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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Reitor Mario Sergio Alves Carneiro s eduerj EDITORA DA UNIVERSIDADE DO. ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Consetho Editorial Joiio FeresJinior (presidente) Katia Regina Cervantes Dias Lucia Maria Bastos Pereira das Neves Luciano Rodrigues Ornelas de Lima Maria Cristina Cardoso Ribas ‘Tania Maria Tavares Bessone da Cruz Ferreira Anibal Francisco Alves Braganga (EUUFF) Géssica Guimaraes ENSAIO FEMINISTA. SOBRE O SUJEITO UNIVERSAL eduerj Rio de Janciro 2022 nT ST ee a ' Copyright © 2022, BAUER). Td ot dics daa to sera Elo ds Untendade ota do Rio de Janeiro. £probidaa dupliagé ou eproducio dete volume, no vodo ou rt ete tle castes pe Para Larisa, presente e futuro Ensaio feminista sobre o sujeito universal / Géssica ‘Guimaraes. ~ Rio de Janeiro: EAUERY, 2022. 126. 5-7511-546-6 2, Antropologia filoséfica. 1. Titulo, DU 396 Biblioteciria: Thais Ferreira Vieira CRB-7/5302 2 Ensaio feminina sobre o sujet univeral , ‘yous ¢ existéncias. Os movimentos feministas, suas priticas, suas teorias e suas hist6rias podem nos auxiliar a desvendar essa construgdo e apontar caminhos para outras formas pos- siveis de estabelecer significados para a vida, nosso presente, Passado ¢ futuro. Em Ensinando a mransgredir (2017), bell hooks fala-nos como é importante para os movimentos feministas insur- gentes apropriarem-se da teoria como forma de resistencia. A valorizagio do pensamento te6rico tem construido di- visdrias entre o feminismo académico, cientifico ¢ predo- minantemente branco, ¢ os movimentos de mulheres que, mesmo fora da academia, entendem muito bem as causas das opressdes que limitam suas potencialidades e restringem seus direitos. Ha também nessa distinggo uma valorizacio da palavra escrita em detrimento da palavra falada, confir- mando o grafocentrismo como mais um problema da cultu- ra hegeménica no Ocidente. hooks nos fala de uma experiéncia compartilhada por res de sua geragio que, ao se depararem com a tcoria feminista, surpreenderam-se por encontrar ali muito pouco que remetesse ds suas vivéncias cotidianas. Contra uma teo- ria hermética, fechada para nao iniciadas, bell hooks defende que reivindiquemos o dircito de refletir a partir de nossas Préprias experiéncias ¢ de transformar nosso pensamento em teoria da transformagio social. A intelectual nos diz que “se criarmos teorias feministas e movimentos feministas que falem com essa dor, ndo teremos dificuldade para construir ‘uma luca feminista de resisténcia com base nas massas. Nio havers brecha entre a teoria feminista e a pritica feminis- ta” (hooks, 2017, p. 104). E nessa teoria que eu também acredito. mul Capitulo 3 O sujeito universal na cultura no pensamento do Ocidente Na narrativa eurocéntrica sobre a histéria da humanidade, tudo comeca com os gregos. Além de ignorar as civilizagoes que se desenvolveram antes ou ao mesmo tempo, ess his- Céria também reprodur certas ideias sobre a cultura cléssica {que reafirmam o protagonismo europeu. E bastante conhe- cida a tese de que, na cultura grega antiga, a invencao do barbaro contribuiu sobremaneira paraa propria constituicio de uma identidade coletiva entre os povos que habitavam a Hlade e suas coldnias. Como salientou o historiador francés Francois Hartog (1999), os gregos olhavam os estrangeiros irassem um espelho invertido, enumerando como dos povos considerados birbaros nao apenas ilo que cles viam enquanto diferenca, como também os atributos indesejados na personalidade e na cultura grega. O barbaro passou a ser 0 exético, 0 forasteito, e foi tomado como sindnimo de selvagem, desprovido de graca ¢ polidex. ‘A polarizagio entre aqueles que pertenciam 3 Hélade e co- nheciam sua Iingua e cultura € os que pertenciam a outra dade ¢ inscrigéo cultural, como os petsas, por cexemplo, acabou por assentar a imagem do homem ideal ‘como aquele conformado pelas priticas sociais, politicas ¢ culturais daquela civilizagio do Ocidente, em oposicéo as diversas civilizagées orientais com as quais os helenos trava- ram contato. “4 Enoaio feminist sobre osujito universal , Como aquelas sociedades cram fundamentadas em principios patriarcais, na maior parte das poleis, as mulheres no espago ptiblico ¢ eram respon- resultando em uma concepgio de democracia ¢, posteriormente, de cidadania muito exclu- dente. Além do impedimento de acesso & participacao poli- tica aos estrangeiros e aos escravizados, também as mulheres tiveram seus direitos politicos suprimidos em virias cidades sregas, Dessa mancira, aqueles que deveriam comandar a pélis eram os homens gregos, que também eram res} veis por legisla, filosofar, guerrear, organizar a vida pi cultural. Embora algumas mulheres tenham rompido com ‘esse aparato de dominacao, é fortalecida a nolo de que elas ceram excegio a regra Contudo, vale a pena a ressalva de que diversos autores, ‘como Jack Goody (2008) — que denuncia o roubo da his- ‘ria realizado pelo Ocidente em relacio as invengoes das izagbes no ocidentais ~, tém destacado como essa nar- rativa de que a razio eo pensamento nascem na Grécia e de- pois se universalizam faz parte de um projeto de poder e de afirmacao da culeura europeia, mas nao tem fundamentagio histérica. Martin Bernal afirma que a inspiracéo dos gregos no mundo egipcio era, inclusive, bastante reconhecida na Europa até o século XVIII. Segundo sua andlise, foram os intelectuais do Huminismo que apostaram em uma narrativa hist6rica que estabeleceu uma linha de continuidade entre a Grécia clissica e a Europa ilustrada, como se a razio ¢ a cigncia que haviam nascido no mundo antigo alcangassem * A esa de teatro Anima, de Sfocies (2008), é um bom exemplo la representagio cultural acerca do protagonismo das mulheres na sociedade grega, apesar de todas a8 restries. (Bernal apud Ortiz, 2015), O sujeito universal na cultura e no pensamento do Ocidente 45 pleno desenvolvimento no Século das Luzes. Estudos histé- icos como esse sio importantes para que possamos desna- turalizar verdades que sao afirmadas como inquestionéveis ara a ampliagdo da nogio ssalidade, Como uma religiio monoteista e de ma- triz judaica, sua pregacio sustenta a afirmagio de que existe ‘um tinico Deus ¢ um sé caminho para a salvagao da alma. Os cristios passaram a reivindicar 0 posto de povo escolhido ‘¢ a detcrminar como um de seus pilates a atividade missio- néria. Esse Deus onipresente, onipotente ¢ onisciente seré 0 - ponto de partida de uma visio de mundo ¢ expresso cultu- ral que afirmam que toda a verdade fora revelada na Biblia e que essa verdade deve sobrepor-se a qualquer outra tentativa de explicar a vida, a morte e tudo que ocorre entre um acon- tecimento € outro. Religido, cultura ¢ interesses econémicos aproximaram- -se no periodo da expansio maritima europeia € na insti- tuigdo de enerepostos comerciais ¢ colénias europeias na ia UAsileics ARsest Al uneriaenn co Cave hatin igiio correta e a violéncia empenhada para pro- mover 0 apagamento das demais crengas ¢ teligides foram alguns dos capitulos mais obscuros da histéria. Como se no ise a expropriagao dos povos e da natureza de continentes inteiros. © pensamento decolonial tem-nos oferecido boas ferramentas para criticar as herangas da colonizagio curo- peia — c também de um neocolonialismo estadunidense ~ nas Américas. Para o intelectual peruano Anibal Quijano 46 Ensaio feminista sobre o sujeito universal 7 (2005), a conquista da América pelos europeus e a sua co- lonizagéo deram inicio a um novo padrio de poder mun- dial, baseado na colonialidade, Nesse novo padrio, as rela- (96es sociais passaram a ser mediadas por trés caractet fundamentais: a formagio do sistema capitalista de trocas comerciais em escala mundial; a afirmagao da modernidade ‘europeia como paradigma do pensamento, da ciéncia e da constituicéo dos discursos verdadeiros sobre a realidade; ¢ a racializagéo de povos nao brancos. Segundo Maria Lugones tre homens e mulheres, a das sociedades euro- a Federici analisa uma histéria relatada pela antropéloga Eleanor Leacock: o jesufta francés Paul Le Jeune registrou em seu di- drio impresses de seus encontros com os indigenas da tribo Innu, que viviam onde hoje se localiza o Canada. Segundo 0 padre, os Innus eram desprovidos de nogées de propriedade privada, autoridade e superioridade masculina, e foram os franceses que cumpriram 0 importante papel de Ihes ensinar que o homem ¢ o senhor e que, na Franca, as mulheres nao ‘mandam em seus marido: ligiosos também comemo- quando finalmente induziram 0 mente, O seguinte trecho, repr Le Jenne e um homem Innu, lucidativo sobre como as relagées entre os génetos masculi- no e feminino eram muit Innus em meados do século XVII: ites entre os franceses € os O sujeito universal na cultura € no pensamento do Ocidente a Eu disseshe que nao era honrivel para uma mulher amar a qualquer um que nao fosse 0 seu marido € que, com este mal pairando, ele néo poderia ter certeza de que seu filho era realmente seu. Ele respondeu: ‘Nao tens juizo. Vocés franceses amam apenas os seus filhos, mas nés amamos a todos os filhos de nossa tribo.’ Comecei a ris, vendo que cle filosofava como os cavalos ¢ as mulas (Federici, 2017, p. 222). Ainda refletindo sobre essas quest6es, é bastante proble- mitica a prépria utilizagio de conceitos como Ocidentec até ‘mesmo a forma como Europa assume a forga de uma enti- dade. Sobre o assunto, 0 socidlogo brasileito Renato Ortiz argumenta: Primeiro, postula-se a existéncia de um espao deno- minado Ocidente [...]. Sua concretude seria irrefutd- Ga material, ¢ nao o resultado de uma representagao ria € perfeitamente possvel de se reconstruit. ropa, ou seja, 0 relato que dela se faz, deixa de se jamais no plural. Ela encerraria, em sua personalidade imanente, em sua esséncia, valores, disposig6es espiritu- ais, inclinagées j « econdmicas radicalmente dis- tintas de todas as outras sociedades (Ortiz, 2015, p. 47). ‘Aaafirmagio da Europa como uma identidade constante, ‘que se confunde com a ideia de uma esséncia da humanida- de, € 0 principal problema do universalismo que encontrou sofia do Tuminismo. As con- igualdade, nagio, povo, democracia, progresso, modemnidade, entre outras, foram 48 Ensaio feminista sobre 0 sujeito universal ' transformadas em verdades inquestiondveis e padres para toda a humanidade, afirmando a historia da Europa como modelo para o desenvolvimento de todos 0s povos, todos os Estados, todas as culuras. Talvez 0 caminho para a supera- G40 desse universalismo que aniquila as diferengas ¢ impOe um padréo tinico para 0 processo seja o que Ortiz ‘nos propée como uma territorializacéo do pensamento ¢ da cia hist6rica curopeia. Isso significaria compreender ia daquele continente, situando-a geograficamente, isto é, entendendo que a historia da Europa é uma entre tan- tas outras histérias ao redor do planeta. Ela nao & A histéria da humanidade, ela é UMA hist6ria. Precisamos conhecer utras historias também, nfo para apagar a histéria euro- peia, mas para colocé-la em seu devido lugar. Essa empreitada ja esté em curso hé algumas décadas, Muitos historiadores, ci tas sociais ¢ fildsofos tém con- tribuido com suas pesquisas para que concepgdes deturpadas sejam desmistificadas e para que tenhamos o conhecimento efetivo da historia de outras civilizagées ¢ culturas. O pro- blema é que, por muitos anos, até mesmo a historiografia contribuiu para a afirmagio da pretensa universalidade dos valores europeus. O surgimento da Histéria como uma disciplina nos moldes que conhecemos hoje aconteceu no século XIX, em territério europeu, Além da preocupagio dos historiadores em pesquisar criticamente ¢ a partir de métodos rigidos os acontecimentos do passado, a escrita da Historia naquele perfodo foi muito marcada por dois pro- ccessos histéricos centrais para os paises europeus: 0 forta- Jecimento dos Estados-nacionais e a expansio imperialista. Naquele cenétio, a historiografia - nao em sua totalidade, ‘mas em sua maioria ~ contribuiu para a construgio de nar- sujet universal na cultura e no pensamento do Ocidente # rativas monocausais, lineares e unitarias, que afirmavam a inexorabilidade do processo hist6rico europeu, da organiza- ‘¢4o politica em torno do Estado-nagio ¢ da necessidade de todo 0 globo seguir os passos da Europa.’ ' Com os impactos de grandes movimentos sociais © -os das décadas de 1960, 1970 ¢ 1980, tais como os ‘movimentos por independéncia pelos territérios que foram invadidos por poténcias imperialistas, movimentos de con- tracultura, movimentos por direitos civis € reivindicagoes da vyox. ¢ meméria das vitimas de episédios traumaticos como 0 Holocausto, o neocolonialismo ¢ regimes de excegio, a his- toriografia transformou-se para dar expressio aos diferentes grupos que cobravam seu lugar na Histéria. Fsforgos foram envidados para que fosse ampliada a gama de sujeitos histé- ricos e para que histérias até entéo apagadas chegassem 20 conhecimento da comunidade como um todo. O surgimen- to da histéria das mulheres como um campo especifico da pesquisa historiogrifica é, em grande parte, resultado dos movimentos feministas das décadas de 1960 1970, que denunciavam que a histria oficial era narrada apenas sob a perspectiva masculina, A histéria das mulheres contribuiu para que muitas pessoas e suas histérias pudessem finalmen- te ser conhecidas e respeitadas, ‘Mas vamos voltar um uquinho no tempo para in- vestigar melhor como essa imagem de um sujeito universal projecou-se na prod\ riria e quais triam sido algu- mas de suas consequéncias. No século ae a Cakes i 4 a nagio tornou perceptivel a importincia Bo was are ae 0s falantes de uma comunidade também eram capazes de > Para exe debate, ver Arai (2019). 50 Ensaio feminista sobre o sueito universal ‘constituir uma comunidade de leitores. Nao somente foram. estimuladas as letras que contribuissem para a formacio do cidadio e de valores como © patriotismo, como fora tam- bém incentivada a produsio de literatura, a fim de forjar tum canone nacional. Aqui é que reside nossa principal ques- tao: embora muitas mulheres tenham-se empenhado em se expressar em obras histéricas, obras it 806 niveis. Primeiramente, por meio do veto publicacio de textos, comentirios, resenhas, poesias ¢ literatura escritos por mulheres. Muitas tiveram seus trabalhos recusados nao pela qualidade do material avaliado, mas pelo simples ato de serem mulheres. Isso levou grandes autoras a adotarem nomes masculinos, como foi 0 caso de Mary Ann Evans, escritora britinica que viveu no século XIX e adotou o pseu- dénimo George Elliot. Por muitos anos, nds mulheres fomos convencidas de que © motivo para uma hi to centrada nas acées € ccriag6es masculinas, bem como para a auséncia de nomes femininos na maioria das listas de historiadores, fildsofos e escritores cléssicos, nao era outro, senfo o fato de que, por causa da dominagio patriarcal e da clausura no ambiente do- méstico ~ as quais as mulheres foram submetidas por séculos ~, simplesmente no havia em nosso passaco mulheres que ivamente tivessem contribuido para a transformacio so- cial como personagens destacadas nos eventos histéricos, ou mesmo que tenham conseguido dedicar suas vidas a desen- volver seus talentos como autoras de obras de historiografia, de filosofia ou de literatura, exceto rarissimas excecbes. ‘A pesquisa de muitas mulheres ~ ¢ também de alguns homens -, desde fins da década de 1960, tem-nos mostrado O sujeito univer! naculsurae no pensamenta do Ocidente st 6 contririo. Embora seja inegivel que, em muitos paises e culturas, 0 feminino tenha sido associado & vida privada e ao trabalho doméstico de manutengéo da vida ¢ cuidado dos vulneraveis, ainda assim, uma quantidade expressiva de mulheres rompeu essa discriminagio de género ¢ ocupow espagos piblicos, lancando-se em tarefas € oficios que até ‘envio eram destinados exclusivamente aos homens. A his- t6ria cem-nos apresentado um niimero sigificativo de mu- Theres que foram liderese participantes de eventos historicos responsiveis por grandes transformagdes sociais, ¢ ajudado a compreender como viviam as mulheres que resistiam 20 patriarcado, Essas pesquisas também nos tm revelado a producio intelectual de mulheres que foram esquecidas de nossas histérias. Mas 0 apagamento de seus nomes ¢ de seu trabalho foi um gesto tio violento que muitas pesquisadoras ¢ pesquisadores tm encontrado enorme dificuldade em ras- trear essas escritoras ¢ encontrar vestigios que nos informem melhor sobre suas historias de vida e luta contra um merca- do editorial brutalmente excludente. ; Heloisa Buarque de Hollanda, Lucia Nascimento ‘Araijo © sua equipe de pesquisadores realizaram uma gran- de investigacio em torno das mulheres que escreveram sobre eratura eartes de 1860 a 1991. O resultado dessa pesquisa foi a publicagio do livro/dicionério Ensatstas brasileiras, erm 1993.4 No volume, as autoras apresentam-nos quase trezen- tas péginas em verbetes sobre mulheres brasilciras que se de- dicaram 3 critica ¢ a0 ensaismo sobre as artes no periodo citado. E um trabalho impressionante em varios aspectos. prema te or a 1899, Inés. ‘Sabino Maia Mulberes ‘ilustres do Brasil, a fim de retirar wulheres brasileiras da “barbérie do chrrtaaegs (hetrgterarenparmec it ah 32 Ensaio feminisa sobre o sujeito universal Primeiramente, pela possi de conhecermos tantas intelectuais que participaram ativamente do debate cultural. ‘Também por percebermos, com mais clareza, que o proces- so de exclusto patriarcal néo se esgota na caracterizasio das atribuig6es de cada género e na imposicdo da reclusio femi- rina, mas se amplia ¢ se consolida na produio de esque- Cimento. Por fim, mas nfo menos importante, as autoras nos oferecem. um panorama de trabalhos que as antecede- Fam, produzidos no final do oitocentos e ao longo do sécu- lo XX, nos quais as mulheres se empenharam em manter a meméria do trabalho intelectual feminino, produzindo antologias, diciondtios, catdlogos, perfis, galerias, entre ou- tos, com o objetivo de apresentar as “mulheres ilustr escritoras braileiras, as “mulheres célebres notévels, ax intelectuais etc. Buarque de Holl i gee llanda e Nascimento Aratijo Pode-se perecber, nestas obras pioneiras da pritica cr tica fer © eixo central da preocupagdo com a li sica do ‘slenciamento’ na construgio da série literéria, marcando uma tendéncia, de claro acento em denunciar e rentar romper com a estigmatizago da pre- senga feminina na literatura. A escritora inglesa Virginia Woolf foi convidada para Proferir dus palestrs no ano de 1928, uma na Arts Society, do Newnham College, e outra para a ODTAA, do Girton College - ambas eram escolas apenas para mulheres na Universidade de Cambridge. A extensio dos artigos mot ‘ou sua ampliagao e subsequente publicacso, dando origem * Abr de “One Damme Thing Ar Anthr te “tine Coin Maa As dn On, nt «™ no O swjeito universal na cultura eno pensamenta do Ocidente 33 ao ensaio Ui seto todo seu (2014). O convite recebido pela Sra Woolf torara explicito o tema da conferéncia: a5 mu- Iheres e a ficgéo, Diante de um t6pico to abrangente e que poderia ser abordado por diferentes prismas, a autora do cé- Iebre romance Mrs. Dalloway decidiu interrogar-se sobre a3 possibilidades reais para que uma mulher pudesse dedicar-se a ficcio como um oficio, ‘A personagem de seu ensaio ficcional, Mary Benton, cchega & conclusio inicial de que, para tal, uma mulher nao poderia contar com menos do que uma renda fixa anual que garantisse 0 seu sustento ¢ um teto todo seu. Ela assevera que a liberdade incelectual depende de coisas materiais: boa alimentacao, roupas para se proteger no inverno, condicdes de manter boa satide e, de preferéncia, uma casa, um espago, onde essa mulher pudesse dedicar-se & leitura, & reflexio, & escrita € A reescrita. Considerando as oportunidades disponiveis para as mu- Theres em seu pais desde alguns séculos, Woolf chega & con- clusio de que as mulheres sempre foram condenadas a viver ‘em situagbes de pobreza, seja porque pertenciam ao estrato menos abastado da sociedade ou pela impossibilidade de dispor de suas herangas. Ademais, viviam assoberbadas com co trabalho néo remunerado de gerar eeriarfilhos ~e, muitas veres, também se ocupavam de sua instrugio -, cuidar das ‘casas, cozinhar, coser ¢ tantas outras tarefas que as deixavam. completamente exauridas no final do dia e sem tempo ou condigées para dedicarem-se a atividades rentéveis. ‘Comparando com as oportunidades de um homem que tenha vivido em uma mesma comunidade € no mesmo periodo, a autora conclui que as mulheres nunca tiveram ‘a chance mais remota de escrever prosa. Em scu exercicio 54 Ensaio feminists sobre o sujeito universal ficcional, ela imagina se Shakespeare, grande nome da litera- ‘ura inglesa, tivesse uma irma dotada de semelhante talento para a dramaturgia. Teria cla se tornado 0 maior nome do Renascimento inglés no século XVI e um dos maiores auto- tes em lingua inglesa de todos os tempos? E Woolf continua sua provocagio: seria possivel medir 0 sucesso de grandes autores cujas obras s40 consideradas cléssicas na literatura universal apenas tendo como critério o talento, como se este fosse um dom inato? ‘Talvez. um primeiro incémodo surja no préprio enfren- tamento da expressio literatura universal, pois afinal, quem sfo 0s autores ¢ as obras que gozam de tal le de regra, aquilo que é anunciado ¢ comerci teratura universal consiste em um catélogo composto majo- ritatiamente por obras de escritores homens, em sua maioria. ‘europeus—ou descendentes de europeus nas Américas, prin- cipalmente nos Estados Unidos ~ ¢ pertencentes & tr cultural ¢ religiosa judaico-crista. A propria Virginia Woolf € uma das poucas mulheres presentes em algumas listas que elencam os maiores escritores do século XX. E a tinica mu- ther cujo livro foi analisado pelo critico da literatura Erich Auerbach no famoso Mimesis (2004). Uma excecao a regra. Nao por acaso, “A meia marrom’”, capitulo no qual Auerbach analisa Ao farol, livro de Woolf, é 0 diltimo de um percurso que comesa com a Odisseia, quase como uma sugestio de que, com o inicio do século XX, as mulheres finalmente adentravam o cinone da literatura universal. © que nos preocupa é que, nos dias de hoj ‘manifestacio cultural que nos servisse como norma, € que, 0 sujeit univers na eultunae no pensamento de Ocidente 35 por isso, ali se concentrasse a maneira correta de represen- tacdo da vida e do mundo. Seguindo essa légica, as demais expresses culturais seriam.cépias do original, em diferentes ‘graus de aproximagio e afastamento ou mesmo de comple- ta inadequagio em relagio a0 padrao estabelecido. f assim que a cultura de matriz. europeia nos € apresentada: como ‘0 parimetro universal. A forma como os autores europeus constroem seus personagens, tecem suas tramas ¢ represen- tam 0 mundo é admitida como 0 modelo a ser seguido, caso alguém almeje o reconhecimento de seu trabalho como uma obra de literatura. ‘Além desse traco etnocéntrico, ha na construcao discur- siva sobre a existéncia de uma literatura universal ~ que deve ser de conhecimento de todos para a formagio do sujeito € do cidadao — o silenciamento sobre a exclusto feminina por meio de uma manobra de género jé consolidada pela nogio cenraizada socialmente de que o homem das letras € um ho- mem. Portanto, nenhum leitor ou nenhuma leitora surpre- ende-se quando descobre que 0 autor de um grande clissico da literatura como Moby Dick & um homem ~ neste caso, 0 escritor estadunidense Herman Melville. Mas é possivel que surja alguma comogio na revelagao de que uma histéria tio terrivel quanto comovente, como Frankenstein, & de autotia de Shelley, MARY Shelley, escritora inglesa e filha de Mary ‘Wollstonecraft, pioneira na Juta feminista na Inglaterra. ‘Woolf nos fala desse “actimulo de vida sem registro”, seja nas biografias, nas historiografias ou na literatura, na qual a autora via as mulheres sempre rondando os protago- nistas masculinos. Pois todos os jantares foram preparados; 0s pratos € os copos, lavados; as criancas enviadas para a escola e sol- 56 Paio fominista sobre 0 sujcito universal tas no mundo. Disso tudo, nada permaneceu, Tudo se desvaneceu, Nem as biografias nem a histéria tém algo a dizer sobre isso (Woolf, 2014, p. 128). Contudo, sua palavra nao é pessimista. Ao contritio, ela convocou as mulheres que eram sua audiéncia nas palestras proferidas em 1928, bem como as mulheres que viriam a ser leivoras de Um teto todo seu, no inicio do scu século ou quase tum século depois, para que juntas pudessem superar a longa ‘opressio materializada em apagamento, E que as poctas ¢ Fomancistas que nio o puderam ser fornesam-nos sua forca € inspiragio para a transformagao dessa realidade, Mas a que essa poeta que nunca escreveu uma linha ¢ foi enterrada no cruzamento ainda esté viva. Ela ‘std viva em vocé ¢ em mim, e em muitas outras mulhe- res que nio estio aqui esta noite, porque estio lavando a louga ou colocando os filhos na cama. Mas ela estd viva, pois os grandes poetas nunca morrem; sio presen ‘a8 duradouras, precisam apenas de uma oportunidade para andar entre nés em carne ¢ oss0, Essa oportunida- de, acredito, estd agora ao alcance de vocés. Pois acredito {que se vivermos por mais um século — estou filando da vida comum que é a vida real, néo das vidinhas isoladas que levamos como individuos ~ ¢ tivermos quinhentas libras por ano © um espago préptio; se cultivarmos 0 habito da liberdade e a coragem de escrever exatamente entio a oportunidade surgird ¢ a ima de Shakespeare encarari no Corpo que tantas vezes ela sactificou. [...] ela viré se tra balharmos por ela, ¢ que esse trabalho, seja na pobreza, scja na obscutidade, vale a pena (Woolf, 2014, p. 159). O sujeto universal na culture e no pensamento do Oridente 7 ‘Apesar da beleza € da profundidade das palavras de Virginia Woolf, é certo que alguém poderia questionar quantos autores hoje reconhecidos viveram vidas miseréveis, quantos conviveram com doengas que abreviaram sua ju- ventude, entre outros tantos que tinham a mente atormen- tada por perseguigdes politicas. Alguns podem até mesmo considerar a conjungdo entre um teto todo seu e as quinhen- tas libras por ano uma condigao burguesa para a produgio. de literatura. E deve ser mesmo. O que nao invalida, nem ‘mesmo diminui, a forga ¢ a pertinéncia da critica de Woolf. Todavia se, para escrever literatura, uma mulher precisa de um teto todo seu eas quinhentas libras por ano, 0 que di- et de Quarto de despejo (2014), livro que Carolina Maria de Jesus escreveu entre 1955 ¢ 1960, época na qual residia na favela do Canindé, em Sao Paulo? A escritora barraco com seus trés filhos, que ela sustentava com o seu. trabalho como catadora de papel. Entre 0 cuidado com os fi- thos, a dura lida nas ruas, a drdua tarefa de colocar na panela ‘a pouca comida que conseguia comprar junto com as sobras gue catava aqui e ali, preparando uma refeigio para quatro, enquanto zuniam confusées na favela, estendiam-se as ho- ras de desespero ¢ 0 horizonte parecia se fechar, Carolina de Jesus procurava, nas brechas da miséria e da fome, a inspi- ragio para escrever os seus difrios. Neles, ela registrava sua luca de muitas uta, mas que ela sabia que era também pessoas, ¢, por isso, estava decidida a publ mundo como era a vida na favela e viver de literatura ~ ou 20 menos comprar um par de sapatos decentes para Vera Eunice, jé que a menininha néo gostava de andar descalga. O barraco da favela no era um teto todo seu, ele era 0 quarto de despejo: era a materializagao da pobreza, do des- 58 Ensaio feminista sobre o sujeito univercal caso, da precariedade, Carolina chamou assim o lugar onde ‘morava porque ra assim que ela se sentia, como alguém que a qualquer momento poderia perder tudo, perder as paredes, © tet0, 0 chao, a vida. Essa vida escapava e era perseguida dia apés dia, pois, se havia sabso e manteiga na segunda, nada garantia que ela teria o que dar de comer aos seus filhos na erga. Isso porque a renda que Carolina de Jesus conseguia conquistar com o seu trabalho catando papel pelas ruas de ‘Sao Paulo nio eram as quinhentas libras por ano, e sua cabe- ga jamais estava em paz: era um vender 0 almogo para com- prar a janta de endoidecer gente si. Mas a literatura estava 1, fazendo-the companhia. A escritora teria que, quando nao tinha nada para comer, ao invés de xingar, ela escrevia. O que & necessirio para uma mulher escrever literatura? Minha pergunta € um pouco diferente: 0 que é literatura? Quais sio as condigées de possibilidade para que 6 livro escrito por uma mulher favelada seja considerado literatura? Gloria Anzaldiia, em “Falando em linguas: uma carta para as mulheres escritoras do terccio mundo”, também teflete sobre a quase impossibilidade de uma mulher escre- ver. Nao desejadas nesse circulo, sentem psicol peso da exclusio. Ao desencorajamento simbélico soma-se 0 peso do cotidiano de mulheres que vivem o dia para garantir ‘© pio de sua familia, em comunidades carentes, em paises empobrecidos pelo colonialismo eo imperialismo, Tudo afasca a escrita. A falta de tempo, a falta de lugar, a falta de acesso & educagio formal, as tarefas domésticas, a falta de estimulo, Anzaldiia sabe bem que os desafios si0 muitos. Citando Luisah Teish, ela sensivelmente sublinha que a si- O sueito universal na cultura e no pensamento do Ocidente tuagio das mulheres do chamado Terceiro Mundo € tal que, “se vocés ndo se encontram no labirinto que (nés) estamos, & muito dificil Ihes explicar as horas do dia que nao possut- mos” (Anzaldiia, 2019a, p. 88). O limite da escrita é 0 proprio limite da sobrevivencia. Em meio a tantos perigos, por que eu deveria escrever? O que eu teria para falar de alguma utilidade? E se trocarmos essas perguntas por: “por que eles tém canto medo de que eu escreva a ponto de me silenciar desta forma?” ou “o que eu posso dizer que seja capar de gerar tamanho desconforto?”. E certo que o que uma mulher realmente quer dizer nao vai agradar a todos. E é exatamente ai que reside o carter revo- luciondrio dessa escrita. Para além de todos esses desafios, a escrita em si nos aparece como uma questo quase oncolgica: se escrever & produzir o eu, buscar sua exterioridade, alcancar seu ama- g0, como é possivel para uma mulher de cor escrever se, na sociedade & qual ela pertence, o seu eu é, na verdade, enten- dido como 0 outro — nao como alteridade, diferenga; mas como auséncia, incompletude. A escrita torna-se um ato de valentia, de confrontagio da norma e de conciliagio com nds mesmas. Porque, quando descobrimos em nés que esse ‘outro é um eu, a vida passa a ter novo sentido, ¢ a vor.c es- ctita transformam-se em nossas armas para mudar o mundo. Anzaldiia procama que “nio existe separagio entre a vida ¢ a escrita” ¢ nos exorta a escrever como da: “esquesa ‘0 quarto s6 para si — escreva na cozinha, tranque-se no ba- nheiro, Escreva no énibus ou na fila da previdéncia social, no trabalho ou durante as refeigbes, entre o dormir ¢ 0 acor- dar. Eu escrevo sentada no vaso” (Anzaldéa, 2019a, p. 90). Eu leio, fago anotagées, preparo aulas, corrijo trabalhos em- «i 0 Ensaio feminista sobre o sujeito universal balada nos tilhos da Supervia. Nao & ficil. Na verdade, é exaustivo. Exige 0 dobro de concentragio, resulta em um trabalho fragmentado © muito se perde entre a leitura que fot realizada no trem lotado, a inspiragio que surgi ¢ on sa ser registrada e a impossibilidade de acessar o lipis na mo- chila, que esté presa entre as pernas, Talvez Virginia Woolf ficasse escandalizada com essas condig6es de trabalho, Ela ‘no poderia ter ideia do que mulheres do chamado Terceiro Mundo, mulheres pobres, mulheres de cor, mulheres que dlesafiam o binarismo sexual tém enfrentado para ve fever ouvir, E nem em suas projegées mais otimistas — 0 que nao era lio seu forte ~ poderia anteci leria antecipar como suas vozes tém reverberado cada vez mais alto. Capitulo 4 Quem pode ser sujeito? Os feminismos tém colocado em pauta a questio sobre quem pode tornar-se sujeito em nossa sociedade. Enquanto ‘manifestag6es antissexistas, que combatem qualquer tipo de desigualdade gerada pela construcao social dos géneros, 65 movimentos feministas, desde 0 seu pri colocam ‘em disputa a pretensa universalidade do sar processos sociais de segregagio das tarefas e espagos ¢ sua invisibilidade politica cm sociedades patriarcais, os feminismos descortinam como os homens adquitiram privilégios ao longo dos processos histéricos ¢ como esses privilégios sio mantidos na forma de autoridade eno exercicio da subordina, Simone de Beauvoir foi pioneira na anilise das relagoes desiguais entre mulheres ¢ homens. Em O segundo sexo, cuja primeira edigéo data de 1949, ela denunciou que as mulhe- res tém sido tratadas como inferiores aos homens ¢ que al- ‘gumas das justficativas utilizadas para tal injustica seriam de ordem bioldgica psicolégica, como a fragilidade do sexo ¢ sua inconstincia sentimental, entre outras afirmagées tio fic- ticias quanto absurdas. Em sua andlise, Beauvoir nos explica, que, nas sociedades patriarcais, os homens brancos exercem o papel de Sujeito, como o ser absoluto, € as mulheres — além dos homens negros — sio consideradas 0 Outro, Esse Outro no seria caracterizado apenas pela alteridade, pela diferen- «a, esse Outro seria, sobretudo, auséncia. Segundo a fildsofa a

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