unidos têm desde há algum tempo a
capacidade para saber o que o Facebook conhece sobre eles. Os resultados
variam de pessoa para pessoa, dependendo de há quanto tempo estão no
Facebook e do seu grau de atividade. O austríaco Max Schrems, estudante
de direito, testou isto quando solicitou todos os seus dados de Facebook.
Recebeu mais de 1.200 páginas, um autêntico livro de dados, “incluindo
chats e pokes antigos e material que tinha sido apagado anos antes”. O
termo “livro” é uma forma benigna de falar sobre os nossos dados; faz
com que tudo soe bem, como se se tratasse de uma espécie de
autobiografia digital. Mas talvez seja mais útil chamar-lhe o que realmente
é: aquilo que existe de cada um de nós é um cadastro. 
Pelo menos com as empresas das redes sociais, até certo ponto somos
nós que decidimos entrar. Mesmo que as pessoas não saibam como estão a
ser usados os seus dados, ou para quê, têm a sensação de que há uma
troca, de que estão a dar alguma coisa para poderem usar o serviço
gratuitamente. As crianças, por outro lado, cada vez menos têm essa
opção. Pais preocupados no Colorado travam desde 2014 um combate
contra aquilo que é conhecido como o Registo Dourado, e que é
essencialmente um registo pormenorizado dos seus filhos, que começa no
pré-escolar e os segue até ao liceu. É um pipeline de dados que regista
informação e comportamento sobre os estudantes, ao longo de toda a
carreira académica: resultados dos exames, faltas, informação financeira
sobre a família, demografia, dificuldades de aprendizagem, questões de
saúde mental, explicações, aconselhamento ou outras intervenções.136 Ora,
o que acontece a todos esses dados?  
Funcionários do departamento de Educação afirmam que o objetivo é
“ajudar a orientar pais, professores, escolas, unidades escolares e líderes
estaduais, já que trabalhamos juntos para melhorar os resultados
académicos, de forma a que todas as crianças completem os estudos
preparadas para a faculdade e para as suas carreiras”. Parece
suficientemente inocente, se nas letrinhas pequeninas não estivesse escrito
que os dados também são disponibilizados “a vendedores contratados,
com obrigações de privacidade assinadas, para aplicações especificadas”. 
Num vídeo de 2013, Dan Domagala, o principal responsável pela
informação do Departamento de Educação do Colorado, declarou que a
informação longitudinal pode ser partilhada “de forma diversificada” e em
ligação com outras agências estatais, incluindo a de Serviços Humanos e o
Departamento Prisional. Embora o Departamento de Educação insista que
os dados se encontram agregados e que não é dada qualquer informação
que identifique os estudantes, isso não é o suficiente para tranquilizar os
pais. Como observou uma mãe, toda a extensíssima recolha de informação
sobre a filha é inacessível a ela. “Nenhum pai conseguiu alguma vez ter
acesso ao Registo Dourado do seu filho.”  

Os Olhos nos Nossos Corpos 


A polícia chegou sem se anunciar à Casa Funerária de Sylvan Abbey. No
mês anterior, em março de 2018, agentes tinham matado a tiro, num posto
de gasolina, Linus Phillip Jr., de 30 anos. Mandaram-no parar porque ele
tinha os vidros do carro escurecidos. Os agentes disseram que também
tinham encontrado droga no veículo e que, quando Phillip tentou fugir,
durante a busca, o atingiram com quatro tiros. Os polícias estavam agora
na casa funerária porque queriam aceder ao telefone de Philip. Mandaram
que o corpo dele fosse retirado do depósito frigorífico e usaram os seus
dedos para tentar desbloquear o seu iPhone. 
A tentativa não funcionou, talvez porque o sensor de impressões digitais
do iPhone reverte a um código ao fim de 48 horas. Mas a família ficou
indignada com a brutal invasão de privacidade. Para a namorada de
Phillip, não só ele tinha sido assassinado sem motivo como estava agora a
ser “desrespeitado e violado” na casa funerária. Mas a polícia da Flórida
tinha uma abordagem mais fria. Afirmaram que, segundo a lei, os mortos
não têm direito à privacidade. É verdade. É bastante rotineira a utilização
de impressões digitais de mortos em investigações policiais.137 
Para proteger o público, especialistas em segurança têm estado a
trabalhar na criação de um sistema biométrico “impossível de violar”.
Para muitos, é uma espécie de cálice sagrado, mas até hoje nenhuma
tentativa para criar uma segurança biométrica inviolável funcionou.
Quando o corpo humano se torna a palavra-passe, alguém encontrará
sempre uma maneira de a descobrir. Na Malásia, uma quadrilha de
malfeitores revelou-se mais radical do que a maioria. Ao roubarem um
Mercedes-Benz que, para ser desbloqueado, exigia um sensor de
impressões digitais, cortaram o dedo indicador do proprietário com um
machete. Claro que há métodos mais subtis (e felizmente menos
violentos). Na universidade de Michigan State, especialistas pegaram em
impressões digitais em duas dimensões, imprimiram-nas em papel
condutor, para terem condutividade elétrica, e desbloquearam telefones.
No entanto, todos os anos os leitores biométricos se tornam mais
complexos. Os últimos leitores de impressões digitais usam
digitalizadores de infravermelhos para detetar padrões de veias sob a pele
e exigem circulação sanguínea ativa para certificar a identificação. 
Na Bolha da Realidade, a pessoa média pode não saber muito sobre
como funciona o sistema, mas o objetivo do sistema é saber tudo o que é
possível sobre a pessoa média. A biométrica é a última fronteira da
vigilância: o corpo humano. Permite às máquinas lerem e identificarem
seres humanos. As impressões digitais já não são apenas solicitadas a
presos ou condenados, porque num certo sentido agora somos todos
suspeitos. As impressões digitais são usadas para desbloquear telefones,
obter acesso a zonas de aeroportos e permitirem aos traders de ações
usarem as suas aplicações móveis. Outras partes do nosso corpo também
estão a ser cartografadas e colocadas em bases de dados. O sistema
NEXUS usa scanners de retina para permitir que viajantes de confiança
passem rapidamente pela alfândega. O MasterCard já tem reconhecimento
facial para que as pessoas possam “tirar uma selfie” e fazer compras com
o seu rosto. Há bancos que usam verificação de voz para confirmar
detentores de contas. E agora até o nosso silêncio está sob vigilância: pode
ser-se identificado e seguido pela forma como se respira. Cientistas
encontraram maneiras de obter “impressões digitais” da forma como
inspiramos e expiramos, porque as nossas passagens vocais e a capacidade
dos nossos pulmões são únicas. É possível usar um algoritmo para
encontrar, pelo telefone, a correspondência entre uma pessoa e os seus
“sons respiratórios intervocálicos”, o que significa que podemos ser
seguidos e identificados mesmo que não falemos. 
A grande pergunta é: porque é que há olhos por cima de nós, à nossa
volta, nas nossas mentes e nos nossos corpos? 
A IBM foi a primeira empresa a usar as suas máquinas tabuladoras para
dividir as pessoas em grupos. Em 1933, a empresa constituiu uma parceria
de 12 anos com os nazis e os seus simples cartões perfurados, designados
cartões Hollerith, foram usados para organizar e segregar prisioneiros em
campos de concentração. Edwin Black, autor de IBM and the Holocaust,
escreveu:  
 
“Os códigos mostram a designação numérica da IBM para vários campos. Auschwitz era o
001, Buchenwald o 002; Dachau o 003, e assim por diante. Vários tipos de prisioneiros foram
reduzidos a números IBM, com o 3 a significar homossexual, o 9 anti social e o 12 cigano. O
número IBM 8 designava um judeu. A morte dos presos era também reduzida a um dígito
IBM: 3 significava morte por causas naturais, 4 por execução, 5 por suicídio e o código 6
designava “tratamento especial” em câmaras de gás. Os engenheiros da IBM tiveram de criar
códigos Hollerith para distinguir entre um judeu que tinha sido obrigado a trabalhar até à
morte e outro que tinha sido gaseado.” 
 
Até este sistema inicial foi alvo de tentativas de assalto. E o primeiro
hacker inspirado pela ética foi René Carmille, controlador-geral do
exército francês e responsável pelo censo em França antes da invasão dos
alemães. Os nazis deram instruções a Carmille para lançar em máquinas
IBM os dados do recenseamento e analisá-los, de modo a obter uma lista
completa dos judeus a viver em França. Carmille e a sua equipa tiveram
uma ideia diferente. Modificaram as máquinas de leitura dos cartões
perfurados, de forma a fazer com que fosse impossível lançar dados na
coluna que especificava a religião. Esta sabotagem funcionou até 1944,
quando os nazis descobriram o esquema. Carmille foi torturado e enviado
para o campo de concentração de Dachau, morrendo pouco depois. 
Como observa a especialista em lei digital Heather Burns, esta pequena
manipulação do sistema teve uma consequência importante: “Na Holanda,
73 por cento dos judeus holandeses foram descobertos, deportados e
executados. Em França, o número foi de 25 por cento. Foi muito mais
baixo porque não conseguiram descobri-los. E não conseguiram descobri-
los porque René Carmille e a sua equipa tomaram partido e manipularam
os dados.” 
Hoje, os dados são a forma como segmentamos e vigiamos a sociedade.
David Lyon, autor de Identifying Citizens, explica a questão com clareza.
Porque é que estamos a transformar as pessoas em dados? Porque “a
identificação é o ponto de partida da vigilância”. Permite aos sistemas
separar as pessoas em grupos que podem ser analisados, classificados e,
segundo o tipo de dados que tiverem sido recolhidos, recompensados ou
discriminados. 
O filósofo e economista David Hume observou em 1741 que “nada
parece mais surpreendente […] do que a facilidade com a qual os muitos
são governados pelos poucos”. E é surpreendente. Recebemos ordens
porque as nossas vidas já foram ordenadas de maneiras nas quais
raramente pensamos. Todas as manhãs, milhões de pessoas parecem entrar
nos seus carros da mesma forma automatizada para ir trabalhar, porque as
horas estão de tal modo inscritas na nossa mente que não questionamos
isso; limitamo-nos a obedecer. Da mesma forma, imaginem o espanto dos
nativos americanos quando viram tropas norte-americanas paradas na
Medicine Line, a fronteira com o Canadá no paralelo 49, enquanto eles
podiam atravessá-la. Aos olhos deles, era como se os soldados tivessem de
parar por estarem possuídos por uma qualquer magia. Mas o efeito não era
bem mágico, era mais da ordem do pensamento mágico. Hoje, todos nós
obedecemos a estas linhas imaginárias porque a importância das fronteiras
está inscrita nas nossas mentes. Como Yuval Noah Harari afirma em
Sapiens, “as pessoas estão dispostas a fazer coisas dessas quando confiam
nas ficções da sua imaginação coletiva”. Mas estes sistemas já não são só
imaginados; tal como o Pinóquio, as criaturas estão a tornar-se reais. 
Se, no passado, o desenrolar do dia a dia, as ordens e os controlos eram
conseguidos através da hegemonia e da aquiescência das nossas
convicções, hoje as nossas crenças coletivas sobre como os relógios e as
fronteiras dividem as dimensões do mundo encontram-se formalizadas
numa grelha através da qual as nossas vidas são determinadas. Este é o
“sistema” infame que está por toda a parte, mas nos permanece escondido
e não visto. Aqui, as nossas medidas de tempo e espaço entraram no
mundo real como dados e os nossos duplos digitais são postos sob
vigilância constante; tornámo-nos os “pontos” na grelha, deixando um
rasto digital. Neste mundo virtual, todos nós estamos a ser seguidos. Mas
se há um elemento que falta na grelha é a nossa própria carne, o nosso
próprio sangue. Para integrar realmente os nossos corpos com o sistema,
também nós temos de nos tornar dados. A biométrica constitui essa trela
digital, permitindo que os nossos corpos físicos, reais, sejam seguidos e
controlados no mundo físico, real.  

Os Olhos com a Sua Própria Mente 


Para a polícia, tentar encontrar o Sr. Ao era como encontrar uma agulha
num palheiro. Mais de 50 mil pessoas vibravam de entusiasmo no
concerto de Jacky Cheung na cidade de Nanchang, no leste da China, e aí,
misturados na multidão, Ao e a mulher sentiam-se seguros. Mas não muito
depois da chegada do casal, câmaras de reconhecimento facial começaram
a varrer a arena do concerto de música pop. Momentos mais tarde, Ao foi
encontrado e preso. Os jornais noticiaram que foi levado e acusado de
cometer “crimes económicos” não especificados. 
A China não só possui um sistema de vigilância muito completo, como
também o tem ligado ao historial de crédito de cada pessoa. Se, no
ocidente, as pessoas vivem obcecadas com o número de “gostos” nas
redes sociais, na China as pessoas têm uma obsessão adicional: o seu
registo de crédito social. O sistema, proposto em 2014 pelo Conselho de
Estado da China para criar “um sistema nacional de registo das reputações
de indivíduos, empresas e até funcionários do governo”, já foi considerado
a “gamificação [do] bom comportamento”. Mara Hvistendahl escreveu na
revista Wired: “O objetivo é que cada cidadão chinês possua, até 2020, um
ficheiro com dados compilados de fontes públicas e privadas, e que esses
ficheiros sejam pesquisáveis através de impressões digitais e outras
caraterísticas biométricas.” 
São concedidos pontos por comportamentos tão meritórios como pagar
contas cedo, parar nas passadeiras de peões, poupar energia, dar à caridade
e ser amigo das pessoas certas. Ter na nossa rede social amigos com
pontuações elevadas é ter um retorno positivo, que adiciona pontos ao
nosso próprio registo de crédito social. E ter uma boa pontuação tem
vantagens: por exemplo, reservar um quarto de hotel sem pagar depósito,
usar chapéus-de-chuva oferecidos, saltar filas de segurança nos
aeroportos, conseguir melhores taxas de juro nos bancos, ter descontos nas
contas da energia, obter acesso a casas para alugar e até ser premiado com
uma nota positiva nos perfis colocados em sites para encontros amorosos.
E, cada vez mais, à medida que há uma integração entre o reconhecimento
facial e tecnologias como a “sorria ao pagar”, o rosto de uma pessoa irá
ficando ligado à sua pontuação de crédito social, tal como à sua carteira. 
Estes são os pontos positivos. Mas também podem ser retirados pontos
por mau comportamento. E tanto podem ser os hábitos de compra como
um discurso online considerado indesejável. Também pode ser por
atravessar fora das passadeiras, por espalhar notícias falsas ou propaganda
antigovernamental, por pagar as contas com atraso, por fazer lixo, por
estacionar num local proibido, por fazer demasiados jogos de computador
ou até por ter um grupo de amigos numa posição digital inferior. E as
penalizações não são frívolas. Pessoas com pontuações baixas podem ter
dificuldade em que os filhos entrem em boas escolas, em obter
empréstimos para comprar casa ou em conseguir emprego na
administração pública. 
Como escreveu Hvistendahl, com uma pontuação social baixa a pessoa
torna-se, “efetivamente, um cidadão de segunda classe”. Ela deu o
exemplo de uma pessoa com baixa pontuação que “foi impedida de viajar
da maior parte das maneiras; só conseguia reservar os piores lugares nos
comboios mais lentos. Não podia comprar certos produtos ou ficar em
hotéis de luxo e era inelegível para empréstimos bancários avultados”. 
Pontuações baixas colocaram milhões de chineses em listas negras de
viagem. Quatro milhões já se encontram impedidos de usar comboios de
alta velocidade e outros 11 milhões viram vedada a hipótese de comprar
bilhetes de avião. E quando as pessoas entram na lista negra, não sabem
como hão de sair. Mesmo Zhang Yong, vice-diretor da Comissão de
Reforma e Desenvolvimento Nacional, que regula o sistema de crédito
social, já afirmou que “é muito frequente” as pessoas permanecerem na
lista negra depois de as suas multas ou dívidas terem sido pagas. 
O sistema chinês de crédito social ainda está nas primeiras fases. Mas a
circulação de dados foi projetada como um sistema conjunto entre estado
e empresas; na maior parte dos casos, o governo usa a sua infraestrutura
de alta tecnologia – como câmaras de reconhecimento facial para vigiar e
seguir cidadãos em público –, enquanto o grosso dos dados compilados
sobre os cidadãos provém de empresas privadas como a Tencent e a Ant
Financial, do grupo Alibaba, que registam e avaliam o comportamento dos
consumidores, inclinações políticas, redes sociais e pagamentos (ou
ausência deles) nas suas apps.138 
A ironia está em que, historicamente, na China, a forma mais poderosa
de controlo social tem sido o desejo de “salvar a face”, ou preservar a
imagem pública, porque isso se reflete não apenas no indivíduo, mas no
respeito que é dado à sua família e na dignidade dela. Hoje, essa “face”
são os dados digitalizados. E estamos a permitir cada vez mais que
computadores avaliem as nossas reputações com base na nossa história
nas redes sociais. No mundo real, os nossos amigos e famílias podem,
com o tempo, perdoar e esquecer, mas não é possível “salvar a face” com
um computador, porque uma base de dados nunca perdoará ou esquecerá. 
Com inteligência artificial, entregamos as redes a máquinas. James
Vincent escreveu na revista The Verge: “Em geral, pensamos nas câmaras
de vigilância como olhos digitais, que nos vigiam ou que vigiam por nós,
dependendo do ponto de vista. Mas, na verdade, elas são mais como os
óculos para espreitar pela porta: só são úteis quando alguém espreita por
eles […] A inteligência artificial está a dar às câmaras de vigilância
cérebros artificiais para se conjugarem com os seus olhos, deixando-as
analisar imagens em direto sem que sejam necessários humanos.” 
Para os computadores, os nossos corpos tornam-se apenas mais uma
topografia, apenas outro mapa. Sistemas de reconhecimento facial
modernos avaliam os nossos rostos como se eles fossem acidentes de
terreno. As nossas caraterísticas principais são definidas e medidas, desde
a cana do nariz à profundidade e largura da cavidade ocular e à forma das
orelhas. Neste campo, quem nos reconhece não são pessoas, mas sim
computadores. Sistemas como o usado na Face ID da Apple projetam no
rosto de uma pessoa 30 mil pontos de infravermelhos, criando uma
topografia única que é instantaneamente lida e reconhecida pelos sensores
do telefone. Tecnologias computorizadas como a DeepFace, usada por
sistemas de vigilância, conseguem criar modelos em 3-D das nossas
cabeças a partir de imagens em duas dimensões, como fotografias, para
podermos ser seguidos, ainda que estejamos a mexer a cabeça ou que a
câmara nos esteja apontada a partir de um ângulo diferente. Além disso,
podem ser usadas análises de textura de superfície para melhorar os
métodos de identificação. Há algoritmos que analisam uma área de pele à
procura de caraterísticas específicas, como linhas e poros, e criam uma
“impressão de pele” única, que pode melhorar a capacidade de
reconhecimento facial em 20 a 25 por cento. Até estão a ser testadas
câmaras térmicas para que o perfil de uma pessoa e a forma do seu crânio
sejam reconhecíveis, independentemente de estar a usar chapéu, lenço,
óculos, maquilhagem ou um qualquer disfarce. 
Quando se fala na questão da vigilância, é comum ouvir as pessoas
dizer: “E depois? Eu não faço nada de mal. Que tenho a recear?” Para
falar com clareza, não é preciso fazer nada de mal; pode suceder apenas
que se seja da categoria errada. Ser judeu, cristão, muçulmano, gay,
transsexual, pobre, doente, inválido – ou atravessar mal a rua. E os
sistemas de reconhecimento facial não são apenas capazes de ver a idade,
etnicidade e género de uma pessoa, mas também a sua sexualidade. Este
“gaydar” tem uma taxa de precisão de 91 por cento, o que pode levar a
abusos graves em países onde ser gay pode significar ser preso, ou mesmo
a pena de morte. 
Na província chinesa de Xinjiang, pátria da população uigur muçulmana
da China, mais de 18,8 milhões de pessoas foram chamadas em 2017 a
participar no programa Exercício Físico para Todos. Os dados biológicos
recolhidos incluíram amostras de ADN e de sangue, impressões digitais e
digitalizações da íris. Todos os dados são tratados, em conjunto com
indicadores de segurança, para classificar as pessoas como “seguras”,
“normais” ou “inseguras”. Não participar no programa não era uma opção
e só o simples facto de mencionar isso já era considerado um “problema
de pensamento” ou uma “deslealdade política”. Como sucede com o
sistema do Registo Dourado nas escolas do Colorado, os participantes
involuntários não podem consultar os seus resultados. 
Hoje, na principal cidade da província, Urumqi, funciona um dos mais
avançados sistemas de segurança do mundo. Num esforço para erradicar
separatistas violentos, assinalou o Wall Street Journal, “barragens de
segurança com scanners de identificação guardam a estação ferroviária e
as estradas que entram e saem da cidade. Scanners faciais registam as idas
e vindas em hotéis, centros comerciais e bancos. A polícia usa aparelhos
manuais para efetuar buscas em smartphones à procura de aplicações
capazes de realizar conversas encriptadas, de vídeos com conteúdo
político e outro conteúdo suspeito. Para pôr gasolina, os condutores têm
primeiro de passar os seus cartões de identificação na máquina e olhar
para uma câmara”. Para os que se encontram na lista negra, aparece um
“X” quando a foto da identificação é analisada, e quando isso acontece são
apanhados. Não podem viajar para lado nenhum. 
As empresas tecnológicas que glamorizam e normalizam as tecnologias
biométricas levam-nos a entregar-lhes os nossos dados através de “coisas
fixes”, como realizar pagamentos rápidos, prioridades VIP e apps com
avatares patetas. Mas sucede que os dados biométricos não são só
entregues voluntariamente. Em muitos países estão a ser cada vez mais
usados sem o consentimento das pessoas. Na Índia, até são digitalizadas as
impressões dos dedos dos bebés recém-nascidos139 e no Reino Unido
quatro em cada dez escolas usam impressões digitais biométricas, criando
uma base de dados de 1,28 milhões de alunos (sendo que 31 por cento são
tiradas sem perguntar aos pais). O sistema é também generalizado nos
Estados Unidos, onde centenas de escolas começaram a usar o registo
biométrico de impressões digitais para os estudantes pagarem a despesa
que fazem na cantina.140 Nos Estados Unidos, quando alguns pais
protestaram e levantaram questões de privacidade, receberam a resposta
de que se os filhos não aceitassem o sistema “então não poderiam de todo
fazer refeições na escola”. 
Estamos a começar a ver o lado negro da biométrica. Quando é usada
para controlar o acesso a necessidades de vida básicas, tem o poder para
nos penalizar das formas mais fundamentais. Podem negar-nos não só
liberdade de movimento como até a possibilidade de comer. Na Índia, o
governo pôs em funcionamento o sistema obrigatório Aadhar, pelo qual os
seus 1.300 milhões de habitantes têm de passar por scanners que recolhem
imagens dos seus olhos, rostos e impressões digitais. Como Vindu Goel
escreveu em The Independent, no âmbito do programa “os pobres têm de
passar as suas impressões digitais na loja das rações para conseguir a
porção de arroz dada pelo governo. Os reformados têm de fazer o mesmo
para levantar as suas pensões”. Do mesmo modo, na Venezuela, foram
instalados em supermercados mais de 20 mil scanners de impressões
digitais, no âmbito do plano nacional de racionamento, para impedir o
açambarcamento e conceder ou limitar o acesso a alimentos,
medicamentos, papel higiénico, fraldas, detergente e outros bens. 

Ver É Um Crime? 
Jean-Jacques Rousseau afirmou em tempos que “o homem nasceu livre e
em toda a parte está acorrentado”. As correntes não são imaginárias – são
até muito reais –, mas invisíveis a olho nu. E o poder reside nesta
invisibilidade. Todo o nosso planeta está rodeado por olhos. Somos
seguidos por câmaras que estão no céu a 35 quilómetros e digitalizados e
medidos até às linhas e poros da nossa pele. Mas a questão é esta: nem
damos por isso. É um imenso ângulo morto. É como se vivêssemos num
panóptico de alta tecnologia, o edifício prisional circular imaginado pelo
filósofo Jeremy Bentham, onde todos os prisioneiros podiam ser
observados nas suas celas sem sequer saberem que alguém os estava a ver.
Os que observavam conseguiam ver, mas não eram vistos pelos que
estavam a ser observados. 
Michel Foucault tinha consciência disto quando afirmou que “o poder
disciplinar é exercido através da sua invisibilidade [e] ao mesmo tempo
impõe aos seus sujeitos uma visibilidade obrigatória. É este facto de ser
constantemente visto que assegura a manutenção do poder que é exercido
sobre eles.” Na mesma linha, num artigo na revista Guernica, John Berger
escreveu que “a melhor maneira de compreender o mundo não é enquanto
prisão metafórica, mas literal”. E que, sem qualquer hipérbole, o nosso
atual estado de coisas é “nada menos do que isso. Por todo o planeta,
estamos a viver numa prisão”.  
Ao longo de todo este livro, tem havido um tema recorrente: no século
XXI, encontramos câmaras por todo o lado exceto nos locais de onde vem
a nossa comida, de onde vem a nossa energia e para onde vai o nosso lixo.
São estes os três ângulos mortos do nosso sistema de suporte da vida
humana. O sistema funciona para se proteger – e é por isso que
descobrimos que ele nos cega deliberadamente. 
Ryan Shapiro, diretor executivo da organização pela transparência
Property of the People, obtém desde há mais de uma década documentos
ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação (FOIA). Num deles,
descobriu que, um ano depois do 11 de setembro, apesar de todas as
prioridades dadas ao combate ao terrorismo em solo americano, o FBI
estava a seguir vegans – mais especificamente numa festa de Halloween. 
Está escrito no documento: 
 
SINOPSE: Festa de Halloween vegan 
PORMENORES: Filadélfia conseguiu um post online do site Stop Huntingdon Animal
Cruelty (SHAC). O post anuncia uma Festa de Máscaras de Halloween Vegan: “No sábado,
19 de outubro, a começar pelas 19h30 na SHAC de Philly [Filadélfia] vamos ter uma festa de
máscaras de Halloween vegan para angariar fundos para o centro comunitário de Old Pine (na
4th street com a Lombard). Haverá DJ, comida vegan e um estúdio fotográfico para fazer
fotos dos presentes e dos seus acompanhantes no esplendor festivo em que escolherem
apresentar-se.” 
 
E porque é que havia espiões do FBI a controlar uma festa que
provavelmente não tinha nada de mais perigoso do que uns petiscos
vegetarianos de quinoa? Porque os ativistas dos direitos dos animais são
olhados como uma ameaça direta ao sistema alimentar. Como vimos no
capítulo 4, as condições de criação dos animais nem sempre são bonitas.
Para recordar uma frase famosa de Paul McCartney, “se os matadouros
tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos”. Mas não são só as
paredes que mantêm escondida a realidade. Olhar lá para dentro pode ser
ilegal. As empresas alimentares que querem ficar protegidas do escrutínio
público avançaram com propostas de leis que visam proibir investigações
encobertas a locais de criação. Propostas pela primeira vez em 2011, estas
leis tornariam crime “produzir um registo que reproduz uma imagem ou
som”141 dentro de uma instalação com animais, ou mesmo “estar na posse
ou distribuir” uma tal gravação. 
Vídeos que mostram perturbadores abusos de animais e condições de
criação insalubres já levaram à destruição de grandes quantidades de
carne, o que é mau para o grande negócio. Mas, ao fazerem o trabalho
sujo de expor práticas desumanas e às vezes horríveis, má segurança
alimentar e abusos dos direitos dos trabalhadores, os ativistas dos direitos
dos animais que clandestinamente filmam, fotografam e documentam os
abusos são considerados “ecoterroristas” que cometem um crime e, se
forem apanhados, podem ser multados ou presos. 
É frequente as notícias apresentarem os militantes pelos direitos dos
animais como pessoas violentas, que põem bombas, e por isso Will Potter,
autor de Green is the New Red, decidiu ir à fonte e investigar a história
deles. Potter contactou a Fundação para Investigação Biomédica,
organização sem fins lucrativos com sede em Washington, que apoia testes
em animais em investigações médicas e científicas e é hoje o único grupo
em todo o mundo que mantém um registo dos crimes de ecoterroristas. Se
há um grupo que tem interesse em expor os crimes dos ativistas dos
direitos dos animais, é este. Mas aquilo que Potter descobriu foi
surpreendente: “A lista de crimes de ecoterrorismo elaborada por um dos
principais adversários destes movimentos não inclui um único ferimento
ou morte.” E embora tenham sido documentados, nas últimas décadas,
“milhares de atos criminosos violentos”, continua Potter, um relatório que
investiga o tema “menciona 95 crimes entre 1984 e 2002, incluindo
diversos ‘porcataques’. Um porcataque é exatamente o que o nome sugere,
um ataque com um porco. Pensem nos Três Estarolas imbuídos do espírito
revolucionário da Internacional Situacionista.” 
É ilegal olhar com demasiada atenção para de onde vem a nossa comida
– e o mesmo é verdade para os nossos sistemas de energia e de lixo. As
empresas e os governos podem espiar-nos, mas nós estamos proibidos de
os espiar e em alguns casos até estamos proibidos de registar um protesto
público. 
Em outubro de 2016, as documentaristas Deia Schlosberg e Lindsey
Grayzel foram presas por virarem as suas câmaras para filmar protestos
contra oleodutos. Schlosberg teve de enfrentar três acusações de
conspiração criminosa, arriscando 40 anos na cadeia, por gravar
acontecimentos no oleoduto TransCanada Keystone em Pembina County,
no Dacota do Norte, enquanto Grayzel foi sujeita a uma busca e atirada
para a prisão por filmar um protesto contra um oleoduto em Skagit
County, Washington. Após grandes protestos e o envolvimento de
celebridades, as queixas foram retiradas. No EcoFilm Festival de Portland,
Schlosberg afirmou ao público: “Lindsey e eu nunca tínhamos tido uma
experiência destas: fomos presas por fazermos o nosso trabalho, acusadas
de crimes por fazermos o nosso trabalho.” E, tal como afirmou Dawn
Smallman, diretora do festival: “Se foram capazes de prender Lindsey e
Deia, então são capazes de prender qualquer realizador que apresentamos
aqui no festival. É uma coisa muito arrepiante quando se trabalha nos
media, no cinema e se está a tratar de questões importantes como as
alterações climáticas e as grandes empresas”. 
Em comparação com o ativista vietnamita Hoang Duc Binh, as
realizadoras norte-americanas tiveram uma vida fácil. No dia 6 de
fevereiro de 2018, Binh foi condenado a 14 anos de prisão pelo crime de
filmar pescadores que protestavam contra poluição por resíduos. Depois
de um imenso derramamento químico numa enorme fábrica ter devastado
comunidades piscatórias e causado a morte maciça de peixes ao longo de
200 quilómetros de costa, os locais, cujas vidas dependiam das reservas de
peixe, manifestaram-se. 
O crime de Binh foi transmitir em direto no Facebook este protesto dos
pescadores. O Tribunal Popular da província de Nghe Na condenou-o por
“abuso das liberdades democráticas para prejudicar os interesses do
estado, de empresas e do povo e por confrontar agentes que cumpriam o
seu dever”. Durante a transmissão em direto, Binh tinha dito aos seus
espetadores que os pescadores estavam a ser espancados pelas
autoridades. O tribunal decidiu que essas afirmações eram caluniosas, o
que Binh negou. No essencial, o crime de Binh foi recusar-se a alinhar na
cegueira oficial. 
Nos últimos anos, o silenciamento de ativistas ambientais – os que
documentam coisas erradas sobre os nossos alimentos, produção de
energia e lixo – tem registado um aumento constante. Só em 2017, 197
ativistas ambientais foram assassinados por denunciarem abusos
sistémicos. Segundo a organização sem fins lucrativos Global Witness,
que regista crimes cometidos contra ativistas, em 2016 até quatro pessoas
foram mortas em cada uma das semanas do ano. 
A vigilância é então a forma como é mantido o nosso sistema moderno
de suporte de vida. Garante que trabalhamos com eficiência e
produtividade, que somos bons consumidores e compradores, que não
agitamos o barco nem nos desviamos do statu quo. Somos seguidos numa
grelha que já não precisa que “acreditemos” na hegemonia do tempo e do
espaço. O novo sistema é uma manifestação física que procura controlar e
limitar o nosso comportamento através de um aparelho físico. 
Seria, contudo, um erro pensar que há por trás disto tudo uma mente
maligna. Não há Big Brother. Estamos todos a olhar uns para os outros
para garantir que andamos na linha. Dizemos a nós próprios que isso nos
mantém seguros, que a vigilância protege as pessoas boas da sociedade ao
vigiar os maus, aqueles que têm um comportamento criminoso. Mas as
pessoas comuns também estão a ser vigiadas e penalizadas pela mais
pequena das “infrações”. E a vigilância moderna também é usada para
seguir e silenciar ativistas que tentem apontar as câmaras ao sistema para
nos mostrarem onde é que as coisas estão a correr mal. 
Isso será, talvez, o mais assustador. O nosso sistema de produção de
alimentos e energia e de eliminação de resíduos funciona numa escala
para lá de alarmante. Somos prisioneiros de um sistema que, se não for
fiscalizado, irá, e não é exagero afirmá-lo, destruir a maior parte da vida
na Terra. E, no entanto, a vigilância encoraja-nos, na verdade obriga-nos, a
seguir com a nossa vida como de costume, a fingir que não vemos e a
olhar para o lado.  

128
Quem vive nos Estados Unidos e no Canadá, até tem a porta da rua com uma coordenada GPS. O
censo usa GPS para registar as coordenadas de todas as moradas do país. 

129
No dia 1 de maio de 2000, o Presidente Clinton acabou com a “disponibilidade seletiva” do GPS,
dando na prática aos civis a mesma capacidade que os militares possuíam. Com isso, fez com que os
sinais se tornassem instantaneamente dez vezes mais rigorosos do que antes. A margem de erro do
GPS, ao ar livre, é de aproximadamente cinco metros. Mas com o desenvolvimento da tecnologia wifi
que permite o seu uso no interior, a precisão pode chegar a um ou dois metros. 

130
Os satélites geossíncronos orbitam o planeta em sincronização com o nosso dia sideral, ou seja,
uma vez em cada 23 horas, 56 minutos e quatro segundos, e por isso parecem, para um observador na
Terra, estar no mesmo lugar à mesma hora uma vez por dia. Um satélite geoestacionário também
orbita o planeta uma vez por dia, mas encontra-se estacionado a grande altitude sobre o Equador e,
por isso, parecerá a um observador na Terra que está no mesmo lugar ao longo de todo o dia.
131
A resolução da imagem será de pelo menos 12 centímetros, o que significa que é possível
distinguir, a partir do espaço, um par de tesouras no chão. Mas, dada a dimensão da lente, e o facto de
fornecedores comerciais já estarem a fazer pressão para uma resolução de dez centímetros, os
satélites da classe KH possuem provavelmente uma resolução muito mais elevada do que isso. 

132
O Tratado sobre o Espaço Exterior proibiu armas de destruição maciça em órbita e no espaço,
mas não interdita armas convencionais em órbita. 

133
Vale a pena lembrar que o nervo ótico transmite ao cérebro informação visual e é também onde se
localiza, em cada um dos olhos, o ângulo morto dos seres humanos. Permite-nos ver, mas a sua
localização também está escondida da nossa vista.

134
Dados de registos públicos indicam uma taxa de 92 por cento falsos positivos em reconhecimento
facial: “Dos 2.740 alertas do sistema de reconhecimento facial, 2.297 eram falsos positivos. Por
outras palavras, em nove em cada dez vezes o sistema assinalou erradamente alguém como suspeito
ou passível de prisão”.

135
O post foi: “Joe Lipari podia entrar numa loja Apple da Quinta Avenida com uma arma
semiautomática Armalite AR-10 com sistema de gás e despejar bala após bala naqueles
assistentezinhos patetas.” A citação original de Clube de Combate é: “E este psicopata reprimido,
vestido à Oxford, podia simplesmente passar-se e saltar de escritório em escritório com uma arma
semiautomática ArmaLite AR-10 com sistema de gás e despejar bala após bala em colegas e
empregados.”

136
Todos os anos, os estudantes recebem o “Inquérito Miúdos Saudáveis do Colorado”, que solicita
pormenores pessoais como que idade tinham quando tiveram a primeira relação sexual, se já foram
sexualmente molestados, quantas vezes conduziram depois de consumir marijuana. 

137
A polícia também pode contratar uma empresa como a Cellebrite para desbloquear um telemóvel,
sem precisar de dados biométricos. O custo é de entre 1.500 a três mil dólares por telefone. 

138
Segundo um artigo no The Sydney Morning Herald, “a primeira fase da plataforma de informação
de partilha de crédito estava a ser usada por 44 departamentos, em todas as províncias, e por 60
empresas privadas, para revelar informação e ser avaliada para um ‘castigo conjunto’”. 

139
Na Índia, os trabalhadores do sistema de saúde estão a tirar impressões digitais a crianças como
forma principal de as identificar sem documentos oficiais. 

140
O sistema até pode crescer, ser “expandido, sem custo adicional, para gerir as horas e as
presenças, a admissão a eventos, a segurança em parques de estacionamento e a monitorização de
estudantes que viajam em autocarros escolares”.

141
Onde estas leis foram rejeitadas, os ativistas estão a ser acusados através de outros meios. Por
exemplo, operações de salvamento de animais doentes ou feridos caem sob a alçada das leis federais
de roubo e são puníveis com uma pena que pode chegar aos cinco anos. 
10 
O Império Vai Nu 
Amaldiçoada seja a primeira pessoa que disser “Isto é meu”. 
PROVÉRBIO CROATA 

O maior assalto da história a um banco foi invisível. Não houve armas,


nem gatunos com máscaras de esqui, nem caixas a tremer obrigados a
abrir o cofre. É que o dinheiro não estava guardado num lugar físico. A
verdade é que foi roubado quando estava em movimento, a passar num
relâmpago entre continentes, em correntes de uns e zeros. 
No dia 5 de fevereiro de 2016, os empregados do banco central do
Bangladesh repararam em qualquer coisa de invulgar: a máquina que
imprimia automaticamente todos os registos das transações diárias tinha
estado completamente parada. Depois de algumas tentativas, o problema
acabou finalmente por ser resolvido no fim desse dia e a impressora
começou então a cuspir resmas de mensagens do Banco da Reserva
Federal de Nova Iorque. Faziam perguntas sobre as ordens de
transferência que tinham chegado do Bangladesh, já que totalizavam uma
quantia enorme: concretamente, mil milhões de dólares. 
Na economia moderna, o dinheiro move-se à velocidade da luz, e ao
contrário dos seres humanos atravessa com facilidade a maior parte das
fronteiras. A rede SWIFT (iniciais em inglês de Sociedade de
Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais) é por onde os
fundos dos bancos viajam pelo planeta. Num dia médio, cerca de cinco
mil milhões de dólares circulam entre bancos parceiros da rede SWIFT,
que inclui 11 mil instituições financeiras em mais de 200 países e
territórios. 
Os ladrões não se tinham limitado a usar software malicioso para
assaltar o banco. Também operaram uma sofisticada manipulação de
tempo e de espaço. Os responsáveis do banco demoraram entre quinta-
feira à noite, hora de Nova Iorque, e terça-feira de manhã, hora do
Bangladesh, a perceber sequer que tinham sido roubados. Os assaltantes
usaram contra os bancos, de uma forma inteligente, a geografia e as zonas
horárias dos países. O The New York Times escreveu:  
 
“Quando o Fed tinha recebido um total de 70 ordens de pagamento fraudulentas para
quatro contas bancárias nas Filipinas e uma no Sri Lanka, o Banco do Bangladesh estava
fechado para o fim de semana. No domingo, quando o banco reabriu e descobriu o erro, não
conseguiu contactar o Fed. [O diretor] enviou uma ordem para travar o pagamento ao banco
central das Filipinas, que estava encerrado para o Ano Novo Chinês […] Na segunda-feira ao
fim da tarde, hora de Daca, quando o Fed estava a reabrir, o Banco do Bangladesh solicitou a
Nova Iorque que bloqueasse a transferência de dinheiro para as Filipinas, mas foi-lhe dito que
era tarde demais e que o dinheiro já se encontrava nos bancos.” 
 
No fim, os ladrões acabaram por não obter tudo o que tinham esperado.
Mas ainda assim conseguiram lavar 81 milhões de dólares através de
casinos nas Filipinas e colocá-los em contas offshore. O responsável
continua sem ser identificado, mas, com base no rasto de registos, o
suspeito principal é a Coreia do Norte. Se for verdade, isso significa que
um dos países mais pobres do mundo se lançou no assalto a bancos. 
Mas isto arrasta uma questão-chave: porque é que existe uma divisão
tão grande entre países ricos e países pobres? Segundo Jason Hickel, autor
de The Divide, isso tem muito que ver com o fluxo do dinheiro. No século
XVIII, observa Hickel, a verdade é que os povos da Ásia tinham um nível
de vida mais alto do que os da Europa Ocidental. E foi a colonização, da
América Latina à Índia e a África, que provocou quedas acentuadas no
nível de vida e nos rendimentos. As matérias primas eram extraídas da
terra através de trabalho barato, para que os produtos fabricados pudessem
ser vendidos de volta às colónias e aos países ocidentais, enquanto taxas
de importação elevadas asseguravam que os senhores coloniais não teriam
concorrência. Ao desvalorizar os recursos das colónias e o trabalho que os
produzia, o colonialismo criou um sistema de “troca desigual”, um fluxo
que dura há séculos, faz sair dos países pobres uma tremenda riqueza e
mantém hoje na pobreza milhares de milhões de pessoas. Como Hickel
escreveu: “No passado, as potências coloniais eram capazes de ditar as
condições diretamente às colónias. Hoje, embora o comércio seja
tecnicamente ‘livre’, os países ricos conseguem fazer o que querem
porque têm um poder negocial muito maior. Além de tudo, os acordos
comerciais impedem muitas vezes os países pobres de protegerem os seus
trabalhadores da forma que os países ricos fazem. E como as empresas
multinacionais podem agora andar pelo planeta em busca do trabalho e
dos bens mais baratos, os países pobres são obrigados a concorrer uns com
os outros para baixarem os custos.” 
É por causa desta troca desigual que comprar uma camisa feita
localmente é mais caro do que encomendar do estrangeiro uma que foi
fabricada do outro lado do planeta. Se fossem tidos em conta os custos
reais, calcula-se que a riqueza extraída aos países pobres e transferida para
os ricos ascenderia anualmente a 4,9 biliões de dólares. 
Mas há outras maneiras de viciar o sistema financeiro. Esconder
dinheiro é uma das mais conhecidas. Segundo a Global Financial Integrity,
organização sem fins lucrativos que segue a forma como o dinheiro é
movimentado em segredo, os fluxos financeiros ilícitos (IFF) terão sido,
só em 2014, de 3,5 biliões de dólares. E o que são os IFF? São
transferências ilegais – como lavagem de dinheiro, erros de faturação ou a
utilização de empresas de fachada – para movimentar fundos de país para
país de formas que “pretendem claramente ser escondidas e não
observáveis”. 
Nos dias de hoje, o dinheiro pode fazer isto porque não é real. A moeda
assentava geralmente em qualquer coisa sólida, que podia ser gado,
conchas de moluscos ou tabaco, mas hoje o dinheiro é abstrato, é uma
rede de símbolos relacionados com as nossas identidades – números
ligados ao número do nosso cartão de cidadão – que voam através de
cabos submarinos e silvam como vapor através do ar, sem necessitar de
fios. A imensa maioria do dinheiro do mundo é invisível, uma espécie de
fantasma. 
Mas talvez o truque mais conhecido para esconder dinheiro seja o que
utiliza os véus das fronteiras e da geografia para guardar fundos. Os ricos
são quem beneficia mais, pois são eles que podem pagar a advogados que
conhecem os prós e contras do esquema. Falo, evidentemente, dos
paraísos fiscais. Em 2016, segundo Gabriel Zucman, autor de A Riqueza
Oculta das Nações, existiam em contas offshore e, portanto, por taxar,
cerca de 8,6 biliões de dólares. Para termos uma ideia, é quase três vezes
mais do que a totalidade do mercado tecnológico, atualmente avaliado em
cerca de três biliões de dólares. As fugas de informação dos Panama
Papers e dos Paradise Papers revelaram até que ponto esta prática é
comum. Descobriu-se que no Canadá as 60 maiores empresas tinham em
zonas offshore mais de mil subsidiárias. Por isso, enquanto os canadianos
comuns têm de pagar os seus impostos, sob pena de terem à perna as
autoridades, as empresas e as elites financeiras do país encontraram
formas legítimas de manter todos os anos fora das suas contas 15 mil
milhões de dólares. 
A regra geral é esta. Como o dinheiro tem liberdade de movimento, os
ricos não precisam de o ter em casa. Como assinala a revista Fortune, em
2017 a Apple Inc. tinha em offshores 252 mil milhões de dólares de lucros
da empresa para assim evitar pagar impostos nos Estados Unidos. A
Amazon teve lucros de quase três mil milhões, mas graças a isenções
fiscais e a créditos quase não pagou impostos federais. No mesmo ano,
segundo um relatório da Oxfam, uns “incríveis 82 por cento da riqueza
criada em todo o mundo foram para os 1 por cento mais ricos”, e esse 1
por cento tem uma riqueza combinada que é sete vezes suficiente para
acabar com a pobreza extrema no planeta. O fosso entre ricos e pobres
tornou-se tão grande que as 42 pessoas mais ricas do planeta têm tanto
dinheiro como a metade mais pobre da população mundial. Ou seja, há 42
indivíduos com a riqueza de 3.700 milhões de pessoas. 
Ser pobre não é só perder o jogo. Os pobres são cada vez mais
penalizados e criminalizados pela sua falta de riqueza. Ao nível mais
simples, muitos bancos cobram uma multa, ou uma “taxa”, se o saldo de
uma conta for demasiado baixo. O Banco da América, por exemplo,
propôs uma taxa de 12 dólares para saldos mensais inferiores a 1.500
dólares, o que, no essencial, cobra às pessoas por não terem dinheiro
suficiente. Os bancos também analisam os nossos dados e usam
algoritmos para determinar a categoria de crédito a que pertencemos. Até
o facto de fazer compras repetidamente “em lojas associadas a maus
pagamentos” pode ter impacto no crédito pessoal, levando a uma redução
nos limites de crédito e a taxas de crédito mais elevadas. E enquanto os
pobres não podem simplesmente fazer as malas e mudar-se para um bairro
melhor, para os sem-abrigo isso ainda é mais difícil. Como assinala o
Centro Legal Nacional para Sem-Abrigo e Pobreza, em Washington,
“apesar de uma falta de habitação acessível e de espaços de abrigo, muitas
cidades decidiram punir cívica ou criminalmente pessoas que vivem na
rua por fazerem aquilo que qualquer ser humano tem de fazer para
sobreviver. As cidades continuam a ameaçar, prender e multar pessoas
sem-abrigo por realizarem atividades essenciais – como dormirem ou
estarem sentadas – em lugares públicos ao ar livre, apesar de não
existirem alternativas legais em espaços fechados”. 
Nos últimos anos, aumentaram 52 por cento as proibições de estar
deitado ou sentado em lugares públicos e têm sido instalados em bancos
de parques e em entradas de edifícios “espigões anti sem-abrigo” –
semelhantes aos que existem para afugentar pássaros –, de forma a tornar
impossível dormir ou estar ali sentado. Até organizações de inspiração
religiosa podem ser processadas e enfrentam penas de prisão por
alimentarem sem-abrigo com fome. Nos Estados Unidos, mais de 50
cidades, incluindo Atlanta, Los Angeles, Miami, Phoenix e San Diego,
têm leis antiacampamento ou antipartilha de alimentos. 
O abissal fosso que se abre entre ricos e pobres é uma função do acesso
que cada grupo tem ao sistema de troca que os seres humanos usam para
comerciar dinheiro. A um nível macro, a economia global depende do
fluxo e troca constante de dinheiro, mas a maior parte das pessoas,
incluindo 84 por cento dos legisladores britânicos, não sabe de onde ele
vem. Aquilo que muitas pessoas consideram dinheiro “real”, as notas e
moedas físicas, constitui aproximadamente cinco biliões de dólares,
apenas 16 por cento de todo o dinheiro que circula no mundo. Segundo o
CIA World Factbook, o total global de dinheiro, ou o que é chamado
agregado monetário, andará pelos 80 biliões. Sendo assim, de onde vem
todo este outro dinheiro? Como os nossos pais gostavam de nos dizer, não
cresce nas árvores. Mas cresce nos computadores. 
Num documento intitulado “Criação de Dinheiro na Economia
Moderna”, o Banco de Inglaterra explica que o dinheiro é criado através
da dívida. Especificamente, “sempre que um banco faz um empréstimo,
cria ao mesmo tempo um depósito correspondente na conta de quem o
pediu, criando desta forma dinheiro novo”. A forma como os livros
teóricos o explicam, afirma o banco, é uma falácia: “A realidade de como
é hoje criado dinheiro difere da descrição que se encontra em alguns livros
de economia: em vez de serem os bancos a receberem depósitos quando as
pessoas poupam, o empréstimo bancário cria depósitos [realce meu].” A
dívida é essencial para o nosso sistema económico moderno continuar a
funcionar, porque a dívida cria riqueza. 
Noutro plano, todos conhecemos a história da origem do dinheiro.
Sabemos que o dinheiro não é “real”; quer seja um pedaço de papel, ou
uma moeda ou uma transferência digital, o dinheiro, no seu sentido mais
fundamental, é um reconhecimento de dívida. É uma promessa. A dívida
global atingiu, contudo, níveis recorde que são ultrapassados todos os
anos. Em termos globais, o mundo tem 247 biliões de dólares em
promessas, na maioria vazias, com uma taxa de endividamento que tem
crescido a uns absurdos 40 por cento nos últimos dez anos. 
Para se manterem à tona, os países mais pobres tiveram de hipotecar os
seus futuros. Desde 1980, os países do Sul têm estado a pagar os juros das
suas dívidas a um ritmo de 200 mil milhões de dólares por ano. No total,
segundo Jason Hickel, corresponde a 4,2 biliões de dólares, só em juros,
que passaram dos bolsos dos países pobres para os dos países ricos. Deve
assinalar-se que também os países ricos têm dívidas imensas, mas junto de
bancos e investidores individuais, não, em termos gerais, a governos
estrangeiros. E quando são feitos empréstimos a países ricos é sob a forma
de obrigações do governo com taxas de juro muito baixas. Como Annie
Logue explicou na revista How We Get to Next, “as taxas cobradas a estes
países [ricos] para empréstimos cobrem a utilização de dinheiro e a
inflação esperada, mas não levam em conta qualquer risco de
pagamento”. 
O velho ditado afirma que o dinheiro é que faz o mundo girar, mas é a
natureza invisível e vaporosa do dinheiro e as regras viciadas do jogo que
encaminham a riqueza para as contas bancárias dos ricos, ao mesmo
tempo que a dívida dos pobres aumenta. E, por isso, talvez devêssemos
pensar num ditado diferente para definir como é que, nesta economia
moderna, nos sustentamos. Como afirmou num episódio um vilão
empresarial da série Mr. Robot: “Deem uma arma a um homem e ele será
capaz de roubar um banco. Deem um banco a um homem e ele será capaz
de roubar o mundo.” 
 
Em Athens, na Geórgia, na esquina das ruas South Finley e Dearing,
ergue-se orgulhoso um grande carvalho-branco, com os ramos elevados
formando um leque de folhas verdes. Por baixo, protegida na sombra, está
uma placa de pedra onde se lê: 
 
Por causa e em consideração do amor 
que tenho a esta árvore e do grande desejo 
de a ver protegida para sempre, 
transmito-lhe os direitos de propriedade dele próprio
e da terra envolvente até 2,5 m. 
WILLIAM H. JACKSON 
 
O carvalho é conhecido pelos habitantes como A Árvore Que É Dona de
Si Própria ou, mais rigorosamente, A Filha da Árvore Dona de Si Própria,
já que a árvore original sofreu em 1907 danos causados por uma
tempestade de gelo e acabou por cair em 1942. Com 700 anos, a árvore
era adorada pelo coronel William Jackson, que passou a infância a brincar
debaixo dos seus ramos imensos. Para a proteger, Jackson decidiu, no
início do século XIX, transmitir à árvore a propriedade de si própria e do
terreno em volta. 
Quando a árvore original caiu, os residentes pegaram em ramos do chão
e conseguiram que eles se desenvolvessem, plantando-os no mesmo local.
A geração seguinte desta árvore ergue-se hoje firme e “livre” neste solo
herdado e já tem 15 metros de altura. Legalmente, no estado da Geórgia,
os seres não humanos não possuem direitos, mas a independência da
árvore nunca foi contestada, porque, para os locais, esta árvore específica,
acima e para além de todas as outras, ganhou o direito de ser dona de si
própria. 
Pode parecer absurda a ideia de uma coisa como uma árvore poder ter
direitos. A nossa tendência é para acreditar que os direitos ou privilégios
legais só devem existir no domínio humano, em especial porque, para
começar, um “direito” é uma construção humana. Mas as árvores são seres
vivos. Como defende Peter Wohlleben no seu livro A Vida Secreta das
Árvores, são criaturas sociais que cuidam dos seus mais jovens,
comunicam umas com as outras, sentem dor, têm a capacidade de
memória – e fazem sexo. Não são seres inanimados; estão vivas e existem
dentro de uma comunidade silenciosa, mas dinâmica. 
Tal como os seres humanos usam uma rede subterrânea de tubos e fios
chamada Internet para comunicar uns com os outros, a floresta também
recorre a uma rede – a “wood wide web”. Cada árvore comunica com
outras através de redes de fungos que as ligam pelas raízes. Suzanne
Simard, professora de ecologia na universidade de British Columbia,
descobriu que, usando estas redes de microrrizas, as árvores são capazes
de transmitir sinais de perigo, alimentam-se umas às outras com carbono,
azoto, fósforo e água e comunicam sinais de defesa e químicos para
proteger a sua comunidade de ameaças potenciais. Não podemos ver ou
ouvir o que acontece – tal como, olhando para um sistema de fios, não
conseguimos ver as mensagens transmitidas de um lado para o outro na
Internet –, mas as árvores estão, de uma forma muito real, a comunicar
umas com as outras. 
Os cientistas só agora começam a compreender que formas não
humanas de vida possuem os seus próprios tipos de inteligência. É bom,
por isso, que em todo o mundo estejam cada vez mais a ser concedidos
direitos a formas de vida não humanas, numa tentativa jurídica de as
proteger. A natureza não terá uma voz per se, mas, ao conferir um
“direito” ao mundo natural, os seus interesses podem pelo menos ser
defendidos em tribunal e pode ter uma existência jurídica. 
Num veredito histórico pronunciado em 5 de abril de 2018, o supremo
tribunal da Colômbia fez exatamente isso e alterou o estatuto da parte da
bacia do Amazonas que pertence ao país de modo a torná-la “uma
entidade possuidora de direitos” – o que, no essencial, confere ao
ecossistema os mesmos direitos de um ser humano. Ao fim de anos de
destruição desenfreada através de exploração mineira ilegal, abate de
árvores e expansão agrícola, incluindo para cultivo de drogas, a Amazónia
estava a ser roubada e os seus recursos vendidos. Só entre 2015 e 2016, a
desflorestação aumentou em 44 por cento, para 70.074 hectares, mais ou
menos a área de Nova Iorque. Sendo possuidora de direitos jurídicos, a
floresta tropical passa a poder ser protegida e defendida. 
Da mesma forma, em março de 2017, o rio Whanganui, na Nova
Zelândia, ganhou o direito de possuir personalidade jurídica. Para os
Maori, que há mais de 150 anos lutam por respeito e justiça para o rio, ele
nunca foi uma “coisa”; foi sempre uma essência da vida, uma parte vital
da comunidade. Os povos indígenas da área – os iwi, ou tribo, do rio
Whanganui – têm um ditado: “Eu sou o rio e o rio sou eu.” O que, como
vimos no capítulo 2, é apoiado pela ciência: temos uma ligação física com
o mundo, ainda que não consigamos vê-la a olho nu. Em The Rights of
Nature, David R. Boyd explica a filosofia maori designada
whanaungatanga:  
 
“A whanaungatanga é na verdade qualquer coisa mais vasta do que a afinidade, no sentido
em que tem que ver não só com as relações entre os humanos vivos, mas também com uma
rede expansiva de relações entre pessoas (vivas e mortas), terra, água, flora e fauna e o
mundo espiritual dos atua (deuses) – todos unidos pela whakapapa (genealogia). Por outras
palavras, os Maori acreditam que todas as coisas no universo, vivas e mortas, animadas e
inanimadas, estão ligadas, desde Papatuanuku (a Terra) a Ranginui (o céu). Assim, todos os
elementos da natureza têm uma ligação.” 
 
Aquilo que o Tribunal Ambiental da Nova Zelândia reconheceu é essa
ligação básica, mas poderosa: as pessoas são feitas de água; bebem água;
e, no fim, “poluir a água é poluir as pessoas”. Mas ao contrário do
Amazonas colombiano, o Whanganui ficou sob a alçada de uma comissão
de representantes humanos para defenderem os seus direitos. Mais: se a
indústria quiser desviar o curso natural do rio, tal pode ser considerado
uma violação de direitos e os guardiães do rio podem pedir ao tribunal que
o defenda. 
Mas a ideia de que as florestas, montanhas, solo, rios e oceanos não são
mera propriedade humana não é aceite sem desafios. Embora mais de três
dezenas de comunidades norte-americanas tenham hoje legislação de
defesa dos direitos da natureza para proteger os seus ecossistemas locais,
as grandes empresas também contrataram advogados de topo para
defender os seus direitos à terra. 
Na Pensilvânia, está em curso há seis anos uma batalha do tipo David
contra Golias entre a comunidade de Grant Township e a Pennsylvania
General Energy, PGE. Em causa está a Pequena Bacia de Mahonig, onde
vivem peixes, moluscos, insetos aquáticos, um tipo específico de
salamandra e, o que é vital para os locais, é a fonte principal da água que
bebem. Em 2014, no entanto, quando se vivia no estado um boom da
exploração por fracking, a PGE conseguiu autorização para lançar os seus
resíduos hídricos em poços de injeção a grande profundidade. Para a
comunidade, cuja água para beber provém diretamente de poços
particulares, uma injeção diária de 150 mil litros de água proveniente de
fracking, tóxica e radioativa, é um risco que não está disposta a correr –
em especial quando se sabe que os sismos são uma consequência bem
documentada do processo de fracking. 
Em tribunal, advogados da PGE defenderam que era “absurda” e um
“número de circo” a ideia de que a Pequena Bacia de Mahonig devia ter
direitos. Argumentaram que uma bacia “não possui consciência,
inteligência, cognição, comunicabilidade ou atividade. A bacia não pode
decidir intervir, não pode aceitar ser representada ou trocar impressões
com um advogado enquanto cliente, e não pode ir a tribunal ou
testemunhar”. No dia 5 de janeiro de 2018, a juíza federal Susan Paradise
Baxter decidiu a favor da empresa, considerando “implausíveis” e
“irrazoáveis” as tentativas do Fundo Jurídico de Defesa Ambiental da
Comunidade e afirmando que uma abordagem deste tipo “resulta em
custos enormes para as partes e consome recursos judiciais limitados”. O
diretor executivo do fundo e a equipa jurídica foram multados em 52 mil
dólares, a serem pagos à PGE. Também foram remetidas outras medidas,
para consideração, ao gabinete disciplinar do Supremo Tribunal da
Pensilvânia, incluindo a suspensão de licenças de advogados e até a
expulsão da Ordem. 
Mas será que lutar pelos direitos da natureza é fazer pouco dos
tribunais? A ironia da situação está em que as empresas são tanto uma
construção artificial como um ecossistema vivo, ou ainda mais. Como
observa David Boyd: “Muitos dos mesmos argumentos [dos advogados da
PGE] usados para atacar a condição da bacia são igualmente aplicáveis ao
cliente. Uma empresa é uma ficção legal, sem consciência, inteligência ou
cognição. É incapaz de fazer o que os advogados da empresa sugerem que
um ecossistema deveria ser capaz, como prestar testemunho em tribunal. É
extraordinário que os advogados da PGE tenham descrito as bacias como
‘construções artificiais’ e ao mesmo tempo digam acreditar que as
empresas são pessoas reais dotadas de direitos.” 
Mas, em termos jurídicos, as empresas são “pessoas”. Têm quase os
mesmos direitos que as pessoas têm. Nos Estados Unidos, inclui igualdade
de proteção, liberdade religiosa, de expressão, de imprensa, de buscas e
apreensões sem mandado, o direito a não ser julgadas duas vezes pelo
mesmo crime, a advogado ou a um processo legal devido, para só
mencionar alguns. Como observou Adam Winkler no seu livro We the
Corporations, as empresas conseguiram os seus primeiros direitos em
1809, meio século antes de serem propostos direitos legais para os
afroamericanos ou para as mulheres. Mas o problema é este: enquanto as
empresas têm direitos, o facto de não possuírem um corpo físico impede
que sofram as mesmas penalizações que os humanos. Uma empresa pode
fazer mal, mas uma empresa não pode ir para a prisão. 
Ao mesmo tempo, os nossos primos biológicos mais próximos, os
chimpanzés, que partilham 98,8 por cento do nosso ADN, viram várias
vezes negado por tribunais norte-americanos o direito a possuírem
personalidade jurídica. Por isso, se está bem uma empresa ser uma pessoa,
porque é que não pode um animal ou um ecossistema atingir esse
estatuto? A resposta é que há muito tempo que olhamos para os animais
como tendo um estatuto de propriedade, um pouco acima, mas não muito,
do estatuto das coisas inanimadas. 
Mesmo assim, é possível amar aquilo de que somos donos. Há
seguramente criadores de gado, por exemplo, que mostram grande
cuidado e afeto pelos seus animais; nem todos os sujeitam à crueldade dos
grandes complexos produtores de carne ou leite. Mas isto não tem que ver
com a relação entre vaca e criador, porque o animal é na mesma
propriedade. Não é livre. 
E a propriedade, seja um objeto, uma vaca ou um escravo, não tem
direito de movimento sem o consentimento do dono. Não pode mudar as
condições em que se encontra mesmo que seja infeliz, porque não possui
direitos. O ponto-chave aqui é que quando chegamos aos seres vivos os
direitos são incompatíveis com propriedade. No fim de contas, se os rios e
os chimpanzés tiverem direitos, o que virá a seguir? O nosso bacon e os
nossos ovos exigirão liberdade? A nossa madeira e o nosso papel? Os
nossos sapatos de cabedal e as nossas camisolas de lã? Toda esta vida, ou
vida extinta, é definida como propriedade para fazermos dela o que
entendermos. Começar a questionar essa autoridade fundamental da nossa
propriedade de vida seria pôr em causa todo o nosso sistema de
pensamento. E isso é porque o pilar central de todo o nosso sistema
económico pode ser derrubado só por fazer uma pergunta muito simples: o
que é que significa exatamente “ser dono” de alguma coisa? 
 
Só porque pagámos por uma coisa não significa necessariamente que
sejamos donos dela. Martha Fuqua aprendeu essa lição em primeira mão
quando comprou por sete dólares uma caixa com objetos sortidos numa
feira de objetos em segunda mão na Virgínia Ocidental. A caixa continha
uma vaca de plástico, uma boneca em cabedal castanho e uma pintura a
óleo do tamanho de um guardanapo feita por um dos maiores artistas de
todos os tempos. Fuqua não sabia disso na altura, mas tratava-se de um
Renoir, e quando o mandou avaliar ficou a saber que o seu valor era
superior a 100 mil dólares. Mas quando se espalhou a história da
descoberta da pequena obra-prima, depressa surgiu outro potencial
proprietário a apresentar uma reivindicação: o Museu de Arte de
Baltimore assegurou que Paisagem nas Margens do Sena tinha sido
roubado em 1951 e era propriedade sua. Depois de ouvir a reivindicação
do museu, a companhia de seguros do fundo dos bombeiros também se
envolveu no caso. Na sequência do roubo tinham pago ao museu uma
compensação de 2.500 dólares e, por isso, eles próprios podiam
apresentar-se como legítimos proprietários da pintura. Neste caso, o objeto
mudara de mãos várias vezes, mas tinha três “proprietários” diferentes.
Então, quem era o dono? 
Um juiz decidiu que o proprietário legítimo do Renoir era o museu. O
caso precisou de um juiz, como sucede com muitas das disputas sobre
propriedade, porque raramente é simples a questão de quem é dono do
quê. Em alguns países, as questões judiciais sobre propriedade constituem
66 por cento dos casos anuais. As disputas são muito diversas e vão desde
quem tem os direitos sobre os emails de um homem morto a quem é dono
de genes humanos ou a quem é dono do cão da família. A questão de
quem é dono do quê é de uma importância crítica para nós, porque as
coisas que possuímos não definem só o nosso estatuto social, também nos
definem interiormente. 
O psicólogo William James foi o primeiro a argumentar que temos um
“impulso cego” para criar laços com as coisas, que os nossos objetos e
propriedade se tornam, de algum modo, uma parte das nossas identidades
materiais. Ou seja, as coisas a que chamo “minhas” vão para além do meu
corpo físico, prolongam-se para as minhas roupas, a minha família, a
minha casa, o meu jardim e o meu carro. Cada um de nós existe como
epicentro das nossas coisas e ainda que muitas delas sejam inanimadas
afetam as nossas emoções. Como James escreveu em 1890, em The
Principles of Psychology, “a identidade de um homem é a soma total de
tudo aquilo a que ele PODE chamar seu, não apenas o seu corpo e as suas
capacidades psíquicas, mas as suas roupas e a sua casa, a sua mulher e
crianças, os seus antepassados e amigos, a sua reputação e obras, as suas
terras e cavalos e barcos e contas bancárias. Todas estas coisas dão-lhe as
mesmas emoções. Se elas crescerem e prosperarem, ele sente-se
triunfante; se definharem e acabarem, sente-se abatido, não
necessariamente no mesmo grau para cada uma delas, mas de forma muito
semelhante em relação a todas.” 
Avancemos para o século XXI, onde vendedores e publicitários têm
perfeita consciência de que vemos produtos e coisas como extensões dos
nossos seres físicos. Vários estudos têm mostrado que o simples ato de
tocar num objeto é suficiente para despertar sentimentos de propriedade –
e é por isso que as pessoas são encorajadas a testar amostras, a
experimentar roupas ou a fazer test drives de automóveis. 
O processo desenrola-se com muita rapidez. Quando entramos numa
loja, sabemos perfeitamente que nenhum dos objetos que lá está nos
pertence, mas assim que chegamos à caixa e pagamos uma peça, o objeto
muda instantaneamente, não fisicamente, mas na nossa cabeça. Agora é
nosso. Como dizia Gail Wynand, o magnata dos jornais do romance The
Fountainhead, de Ayn Rand, “sou o homem mais ofensivamente
possessivo à face da Terra. Faço qualquer coisa às coisas. Deixem-me
pegar num cinzeiro numa loja de quinquilharia, pagá-lo e metê-lo no bolso
– e torna-se logo um cinzeiro especial, diferente que todos os que existem
no mundo, porque é meu”. 
Os psicólogos até têm um nome para este fenómeno. Chama-se “efeito
instantâneo de posse” e identifica o apego súbito que desenvolvemos por
um objeto logo que nos tornamos proprietários dele. Esse efeito de
propriedade até é visível no cérebro. Usando imagens obtidas por
ressonância magnética, cientistas descobriram que quando uma pessoa
pensa num objeto que é seu, por oposição a um objeto que pertence a
outra pessoa, o seu cortéx pré-frontal medial ilumina-se. É a mesma área
do cérebro associada ao “processamento autorreferencial” e é ativada
quando ouvimos o nosso nome, recordamos memórias autobiográficas ou
nos lembramos das nossas preferências pessoais. 
Os seres humanos não estão seguramente sozinhos quanto ao impulso
para proteger objetos e defender território; é sabido que outros animais
têm um entendimento rudimentar de troca e de propriedade. Os pássaros-
cetim, por exemplo, apanham pedaços de coisas coloridas para colocar
junto dos ninhos, os polvos lutam por causa de abrigos em cocos e os
babuínos no topo da hierarquia respeitam os direitos de propriedade de
outros membros do grupo e não lhes tirarão qualquer objeto, mesmo que
ele ou ela esteja numa posição socialmente inferior, se foi o primeiro a tê-
lo em seu poder. Parece por isso existir no reino animal alguma base
genética para a propriedade, mas absolutamente nada que se compare com
o impulso dos humanos para adquirir. Enquanto outros animais têm
territórios e abrigos, nós somos a única espécie com um tão grande
número e variedade de possessões. A maior parte dos animais não tem
nada; a maior parte dos humanos está presa a um local por causa das suas
“coisas”. 
As nossas coisas podem, no entanto, ser uma das explicações para o
facto de a nossa espécie ser tão poderosa. Enquanto éramos macacos nus a
correr pelo espaço aberto da savana, dependíamos do nosso cérebro
grande para sobreviver, e há 300 mil anos alguns dos primeiros objetos
que criámos eram armas como setas e lanças. Tornaram-se as nossas
primeiras possessões. Os caçadores terão desenvolvido uma ligação com
as suas melhores armas e tê-las-ão usado repetidamente, e dessa
perspetiva faz sentido que as nossas primeiras possessões fossem vitais
para a sobrevivência. 
À medida que a nossa espécie se tornou mais sedentária, cresceu o
impulso para acumular coisas. O arquélogo Gary Feinman defende que
armazenar a mais era uma forma de minimizar o risco, porque quando “as
pessoas se fixavam tornavam-se mais suscetíveis ao desastre ambiental”.
Com as famílias a armazenarem bens, as relações entre as pessoas foram
reforçadas através do comércio e a “troca de bens não necessários”
tornou-se uma forma de estreitar os laços com os vizinhos. 
Hoje, a propriedade é considerada uma caraterística humana universal.
Encontra-se em todas as culturas, embora haja variações culturais
significativas. Por isso, embora possa afirmar-se que a propriedade possui
raízes evolucionárias, muita coisa sobre ela, em especial as suas regras, é
aprendida e não inata. 
Começamos cedo a aprender essas regras. Como todos sabem, o
conceito de “meu” torna-se muito importante para os bebés. Psicólogos de
desenvolvimento descobriram que crianças com 18 meses conseguem
distinguir a diferença entre uma coisa que têm no momento e uma coisa
que é sua; e com dois anos são capazes de raciocinar e entender que uma
coisa é daquele que a teve em primeiro lugar. Esta noção de “primeira
posse”, como veremos, é uma das primeiras formas como os adultos
definem propriedade legal. 
Para começar, no entanto, devemos lembrar que a propriedade não
existe num vazio. Deixa de existir se não houver outra pessoa. De um
ponto de vista psicológico, “os objetos são reivindicados para os distinguir
de outra coisa que pertence a outra pessoa […] Sem a presença do outro,
desaparece a necessidade de colocar nos objetos o rótulo ‘é meu’ ou ‘não
é meu’”. Ou, para colocar as coisas de outro modo: se estiver sozinho
numa ilha deserta, tudo é seu e nada é seu; isso, muito simplesmente, não
terá importância nenhuma. Até aparecer alguém. Quando outra pessoa
entra em cena, aí começamos a reivindicar direitos sobre aquilo que nos
pertence. E é possível ver crianças com dois ou três anos a defenderem os
“direitos” da sua propriedade. Por exemplo, num estudo em que crianças
muito pequenas viam bonecos a atirar objetos para um caixote do lixo, não
se importavam se os bonecos atirassem objetos que eram deles, mas
protestavam com veemência se eles atirassem objetos que eram delas. O
reconhecimento do direito dos outros à propriedade começa também por
volta desta idade. Miúdos de dois anos viam sem protestar um boneco
atirar fora uma coisa que pertencesse a um terceiro, mas com três anos já
protestavam contra esta violação dos direitos de propriedade de alguém. 
Então, como é que as crianças decidem o que é seu e o que não é? A
posse em primeiro lugar é a regra mais simples, mas depende de como
essa posse foi alcançada. Num cenário de igualdade, com um objeto que
não pertence a ninguém, funciona a regra do jardim-escola: “Quem o
encontrou, fica com ele.” Shaylene Nancekivell, psicóloga cognitiva na
universidade de Michigan, observa que “é por isto que apanhar conchas
que estão numa praia pública é aceitável, [enquanto] pegar em conchas
que estão expostas para venda numa banquinha na praia já não é”. O
vendedor encontrou-as antes e tem o direito de as vender. Mas num
mundo em que a maior parte das coisas são compradas em transações
feitas em lojas, raramente saímos do nosso modo de piloto automático
para pensar em quem é dono do quê. Se começarmos a pensar nisso,
contudo, como os psicólogos de desenvolvimento têm feito, torna-se
evidente que “a propriedade não é uma ‘posse’ natural de objetos, mas sim
determinada por intenções humanas” e que “factos sobre quem é dono do
quê podem ser alterados por decisões apropriadas”. 
Na revista Cognition, Max Palamar e colegas seus exploraram esta ideia
de propriedade e intenção usando a experiência da pena que está no topo
de um cato. Num dos cenários, alguém chamado Mike quer a pena e usa
um pau para a soltar; ela desprende-se e flutua lentamente até ao solo.
Estudos sobre o raciocínio a propósito deste tipo de propriedade indicam
que a maior parte das pessoas vai considerar que Mike é o legítimo
proprietário da pena. Mas se Mike bater no cato por acidente e a pena cair
exatamente no momento em que Dave vai a passar, e se Dave a apanhar…
bem, aí as regras mudam. Dave torna-se o legitimo proprietário da pena
porque Mike teve menos responsabilidade direta em consegui-la. 
A história é outro fator para decidir quem é dono do quê. Como
observámos antes, com dois ou três anos a maior parte das crianças já tem
um entendimento básico da regra de propriedade. Para testar isto, foram
distribuídos carrinhos a miúdos e, ao fim de algum tempo a brincarem uns
com os outros, tinham de dizer ao investigador que carrinho era o seu. As
crianças de dois anos tinham dificuldade em fazê-lo, porque os carrinhos
pareciam todos iguais, mas as de três anos conseguiam identificar os seus,
porque seguiam com atenção todo o movimento de trocas entre o seu carro
e os dos outros miúdos. 
Mas a história e a posse em primeiro lugar não são as únicas formas
pelas quais determinamos quem é dono do quê. Se um objeto tem um
criador identificável, isso também afeta as nossas ideias de propriedade. A
posse em primeiro lugar, por exemplo, pode ser ultrapassada pelo
“investimento” criativo num objeto. Num estudo para avaliar este
comportamento, deram plasticina a crianças e disseram-lhes que podiam
ficar com ela depois de terminada a experiência. Mas durante o estudo
era-lhes pedido para trocarem a sua plasticina com a do investigador e
cada um moldaria um objeto. Para as crianças, quando o objeto, por
exemplo um dinossauro, ficava pronto, essa nova condição sobrepunha-se
à posse em primeiro lugar. Mesmo que a plasticina fosse emprestada, o
trabalho criativo investido pelo que a pedira emprestada convertia-o no
legítimo proprietário do objeto e, por causa disso, dava-se uma
transferência de propriedade. 
Uma troca voluntária de plasticina que não custou nada é uma coisa,
mas os direitos de propriedade são mais complexos se a matéria-prima for
considerada valiosa. Por exemplo, ouro. No que respeita a materiais
emprestados, os investigadores descobriram que existiam diferenças
significativas entre crianças e adultos. Se lhes emprestassem madeira para
fazer uma estátua, a maior parte dos miúdos de três e quatro anos pensava
que devia ficar com a estátua, enquanto a maioria dos adultos não. Mais
ainda, quanto maior fosse o valor dos materiais emprestados, menos
impacto teria o trabalho criativo sobre a propriedade. Se por exemplo
eram dados aos participantes no estudo dois materiais, ouro e papel,
mesmo que houvesse trabalho criativo, o produto acabado era considerado
pertença do dono do material se se tratasse de ouro, independentemente do
tempo que a outra pessoa tivesse gastado a concluir o produto acabado. 
Como estes casos ilustram, a propriedade é uma questão muito
escorregadia. Não há regras imutáveis, porque as vamos alterando
conforme as circunstâncias. Para dar um exemplo final, a posse em
primeiro lugar pode ser também ultrapassada por outro fator: o uso
frequente. 
Ori Friedman e os seus colegas investigadores queriam sabe se fatores
de cansaço podiam mudar as ideias das pessoas sobre a utilização de um
objeto. Numa série de estudos, adultos e crianças de três a sete anos
ouviram histórias diferentes sobre disputas de propriedade e foi-lhes
perguntado quem tinha direito a ficar com o objeto. Num dos cenários, um
rapaz está a usar um lápis para fazer um desenho para a mãe, mas o lápis
pertence a uma rapariga e ela quere-o de volta. Para as crianças, a
resposta, de forma esmagadora, foi a de que o lápis devia ser devolvido à
rapariga, funcionando a regra da posse em primeiro lugar. Já os adultos
deram prioridade ao uso do objeto nesse momento e mostraram-se
convencidos de que o rapaz devia ficar com ele para acabar a sua tarefa.
Mas quando o cenário mudou e foi dito aos participantes que o lápis era de
uma terceira parte, neutral, o professor, aí tanto crianças como adultos
disseram que o rapaz que estava a usar o lápis podia ficar com ele. 
É essencial investigar e perceber bem as nossas ideias sobre identidade,
porque no mundo real as nossas disputas sobre propriedade vão muito
para lá da discussão sobre lápis emprestados na escola. Numa escala
geopolítica, estes mesmíssimos argumentos são usados para discutir
direitos territoriais, fronteiras e propriedade histórica. E em regiões de
grau elevado de conflito, como entre Israel e a Palestina, ou no território
indígena no Canadá, ou na reivindicação histórica dos chineses ao Mar da
China do Sul, estas questões estão sempre a surgir. É-se dono da terra
porque se chegou lá em primeiro lugar? Ou porque se está a usar agora
essa terra? Ou porque se deu valor à terra, tornando-a “melhor”? 
O argumento da “melhoria” é a base dos modernos direitos de
propriedade e foi avançado pelo filósofo do século XVII John Locke. Em
1690, escreveu, no Second Treatise of Civil Government: “Quanta terra
um homem for capaz de lavrar, plantar, melhorar, cultivar e puder ter o
usufruto, quanta terra será sua propriedade.” Esta lógica baseava-se na
ideia de que, por sermos donos do nosso corpo, então, por extensão,
somos donos daquilo em que os nossos corpos trabalham: “Apesar da terra
e de todas as criaturas inferiores serem propriedade comum de toda a
humanidade, cada homem tem a propriedade da sua própria pessoa. Mais
ninguém, a não ser ele, detém direito algum sobre ela. O trabalho do seu
corpo e o labor das suas mãos são seus, há que reconhecê-lo. Seja o que
for que ele retire do estado em que encontrou a Natureza, e em que a
deixou, juntando-lhe o próprio trabalho e acrescentando-lhe qualquer
coisa que é sua, transformou-o por essa via em propriedade sua.” 
Já foi dito que esta passagem influenciou a trajetória da civilização
ocidental mais do que qualquer outra coisa já escrita. Serviu para definir
como é que as pessoas podiam ser donas da terra. Segundo Locke, é na
mistura entre trabalho e natureza que se dá a magia. E assim, como ele
sugere, uma pessoa que apanha uma maçã de uma árvore é a dona da
maçã. Hoje, contudo, embora as ideias de Locke sirvam como base
filosófica da moderna lei de propriedade, estamos a uma grande distância
desta noção simplista. Por exemplo, os apanhadores de fruta que
trabalham em quintas não são donos das maçãs que apanham; os frutos
pertencem à quinta ou à empresa que é dona da quinta. No supermercado,
a maçã pertence à loja até a pagarmos, e depois é nossa. O trabalho
adiciona, a cada passo, valor de mercado, e adiciona igualmente camadas
de complexidade à questão da propriedade. O que não tem discussão é a
suposição de que qualquer pessoa pode ser a proprietária. 
Nem sempre foi assim. Nos anos 1700, William Blackstone, famoso
pelos seus comentários sobre a lei comum inglesa, desafiou as nossas
ideias de propriedade. Argumentou que era uma coisa nada natural o facto
de uma pessoa poder reivindicar o direito sobre um objeto “com exclusão
total de qualquer outro indivíduo no universo”. Se olhássemos para a
história de um objeto, começaríamos a questionar a ideia dessa autoridade.
“Não existe base, na natureza ou na lei natural”, escreveu, “para que um
conjunto de palavras escritas num pergaminho devam transmitir o
domínio da terra; para que o filho deva ter o direito a excluir os seus
irmãos de um determinado pedaço de solo porque o seu pai, antes dele, o
tinha feito; ou porque o detentor de um campo particular, ou de uma joia,
ao jazer no seu leito de morte e já incapaz de manter a sua posse, tenha o
direito de dizer ao resto do mundo quem deve desfrutar do quê depois da
sua partida.” 
E, no entanto, no fundo, cada um de nós já sabe isto: quando
morrermos, não poderemos levar as nossas coisas. E isso é porque elas
não constituem uma extensão física dos nossos corpos; são apenas uma
extensão das nossas mentes. 
No templo de Kofuku-Ji, na província de Chiba, no Japão, desenrola-se
desde 2015 um ritual bizarro. Quando se faz uma visita no dia certo é
possível ver monges budistas a oficiarem funerais de cães-robô Sony.
Parece um espetáculo montado por alguém de relações públicas, mas é
uma cerimónia real. Há incenso a sério a pairar sobre os entes queridos
que partiram, um sacerdote genuíno canta sutras tradicionais e caem
lágrimas verdadeiras quando os donos dos robôs dizem o último adeus. 
O Aibo (diminutivo de robô de inteligência artificial) da Sony foi
concebido para “conhecer” o seu companheiro humano. Treinado para
ladrar, fazer truques e responder a comandos de voz, adaptava o seu
comportamento às preferências dos donos. Por isso, muitas pessoas
criaram uma ligação forte com as suas mascotes robóticas, ao ponto de,
em alguns casos, as considerarem membros da família. Mas em 2006,
depois de a Sony ter descontinuado o produto, os proprietários ficaram
sozinhos com os seus Aibo e foram surgindo problemas com o desgaste
das componentes mecânicas. Ao perceber a oportunidade, um antigo
empregado da Sony criou um “hospital de veteranos” para os robôs que
tinham começado a sofrer avarias. E quando um cão chega àquela fase em
que já não há nada a fazer, há outro caminho para ele, como “dador de
órgãos”. As partes ainda boas dos robôs em estado terminal são retiradas
para que possam ser instaladas em robôs que ainda são considerados
“vivos”. O funeral tornou-se assim uma parte importante da homenagem
devida aos robôs mortos antes de seguirem, depois de desmontados, para o
céu dos robôs. 
A cerimónia não é só para o hardware agora inútil. Como afirmou o
sacerdote chefe do serviço, Bungen Oi, “todas as coisas têm um pouco de
alma”. A crença, no animismo, de que os objetos têm uma alma, prevalece
nos hábitos japoneses e encontra-se também no xintoísmo, a principal
religião do país. Na região de Kanto, no dia 8 de fevereiro de cada ano,
realiza-se outra espécie de funeral, quando mulheres em quimono se
reúnem para celebrar o festival Hari-Kuyo. Em japonês, hari significa
“agulha” e kuyo é “memorial”. Basicamente, a cerimónia reúne costureiras
e fabricantes de quimonos para que possam enterrar as suas velhas agulhas
em tofu ou bolos de geleia, um suave último repouso ao fim de uma vida
de trabalho duro. 
Estes rituais fazem parte da crença mais generalizada de que rios,
pedras, árvores, lugares e animais possuem todos uma essência sagrada e
que, do mesmo modo, os objetos do dia a dia podem também ter um
espírito. Chaleiras de chá, bonecas e facas podem tornar-se possuidoras do
que é designado por tsukumogami, ou “espírito de objeto”. Por causa
disso, os objetos, sejam brinquedos, armas ou ferramentas, devem ser
reparados e cuidados, para não ofender os espíritos que os habitam. 
No Ocidente, pode parecer absurda a ideia de que os objetos têm
espírito, mas, afinal, essa mesma ideia não é assim tão fora do comum
entre os ocidentais. Há pessoas que dão nome aos seus carros e falam com
eles como se fossem seres racionais, tal como outras se irritam com os
seus computadores e fotocopiadoras. Um escritor pode ter uma caneta
“especial” e um jogador de basebol um taco “da sorte”. As pessoas
também adoram ícones religiosos e algumas até afirmam que há estátuas
capazes de chorar ou sangrar. E, claro, há os objetos queridos, como
alianças de casamento e outros itens com significado pessoal. Na verdade,
criou-se um negócio inteiro à volta de médiuns e de espíritas, com base na
crença de que é possível aceder a uma parte do espírito humano por
segurar num objeto que terá ficado com “qualquer coisa” da pessoa a
quem pertencia. 
Mas o que é realmente estranho é que, embora cheguemos a adorar
alguns objetos e a tratá-los como sagrados, deitamos fora a maior parte
das nossas coisas sem pensar duas vezes. Imagine por um instante uma
lista de tudo aquilo que possui neste momento: casa, carro, roupas,
sapatos, malas, livros, eletrodomésticos, joias, mobília, aparelhagem
eletrónica, lâmpadas, objetos de casa de banho, bugigangas, a comida que
está no frigorífico, a coleção de discos, mesmo tudo, até à última pastilha
elástica. Agora, tente imaginar uma segunda lista que inclua tudo aquilo
que já foi seu e tudo aquilo que já deitou fora. É impossível, porque ao
longo de uma vida a pessoa média é dona de milhões de coisas. Só que
não nos afeiçoamos a todas. “A minha tablete de chocolate” será comida e
o papel que a embrulhava deitado fora, do mesmo modo que “a minha
caneta” um dia destes vai ficar sem tinta e ela será atirada fora sem
cerimónias. 
As coisas que guardamos são coisas que usamos, ou coisas com valor
sentimental, como recordações, presentes e heranças, às quais estão
associadas memórias. Damos valor a estes objetos porque eles podem
transportar-nos a um tempo e a um lugar especial. É por isso que as
pessoas têm garagens cheias de coisas que adoram, mas que nunca usam.
Este género de armazenamento em massa é considerado normal numa
cultura material. 
A sociedade tem contudo um nome para pessoas que não são capazes de
se desfazer com facilidade de objetos descartáveis. São conhecidas como
acumuladoras. Mas a acumulação não é, como poderia pensar-se, uma
desordem que resulta de valores materialistas. Os acumuladores
desenvolvem ligações emocionais fortes com quase todos os objetos que
lhes pertencem. A sua dificuldade vem de dificuldades na tomada de
decisões, porque até objetos inúteis são olhados como uma extensão do
seu ser. Por isso, os acumuladores não sabem o que hão de guardar e deitar
fora. É uma extensão de um problema que todos nós temos até um certo
ponto: a ideia de que somos as nossas coisas. Dito isso, populações
normais podiam ser consideradas igualmente desviantes, levando em
conta o volume insano de coisas que deitamos fora todos os dias. 
Historicamente, nem todas as culturas têm mostrado a mesma
consideração (ou desconsideração) pelas coisas. E embora a acumulação
seja considerada universal, com casos documentados em sociedades em
todo o mundo, as abordagens à propriedade e ao materialismo podem ter
enormes diferenças a um nível cultural, mais do que individual. 
Cristóvão Colombo ficou genuinamente surpreendido com a forma
como o povo da ilha Hispaniola lidava com a questão da propriedade. Em
1493, numa carta para Espanha a pormenorizar a sua primeira viagem,
escreveu: “São tão simples e tão livres com aquilo que possuem que
ninguém conseguiria acreditar sem ver. Se lhes pedirmos qualquer coisa
nunca dirão que não; em vez disso, convidam a pessoa a partilhá-la e
mostram tanto amor como se estivessem a entregar os seus corações; e
ficam contentes com qualquer pequena coisa de qualquer tipo que lhes
seja dada, tenha ela valor ou não custe nada.” 
Também o capitão James Cook ficou espantado com o comportamento
dos nativos da Nova Gales do Sul, na Austrália, que não cobiçavam bens
materiais e se contentavam com o facto de a natureza lhes satisfazer as
necessidades básicas. Não tinham necessidade de “coisas supérfluas”. 
As sociedades capitalistas modernas olham para o papel dos bens de
uma forma completamente diferente. Na nossa era, o excesso é uma
necessidade. Isto porque a economia assenta no crescimento e o
crescimento assenta em produzir, consumir e deitar fora cada vez mais
coisas. Foi a isto que Hannah Arendt chamou em 1958 “economia do
desperdício”. Em A Condição Humana, escreveu: “As coisas têm de ser
quase devoradas e deitadas fora com a mesma rapidez com que
apareceram no mundo.” Por causa disso, o ciclo de ligação é curto. São na
verdade raros os objetos que atingirão a idade de cem anos dos espíritos
tsukumogami, já que os produtos modernos são produzidos e largados
num tempo muito mais curto. 
Também pode ser que tenhamos agora uma relação diferente com os
nossos objetos. É porque a maior parte das nossas coisas não são feitas à
mão. Falta-lhes por isso, segundo um estudo publicado no The Journal of
Marketing, o ingrediente essencial do “amor”. Valorizamos as coisas feitas
à mão, sabendo que houve tempo e esforço pessoais investidos na sua
criação. É por isso que adoramos as camisolas feitas à mão pelas nossas
avós ou os desenhos e objetos simples feitos pelos nossos filhos. E é
também por isso que pensamos que os objetos comerciais feitos à mão
“contêm e transmitem a ‘essência’ do artesão […] O cliente tem a
perceção de que o próprio produto feito à mão está impregnado de amor”. 
A grande maioria dos nossos bens é hoje fabricada por robôs e
máquinas. Cada prato, camisola ou telemóvel é um clone do seguinte. Por
não terem alma, torna-se mais fácil separar-nos deles. Além disso, como
bem sabe quem alguma vez tenha visto o programa de televisão How It’s
Made, a escala e a velocidade a que são produzidos os bens de consumo é
estonteante. Mas este modelo de produção também nos obriga a um ciclo
perpétuo. As máquinas não se cansam. Nunca se queixam de horas
extraordinárias. São rápidas, eficientes e precisas e batem qualquer ser
humano na sua capacidade infindável de produzir. 
O que nos deixa com esta conclusão: temos agora, para ir ao encontro
das necessidades de uma produtividade hiperintensa, um papel principal,
que é o de consumir. 
 
A cena caótica no Wal-Mart de Porter Ranch, na Califórnia, foi captada
num vídeo feito por um telemóvel. Às 22h10, multidões que esperavam
em fila começaram aos gritos e urros, esfregando desesperadas os olhos a
arder, enquanto tentavam fugir. Estavam à espera para comprar a última
Xbox 360. Mas quando começaram os empurrões agressivos, um “cliente
aborrecido” lançou um spray de gás pimenta. 
Se um extraterrestre viesse observar o nosso atual estado civilizacional,
poderia pensar que a espécie humana enlouqueceu no seu desejo de ter
coisas. Com o passar dos anos, os saldos da Black Friday tornaram-se
conhecidos por causa deste tipo de comportamentos, com autênticos
motins e pessoas a atropelarem-se, a insultarem-se e a lutarem umas com
as outras, na ânsia de comprar os últimos produtos eletrónicos e
eletrodomésticos. Há um site, blackfridaydeathcount.com, que mantém
um registo de baixas nestas escaramuças. No fim da Black Friday de
2018, o total ia em 12 mortos e 117 feridos. 
A verdade é que as escaramuças na Black Friday estão a esmorecer,
porque a febre das compras está a sair das grandes superfícies e a passar
para o online, onde o crescimento tem sido extraordinário. Em 2013, só a
Amazon vendeu 26,5 milhões de itens na Cyber Monday, o que
corresponde a 426 itens por segundo. Entretanto, este número foi
eclipsado na China por uma ocasião batizada como Dia dos Solteiros.
Aquilo que começou em 1993 como uma espécie de anti Dia dos
Namorados, promovido por um grupo de estudantes da universidade de
Nanjing, foi aproveitado em 2009 pelo gigante do comércio online
Alibaba e transformado numa alucinante operação de marketing
comercial. Em 2017, o Dia dos Solteiros da plataforma Alibaba atingiu
cinco mil milhões de dólares nos primeiros 15 minutos e chegou aos 25
mil milhões durante as primeiras vinte e quatro horas, o que corresponde a
256 mil compras por segundo. 
A explosão consumista, sendo saudável para a economia, é catastrófica
em consequências físicas. A Greenpeace Asia calculou que a loucura das
compras do Dia dos Solteiros em 2016, para além do que está associado
ao fabrico, embalagem e distribuição, terá resultado em tais emissões de
CO2, só na aquisição de roupas, que seriam precisas 2,58 milhões de
árvores para as absorver. 
Este consumismo descontrolado também cobra um preço entre os
humanos. Estamos, muito literalmente, a fazer compras até nos matarmos.
Um estudo recente de Steven Davis e de colegas da universidade da
Califórnia em Irvine, determinou que há 760 mil mortes anuais por
poluição atmosférica relacionadas diretamente com a produção de bens de
consumo. 
Vista de fora, é claro, a situação parece absurda. Por isso, vale a pena
perguntarmo-nos porque é que fazemos isto. E a resposta simples é que
acreditamos que ter coisas nos faz felizes. Mas a felicidade que retiramos
das coisas materiais é sempre temporária. A obsolescência planeada e a
necessidade de estar atualizado na moda e de manter o estatuto social
aprisionaram-nos como se fôssemos ratos a correr sem fim numa roda. 
Este conceito de “roda hedonista” foi avançado pela primeira vez pelos
psicólogos Philip Brickman e Donald Campbell para se referirem ao
processo em que os seres humanos sentem mudanças de humor súbitas
provocadas por elementos exteriores, mas rapidamente regressam a um
ponto de partida, ou linha base, em busca da felicidade. É por isso que
sentimos aquele entusiasmo inicial quando compramos um produto novo.
No seu livro Happy, Derren Brown escreveu:  
 
“Na altura em que escrevo isto, desejo a sexta encarnação do smartphone da Apple
Macintosh com acesso à Internet, mas sei que ele não me vai fazer realmente mais feliz. Ao
fim de um tempo, mais ou menos o tempo que me leva a explorar as suas novas caraterísticas
e a acostumar-me à sua forma e peso, sentirei por ele exatamente o mesmo que sinto pelo que
tenho agora. É evidente que a Apple sabe isto e continua a desenvolver novos modelos a um
ritmo tal que fará com que seja obviamente doloroso para mim não ser dono do mais recente
e melhor de todos, o que acrescenta ao processo um reforço negativo. Há o prazer do novo
modelo e o desprazer de saber que o meu não possui certas caraterísticas de que as outras
pessoas todas estão a desfrutar. Isto é tão patético.” 
 
Felicidade não é o mesmo que autoestima. Investigadores descobriram
que as pessoas podem ter uma autoestima elevada e ser infelizes ou serem
felizes e terem uma autoestima baixa. Talvez sem surpresa, estudos
determinaram que as redes sociais têm um efeito negativo sobre a
autoestima. À medida que as pessoas comparam e avaliam o seu estatuto
material com outros online, começam a sentir-se insatisfeitas com o lugar
que ocupam na hierarquia social. Por exemplo, a visualização de contas de
Instagram onde os utilizadores mostram os seus bens de luxo cria com
frequência uma comparação social negativa e contribui para diminuir a
autoestima de quem está a ver. 
Segundo Tim Kasser, que investiga há 30 anos a psicologia do
materialismo, “aquilo que a investigação tem mostrado, em literalmente
dezenas de estudos, é que, quanto mais as pessoas dão prioridade aos
valores materiais, menos felizes são, menos satisfeitas estão com as suas
vidas, menos energia e vitalidade sentem, menos probabilidade têm de
sentir emoções agradáveis como felicidade e contentamento e alegria,
mais deprimidas e angustiadas andam, mais emoções desagradáveis
sentem, como medo e raiva e tristeza, [e] é mais provável que se
entreguem ao consumo de substâncias como tabaco e álcool”. 
Estamos a esmagar os nossos próprios espíritos na busca de possuir
coisas melhores, mais coisas, coisas que ironicamente em breve
deixaremos de querer e deitaremos fora. A parte pior é que esta
dependência da aquisição de objetos tende a piorar quando os tempos se
tornam mais difíceis, porque, quando nos sentimos inseguros, ter qualquer
coisa de sólido a que nos agarrar torna-se um mecanismo para suportar o
que está a acontecer-nos. Os nossos bens dão-nos uma aparência de
controlo sobre o mundo. Dão-nos poder. Nós, a espécie fraca do macaco
nu, não usámos a força bruta, mas sim o nosso cérebro para dominar. E
fizemos isso com as nossas coisas. Tornámo-nos os mestres das coisas.
Coisas que nos tornaram mais fortes, mais rápidos, mais poderosos, mais
bem defendidos, mais eficientes e mais perigosos. 
No mundo moderno, este poder traduz-se em ação. Temos o poder de
comunicar uns com os outros à velocidade da luz e de voar à velocidade
do som. Individualmente, as nossas coisas dão-nos a liberdade para
viajarmos grandes distâncias. As nossas coisas poupam-nos tempo. Há
máquinas que lavam as nossas roupas e os nossos pratos. Basta carregar
num botão de uma máquina para triturar alimentos instantaneamente,
quando levaríamos meia hora se o fizéssemos à mão. As nossas coisas
também nos salvam do fardo do trabalho manual; há frotas de robôs que
fazem horas extraordinárias para montar os bens que produzimos em
massa. 
Dir-se-ia que temos quase tudo à nossa disposição no mundo moderno,
mas, até nos países prósperos – onde, em teoria, as pessoas têm acesso a
todo o tipo de bens de consumo –, muitos ainda têm uma sensação de
vazio; as pessoas sentem-se como se tivessem sido roubadas. Talvez
porque haja um preço real a pagar por adorarmos coisas. Segundo um
estudo da JWT, uma empresa de marketing de Nova Iorque, “a fama e a
fortuna substituíram a fé e a família como o núcleo do Sonho Americano”.
Mas este sonho é uma ilusão perigosa. No fim, dinheiro e propriedade são
símbolos de estatuto e os símbolos são apenas um sinal de felicidade, não
a sua essência. 
Ouve-se com frequência que a ganância está na raiz dos problemas do
mundo. Não é completamente verdade. Nós acreditamos que temos de ser
donos de coisas – um belo carro, uma casa magnífica, roupas na moda –
para sermos respeitados e apontados como bem-sucedidos. Pode atingir a
“boa vida”, diz-se, trabalhando muito e continuando a comprar. A regra do
jogo é essa. E por isso as pessoas endividam-se regularmente para
comprarem mais coisas. Essa dívida transforma-se em dinheiro, que por
sua vez vai parar aos mais ricos. Os ricos têm a capacidade para encontrar
buracos (das contas em offshores às isenções fiscais) que os tornam
melhores no jogo. E, por causa disso, o fosso entre ricos e pobres torna-se
mais extremo. 
Podemos pensar que ter coisas é a solução, mas é, de muitas maneiras, o
problema. E embora a propriedade pareça uma coisa natural, não quer
dizer que seja boa. A evolução criou todos os outros tipos de traços e
comportamentos “naturais” que agora são desajustados ou até criminosos.
Na verdade, uma forma de definir civilização é como o esforço é
partilhado para mitigar o perigo das respostas geradas pela evolução. 
Mas há outra questão na própria base da propriedade. E essa questão é
que, mesmo que a nossa espécie acredite cegamente que é dona do mundo,
isso não quer dizer que ele seja verdadeiramente nosso. 
11 
Revolução 
É essencial um novo tipo de pensamento se a humanidade  
quiser sobreviver e passar a níveis mais elevados. 
ALBERT EINSTEIN 

Na primavera de 2014, fiz as malas e viajei para o remoto arquipélago de


Lamu, ao largo da costa do Quénia, para iniciar a investigação para este
livro. Escolhi especificamente aquele local porque Lamu é uma relíquia
viva; é um lugar fora do tempo. Os burros ainda são o principal meio de
transporte na ilha, e há dhows que cruzam as águas brilhantes com as suas
velas triangulares bege, como há dois mil anos. Ao mergulhar noutra
realidade, esperei começar a questionar a minha própria realidade. 
Uma manhã, já para o fim da minha estada, a dona do hotel disse-me
que ia de barco a uma ilha próxima. Fazia isso de vez em quando, levando
sementes de embondeiro que tinham caído das suas árvores. Enquanto
conversávamos, olhei para os dois enormes embondeiros por cima de nós,
com os seus grandes troncos prateados. Pareciam guardas gigantes a
proteger-nos, com a sombra, do sol africano. Mas estas árvores eram ainda
jovens, teriam apenas cem ou 200 anos. Perguntei à dona do hotel porque
é que ela se preocupava em plantar árvores que nunca conseguiria ver
crescidas no seu tempo de vida. Respondeu-me que eram um presente para
as pessoas do futuro, para que um dia também pudessem sentar-se debaixo
de embondeiros gigantes e, simplesmente, admirá-los. 
Depois de ela se ter ido embora, olhei para cima e pensei em como
seriam poucas as pessoas que hoje questionariam o direito de ser dono de
qualquer coisa como uma árvore. Se está no teu terreno, é tua; pertence-te.
Podes deixá-la crescer ou cortá-la. Podes fazer o que quiseres porque és
dono dela. Mas nessa manhã, debaixo daquelas árvores africanas gigantes,
ocorreu-me como é estranho pensar que se pode ser dono de qualquer
coisa como um embondeiro. Como posso ser dona de uma vida que viverá
mais dois mil anos do que eu? Por comparação com o embondeiro, senti-
me uma borboleta efemérida. Nesse momento, pareceu-me totalmente
absurda a ideia de que aquela árvore pudesse ser minha. 
De regresso a Toronto, dei por mim a pensar de uma maneira
semelhante sobre a propriedade. A toda a minha volta, dizia-se que as
pessoas viviam numa “bolha imobiliária”. Mas ter uma casa é diferente de
ter uma árvore. Sim, algumas casas são investimentos, mas as nossas
primeiras casas são os nossos abrigos; não são opcionais, são uma
necessidade. À medida que ia pensando mais nisso, compreendi que temos
relações com as nossas casas, e quer elas sejam nossas ou as aluguemos (e
a maior parte das pessoas nem é dona da sua casa, o banco é que é) isso
não faz diferença para o sentimento de propriedade que temos. As pessoas
amam as suas casas. Cuidamos delas, seja pintando as paredes, aparando a
relva ou remodelando a cozinha. Algumas, como as nossas casas de
infância, ocupam um lugar significativo nos nossos corações. Mas será
que isso requer propriedade? Precisaremos de ser donos de uma coisa para
que ela faça parte de nós? 
Agora, olhando à volta, em minha casa, pode dizer-se o mesmo das
coisas que sinto como mais preciosas, como fotografias ou objetos que
herdei. Gosto deles porque funcionam como uma cadeia ininterrupta de
tempo, atravessam gerações e não têm preço. O relógio da minha avó, por
exemplo, não é capaz de fazer nenhuma das coisas que um relógio
moderno faz. Não consegue avaliar os meus exercícios de fitness, fazer
telefonemas ou receber emails. É um objeto querido não por causa daquilo
que faz, e continuaria a ser querido mesmo se deixasse de funcionar.
Regista-me o tempo de uma maneira diferente. É o portador físico de uma
memória. Afinal, se o perdesse, o que sucederia? A perda seria da minha
avó ou minha? Ou da próxima geração? 
Quando começamos a entender como olhamos o mundo através de uma
lente de propriedade, somos capazes de perceber como isso define tudo
sobre a nossa realidade. Está tão profundamente entrelaçada com o dia a
dia que parece a coisa mais natural do mundo e não a questionamos.
Afinal, todos nós, eu incluída, somos, até certo ponto, proprietários. Mas o
que significa realmente ser dono de uma coisa? A propriedade é uma
realidade intrínseca, fundamental, como um átomo? Ou é apenas uma
maneira de olhar as coisas? 
 
Temos olhos, mas isso não quer dizer que vejamos com clareza. Em
1951, Solomon Asch realizou uma experiência famosa para mostrar isto
mesmo. O estudo envolveu um teste de visão com 50 estudantes
universitários em Swarthmore, na Pensilvânia. Quando cada um entrava
na sala, sentava-se ao lado do que pensava serem mais sete estudantes; na
verdade, eram atores. 
Estes “estudantes” tinham uma tarefa: havia no lado esquerdo de um
quadro uma linha com um determinado comprimento, e eles tinham de
determinar qual era a linha que estava do lado direito, identificada como
A, B e C, que tinha o mesmo comprimento. O sujeito do teste não sabia
que os atores tinham recebido instruções para escolherem todos a mesma
linha, mas nunca a certa: ou a que era demasiado pequena ou a que era
demasiado grande. Era um engano. Por exemplo, na ilustração em baixo, o
grupo diria que a linha da esquerda correspondia à linha A. Uma resposta
que estava evidentemente errada. 
 

 
O estudo descobriu que, confrontados com as respostas erradas dadas
pelos outros participantes, 75 por cento dos estudantes submetidos ao teste
aceitaram pelo menos uma vez a escolha coletiva; ou seja, afirmaram ver
aquilo que os outros viam, ainda que a resposta estivesse errada. Entre os
que participaram num grupo de controlo, onde não havia atores, menos de
1 por cento deram a resposta errada. 
Numa tentativa para descobrir o que se passava no cérebro quando os
estudantes eram submetidos a esta experiência, investigadores da
universidade de Emory modificaram o teste de Asch colocando-os dentro
de uma máquina de ressonância magnética, para ver que partes do cérebro
eram ativadas durante a tarefa. Foi-lhes pedido que realizassem um teste
semelhante, mas em vez de linhas foram-lhes mostrados objetos em 3D. A
expetativa dos investigadores era a de que, se a aceitação do que os outros
diziam resultasse de um processo consciente de tomada de decisões, então
o córtex pré-frontal seria ativado, já que esta é a área do cérebro
relacionada com o planeamento, tomada de decisões e moderação do
comportamento social. Mas tiveram uma surpresa: os que respondiam por
conformidade com os outros mostravam atividade nas áreas parietal e
occipital do cérebro. É aqui que são processadas a informação sensorial e
a visão, o que mostrou aos investigadores que a conformidade não era
somente uma decisão, também estava a exercer sobre a visão uma
influência de perceção. Dito de outra maneira, a conformidade com a
opinião dos outros pode ter alterado a perceção. Para estas pessoas, não
era um caso de ver para crer, mas antes o contrário – crer para ver. 
A experiência de Asch sobre a conformidade tem sido muitas vezes
dada como exemplo ao longo dos anos, mas raramente é sublinhado um
aspeto do estudo: a frequência com que as pessoas se recusaram a
responder em conformidade. Sendo verdade que 75 por cento dos sujeitos
do estudo original seguiram a maioria pelo menos uma vez, também é
verdade que 95 por cento se “revoltaram” pelo menos uma vez e
mantiveram aquilo que viam. Mais ainda: 25 por cento recusaram sempre
mudar de opinião. 
Duzentos anos antes, David Hume tinha previsto mais ou menos esses
resultados. Na verdade, uma das perspetivas essenciais sobre o
comportamento humano que nos deixou foi sobre a nossa ânsia de
conformidade. E esta conformidade não é benigna; tem enormes
implicações políticas. Em 1741, no tratado Dos Primeiros Princípios do
Governo, Hume observou: 
 
“A força está sempre do lado dos governados, os governantes apoiam-se unicamente na
opinião. Por isso, é sobre a opinião que o governo assenta e esta máxima estende-se aos
governos mais despóticos e mais militares, bem como aos mais livres e mais populares.” 
 
Sendo assim, os tiranos dependem do apoio público, tanto como os
primeiros-ministros e presidentes eleitos. Mas, mesmo quando há uma
maioria, há sempre objetores. Na verdade, os 25 por cento que recusam a
conformidade, que se recusam a ser cegamente governados, são o motivo
pelo qual somos sujeitos a uma vigilância cada vez maior. 
E então a maioria? O que causa a sua conformidade? A investigação ao
cérebro tem mostrado que há um preço a pagar pelo pensamento
independente. No estudo de Asch com ressonância magnética, os sujeitos
que recusaram a conformidade mostraram sinais de atividade numa área
do cérebro onde outros sujeitos nada registaram: a amídala, a parte do
cérebro associada a decisões do tipo “lutar ou fugir”. Defender as nossas
crenças tem por isso um preço cognitivo, porque contrariar um consenso
pode representar conflito. Isso provoca angústia e aflição em animais
sociais como nós. No fim, fazer frente à maioria exige uma quantidade
razoável de coragem. 
 
Em grego antigo, a palavra “apocalipse” soa menos como um mau
presságio quando se conhece a sua etimologia. Na definição original, um
“apocalipse” é uma “descoberta” de conhecimento, um levantar do véu,
uma revelação. Na essência, é uma alvorada de clareza. Este género de
revelação é aquilo que filósofos, sábios e cientistas pedem há muito
tempo: que a humanidade esfregue os olhos, acorde e comece a ver as
coisas como elas realmente são, para reconhecer que aquilo a que
chamamos realidade é na verdade uma ilusão. 
Muitos grandes pensadores já escreveram sobre a bolha da realidade. Na
alegoria da caverna de Platão, os prisioneiros viam sombras projetadas
contra as paredes da caverna e passaram a acreditar que eram reais;
confundiram aparência e realidade. Os antigos textos indianos de Os
Upanishades continham o conceito de maya, o véu que obscurece o
mundo verdadeiro e eterno. E na filosofia budista o princípio fundador do
dharma, ou lei cósmica, conduz os praticantes numa demanda para verem
a realidade como ela é, em vez daquilo que nos apercebemos que é, e
compreenderam que, neste quadro maior, tudo está ligado. 
Para ver o mundo claramente, temos em primeiro lugar que nos dar
conta do véu; precisamos de reconhecer os nossos ângulos mortos. A
forma como passámos a perceber a realidade está tão profundamente
entranhada, encontra-se tão socialmente enraizada, geração após geração,
que perdemos de vista a forma como pensamos. Isto é importante, porque
aquilo que pensamos cria a realidade. O tempo, com os cinco dias de
trabalho por semana e o horário das nove às cinco do mundo “real”, existe
não por causa de alguma ordem temporal cósmica, mas porque nós o
inventámos, o mantemos e se tornou a realidade a que aderimos. 
Herdar uma realidade torna muito mais difícil vê-la como o que ela é.
Como Peter Berger e Thomas Luckmann escrevem em A Construção
Social da Realidade, “se uma pessoa afirma ‘É assim que as coisas se
fazem’, é frequente a pessoa acreditar nisso. Então, um mundo
institucional é experienciado como uma realidade objetiva. Tem uma
história que é anterior ao nascimento do indivíduo e não está acessível à
sua memória biográfica. Estava lá antes dele nascer e lá estará depois da
sua morte”. 
O nosso mundo construído tornou-se-nos tão real e querido que
esquecemos que aquilo a que chamamos realidade é um produto das
nossas mentes. Esta amnésia coletiva talvez não seja tão surpreendente se
pensarmos nas décadas que passámos a educar e a socializar os jovens.
Esperamos que os nossos jovens cresçam e se conformem como sujeitos
na experiência de Asch, para ver uma realidade que na verdade não está
lá. É irónico, pois, dizermos que as crianças vivem num mundo de faz de
conta, porque na verdade os adultos também vivem. A diferença é que as
crianças são capazes de nos dizer que o mundo delas é inventado,
enquanto os adultos não. 
O mundo de faz de conta é hoje tão poderoso que até o seu antecedente,
o mundo natural, se tornou seu refém. Como Yuval Noah Harari escreve
em Sapiens, no passado vivíamos numa realidade dual. “Por um lado, a
realidade objetiva dos rios, árvores e leões; e por outro lado a realidade
imaginada dos deuses, países e empresas. Com o tempo, a realidade
imaginada tornou-se cada vez mais poderosa, de forma que hoje a própria
sobrevivência dos rios, árvores e leões depende da misericórdia de
entidades imaginadas como deuses, países e empresas.” 
É com estas entidades fabricadas que legitimamos a nossa prerrogativa
sobre a natureza. Afinal, é isso que deuses, países e empresas fazem. Dão-
nos legitimidade. Apoiam a crença de que o Homo sapiens é dono do
mundo inteiro. 
Só uma espécie acredita que é dona do ar, dona da água e dona da terra.
Demos a nós próprios o direito de comprar e vender espaço e comprar e
vender tempo. Na verdade, a base da economia global é essa: a de que
podemos ser donos das próprias dimensões em que habitamos. Mas, ainda
para além disso, os humanos não só são donos do planeta como de toda a
vida que nele habita. Só a nossa espécie funciona com a convicção de que
temos o direito de comprar e vender outras espécies como nos apetecer.
Para nós, a própria vida é um bem. E com o ritmo hiperacelerado das
trocas comerciais, não é surpresa que a própria vida esteja agora a
desaparecer. 
Segundo o World Wildlife Fund, em 2020 teremos um impressionante
declínio de 67 por cento nas populações de vida selvagem em todo o
planeta, relativamente a 1970.142 Com as ameaças dos sistemas
alimentares e da agricultura, a perda de habitats e a exploração de
espécies, mais de metade da vida vertebrada – mais de metade dos nossos
mamíferos, aves e peixes selvagens – já desapareceu. 
Mas não são só os animais. Enquanto escrevo estas palavras, estou a ver
títulos de notícias que dão conta de um destino triste para os embondeiros.
Estes gigantes antigos, alguns dos quais andam por cá desde que o
Império Romano estava no seu auge, estão a morrer a um ritmo sem
precedentes. O botânico Adrian Patrut acredita que as alterações
climáticas são o culpado mais provável. Desde 1960, o número de
embondeiros em África caiu para metade. Segundo Patrut, que há 15 anos
faz datação de embondeiros por radiocarbono, chegou o momento de
colocarmos estas árvores na categoria das espécies “em perigo”. 
É simbólico que a “árvore da vida” de África esteja a morrer. Como o
meu amigo Rob Stewart, um ativista entretanto falecido, observou um dia:
“Em meados do século, se continuarmos na nossa trajetória atual,
estaremos perante um mundo sem cardumes, nem recifes de coral, nem
florestas tropicais, com concentrações de oxigénio em queda e nove mil
milhões de pessoas famintas e sedentas a lutarem pelo que resta […] No
tempo de vida de uma árvore [embondeiro], consumimos a maior parte do
nosso sistema de suporte de vida.” 
Esta visão negra do futuro instalou o medo até nos corações dos autores
da ficção científica mais distópica. Como observou sombriamente William
Gibson, poucas pessoas hoje pensam sequer em escrever sobre um futuro
que vá para lá de 2100. Numa entrevista à revista Vulture, Gibson afirmou:
“O que me parece mais sinistro é quão raramente vemos hoje a expressão
‘o século XXII’. Quase nunca.” 
Se queremos sobreviver e chegar ao século XXII, vamos precisar de um
novo modelo global. Temos de libertar-nos dos constrangimentos de
ideologias políticas passadas, sejam de esquerda ou de direita, porque
todas elas começam com a pergunta errada. Elas perguntam quem deve ter
o direito de ser dono do mundo e não se devemos sequer ter esse direito. 
 
Ouvimos muitas vezes dizer que é preciso combater o sistema ou que o
sistema está avariado. Mas o que é, exatamente, o “sistema”?143 Onde está
o sistema? 
O sistema, como tenho defendido neste livro, é o nosso sistema de
suporte de vida. É o sistema que construímos para não termos de depender
mais dos caprichos dos ciclos da natureza. É o sistema que nos torna a
espécie mais poderosa da Terra. E embora fosse fácil supor que o
propósito do nosso sistema fosse a sobrevivência da nossa espécie, não é.
Se fosse, então todos os seres humanos teriam alimentos e energia
suficientes e espaço e tempo suficientes para prosperar. Mas sabemos que
não é assim. A ironia está em que a nossa sobrevivência é apenas
acessória em relação ao objetivo do sistema: a propriedade. O verdadeiro
objetivo é simplesmente ser dono do máximo de coisas possível: ser dono
de tempo, de espaço, de alimentos, de energia, de tudo exceto do nosso
lixo. É este o modelo que conduz o mundo. Um sistema em que as dádivas
da natureza deixaram de ser grátis. E agora, para adquirir os seus bens,
temos de vender a coisa mais preciosa com que nascemos: o nosso tempo. 
Mas há, no entanto, outro fator crítico que nos escapa: onde é que está o
sistema? Não somos capazes de o ver porque ele existe nos nossos
ângulos mortos. É a natureza disfarçada. Hoje, se não conseguimos ver a
nossa ligação ao mundo natural é porque a maior parte dos nossos
produtos não se parecem nada com ele: um nugget de frango não parece
uma ave; o carvão não se parece com uma floresta antiga; e o fertilizante
não tem qualquer semelhança com o ar. A natureza foi transformada num
produto. Na verdade, todos os anos é transformada em biliões e triliões de
produtos. Estes alimentam a nossa população e os nossos apetites vorazes
e em expansão, o que nos leva a saquear estes “recursos” naturais a um
ritmo cada vez maior. Por causa disso, a economia cresce, mas a natureza
morre. E embora sejamos animais espertos, nenhum de nós podia ter
previsto a reviravolta no argumento. Nenhum de nós podia ter adivinhado
que, no fim, teremos de ser nós a desligar o nosso próprio sistema de
suporte de vida, e que, se não o fizermos, ele destruir-nos-á.144 
A ameaça é tão real como o sistema é real. Real no sentido em que,
parafraseando Philip K. Dick, os nossos problemas não vão desaparecer se
deixarmos simplesmente de acreditar neles. Mas os sistemas – por muito
sólidos que possam parecer – ainda são construídos sobre o nosso
pensamento coletivo, as nossas formas de ver o mundo. Sendo assim,
podem mudar, mas apenas se mudarmos o pensamento por trás deles.
Como Robert Pirsig escreveu em Zen e a Arte de Manutenção de
Motocicletas, “se uma fábrica for desmantelada, mas a lógica que a
produziu continuar de pé, então essa lógica acabará por produzir outra
fábrica. Se uma revolução destruir um governo, mas os padrões
sistemáticos de pensamento que produziram esse governo permanecerem
intactos, então esses padrões irão repetir-se”. 
Do que precisamos, com urgência, é de encontrar uma saída deste
labirinto de espelhos. E podemos encontrá-la com a ciência, porque a
ciência pode destruir velhas visões do mundo. Pode literalmente mudar o
mundo mudando a forma como o vemos. 
As grandes mentes da história eram pensadores rebeldes como Galileu,
Darwin e Einstein. Sabemos os nomes deles porque eram revolucionários
ousados e científicos que desafiavam a opinião da maioria e refizeram o
nosso entendimento do mundo. Somos os felizes herdeiros do seu
pensamento radical. Galileu provou que a Terra gira em volta do Sol e
sabemos agora que não nos encontramos no centro do universo. Darwin
uniu os pontos da vida, provando que os animais são nossos familiares,
que fazemos parte de uma longa evolução da vida, não separados, mas
antes ligados a todos os outros seres vivos. E Einstein deu a volta ao que
se sabia sobre as dimensões, provando que o espaço-tempo é relativo para
o observador e que não existe um tempo ou espaço absoluto, fixo. 
Estas grandes mudanças de pensamento dificilmente podiam resultar do
senso comum. Na verdade, estão contra aquilo que, com os nossos
sentidos, percebemos ser o mundo. Ao escrever sobre Carl Sagan, a crítica
literária Maria Popova também observou:  
 
“Navegamos pelo mundo através da nossa perceção de senso comum, mas essa perceção
cegou-nos repetidamente para a realidade. Tomámos por factos do universo as nossas
intuições sensoriais – durante milénios, tivemos ideias erradas sobre a forma da Terra, o seu
movimento e posição, porque ela parece plana, estática e no centro da ordem do cosmos.
Desconfiámos de processos e de fenómenos para além das fronteiras daquilo que somos
capazes de tocar e de sentir com os nossos sentidos limitados – desde a evolução, que se
desenrola em escalas de tempo demasiado vastas para ser visível no espaço de uma vida
humana, à mecânica quântica, que opera em escalas subatómicas impercetíveis e quase
inconcebíveis para o observador humano.” 
 
Os nossos sentidos dizem-nos que estamos separados do universo e do
ambiente e dos outros seres vivos. A ciência, contudo, apresenta provas de
que as nossas perceções físicas estão erradas. Esse é o grande dom da
ciência e dos cientistas: testam a realidade, são capazes de examinar os
nossos ângulos mortos com provas que nos dão uma visão mais clara e
mais objetiva do mundo. Os maiores cientistas de sempre são lembrados
por terem rebentado com a nossa bolha da realidade. 
Diz-se que é fácil saber uma coisa depois de ela ter acontecido e isso é
mais verdade na ciência do que noutra área qualquer, com velhas ideias
sobre a realidade a parecerem-nos agora absurdas. No seu livro pioneiro
The Structure of Scientific Revolutions, Thomas Kuhn, o físico formado
em Harvard, afirma ter encontrado a sua inspiração para escrever e depois
de estudar a obra de Aristóteles. Kuhn observou que o gigante intelectual
“parecia não só ignorar a mecânica, mas ser igualmente um cientista
bastante mau na área da física”. Mais ainda: “Sobre o movimento, em
particular, os seus escritos parecem-me cheios de enormes erros, tanto de
lógica como de observação.” 
A perspetiva essencial de Kuhn foi a de que um pensador brilhante
como Aristóteles parecia, pelos padrões modernos, um perfeito idiota.
Mas Aristóteles funcionava de acordo com um paradigma científico
estabelecido; as suas ideias eram moldadas por uma visão muito especial
do mundo. A epifania de Kuhn foi esta, e levou-o a criar o termo
“mudança de paradigma”: se, no passado, o conhecimento científico tinha
sido olhado como um processo lento, mas acumulativo, que se
encaminhava no sentido de uma maior compreensão da realidade física,
Kuhn mostrava que o conhecimento acontece, na verdade, através de
saltos gigantes e descontínuos. Ou, para usar uma analogia diferente, uma
lagarta não cresce até se tornar uma borboleta; entra numa fase de
crisálida, em que se dissolve numa sopa genética que evolui para um
inseto de aspeto muito diferente, mas que continua a ter uma memória do
seu ser anterior. 
Para Kuhn, as revoluções científicas são estas mudanças importantes de
pensamento. Mas também assinalou prontamente que os progressos
científicos não são como as ilusões de ótica da teoria da Gestalt em que,
por exemplo, a perceção que uma pessoa tem de uma imagem pode oscilar
entre duas coisas aparentemente diferentes. É uma mudança maior,
escreveu, do que uma mera ilusão: “As marcas no papel que antes eram
vistas como um pássaro passam a ser vistas como um antílope, ou vice-
versa. O paralelo pode ser enganador. Os cientistas não veem uma coisa
como outra coisa; simplesmente, veem-na.” Fazer essa distinção é muito
importante. Como nota Ian Hacking, o filósofo de ciência, “os cautelosos
dirão que a visão que cada um tem do mundo muda, mas o mundo
permanece o mesmo. Kuhn queria dizer algo bem mais interessante.
Depois de uma revolução, no campo que foi alterado, os cientistas
trabalham num mundo diferente”. 
Nós também vivemos num mundo diferente devido a estas revoluções
científicas. As nossas mentes coletivas têm mudado por causa daquilo que
temos aprendido. Embora haja, está claro, aqueles que recusam ver o que
a ciência vê, que confiam apenas nos seus sentidos humanos: os que
acreditam que a Terra é plana e os criacionistas que esperam todos os
frutos do mundo moderno enquanto se recusam a abandonar crenças que
são obsoletas há muito tempo. 
Os maiores pensadores da humanidade são, contudo, aqueles que
alargam as fronteiras da visão; são visionários no mais verdadeiro sentido
da palavra, porque veem o que é invisível para o resto de nós. Para
Newton, foi a força invisível da gravidade; para Van Leeuwenhoek foram
os animálculos invisíveis; para Copérnico e Galileu foi o movimento
invisível da nossa Terra imóvel à volta do Sol. Como Kuhn tinha noção,
os cientistas trabalham regularmente com “entidades teóricas, tais como
eletrões, [observando coisas] para as quais não é possível apontar”;
trabalham regularmente num mundo que é invisível. 
Por causa disso, há muitas vezes um fosso entre o que a ciência vê e o
que o laico entende. Com acesso a ferramentas tecnológicas modernas,
microscópios eletrónicos, espectrómetros de massa e máquinas de
ressonância magnética, os cientistas conseguem ver aquilo que o resto de
nós não consegue, e isto, além de uma especialização muito elevada,
resulta num significativo fosso de conhecimento entre os cientistas e o
público. Numa sondagem recente efetuada pelo Pew Research Center e
pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), uma
maioria de norte-americanos, 79 por cento, concordava que os cientistas e
o conhecimento científico não têm preço, mas inquéritos semelhantes têm
mostrado que um número significativo de pessoas não recorre à ciência
para sustentar os seus pontos de vista. Por exemplo, numa sondagem de
2013, apenas 33 por cento do público em geral acreditava que as
alterações climáticas eram um problema grave, em comparação com 77
por cento dos cientistas da AAAS que o afirmava, uma abismal diferença
de 44 pontos percentuais.145 Outra razão para a grande diferença tem que
ver com a forma como a ciência é comunicada ao público. Aqui, a
linguagem pode ter um efeito significativo. Quando os cientistas afirmam
que existe “incerteza” quanto a uma consequência, o público tende a
pensar que isso significa que não se sabe o suficiente, quando uma melhor
tradução do termo, tal como é usado cientificamente, seria “amplitude”.
Do mesmo modo, quando os cientistas falam de “retornos positivos”
quando se discutem alterações climáticas, as pessoas tendem a pensar num
bom resultado, ou em qualquer coisa de positivo, quando na prática a
expressão se refere a um ciclo que se alimenta a si próprio. 
As grandes ideias também levam tempo a transmitir, porque as pessoas
são teimosas em relação àquilo em que acreditam. Passado um século
sobre a morte de Copérnico, as suas ideias ousadas ainda tinham poucos
seguidores. E embora as provas inovadoras de Newton estivessem bem
documentadas nos seus Mathematical Principles of Natural Philosophy,
teve de decorrer meio século até as suas ideias serem geralmente aceites.
O vencedor do Nobel da Física, Max Planck, também lamentou que “uma
nova verdade científica não triunfe por convencer os seus adversários e
fazer com que vejam a luz, mas antes porque os seus adversários acabam
por morrer e cresce uma nova geração que a conhece”. 
Embora Planck tivesse sem dúvida razão, não temos o tempo de uma
geração para descobrir isto. E Planck não teve a sorte de viver no mundo
de hoje, todo conectado e a alta velocidade, onde temos a possibilidade de
ler, partilhar e comunicar novas ideias uns com os outros
instantaneamente. 
 
Desde 1972, apenas 24 pessoas ultrapassaram a órbita terrestre baixa e
viram o planeta como objeto no espaço. Esse número aumentou com as
missões do vaivém espacial da NASA, em conjunto com as expedições à
Estação Espacial Internacional e às estações Tiangong da China, mas, de
qualquer modo, apenas pouco mais de 500 pessoas tiveram o privilégio de
ver a Terra a partir do espaço. Ou, por outros números: apenas 0,0000072
por cento da população humana usufruiu dessa visão esplendorosa. 
Entre aqueles que tiveram esse privilégio, alguns referem uma mudança
de perspetiva radical. Até tem um nome, o “overview effect”, o efeito
panorâmico, uma “consciência espacial” que provoca uma mudança
profunda de pensamento e permite aos astronautas olharem de uma nova
forma para o seu lar terreno. Médicos que analisaram astronautas de
regresso à Terra afirmaram que “a muitos deles, isso deu-lhes uma atitude
especial sobre eles mesmos e a sua relação com os outros. Muitos
tornaram-se mais conscientes da própria Terra, todos eles passaram a ter
uma nova perspetiva da ordem do universo. E aqueles que estão próximos
deles desenvolveram o mesmo tipo de reações, mesmo sem lá terem ido”.
Ao contrário de nós, os homens e mulheres da Estação Espacial
Internacional observam o Sol a nascer 16 vezes por dia e a pôr-se outras
tantas. Mas o que é ainda mais incrível é que, quando olham para baixo,
os nossos relógios e fronteiras terrestres perdem o significado, mesmo que
a estação esteja somente a 400 quilómetros de distância. 
Os astronautas também assistem literalmente às revoluções do nosso
planeta. Veem-no a girar sob os seus pés e os seus olhos captam a
magnitude da sua beleza, tal como a escala da sua destruição. Numa
revolução da Terra, conseguem testemunhar a desflorestação, as secas, os
incêndios florestais, as calotes polares a derreter, os furacões e a poluição.
A partir do espaço, a pegada humana na Terra não é uma coisa abstrata.
Não são dados. É visível. 
A partir do espaço, até a bolha é real. Pode ser vista como a curva azul
esbranquiçada que nos protege das radiações do espaço. Conhecida como
atmosfera, é a bolha que protege toda a vida na Terra. Mas a bolha é
também uma armadilha. E, como nos dizem os cientistas, o ritmo a que o
CO2 aumenta na atmosfera está a acelerar, e são as emissões destes gases
que mantêm o calor, na maior parte causadas pelos humanos, as
responsáveis pelo aquecimento global. 
Mas não é preciso uma epifania precipitada pelo espaço para termos
noção daquilo que estamos a fazer à nossa casa. E embora alguns sintam o
efeito panorâmico, na realidade é um fenómeno que muitos astronautas
não sentem. Como o astronauta Charles Hadfield me contou, não é a visão
de cúpula a partir da Estação Espacial Internacional que altera a
perspetiva, mas sim os próprios pensamentos e experiência de vida. Por
outras palavras, não é preciso ir ao espaço para ver o mundo de uma
maneira diferente. É possível vê-lo de uma maneira nova a partir daqui
mesmo. 
 
Quando nos transformamos, transformamos o mundo. Quando
transformamos o mundo, transformamo-nos a nós. Como Joseph
Campbell explicou no seu livro O Herói de Mil Faces, este é um tema que
atravessa os tempos, em muitas partes do mundo. É a história universal da
viagem do herói e está na base dos épicos mais importantes, dos mitos da
antiga Grécia aos blockbusters de Hollywood como Guerra das Estrelas,
O Senhor dos Anéis ou The Matrix.  
No essencial, a jornada do herói desenrola-se num ciclo, ou numa
revolução única. Começa com o herói a viver a sua vida num mundo banal
até que um dia é virado de pernas ao ar, quando descobre que esse mundo,
que ele tinha por garantido, mudou de repente. Vê-se num “mundo
especial, não familiar” e tem de pôr de parte o status quo, ir em busca de
um novo conhecimento. Este conhecimento é utilizado para combater as
provações e desafios que o herói vai enfrentar quando o seu estilo de vida
normal é cada vez mais ameaçado. A certa altura, tudo pode parecer
perdido e a derrota inevitável, mas depois, nos momentos finais, surge
uma nova perspetiva de poder revelador, permitindo que o herói vença e
faça um regresso triunfal. A seguir, o herói dirige-se a casa, agora já
portador de uma nova perspetiva. E embora visto de fora o mundo possa
parecer o mesmo, para o herói ele mudou completamente. 
É quase como se estas históricas épicas nos tenham estado a preparar
para este momento específico. Chegámos a uma altura em que cada um de
nós deve erguer-se à altura dos desafios que nos confrontam. É tempo de
nós mudarmos. E embora a maior parte das pessoas ainda viva no “mundo
normal”, para aqueles que são capazes de ver é evidente que o caos
iminente não está muito distante. Na verdade, já estão a aparecer as fendas
na nossa normalidade. Os cientistas dizem-nos que estamos à beira de
mudanças devastadoras e que o mundo em que vivemos agora em breve
estará cercado. Mais ainda: se não formos capazes de responder, teremos
de enfrentar nas próximas décadas não apenas desastres localizados, mas
catástrofes civilizacionais. 
Por outro lado, é praticamente uma piada cósmica que estejamos sequer
aqui para enfrentar este momento. Porque, sejamos francos, as hipóteses
contra nós são imensas. Como Stephen Hawking assinalou em Breve
História do Tempo, a existência de vida na Terra exigia condições
perfeitas implausíveis no universo: “Se o ritmo de expansão um segundo
depois do Big Bang tivesse sido mais pequeno apenas numa parte em cem
mil milhões de milhões, teria entrado em colapso antes de atingir a sua
dimensão atual.” Na mesma linha, o biólogo Ken Miller escreveu: “Se g
[constante gravitacional] fosse mais pequena, o pó do Big Bang teria
simplesmente continuado a expandir-se, nunca coalescendo em galáxias,
estrelas, planetas – ou em nós. O valor da constante gravitacional é o
precisamente certo para a existência de vida. Se fosse um pouco maior, o
universo teria entrado em colapso antes de podermos evoluir; se fosse um
pouco mais pequeno, o planeta em que nos encontramos nunca se teria
formado.” 
Estes são apenas dois exemplos de mais de 200 parâmetros físicos no
sistema solar e no universo que precisavam de ser quase perfeitos para que
a vida tivesse uma hipótese de evoluir. Mas as hipóteses contra a
existência de cada um de nós ainda são mais elevadas. 
Ali Binazir, da universidade de Cambridge, decidiu calcular as
probabilidades de qualquer um de nós nascer. Combinando as hipóteses de
os nossos pais se encontrarem (uma em 20 mil) e de ficarem juntos para
nos conceber (uma em dois mil), as probabilidades básicas de nascimento
começam em um para 40 milhões. Mas isso é antes de se contabilizarem
as probabilidades biológicas. Com a nossa mãe a produzir mais de cem
mil óvulos durante o seu tempo de vida e o nosso pai a produzir mais de
quatro biliões de espermatozoides, as probabilidades de cada um de nós,
especificamente, nascer, são de cerca de um em 400 triliões. 
Mas é preciso olhar ainda mais para trás dos nossos pais, porque
pertencemos a uma cadeia ininterrupta de linhagem familiar que remonta a
150 mil gerações humanas. Binazir calcula que estas probabilidades
andem na ordem de 1 em 1045.000, um número demasiado longo para
escrever na totalidade nesta página – ou até neste capítulo. Na verdade, é
um número “não só maior do que todas as partículas do universo – é
maior do que todas as partículas do universo se cada partícula fosse em si
mesma um universo”. Pondo isto em perspetiva, a probabilidade da
existência de cada um de nós é equivalente à “probabilidade de dois
milhões de pessoas se juntarem… para cada uma jogar aos dados com um
dado de um bilião de lados. Todas lançam os dados e a todas sai o mesmo
número”. Ou seja: “As probabilidades de cada um de nós existir são
basicamente zero.” 
Pensem nisso. No grande esquema da realidade, chegámos à Terra, ao
lugar certo, na altura certa, para aparecer exatamente na véspera do
apocalipse planetário? 
Realmente, é demasiado perfeito. Nem Hollywood seria capaz de
imaginar um argumento melhor. E você, o herói desta história, não
conseguiria encontrar-se no meio de uma narrativa mais épica, invulgar ou
extraordinária. 

142
“Populações de animais vertebrados – como mamíferos, aves e peixes – caíram em 58 por cento
entre 1970 e 2012.”

143
Segundo Donella Meadows, uma pioneira em pensamento de sistemas, um sistema pode ser
definido como “um conjunto de coisas – pessoas, células, moléculas, o que seja – que estão
interligadas de tal forma que, com o tempo, produzem o seu próprio padrão de comportamento”. 

144
Numa carta intitulada “Aviso de Cientistas de Todo o Mundo à Humanidade”, mais de 1.500
cientistas de topo e laureados com o Nobel assinam o seguinte aviso: “Os seres humanos e o mundo
natural estão em rota de colisão […] Se não forem corrigidas, muitas das nossas práticas atuais
colocam em grave risco o futuro que desejamos para a sociedade humana e para os reinos animal e
vegetal, e podem alterar de tal forma o mundo em que vivemos que se torne impossível sustentar a
vida tal como a conhecemos.”

145
A percentagem de público que afirma que o aquecimento global é um problema muito grave tem
flutuado nas sondagens da Pew Research entre o ponto mais baixo de 32 por cento em 2010 e o
máximo de 47 por cento em 2009. 
Agradecimentos 

Escrever um livro é um processo solitário, mas não é uma coisa que se


possa fazer sozinho. Em primeiro lugar, estou em dívida para com o meu
brilhante editor, Nick Garrison. Ele, em conjunto com o meu incansável
agente Rick Broadhead, foram os primeiros a acreditar neste livro.
Obrigado a ambos pela vossa sabedoria, excelência, conselhos e gentileza.
Também gostaria de agradecer a toda a equipa da Penguin Random House
Canada, especificamente a: Kristin Cochrane e Nicole Winstanley, Kara
Savoy, Tonia Addison, Paisley McNab e Scott Loomer, e ao meu
fantástico copy editor Alex Schultz. Sendo este o meu primeiro livro, todo
o apoio deles merece o meu profundo agradecimento. 
Estou também muito grata aos cientistas, académicos, jornalistas,
investigadores e amigos que partilharam o seu tempo e as suas
competências. Os meus agradecimentos a Mark Abbott, Nobu Adilman,
Malcolm Clench, Tim Cockerill, Biella Coleman, Martin Fowler, Jonas
Frisén, Michael Gillard, David Grimm, Peter Jakobs, Naomi Klein, Arthur
e Marilouise Kroker, Jo-Anne McArthur, Alan Nazerian, Dan e Shelby
Riskin, Bob Rutledge, Joel Solomon, Jan Sorgenfrei, Nigel J.T. Smith,
David Suzuki, Astra Taylor e o WWF Canadá. E um agradecimento
especial ao meu amigo Jay James. 
Ao longo de uma década, tive a felicidade de trabalhar no Discovery
Canada. Os meus agradecimentos vão para todos os colegas da
CTV/Discover, mas em especial para Seonaid Eggett, Kelly McKeown,
John Morrison, Agatha Rachpaul e Ken Shaw pelo seu apoio. 
Para o coletivo Black Sheep, que me inspira, obrigado. E para os meus
amigos mais próximos (vocês sabem quem são – e porque, para respeitar a
privacidade, não vos nomeio), adoro-vos. McLean Greaves e Rob Stewart,
vocês estão no meu coração, sempre. 
Finalmente, este livro é para a minha família. Pela paciência, pelo apoio
sem fim, pelo amor e por ser a maior fonte da minha felicidade. Devo-vos
tudo e ao mesmo tempo nada, porque sempre me ensinaram que as
dádivas mais preciosas na vida são grátis. 
 
 
 
 
Pode encontrar uma lista de referências online: 
https://randomhouse.app.box.com/v/Reality-Bubble-References 

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