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I Diclogando cam os grinsiplos de uma abordagam substantive da orgariraso Dialogando com os principios de uma abordagem substantiva da organizagdo Yara Lucia Mazziotti Bulgacov' Felipe Zilles Castiglia® Resumo Este ensaio introdutério apresenta alguns princfpios da abordagem substantiva de organizagao de Guerreiro Ramos. Discorre-se, inicialmente, sobre as concepgées de sociedade e de homem que fundamentam tal abordagem. A partir destes funda- mentos, sao enunciadas algumas premissas orientadoras de um programa de extensao universitaria — “Programa Integrar: um espago para o desenvolvimento do idoso”, desenvolvido pela Universidade Federal do Parand, enquanto um exemplo de or- ganizacao que pode, em termos de suas diretrizes, ser entendida como confronto a uma realidade social excludente. Palavras-chave: substantiva de organizagao, idoso; desenvolvi- mento humano. "Doutoraem Feducagto. Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Parana (ybulgacov@houmail.com), * Académie de Psicologia da Universidade Federal do Parand.e de Administragio da FAE-Business Scholl (elipezcastiglia@houmail com). veer [vouuwes [woweno2 [oan bezaveno] zo] ive Jn es Len shat Boor | fee ite Conia | Principles of a substantive organizational aprouch This introductory essay presents some principles of the Substantive Organization approach proposed by Guerreiro Ramos. It begins by discussing the conceptions of society and of man at the base of such approach. From thence, it highlights some of the premises of a university extension program called “Integrating ~ a Space for the Development of the Senior”. This program is being developed at the Federal University of Parand, and is presented here as an example of an organization that can be understood, by its orienting premises, as a means to cope with an excluding social reality. Key-words: substantive organization; senior; human development. vror [vauonés | Wako | sro beabwero] rosie | Diskogando com 08 principiog de vs abordayem wubstantive da organizazao 1. Introdugdo Tém sido uma tendéncia marcante as pesquisas que de- monstram os impactos, para o homem, da dominancia da racionalidade instrumental no mundo do trabalho (Ramos, 1989; Chanlat, 1992; Davel, 1996; Aguiar, 1997). Este artigo apresen- ta alguns principios da teoria substantiva da organizagao de Guerreiros Ramos (1989) enquanto uma alternativa organizacional a essa dominancia. No cotidiano ocorre um fenédmeno que deve ser alvo de constante dentncia. Pensa-se a organizacéo como um dado, como algo natural e, pela tradig&o, legitima-se apenas’ os for- matos organizacionais existentes. Ha a tendéncia, portanto, de reificar, de naturalizar as produgées humanas. Contrariando este movimento, entende-se que as organizagées devem sempre ser olhadas com interrogacao, principalmente quando se prioriza o bem-estar € a satide dos homens (Katz e Kahn, 1967). Nesta mesma linha de raciocinio, Caldas (1994) afirma que organiza- ges nfo sao obras divinas — elas foram instituidas pelos ho- mens, € que devemos “explorar outros viveres do desenho organizacional” (p.10). Sandelands e Srivatsan (1993) sao au- tores que também convidam a pensar a organizagéo como possibilidade.Criticam a concepgio de organizacao como enti- dade e nao como um arranjo. Uma entidade, afirmam, é como se fosse uma substancia, no tempo e no espago, definida por suas qualidades, enquanto que um arranjo é uma abstracéo que especifica 0 modo pelo qual idéias, relagdes e substancias sio relacionadas umas As outras, sendo, assim, passiveis de rearranjo. Ao se pensar a organizacao como possibilidade, torna-se imperativo inverter a razio funcionalista-positivista que conce- be o homem conforme a medida em que o seu comportamento aumente a eficacia dos resultados da organizag’o (Robins, 1998). Ha que introduzir novamente as pessoas, 0 ser humano, numa posigdo central (Chanlat, 1992), projetando arranjos organizacionais em que o foco seja o desenvolvimento humano. Para tanto, parte-se de duas premissas basicas. Primeiro tem-se plena convicgao de que a racionalidade da organizacao tradici- onal (baseada na racionalidade instrumental voltada para os woot [veunes [weno 2 [wo oaroveno] am] pe ve As nit vgn | Ate he Cn | resultados organizacionais) ndo se confunde com a racionalidade da vida humana em geral (Barnard, 1938 e White, 1971, apud Etzioni, Ramos, 1983). Segundo € possivel ¢ desejavel uma or- ganizac4o voltada dominantemente para o desenvolvimento humano enquanto estratégia de confronto com uma realidade social maior e excludente. Entende-se como realidade social excludente aquela que nao considera o homem em sua totalida- de, seu bem estar ¢ suas miiltiplas expressdes e necessidades, qualificando-o apenas do ponto de vista da performance pro- dutiva-econdmica. O papel do especialista nao é legitimar a total inclusio das pessoas no limite da organizagao formal, mas definir o escopo de tais organizag6es na existéncia hamana em geral. Pensar na cria- co eno desenvolvimento de uma associagio humana voltada para 0 desenvolvimento humano requer a identificagio e a andlise de um conjunto de pressupostos que orientam implicitamente as teo- vias organizacionais (Burrell e Morgan, 1982). Importante € a explicitagao e também a reflexdo sobre estes implicitos que orien- tam, nem sempre conscientemente, a agao dos profissionais, Guerreiros Ramos (1989), ao propor as bases para uma nova ciéncia organizativa, alerta para a necessidade de se considerar a categoria totalidade e, portanto, o imperativo de levar em conta nao 6 a estrutura interna da organizacgéo, mas também as suas relagGes com outras esferas da vida social. Quando a preocupacgéo se volta apenas para as condicées internas da organizacao, afirma © autor, nao ha questionamento da sociedade - ela é entdo legiti- mada tal como € concebida tradicionalmente. Nesse sentido, abre a possibilidade de, ao olhar de forma critica para a sociedade, nao apenas reproduzi-la, mas, se necessario, confronté-la. Nesta perspectiva, descreve-se, no préximo tépico, sob a Gtica da teorizacdo, algumas concepc¢ées criticas de sociedade, mostrando-se 0 cendrio que justifica uma proposta organizacional alternativa, que confronte a dominancia funcionalista das teorias organizacionais tradicionais com a mi- opia das ciéncias administrativas (Ramos, 1983) e com a ceguei- ra das ciéncias sociais (Spink, 1991). Em seguida, sao apresen- tadas algumas concepcdes de homem coerentes com as criticas sociais e que igualmente fundamentam a formulagao svar [Younes [Mwero | anno. oezenano] mom [prise | Dialogande com os principias de uma abordagem substantive da organizagio organizacional substantiva. Apés a apresentagio das caracterfs- ticas da organizagao substantiva propriamente dita, proposta por Guerreiro Ramos, séo apresentados os principios orientadores do "Programa Integrar: um espaco para o desen- volvimento do Idoso", desenvolvido pelo departamento de Psi- cologia da UFPR, como exemplo de uma proposigao organizativa moldada, no que diz respeito as suas diretrizes, na otica substantiva de organizacao. 2. Concepgées de Sociedade Considerando que toda concepgio de organizacdo traz im- plicita uma visao de sociedade (Burrell e Morgan, 1982), este item exemplifica concepgées criticas de sociedade de tedricos que serviram de fundamentos basicos para a enunciacéo da teoria organizacional substantiva proposta por Guerreiros Ramos (1989). Sao tedricos que entendem a sociedade contempordnea como fonte de alienagéo do homem, como inibidora das possibi- lidades de realizagao humana. De forma resumida e sem perder de vista os objetivos do presente trabalho, ser4o expostas as con- cepgGes de sociedade de Habermas (1989) e de Marcuse (1982). Habermas (1989) e Marcuse (1982) sao teéricos que, como Ramos (1989), manifestam uma profunda insatisfagio com a ordem social, compreendendo-a como origem de toda aliena- cao; e nesta dimensio, eles assemelham-se. Diferenciam-se ape- nas no encaminhamento de uma solucgdo. Habermas (1980) aponta para uma proposta no nivel da comunicagao, através de sua Teoria da Aco Comunicativa. Marcuse (1982), por sua par- te, nao chega a enunciar uma alternativa, enquanto que Guer- reiros Ramos (1989) entende que essa sociedade instrumental poder ser confrontada na medida em que ocorra um nimero cada vez maior de organizagées substantivas. O trabalho de Habermas (1989), expoente da teoria criti- ca, € uma reacao a sociologia positivista e interpretativa. Critica a orientago positivista, por esta servir aos interesses de contro- le, ¢ a orientacdo interpretativa, por buscar o entendimento e o significado em si (sem relagéo com a sociedade), denuncia-as wear [vouones | wiveno 2 0.6 been ano ves ic ene tor | Ren ces | como perspectivas que atendem aos interesses de quem as utili- za. Destaca a perspectiva da ciéncia critica, caracteristica da Es- cola de Frankfurt, que visa a ambos — ao entendimento do mun- do e A mudanga do mundo. Habermas (1989) defende a posigao de que as ciéncias sociais nao devem abrir m4o da dimensao hermenéutica, ou seja, nao devem suprimir o problema da compreensao. Define a hermenéutica como “toda expressao dotada de sentido que pode ser identificada tanto como uma ocorréncia observavel como uma objetivagéo de um significado”(p.40). Contudo, argumen- ta que para captar o significado é preciso participar de algumas agGes comunicativas na comunidade. O sujeito nao é visto como. aquele que se relaciona com os objetos para conhecé-los ¢/ou domin4-los, mas como aquele que, durante seu processo de de- senvolvimento histérico, € obrigado a se entender junto com outros sujeitos, negociando significagSes (Siebneichler, 1987:62, apud Mager, 1999:24). Para Habermas (1989), compreender o que é dito exige participagao, e nao mera observagio. E uma sociologia da mudanga radical (Morgan, 1982). Para apreender a fundamentag4o de sua critica A sociedade faz-se necessdrio conhecer a andlise de temas éticos e morais, que ocupa um lugar central no seu pensamento. Qual a especificidade que Habermas (1989) confere ao agir moral? Contrapée ao agir moral o agir estratégico, pragmatico e o agir ético (Gaseli, 2002). Habermas (apud Gaseli, 2002) toma o conceito de raz4o pratica de Kant, enquanto capacidade de pensar e raciocinar voltada para o agir, em contraponto com a nossa capacidade de pensar e raciocinar, voltada para a atividade intelectual (razao teérica). Para ele, o agir pratico do sujeito pode adquirir trés formas distintas, segundo a motivagao ou 0 interesse fundamen- tal que o impulsiona: a razéo pratica pode ser utilizada para fins pragmiaticos, éticos ou morais. O uso pragmatico da razdo pratica define o agir orienta- do.para fins, voltado para o que o sujeito pretende obter, seu interesse imediato, egocéntrico e, diga-se, de um eu voltado para fora, para realidades externas ¢ nao para a vivéncia interior. Estagio este em que nao ha questionamento a respeito do seu sentido, do seu alcance, das conseqiiéncias para os outros seres [volun s [NOwERS 2 | ano - pezenaro] 2008] pn¥-34 | _2vstasande com ux prince de ume sherdagem subramivn de eranacdo humanos. No se questiona o contetido ético ou moral da agao. Trata-se de um agir baseado na teoria ética do utilitarismo; seu critério para a acdo é o da utilidade, do que tende a promover a felicidade, entendida como prazer ¢ auséncia de sofrimento. Para 0 autor, as implicagées sociais deste agir estratégico € responsa- vel pelo sistema capitalista, cujo principio é o agir motivado pelo objeto, pelo resultado, o agir voltado para o beneficio pré- prio, em que nao se pergunta a quem beneficia. Um agir estra- tégico, responsdvel pelas injustigas sociais, pela exploracao. Segundo Habermas (1989), ha uma invasao desta logica racionalista da eficdcia em todos os aspectos da vida pessoal e social; a isto Habermas chama de colonizagao do mundo da vida. O uso ético da razio pratica define o agir orientado para a busca do que é bom, tanto para o individuo como para a cole- tividade; um agir que busca o bem-viver. Baseia-se em certos valores, nos modelos préprios da sociedade, definidos pelo gru- po social, e busca o ideal deste grupo, sua tradigéo. Valoriza-se © autoconhecimento, e o individuo deve buscar uma forma de se integrar que respeite a sua individualidade. O uso moral da razao pratica define o agir norteado pela justiga, pelo que € moralmente certo, mesmo que isto signifique conflito e ruptura com a tradigio. As interagées libertam-se do carter local, histérico e transitério. A busca da justiga motiva 0 agir. Agir que nao é individual, mas se dé em nfvel comunit4rio. FE um agir comunicativo, que deve ser desenvolvido e baseado em normas de ac&o que s6 acontecem no didlogo. Ha um pressupos- to de que os principios morais capazes de fundamentar normas de aco s6 ocorrem no didlogo, onde estéo envolvidos todos os interessados. Nao ha principios morais preexistentes a realidade da interacg&o comunicativa. Trata-se de uma moral dialdgica, re- sultante do entendimento, da comunicagao, em que todos parti- cipam com vistas ao entendimento, a universalidade, contra to- das as discriminag6es, bairrismos, racismo e divisées. H4 0 respei- to pelo outro, a sinceridade, a veracidade € 0 respeito pela verda- de. Exclui qualquer manobra que procure distorcer 0 processo de didlogo. Busca-se o verdadeiro ¢ 0 justo e, fnalmente, a re- miincia a todas as formas de violéncia e coagao. wear [vouine | waweno a [ino osienano] wos] p98 Vera Lica MasittiBuigecov | Folipe Zils Caatil Para Habermas (1989), o principio fundamental da moral é a universalidade: aquelas normas que podem ser aceitas, sem coa- ao, por todos os individuos envolvidos na situagao em que se- rao aplicadas. Opta igualmente por uma moral cognitivista, o que significa que é através da razao, do conhecimento, que se atinge o ponto de vista moral. Os juizos morais t@m um contet- do cognitivo; nao se limitam a dar expressdo as atitudes afetivas, preferenciais ou decisées contingentes de cada falante ou ator. Igualmente, é a favor de uma moral formalista, o que quer di- zer que o ato moral n4o se define pelo contetido material e sim pela forma que assume, do ponto de vista dos sujeitos que o concebem, podendo variar em cada cultura ou situacao histéri- cas. O que importa é a atitude do sujeito; o contetido concreto das agdes que vai realizar sofrer4 transformagGes em fungiio das transformagées histéricas. Sua concepcao de sociedade é uma vertente da critica hegeliano-marxista da sociedade contempordnea. Inverte a pro- blematica que caracteriza o funcionalismo de regulagao social, de aceitagéo das normas de racionalidade, da ciéncia, da fungao da tecnologia, da neutralidade da linguagem e da construgao teérica livre de valores. Tenta a mudanga de atenga4o operada por Marx na consideragao da estrutura econémica do capitalis- mo, movendo-se em direg&o as formas-chave da sociedade pés- capitalista. Enfatiza que a estrutura de dominagio esta incor- porada em nossa linguagem do dia-a-dia. Habermas compreende que o problema da linguagem deve ser colocado como um problema da consciéncia e, para enfrentar estas questées, desenvolve a teoria da comunicacgaéo competente, provendo um vinculo entre macroestrutura e os atos da fala. Propée uma dialética emancipatéria, que transcen- da a antinomia subjetivo-objetivo, observador-observado, fato e valor, e uma hermenéutica em seu empreendimento de en- tender o mundo social e o significado subjetivo nele locado. Desenvolve o conceito de situagio de fala ideal, na qual a interagio simbélica é possivel ¢ genuinamente reconhecida como consenso, sem a operacao do poder. A situagao ideal da comunica- cdo € contrastada com a comunicagao distorcida, supondo-se um consenso no qual ha uma distribuigéo igual do poder (Burrell e Morgan, 1982). - Jar [vous [wines 2] sano oexevano] som] pra | Cnn on pe tp a nt ' Habermas (1989) defende uma disting&o entre trabalho e interagéo. Do cenceito de trabalho vai apontar os aspectos ne- gativos e impeditivos da liberdade e da participacao, e do con- ceito de interagao vai recuperar exatamente estas caracteristi- cas. O trabalho, na sociedade capitalista, € uma forma domi- nante de agao social, tendo como propésito racional a énfase no atendimento de metas definidas em termos das relagdes meio- fim. O sistema desenvolve papéis para guiar as ages € os modos de pensar, enfatizando a trajetéria de habilidades e qualifica- des necessdrias para a execucdo adequada do papel. A interacio, por outro lado, € uma ac&o comunicativa entre os homens que desenvolve normas com reflexos na linguagem ordinaria, intersubjetivamente. De forma resumida, pode-se dizer que Habermas (1989) s€ preocupa com o conflito estrutural da sociedade, com os modos de dominagao, com as contradicées e privagdes, mas pode- se dizer também que aposta nas potencialidades humanas para superar 0 aprisionamento, a alienag&o social pela dominancia da razao pratica/utilitaria: Ao propor a ética discursiva, parte do principio de que o individuo € um ser racional, com identi- dade tnica, capaz de se autodeterminar; parte igualmente do principio de que compete ao meio o dever ético de delimitar o espaco dentro do qual podem ser efetivados projetos de auto- realizacgao de individuos e de grupos de individuos, garantidos os principios da universalizagao, como a igualdade de direitos de todos os homens, em que estes ndo sejam tratados como meio mas como fim (Aguiar, 1997). A profunda insatisfagdo com a ordem social, uma das ca- racterfsticas centrais do humanismo radical, como evidenciado em Habermas (1989), aparece igualmente em Marcuse (1982), filésofo nascido na Alemanha e radicado nos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial. Uma de suas obras mais famosas, “A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional” denuncia a aparente liber- dade propiciada pelo desenvolvimento técnico, explicitando as sofisticadas técnicas e mecanismos de controle social. A tecnologia, ao criar a abundancia e conduzir a satisfagdo das necessidades dos wor | vounié wend 2 | aaro oezevara] ag] poe Yara Li ipo Zilaa Castigin Meesiot! Bugocoy homens, ¢ a organizagao tecnolégica, ao transfigurar a dominagao em administrag4o, tendem a tornar os homens passivos ¢ acriticos em relagao ao sistema maior e de trabalho. Apresenta Marcuse (1982), nessa obra, um conjunto de fa- tores que contribuem para tornar o trabalhador — e, por exten- so, a sociedade — acriticos, passivos, paralisados, enfim, sem cons- ciéncia de estar em oposigao ao sistema de trabalho. Um padrao de vida crescente, afirma 0 teérico, “é 0 subproduto inevitavel da sociedade industrial politicamente manipulada. A produtividade crescente permite um consumo aumentado, o que reduzir 0 va- lor de uso da liberdade, nao havendo razdo alguma para insistir na autodeterminagio, se a vida administrada for confortavel e até boa” (Marcuse, 1982:62). Argumenta, bombasticamente: “..se os individuos estao satisfeitos a ponto de se sentirem felizes com as mercadorias e servigos que lhes sao entregues pela administracdo, por que deveriam eles insistir em insti- tuigées diferentes para a producdo diferente de mercadorias ¢ servicos diferentes? E se os individuos estéo pré-condicionados de modo que as mercadorias que os satisfazem incluem também pensamentos, sentimentos, aspiragées, por que deveriam desejar, pensar, sentir ¢ imaginar por si mesmos?” (Marcuse, 1982:64). O autor questiona, entre as varias maneiras possiveis € re- ais de organizar e utilizar recursos disponiveis, quais oferecem a maior possibilidade de 6timo desenvolvimento (Marcuse, 1982:15). Segundo ele, uma teoria social deve se interessar pelas alternativas histévicas, promovendo valores ligados a estas alter- nativas, tornando-os fatos ligados 4 transformagao social. Além de sua critica 4 sociedade consumista, interessa-nos a posicao do autor no que se refere 4 sua concepcéo de homem unidimensional, que sera apresentada mais a seguir. Como foi visto, um dos aspectos centrais das teorias criti- cas da sociedade € a preocupagao com as possibilidades de 6ti- mo desenvolvimento humano, preocupagao que igualmente se evidencia na proposta de uma nova ciéncia da organizagao de- senvolvida por Ramos (1989). par | vouuvee s | NOMEAc 2] JULHO - bezemano] 2003] p.11-2¢ l Diategando com os principios de uma sbordegem svhotantiva da erganizagio 3. Concepgdes de homem Mesmo considerando a especificidade de cada anilise cri- tica dos tedricos sociais, pode-se obscrvar um ponto comum: a busca da emancipacéo humana. Refletir sobre a emancipacao humana significa passar pelo conceito de consciéncia humana. A énfase dada A consciéncia em geral ¢ a alienagio em particular distingue esses te6ricos - denominados por Burrell e Morgan (1982) de humanistas radicais — dos estruturalistas. Estes uiltimos, argumentam os autores, embora advoguem uma mudanga social, tendem, em suas andlises, a conferir mais énfa- se as estruturas econémicas e politicas, enquanto os humanistas radicais ressaltam dimens6es como consciéncia ¢ alienagao, sem desconsiderar a totalidade. Ser4o apresentadas, a seguir, as concepgoes de homem de Marcuse (1992) e de Ramos (1983, 1984, 1989). Marcuse (1982), por meio do conceito de Homem Unidimensional, atenta para as caracteristicas da alienagdo & qual o homem é submetido pela dominancia da racionalidade técnica. Ressalta as regras alienantes da tecnologia, da ciéncia e da légica, que reprimem a libido, mantendo a forga de trabalho ¢ criando falsas necessidades. Trata-se de um individuo voltado unicamente para o consumo, a vida “boa”, satisfeita e feliz com as mercadorias. £ pré-condicionado de modo que as mercadori- as satisfacam seus pensamentos, sentimentos, aspiragdes. Nesse sentido, indaga o autor: qual a necessidade do homem em dese- jay, pensar, sentir e imaginar por si mesmo? “Apesar da moder- na sociedade industrial parecer, em seu conjunto, a propria personificacao da razao, ela € irracional como um todo, sua pro- dutividade € destruidora do livre desenvolvimento das necessi- dades e faculdades humanas” (Marcuse, 1982, contracapa). Ramos (1984), baseando-se inclusive no préprio Marcuse (1982), ao defender a tese de que as teorias administrativas nao podem mais legitimar a racionalidade funcional, propée-se a fazer uma reavaliag’o da evolugéo da teoria administrativa, to- mando como ponto de referéncia o modelo de homem parentético, contrapondo-se ao homem operacional e reativo. vror | VoLuie 3 | ovens £ | vine -BezwaRo] ws] poe Yara Lia Mazzotti Gulgacor | Feipe Zi Considerando que, em toda a histéria do estudo da admi- nistra¢4o, teéricos e profissionais fizeram suposicées acriticas a respeito da natureza do homem, afirma: “Hoje uma teoria ad- ministrativa que nao tenha consciéncia das suas implicagées psi- coldgicas dificilmente podera ser aceita” (Ramos, 1984:5). O autor acredita que a prdtica administrativa ainda é lar- gamente permeada por tais modelos de homem operacional (ho- mem econémico, da escola classica) e homem reativo (homem sociolégico, da academia). Reconhece que no meio intelectual esses modelos sao largamente criticados, mas acredita que nenhuma alternativa de ampla aceitagao foi apresentada. Embora algumas mudangas j4 tenham surgido, pensa que os progressos ainda sao periféricos. A visio que predomina continua sendo a reativa — uma visio inquestionavel de ambiente, cuja, meta é ajustar-se, adaptar-se. Um outro problema desta visio envolve a relagéo individuo/organizagao; tal visio defende a integracdo, omitindo, portanto, o carater basico e duplo da racionalidade. Denomina de homem parentético® aquele que pode prover a teoria administrativa com uma sofisticagao intelectual indispen- sdvel para enfrentar quest6es e problemas que provocam tens6es entre a racionalidade substantiva e a racionalidade funcional. O homem parentético nao pode deixar de ser, em princi- pio, um participante da organizagao. Porém, argumenta o au- tor, ao tentar ser aut6nomo, nao pode ser enquadrado como aqueles individuos que se comportam de acordo com os mode- los operacionais e reativos. Ele possui uma consciéncia critica altamente desenvolvida das premissas de valor presentes no dia- a-dia. Embora o homem parentético seja simultaneamente re- flexo das circunstAncias sociais, ele tem a capacidade critica de se excluir tanto do ambiente externo como do ambiente inter- no ¢ examina-los com visdo critica, capacidade parentética. O homem parentético estd apto a refletir sobre o fluxo da vida di4ria para examind-lo e avalid-lo como espectador capaz de se afastar de seu meio familiar e romper as suas rafzes. 50 adjetivo parentéticoprovém da nogio de Husserl de "suspenso”, “entre parénteses”, quandodistinguea atitude oritica daatitude natural. Aatitude natural seria 2quela do homem “ajustado”,desinteressacio da racionslidade noéticae aprisionado por seu imediatisimo, Aatitudle critica suspende, coloca em parénteses a crenginoinundecomun, permitindooindividuo aleangar um nivel de pensamento conceituat, portanto, deliberdade. sor [vou s [woven [tne oazenano] ans] | _2istegando som a rnsipes wa ebortagem substntve da ogerleeg60 £ um estranho em seu proprio meio, de maneira a maximizar a sua compreensao da vida. “A atitude parentética € definida pela capacidade psicolégica do individuo de separar-se de si mesmo € de seu ambiente interno e externo” (Ramos, 1984:8). Acredita que estar estritamente arraigado as suas condi- ces sociais impede que a pessoa se imagine em outras posigdes: o mundo torna-se ontologicamente justificado, impedindo que possibilidades sejam examinadas e um ntimero maior de esco- Ihas possa ocorrer. O homem parentético, em vez de favorecer um relativismo inconseqiiente, est4 eticamente comprometido com valores que conduzem ao primado da razio. A relacgao do homem parentético com a organizagao e 0 trabalho nao esta voltada para a obtengio do sucesso da manei- ra como foi convencionada. Ele da grande importancia ao eu € tem urgéncia em encontrar um significado para a sua vida; nao aceita acriticamente padrées de desempenho, embora possa ser grande empreendedor quando lhe atribuem tarefas criativas. Nao trabalha apenas para fugir da apatia, porque o comporta- mento passivo fere a sua auto-estima e a sua autonomia. Esfor- a-se por influenciar o seu ambiente para retirar dele tanta sa- tisfagéo quanto possivel. E ambivalente em compreender que a organizacéo tem uma racionalidade funcional limitada. Ramos acredita que atualmente existem raz6es para o surgimento do homem parentético; julga que o homem néo esta motivado somente pela sobrevivéncia, pelo darwinismo social, mas que surgem, hoje, novas prioridades, o que o faz justificar a proposicao do novo desenho organizacional. 4. Abordagem Substantiva da Organizagao Ramos (1989), ao propor as bases da nova ciéncia das or- ganizacées, o faz principalmente sobre uma‘critica 4 estrutura da sociedade: uma sociedade centrada no mercado que, “mais de duzentos anos depois de seu aparecimento, est4 mostrando agora as suas limitagGes e a sua influéncia desfiguradora da vida humana como um todo” (Ramos, 1989:XIT). wear [volaes [wiwesos | wui0 oeavano] Bee] ese 23 wi des Mant dpc | Ftp ts Cam | Resgatando 0 conceito basico de razio como “aquela que prescreve como os seres humanos deveriam ordenar a sua vida pes- soal e social” (p.23), o autor denuncia o impacto desfigurador so- bre a vida humana da domin4ncia da racionalidade instrumental, caracteristica da sociedade de mercado, onde o ser humano nfo é senao uma criatura de calculo utilitério de conseqiiéncia préprio desse mercado. Em contraposigao, sustenta a racionalidade subs- tantiva como o ponto de referéncia para a ordenagio da vida soci- al e na estruturagao da vida humana (Ramos, 1989:22-23), Retoma a tese de Habermas (1989) de que na moderna soci- edade industrial as antigas bases da interagdo simbélica foram sola- padas pelos sistemas de conduta de ac4o racional com propésito (significado subordinado ao imperativo técnico da natureza e da acumulagao do capital), acrescentando que nessas sociedades a interagao simbélica (esséncia da vida social significativa) somente é possivel em enclaves extremamente residuais ou marginais. De- nuncia que “o mercado hoje tende a transformar-se na forca modeladora da sociedade como um todo (...) os padrdes de merca- do para pensamento ¢ linguagem tendem a tornar-se equivalen- tes aos padrées gerais de pensamento ¢ linguagem: esse é 0 ambi- ente da politica cognitiva” (Habermas, 1989:92). . . Como se pode perceber, Ramos (1989) também se mostra insatisfeito com a sociedade atual, com a sua légica de mercado e com a sua forga modeladora da mente dos cidad4os, Argumentan- do que nenhuma sociedade do passado esteve tio dominantemen- te centrada no mercado como em nossos dias, denuncia, com vistas & emancipagéo humana, os seus processos atuais de socializacao. Defende o autor uma visdo multicéntrica da sociedade. Afirma que a sociedade tem numerosos aspectos ~ ¢ politico, 0 econémico, a estrutura social, cultural, psicolégica — em que cada uma destas grandes dreas da atividade humana contribui com sua parte no processo interativo. Como chegar a esta sociedade multicéntrica? O autor nao vé a sociedade multicéntrica como uma conseqiiéncia “natural”; toma-a como empreendimento racional para ser construfdo e implementado, um empreendi- mento .intencional. Propée uma variedade de enclaves sociais, incluindo o mer- cado, mas em que este seria limitado e regulado. A idéia é pro- spor [ vouun 3 | woweno 2 | suetio- oezemeno] 200s | .11-34 _Ptosando com ot priniion de uma ebortager subtonine de orninagto ver opgées diferentes de atividades substantivas, incluindo um sistema de governo capaz de formular e implementar politicas e decisdes distributivas requeridas para as transagées entre enclaves sociais, deixando de lado o mercado como principal categoria de ordenacao, como se da no modelo unidimensional. Essa interpretagao multicausal e interativa da sociedade _ lhe parecem mais util, em contraposigao a sociedades que insis- tem em um tipo de primazia, especialmente na primazia do eco- némico, o qual em nenhum momento 0 autor nega — apenas se op6e a sua dominancia. E um teérico que reconhece o papel das organizagbes no contexto social maior. Enfatiza uma delimitac4o organizacional de aprendizagem € sugere meio capaz de facilitar multiplos ti- pos de microssistemas sociais no contexto da tessitura geral da sociedade, criando maior espago vital para a vida humana, dei- xando maior margem para relacionamentos interpessoais livres de presses projetadas e organizadas. Essa visio de sociedade esté diretamente vinculada a uma visio de homem: um homem complexo, portador de diferentes necessidades e interesses, ¢ cuja satisfacio requer miiltiplos cena- Tios sociais e espacos organizacionais adequados 4 atualizagao pes- soal, a relacionamentos de convivéncia e atividades comunitarias dos cidaddos. Oferece, pois, respaldo conceitual a uma sociedade diversificada necess4ria ao desenvolvimento humano integral. Ramos (1989), a partir, entio, de uma critica A sociedade, elabora uma formulacio alternativa para pensar a organizagao. Critica o modelo tradicional de andlise de sistemas sociais base- ados somente nos pressupostos de uma sociedade centrada no mercado, propondo as bases conceituais para uma nova ciéncia das organizagées que levem em conta as exigéncias ecolégicas, humanas do ponto de vista psicoldgico, garantindo assim que n&o se reproduza uma sociedade baseada t4o-somente no mer- cado, tampouco os seus impactos negativos para a vida humana associada. Denuncia a dominancia da racionalidade instrumen- tal, caracteristica do sistema de mercado, e seu impacto desfigurador sobre a vida humana associada. Entende Ramos (1989), como Habermas (1989), que atu- almente a linguagem foi capturada pelos padrées operacionais wear [OLIN [ waneno =| 080 peers] 28] vor Lon Mens Bsc | Fee zits Cute | de eficiéncia e pela racionalidade substantiva; a qualidade de vida desaparece num mundo em que 0 céleulo utilitério de con- seqiiéncia passa a ser a tinica referéncia para as acdes. Esta dominancia da racionalidade instrumental, com sua capacidade manipuladora, pré-reflexiva, torna o individuo presa facil de interesses imediatos, como argumentou Marcuse (1982). Ramos defende diretrizes para a criacao de espacos sociais em que os individuos possam participar de relagées interpessoais verdadeiramente autogratificantes; o lugar adequado da razdo é a psique. A psique, para ele, é o ponto de referéncia tanto para a ordenagio da vida social quanto para a conceitualizagao da cién- cia social ¢ para o estudo sistematico da organizagao. Sugere o que denomina de teoria substantiva da vida humana associada, enquanto categoria essencial para a ordenagao dos assuntos soci- ais e politicos, num contraponto com a teoria formal, funcionalista. Em sua abordagem substantiva da organizacao, chama a atengao para formas possiveis de ambientes igualitarios, sem bu- rocracia, sem hierarquia — 0 que ele chama de isonomia. Da mes- ma forma, nao acredita na auséncia de normas; espera-se que o préprio individuo, num contexto de escolha, possa definir as suas préprias normas, pois todo trabalho implica certas prescrigdes. Tendo como eixo central o individuo, denomina de fenonomia um sistema social que, além de ter as caracteristicas citadas acima, seja um ambiente propicio a criatividade, A auto- nomia, onde o individuo tenha possibilidade de agir e nao ape- nas de se comportar de maneira passiva. Trata-se dum sistema social em que os individuos se empenhem apenas em atividades automotivantes, atividades que promovam sua singularidade, mas no qual isto se dé com consciéncia social, estando os individuos prontos a partilhar e apreciar, associando mutualidade e estética. A partir dessa declaragao de necessdria intencionalidade no processo de construgio de uma sociedade multicéntrica, o autor enuncia algumas das dimensées essenciais de sistemas so- ciais que necessariamente serao consideradas pelos planejadores de sistemas de confronto; a tecnologia, o tamanho, a cognicao, 0 espago € o tempo. Os planejadores sociais devem estar criticamente consci- entes de que os modelos sociais do homem sao sempre categori- as de conveniéncias pela dimensao do poder, do interesse, da tra [vouines | hineno | suo erent] el] ws | Diclogendo com os principioe de uma abordagemn substantive do organizegio ideologia, do politico e do tempo, que esto diretamente liga- dos aos objetivos e metas do sistema. Alerta para o processo de unidimensionalizagao do tempo que vitima a maior parte das pessoas que vivem numa sociedade de mercado € para o com- prometimento crénico com patologias, insénia, ansiedade, estresse, suicidio. Alerta para a variada experiéncia com o tem- po para se poder engajar em atividades autogratificantes, Segundo Ramos (1989), para que uma teoria da organi- zacado nao reproduza acriticamente a sociedade, sera necessario: a) nao identificar a natureza humana com a sindrome do comportamento que é inerente a sociedade de mercado, libertando-a desta visdo reducionista ¢ episédica; b) _reconhecer que os ambientes formais de trabalho nao so adequados para a atualizacao humana, afirmando como permanente e inevitével o conflito entre individuo ¢ sistemas projetados; ©) considerar que a sociedade de mercado, com a sua categoria de emprego como o vinico meio para que as pessoas tenham signi- ficagao social, tem custado um prego psicolégico, caracterizado por baixo envolvimento, despersonalizagéo ¢ impessoalidade dos individuos na estrutura formal; d} —_perceber que, no contexte das organizagées econémicas, a comunicagao é essencialmente instrumental, planejada para maximizar a capacidade produtiva, € que o préprio individuo € um recurso que deve ser empregado eficientemente; e) reconhecer que, no ambito das organizagées formais, admitir falar em comunicagdo substantiva, em auto-atualizacgao, em autenticidade e€ em projetos de bumanizacio é, sem divida, incorrer em politica cognitiva; 1) distinguir o real ¢ o fabricado (em que se aprende a reprimir padrées substantivos de racionalidade, beleza e moralidade inerentes ao senso comum); 3) reconhecer, com clareza, os limites da organizagéo formal no centro da existéncia humana; wear [vounes | woweno | ue oaaenano] ava] se

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