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A Cruz e o Ego

por

Arthur W. Pink

“Então, disse Jesus aos seus discípulos: Se alguém quer vir após mim,
a si mesmo se negue, tome a sua cruz, e siga-me” — (Mateus 16:24).

Antes de desenvolver o tema deste verso, comentemos os seus termos.


“Se alguém”: o dever imposto é para todos os que desejam se unir aos
seguidores de Cristo e alistar sob a Sua bandeira. “Se alguém quer”: o
grego é muito enfático, significando não somente o consentimento da
vontade, mas o pleno propósito de coração, uma resolução
determinada. “Vir após mim”: como um servo sujeito ao seu Mestre, um
estudante ao seu Professor, um soldado ao seu Capitão. “Negue”: o
grego significa “negar totalmente”. Negar a si mesmo: sua natureza
pecaminosa e corrompida. “E tome”: não passivamente sofra ou
suporte, mas assuma voluntariamente, adote ativamente. “Sua cruz”:
que é desprezada pelo mundo, odiada pela carne, mas que é a marca
distintiva de um cristão verdadeiro. “E siga-me”: viva como Cristo viveu
— para a glória de Deus.

O contexto imediato é mais solene e impressionante. O Senhor Jesus


tinha acabado de anunciar aos Seus apóstolos, pela primeira vez, a
aproximação de Sua morte de humilhação (v. 21). Pedro se assustou, e
disse, “Tem compaixão de Ti, Senhor” (v. 22). Isto expressou a política
da mente carnal. O caminho do mundo é a procura para si mesmo e a
defesa de si mesmo. “Tenha compaixão de ti” é a soma de sua filosofia.
Mas a doutrina de Cristo não é “salva a ti mesmo”, mas sacrifica a ti
mesmo. Cristo discerniu no conselho de Pedro uma tentação de Satanás
(v. 23), e imediatamente a rejeitou. Então, voltando-se para Pedro,
disse: Não somente “deve” o Cristo subir à Jerusalém e morrer, mas
todo aquele que desejar ser um seguidor dEle, deve tomar sua cruz (v.
24). O “deve” é tão imperativo num caso como no outro.
Mediatoriamente, a cruz de Cristo permanece sozinha; mas
experiencialmente, ela é compartilhada por todos que entram na vida.

O que é um “cristão”? Alguém que sustenta membresia em alguma


igreja terrena? Não. Alguém que crê num credo ortodoxo? Não. Alguém
que adota um certo modo de conduta? Não. O que, então, é um cristão?
Ele é alguém que renunciou a si mesmo e recebeu a Cristo Jesus como
Senhor (Colossenses 2:6). Ele é alguém que toma o jugo de Cristo sobre
si e aprende dEle que é “manso e humilde de coração”. Ele é alguém
que foi “chamado à comunhão de seu Filho Jesus Cristo, nosso Senhor”
(1 Coríntios 1:9): comunhão em Sua obediência e sofrimento agora, em
Sua recompensa e glória no futuro sem fim. Não há tal coisa como
pertencer a Cristo e viver para agradar a si mesmo. Não cometa engano
neste ponto, “E qualquer que não tomar a sua cruz e não vier após mim
não pode ser meu discípulo” (Lucas 14:27), disse Cristo. E novamente
Ele declarou, “Mas aquele (ao invés de negar a si mesmo) que me negar
diante dos homens (não “para” os homens: é conduta, o caminhar, que
está aqui em vista), também eu o negarei diante de meu Pai, que está
nos céus” (Mateus 10:33).

A vida cristã começa com um ato de auto-renúncia, e é continuada pela


auto-mortificação (Romanos 8:13). A primeira pergunta de Saulo de
Tarso, quando Cristo o apreendeu, foi, “Senhor, que queres que eu
faça?”. A vida cristã é comparada com uma “corrida”, e o corredor é
chamado para “deixar todo embaraço e o pecado que tão de perto nos
assedia” (Hebreus 12:1), cujo “pecado” é o amor por si mesmo, o desejo
e a determinação de ter o nosso “próprio caminho” (Isaías 53:6). O
grande alvo, fim e tarefa posta diante do Cristão é seguir a Cristo —
seguir o exemplo que Ele nos deixou (1 Pedro 2:21), e Ele “não agradou
a si mesmo” (Romanos 15:3). E há dificuldades no caminho, obstáculos
na estrada, dos quais o principal é o ego. Portanto, este deve ser
“negado”. Este é o primeiro passo para se “seguir” a Cristo.

O que significa para um homem “negar a si mesmo” totalmente?


Primeiro, isto significa a completa repudiação de sua própria bondade.
Significa cessar de descansar sobre quaisquer obras nossas, para nos
recomendar a Deus. Significa uma aceitação sem reservas do veredicto
de Deus que “todas as nossas justiças [nossas melhores performances],
são como trapo da imundícia” (Isaías 64:6). Foi neste ponto que Israel
falhou: “Porquanto, não conhecendo a justiça de Deus e procurando
estabelecer a sua própria justiça, não se sujeitaram à justiça de Deus”
(Romanos 10:3). Agora, contraste com a declaração de Paulo: “E seja
achado nEle, não tendo justiça própria” (Filipenses 3:9).

Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar


completamente sua própria sabedoria. Ninguém pode entrar no reino
dos céus, a menos que tenha se tornado “como criança” (Mateus 18:3).
“Ai dos que são sábios a seus próprios olhos e prudentes em seu
próprio conceito!” (Isaías 5:21). “Dizendo-se sábios, tornaram-se loucos”
(Romanos 1:22). Quando o Espírito Santo aplica o Evangelho em poder
numa alma, é para “destruir os conselhos e toda altivez que se levanta
contra o conhecimento de Deus, e levando cativo todo entendimento à
obediência de Cristo” (2 Coríntios 10:5). Um moto sábio para o todo
cristão adotar é “não te estribes no teu próprio entendimento”
(Provérbios 3:5).

Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar


completamente sua própria força. É “não confiar na carne” (Filipenses
3:3). É o coração se curvando à declaração positiva de Cristo: “Sem
mim, nada podeis fazer” (João 15:5). Este é o ponto no qual Pedro
falhou: (Mateus 26:33). “A soberba precede a ruína, e a altivez do
espírito precede a queda” (Provérbios 16:18). Quão necessário é, então,
que prestemos atenção à 1 Coríntios 10:12: “Aquele, pois, que cuida
estar em pé, olhe que não caia”! O segredo da força espiritual reside em
reconhecer nossa fraqueza pessoal: (veja Isaías 40:29; 2 Crônicas 12:9).
Então, “fortifiquemo-nos na graça que há em Cristo Jesus” (2 Timóteo
2:1).

Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar


completamente sua própria vontade. A linguagem do não-salvo é, “Não
queremos que este Homem reine sobre nós” (Lucas 19:14). A atitude do
cristão é, “Para mim, o viver é Cristo” (Filipenses 1:21) — honrá-Lo,
agradá-Lo, servi-Lo. Renunciar sua própria vontade significa atender à
exortação de Filipenses 2:5, “Que haja em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus”, o qual é definido nos versos que
imediatamente seguem como de abnegação. É o reconhecimento prático
de que “não sois de vós mesmos, porque fostes comprados por bom
preço” (1 Coríntios 6:19,20). É dizer com Cristo, “Não seja, porém, o que
eu quero, mas o que tu queres” (Marcos 14:36).

Para um homem “negar a si mesmo” totalmente, deverá renunciar


completamente suas luxúrias ou desejos carnais. “O ego do homem é
um feixe de ídolos” (Thomas Manton, Puritano), e estes ídolos devem ser
repudiados. Os não-cristãos são “amantes de si mesmos” (2 Timóteo
3:1); mas aquele que foi regenerado pelo Espírito diz com Jó, “Eis que
sou vil” (40:4), “Eu me abomino” (42:6). Dos não-cristãos está escrito,
“todos buscam o que é seu e não o que é de Cristo Jesus” (Filipenses
2:21); mas dos santos de Deus está registrado,“eles não amaram a sua
vida até à morte” (Apocalipse 12:11). A graça de Deus está “ensinando-
nos que, renunciando à impiedade e às concupiscências mundanas,
vivamos neste presente século sóbria, justa e piamente” (Tito 2:12).

Esta negação do ego que Cristo requer de todos os Seus seguidores deve
ser universal. Não há nenhuma reserva, nenhuma exceção feita: “Nada
disponhais para a carne no tocante às suas concupiscências” (Romanos
13:14). Deve ser constante, não ocasional: “Se alguém quer vir após
mim, a si mesmo se negue, dia a dia tome a sua cruz e siga-me” (Lucas
9:23). Deve ser espontânea, não forçada, realizada com satisfação, não
relutantemente: “Tudo quanto fizerdes, fazei-o de todo o coração, como
para o Senhor e não para homens” (Colossenses 3:23). Ó, quão
impiamente o padrão que Deus colocou diante de nós tem sido
rebaixado! Como isso condena a vida acomodada, agradável à carne e
mundana de tantos que professam (mas, de maneira vã) que eles são
“cristãos”!

“E tome a sua cruz”. Isto se refere não à cruz como um objeto de fé, mas
como uma experiência na alma. Os benefícios legais do Calvário são
recebidos através do crer, quando a culpa do pecado é cancelada, mas
as virtudes experimentais da Cruz de Cristo são somente desfrutadas à
medida que somos, de um modo prático, “conformados com a Sua
morte” (Filipeneses 3:10). É somente à medida que realmente aplicamos
a cruz às nossas vidas diárias, regulamos nossa conduta pelos seus
princípios, que ela se torna eficaz sobre o poder do pecado que habita
em nós. Não pode haver ressurreição onde não há morte, e não pode
haver andar prático “em novidade de vida” até que “carreguemos no
corpo o morrer do Senhor Jesus” (2 Coríntios 4:10). A “cruz” é o sinal, a
evidência, do discipulado cristão. É sua “cruz”, e não o seu credo, que
distingue um verdadeiro seguidor de Cristo do mundano religioso.

Agora, no Novo Testamento a “cruz” tem o significado de realidades


definidas. Primeiro, ela expressa o ódio do mundo. O Filho de Deus veio
aqui não para julgar, mas par salvar; não para punir, mas para redimir.
Ele veio aqui “cheio de graça e verdade”. Ele sempre esteve à disposição
dos outros: ministrando aos necessitados, alimentando os famintos,
curando os enfermos, libertando os possessos pelo demônio,
ressuscitando os mortos. Ele era cheio de compaixão: gentil como um
cordeiro; inteiramente sem pecado. Ele trouxe com Ele felizes notícias
de grande alegria. Ele procurou os perdidos, pregou aos pobres, todavia,
não desdenhou dos ricos; Ele perdoou pecadores. E, como Ele foi
recebido? Que tipo de recepção os homens Lhe deram? Eles O
“desprezaram e rejeitaram” (Isaías 53:3). Ele declarou, “Eles Me odeiam
sem uma causa” (João 15:25). Eles tiveram sede de Seu sangue.
Nenhuma morte ordinária os apaziguaria. Eles demandaram que Ele
deveria ser crucificado. A Cruz, então, foi a manifestação do ódio
inveterado do mundo pelo Cristo de Deus.

O mundo não mudou, não mais do que o etíope pode mudar sua pele
ou o leopardo suas manchas. O mundo e Cristo ainda estão em aberto
antagonismo. Por conseguinte, está escrito: “Aquele, pois, que quiser
ser amigo do mundo constitui-se inimigo de Deus” (Tiago 4:4). É
impossível andar com Cristo e comungar com Ele, até que tenhamos
nos separado do mundo. Andar com Cristo necessariamente envolve
compartilhar Sua humilhação: “Saiamos, pois, a Ele, fora do arraial,
levando o seu vitupério” (Hebreus 13:13). Isto foi o que Moisés fez (veja
Hebreus 11:24-26). Quanto mais próximo eu andar de Cristo, mais eu
serei mal-entendido (1 João 3:2), ridicularizado (Jó 12:4) e detestado
pelo mundo (João 15:19). Não cometa engano aqui: é extremamente
impossível continuar com o mundo e ter comunhão com o Santo Cristo.
Portanto, “tomar” minha “cruz” significa, que eu deliberadamente
convido a inimizade do mundo através da minha recusa em ser
“conformado” a ele (Romanos 12:2). Mas, o que importa o olhar
carrancudo do mundo, se estou desfrutando os sorrisos do Salvador?

Tomar minha “cruz” significa uma vida voluntariamente rendida a


Deus. Como o ato dos homens ímpios, a morte de Cristo foi um
assassinato; mas como o ato do próprio Cristo, foi um sacrifício
voluntário, oferecendo a Si mesmo a Deus. Foi também um ato de
obediência a Deus. Em João 10:18 Ele disse, “Ninguém a [Sua vida] tira
de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou”. E por que Ele o
fez? Suas próximas palavras nos dizem: “Este mandato recebi de meu
Pai”. A cruz foi a suprema demonstração da obediência de Cristo. Nesta
Ele foi o nosso Exemplo. Uma vez mais citamos Filipenses 2:5: “Que
haja em vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus”.
E nos versos seguintes nós vemos o Amado do Pai tomando a forma de
um Servo, e tornando-Se “obediente até a morte, e morte de cruz”.
Agora, a obediência de Cristo deve ser a obediência do cristão —
voluntária, alegre, sem reservas, contínua. Se esta obediência envolve
vergonha e sofrimento, acusação e perda, não devemos nos acovardar,
mas por o nosso rosto “como um seixo” (Isaías 50:7). A cruz é mais do
que o objeto da fé do cristão, ela é o sinal de discipulado, o princípio
pelo qual sua vida deve ser regulada. A “cruz” significa rendição e
dedicação a Deus: “Rogo-vos, pois, irmãos, pelas misericórdias de Deus,
que apresenteis o vosso corpo por sacrifício vivo, santo e agradável a
Deus, que é o vosso culto racional” (Romanos 12:1).

A “cruz” significa serviço vicário e sofrimento. Cristo deu a Sua vida


pelos outros, e Seus seguidores são chamados a estarem dispostos para
fazerem o mesmo: “Devemos dar nossa vida pelos irmãos” (1 João 3:16).
Esta é a lógica inevitável do Calvário. Somos chamados para seguir o
exemplo de Cristo, para a companhia de Seus sofrimentos, e para ser
participantes em Seu serviço. Assim como Cristo “a si mesmo se
esvaziou” (Filipenses 2:7), assim devemos fazer. Assim como Ele “veio
para servir, e não para ser servido” (Mateus 20:28), assim devemos ser.
Assim como Ele “não agradou a si mesmo” (Romanos 15:3), assim
devemos fazer. Assim como Ele lembrou dos outros, assim devemos
lembrar: “Lembrai-vos dos encarcerados, como se presos com eles; dos
que sofrem maus tratos, como se, com efeito, vós mesmos em pessoa
fôsseis os maltratados” (Hebreus 13:3).

“Porquanto, quem quiser salvar a sua vida perdê-la-á; e quem perder a


vida por minha causa achá-la-á” (Mateus 16:25). Palavras quase
idênticas a estas são encontradas novamente em Mateus 10:39. Marcos
8:35, Lucas 9:24; 17:33, João 12:25. Certamente, tal repetição mostra a
profunda importância de notar e prestar atenção a este dito de Cristo.
Ele morreu para que nós pudéssemos viver (João 12:24), e assim
devemos fazer (João 12:25). Como Paulo, devemos ser capazes de dizer
“Em nada tenho a minha vida por preciosa” (Atos 20:24). A “vida” que é
vivida para a gratificação do ego neste mundo, está “perdida” para
eternidade; a vida que é sacrificada para os interesses próprios e
rendida a Cristo, será “achada” novamente, e preservada durante toda a
eternidade.

Um jovem universitário graduado, com prospectos brilhantes,


respondeu ao chamado de Cristo para uma vida de serviço a Ele na
Índia, entre a casta mais baixa dos nativos. Seus amigos exclamaram:
“Que tragédia! Uma vida lançada fora!” Sim, “perdida”, até onde diz
respeito a este mundo, mas “achada” novamente no mundo porvir !
Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto
Cuiabá-MT, 22 de Janeiro de 2005.

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