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ÂNGULOS MORTOS
BIOLÓGICOS
Isto tem uma consequência. À medida que fomos deliberadamente
criando animais maiores para nos servirem de alimento, o nosso apetite
também cresceu. Em 1960, o norte-americano médio comia anualmente
12,7 quilos de frango, e hoje esse número é de 40,8 quilos, mais do
triplo.25 Não é surpresa nenhuma que, enquanto beneficiários de toda esta
carne barata, os humanos também tenham começado a mudar de tamanho.
Nos últimos 150 anos, o que é, em termos relativos, um período curto, a
altura humana aumentou extraordinariamente. Nos países industrializados,
onde há abundância de alimentos, crescemos dez centímetros. E não nos
expandimos apenas verticalmente, mas também horizontalmente – de
modo que todos os países da Terra viram subir as suas taxas de
obesidade.26 No total, considera-se que 2.200 milhões de pessoas em todo
o mundo têm peso a mais, ou são obesas, e os adultos têm uma
probabilidade três vezes maior de serem obesos do que tinham em 1975.
Hoje, no mundo inteiro, os animais selvagens estão a diminuir de
tamanho, mas os seres humanos e os seus animais domesticados estão a
insuflar.
Galileu foi a primeira pessoa no mundo a ter uma noção da escala
colossal da realidade.27 Conhecido hoje como o “Pai da Ciência”, não só
foi o primeiro a desbravar os céus com um telescópio, como foi o primeiro
a espreitar por um microscópio e a documentar a humilde pulga. Galileu
teve a sorte de viver num tempo em que o fabrico de vidro fazia
progressos rápidos, em especial a arte de fazer óculos. Então, como agora,
as pessoas por volta dos 40 anos eram afetadas por presbiopia, ou seja, por
causa do envelhecimento, o globo ocular perde flexibilidade, tornando
mais difícil, por exemplo, ler. Na Holanda, os mestres vidreiros tinham-se
especializado em fabricar lentes para óculos, e foram eles os criadores dos
primeiros instrumentos rudimentares que nos permitiram observar escalas
até então nunca vistas.
O objetivo dos fabricantes de lentes pode ter sido melhorar uma visão
deficiente, mas sem querer fizeram muito mais do que isso. Quando
ampliaram a nossa visão, revelaram que a humanidade tinha estado
inconsciente de duas escalas imensas que coexistiam secretamente com a
sua própria escala. Os mundos macro e micro tornavam-se visíveis, e com
esta nova e melhorada capacidade de visão veio a compreensão de que não
habitamos só uma realidade, mas sim três.
Pela primeira vez na história, éramos capazes de prolongar os nossos
sentidos humanos. E, por causa disso, os primeiros microscópios e
telescópios eram considerados quase invenções mágicas. O fabrico de
óculos era um negócio de grande concorrência e cheio de segredos, de tal
modo que ainda há discussão sobre as patentes destas primeiras invenções.
A conceção dos primeiros microscópios simples e compostos, no entanto,
é geralmente atribuída ao fabricante de óculos Zacharias Janssen, que
começou a desenvolver as suas novas ferramentas em 1590; a primeira
patente do telescópio foi apresentada 18 anos depois, em 1608, pelo
mestre fabricante de lentes e de óculos Hans Lippershey.28
Galileu era um cientista e não um fabricante de óculos, mas assim que
dedicou o seu génio a analisar como eles eram feitos, conseguiu logo
melhorá-los. Em 1609, engendrou um aparelho a que chamou occhiolino,
ou “pequeno olho”, um microscópio capaz de ampliar até 30 vezes, ou
seja, dez vezes mais do que a criação de Janssen. E nesse mesmo ano
construiu o seu primeiro telescópio, uma luneta que rivalizava com o
invento de Lippershey. Em agosto de 1609 até o ultrapassou, com um
novo protótipo de telescópio, um instrumento que ampliava oito vezes e
que apresentou ao senado veneziano. E em outubro ou novembro já tinha
construído um telescópio capaz de ampliar 20 vezes. Foi com ele que
apontou aos céus.
A visão humana pode ser limitada, mas é incrível pensar naquilo que o
olho humano é capaz de ver mesmo sem a ajuda de equipamento. Numa
noite límpida, uma pessoa com boa visão pode detetar o tremeluzir de uma
única chama de vela a 2.760 metros.29 Mas, dependendo do tamanho de
um objeto, ou do seu brilho, somos na verdade capazes de ver muito mais
longe do que isso. A Lua, por exemplo, está a 385 mil quilómetros de
distância, e o nosso Sol é tão brilhante que é capaz de nos cegar mesmo a
uma distância de 150 milhões de quilómetros. E qual é o maior objeto que
somos capazes de ver sem auxílio de um telescópio? É Saturno, que se
encontra a 1.500 milhões de quilómetros. Até somos capazes de ver uma
galáxia para lá da nossa: Andrómeda, que brilha com a luz de um bilião de
estrelas. Cintila como uma vela a 2,5 milhões de anos-luz, ou 25 triliões
de quilómetros.
E tudo isto está incluído por defeito na nossa visão básica, que
avaliamos ao olhar para uma pirâmide de letras negras conhecida como
tabela de Snellen. Boa capacidade de visão – ou aquilo a que também se
chama visão 20/20 – é quando somos capazes de enunciar corretamente as
letras pequeninas na oitava linha da tabela. Mesmo em tempos antigos,
uma boa visão era altamente valorizada. Não é preciso dizer que, na
escolha dos melhores guerreiros e caçadores, era uma caraterística crucial
para eliminar aqueles que não eram capazes de distinguir o inimigo ou a
presa. Mas os nossos antepassados tinham um teste de visão bem
diferente, que não era feito no consultório do oftalmologista, mas ao ar
livre, de noite, sob o manto das estrelas.
O asterismo conhecido, entre outras designações, como Papagaio de
Papel fica na constelação da Ursa Maior. Consiste em sete pontos de luz e
forma no céu aquilo que parece ser uma concha gigante. Fixando a
segunda estrela a contar da esquerda na pega, temos Mizar, que brilha a 78
anos-luz de distância. Mas quase em coincidência com Mizar está uma
estrela mais ténue, três anos-luz atrás dela. Chamamos-lhe Alcor, mas para
os astrónomos sufistas era conhecida como Al-Suha, ou “a esquecida”.
Para o antigo exército persa – e, segundo alguns, para os índios norte-
americanos, do outro lado do mundo –, Alcor era a escala de Snellen da
natureza: ou seja, a capacidade para distinguir estas estrelas duplas
funcionava como o teste para avaliar uma visão perfeita.30
Sendo uma boa visão tão valorizada pelos exércitos, não surpreendeu
que o exército holandês referenciasse e adotasse de imediato a luneta de
Lippershey. Galileu também encontrou potencialidades comerciais no seu
telescópio e procurou vendê-lo aos venezianos. “O poder do meu
canocchiale [telescópio] para mostrar objetos distantes tão claramente
como se estivessem próximos dá-nos uma vantagem inestimável em
qualquer ação militar em terra ou no mar”, assegurou ao Doge. “No mar,
seremos capazes de ver as bandeiras deles duas horas antes de eles nos
poderem ver; e quando tivermos determinado o número e o tipo das naves
inimigas, conseguiremos decidir se queremos persegui-las e iniciar batalha
ou bater em retirada. Da mesma forma, em terra deve ser possível, a partir
de posições elevadas, observar os campos inimigos e as suas
fortificações.”
Mas, afinal, não foram as ideias de Galileu sobre estratégia militar que
mudaram para sempre a forma como olhamos o universo, foi antes
qualquer coisa absolutamente casual que aconteceu uma noite, quando ele
estava ao ar livre a descansar. Em vez de apontar o telescópio para as
luzes da cidade, Galileu ergueu-o para o céu. Através da lente, começou a
examinar o maior e mais luminoso objeto do céu noturno, a Lua. E aquilo
que viu foi, para ele, completamente inesperado. A Lua, essa esfera
perfeita no céu, não era só um balão brilhante e de superfície suave.
Olhando mais de perto, conseguia agora ver que tinha crateras. E
montanhas. E vales e elevações de terreno semelhantes aos que existiam
na Terra. A Lua, e ele ficou chocado ao descobrir isso, tinha uma
paisagem. Para Galileu, foi uma revelação absoluta.
Apontando o telescópio para cima todas as noites, num “espanto
infinito”, rapidamente começou a observar outros objetos celestes. Foi
com as suas observações de Vénus que Galileu mudou o nosso
entendimento do lugar que ocupamos no universo. O que ele percebeu era
que Vénus tinha uma sombra e que, exatamente como sucedia com as
fases da Lua, mudava de um disco crescente para cheio quando estava
diante do Sol. Para ele, isso só podia significar uma coisa. Vénus não era
apenas uma “estrela errante”31: tinha um percurso. E mais ainda: esse
percurso não era feito a orbitar a Terra. Era a orbitar o Sol.
Foi, em todos os sentidos da palavra, uma descoberta revolucionária.
Até então, tínhamos acreditado que o universo girava à nossa volta. As
descobertas de Galileu desfizeram essa ideia e provaram a teoria do
heliocentrismo de Copérnico32, que colocava o Sol, em vez da Terra, no
centro do universo. Mas não haveria grande exaltação à volta da
descoberta de Galileu. Para a Igreja, tratava-se de uma observação
perigosa. Na Bíblia, a humanidade tinha sido colocada claramente no
centro do universo, por Deus. Acreditar em Galileu implicava que as
palavras da Sagrada Escritura eram falsas.
Por isso, em 1616, o astrónomo foi chamado pela Inquisição Romana e
investigado por heresia. O livro de Nicolau Copérnico Sobre as
Revoluções das Esferas Celestes já tinha sido proibido e foi decretado que
também Galileu tinha de ser silenciado. Deixava de poder sugerir, de
forma oral ou escrita, que a Terra se movia à volta do Sol. Foi um
momento notável, porque, embora sempre tivesse sido dito “ver para
crer”, a Igreja insistia para não acreditarmos naquilo que conseguíamos
ver com os nossos próprios olhos. Galileu tinha descoberto um ângulo
morto, mas a Igreja queria que as pessoas permanecessem cegas. No
imediato, Galileu aceitou a imposição, mas 16 anos depois iria ser
novamente julgado.
Desde os dias dos primeiros telescópios, a nossa visão científica apurou-
se tremendamente e hoje somos capazes de ver tão longe que até olhamos
para trás no tempo, para o começo do universo. Em todo o globo, centenas
de observatórios salpicam o planeta, perscrutando a noite como grandes
olhos robóticos brancos. Construímo-los em cidades, no alto de
montanhas, em desertos remotos e até enviámos telescópios para o espaço.
O que este extraordinário nível de visão significa é que só temos de
escolher um ponto no céu e depois, simplesmente, esperar.
Foi precisamente isso que astrónomos da NASA fizeram em setembro
de 2003. Apontaram o telescópio Hubble Ultra Deep Field para uma zona
a seguir à Lua que parecia completamente vazia, sem uma única estrela
visível a olho nu. As imagens obtidas revelaram-se, contudo,
extraordinárias: esse “vazio” estava repleto de dez mil globos de luz, cada
um deles uma galáxia como a nossa Via Láctea, albergando centenas de
milhares de milhões de estrelas cintilantes. A partir dessa porção de céu
noturno, os cientistas calcularam que existem no nosso universo pelo
menos cem mil milhões de galáxias, com um sextilião de estrelas.33
Pensem como isto é incrível: estamos rodeados por
1.000.000.000.000.000.000.000 de gigantes estelares, mas eles são
demasiado ténues para os nossos olhos os verem.34
Olhamos há milénios para as estrelas, mas só recentemente ficámos a
saber que estes pontinhos cintilantes de luz são na verdade enormes
reatores nucleares, bolas de gás luminoso quente que são autênticas
fornalhas de fusão atómica – até Alcor, “a esquecida”, que mal é visível,
faria o nosso Sol parecer um anão se se aproximasse e, com um brilho 13
vezes maior do que ele, incendiaria o nosso céu inteiro. É quase um
número de ilusionismo cósmico que, a partir do ponto em que nos
encontramos, as coisas mais imensas que existem no universo nos
apareçam como se o céu fosse uma placa de Petri e as estrelas não
passassem de partículas.
O tamanho é físico, mas é igualmente uma construção mental com a
qual temos de lidar. O problema é que os nossos cérebros não são muito
bons a processar como as coisas podem tornar-se imensamente grandes,
ou pequenas, quando saem dos nossos limites de perceção. Como
observou a escritora inglesa Helen Macdonald: “Em questões de escala,
somos muito maus. As coisas que vivem no solo são demasiado pequenas
para nos importarmos com elas; as alterações climáticas são demasiado
grandes para as imaginarmos.” E, ao contrário, quando as escalas
aumentam, as coisas, os objetos e os números tendem a tornar-se difusos,
num fenómeno a que os investigadores chamam “cegueira de escala”. A
vastidão do universo e o mundo quântico infinitesimal podem ser
fundamentais para a nossa existência, mas na maior parte do tempo
vivemos quase sempre sem reparar nas escalas maiores ou mais pequenas
em que habitamos.
Para ilustrar aquilo que quero dizer, imaginem por um momento um
pequeno cupcake. Deve ser fácil. Agora, imaginem dez. Continuem a
aumentar o número e vejam se são capazes de imaginar 50 cupcakes, ou
cem. A resolução dos bolinhos vai-se perdendo, mas o seu conjunto deve
continuar a ser visível. Mas agora vamos dar um salto: tentem imaginar
mil ou cem mil cupcakes. À medida que o número cresce, em especial
para um milhão, ou mil milhões, perde-se completamente a nossa
capacidade para ter a perceção da escala, quanto mais dos cupcakes
individualmente. Isto pode parecer uma questão sem importância, e é,
quando a questão é banal, como no caso dos cupcakes, mas quando a
questão é séria as implicações são maiores.
Podemos viver num mundo de big data, mas somos insensíveis aos
grandes números. E os números que as notícias nos transmitem todos os
dias são-nos, na maior parte, incompreensíveis. Sejam a desflorestação
anual de 18,5 milhões de hectares35, os 20 biliões de dólares da dívida
norte-americana, os 1.676 milhões gastos anualmente em armas ou os 20
milhões de pessoas à beira da fome e da miséria, quando chegamos a
números grandes o resultado é o mesmo: os nossos olhos abrem-se e
ficamos perdidos na enormidade. Como José Estaline terá dito: “Uma
morte é uma tragédia; um milhão é uma estatística.”
Por causa disso, a cegueira de escala pode ser monstruosa. É que
quando perdemos o nosso sentido de escala não somos capazes de sentir –
e quando não conseguimos sentir perdemos a capacidade de reagir
adequadamente. Uma equipa de investigadores norte-americanos que
examinava este sentido de escala quis perceber qual o efeito de atribuir
preços de mercado a uma escala de danos causados à vida.
Especificamente, queriam saber qual era a perceção do “custo” de
reabilitar milhares de aves marinhas vítimas de um derramamento de
petróleo.
Para determinar quanto é que as pessoas estariam dispostas a pagar para
remediar o problema, a magnitude do hipotético desastre foi multiplicada
por dez de cada vez. Os investigadores descobriram que, se o número de
aves empapadas em petróleo fosse de dois mil, 20 mil ou 200 mil, a
proposta de ajuda financeira era sensivelmente a mesma. Ou seja, a escala
não era um fator. Em média, as pessoas mostravam-se dispostas a pagar
cerca de 80 dólares para ajudar duas mil aves, mas quando o número subia
para 20 mil dispunham-se a doar 78 dólares, ou seja, menos dois, e
quando o número aumentava cem vezes, para 200 mil aves, a proposta era
de 88 dólares. Isto é: mais 198 mil aves, mas uma diferença de apenas oito
dólares.
Se somos confundidos tão facilmente por uma mudança de escala de dez
vezes, imaginem o que sucede quando o fator é de um milhão. Os nossos
microscópios são tão poderosos que hoje somos capazes de ampliar
objetos mais de cem milhões de vezes, o que nos permite observar e
mover os próprios elementos constituintes do universo: os átomos.36 Os
físicos sabem, contudo, que até esta perspetiva está a mudar e que há
muito mais para lá dos limites daquilo que mesmo as nossas tecnologias
mais avançadas são capazes de distinguir. Atualmente, o que se crê ser o
extremo mais longínquo do universo subatómico – a menos de
0,0000000009 ioctómetros – é aquilo que é conhecido como o
comprimento de Planck: um espaço que é 10-35 mais pequeno, ou 35
ordens de grandeza mais pequeno, do que a nossa escala atual, ou aquilo
que consideramos a nossa “realidade” diária. Para apresentar de outra
forma a escala deste pequeníssimo espaço, digamos que um único átomo
de hidrogénio tem dez biliões de biliões de comprimentos de Planck. Em
comparação com a medida de um único comprimento de Planck, um
átomo é absolutamente gigantesco.
Passando para o extremo oposto da escala, o universo observável
estende-se por 1026 metros, ou 92 mil milhões de anos-luz. Também esta
distância é, para nós, inimaginável. Para dar alguma perspetiva, um ano-
luz fica apenas a dez biliões de quilómetros de distância. E o simples ato
de contar até mil milhões, quanto mais 92, levar-nos-ia mais de 30 anos.
Carl Sagan afirmou: “O senso comum funciona lindamente para o
universo a que estamos acostumados, para escalas de tempo de décadas,
para um espaço entre um décimo de milímetro e alguns milhares de
quilómetros, e para velocidades muito inferiores à velocidade da luz.
Quando deixamos esses domínios da experiência humana, não há razão
alguma para esperar que as leis da natureza continuem a obedecer às
nossas expetativas, uma vez que as nossas expetativas dependem de um
conjunto limitado de experiências.”
As nossas experiências dizem-nos que a realidade tem uma dimensão
humana, mas a nossa tecnologia diz-nos que não. Na escala verdadeira das
coisas, nós somos gigantes microscópicos – ao mesmo tempo enormes e
ínfimos. E, no entanto, até dentro deste inimaginável reino sem fronteiras,
ocupamos um “lugar” surpreendente. Colocados entre estas realidades
micro e macro, encontramo-nos mais próximos, à escala, dos confins mais
distantes do universo conhecido do que do comprimento de Planck.
Da próxima vez que estiver sozinho num quarto, pare um pouco e pense
que tudo à sua volta, cada superfície, cada sopro da sua respiração, cada
centímetro da sua pele nua, está vivo e a fervilhar de vida invisível. E
depois lembre-se que visto lá de cima do céu, por exemplo a partir de um
avião que passa, você também é uma particula invisível.
O génio de Galileu esteve em compreender que aquilo que os humanos
podiam ver era apenas uma parte da realidade. E embora tenha sido o
primeiro a ver para lá da velha visão mundial, ficou perturbado pela forma
como outros se recusaram a abrir os olhos.37 Em 1632, em Diálogo sobre
os Dois Principais Sistemas Mundiais, escreveu:
“Em última análise, as minhas observações convenceram-me de que alguns homens, com
um raciocínio absurdo, definem primeiro na mente uma conclusão que, seja por ser deles ou
seja por a terem recebido de alguém em quem confiam inteiramente, os impressiona tão
profundamente que é impossível tirar-lha da cabeça. Argumentos que apoiem a sua ideia fixa,
sejam engendrados por eles próprios ou ouvidos de outros, por muito simples e estúpidos que
possam ser, ganham de imediato a sua aceitação e aplauso. Por outro lado, recebem tudo o
que for apresentado contra, por muito engenhoso e concludente que seja, com desdém ou
fúria – quando não ficam mesmo doentes. Fora de si, tomados pela paixão, alguns deles nem
hesitariam em congeminar formas de suprimir e silenciar os seus adversários.”
Galileu deu uma pancada na bolha da realidade – e foi punido por fazer
isso. Depois da primeira acusação, em 1616, deixou de poder possuir,
defender ou ensinar a astronomia de Copérnico. Em 1633 foi julgado outra
vez, agora pela Inquisição Romana, e considerado culpado. Por causa da
sua fama e da sua idade, o grande astrónomo foi, contudo, poupado ao
castigo reservado aos hereges – a tortura e a morte. Foi condenado a
passar o resto da vida sob prisão domiciliária.
É revelador constatar que dois dos maiores vultos da ciência – Van
Leeuwenhoek, o pai da microscopia, e Galileu, o pai da astronomia
moderna – tenham sido alvo de troça durante anos por verem a verdadeira
natureza da realidade. No fim, coube-lhes a última palavra: Van
Leeuwenhoek foi reconhecido pela Royal Society e tornou-se uma figura
eminente entre os seus pares; Galileu é agora considerado um dos maiores
pensadores de sempre. Mas Galileu, também conhecido como “o pai da
ciência moderna”, deixou mais do que um legado científico.
Em 12 de março de 1737, 95 anos após a sua morte, o túmulo de Galileu
foi assaltado. O ladrão foi Anton Francesco Gori, um professor, que
cortou três dedos de Galileu quando o cadáver estava a ser trasladado de
um túmulo temporário para a Basílica de Santa Cruz, em Florença. Era
comum a prática de cortar dedos e outras partes do corpo de santos
mortos, pois pensava-se que as relíquias tinham poderes sagrados. Gori
estava a prestar homenagem a Galileu elevando-o à categoria de mártir,
como se fosse um santo secular da ciência responsável por estilhaçar
velhas crenças e por nos libertar com o seu pensamento.
Só quase dois séculos depois, em 1927, foi encontrado o primeiro dos
dedos perdidos de Galileu. Encontra-se hoje em exposição no Museu
Galileu, em Florença. Para os que conhecem a história, é difícil não
entender o simbolismo. Lá está, num frasco de vidro, a apontar em desafio
para os céus, o dedo do meio de Galileu.
1
Tim Cockerill descobriu um dia uma nova espécie de vespa parasita quando ela “se suicidou” e caiu
dentro da sua chávena de chá.
2
Provavelmente, já ouviu a famosa citação de Newton: “Se vi mais do que outros, foi por estar de pé
sobre os ombros de gigantes.” (Realce meu) A frase é citada com frequência como um exemplo do
poder da humildade. Só que, hoje, alguns académicos acreditam que pode ter sido a versão ao jeito
do século XVII de uma manifestação de desprezo entre cientistas. Surgiu numa carta escrita por
Newton a Hooke quando estavam envolvidos numa discussão sobre quem devia receber um crédito
científico no campo da ótica. E deve notar-se que Hooke era um homem baixo.
3
Pensa-se, a partir dos seus desenhos, que Van Leeuwenhoek terá construído alguns instrumentos
capazes de ampliar objetos até 500 vezes.
4
As bactérias orais são prolíficas: “Há 20 mil milhões de bactérias nas nossas bocas e reproduzem-se
de cinco em cinco horas. Se passar 24 horas sem lavar os dentes, esses 20 mil milhões transformam-
se em 100 mil milhões!”
5
“A pulga matou milhões de pessoas em todo o mundo […] e está indissociavelmente ligada à
história da Peste Negra. No homem, como demonstraram Yersin e Simond, esta doença é causada
pelo trio bactéria (Yersinia pestis)/ ratazana / pulga (Xenopsylla cheopsis).”
6
Os fabricantes de pesticidas defendem que, sem estes, o mundo enfrentaria maiores dificuldades
alimentares, mas cientistas dizem que a alegação é exagerada, e que a maioria das explorações
aumentaria a produtividade se reduzisse a utilização de pesticidas.
7
Embora seja necessária mais investigação científica, há números que estão a fazer soar alarmes em
todo o mundo. Um estudo recente em Porto Rico descobriu que 98 por cento dos insetos terrestres
tinham desaparecido ao longo de um período de 35 anos. Nos ares, o número era de 80 por cento. Em
termos de peso total, os insetos ultrapassam normalmente os humanos cerca de 17 vezes. Sem eles,
são de esperar consequências catastróficas. Isto é assim porque os insetos constituem a base da nossa
cadeia alimentar. Se os insetos entrarem em declínio, um efeito de dominó, conhecido como “cascata
trófica invertida”, começará a derrubar outras espécies que dependem deles.
8
A Pulex irritans não está extinta. Ainda pode ser encontrada na Grécia, Irão, Madagáscar e até no
Arizona.
9
A idade parece ser um fator, já que os bebés têm menos ácaros.
10
As células bacterianas são muito mais pequenas do que as células humanas – embora sejam
muitas, representam apenas cerca de 0,2 quilos do nosso peso.
11
Há quase dois mil milhões de espécies de bactérias, a vasta maioria das quais são inofensivas para
os humanos.
12
Em termos relativos, mas não completamente. Existem bactérias na placenta. “Os cientistas
detetaram bactérias no fluido amniótico, no sangue, no cordão umbilical, na membrana que rodeia o
feto e até no primeiro cocó dos bebés.”
13
Uma espécie em especial faz isto hoje de uma forma brilhante. Descrito como “o micróbio mais
importante de que nunca ouviu falar”, o Prochlorococcus é responsável pela produção de um total de
20 por cento do oxigénio que respiramos.
14
Tal como as mitocôndrias, os cloroplastos têm o seu próprio ADN, que vem das cianobactérias.
15
Animais pequenos tendem a ter vidas mais curtas.
16
O maior macaco primata no registo de fósseis é o Gigantopithecus blacki, com três metros de
altura. O seu tamanho condenou-o, no entanto, de uma forma diferente: durante a Idade do Gelo, os
alimentos disponíveis tornaram-se insuficientes para sustentar o macaco gigante.
17
Para mais dados sobre tamanho, sugiro ao leitor o trabalho “On Being the Right Size”, de J.B.S.
Haldane.
18
Outro fator que os cientistas julgam capaz de afetar o tamanho que os animais marinhos atingem
tem que ver com a perda de calor. Os mamíferos marinhos crescem mais e têm mais gordura à
medida que vão aumentando de volume em relação à superfície. Isto permite-lhes gerar mais calor e,
ao mesmo tempo, perder menos através da superfície da pele.
19
O Carbonífero situa-se especificamente entre o período Devoniano, há 358,9 milhões de anos, e o
início do Permiano, há 298,9 milhões.
20
Possuir um volume maior em relação à superfície queria também dizer que a quantidade de
oxigénio continuaria a ser relativa à dimensão do corpo, por isso os animais também não morreriam
por envenenamento por falta de oxigénio.
21
Há muitos casos interessantes de mudanças de tamanho por causa do ambiente. A regra de Foster é
relevante. Afirma que, em ilhas, os animais grandes tendem a desenvolver corpos mais pequenos,
devido a restrições nas fontes de alimento, e que os animais mais pequenos tendem a crescer, por
causa dos limites que os seus predadores conhecem. Um exemplo pode ser encontrado entre os
mamutes: uma espécie de mamute que viveu em Creta há 3,5 milhões de anos só atingia cerca de um
metro, à altura do ombro.
22
Analisando mais de 17 mil espécies marinhas, investigadores descobriram que, desde a primeira
evolução dos animais, os seus volumes corporais aumentaram cinco vezes.
23
Como sempre, existem exceções. Por exemplo, as mudanças climáticas estão a fazer aumentar de
tamanho as aranhas-lobo.
24
Historicamente, os cientistas têm documentado casos de nanismo entre mamíferos durante
períodos de aquecimento na história da Terra. E durante o chamado Máximo Térmico do Paleoceno-
Eoceno, uma fase de aquecimento de três graus que aconteceu há 55 milhões de anos, alguns
mamíferos diminuíram de tamanho em cerca de um terço, enquanto insetos como escaravelhos,
formigas e abelhas encolheram em três quartos.
25
O consumo médio de carne vermelha e de aves em 1960 era de 75,3 quilos; a projeção para 2017
era de 98,8 quilos.
26
Estão classificados como obesos 20 por cento dos habitantes de Tonga e Tuvalu e até a Coreia do
Norte registou um aumento de 1 por cento.
27
As primeiras observações publicadas da utilização de um microscópio estão no Apiarium de
Galileu, de 1625. Foi em 1624 que ele observou pela primeira vez uma pulga com um microscópio.
28
Há três pessoas associadas à invenção do microscópio, já que foram apresentados dois registos de
patente com um intervalo de apenas algumas semanas. Zacharias Janssen também é frequentemente
mencionado como inventor. Os primeiros telescópios eram muito simples, constituídos por dois
pedaços de vidro a alguma distância um do outro para ampliar objetos distantes.
29
A nossa capacidade para detetar luz é tão grande que cientistas descobriram recentemente que, de
perto, somos até capazes de detetar o ínfimo brilho da luz de um único fotão.
30
Está determinado que o antigo teste de Mizar é equivalente ao teste atual que identifica uma visão
20/20.
31
Os planetas não eram diferenciados das estrelas, para além do facto de que pareciam ser
“errantes”.
32
Os sete axiomas do heliocentrismo, são: “1) Não há um centro no universo; 2) O centro da Terra
não é o centro do universo; 3) O centro do universo está próximo do Sol; 4) A distância da Terra ao
Sol é impercetível, em comparação com a distância às estrelas; 5) A rotação da Terra explica a
aparente rotação diária das estrelas; 6) O ciclo anual aparente de movimentos do Sol é causado pela
rotação da Terra em volta dele; 7) O movimento retrógrado aparente dos planetas é provocado pelo
movimento da Terra, a partir de onde se faz a observação.”
33
Usando novas técnicas, investigadores reavaliaram os dados e calcularam que algumas galáxias
podem ser quase duas vezes maiores do que originalmente se pensava.
34
“As galáxias mais ténues têm um décimo bilionésimo do brilho que o olho humano pode
distinguir.”
35
O número, em campos de futebol, é igualmente alucinante e difícil de imaginar: 60.720.000
campos de futebol.
36
A unidade mais pequena que conseguimos ver com um microscópio eletrónico é um angström, que
é 1 x 10-10.
37
Galileu era tão controverso que a Igreja Católica precisou de 350 anos para admitir, em 1992, que
ele e Copérnico tinham razão.
2
Bomba Mental
Nunca me tinha ocorrido, mas as coisas são realmente assim:
todos nós, na Terra, caminhamos sobre um mar escarlate e efervescente de chamas,
escondido nas suas entranhas.
Nunca pensamos nisso. Mas o que sucederia se a fina crosta sob os nossos pés se
transformasse em vidro e víssemos de repente… Eu tornei-me vidro. Eu vi – dentro de
mim.
YEVGENY ZAMYATIN
38
Um átomo de hidrogénio tem um protão, nenhum neutrão e um eletrão. Um átomo de chumbo é
muito mais complexo. Tem 82 protões, 82 neutrões e 82 eletrões, e é por isso que o chumbo é um
elemento muito mais denso.
39
Sessenta e cinco mil milhões de neutrinos solares passam, por segundo, através de um centímetro
quadrado perpendicular ao Sol.
40
William Röntgen recusou-se a registar quaisquer patentes da tecnologia do raio X. Acreditava que
as pessoas deviam beneficiar livremente do seu trabalho.
41
A primeira imagem do próprio ADN foi obtida com raios X.
42
O nosso próprio Sol funde por segundo aproximadamente 620 milhões de toneladas de hidrogénio,
que transforma em hélio.
43
O leitor mais atento terá reparado que passámos do hélio ao carbono – e que entre um e outro
deviam estar os elementos mais leves: lítio, berílio e boro. Estes elementos são criados cosmicamente
de uma forma diferente, quando um elemento mais pesado é atingido por raios cósmicos.
44
O ferro não consegue libertar energia através da fusão, porque necessita de um input de energia
maior do que a que liberta.
45
Alguns elementos, como o ouro, são constituídos a partir da colisão explosiva de estrelas de
neutrões.
46
O MALDI-MS é um sistema de espectrometria de massa que utiliza um laser para isolar átomos e
outros compostos, permitindo aos cientistas verem de que é feito um objeto olhando para a sua massa
e carga. Instrumentos modernos carregam um átomo ou molécula e o laser serve como uma arma de
disparo, desencadeando literalmente uma corrida atómica. Os iões mais leves são os mais rápidos e
os mais pesados são os mais lentos. E assim, com base na sua velocidade e peso atómico, é possível
obter uma imagem dos compostos presentes numa amostra.
47
Mas não com fluidos de embalsamamento ou por cremação, que são maus tanto para o solo como
para as plantas.
48
Quando há uma replicação de ADN, 30 por cento é carbono.
49
A fonte primária de carbono-14 são colisões de raios cósmicos.
50
Como o radiocarbono resultante dos ensaios nucleares diminui 1 por cento por ano, em 2030 terá
desaparecido. Os organismos nascidos depois desse tempo já não mostrarão quaisquer picos
significativos dos sinais deixados pelas bombas e por isso não será possível datar as suas células. A
menos, claro, que façamos detonar mais bombas.
3
Olhos nos Olhos
Quando não se vê aquilo que não se vê, nem sequer se vê que se é cego.
PAUL VEYNE
Para Géza Teleki, era um raro dia de folga. O primatólogo tinha decidido
dar um passeio para desfrutar da paisagem dos altos desfiladeiros do
Parque Nacional de Gombe, na Tanzânia. Já para o fim da tarde,
encontrou um lugar perfeito de onde podia ver uma luxuriante planície
verdejante. Acomodou-se debaixo de uma árvore à espera do espetáculo
da noite: o grande sol africano cairia em breve sobre as águas brilhantes
do Lago Tanganica.
A tranquilidade pairava sobre as florestas do vale, mas quando olhou em
redor Teleki percebeu que não estava sozinho. A subir, de direções
opostas, vinham dois chimpanzés machos adultos. Ao atingirem o topo da
elevação, viram-se um ao outro. Ergueram-se nas patas de trás,
caminharam direitos pela relva até ficarem olhos nos olhos e saudaram-se
com suspiros suaves e apertos de mão. Apenas alguns metros à frente de
Teleki, os chimpanzés sentaram-se. Estavam, os três, sentados em silêncio.
Para o primatologista, foi uma experiência profunda e transformadora. Os
chimpanzés tinham ido ali, tal como ele, simplesmente para se sentarem a
ver o maravilhoso pôr do sol.
Que devemos pensar desta história? Uma vez que somos 99 por cento
chimpanzé, que partilhamos uma grande quantidade do mesmo ADN, é
assim qualquer coisa de tão impossível que eles fossem capazes de
apreciar uma coisa como um pôr do sol? Ou será isso antropomorfismo?
Estaremos a projetar os nossos pensamentos e ideias sobre outras espécies,
vendo o comportamento dos chimpanzés através de uma lente humana?
Há pelo menos duas maneiras de olhar para esta história – e ambas
revelam que temos um ângulo morto na forma como olhamos para as
outras espécies. Por um lado, temos de admitir que não somos, como
poderíamos pensar, os únicos seres no planeta que olham para as estrelas.
Na verdade, não somos os únicos que resolvem problemas, nem os únicos
comunicadores, nem os únicos animais capazes de amor ou de apreciar a
beleza.
Mas a outra maneira de olhar para o comportamento dos chimpanzés
pode ser ainda mais extraordinária porque, embora possamos tentar
adivinhar os pensamentos ou emoções dos nossos colegas primatas que
estavam naquela colina, a verdade é que nos está absolutamente vedado
conhecer a experiência deles. Ou seja, até o nosso familiar mais próximo
em termos de evolução pode ver e ter a perceção de um mundo
completamente diferente do nosso.
A maior parte de nós passa pouco tempo a pensar qual é a perceção do
mundo que outros animais têm. Mas na cidade de Monza, em Itália, foi
aprovada legislação que declarava ilegal manter um peixinho num
aquário. A determinação foi assente no raciocínio de que os peixes têm
boa visão, sendo por disso cruel mantê-los num ambiente fechado que os
obriga a viver com uma “visão distorcida da realidade”. A conselheira
municipal Monica Cirinnà, citada no jornal Il Messagero, afirmou: “A
civilização de uma cidade pode medir-se por isto” – e “isto” era a ideia,
ainda bastante chocante, de que podemos ou devemos ter respeito pela
perspetiva de um animal.
É verdade que os peixinhos dourados têm uma visão notável. Não só
possuem cones de reconhecimento de cores para o vermelho, verde e azul,
como nós, mas têm um quarto recetor adicional, para luz ultravioleta, o
que significa que lhes está aberta – e está vedada a nós – uma maneira
inteiramente diferente de ver. Se pensarmos nisto, talvez não surpreenda
que os animais tenham uma boa visão: calculamos que seja para
conseguirem sobreviver. Mas o que surpreende é o tipo de informação que
alguns animais conseguem percecionar.
O peixe-arqueiro, por exemplo, é capaz de distinguir rostos humanos
diferentes. Para espécie aquática, estes peixes têm uma habilidade bastante
única: cospem jatos de água para derrubar presas voadoras, como se
fossem pistolas de água biológicas. São capazes de apontar a um inseto
que voa sobre a água e acertar-lhe com muita pontaria a uma distância de
até 60 centímetros. Esta capacidade especial deu uma ideia a
investigadores das universidades de Oxford e de Queensland: queriam ver
se a pontaria e visão apurada do peixe podiam ser usadas de outra forma.
Por isso, colocaram diante dos peixes imagens de rostos humanos
associados a uma recompensa alimentar e treinaram-nos a usar os jatos
para atingir a imagem de um rosto humano específico num ecrã de
computador.
Dada a semelhança que existe entre rostos humanos – que possuem a
mesma estrutura básica de olhos, nariz e boca –, até nós, por vezes, temos
dificuldade em fazer identificações na nossa própria espécie. Mas para um
peixe, em especial um peixe com um cérebro tão pequeno e que não
desenvolveu capacidades de reconhecimento facial humano, os resultados
foram assombrosos. Perante uma sequência de 44 rostos novos, sempre
associados a um que já tinha sido treinado para recordar, o peixe-arqueiro
mostrou um reconhecimento visual excelente, escolhendo o rosto certo em
86 por cento dos ensaios.51 Se isso não vos parece impressionante, pensem
se seriam capazes de distinguir o focinho de um peixe-arqueiro no meio de
um cardume de 44.
Também se sabe que os pombos comuns possuem uma visão altamente
sofisticada. São capazes de distinguir todas as letras do alfabeto,
reconhecer dezenas de palavras, distinguir entre quadros de Monet e de
Picasso e recordar até 1.800 imagens individuais. Conhecedores destes
excelentes poderes de distinção dos pombos, investigadores queriam ver
como seriam eles capazes de realizar uma tarefa altamente complexa:
discernir a diferença entre tumores malignos e benignos em biópsias à
mama. Os tumores malignos que se transformam em cancro são muitas
vezes identificados por microcalcificações no tecido do peito e têm uma
disposição especial. Radiologistas e patologistas podem demorar anos a
desenvolver a capacidade de distinguir entre massas malignas e benignas.
Os pombos não tiveram anos de experiência. Foram treinados durante 34
dias apenas, usando um ecrã táctil ligado a um dispensador de alimento.
O treino consistiu em mostrar aos pombos imagens num ecrã e em
recompensá-los de cada vez que tocavam numa barra amarela, quando a
biópsia era benigna, ou numa barra azul, para assinalar que era maligna.
Os pombos revelaram-se extraordinariamente certeiros, capazes de
fazerem uma identificação correta, até em novas imagens, com uma taxa
de êxito de 85 por cento. Quando os cientistas resolveram fazer uma
abordagem “de bando” e coligir as respostas de todas as 16 aves treinadas,
a precisão subiu ainda mais. Juntos, os pombos foram capazes de fazer um
diagnóstico certo em 99 por cento dos casos.
A questão não é se devemos substituir radiologistas por pombos, mas
pelo menos podemos começar a questionar as nossas ideias sobre o
significado de inteligência. Por defeito, o nosso padrão está no patamar da
inteligência humana, mas, já que não vamos afirmar que os pombos são
mais espertos do que os radiologistas, então aquilo que temos claramente
a fazer é reavaliar o que é a inteligência.
Um aspeto da inteligência é a nossa capacidade para interpretar
informação visual, para entender o mundo que está diante de nós e
responder-lhe. Para os humanos, isso inclui a capacidade de perceção da
informação espacial, de ler palavras e descodificar mapas e de entender
símbolos. Claro que a visão não é obrigatória para qualquer destas
capacidades, mas de certo modo dependemos fortemente dela e é um
auxiliar para navegarmos pelo nosso ambiente. E, no entanto, sem toda
essa sofisticação, um pombo doméstico é capaz de fazer uma coisa que a
maioria de nós não consegue: largada ao acaso a centenas de quilómetros
do seu pombal, a ave será sempre capaz de encontrar o caminho de
regresso a casa – e isso é absolutamente notável.
Claro que hoje temos GPS, mas imagine que tínhamos inseridas em nós
as capacidades de uma ave migratória ou de um pombo doméstico?
Sabemos hoje que peixes, pássaros, tartarugas, mamíferos, insetos e até
bactérias conseguem detetar campos magnéticos. Se conseguíssemos fazer
o mesmo, como é que isso mudaria a nossa forma de pensar? E tornar-nos-
ia mais “inteligentes”?
São tudo perguntas retóricas, mas apontam para um facto: vemos o
nosso mundo através da mais estreita das frinchas de perceção. Existem
sobre a Terra pelo menos 8,7 milhões de outras espécies animais, cada
uma com a sua própria forma de perceção. Por isso, peguemos em
algumas destas lentes e vejamos como outras espécies experienciam o
nosso mundo.
A realidade é como uma imagem composta por milhares de milhões de
diferentes pixéis, cada um com a sua perspetiva diferente. O
primatologista Frans de Waal observou: “É isto que torna tão intrigantes o
elefante, o morcego, o golfinho, o polvo e a toupeira-nariz-de-estrela.
Possuem sentidos que ou nós não temos ou que temos de uma forma
muito menos desenvolvida, fazendo com que nos seja impossível perceber
a forma como eles se relacionam com o seu ambiente. Eles constroem as
suas próprias realidades.”
Ou seja: aquilo que conhecemos como “realidade” não passa de um
ponto de vista fragmentado. A nossa visão, por exemplo, está limitada a
uns meros 0,0035 por cento do espetro eletromagnético. Aquilo a que
chamamos “luz visível” são os comprimentos de onda entre os 380 e os
700 nanómetros. A luz com um comprimento de onda de cerca de 700
nanómetros é vermelha; com 600 é amarelo-laranja; com 500 é verde;
com 400 é azul-violeta. O espetro acima e abaixo destes limites é invisível
para os nossos olhos. Mas nem aquilo de que nos apercebemos como
“cores” existe realmente no mundo exterior. São interpretadas nos nossos
cérebros e dependem do número e do tipo de células recetoras nos nossos
olhos que estão sintonizadas em comprimentos de onda específicos.
Quando há uma conjugação de sol e chuva, somos capazes de ver a
breve maravilha biológica do arco-íris, a parte do arco que corresponde ao
espetro visível. De um lado e do outro encontram-se os comprimentos de
onda invisíveis que não estamos equipados biologicamente para ver.
Como Philip Morrison escreveu no prefácio de Super Vision: “Indo na
direção da porção visível do espetro eletromagnético, a última fração de
violeta esfuma-se, abrindo caminho a cores ultravioleta, depois a cores
raio X, depois a cores invisíveis ainda mais exóticas conhecidas como
raios gama. Se formos na outra direção, a derradeira fração de vermelho
dá lugar às cores infravermelhas, que sentimos como calor, em vez de as
distinguirmos como cores para além do vermelho. Continuamos nessa
direção e chegamos aos comprimentos de onda mais longos que agora
enchem as ondas aéreas, transmitindo programas de rádio e de televisão,
milhares de milhões de conversas por telemóvel […] sinais de radar de
torres de controlo de tráfego aéreo e de sistemas de defesa aérea.”
Por outras palavras, pensamos nos raios X como invisíveis, mas isso só
quer dizer que são invisíveis para nós. Ou seja: a invisibilidade não
descreve o raio X, mas a nossa própria capacidade de o ver ou não. Alguns
animais conseguem ter uma perceção da luz em zonas mais amplas do
espetro do que nós; especificamente, ultravioleta e infravermelho. Cobras
como as píton, as boas e as víboras têm entre os olhos e narinas um órgão
sensorial termorrecetor, que lhes permite ver no intervalo de
infravermelhos entre os 750 nanómetros e um milímetro. Mesmo
vendadas, essas cobras conseguem capturar eficazmente a sua presa. E
isso deve-se ao fato de o órgão termorrecetor ser sensível ao calor
irradiado, captando leituras de temperatura individuais e usando-as para
gerar uma imagem no cérebro. É assim que uma víbora consegue “ver” no
escuro um ratinho de sangue quente.
As abelhas também veem para além do espetro visível. Por exemplo,
uma margarida-amarela pode parecer-nos a nós, humanos, um conjunto de
pétalas amarelas, mas para uma abelha, que consegue ver até ao limiar dos
300 nanómetros em ultravioleta52, a flor está acesa como se fosse uma
pista de aterragem. Os jardins estão cheios destes alvos secretos, invisíveis
para nós, mas acesos para as abelhas de forma a elas encontrarem o seu
néctar. A águia real também distingue luz ultravioleta – usa-a para seguir
os rastos fluorescentes de urina que conduzem à presa53 –, mas tem além
disso uma precisão visual assassina. Enquanto para nós uma boa visão
está nos 20/2054, as águias possuem uma visão 20/5, o que significa que
um objeto visível para nós a um metro e meio será visível para uma águia
a uma distância de seis metros. Isso acontece porque a fóvea do olho de
uma águia – a parte responsável pela focagem – é muito mais profunda do
que a nossa, permitindo-lhe ver de uma forma ampliada, como se fosse
uma teleobjetiva de uma câmara.
Os olhos de uma águia são tão bons que são capazes de detetar um
coelho a 1.600 metros. É a mesma coisa que distinguir uma formiga no
solo do alto de um edifício de nove andares ou de ter os piores lugares
num concerto de rock num estádio, mas ainda assim conseguir ver na
perfeição as caras dos músicos. As aves de rapina também possuem uma
visão de cor excecional. A fóvea de uma águia está repleta de cones, o que
lhe proporciona uma resolução incrivelmente contrastante. Enquanto os
humanos só têm cerca de 200 mil cones por milímetro no centro da fóvea,
as águias possuem um milhão. É a mesma coisa que ver o mundo num
velho aparelho de televisão, em baixa resolução, ou vê-lo em ultra alta
definição.55
Os humanos também estão algo limitados pela colocação dos olhos na
parte da frente das cabeças, que permite um campo de visão de
aproximadamente 180 graus. As águias, cujos olhos fazem um ângulo de
30 graus, para trás, desde a linha do meio das cabeças, têm um campo
visual de 340 graus. Mas embora ouçamos com frequência o termo “olhos
de águia”, neste domínio específico os tubarões cabeça de martelo batem
as águias. Com as suas cabeças largas, os poderosos predadores têm uma
visão de 360 graus completos. Não só conseguem ver para a frente e para
trás, mas simultaneamente o que está acima e abaixo deles.
Até as criaturas “mais baixas” do nosso planeta têm capacidades que só
agora começamos a apreciar. A vida do humilde escaravelho é passada a
transformar fezes acabadas de fazer em bolas que têm duas ou três vezes o
seu tamanho. Em manobras com as patas da frente, como se estivesse a
fazer o pino, este inseto trabalhador usa as patas traseiras para empurrar
para trás o seu tesouro, o mais depressa possível, para longe do monte de
esterco – e dos seus concorrentes.
Mas como é que ele sabe para onde ir? De cabeça para baixo, com uma
grande bola de fezes a bloquear-lhe a visão, o escaravelho tem mesmo
assim um incrível sentido de direção. Cientistas descobriram que os
escaravelhos sabem onde estão e para onde vão por mapearem os céus. Se
observarem um escaravelho verão que ele de vez em quando sobe ao topo
da bola de esterco e faz aquilo que parece ser uma pequena dança. Sabe-se
desde há algum tempo que aquilo que ele está a fazer, na verdade, é a tirar
uma espécie de instantâneo mental, um panorama de 360 graus do céu.
Comparando uma imagem mental da localização do céu ou da Lua acima
das suas cabeças com o seu mapa dos céus interno, é capaz de determinar
a sua posição e de avançar continuamente em linha reta.
Mas os investigadores tinham uma curiosidade: em noites sem luar,
como seria? Como é que o escaravelho noturno se safa sem um sinal
indicador brilhante no espaço? Para tentar descobrir, levaram as suas
experiências em recintos fechados a um planetário, onde tinham controlo
absoluto sobre o ambiente celestial. Surpreendentemente, quando
retiraram brilho à lua, os escaravelhos mantiveram a rota. Só existia uma
outra fonte de luz para lhes servir de guia: aparentemente, os escaravelhos
orientavam-se olhando para a Via Láctea.
Para ter a certeza de que era realmente isso que estava a passar-se, os
cientistas precisavam de testar os insetos e de limitar as suas condições.
Por isso, fizeram-nos usar pequenos chapéus de cartão. Desse modo, os
investigadores podiam determinar se eram realmente as estrelas, e não um
outro sentido qualquer, a orientar os escaravelhos. Aos insetos de um
grupo de controlo foram colocados visores de plástico transparentes, o que
significa que ainda conseguiam ver para cima. Os resultados foram
concludentes: os escaravelhos com os chapéus ficaram desorientados e
deixaram de conseguir determinar onde se encontravam; continuaram a
empurrar as suas bolas de esterco, mas sem objetivo. Já o grupo de
controlo empurrou as suas bolas em frente quase de uma forma perfeita.
Conclusão: estes pequenos seres terrenos estavam mesmo a usar como
bússola uma galáxia distante.56
O reino animal está cheio de maravilhas, mas que dizer do campeão da
visão? A libélula tem de ser considerada um dos grandes candidatos. Estes
demónios velozes têm 28 mil lentes por olho composto, que juntas
constituem a maior parte da sua cabeça. Também possuem uma visão de
cor sem paralelo. Enquanto os humanos são tricromáticos – possuímos
três proteínas sensíveis à luz, as “opsinas”, que absorvem os
comprimentos de onda vermelho, azul e verde, o que nos dá a
possibilidade de misturar até um milhão de cores –, algumas espécies de
libélulas têm até 30 opsinas de pigmento, o que lhes permite criar uma
paleta vasta de cores literalmente inimagináveis.57 Os insetos também são
capazes de ver em ultravioleta e detetam luz polarizada. Além de tudo
isso, têm outra capacidade espetacular: conseguem ver em câmara lenta.
Para uma libélula, como para Neo no filme The Matrix, balas disparadas
a alta velocidade pareceriam abrandar e aquilo que nos surgiria como um
borrão acelerado seria uma imagem nítida. É porque nós vemos a cerca de
50 imagens por segundo enquanto as libélulas veem a 300 imagens por
segundo. O que nos parece um filme seria, para uma libélula, uma
passagem de diapositivos. Não surpreenderá por isso que os animais sejam
caçadores tão formidáveis; com a sua visão super, conseguem capturar 95
por cento das suas presas.
Nunca conheceremos completamente o mundo de maravilhas que está
diante dos nossos olhos. No máximo, só tentamos imaginar como seria ver
o mundo como outros animais o veem. A melhor comparação de como
isso podia ser extraordinário é imaginar um daltónico a pôr uns óculos
EnChroma, que lhe permite ver cores pela primeira vez. É muito frequente
ficarem completamente de queixo caído quando olham em volta, em total
êxtase, para flores coloridas e árvores de um verde viçoso. A experiência
pode ser tão esmagadora que muitas vezes começam a chorar.
Outro relance do mundo ao qual somos cegos chega-nos de pessoas com
uma condição rara, o tetracromatismo. Os tetracromáticos têm uma
espécie de visão em hipercores, têm a perceção de um mundo mais rico e
vibrante do que uma pessoa média. É porque nascem com quatro células
cones diferentes para a visão da cor, quando a maior parte de nós tem três.
O quarto recetor permite-lhes distinguir mais 99 milhões de sombras e
nuances do que um olho comum é capaz. Esta mutação genética encontra-
se em cerca de 12 por cento de mulheres, mas, deste grupo, só um
pequeno subconjunto tem verdadeiro tetracromatismo.
Como é então o mundo quando é cem vezes mais colorido? Concetta
Antico, que é tetracromática, descreveu-o como “ver cores em outras
cores”. Em comparação com ela, nós vemos o mundo quase como os
daltónicos. Aquilo que para nós parece um caminho de pedras cinzentas,
acende-se nos olhos dela como um arco-íris de diferentes nuances. Ela
descreve-o assim: “As pequenas pedras saltam para mim em laranjas,
amarelos, verdes, azuis e rosas.” Para além da possibilidade de ver beleza,
esta forma de visão tem uma utilidade prática. Quando lhe perguntaram o
que consegue ela ver que os outros não sejam capazes, Concetta observou:
“Consigo dizer se alguém está doente só de olhar para essa pessoa. A pele
fica cinzenta, fica amarela e há algum verde. Sou capaz de ver quando a
minha filha está doente porque ela perde as cores e fica amarelo-
esverdeada ou talvez lilás esbranquiçada.” Mas nunca saberemos aquilo
que ela quer dizer, já que usa cores para descrever outras cores. E as cores,
para ela, têm um significado bem diferente do que têm para nós.
As pessoas com afacia [sem cristalino no olho] também são capazes de
ver para lá do comum. Tal como as abelhas e as águias, têm a capacidade
para ver em ultravioleta. A sua condição resulta muitas vezes de cirurgia
ocular, embora possa ter origem numa anomalia congénita. O termo vem
do latim e significa “sem lentes”. A razão pela qual a maioria de nós não
consegue ver em ultravioleta é porque o cristalino humano bloqueia
naturalmente a luz UV. Mas os doentes que foram submetidos a cirurgia às
cataratas e a quem foi extraído o cristalino são às vezes capazes de ver
dentro desta gama do espetro. Claude Monet, o artista impressionista, terá
sido a mais famosa pessoa com afacia. Em 1923, com 82 anos, foi
operado às cataratas e retiraram-lhe o cristalino do olho esquerdo. Quando
Monet voltou a pintar nenúfares, eles já não eram brancos, mas
apresentavam nuances púrpuras escuras e azuis esbranquiçados. Mas, mais
uma vez, nós não vimos aquilo que ele viu. Ele pintou lilases brancos em
cores de malva e lilás, mas estas cores eram diferentes para ele do que são
para nós. Seja como for, fosse qual fosse a cor que os lilases tinham aos
seus olhos, de certeza que não eram brancos.
A espionagem militar tinha noção deste superpoder do mundo real e
usou doentes com afacia como vigilantes costeiros durante a Segunda
Guerra Mundial. Os submarinos alemães usavam então lanternas UV para
enviar sinais secretos aos seus agentes em terra. A missão dos vigilantes
com afacia era lançar um alerta quando vissem as luzes, que eram
invisíveis a todos os outros. Este exemplo deve ser suficientemente
revelador da dimensão do nosso ângulo morto ao nível da perceção. Pode
haver inimigos mesmo ao largo da costa e eles serão invisíveis para nós,
mas evidentes para os que são capazes de ver.
Não possuir a capacidade para ver alguma coisa não quer dizer que não
se possa olhar. Apaixonado pelo surf, Mike Sturdivant tinha passado mais
de 30 anos nas águas da Costa do Golfo dos Estados Unidos. Mas em
julho de 2010 aconteceu qualquer coisa de estranho: começou a tossir
sangue. E não era o único. Ao longo das praias da Florida, havia pessoas a
queixar-se de falta de ar, de queimaduras na pele e de visão turva. Para
Sturdivant, tornou-se evidente que havia qualquer coisa na água.
Uma noite, decidiu pegar na sua luz de UV, que usava no barco para
procurar fugas no motor, para vasculhar a praia a ver se encontrava
alguma coisa. Aquilo que viu foi para lá de surpreendente: “da linha das
dunas à beira da água”, toda a praia tinha um brilho cor de laranja.
A mais de 200 quilómetros dali, estavam em curso operações de
limpeza do maior derramamento de petróleo no mar na história dos
Estados Unidos. Mais de quatro milhões de barris de petróleo tinham sido
lançados no Golfo do México a partir da plataforma de perfuração
Deepwater Horizon e, além disso, 6,5 milhões de litros de dispersante
Corexit tinham sido atirados para a água para apressar a decomposição do
petróleo. Cientistas descobririam mais tarde que esta combinação de
petróleo e dispersante tinha tornado a água 52 vezes mais tóxica.
Iluminada por uma luz UV de 370 nanómetros, a mistura tóxica
fluorescia. Um ano após o derrame, Sturdivant fez parceria com James
Kirby, um geólogo da costa da Universidade da Florida do Sul, e deu
início a uma investigação formal. Ao longo de dois anos, os dois homens
enviaram 71 amostras para exame laboratorial. Os resultados eram os que
eles suspeitavam.
De acordo com o Plano Nacional de Emergência para responder a
derramamentos de petróleo e matérias perigosas, uma praia é considerada
limpa se contiver menos de 1 por cento de petróleo visível numa área-
amostra de um metro quadrado. Mas o dispersante não elimina o petróleo;
dispersa-o. Segundo Sturdivant, o problema é esse: “Toda a operação [de
limpeza] foi concebida para tornar as coisas invisíveis. E é por causa disso
que usam o dispersante. Não é que ele vá ajudar a acelerar a degradação
do petróleo. É porque o torna invisível.” Isto é, torna-o invisível aos
humanos. Alguns animais, é evidente, conseguem mesmo assim vê-lo
perfeitamente bem.
Mas mesmo que não o consigamos ver, somos capazes de o sentir.
Passados alguns anos, residentes na área do Golfo ainda se queixam de
sintomas estranhos: irritações na pele, dores de cabeça, náuseas,
convulsões, diarreia com sangue, pneumonia, cãibras, confusão mental
aguda e até perdas de consciência. A olho nu, porém, as praias da Florida
parecem perfeitas para aparecerem nas fotografias.
No mundo animal, a visão também assume outras formas. Para além da
capacidade de ver calor, ver em ultravioleta e ver os campos magnéticos
terrestres, também existe a capacidade de ver através do uso do som, ou
ecolocalização. Os morcegos e os odontoceti, ou baleias com dentes,
evoluíram neste sentido de forma independente. Seja no ar ou debaixo de
água, através da emissão de uma série de sons rápidos, que podem ser
zumbidos ou estalidos, e da escuta do eco, os animais são capazes de
determinar a forma, a localização e o movimento dos objetos à sua volta58.
Os morcegos possuem um campo visual acústico de entre dois e dez
metros e, ao perto, conseguem “ver” entre quatro e 13 milímetros, o que é
importante para capturar pequenos insetos. O alcance do sonar biológico
do golfinho comum é de aproximadamente 110 metros, enquanto os
cachalotes, que capturam lulas nas profundezas do oceano, têm o maior
campo de visão: detetam uma presa a 500 metros.
Como é que sabemos que este sonar biológico permite aos animais
“verem”? O primeiro estudo sobre as capacidades do morcego para voar
em escuridão total foi realizado no século XVIII por Lazzaro Spallanzani.
Decidido a descobrir qual o sentido que os morcegos59 utilizavam,
Spallanzani isolou cada um deles – visão, tato, olfato, paladar e audição –
e eliminou-os um a um.
Claro que a ideia de que os morcegos são cegos é um mito, mas para ter
a certeza de que não era a visão que lhes permitia evitar obstáculos no
escuro, Spallanzani cegou-os, primeiro cobrindo-lhes os olhos com um
pano e depois, de forma mais cruel, tirando-lhes os olhos. Nas suas notas,
escreveu: “Assim, com uma tesoura, removi completamente os globos
oculares de um morcego […] Atirado ao ar, o animal voou rapidamente,
seguindo os diferentes caminhos subterrâneos de uma ponta à outra, com a
velocidade e a segurança de um morcego saudável. Mais do que uma vez,
o animal foi para as paredes e para o telhado… e finalmente foi para um
buraco no teto com cinco centímetros, onde se escondeu de imediato. Não
consigo manifestar o meu espanto diante deste morcego que era
totalmente capaz de ver mesmo sem os olhos.”
Estudos com golfinhos – felizmente com os olhos intactos – também
têm dado contributos importantes sobre as suas capacidades. Estudos
controlados com golfinhos em cativeiro determinaram que eles são
capazes de reconhecer formas distintas usando exclusivamente o
biossonar. Investigadores no Laboratório de Mamíferos Marinhos da
Bacia de Kewalo, no Havai, testaram um golfinho chamado Elele
colocando objetos de formas diferentes dentro de uma caixa. Era uma
caixa em acrílico fino, opaco à visão, mas penetrável pelo som. O
treinador ergueu três objetos no ar, mostrou-os a Elele e pediu-lhe para
identificar qual deles correspondia ao que estava na caixa; o golfinho
devia apontar com o bico para o objeto certo. Os resultados de Elele foram
excecionais. Capaz de alternar entre sentidos com à vontade, o golfinho
revelou-se capaz de “ver” o objeto dentro da caixa, quer usando a visão
para encontrar o par para o objeto ecolocalizado, como utilizando a
ecolocalização para encontrar o par para o objeto visível.
Conta-se com frequência a história de como os golfinhos são
particularmente curiosos por mulheres grávidas e por outros golfinhos
grávidos, nadando e fazendo zumbidos perto da barriga da futura mãe.
Embora isso não esteja confirmado, não surpreenderia se os golfinhos
fossem capazes de “ver” através da carne e no interior dos nossos corpos,
já que o ultrassom que eles usam para a ecolocalização é semelhante ao
ultrassom utilizado nas clínicas para obter imagens dos fetos.
E como é uma imagem destas? É impossível saber. Mas se alguém nos
pode dar uma pista é Daniel Kish, o Batman do mundo real. Cego desde
bebé, começou a fazer cliques com a língua e a escutar o eco, encontrando
assim uma forma de criar uma imagem mental do mundo. Só aos 11 anos,
quando um amigo lhe perguntou pela primeira vez se estava a usar
ecolocalização, Kish percebeu que fazia aquilo que os morcegos fazem
para “ver”.
Embora os humanos não possuam as capacidades bem afinadas dos
morcegos para detetar movimentos pequenos e rápidos, Kish desenvolveu
faculdades notáveis. Consegue escutar edifícios e, num instante, saber se
são ornamentados ou absolutamente lisos. Num auditório, é capaz de
ouvir as saídas e sabe habitualmente onde elas estão antes de uma pessoa
com visão as encontrar. Anda de bicicleta pela cidade usando só a sua
capacidade de ecolocalização. Investigadores que estudam a atividade
cerebral de Kish usando ressonância magnética descobriram que a área do
cérebro ativada quando ele faz ecolocalização é a região habitualmente
dedicada à visão. O que isso nos diz é que o seu cérebro regista o som
como visão. Ele não ouve só o som, ele “vê-o”.
Poucos de nós alguma vez saberão o que é ver como Daniel Kish. Mas
saber aquilo que não sabemos diz-nos algumas coisas. Kish vive num
mundo sensorial que é tão impossível de nós conhecermos como é o dos
morcegos ou o das baleias. É exatamente o mesmo mundo que habitamos,
mas, ao mesmo tempo, é-nos totalmente alheio. E, no entanto, Kish é
humano, sem sombra de dúvida. Isso diz-nos que, embora a forma como
os nossos companheiros animais vejam o mundo nos possa parecer
exótica ou totalmente estranha, não há razão alguma para acreditarmos
que é inferior.
O sentido da visão, no entanto, não é apenas individual. É também
comunitário, porque nos permite imitar e aprender com outros. As
crianças observam com imensa atenção os adultos para copiarem aquilo
que eles fazem, e com os animais isso também é frequente. É por isso que,
usando a visão, é possível ensinar a uma abelha com o cérebro de um
tamanho de um grão de sésamo uma coisa que ela nunca faria na natureza
selvagem: jogar futebol.
Usando uma abelha de plástico presa à ponta de um pau, investigadores
da universidade Queen Mary, em Londres, começaram por mostrar às
abelhas a amestrar aquilo que deviam fazer. As abelhas viram a abelha
falsa empurrar uma pequena bola para dentro de um círculo. Era a
“baliza”. Quando a bola era conduzida para lá, os animais recebiam uma
recompensa em água açucarada. Ao fim de três experiências de
observação, as abelhas foram então colocadas num estádio em miniatura.
Só pela mera observação das abelhas falsas, eram capazes de reproduzir a
tarefa não natural – e marcaram golo em 99 por cento das vezes.60
A visão também é um elemento-chave para a memória visual. E o
animal com a mais extraordinária memória visual que a ciência conhece é
Ayumu, um chimpanzé que vive no Instituto de Investigação de Primatas
na universidade de Quioto. Aquilo que torna Ayumu especial é possuir
uma memória eidética, ou fotográfica. Num abrir e fechar de olhos, a sua
mente consegue absorver um panorama completo; frente a um humano,
numa tarefa de memória visual, Ayumu ganhará sempre.
Na aparência, a tarefa é simples. Qualquer coisa deste género: imaginem
os números de 1 a 9 colocados de uma forma baralhada em pontos ao
acaso de um ecrã. Os nove números acendem ao mesmo tempo e ficam
assim durante pouco mais de meio segundo. Depois de os números se
apagarem, acendem-se blocos de luz branca onde eles estavam e aí
permanecem. A tarefa é tocar, o mais depressa possível e na sequência
correta, nos blocos brancos onde antes apareciam os números de 1 a 9.
Ver Ayumi executar esta tarefa causa estupefação. Se para um humano,
mesmo olhando para o ecrã durante vários segundos, é difícil processar a
posição de apenas alguns números, imaginem de todos os nove. Num teste
contra o campeão britânico de memória Ben Pridmore, que memoriza em
menos de 30 segundos a ordem das cartas de um baralho acabado de
baralhar, Ayumu foi o claro vencedor. Pridmore registou um acerto de
apenas 33 por cento e o chimpanzé chegou aos 90 por cento. Mas, para
Ayumu, até meio segundo é uma quantidade de tempo considerável: na
verdade, já foi capaz de realizar esta tarefa depois de ver as imagens
durante apenas 210 milisegundos.
Mas como é que ele consegue? Sabemos que, em geral, os chimpanzés
são melhores do que nós em qualquer coisa chamada subitização, que é a
capacidade de ver e determinar instantaneamente o número de objetos
visíveis, tal como somos capazes de ver num dado o número 4 sem ter de
contar as pintas. Se os humanos são capazes de subitização de até quatro
ou cinco números aleatórios, os chimpanzés conseguem subitizar para
cima de seis. Ayumu é especialmente bom neste campo, mesmo para um
chimpanzé. Bate tanto humanos como chimpanzés, o que sugere que
possui uma memória visual extraordinária.
Claro que os animais não se limitam a processar o que veem, como
autómatos. São agentes ativos. Como os humanos, comunicam o que
veem no mundo ao seu redor. E embora quase toda a comunicação
aconteça entre a mesma espécie, alguns cientistas aventuraram-se a cruzar
fronteiras e estão a aprender a ver através dos olhos de animais,
ensinando-os a comunicar connosco.
O comunicador mais famoso do mundo das aves foi um papagaio
cinzento africano chamado Alex. Escolhido ao acaso numa loja de
animais, foi criado pela investigadora Irene Pepperberg e tornou-se tão
conhecido pelas suas capacidades que revolucionou as nossas ideias sobre
inteligência animal.
Embora Alex tivesse o cérebro do tamanho de uma avelã, possuía as
capacidades cognitivas de uma criança de cinco a seis anos. Pepperberg
treinou-o para responder a perguntas sobre o que via. Mostravam-lhe
objetos e ensinavam-lhe as palavras que os identificavam. Embora a
laringe dos papagaios não tenha cordas vocais, eles possuem uma siringe,
uma caixa de voz que lhes permite imitar os sons produzidos pelos
humanos. Alex conseguia identificar diferentes formas e cores e contava
até oito; sabia a diferença entre “igual” e “diferente” e entre “maior” e
“mais pequeno”; e comunicava com um vocabulário superior a cem
palavras.
Alex também inventava designações para coisas novas que encontrava.
Por exemplo, surpreendeu os investigadores durante o processo de ensino
de nomes de frutos. Já sabia as palavras “banana”, “uva” e “cereja”, por
ter aprendido os nomes dos frutos que lhe davam a comer. Mas quando
viu pela primeira vez uma maçã, a ave criou a sua própria designação.
Insistiu em chamar-lhe “baneja”. Porquê? Bom, é possível que visse que
era vermelha por fora e amarela no miolo, ou que a tivesse provado e
decidido usar uma combinação dos dois frutos que já conhecida: uma
banana e uma cereja. Seja como for, ficou “baneja”. A partir daí, recusou
sempre chamar-lhe maçã.
Alex foi também, que se saiba, o único animal a fazer uma pergunta
sobre si próprio. Em dezembro de 1980, viu o seu reflexo no espelho de
uma casa de banho. Virando-se para ele, o papagaio perguntou à tratadora,
Kathy Davidson: “O que é isso?”. Kathy respondeu-lhe que era ele, Alex,
e que ele era um papagaio. Depois de se observar durante mais um tempo,
perguntou: “Que cor?” Kathy respondeu-lhe: “Cinzento. És um papagaio
cinzento, Alex.” Depois de uma insistência que durou algum tempo, Alex,
ao que parece, acabou por perceber. Pepperberg diz que foi assim que ele
aprendeu a cor cinzenta.
Esta capacidade para descrever o mundo visual não é exclusiva dos
papagaios. Outros animais também aprenderam a comunicar connosco.
Talvez o mais famoso tenha sido Koko, um gorila fêmea. Usando uma
versão modificada da língua de sinais americana, Koko possuía um
vocabulário extenso: era capaz de fazer os sinais de mil palavras e
compreendia mais de duas mil, em inglês. Tal como Alex, Koko era
conhecida por inventar palavras para coisas novas que entravam no seu
espaço. Por exemplo, da primeira vez que viu uma zebra, descreveu-a
como “tigre branco”; um boneco de Pinóquio era identificado como
“elefante bebé”; e da primeira vez que viu um anel chamou-lhe “pulseira
de dedo”.
É preciso sublinhar que os cientistas ainda debatem se animais como
Koko e Alex possuíam verdadeiramente a capacidade para comunicar. A
ciência exige uma objetividade rigorosa na verificação de resultados, mas
a linguagem é subjetiva e, como todos sabemos, é muitas vezes ambígua.
No estudo da inteligência animal, os cientistas partem muitas vezes de um
princípio chamado Cânone de Morgan. No essencial, afirma que não
devem atribuir-se a um animal processos psicológicos superiores se o
mesmo comportamento puder ser atribuído a qualquer coisa mais simples,
como um erro.
Eugene Linden, o autor de Apes, Men and Language, descreve a mesma
situação com Washoe, uma chimpanzé e o primeiro símio a aprender
linguagem de sinais: “Há cerca de 50 anos, num lago no Oklahoma,
Washoe viu um cisne e fez os sinais para ‘pássaro’ e ‘água’. Estava a
assinalar simplesmente um pássaro e a água ou estava a combinar os dois
sinais que sabia descreverem um animal para o qual não possuía uma
palavra específica? O debate prosseguiu durante décadas e ficou sem
resolução quando ela morreu.”
Haverá, no entanto, uma maneira de resolver o debate, através do
controlo do ambiente sobre o qual são colocadas perguntas aos animais.
Na Noruega, cientistas encontraram uma forma inteligente de fazer isto,
ao treinarem cavalos para comunicar com símbolos. A tarefa era simples:
os cavalos eram ensinados a usar os focinhos para apontar para um
quadro, indicando se queriam usar uma manta. Uma barra vertical
significava “tirar a manta”, uma horizontal queria dizer “pôr a manta” e
um símbolo em branco indicava que preferiam “não mudar”.
Ao fim de apenas duas semanas de ensinamento, durante 15 minutos
diários, os animais eram capazes de usar os símbolos para comunicar. Os
cavalos não estavam simplesmente a identificar sinais visuais; estavam a
tomar decisões com base no tempo que fazia. Nos dias quentes, quando a
temperatura andava entre os 20 e os 23 graus Celsius, todos os dez cavalos
a quem tinham sido colocadas mantas pediam que elas fossem retiradas.
Os cavalos sem manta indicavam “não mudar”. Nos dias frios e chuvosos,
quando a temperatura estava entre os 5 e os 9 graus Celsius, todos os dez
cavalos com manta preferiam “não mudar”, enquanto dez dos 12 cavalos
que não estavam tapados indicavam que a sua preferência era “pôr a
manta”.
O facto de 20 dos 22 cavalos quererem uma manta em dias frios sugeriu
aos investigadores que os cavalos percebiam de facto os símbolos visuais
e faziam pedidos. Quanto aos dois resistentes, em dias mais frios, quando
as temperaturas estavam entre menos 12 e 1 grau, acabaram por ceder e
juntaram-se aos outros.
Ainda que estes “cavalos falantes” sejam impressionantes, o melhor
comunicador animal do mundo, pelo menos quanto à utilização de
símbolos visuais, é Kanzi, um bonobo macho que vive em Des Moines, no
Iowa, na Great Ape Trust. Kanzi possui um vocabulário de 500 palavras
sob a forma de símbolos num touch screen, chamados lexigramas, percebe
mais de três mil palavras em inglês e afirma-se que entende frases
completas e instruções.
Com uma máscara de soldador posta, para que as suas expressões ou
movimentos dos olhos nada revelassem, a treinadora de Kanzi, Sue
Savage-Rumbaugh, realizou experiências em que introduziu frases novas
e pedidos estranhos, para ver exatamente o que Kanzi percebia. Quando
lhe foi pedido que pusesse sal numa bola, Kanzi pegou rapidamente no
saleiro e fez o que lhe era solicitado. Quando a treinadora lhe pediu para
pôr no frigorífico agulhas de pinheiro, Kanzi também não mostrou
qualquer problema em executar a tarefa. E quando lhe pediu para levar a
televisão para o exterior, Kanzi levantou-se, olhou em volta, viu o
aparelho e levou-o lá para fora.
Para compreender até que ponto isto é extraordinário, é preciso parar e
tentar avaliar o que poderia estar Kanzi a pensar. Muitos humanos têm
dificuldade em perceber uma língua estrangeira. Estes animais não estão
apenas a lidar com uma língua estrangeira, mas com os pedidos de outra
espécie. Se Kanzi é suficientemente esperto para aprender aquilo que
muitos de nós não somos capazes, não é implausível imaginar que possa
ter pensado para que é que a sua treinadora queria pôr no frigorífico
agulhas de pinheiro. O que poderá ter pensado do ser humano que estava à
sua frente antes de se levantar e de, mais uma vez, fazer o que lhe era
pedido?
Nesta altura, é justo perguntar: se os bonobos e os chimpanzés são
capazes de o fazer, seremos nós capazes? As focas e os golfinhos
entendem os sinais que fazemos com as mãos, os cães e os elefantes
percebem as nossas ordens vocais, os orangotangos até são capazes de
usar iPads para comunicar connosco. Mas o que é que nós percebemos das
linguagens de outros animais? O que será que eles veem e descrevem nas
suas próprias línguas? Como observou a jornalista de ciência Rachel
Nuwer, ao “tentar obrigar macacos a aprender a nossa linguagem, ficámos
cegos em relação à linguagem deles”. Para descobrir isso, um homem tem
passado muita da sua carreira académica a fazer as coisas da maneira
inversa, e desse modo abriu um caminho totalmente novo para examinar
como é que os animais comunicam nos seus próprios termos. O seu nome
é Con Slobodchikoff e já lhe chamaram um Doutor Doolitle dos tempos
modernos.
Slobodchikoff, professor emérito de biologia na universidade Northern
Arizona, trabalha com cães da pradaria da espécie Gunnison, pequenos
animais muito vocais que se parecem com uma versão norte-americana
dos suricatas61. Com as cabeças saídas das suas tocas, os cães-da-pradaria
estão muitas vezes em alerta máximo contra predadores. Notando que eles
emitiam sinais de alerta, Slobodchikoff começou a gravar os sons que eles
faziam à aproximação de predadores diferentes. Para os nossos ouvidos
humanos, estes sinais são, na maior parte dos casos, os mesmos; pequenos
latidos em sucessão curta, que quase parecem produzidos por um daqueles
brinquedos que guincham. Mas uma análise em computador revelou outra
coisa: cada um destes sinais era único. E através da visualização das ondas
de som dos alertas, num sonograma, Slobodchikoff foi capaz de ver que os
latidos eram claros e distintos para os diferentes predadores.
Os latidos para “humano”, “falcão”, “coiote” e “cão” têm todos
sonogramas acústicos próprios, com diferentes comprimentos de onda e
amplitudes. E apesar de alguns dos predadores parecerem semelhantes, os
cães-da-pradaria nunca ladram “cão” quando vêm um coiote, ou vice-
versa. Para Slobodchikoff e para a sua equipa de investigadores, os
sonogramas foram uma forma de descodificar a comunicação entre os
roedores, como se se tratasse de uma Pedra de Roseta dos cães-da-
pradaria.
Mas como é que podemos ter a certeza de que os sinais significam
aquilo que nós pensamos? Slobodchikoff não gravou apenas os latidos de
alerta dos cães-da-pradaria, também registou em vídeo as maneiras como
escaparam. Quando viam um falcão, os animais olhavam para cima,
davam um latido rápido monossilábico e enfiavam-se pelas tocas abaixo.
Quando era reproduzida uma gravação sonora com o mesmo latido, a
resposta era a mesma: os animais olhavam para cima e procuravam no céu
e depois refugiavam-se logo nas tocas. No entanto, quando era
reproduzido o som de um cão, os cães-da-pradaria ficavam alerta, mas não
fugiam.
Robert Seyfarth tem feito um trabalho semelhante com macacos-vervet.
Os primatas têm diferentes sinais de alerta, ou “palavras”, para falcões,
cobras e leopardos. Os macacos respondem ao alerta de leopardo correndo
por uma árvore acima, mas quando há um alerta de falcão olham para
cima e procuram terreno seguro, escondendo-se no bosque. Quando há
alertas de falcão evitam subir às árvores, presumivelmente porque as aves
de rapina os apanharão mais facilmente lá em cima. Entre o grupo, estes
sinais possuem um significado evidente. Quando um macaco-vervet emite
um alerta para cobra, os primatas erguem-se nas patas de trás e começam a
procurar sinais do predador que espreita entre a vegetação.
Slobodchikoff levou a sua observação um passo mais longe. Queria ver
como reagiriam os cães-da-pradaria a qualquer coisa abstrata, que nunca
antes tivessem visto, e construiu em cartão círculos, quadrados e
triângulos. Depois, ele e a sua equipa esticaram uma corda entre uma
árvore e a sua torre de observação, penduraram as figuras em cartão a
cerca de um metro do solo e puxaram-nas para trás e para a frente como se
fossem peças de roupa a secar numa corda. Os cães-da-pradaria
responderam às novas “ameaças” produzindo latidos diferentes.
Incrivelmente, os animais tinham sinais distintos para “círculo” e para
“triângulo”, ainda que para a colónia estas formas fossem inteiramente
novas.62
Slobodchikoff tinha também reparado que os apelos dos cães-da-
pradaria pareciam conter nuances. Pensou se cada um desses apelos não
teria na verdade mais informação, se o sinal para “cão” era o mesmo para
todos os cães ou se os apelos seriam diferentes conforme a raça. Por isso,
fez passar pela colónia quatro cães diferentes: um golden retriever, um
husky, um dálmata e um cocker spaniel. Quando analisou os sons,
descobriu que os cães-da-pradaria emitiam na verdade mais do que
simples alertas a avisar para a presença de um cão. Teve o palpite de que
podiam ser descrições.
Colocando pessoas no papel de intrusos da colónia de cães-da-pradaria,
Slobodchikoff começou a registar grandes diferenças nos sinais de alerta.
Eram diferentes consoante as pessoas eram baixas ou altas. Também
tinham em conta a forma: os latidos eram diferentes se as pessoas eram
magras ou gordas. E, por fim, surgiu outra distinção incrível: os roedores
tinham latidos específicos dependendo da cor das roupas que as pessoas
usavam.
Ao controlar as variáveis, Slobodchikoff conseguia descobrir o que
estava a acontecer. Pôs os seus assistentes a caminharem sozinhos pela
colónia, mudando uma variável: a cor da t-shirt. A mesma pessoa andava
pelo terreno com uma t-shirt azul, verde ou amarela. Os resultados foram
nada menos do que extraordinários: os latidos dos cães-da-pradaria eram
realmente descrições dos intrusos.
Slobodchikoff tinha decifrado aquilo que os animais diziam uns aos
outros sobre nós. Quando um dos seus assistentes usava roupa azul, os
cães-da-pradaria ladravam “alto, magro, humano, azul” e quando a t-shirt
mudava, a informação era “alto, magro, humano, verde”.
A nossa bolha é a crença na excecionalidade humana: em sermos a
única espécie com consciência suficiente para sentir, falar e pensar. Como
mostram os estudos de Slobodchikoff, os cães-da-pradaria conseguem
descrever com precisão o mundo à sua volta, não porque sejam treinados
para usar rótulos, mas porque estão a comunicar naturalmente aquilo que
veem.
É irónico que digamos que alguém é “cego como um morcego”, porque
os morcegos possuem na verdade duas maneiras de ver. O homem que
descobriu isto, e que em 1944 cunhou o termo ecolocalização, foi o
zoólogo Donald Griffin. Passou a primeira metade da sua carreira
académica a estudar os traços notáveis desta visão sónica e a última
concentrado numa forma específica de cegueira humana: a crença de que
os humanos são os únicos seres conscientes e sencientes da Terra. Este
ângulo morto tem tido uma presença importante nas ciências,
particularmente entre os estudiosos de comportamento animal, que até há
pouco tempo fizeram lóbi contra as provas de consciência animal,
afirmando que os estudos que as apoiavam não tinham sustentação e eram
“não científicos”.
Tal como muitos pensadores do passado que desafiaram o statu quo,
Griffin deparou com uma barragem de críticas em resposta ao seu trabalho
inicial na área. Um crítico afirmou anos mais tarde que o seu livro de 1976
The Question of Animal Awareness era como “Os Versículos Satânicos da
cognição animal”. Na área de Griffin houve os que lamentaram que um
cientista, em tempos grande, tivesse caído e viram nesta nova
extravagância sobre consciência animal um sinal provável de “senilidade
prematura”. Claro que faríamos bem em recordar que os maiores cientistas
sempre questionaram o papel central da humanidade. Precisamente o pilar
central desta ideia – questionar que o universo gira à nossa volta – foi
aquilo que fez Copérnico ser proibido e Galileu ser preso.
A excecionalidade humana é, contudo, imensamente persistente.
Referimo-nos aos animais como se fossem objetos. Um animal é uma
“coisa”. A ideia de que os animais são infra-humanos, sem consciência e
inteligência, de que são inferiores, levou-nos a tratá-los como se não
fossem apenas propriedade, mas como máquinas biológicas. Nos
primeiros anos dos testes laboratoriais em animais, a lógica era a de que os
animais não “sentiam”, só reagiam: se “um cão uiva quando o seu corpo é
magoado, a vocalização não é a expressão de dor, mas somente o
resultado de um processo puramente fisiológico, como se fosse um relógio
a soar”. Como se a nossa própria dor não fosse fisiológica.
Para o primatólogo Frans de Waal, este tipo de pensamento é uma forma
de neocriacionismo, uma espécie de teoria da evolução decapitada. Como
ele escreveu: “Aceita a evolução, mas só pela metade […] Vê a nossa
mente como tão original que não faz sentido compará-la com outras,
exceto para confirmar o seu estatuto de excecional.” É como se a evolução
tivesse parado na cabeça e, no entanto, quando se trata do corpo, sentimo-
nos mais confiantes em relação àquilo que tomamos ou aplicamos nos
nossos corpos depois de o termos testado em animais. Na verdade,
fazemos ensaios de medicamentos em animais antes de os realizarmos
com humanos, precisamente porque acreditamos que os efeitos, dadas as
nossas semelhanças, podem ser extrapolados.
E, no entanto, também é importante que respeitemos que temos
diferenças e que é tão impossível estar na mente de outro ser humano e
saber como ele vê o mundo como conhecer realmente como é que um
morcego, um chimpanzé ou um escaravelho vê esse mesmo mundo. O
filósofo norte-americano Thomas Nagel observou, num ensaio que se
tornou famoso, “What Is It Like to Be a Bat?” (“Como é ser um
morcego?”):
“Mesmo sem o benefício da reflexão filosófica, qualquer pessoa que tenha passado algum
tempo num espaço fechado com um morcego excitado sabe aquilo que é o encontro com uma
forma de vida fundamentalmente alien […] O sonar dos morcegos, embora seja claramente
uma forma de perceção, não é semelhante no seu funcionamento a qualquer sentido que
possuímos, e por isso não existe razão para supor que seja subjetivamente como qualquer
coisa que possamos experimentar ou imaginar. Isto parece criar dificuldades à noção de como
é ser um morcego […] Quero saber o que é, para um morcego, ser um morcego. No entanto,
se tento imaginar isto, estou restringido aos recursos da minha própria mente, e esses recursos
são inadequados para a tarefa.”
As nossas mentes são como aliens em relação a outras formas de vida
na Terra, como as deles são aliens em relação à nossa. E embora possamos
pensar que os nossos animais domésticos sabem quando estamos
contentes ou nos confortam quando estamos tristes, partimos do princípio
de que eles são capazes de dar o salto quântico que nós próprios não
estamos dispostos a dar na direção contrária.
Embora possamos nunca vir a saber o que outro animal está a sentir ou a
pensar, já não é um descaramento científico afirmar que eles sentem e
pensam. Assistimos a grandes revoluções no pensamento científico, mas
ainda permanece um certo dogmatismo no capítulo da inteligência animal.
Felizmente, dissipam-se lentamente as noções rígidas do nosso especismo.
Em 7 de julho de 2012, a Declaração sobre a Consciência de Cambridge
foi assinada por um destacado grupo internacional de neurocientistas
cognitivos, neurofarmacologistas, neurofisiologistas, neuroanatomistas e
neurocientistas computacionais. Juntos, declararam que “provas
convergentes indicam que os animais não humanos possuem os substratos
neuroatómicos, neuroquímicos e neurofisiológicos de estados de
consciência, em conjunto com a capacidade de exibir comportamentos
intencionais. […] O peso das provas indica que os humanos não são os
únicos a possuir os substratos neurológicos que geram a consciência.
Animais não humanos, incluindo todos os mamíferos e as aves, e muitas
outras criaturas, incluindo os polvos, também os possuem”.
O velho ditado afirma que “os olhos são a janela da alma”. Na ciência, a
existência de uma alma pode ser impossível de testar e inverificável, mas
a existência de uma consciência, não. Os nossos próprios olhos são uma
janela para uma só forma de ver o mundo, uma amostra de consciência
entre milhões de outras formas inimagináveis de o perceber.
Não podemos confiar nos nossos sentidos para perceber o grande
quadro da realidade. Na verdade, em relação àquilo que nos rodeia, já
revelámos três grandes ângulos mortos. Os nossos olhos nus e o senso
comum far-nos-iam acreditar que somos o centro do universo, isolados e
separados do mundo à nossa volta, e superiores a todas as outras criaturas.
Mas com as lentes de correção da ciência, todas estas três suposições
podem ser desfeitas.
Conseguimos, contudo, dominar a visão de outra forma. Somos uma
espécie singular, com câmaras e visores de alta tecnologia por toda a
parte. Possuímos as lentes tecnológicas para ver através das vastas
distâncias do espaço, para observar até os mais ínfimos organismos
microscópicos, para olhar através do corpo humano e para espreitar os
próprios átomos que compõem o mundo material. Mas há uma coisa
fundamental que não vemos. Quando chega à questão de como sobrevive
a nossa espécie, somos completamente cegos.
51
O estudo foi atualizado desde então de modo a incluir imagens de rostos em 3D. Descobriu-se que
“os peixes eram capazes de continuar a reconhecer a imagem mesmo que o rosto sofresse rotações de
30, 60 e 90 graus, passando de vista frontal a perfil”.
52
Embora estudos anteriores tenham feito esta sugestão, um novo estudo detalha a descoberta. Para
já, é necessária mais investigação.
53
As abelhas conseguem ver na faixa entre os 600 e 300 nm. Mas como é que sabemos o que uma
abelha consegue ver? “Conseguimos saber se um animal é capaz de ver luz de um comprimento de
onda específico testando se essa luz atravessa o cristalino do seu olho. Um cristalino humano
saudável bloqueia a luz ultravioleta, por isso não a conseguimos ver. Mas, para outras espécies, ver
ultravioleta pode facilitar a visão com menos luz.”
54
Uma visão 20/200 define a cegueira em termos legais. Uma pessoa com visão 20/20 deve ser capaz
de ler uma letra E maiúscula na tabela de Snellen a uma distância de 200 pés (cerca de 60 metros),
enquanto uma pessoa com visão 20/200 só consegue vê-la a seis metros.
55
Dito isto, em termos comparativos com a maioria das espécies, testes de acuidade visual humana
mostram que somos capazes de ver muito bem os pormenores. Investigadores que estudaram 600
espécies animais descobriram que a visão humana é cerca de sete vezes mais apurada do que a de um
gato, 40 a 60 vezes mais do que a de um rato ou de um peixinho dourado e centenas de vezes mais do
que a de uma mosca ou de um mosquito.
56
Cientistas têm sugerido que esta capacidade possa ser adotada na criação de algoritmos para robôs
ou carros autónomos, uma forma de as máquinas poderem saber o seu paradeiro sem input ou
interferência humana.
57
Misteriosamente, o animal com o maior número de opsinas é a Daphnia pulex, a pulga-de-água,
cujo genoma apresenta uns extraordinários 46 genes de opsinas.
58
Mais especificamente: escutando a força do sinal que volta, a direção e o tempo que os ecos levam
a regressar do objeto em que embateram, o cérebro é capaz de realizar uma triangulação e de criar
uma imagem com a forma do objeto.
59
Em 1938, um estudante de Harvard, Donald Griffin, usou um gravador de som para registar os
sons que os morcegos faziam e que se encontravam acima do espetro de frequências da audição
humana. Esta foi a primeira prova de que os morcegos utilizam a geolocalização.
60
Abelhas sem treino apenas “marcaram golo” por acaso: 30 por cento das vezes.
61
Os suricatas pertencem a uma família de mangustos, enquanto os cães-da-pradaria são roedores.
Por isso, embora pareçam semelhantes, são muito diferentes.
62
Os cães-da-pradaria pareceram incapazes de distinguir a diferença entre um quadrado e um círculo.
PARTE DOIS
63
Depois de examinar 30 livros de receitas de chefes destacados, Ike Sharpless publicou um estudo
intitulado “Making the Animals on the Plate Visible: Anglophone Celebrity Chef Cookbooks Ranked
by Sentient Animal Deaths”. Postos por ordem, verificou-se que o pior infrator era Batali’s Molto
Gusto: Easy Italian Cooking, com uma média de 5,25 mortes por receita e um total de 620 mortes de
animais.
64
O espaço extra na Europa significa, contudo, que os animais estão ligeiramente mais livres para se
mexerem. Com aves que não estão tão doentes ou sujas, há menos necessidade de descontaminação
química. O mesmo é verdade para a diferença nos ovos. Nos supermercados norte-americanos, os
ovos são sempre vendidos refrigerados, enquanto na Europa se encontram à temperatura ambiente.
Isso é porque as condições de postura de ovos nos Estados Unidos são mais sujas e, por isso, os ovos
têm de ser pulverizados com um desinfetante químico. A partir do momento em que são lavados em
água quente, têm de ser mantidos num ambiente refrigerado.
65“A
palavra ‘lixo’ não é empregue por acaso. Misturado com os cereais pode estar um sortido de
lixo, incluindo vidro moído de lâmpadas, seringas utilizadas e os testículos moídos dos seus animais
jovens. Numa herdade agrícola, há muito pouco desperdiçado.” – Paul Solotaroff, “In the Belly of the
Beast”, Rolling Stone, 10 de dezembro de 2013.
66
Segundo a FAO, das Nações Unidas, 25 por cento da terra do planeta encontra-se degradada, mas
em áreas como a África subsariana, América do Sul, Ásia do Sueste e Europa do Norte os problemas
com a qualidade do solo afetam a utilização de mais de metade da terra.
67
Na Amazónia desflorestada, 80 por cento da soja cultivada vai para alimentar animais. A terra
desmatada é também usada para pasto de gado bovino. Animais exóticos como jaguares, preguiças e
tamanduás estão a desaparecer da região, onde entre 2011 e 2015 foram eliminados 700 mil hectares
de floresta. Por cada hambúrguer ou asinha de frango há a perda correspondente de animais
selvagens que habitavam áreas ecologicamente ricas como o Congo, a floresta amazónica ou os
Himalaias. Uma vez estabelecida a relação, ela torna-se evidente. Para criar o que não é natural,
estamos a destruir o natural.
68
Os preços variam. No mínimo, o esperma de boi pode ser vendido por entre cinco a 15 dólares por
amostra; no máximo, com touros Wagyu, o preço por amostra pode atingir os dois mil.
69
Touros famosos até merecem obituários. 1 de novembro de 1990 – 24 de outubro de 2005.
Internacionalmente respeitado, o 71HO1181 Comestar Leader EX EXTRA era considerado o
verdadeiro touro de lacticínios. Deixou nas filhas, dos pés à cabeça, a marca dos lacticínios,
produzindo grandes produtoras de leite, vencedoras de prémios e uma descendência altamente
classificada, fazendo produtores satisfeitos em todo o mundo. “Em termos de produção de lacticínios
este touro foi responsável por uma força tremenda, com grande textura de úberes e qualidade óssea”,
observou Lowell Linsay, Analista de Descendência da Semex. “Era semelhante às três irmãs em
largura de peito, grandes patas e pernas e, como as irmãs, passou às filhas essas caraterísticas.” O
impacto do líder na indústria far-se-á sentir durante gerações, já que só no Canadá tinha 20 mil filhas
referenciadas. É só por si, seguramente, uma estatística impressionante, mas juntem a isso o facto de
67 por cento dessas filhas terem a classificação GP ou superior (270 EX e 3.411 VG) e é fácil ver
porque é que o Leader continuará a ser lembrado em qualquer parte do mundo em que haja apreço
pelas vacas leiteiras.
70
“A nossa maneira de trabalhar com este problema tem sido favorecer, com cuidado, um caminho
intermédio. Qualquer semente recolhida do rebanho é analisada pelo seu aspeto e cheiro. Qualquer
desvio de cor, composição ou cheiro é interpretado como anormal e a amostra é rejeitada.”
71
A elevada taxa de nascimento nos porcos está a levar a uma crescente taxa de mortalidade nas
mães, porque o número de partos está “relacionado com um aumento perturbante de prolapsos – o
colapso do reto, vagina ou útero do animal”.
72
“Em algumas regiões, a grande maioria da alimentação dos rios de alta montanha provém da chuva
e do degelo de neve, não dos glaciares que derretem.” No entanto, algumas regiões estão dependentes
do degelo de glaciares.
73
Uma destas é a anchoveta, uma espécie de anchova que desde há milhares de anos tem alimentado
os peruanos.
74
No Iowa, por exemplo, o gado é vendido por “unidades animais”, não por contagem de cabeças, e
é medido por peso de acordo com o equivalente do gado de tamanho padrão. Sendo assim, considera-
se que um porco representa 0,4 de uma unidade animal.
5
Ouro Negro
O obscuro, acabamos por o vislumbrar.
Mais difícil é ver o que é claro como água.
EDWARD R. MURROW
75
Foi Thomas Edison, o célebre inventor e criador do primeiro aparelho elétrico DC, que começou a
esconder, em Manhattan, o “esparguete negro”, que eram os fios de eletricidade. Depois de muita
persuasão, o presidente da câmara de Nova Iorque aceitou com relutância a proposta de Edison para
escavar as ruas e enterrar 24 quilómetros de cabos para levar “luz elétrica” às casas das pessoas. Mas
o projeto de Edison não perdurou, porque ele acabou ultrapassado por outro inventor célebre: Nikola
Tesla. Os sistemas de distribuição de corrente alternada (AC) de Tesla eram capazes de levar a
eletricidade a distâncias muito maiores. Isto significava que os geradores não tinham de ser grandes
mamarrachos à vista de todos e podiam ser construídos longe das cidades, mas queria também dizer
que a nossa fonte de energia ficaria escondida de nós.
76
Como Bakke assinala, as quebras de energia são de 120 minutos em média nos Estados Unidos e
aumentam de ano para ano; noutros países, são de dez minutos e estão a diminuir.
77
Será talvez uma surpresa saber que os eletrões se movimentam pelos fios de uma forma
incrivelmente lenta – na verdade, mais lenta do que se fossem tartarugas. Falamos de uma velocidade
de deriva de cerca de 1 metro por hora. Enquanto ínfimas partículas subatómicas, os eletrões não são
ordenados. Movem-se de forma aleatória. E, numa corrente alternada (AC), que é a que hoje existe
na rede, os eletrões estão constantemente a avançar e a recuar.
78
O lítio também é extraído da pegmatite. É um tipo de exploração mineira mais tradicional, em que
o metal é retirado do minério, e é comum em regiões da Austrália e partes da China.
79
Ou seja, menos toda a energia que foi absorvida na fotossíntese, ou no ciclo hidrológico, ou nas
muitas outras coisas indispensáveis que o Sol fornece.
80
Onde não há quedas de água naturais, a engenharia cria umas artificiais, em que são usados
declives para canalizar água através de túneis, aproveitando a força da gravidade, para conseguir o
mesmo efeito.
81
As Cataratas de Niagara produzem hoje quase dois milhões de quilowatts de energia no lado
canadiano e 2,4 milhões no lado norte-americano.
82
Até 2020, o número deve aumentar para aproximadamente 100 milhões de barris por dia.
83
Os picos no preço do petróleo podem ter um grande impacto sobre as forças armadas,
representando um custo de milhares de milhões de dólares por cada 10 dólares de aumento no preço
de um barril. Por causa disso, os militares também apostam na utilização da tecnologia verde e solar.
84
Se pegar em duas latas abertas de refrigerante, deixar uma à temperatura ambiente e colocar a
outra no frigorífico, a mais fria terá mais gás, porque consegue conter mais gás dissolvido. O mesmo
é verdade para a água do oceano. Água mais fria é capaz de “manter” oxigénio, enquanto águas mais
quentes o libertam para a atmosfera.
85
Investigadores dizem que ocorreram a meio do Cretáceo entre dois e sete grandes eventos anóxicos
oceânicos.
86
Cientistas da universidade de Alberta possuem provas que sugerem que o vulcanismo submarino
pode ter sido responsável por uma extinção maciça há 93 milhões de anos, que conduziu à formação
das mais importantes reservas de petróleo.
87
Quatro litros de gasolina contêm 31 milhões de calorias.
88
A procura de carvão caiu na Europa e nos Estados Unidos, mas essa quebra tem sido compensada
pela procura na Índia e em outros países da Ásia.
89
A luz do Sol é responsável todos os anos pela floração de mais de 5.500 milhões de toneladas de
fitoplâncton. Estes microrganismos unicelulares, que captam a luz do Sol, são os produtores
principais da cadeia alimentar, absorvendo a energia solar. A sua morte, ao longo de milhões de anos,
capturou e armazenou esta energia, fazendo do petróleo aquilo que ele essencialmente é: uma bateria
natural gigantesca.
90
O geoquímico Martin Fowler sugeriu que os níveis de anoxia no Cretáceo seriam semelhantes aos
que presenciamos no Mar Morto.
91
“Já com níveis de oxigénio baixos, estas regiões continuam a crescer, horizontal e verticalmente.
Estão incluídas grandes partes do Pacífico oriental, quase toda a baía de Bengala e uma área do
Atlântico ao largo da África Ocidental tão vasta como os Estados Unidos […] A zona ao largo da
África Ocidental cresceu 15 por cento desde 1960 – e 10 por cento só desde 1995. No Pacífico, a 200
metros de profundidade ao largo da Califórnia, os níveis de oxigénio caíram 30 por cento em alguns
pontos ao longo de um quarto de século.”
92
Qual a dimensão de um ângulo morto? É de tal modo abrangente que podemos nem dar pelo
problema quando estamos a conduzir sentados nele. Os automóveis que consomem muito são,
obviamente, parte do problema. Mas o que é menos óbvio é que, dependendo de onde se vive, o
veículo elétrico ou híbrido pode nem ser mais limpo do que um SUV de grande consumo. Cerca de
um terço da nossa eletricidade provém do carvão, que está entre os combustíveis mais sujos. Ou seja,
em alguns lugares, até a solução é parte do problema. Pensem nos combustíveis fósseis usados para
extrair o metal, fundir, fabricar, transportar e montar uma turbina eólica antes de ela chegar ao ponto
de começar a lançar para a rede eletricidade “limpa” e começarão a ter uma ideia de como até os
mais ambiciosos planos para o futuro estão envolvidos na energia do passado.
6
Lixo & Tesouro
Estamos rapidamente a tornar-nos uma sociedade de plástico.
Em breve, teremos mais em comum
com o Ken e a Barbie do que com o nosso ambiente natural.
ANTHONY T. HINCKS
93
Ao contrário da ideia feita, a Lua possui atmosfera, embora seja insignificante em comparação
com a densidade da atmosfera da Terra. O termo técnico para este tipo de atmosfera livre de colisões
é “exosfera de fronteira superficial”.
94
Em 1832, só em Paris, morreram de cólera 20 mil pessoas.
95
“O solo de noite humano é essencialmente o resíduo do que as pessoas comem depois de terem
absorvido os nutrientes necessários. O solo de noite de uma população que comeu muito peixe e
carne contém geralmente mais azoto e fosfato. As pessoas cuja dieta foi essencialmente vegetariana
(cereais e vegetais) produzem solo de noite em geral pobre em azoto e fosfatos, mas rico em potássio
e sal.” Tajima, Kayo, “The Marketing of Urban Human Waste in the Early Modern Edo/Tokyo
Metropolitan Area” Environment urbain: cartographie d’un concept, Vol. 1 (2007).
96
A Guerra do Guano é também conhecida como Guerra das Ilhas Chincha.
97
Os dejetos de aves retiram todos os anos do oceano 3,8 milhões de toneladas de azoto. O azoto
provém de gases dissolvidos no ar que se misturam com a água e se tornam hidrogénio fixado.
Durante o século XIX, este processo era essencialmente realizado por cianobactérias.
98
Os nitratos tinham um fim duplo: podiam ser transformados em fertilizantes ou em explosivos. Um
carregamento demorava três meses a chegar à Europa. Os alemães, em especial, estavam interessados
em criar a sua própria fonte de nitratos, pois sabiam que em tempo de guerra podiam sofrer um
bloqueio e isso diminuiria a sua capacidade para produzir alimentos e repor as reservas de pólvora.
99
Hoje, entre 90 milhões e 120 milhões de toneladas de azoto no nosso sistema alimentar resultam de
processos naturais, como bactérias que fixam azoto e relâmpagos.
100
Era duas vezes maior do que a primeira fábrica-piloto, em Oppau, que explodiu, matando 600
pessoas e ferindo 200, depois de o fertilizante armazenado num silo ter solidificado. Misturado com
nitrato de sódio, estava a ser manufaturado para se tornar pólvora, mas a combinação revelou-se
instável e provocou uma explosão que ainda hoje é apontada como um dos maiores acidentes
industriais da história. O Leuna abrange hoje 13 quilómetros quadrados.
101
Depois de muitas experiências, a equipa decidiu-se por ferro com óxido de alumínio e cálcio
como catalisador.
102
Todo esse dióxido de carbono em excesso pode ser invisível para nós, mas continua a ser lançado.
Só os resíduos alimentares representam anualmente 3.300 milhões de toneladas de CO2. É mais do
que duas vezes e meia as emissões de CO2 de todos os veículos nos Estados Unidos juntos.
103
Em todo o mundo, cerca de 80 por cento do azoto recolhido em colheitas e erva vai para alimentar
gado, em vez de alimentar diretamente as pessoas. Muito desse azoto acaba no esterco dos animais e
depois transforma-se em gás quando está em imensas lagoas abertas junto de centros de exploração
pecuária intensiva ou quando é espalhado pelos campos sem ser devidamente misturado no solo.
Mingle, Jonathan. “A Dangerous Fixation”, Slate, 12 de março de 2013.
104
É possível haver excesso de uma coisa boa. O processo é semelhante ao da alimentação excessiva
de peixes. O que sucede é que adicionámos artificialmente duas vezes mais azoto e três vezes mais
fósforo do que aquele que estaria presente num sistema natural.
105
Os dias de céu azul político são 4,8 por cento mais baixos do que os níveis médios, mas as leituras
nos quatro dias posteriores são 8,2 por cento mais elevadas.
106
O peso do monte Evereste é de aproximadamente mil milhões de toneladas.
107
O exemplo mais famoso de obsolescência planeada é a lâmpada elétrica. A lâmpada média
incandescente tem hoje uma duração de 1.200 horas. As lâmpadas LED duram cinco vezes mais.
Mas, quando foram inventadas, as lâmpadas duravam muito mais. A verdade é que numa estação de
bombeiros em Livermore, na Califórnia, há uma lâmpada acesa em permanência desde 1901.
108
Existem algumas espécies capazes de biodegradar plástico. A recém-descoberta espécie
bacteriana Ideonella sakainesis, por exemplo, segrega uma enzima que, nas condições ideais de
temperatura, consegue decompor garrafas de plástico.
109
Há um bónus: as emissões de CO2 resultantes da queima dos resíduos são também negativas.
110
“Metais preciosos como o ouro chegam aos esgotos por cortesia de operações de extração de
minério, galvanoplastia, eletrónica e joalharia, ou de catalisadores para a indústria ou para o fabrico
de automóveis.”
PARTE TRÊS
ÂNGULOS MORTOS
CIVILIZACIONAIS
111
As zonas horárias também não são estáticas. Por exemplo, no inverno, a diferença entre Toronto,
no Canadá, e São Paulo, no Brasil, é de três horas. Em março – com as mudanças de hora nos
hemisférios norte e sul – passa a ser de uma hora.
112
Isto é, as minhocas têm dois relógios – um circadiano (baseado no dia) e outro circalunar
(baseado no mês).
113
A fundação Long Now está atualmente a construir um relógio para dez mil anos que só terá um
tique uma vez por ano. A ideia é encorajar as pessoas a terem uma visão a longo prazo quando se
trata da natureza do tempo.
114
Não é uma situação exclusiva do Japão. Charles Czeisler, professor de medicina do sono na
Harvard Medical School, documentou a privação de sono em estagiários de hospitais que às vezes
são colocados em turnos de 24 a 34 horas. A falta de sono envolve perigos reais: os estagiários em
privação de sono cometeram 36 por cento mais erros médicos graves e 5,6 vezes mais erros de
diagnóstico. Também aumentou em 61 por cento o risco de se ferirem com um bisturi ou com uma
agulha.
115
Na Inglaterra do século XIV, os camponeses trabalhavam cerca de 150 dias por ano.
116
Um inquérito a 1.018 norte-americanos empregados a tempo inteiro determinou que 41 por cento
preferiam ter tempo a dinheiro. Mas só 30,3 por cento se disseram dispostos a prescindir do salário
atual para ter um horário melhor.
117
Os operários têxteis no Bangladesh são dos mais mal pagos do mundo. Em média, o salário
mensal anda pelos 68 dólares, o que está significativamente abaixo do que é necessário para viver. É
frequente os operários trabalharem sete dias por semana, com horas extra que podem levar os dias de
trabalho a terem 14 a 16 horas.
118
As transações a alta frequência representam agora entre 50 a 70 por cento de todos os negócios
em bolsa.
119
O cérebro humano necessita de 13 milissegundos para processar uma imagem e são precisos entre
cem e 400 milissegundos para pestanejar. Uma transação a alta frequência entre Chicago e Nova
Jérsia, ida e volta, leva só 13 milissegundos. Isso quer dizer que no instante de um pestanejar podem
realizar-se 30 transações.
120
Alguns físicos, por exemplo, sugeriram que “o universo não tem tempo”.
121
Até a nossa ideia de “agora” opera com desfasamento. Segundo cientistas, o presente psicológico
só tem três segundos e “a nossa consciência anda 80 milissegundos atrasada em relação aos
acontecimentos reais”. Diz o neurocientista David Eagleman: “Quando se pensa que um
acontecimento se dá, ele já aconteceu”.
122
Em anos recentes, estes surtos de calor não têm sido isolados. O dia 21 de fevereiro de 2018 não
foi um caso único. Também em 2016 e em 2017 as temperaturas foram bizarramente elevadas.
8
Invasores do Espaço
A medida é certamente uma ilusão porque não se encontram polegadas por aí – não é
possível pegar numa. As polegadas, na verdade… são imaginárias.
ALAN WATTS
123
Para os seres humanos, o espaço também é emocional. É frequente grupos indígenas referirem a
sua ligação espiritual com a Terra. Todos nós já tivemos essa sensação com um lugar que
conhecemos bem. Temos memórias queridas dos nossos lugares favoritos enquanto crescíamos e,
muitas vezes, uma ligação calorosa com as nossas casas.
124
Com um pedido de desculpas ao bispo George Berkeley.
125
Os impérios precisam de uma consonância ideológica para manterem o seu domínio sobre vastas
áreas. Mao percebeu isto bem quando, em 1949, proclamou o mandarim como língua “oficial” da
China. Quando as pessoas perguntam “Falas chinês?”, estão a amalgamar pelo menos oito grupos
linguísticos e centenas de dialetos diferentes.
126
Como determinou o Supremo Tribunal, “a doutrina legal comum de que a propriedade da terra se
estende até à periferia do universo não tem lugar no mundo moderno”.
127
O astrónomo de Harvard Jonathan McDowell tem defendido que a linha Kármán devia realmente
ser fixada nos 80 quilómetros, uma vez que já foram observados a esta altitude, sem caírem na Terra,
alguns satélites de órbita elíptica.
9
Robôs Humanos
E o que é um bom cidadão?
Simplesmente aquele que nunca diz, faz ou pensa
qualquer coisa de invulgar.
H.L. MENCKEN
Ver É Um Crime?
Jean-Jacques Rousseau afirmou em tempos que “o homem nasceu livre e
em toda a parte está acorrentado”. As correntes não são imaginárias – são
até muito reais –, mas invisíveis a olho nu. E o poder reside nesta
invisibilidade. Todo o nosso planeta está rodeado por olhos. Somos
seguidos por câmaras que estão no céu a 35 quilómetros e digitalizados e
medidos até às linhas e poros da nossa pele. Mas a questão é esta: nem
damos por isso. É um imenso ângulo morto. É como se vivêssemos num
panóptico de alta tecnologia, o edifício prisional circular imaginado pelo
filósofo Jeremy Bentham, onde todos os prisioneiros podiam ser
observados nas suas celas sem sequer saberem que alguém os estava a ver.
Os que observavam conseguiam ver, mas não eram vistos pelos que
estavam a ser observados.
Michel Foucault tinha consciência disto quando afirmou que “o poder
disciplinar é exercido através da sua invisibilidade [e] ao mesmo tempo
impõe aos seus sujeitos uma visibilidade obrigatória. É este facto de ser
constantemente visto que assegura a manutenção do poder que é exercido
sobre eles.” Na mesma linha, num artigo na revista Guernica, John Berger
escreveu que “a melhor maneira de compreender o mundo não é enquanto
prisão metafórica, mas literal”. E que, sem qualquer hipérbole, o nosso
atual estado de coisas é “nada menos do que isso. Por todo o planeta,
estamos a viver numa prisão”.
Ao longo de todo este livro, tem havido um tema recorrente: no século
XXI, encontramos câmaras por todo o lado exceto nos locais de onde vem
a nossa comida, de onde vem a nossa energia e para onde vai o nosso lixo.
São estes os três ângulos mortos do nosso sistema de suporte da vida
humana. O sistema funciona para se proteger – e é por isso que
descobrimos que ele nos cega deliberadamente.
Ryan Shapiro, diretor executivo da organização pela transparência
Property of the People, obtém desde há mais de uma década documentos
ao abrigo da Lei da Liberdade de Informação (FOIA). Num deles,
descobriu que, um ano depois do 11 de setembro, apesar de todas as
prioridades dadas ao combate ao terrorismo em solo americano, o FBI
estava a seguir vegans – mais especificamente numa festa de Halloween.
Está escrito no documento:
SINOPSE: Festa de Halloween vegan
PORMENORES: Filadélfia conseguiu um post online do site Stop Huntingdon Animal
Cruelty (SHAC). O post anuncia uma Festa de Máscaras de Halloween Vegan: “No sábado,
19 de outubro, a começar pelas 19h30 na SHAC de Philly [Filadélfia] vamos ter uma festa de
máscaras de Halloween vegan para angariar fundos para o centro comunitário de Old Pine (na
4th street com a Lombard). Haverá DJ, comida vegan e um estúdio fotográfico para fazer
fotos dos presentes e dos seus acompanhantes no esplendor festivo em que escolherem
apresentar-se.”
E porque é que havia espiões do FBI a controlar uma festa que
provavelmente não tinha nada de mais perigoso do que uns petiscos
vegetarianos de quinoa? Porque os ativistas dos direitos dos animais são
olhados como uma ameaça direta ao sistema alimentar. Como vimos no
capítulo 4, as condições de criação dos animais nem sempre são bonitas.
Para recordar uma frase famosa de Paul McCartney, “se os matadouros
tivessem paredes de vidro, todos seriam vegetarianos”. Mas não são só as
paredes que mantêm escondida a realidade. Olhar lá para dentro pode ser
ilegal. As empresas alimentares que querem ficar protegidas do escrutínio
público avançaram com propostas de leis que visam proibir investigações
encobertas a locais de criação. Propostas pela primeira vez em 2011, estas
leis tornariam crime “produzir um registo que reproduz uma imagem ou
som”141 dentro de uma instalação com animais, ou mesmo “estar na posse
ou distribuir” uma tal gravação.
Vídeos que mostram perturbadores abusos de animais e condições de
criação insalubres já levaram à destruição de grandes quantidades de
carne, o que é mau para o grande negócio. Mas, ao fazerem o trabalho
sujo de expor práticas desumanas e às vezes horríveis, má segurança
alimentar e abusos dos direitos dos trabalhadores, os ativistas dos direitos
dos animais que clandestinamente filmam, fotografam e documentam os
abusos são considerados “ecoterroristas” que cometem um crime e, se
forem apanhados, podem ser multados ou presos.
É frequente as notícias apresentarem os militantes pelos direitos dos
animais como pessoas violentas, que põem bombas, e por isso Will Potter,
autor de Green is the New Red, decidiu ir à fonte e investigar a história
deles. Potter contactou a Fundação para Investigação Biomédica,
organização sem fins lucrativos com sede em Washington, que apoia testes
em animais em investigações médicas e científicas e é hoje o único grupo
em todo o mundo que mantém um registo dos crimes de ecoterroristas. Se
há um grupo que tem interesse em expor os crimes dos ativistas dos
direitos dos animais, é este. Mas aquilo que Potter descobriu foi
surpreendente: “A lista de crimes de ecoterrorismo elaborada por um dos
principais adversários destes movimentos não inclui um único ferimento
ou morte.” E embora tenham sido documentados, nas últimas décadas,
“milhares de atos criminosos violentos”, continua Potter, um relatório que
investiga o tema “menciona 95 crimes entre 1984 e 2002, incluindo
diversos ‘porcataques’. Um porcataque é exatamente o que o nome sugere,
um ataque com um porco. Pensem nos Três Estarolas imbuídos do espírito
revolucionário da Internacional Situacionista.”
É ilegal olhar com demasiada atenção para de onde vem a nossa comida
– e o mesmo é verdade para os nossos sistemas de energia e de lixo. As
empresas e os governos podem espiar-nos, mas nós estamos proibidos de
os espiar e em alguns casos até estamos proibidos de registar um protesto
público.
Em outubro de 2016, as documentaristas Deia Schlosberg e Lindsey
Grayzel foram presas por virarem as suas câmaras para filmar protestos
contra oleodutos. Schlosberg teve de enfrentar três acusações de
conspiração criminosa, arriscando 40 anos na cadeia, por gravar
acontecimentos no oleoduto TransCanada Keystone em Pembina County,
no Dacota do Norte, enquanto Grayzel foi sujeita a uma busca e atirada
para a prisão por filmar um protesto contra um oleoduto em Skagit
County, Washington. Após grandes protestos e o envolvimento de
celebridades, as queixas foram retiradas. No EcoFilm Festival de Portland,
Schlosberg afirmou ao público: “Lindsey e eu nunca tínhamos tido uma
experiência destas: fomos presas por fazermos o nosso trabalho, acusadas
de crimes por fazermos o nosso trabalho.” E, tal como afirmou Dawn
Smallman, diretora do festival: “Se foram capazes de prender Lindsey e
Deia, então são capazes de prender qualquer realizador que apresentamos
aqui no festival. É uma coisa muito arrepiante quando se trabalha nos
media, no cinema e se está a tratar de questões importantes como as
alterações climáticas e as grandes empresas”.
Em comparação com o ativista vietnamita Hoang Duc Binh, as
realizadoras norte-americanas tiveram uma vida fácil. No dia 6 de
fevereiro de 2018, Binh foi condenado a 14 anos de prisão pelo crime de
filmar pescadores que protestavam contra poluição por resíduos. Depois
de um imenso derramamento químico numa enorme fábrica ter devastado
comunidades piscatórias e causado a morte maciça de peixes ao longo de
200 quilómetros de costa, os locais, cujas vidas dependiam das reservas de
peixe, manifestaram-se.
O crime de Binh foi transmitir em direto no Facebook este protesto dos
pescadores. O Tribunal Popular da província de Nghe Na condenou-o por
“abuso das liberdades democráticas para prejudicar os interesses do
estado, de empresas e do povo e por confrontar agentes que cumpriam o
seu dever”. Durante a transmissão em direto, Binh tinha dito aos seus
espetadores que os pescadores estavam a ser espancados pelas
autoridades. O tribunal decidiu que essas afirmações eram caluniosas, o
que Binh negou. No essencial, o crime de Binh foi recusar-se a alinhar na
cegueira oficial.
Nos últimos anos, o silenciamento de ativistas ambientais – os que
documentam coisas erradas sobre os nossos alimentos, produção de
energia e lixo – tem registado um aumento constante. Só em 2017, 197
ativistas ambientais foram assassinados por denunciarem abusos
sistémicos. Segundo a organização sem fins lucrativos Global Witness,
que regista crimes cometidos contra ativistas, em 2016 até quatro pessoas
foram mortas em cada uma das semanas do ano.
A vigilância é então a forma como é mantido o nosso sistema moderno
de suporte de vida. Garante que trabalhamos com eficiência e
produtividade, que somos bons consumidores e compradores, que não
agitamos o barco nem nos desviamos do statu quo. Somos seguidos numa
grelha que já não precisa que “acreditemos” na hegemonia do tempo e do
espaço. O novo sistema é uma manifestação física que procura controlar e
limitar o nosso comportamento através de um aparelho físico.
Seria, contudo, um erro pensar que há por trás disto tudo uma mente
maligna. Não há Big Brother. Estamos todos a olhar uns para os outros
para garantir que andamos na linha. Dizemos a nós próprios que isso nos
mantém seguros, que a vigilância protege as pessoas boas da sociedade ao
vigiar os maus, aqueles que têm um comportamento criminoso. Mas as
pessoas comuns também estão a ser vigiadas e penalizadas pela mais
pequena das “infrações”. E a vigilância moderna também é usada para
seguir e silenciar ativistas que tentem apontar as câmaras ao sistema para
nos mostrarem onde é que as coisas estão a correr mal.
Isso será, talvez, o mais assustador. O nosso sistema de produção de
alimentos e energia e de eliminação de resíduos funciona numa escala
para lá de alarmante. Somos prisioneiros de um sistema que, se não for
fiscalizado, irá, e não é exagero afirmá-lo, destruir a maior parte da vida
na Terra. E, no entanto, a vigilância encoraja-nos, na verdade obriga-nos, a
seguir com a nossa vida como de costume, a fingir que não vemos e a
olhar para o lado.
128
Quem vive nos Estados Unidos e no Canadá, até tem a porta da rua com uma coordenada GPS. O
censo usa GPS para registar as coordenadas de todas as moradas do país.
129
No dia 1 de maio de 2000, o Presidente Clinton acabou com a “disponibilidade seletiva” do GPS,
dando na prática aos civis a mesma capacidade que os militares possuíam. Com isso, fez com que os
sinais se tornassem instantaneamente dez vezes mais rigorosos do que antes. A margem de erro do
GPS, ao ar livre, é de aproximadamente cinco metros. Mas com o desenvolvimento da tecnologia wifi
que permite o seu uso no interior, a precisão pode chegar a um ou dois metros.
130
Os satélites geossíncronos orbitam o planeta em sincronização com o nosso dia sideral, ou seja,
uma vez em cada 23 horas, 56 minutos e quatro segundos, e por isso parecem, para um observador na
Terra, estar no mesmo lugar à mesma hora uma vez por dia. Um satélite geoestacionário também
orbita o planeta uma vez por dia, mas encontra-se estacionado a grande altitude sobre o Equador e,
por isso, parecerá a um observador na Terra que está no mesmo lugar ao longo de todo o dia.
131
A resolução da imagem será de pelo menos 12 centímetros, o que significa que é possível
distinguir, a partir do espaço, um par de tesouras no chão. Mas, dada a dimensão da lente, e o facto de
fornecedores comerciais já estarem a fazer pressão para uma resolução de dez centímetros, os
satélites da classe KH possuem provavelmente uma resolução muito mais elevada do que isso.
132
O Tratado sobre o Espaço Exterior proibiu armas de destruição maciça em órbita e no espaço,
mas não interdita armas convencionais em órbita.
133
Vale a pena lembrar que o nervo ótico transmite ao cérebro informação visual e é também onde se
localiza, em cada um dos olhos, o ângulo morto dos seres humanos. Permite-nos ver, mas a sua
localização também está escondida da nossa vista.
134
Dados de registos públicos indicam uma taxa de 92 por cento falsos positivos em reconhecimento
facial: “Dos 2.740 alertas do sistema de reconhecimento facial, 2.297 eram falsos positivos. Por
outras palavras, em nove em cada dez vezes o sistema assinalou erradamente alguém como suspeito
ou passível de prisão”.
135
O post foi: “Joe Lipari podia entrar numa loja Apple da Quinta Avenida com uma arma
semiautomática Armalite AR-10 com sistema de gás e despejar bala após bala naqueles
assistentezinhos patetas.” A citação original de Clube de Combate é: “E este psicopata reprimido,
vestido à Oxford, podia simplesmente passar-se e saltar de escritório em escritório com uma arma
semiautomática ArmaLite AR-10 com sistema de gás e despejar bala após bala em colegas e
empregados.”
136
Todos os anos, os estudantes recebem o “Inquérito Miúdos Saudáveis do Colorado”, que solicita
pormenores pessoais como que idade tinham quando tiveram a primeira relação sexual, se já foram
sexualmente molestados, quantas vezes conduziram depois de consumir marijuana.
137
A polícia também pode contratar uma empresa como a Cellebrite para desbloquear um telemóvel,
sem precisar de dados biométricos. O custo é de entre 1.500 a três mil dólares por telefone.
138
Segundo um artigo no The Sydney Morning Herald, “a primeira fase da plataforma de informação
de partilha de crédito estava a ser usada por 44 departamentos, em todas as províncias, e por 60
empresas privadas, para revelar informação e ser avaliada para um ‘castigo conjunto’”.
139
Na Índia, os trabalhadores do sistema de saúde estão a tirar impressões digitais a crianças como
forma principal de as identificar sem documentos oficiais.
140
O sistema até pode crescer, ser “expandido, sem custo adicional, para gerir as horas e as
presenças, a admissão a eventos, a segurança em parques de estacionamento e a monitorização de
estudantes que viajam em autocarros escolares”.
141
Onde estas leis foram rejeitadas, os ativistas estão a ser acusados através de outros meios. Por
exemplo, operações de salvamento de animais doentes ou feridos caem sob a alçada das leis federais
de roubo e são puníveis com uma pena que pode chegar aos cinco anos.
10
O Império Vai Nu
Amaldiçoada seja a primeira pessoa que disser “Isto é meu”.
PROVÉRBIO CROATA
O estudo descobriu que, confrontados com as respostas erradas dadas
pelos outros participantes, 75 por cento dos estudantes submetidos ao teste
aceitaram pelo menos uma vez a escolha coletiva; ou seja, afirmaram ver
aquilo que os outros viam, ainda que a resposta estivesse errada. Entre os
que participaram num grupo de controlo, onde não havia atores, menos de
1 por cento deram a resposta errada.
Numa tentativa para descobrir o que se passava no cérebro quando os
estudantes eram submetidos a esta experiência, investigadores da
universidade de Emory modificaram o teste de Asch colocando-os dentro
de uma máquina de ressonância magnética, para ver que partes do cérebro
eram ativadas durante a tarefa. Foi-lhes pedido que realizassem um teste
semelhante, mas em vez de linhas foram-lhes mostrados objetos em 3D. A
expetativa dos investigadores era a de que, se a aceitação do que os outros
diziam resultasse de um processo consciente de tomada de decisões, então
o córtex pré-frontal seria ativado, já que esta é a área do cérebro
relacionada com o planeamento, tomada de decisões e moderação do
comportamento social. Mas tiveram uma surpresa: os que respondiam por
conformidade com os outros mostravam atividade nas áreas parietal e
occipital do cérebro. É aqui que são processadas a informação sensorial e
a visão, o que mostrou aos investigadores que a conformidade não era
somente uma decisão, também estava a exercer sobre a visão uma
influência de perceção. Dito de outra maneira, a conformidade com a
opinião dos outros pode ter alterado a perceção. Para estas pessoas, não
era um caso de ver para crer, mas antes o contrário – crer para ver.
A experiência de Asch sobre a conformidade tem sido muitas vezes
dada como exemplo ao longo dos anos, mas raramente é sublinhado um
aspeto do estudo: a frequência com que as pessoas se recusaram a
responder em conformidade. Sendo verdade que 75 por cento dos sujeitos
do estudo original seguiram a maioria pelo menos uma vez, também é
verdade que 95 por cento se “revoltaram” pelo menos uma vez e
mantiveram aquilo que viam. Mais ainda: 25 por cento recusaram sempre
mudar de opinião.
Duzentos anos antes, David Hume tinha previsto mais ou menos esses
resultados. Na verdade, uma das perspetivas essenciais sobre o
comportamento humano que nos deixou foi sobre a nossa ânsia de
conformidade. E esta conformidade não é benigna; tem enormes
implicações políticas. Em 1741, no tratado Dos Primeiros Princípios do
Governo, Hume observou:
“A força está sempre do lado dos governados, os governantes apoiam-se unicamente na
opinião. Por isso, é sobre a opinião que o governo assenta e esta máxima estende-se aos
governos mais despóticos e mais militares, bem como aos mais livres e mais populares.”
Sendo assim, os tiranos dependem do apoio público, tanto como os
primeiros-ministros e presidentes eleitos. Mas, mesmo quando há uma
maioria, há sempre objetores. Na verdade, os 25 por cento que recusam a
conformidade, que se recusam a ser cegamente governados, são o motivo
pelo qual somos sujeitos a uma vigilância cada vez maior.
E então a maioria? O que causa a sua conformidade? A investigação ao
cérebro tem mostrado que há um preço a pagar pelo pensamento
independente. No estudo de Asch com ressonância magnética, os sujeitos
que recusaram a conformidade mostraram sinais de atividade numa área
do cérebro onde outros sujeitos nada registaram: a amídala, a parte do
cérebro associada a decisões do tipo “lutar ou fugir”. Defender as nossas
crenças tem por isso um preço cognitivo, porque contrariar um consenso
pode representar conflito. Isso provoca angústia e aflição em animais
sociais como nós. No fim, fazer frente à maioria exige uma quantidade
razoável de coragem.
Em grego antigo, a palavra “apocalipse” soa menos como um mau
presságio quando se conhece a sua etimologia. Na definição original, um
“apocalipse” é uma “descoberta” de conhecimento, um levantar do véu,
uma revelação. Na essência, é uma alvorada de clareza. Este género de
revelação é aquilo que filósofos, sábios e cientistas pedem há muito
tempo: que a humanidade esfregue os olhos, acorde e comece a ver as
coisas como elas realmente são, para reconhecer que aquilo a que
chamamos realidade é na verdade uma ilusão.
Muitos grandes pensadores já escreveram sobre a bolha da realidade. Na
alegoria da caverna de Platão, os prisioneiros viam sombras projetadas
contra as paredes da caverna e passaram a acreditar que eram reais;
confundiram aparência e realidade. Os antigos textos indianos de Os
Upanishades continham o conceito de maya, o véu que obscurece o
mundo verdadeiro e eterno. E na filosofia budista o princípio fundador do
dharma, ou lei cósmica, conduz os praticantes numa demanda para verem
a realidade como ela é, em vez daquilo que nos apercebemos que é, e
compreenderam que, neste quadro maior, tudo está ligado.
Para ver o mundo claramente, temos em primeiro lugar que nos dar
conta do véu; precisamos de reconhecer os nossos ângulos mortos. A
forma como passámos a perceber a realidade está tão profundamente
entranhada, encontra-se tão socialmente enraizada, geração após geração,
que perdemos de vista a forma como pensamos. Isto é importante, porque
aquilo que pensamos cria a realidade. O tempo, com os cinco dias de
trabalho por semana e o horário das nove às cinco do mundo “real”, existe
não por causa de alguma ordem temporal cósmica, mas porque nós o
inventámos, o mantemos e se tornou a realidade a que aderimos.
Herdar uma realidade torna muito mais difícil vê-la como o que ela é.
Como Peter Berger e Thomas Luckmann escrevem em A Construção
Social da Realidade, “se uma pessoa afirma ‘É assim que as coisas se
fazem’, é frequente a pessoa acreditar nisso. Então, um mundo
institucional é experienciado como uma realidade objetiva. Tem uma
história que é anterior ao nascimento do indivíduo e não está acessível à
sua memória biográfica. Estava lá antes dele nascer e lá estará depois da
sua morte”.
O nosso mundo construído tornou-se-nos tão real e querido que
esquecemos que aquilo a que chamamos realidade é um produto das
nossas mentes. Esta amnésia coletiva talvez não seja tão surpreendente se
pensarmos nas décadas que passámos a educar e a socializar os jovens.
Esperamos que os nossos jovens cresçam e se conformem como sujeitos
na experiência de Asch, para ver uma realidade que na verdade não está
lá. É irónico, pois, dizermos que as crianças vivem num mundo de faz de
conta, porque na verdade os adultos também vivem. A diferença é que as
crianças são capazes de nos dizer que o mundo delas é inventado,
enquanto os adultos não.
O mundo de faz de conta é hoje tão poderoso que até o seu antecedente,
o mundo natural, se tornou seu refém. Como Yuval Noah Harari escreve
em Sapiens, no passado vivíamos numa realidade dual. “Por um lado, a
realidade objetiva dos rios, árvores e leões; e por outro lado a realidade
imaginada dos deuses, países e empresas. Com o tempo, a realidade
imaginada tornou-se cada vez mais poderosa, de forma que hoje a própria
sobrevivência dos rios, árvores e leões depende da misericórdia de
entidades imaginadas como deuses, países e empresas.”
É com estas entidades fabricadas que legitimamos a nossa prerrogativa
sobre a natureza. Afinal, é isso que deuses, países e empresas fazem. Dão-
nos legitimidade. Apoiam a crença de que o Homo sapiens é dono do
mundo inteiro.
Só uma espécie acredita que é dona do ar, dona da água e dona da terra.
Demos a nós próprios o direito de comprar e vender espaço e comprar e
vender tempo. Na verdade, a base da economia global é essa: a de que
podemos ser donos das próprias dimensões em que habitamos. Mas, ainda
para além disso, os humanos não só são donos do planeta como de toda a
vida que nele habita. Só a nossa espécie funciona com a convicção de que
temos o direito de comprar e vender outras espécies como nos apetecer.
Para nós, a própria vida é um bem. E com o ritmo hiperacelerado das
trocas comerciais, não é surpresa que a própria vida esteja agora a
desaparecer.
Segundo o World Wildlife Fund, em 2020 teremos um impressionante
declínio de 67 por cento nas populações de vida selvagem em todo o
planeta, relativamente a 1970.142 Com as ameaças dos sistemas
alimentares e da agricultura, a perda de habitats e a exploração de
espécies, mais de metade da vida vertebrada – mais de metade dos nossos
mamíferos, aves e peixes selvagens – já desapareceu.
Mas não são só os animais. Enquanto escrevo estas palavras, estou a ver
títulos de notícias que dão conta de um destino triste para os embondeiros.
Estes gigantes antigos, alguns dos quais andam por cá desde que o
Império Romano estava no seu auge, estão a morrer a um ritmo sem
precedentes. O botânico Adrian Patrut acredita que as alterações
climáticas são o culpado mais provável. Desde 1960, o número de
embondeiros em África caiu para metade. Segundo Patrut, que há 15 anos
faz datação de embondeiros por radiocarbono, chegou o momento de
colocarmos estas árvores na categoria das espécies “em perigo”.
É simbólico que a “árvore da vida” de África esteja a morrer. Como o
meu amigo Rob Stewart, um ativista entretanto falecido, observou um dia:
“Em meados do século, se continuarmos na nossa trajetória atual,
estaremos perante um mundo sem cardumes, nem recifes de coral, nem
florestas tropicais, com concentrações de oxigénio em queda e nove mil
milhões de pessoas famintas e sedentas a lutarem pelo que resta […] No
tempo de vida de uma árvore [embondeiro], consumimos a maior parte do
nosso sistema de suporte de vida.”
Esta visão negra do futuro instalou o medo até nos corações dos autores
da ficção científica mais distópica. Como observou sombriamente William
Gibson, poucas pessoas hoje pensam sequer em escrever sobre um futuro
que vá para lá de 2100. Numa entrevista à revista Vulture, Gibson afirmou:
“O que me parece mais sinistro é quão raramente vemos hoje a expressão
‘o século XXII’. Quase nunca.”
Se queremos sobreviver e chegar ao século XXII, vamos precisar de um
novo modelo global. Temos de libertar-nos dos constrangimentos de
ideologias políticas passadas, sejam de esquerda ou de direita, porque
todas elas começam com a pergunta errada. Elas perguntam quem deve ter
o direito de ser dono do mundo e não se devemos sequer ter esse direito.
Ouvimos muitas vezes dizer que é preciso combater o sistema ou que o
sistema está avariado. Mas o que é, exatamente, o “sistema”?143 Onde está
o sistema?
O sistema, como tenho defendido neste livro, é o nosso sistema de
suporte de vida. É o sistema que construímos para não termos de depender
mais dos caprichos dos ciclos da natureza. É o sistema que nos torna a
espécie mais poderosa da Terra. E embora fosse fácil supor que o
propósito do nosso sistema fosse a sobrevivência da nossa espécie, não é.
Se fosse, então todos os seres humanos teriam alimentos e energia
suficientes e espaço e tempo suficientes para prosperar. Mas sabemos que
não é assim. A ironia está em que a nossa sobrevivência é apenas
acessória em relação ao objetivo do sistema: a propriedade. O verdadeiro
objetivo é simplesmente ser dono do máximo de coisas possível: ser dono
de tempo, de espaço, de alimentos, de energia, de tudo exceto do nosso
lixo. É este o modelo que conduz o mundo. Um sistema em que as dádivas
da natureza deixaram de ser grátis. E agora, para adquirir os seus bens,
temos de vender a coisa mais preciosa com que nascemos: o nosso tempo.
Mas há, no entanto, outro fator crítico que nos escapa: onde é que está o
sistema? Não somos capazes de o ver porque ele existe nos nossos
ângulos mortos. É a natureza disfarçada. Hoje, se não conseguimos ver a
nossa ligação ao mundo natural é porque a maior parte dos nossos
produtos não se parecem nada com ele: um nugget de frango não parece
uma ave; o carvão não se parece com uma floresta antiga; e o fertilizante
não tem qualquer semelhança com o ar. A natureza foi transformada num
produto. Na verdade, todos os anos é transformada em biliões e triliões de
produtos. Estes alimentam a nossa população e os nossos apetites vorazes
e em expansão, o que nos leva a saquear estes “recursos” naturais a um
ritmo cada vez maior. Por causa disso, a economia cresce, mas a natureza
morre. E embora sejamos animais espertos, nenhum de nós podia ter
previsto a reviravolta no argumento. Nenhum de nós podia ter adivinhado
que, no fim, teremos de ser nós a desligar o nosso próprio sistema de
suporte de vida, e que, se não o fizermos, ele destruir-nos-á.144
A ameaça é tão real como o sistema é real. Real no sentido em que,
parafraseando Philip K. Dick, os nossos problemas não vão desaparecer se
deixarmos simplesmente de acreditar neles. Mas os sistemas – por muito
sólidos que possam parecer – ainda são construídos sobre o nosso
pensamento coletivo, as nossas formas de ver o mundo. Sendo assim,
podem mudar, mas apenas se mudarmos o pensamento por trás deles.
Como Robert Pirsig escreveu em Zen e a Arte de Manutenção de
Motocicletas, “se uma fábrica for desmantelada, mas a lógica que a
produziu continuar de pé, então essa lógica acabará por produzir outra
fábrica. Se uma revolução destruir um governo, mas os padrões
sistemáticos de pensamento que produziram esse governo permanecerem
intactos, então esses padrões irão repetir-se”.
Do que precisamos, com urgência, é de encontrar uma saída deste
labirinto de espelhos. E podemos encontrá-la com a ciência, porque a
ciência pode destruir velhas visões do mundo. Pode literalmente mudar o
mundo mudando a forma como o vemos.
As grandes mentes da história eram pensadores rebeldes como Galileu,
Darwin e Einstein. Sabemos os nomes deles porque eram revolucionários
ousados e científicos que desafiavam a opinião da maioria e refizeram o
nosso entendimento do mundo. Somos os felizes herdeiros do seu
pensamento radical. Galileu provou que a Terra gira em volta do Sol e
sabemos agora que não nos encontramos no centro do universo. Darwin
uniu os pontos da vida, provando que os animais são nossos familiares,
que fazemos parte de uma longa evolução da vida, não separados, mas
antes ligados a todos os outros seres vivos. E Einstein deu a volta ao que
se sabia sobre as dimensões, provando que o espaço-tempo é relativo para
o observador e que não existe um tempo ou espaço absoluto, fixo.
Estas grandes mudanças de pensamento dificilmente podiam resultar do
senso comum. Na verdade, estão contra aquilo que, com os nossos
sentidos, percebemos ser o mundo. Ao escrever sobre Carl Sagan, a crítica
literária Maria Popova também observou:
“Navegamos pelo mundo através da nossa perceção de senso comum, mas essa perceção
cegou-nos repetidamente para a realidade. Tomámos por factos do universo as nossas
intuições sensoriais – durante milénios, tivemos ideias erradas sobre a forma da Terra, o seu
movimento e posição, porque ela parece plana, estática e no centro da ordem do cosmos.
Desconfiámos de processos e de fenómenos para além das fronteiras daquilo que somos
capazes de tocar e de sentir com os nossos sentidos limitados – desde a evolução, que se
desenrola em escalas de tempo demasiado vastas para ser visível no espaço de uma vida
humana, à mecânica quântica, que opera em escalas subatómicas impercetíveis e quase
inconcebíveis para o observador humano.”
Os nossos sentidos dizem-nos que estamos separados do universo e do
ambiente e dos outros seres vivos. A ciência, contudo, apresenta provas de
que as nossas perceções físicas estão erradas. Esse é o grande dom da
ciência e dos cientistas: testam a realidade, são capazes de examinar os
nossos ângulos mortos com provas que nos dão uma visão mais clara e
mais objetiva do mundo. Os maiores cientistas de sempre são lembrados
por terem rebentado com a nossa bolha da realidade.
Diz-se que é fácil saber uma coisa depois de ela ter acontecido e isso é
mais verdade na ciência do que noutra área qualquer, com velhas ideias
sobre a realidade a parecerem-nos agora absurdas. No seu livro pioneiro
The Structure of Scientific Revolutions, Thomas Kuhn, o físico formado
em Harvard, afirma ter encontrado a sua inspiração para escrever e depois
de estudar a obra de Aristóteles. Kuhn observou que o gigante intelectual
“parecia não só ignorar a mecânica, mas ser igualmente um cientista
bastante mau na área da física”. Mais ainda: “Sobre o movimento, em
particular, os seus escritos parecem-me cheios de enormes erros, tanto de
lógica como de observação.”
A perspetiva essencial de Kuhn foi a de que um pensador brilhante
como Aristóteles parecia, pelos padrões modernos, um perfeito idiota.
Mas Aristóteles funcionava de acordo com um paradigma científico
estabelecido; as suas ideias eram moldadas por uma visão muito especial
do mundo. A epifania de Kuhn foi esta, e levou-o a criar o termo
“mudança de paradigma”: se, no passado, o conhecimento científico tinha
sido olhado como um processo lento, mas acumulativo, que se
encaminhava no sentido de uma maior compreensão da realidade física,
Kuhn mostrava que o conhecimento acontece, na verdade, através de
saltos gigantes e descontínuos. Ou, para usar uma analogia diferente, uma
lagarta não cresce até se tornar uma borboleta; entra numa fase de
crisálida, em que se dissolve numa sopa genética que evolui para um
inseto de aspeto muito diferente, mas que continua a ter uma memória do
seu ser anterior.
Para Kuhn, as revoluções científicas são estas mudanças importantes de
pensamento. Mas também assinalou prontamente que os progressos
científicos não são como as ilusões de ótica da teoria da Gestalt em que,
por exemplo, a perceção que uma pessoa tem de uma imagem pode oscilar
entre duas coisas aparentemente diferentes. É uma mudança maior,
escreveu, do que uma mera ilusão: “As marcas no papel que antes eram
vistas como um pássaro passam a ser vistas como um antílope, ou vice-
versa. O paralelo pode ser enganador. Os cientistas não veem uma coisa
como outra coisa; simplesmente, veem-na.” Fazer essa distinção é muito
importante. Como nota Ian Hacking, o filósofo de ciência, “os cautelosos
dirão que a visão que cada um tem do mundo muda, mas o mundo
permanece o mesmo. Kuhn queria dizer algo bem mais interessante.
Depois de uma revolução, no campo que foi alterado, os cientistas
trabalham num mundo diferente”.
Nós também vivemos num mundo diferente devido a estas revoluções
científicas. As nossas mentes coletivas têm mudado por causa daquilo que
temos aprendido. Embora haja, está claro, aqueles que recusam ver o que
a ciência vê, que confiam apenas nos seus sentidos humanos: os que
acreditam que a Terra é plana e os criacionistas que esperam todos os
frutos do mundo moderno enquanto se recusam a abandonar crenças que
são obsoletas há muito tempo.
Os maiores pensadores da humanidade são, contudo, aqueles que
alargam as fronteiras da visão; são visionários no mais verdadeiro sentido
da palavra, porque veem o que é invisível para o resto de nós. Para
Newton, foi a força invisível da gravidade; para Van Leeuwenhoek foram
os animálculos invisíveis; para Copérnico e Galileu foi o movimento
invisível da nossa Terra imóvel à volta do Sol. Como Kuhn tinha noção,
os cientistas trabalham regularmente com “entidades teóricas, tais como
eletrões, [observando coisas] para as quais não é possível apontar”;
trabalham regularmente num mundo que é invisível.
Por causa disso, há muitas vezes um fosso entre o que a ciência vê e o
que o laico entende. Com acesso a ferramentas tecnológicas modernas,
microscópios eletrónicos, espectrómetros de massa e máquinas de
ressonância magnética, os cientistas conseguem ver aquilo que o resto de
nós não consegue, e isto, além de uma especialização muito elevada,
resulta num significativo fosso de conhecimento entre os cientistas e o
público. Numa sondagem recente efetuada pelo Pew Research Center e
pela Associação Americana para o Avanço da Ciência (AAAS), uma
maioria de norte-americanos, 79 por cento, concordava que os cientistas e
o conhecimento científico não têm preço, mas inquéritos semelhantes têm
mostrado que um número significativo de pessoas não recorre à ciência
para sustentar os seus pontos de vista. Por exemplo, numa sondagem de
2013, apenas 33 por cento do público em geral acreditava que as
alterações climáticas eram um problema grave, em comparação com 77
por cento dos cientistas da AAAS que o afirmava, uma abismal diferença
de 44 pontos percentuais.145 Outra razão para a grande diferença tem que
ver com a forma como a ciência é comunicada ao público. Aqui, a
linguagem pode ter um efeito significativo. Quando os cientistas afirmam
que existe “incerteza” quanto a uma consequência, o público tende a
pensar que isso significa que não se sabe o suficiente, quando uma melhor
tradução do termo, tal como é usado cientificamente, seria “amplitude”.
Do mesmo modo, quando os cientistas falam de “retornos positivos”
quando se discutem alterações climáticas, as pessoas tendem a pensar num
bom resultado, ou em qualquer coisa de positivo, quando na prática a
expressão se refere a um ciclo que se alimenta a si próprio.
As grandes ideias também levam tempo a transmitir, porque as pessoas
são teimosas em relação àquilo em que acreditam. Passado um século
sobre a morte de Copérnico, as suas ideias ousadas ainda tinham poucos
seguidores. E embora as provas inovadoras de Newton estivessem bem
documentadas nos seus Mathematical Principles of Natural Philosophy,
teve de decorrer meio século até as suas ideias serem geralmente aceites.
O vencedor do Nobel da Física, Max Planck, também lamentou que “uma
nova verdade científica não triunfe por convencer os seus adversários e
fazer com que vejam a luz, mas antes porque os seus adversários acabam
por morrer e cresce uma nova geração que a conhece”.
Embora Planck tivesse sem dúvida razão, não temos o tempo de uma
geração para descobrir isto. E Planck não teve a sorte de viver no mundo
de hoje, todo conectado e a alta velocidade, onde temos a possibilidade de
ler, partilhar e comunicar novas ideias uns com os outros
instantaneamente.
Desde 1972, apenas 24 pessoas ultrapassaram a órbita terrestre baixa e
viram o planeta como objeto no espaço. Esse número aumentou com as
missões do vaivém espacial da NASA, em conjunto com as expedições à
Estação Espacial Internacional e às estações Tiangong da China, mas, de
qualquer modo, apenas pouco mais de 500 pessoas tiveram o privilégio de
ver a Terra a partir do espaço. Ou, por outros números: apenas 0,0000072
por cento da população humana usufruiu dessa visão esplendorosa.
Entre aqueles que tiveram esse privilégio, alguns referem uma mudança
de perspetiva radical. Até tem um nome, o “overview effect”, o efeito
panorâmico, uma “consciência espacial” que provoca uma mudança
profunda de pensamento e permite aos astronautas olharem de uma nova
forma para o seu lar terreno. Médicos que analisaram astronautas de
regresso à Terra afirmaram que “a muitos deles, isso deu-lhes uma atitude
especial sobre eles mesmos e a sua relação com os outros. Muitos
tornaram-se mais conscientes da própria Terra, todos eles passaram a ter
uma nova perspetiva da ordem do universo. E aqueles que estão próximos
deles desenvolveram o mesmo tipo de reações, mesmo sem lá terem ido”.
Ao contrário de nós, os homens e mulheres da Estação Espacial
Internacional observam o Sol a nascer 16 vezes por dia e a pôr-se outras
tantas. Mas o que é ainda mais incrível é que, quando olham para baixo,
os nossos relógios e fronteiras terrestres perdem o significado, mesmo que
a estação esteja somente a 400 quilómetros de distância.
Os astronautas também assistem literalmente às revoluções do nosso
planeta. Veem-no a girar sob os seus pés e os seus olhos captam a
magnitude da sua beleza, tal como a escala da sua destruição. Numa
revolução da Terra, conseguem testemunhar a desflorestação, as secas, os
incêndios florestais, as calotes polares a derreter, os furacões e a poluição.
A partir do espaço, a pegada humana na Terra não é uma coisa abstrata.
Não são dados. É visível.
A partir do espaço, até a bolha é real. Pode ser vista como a curva azul
esbranquiçada que nos protege das radiações do espaço. Conhecida como
atmosfera, é a bolha que protege toda a vida na Terra. Mas a bolha é
também uma armadilha. E, como nos dizem os cientistas, o ritmo a que o
CO2 aumenta na atmosfera está a acelerar, e são as emissões destes gases
que mantêm o calor, na maior parte causadas pelos humanos, as
responsáveis pelo aquecimento global.
Mas não é preciso uma epifania precipitada pelo espaço para termos
noção daquilo que estamos a fazer à nossa casa. E embora alguns sintam o
efeito panorâmico, na realidade é um fenómeno que muitos astronautas
não sentem. Como o astronauta Charles Hadfield me contou, não é a visão
de cúpula a partir da Estação Espacial Internacional que altera a
perspetiva, mas sim os próprios pensamentos e experiência de vida. Por
outras palavras, não é preciso ir ao espaço para ver o mundo de uma
maneira diferente. É possível vê-lo de uma maneira nova a partir daqui
mesmo.
Quando nos transformamos, transformamos o mundo. Quando
transformamos o mundo, transformamo-nos a nós. Como Joseph
Campbell explicou no seu livro O Herói de Mil Faces, este é um tema que
atravessa os tempos, em muitas partes do mundo. É a história universal da
viagem do herói e está na base dos épicos mais importantes, dos mitos da
antiga Grécia aos blockbusters de Hollywood como Guerra das Estrelas,
O Senhor dos Anéis ou The Matrix.
No essencial, a jornada do herói desenrola-se num ciclo, ou numa
revolução única. Começa com o herói a viver a sua vida num mundo banal
até que um dia é virado de pernas ao ar, quando descobre que esse mundo,
que ele tinha por garantido, mudou de repente. Vê-se num “mundo
especial, não familiar” e tem de pôr de parte o status quo, ir em busca de
um novo conhecimento. Este conhecimento é utilizado para combater as
provações e desafios que o herói vai enfrentar quando o seu estilo de vida
normal é cada vez mais ameaçado. A certa altura, tudo pode parecer
perdido e a derrota inevitável, mas depois, nos momentos finais, surge
uma nova perspetiva de poder revelador, permitindo que o herói vença e
faça um regresso triunfal. A seguir, o herói dirige-se a casa, agora já
portador de uma nova perspetiva. E embora visto de fora o mundo possa
parecer o mesmo, para o herói ele mudou completamente.
É quase como se estas históricas épicas nos tenham estado a preparar
para este momento específico. Chegámos a uma altura em que cada um de
nós deve erguer-se à altura dos desafios que nos confrontam. É tempo de
nós mudarmos. E embora a maior parte das pessoas ainda viva no “mundo
normal”, para aqueles que são capazes de ver é evidente que o caos
iminente não está muito distante. Na verdade, já estão a aparecer as fendas
na nossa normalidade. Os cientistas dizem-nos que estamos à beira de
mudanças devastadoras e que o mundo em que vivemos agora em breve
estará cercado. Mais ainda: se não formos capazes de responder, teremos
de enfrentar nas próximas décadas não apenas desastres localizados, mas
catástrofes civilizacionais.
Por outro lado, é praticamente uma piada cósmica que estejamos sequer
aqui para enfrentar este momento. Porque, sejamos francos, as hipóteses
contra nós são imensas. Como Stephen Hawking assinalou em Breve
História do Tempo, a existência de vida na Terra exigia condições
perfeitas implausíveis no universo: “Se o ritmo de expansão um segundo
depois do Big Bang tivesse sido mais pequeno apenas numa parte em cem
mil milhões de milhões, teria entrado em colapso antes de atingir a sua
dimensão atual.” Na mesma linha, o biólogo Ken Miller escreveu: “Se g
[constante gravitacional] fosse mais pequena, o pó do Big Bang teria
simplesmente continuado a expandir-se, nunca coalescendo em galáxias,
estrelas, planetas – ou em nós. O valor da constante gravitacional é o
precisamente certo para a existência de vida. Se fosse um pouco maior, o
universo teria entrado em colapso antes de podermos evoluir; se fosse um
pouco mais pequeno, o planeta em que nos encontramos nunca se teria
formado.”
Estes são apenas dois exemplos de mais de 200 parâmetros físicos no
sistema solar e no universo que precisavam de ser quase perfeitos para que
a vida tivesse uma hipótese de evoluir. Mas as hipóteses contra a
existência de cada um de nós ainda são mais elevadas.
Ali Binazir, da universidade de Cambridge, decidiu calcular as
probabilidades de qualquer um de nós nascer. Combinando as hipóteses de
os nossos pais se encontrarem (uma em 20 mil) e de ficarem juntos para
nos conceber (uma em dois mil), as probabilidades básicas de nascimento
começam em um para 40 milhões. Mas isso é antes de se contabilizarem
as probabilidades biológicas. Com a nossa mãe a produzir mais de cem
mil óvulos durante o seu tempo de vida e o nosso pai a produzir mais de
quatro biliões de espermatozoides, as probabilidades de cada um de nós,
especificamente, nascer, são de cerca de um em 400 triliões.
Mas é preciso olhar ainda mais para trás dos nossos pais, porque
pertencemos a uma cadeia ininterrupta de linhagem familiar que remonta a
150 mil gerações humanas. Binazir calcula que estas probabilidades
andem na ordem de 1 em 1045.000, um número demasiado longo para
escrever na totalidade nesta página – ou até neste capítulo. Na verdade, é
um número “não só maior do que todas as partículas do universo – é
maior do que todas as partículas do universo se cada partícula fosse em si
mesma um universo”. Pondo isto em perspetiva, a probabilidade da
existência de cada um de nós é equivalente à “probabilidade de dois
milhões de pessoas se juntarem… para cada uma jogar aos dados com um
dado de um bilião de lados. Todas lançam os dados e a todas sai o mesmo
número”. Ou seja: “As probabilidades de cada um de nós existir são
basicamente zero.”
Pensem nisso. No grande esquema da realidade, chegámos à Terra, ao
lugar certo, na altura certa, para aparecer exatamente na véspera do
apocalipse planetário?
Realmente, é demasiado perfeito. Nem Hollywood seria capaz de
imaginar um argumento melhor. E você, o herói desta história, não
conseguiria encontrar-se no meio de uma narrativa mais épica, invulgar ou
extraordinária.
142
“Populações de animais vertebrados – como mamíferos, aves e peixes – caíram em 58 por cento
entre 1970 e 2012.”
143
Segundo Donella Meadows, uma pioneira em pensamento de sistemas, um sistema pode ser
definido como “um conjunto de coisas – pessoas, células, moléculas, o que seja – que estão
interligadas de tal forma que, com o tempo, produzem o seu próprio padrão de comportamento”.
144
Numa carta intitulada “Aviso de Cientistas de Todo o Mundo à Humanidade”, mais de 1.500
cientistas de topo e laureados com o Nobel assinam o seguinte aviso: “Os seres humanos e o mundo
natural estão em rota de colisão […] Se não forem corrigidas, muitas das nossas práticas atuais
colocam em grave risco o futuro que desejamos para a sociedade humana e para os reinos animal e
vegetal, e podem alterar de tal forma o mundo em que vivemos que se torne impossível sustentar a
vida tal como a conhecemos.”
145
A percentagem de público que afirma que o aquecimento global é um problema muito grave tem
flutuado nas sondagens da Pew Research entre o ponto mais baixo de 32 por cento em 2010 e o
máximo de 47 por cento em 2009.
Agradecimentos