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BARTHES O ébvio e o obtuso ie Leituras: 0 gesto CY TWOMBLY OU NOM MULTA SED MULTON a Yvon, a Renault e a William Quem é Cy Twombly (aqui chamado TW)? O que € que ele faz? Como designar aquilo que ele faz? Varias palavras surgem espontaneamente («Desenho», «gratismo», «gatafunhos», «de- saicitado», «infantil»). E rapidamente um incémodo de lingua- gem sobrevém: estas palavras ndo sAo ao mesmo tempo (o que é bem estranho) nem falsas nem satisfatérias; porque, por um lado, a obra de TW coincide bem com a sua aparéncia, e é Preciso ousar dizer que ela é banal; mas, por outro - é ai é€ que estd o enigma -, esta aparéncia nao coincide bem com a lingua- gem que tanta simplicidade e inocéncia deveriam despertar em nés, que a olhamos. «Infantis», os grafismos de TW? Sim, Porque nado? Mas também: qualquer coisa a mais, ou a menos 0u ao lado, Diz-se: esta tela de TW é isto, ¢ aquilo; ou antes algo de muito diferente, a partir disto, a partir daquilo: numa lavra, ambigua, por causa de ser literal e metaférico, esta locado, OYE PAE Percorrer a obra de TW, com os olhos ¢ com 0s labios, € pols incessantemente adivinhar o ar que aquilo tem. Esta obra ndo Pede que se contradigam as palavras da cultura (0 espontaneo 159 Roland Barthes do homem é a sua cultura), mas simplesmente que as mos, que as soltemos, que thes demos uma outra luz. Tw cba ga, ndo a recusar, mas ~ O que é talvez mais subversive _ atravessar 0 esteredtipo estético; em resumo, ele provoca oe a um trabalho de linguagem (ndo sera precisatnente este trabalh, Te nesse trabalho - que faz o valor de uma obra?), Escrita ‘A obra de TW - j4 outros o disseram justamente — é escrita; isto tem alguma ligagao com a caligrafia. Esta ligagio, contudo, nao é de imitagao, nem de inspiragao; uma tela de TW ¢ somen- te o que se poderia chamar o campo alusivo da escrita (a alusio, figura de retérica, consiste em dizer uma ‘coisa com a i de fazer compreender outra). TW faz referéncia 4 escrita (como o faz também 4 cultura através das palavras: Virgil, Sesestris), ¢ depois muda de assunto. Que mudanga? Precisamente para lon- ge da caligrafia, quer dizer, da escrita formada, desenhada, apoiada, moldada, daquilo a que se chamava no século XVIII a bela mao. = veeryhieds cen haat TW diz a sua maneira que a esséncia da escrita ndo € nem uma forma nem um uso, mas somente um gesto,:o gesto que produz deixando-a arrastar: uma mancha, masuy) , uma negligéncia. Reflictamos por comparagao. O que ¢.a essén- cia de um par de calgas (se € que tem alguma)? Certamente qué ndo € este objecto ja feito e rectilineo que encontramos nas at cadas dos grandes armazéns; é antes €ssa bola de recido aban- donada no chiio, negligentemente, pelas peat quando ele se despe, extenuado, preguicoso, indiferente. Ac séncia dum objecto tem alguma relagio com a sua ruina: 40 forgosamente o que dele resta depois de ado langado fora de uso, Assim se passa com as escrtas © Sio os residuos duma preguiga, ¢ por isso. ‘ ma; como se, da escrita, acto erdtico forte, ficasse rosa: essa roupa caida num canto da folha. Ls momen varlenria * gba ee es Cy Twombly ou nom multa sed multon Cee oe ‘A letra, em TW = exactamente 0 contrario duma iluminura ~, é feita sem aplicagao. Contudo nao € infantil, porque a erian- ¢a aplica-se, apoia, arredonda, deita a lingua de fora, trabalha arduamente para alcangar o cédigo dos adultos. TW afasta-se dele, afrouxa, arrasta; a sua mio parece entrar em levitagdo; dir-se-ia que a palavra foi escrita comt a ponta dos dedos, nio por repulsa ou tédio, mas por uma espécie de fantasia aberta 4 recordagdo de uma cultura defunta, que s6 teria deixado o rasto de algumas palavras. Chateaubriant: «desterram para as ilhas da Noruega algumas urnas gravadas com caracteres indecifraveis. A quem pertencem estas cinzas? Os ventos nao sabem nada de- las.» A escrita de TW é ainda mais va: é decifravel, nao € inter- Pretavel; os préprios tragos podem ser precisos, descontinuos; Por isso ndo tém menos a fungdo de restituir este vago que im- pediu TW, no exército, de ser um bom descodificador dos oédi- Sos militares («1 was a little too vague for that»). Ora o vago, Paradoxalmente, exclui toda a ideia de enigma; 0_vago ndo con- diz com a morte; o vago esta vivo. 161 Roland Barthes Da escrita, TW conserva 0 gesto, nao o prod, ser possivel consumir esteticamente o ieee ae Apesar de (aquilo que se chama a obra, a tela), apesar d 0 seu trabalho TW_se aproximarem (nao podem escapar-lhes) . Producdes S e de uma Teoria da Arte, aquilo que é a Historia © que é um gesto? Qualquer_ coisa como o suplem, wit Resto, ento de 0 é iti i acto acto é transitivo, quer somente suscitar um al a resultado; o gesto ¢ a soma Tndeterminada © it St, um razoes, das pulsagoes, das preguicas que roan? Svel das Gfmosfera (no sentido astronémico do termo), acto de uma s Din a_mensagem, que quer produzir uma info! ae Pois quer produzir uma intelecgao, € o ests aie 7 ed 9 resto (o «suplemento»), sem forgosamente querer produzi (o_«suplemento» ani ir algu- ma coisa. Q_ artista (conservemos ainda kitschy €, por estatuto, um operador de ests ee are efeito, e ao mesmo Libo nes Gone tendon foram obrigatoriamente desejados por ele; sao efeitos devolvides, transtornados, fugidos, que regressam para cima dele e brorccam desde entio modificagées, desvios, aligeiramentos do trago. Assim, ngao entre causa ¢ efeito, motivacio no gesto abole-se a d expressdo € persuasao- ‘O _gesto do artista - ou o artista alvo, Como_gesto — no quebra a cadeia causal dos actos, 0 que o é um santo, um asceta), mas tido. No zen japonés, muito ténue) a n0s- budista denomina o karma (nao baralha-a, relanga-a, até lhe perder o sent chama-se a esta ruptura_brusca (por vezes 2 sa légica causal (simplificando) um satori; por uma circunstincia infima, mesmo significante, aberrante, bizarra, 0 suieito despert4 para uma_negatividade radical, que j4 ndo € uma negagae- Eu considero.os «grafismos» de TW como outros tantos es nos satoris: partidos da escrita (campo causal por oo i escrevemos, diz-se, para comunicar), especies de brilhos que nao chegam a ser cartas interpretadas, activo da escrita, © tecido das suas motive armen a escrita jé nao habita em lado algum, esta a : Nao sera neste limite extremo que © arte», «0 texto”, todo o «para a sua dissipagao? Cy Twombly ou nom mulia sed multon Alguém aproximou TW : eee ee ee Mas 0 que serviu para = Z Pécic de estetismo superior os uniria aos dois, ndo existe nem num nem noutro. Cont e -s¢ com a linguagem, como o fez Mallarmé, parties outta muito mais séria - muito mais perigosa - do que a ei Mallarmé quis desmontar a frase, veiculo secular, para oe da ideologia. De passagem, por arrastamento, TW oe escrita. Desmontar nao quer forgosamente geey tornar re i nhecivel; nos textos de Mallarmé, a lingua francesa é Bea funciona aos pedagos, 14 isso é verdade. Nos grafismos de = a escrita €, também, reconhecida; ela aparece, apresenta-se como escrita. Contudo, as letras formadas ja no fazem parte de nenhum eédigo grafico, como os grandes sintagmas de Mallarmé ja nio fazem parte de nenhum cédigo retérico, nem mesmo do da des- truigdo., Sobre uma superficie de TW nao ha nada escrito, e contudo essa superficie aparece como 0 receptaculo de todo o escrito. Tal como a escrita chinesa masceu, diz-se, das fendas duma concha superaquecida de tartaruga, assim aquilo que ha de escrita na obra de TW nasce da propria superficie. Nenhuma superficie, por mais longe que se procure, € virgem: tudo é sempre, ja, as- pero, descontinuo, desigual, ritmado por qualquer acidente: ha © grio do papel, depois as nédoas, as quadriculas, o entrelagado de tragos, os diagramas, as palavras. No termo desta cadeia, a escrita perde a sua violéncia; o que se impde, nio é esta ou aquela escrita, nem mesmo o ser da escrita, ¢ a ideia de uma textura griifica; «para escrever», diz a abra de TW, como se diz noutros lados: «para tomar», «para comer». Cultura jo da maior Através da obra de TW 0s germes da escrita va ido grafico. raridade até 4 multiplicagdo louca: ¢ como um pruris ura. Quando a Na sua tendéncia, a escrita torna-s¢ entio cull " €scrita urge, explode, s¢ expande para as margens, aproxima-se 163 Roland Barthes da ideia do livro. O Livro que esta virtualmente Presente na de TW € 0 velho Livro, o Livro anotado: uma palavra a obra tada invade as margens, as entrelinhas: é a glosa, Guise escreve e repete esta unica palavra, Virgil, € j4 um co v de Virgilio, porque 0 nome, inscrito 4 mao, invoca nao fe ntirio ideia (de resto vazia) da cultura antiga, mas também opera at que uma citagdo: a dum tempo de estudos antiquados, cts preguigosos, discretamente decadentes: colégios in; ice iy latinos, carteiras, lampadas, escritas finas a lapis, Tal é cultura para TW: uma comodidade, uma recordagdo, uma ironia, uma postura, um gesto dard) Esquerda Alguém disse: TW é como que desenhado, tragado coma mio esquerda. A lingua francesa é direitista: aquilo que avanga vaci- lando, aquilo que da voltas; aquilo que € desajeitado, embara- cado, ela denomina-o gauche, e deste gauche, nogao moral, jui- zo, condenacao, ela fez um termo fisico, de pura denotagao, substituindo abusivamente a velha palavra «sinistra» © desig nando o que esta a esquerda do corpo: aqui foi o subjectivo que, ao nivel da lingua, fundou o objectivo (da mesma manel- ra se vé, noutra parte da nossa lingua, uma metafora sentimen- tal dar o seu nome a uma substancia completamente fisica: apaixonado que se inflama, 0 amado, torna-se paradoxalmen 2 o nome de qualquer matéria condutora de fogo: 0 aeaeee pavio). Esta historia ctimolégica prova suficientemente que TW produzir uma escrita que parece gauche (ou desajeitada) cla perturba a moral do corpo, moral das mais arcaicas i q 2a assimila a «anomalia» a uma deficiéncia € 4 ero i sejam i falta, Que os seus grafismos, as suas COMPO as que gauches, isso remete TW para o circulo dos ‘eriansa marginais — onde se encontra, bem entendido, eal é ‘uma espe com os enfermos; © «canhoto» (ou aesquerdino”) seus geste cie de cego, ndo vé bem a direcgaio, o aleance dos fa apt? s6 a sua mio 0 guia, o desejo da sua mao, no 8 piso instrumental; os olhos sio a razio, @ evidéncia, © Cy Twombly ou nom multa sed multon verosimilhanga, tudo © que serve para controlar, pata coordena: para imitar, ¢, como arte exclusiva da visdo, toda a nossa pag passada se encontrou submetida por uma racionalidade repres- siva. Duma certa mancira, TW liberta a pintura da visio. Porque o «canhoto» (o «esquerdino») desfaz o elo entre a mio ¢ os olhos: ele desenha sem luz. (tal como fazia TW no exército), TW, contrariamente 4 escolha de tantos pintores actuais, mostra o gesto. Nao se pede para ver, pensar, ou saborear o produto, mas para rever, identificar, ¢, se assim se pode dizer, para «fruire o movimento que resultou nele. Ora, durante o tempo que a humanidade praticou a escrita manual, com exclu- sdo da imprensa, o trajecto da mao, e nao a percepgao visual da sua obra, tem sido o acto fundamental pelo qual as letras se definiam, se estudavam, se classificavam: este acto regulado é 0 que se chama em paleografia o ductus: a mio conduz 0 trago (de cima para baixo, da esquerda para a direita, virando, apoian- do, interrompendo-se, etc.), Bem entendido que é na escrita ideografica que o ductus tem mais importincia: rigorosamente codificado, permite classificar os caracteres segundo o numero ¢ a direcgao das pinceladas, funda mesmo a possibilidade do di- ciondrio para uma escrita sem alfabeto. Na obra de TW reina 0 ductus: ndo a sua regra, mas os seus jogos, as suas fantasias, as suas exploragdes, as suas preguigas. E, em suma, uma escrita ile que s6 restaria a inclinagdo, a cursividade; no grafismo antigo, © cursivo nasceu da niecessidade’(econdmica) de escrever depres- sa: levantar a pena custa caro. Aqui é exactamente © conisltios isto cai, isto chove finamente, isto deita-se como as ervas) 5D tasura por fastio, como se se tratasse de tornar visivel o tempo, 4 tremura do tempo. sse-se, os serawils das crian- Muitas composigées lembram, sae ainda nao fala; mas 4 sas. A crianga € 0 infante, aquele 165 Roland Barthes crianga que conduz a mio de TW, essa, ja escreve, & 4, da escola: papel quadriculado, lapis de cor, alinhados, alung repetidas; pequenas paletas de sombreados, como a letras gai da locomotiva dos desenhos de criangas. Contd te mais, 0 esteredtipo («com 0 que € que isto se Parecen) yj vez subtilmente. A produgao grafica da crianga nunca ¢ Saal congrega sem intermediario a marca objectiva do instrum a (um lapis, objecto comercial) € © qualquer coisa do Pequeno que faz forga, apoia, insiste sobre a folha. Entre 0 utensilio ia fantasia, TW interpde a ideia: 0 lapis de cor torna-se a blige, a reminiscéncia (do aluno) faz-se signo total: do tempo, a tura, da sociedade (isto é muito mais proustiano do que mallar- meano). O uso da esquerda raramente é ligeiror mais frequentemente, entortar-se apoiar; a verdadeira inépcia insiste, obstina-se, quer fazer-se amar (tal como a crianga quer mostrar aquilo que faz, © exibe triunfalmente a sua mae). Pertence a TW muiltas vezes modificar esta esquerdice muito retorcida de que falei: isso ndo apoia, pelo contrério, isso apaga-se pouco a pouco, esbate-se, conservando a delicada sujidade da apagadela da borracha: + mio tragou qualquer coisa como uma flor ¢ depois pos-se a al vagar sobre este trago; a flor foi escrita, em seguida mas os dois movimentos ficam vagamente " ei palimpsesto perverso: trés textos (se lhes juntarmos a espécie de assinatura, legenda ou citagao: Sesostris) x cada um tendendo a apagar os outros, mas: co fim de dar a ler este apagamento: tempo. Como sempre, € preciso que a vida trabalho) testemunhe sem desespero o inel ao engendrar-se (tal como os a encadeados continuo movimento da mao, repetido, " ler o seu engendramento (foi outrora 0 sentido formas (pelo menos, de certeza, as de TW) nao maravilhas da geragdo do que as mornas €s© 166 Cy Twombly ou nom multa sed multon io dir-se-ia que elas estao encarregadas de ligar num sé estado que aparece € 0 que desaparcce; separar a exaltago da vida © o medo da morte, € irrelevance; a utopia, da qual a arte pode ser a linguagem, mas a que resiste toda a neurose humana, ¢ produzir um $6 afecto: nem Eros, nem Tanatos, mas Vida-Morte, dum sé pensamento, dum s6 gesto. Desta utopia nao se aproxi- mam nem a arte violenta, nem a arte gelada, antes, para o meu gosto, a arte de TW, inclassificdvel, porque reine, num trago inimitavel, a inscrigao e o apagamenta, a infancia ¢ a cultura, a deriva ¢ a invengao. Suporte? Parece que TW é um «anticolorista». Mas o que é a cor? Uma fruigdo. Essa fruigao existe em TW. Para o compreender é preciso lembrarmo-nos que a cor é também uma ideia (uma ideia sensual): para que haja cor (no sentido fruitivo do termo), ndo é necessdrio que a cor esteja submetida a modos enfaticos de existéncia; no é necessario que ela seja intensa, violenta, rica, ou mesmo delica- da, refinada, rara, ou ainda ostensiva, pastosa, fluida, etc; numa palavra, ndo é necessdrio que haja afirmagao, instalagdo da cor. Basta que ela aparega, que esteja la, que se inscreva como uma alfinetada no canto do olho (metafora que nas Mil e Uma Noites designa a exceléncia duma narrativa), basta que ela dilacere qual- quer coisa: que passe diante dos olhos, como uma aparigao ou uma desaparigao, porque a cor € como uma pilpebra que se fecha, um ligeiro desmaio. TW nao pinta a cor: quando muito, dir-se-ia que ele di um colorido; mas este colorido é raro, interrompido, e Sempre sensivel, como se se experimentasse 0 lapis. Este pouco de cor da a let, no um efeito (ainda menos uma verosimilhanga), rin um gesto, © prazer de um gesto: ver nascer na ponta dos ey los, dos olhos, qualquer coisa que é simultaneamente esperada “tu sci que o Lipis que seguro é azul) ¢ inesperada (niio somente hao sei que azul vai sair, mas ainda que o soubesse ficaria sempre Surpreendido, porque a cor, semelhanga do acontecimento, é Sempre nova a cada toque: é ‘ como faz a pag) et € precisamente o toque que faz a cor, 167 Roland Barthes De resto, podemos duvidar, a cor j4 existe na medida em que ele jd esta sujo, alterado, d inclassificavel. 6 0 papel do escritor € branco, «im nao € o menor dos seus problemas (dificulda SAP ca: muitas vezes este branco provoca um panico: a desgraca do escritor, a sua diferenga (em rel especialmente em relagdo ao pintor de eseri que o graffito lhe esta interdito: TW é, em sU teria acesso ao graffito de pleno direito € a vis te. Sabe-se que o que faz o graffito nio & 4 168 Cy Twombly ou nom multa sed multon «cri¢dio nem a sua mensagem, €a parede, o fundo da mesa: é = rque o fundo existe plenamente, como um objecto que jd viveu, a escrita Ihe aparece sempre como um suplemento enigma- fico: o que esta @ mais eM eXcesso, fora do seu lugar, isso é que incomoda a ordem; ou melhor; € na medida em que o fundo »do estd limpo que ele é impr6prio para o pensamento (ao contrario da folha branca do fildsofo), e portanto muito propria para todo o resto (a arte, a preguiga, a pulsdo, a sensualidade, a ironia, 0 gosto: tudo 0 que © intelecto pode sentir como outras tantas carastrofes estéticas). ‘Como numa intervengao cirtirgica de extrema subtileza, tudo se joga (na obra de TW) nesse momento infinitesimal em que a cera do lapis se aproxima do grao do papel. A cera, substancia doce, adere 4s minimas asperezas do campo grifico, ¢ é 0 trago deste ligeiro voo de abelhas que faz o trago de TW. Aderéncia singular, porque ela contradiz a prdpria ideia de aderéncia: é como um contacto a que sé a lembranga daria finalmente o valor; mas este passado do trago pode ser tao definido como o seu futuro: o lapis, meio gordo, meio agugado (nao se sabe como ele rodara) vai tocar o papel: tecnicamente a obra de TW pare- ce conjugar-se no passado ou no futuro, nunca verdadeiramente no presente; dir-se-ia que nunca ha sendo a recordagao ou o aniincio do trago: sobre o papel - por causa do papel = 0 tempo esta em perpétua incerteza. Peguemos num desenho de um arquitecto ou de um engenheiro, © tragado de um aparelho ou de algum elemento imobiliario; nessa altura, de maneira nenhuma sera a materialidade do gra- fismo que nés vemos; é © seu sentido, completamente indepen- dente da realizagio do técnico; em resumo, 86 vemos uma espé- cic de inteligibilidade, Descamos agora um degrau na matéria Brafica: diante duma escrita tragada & mio, é ainda a inteligibi- 169 Roland Barthes Cy Twombly ox nom mul bs 4 . ita sed lidade dos signos que nés consumimos, mas elementos o, multon insignificantes - ou melhor: duma outra significancia — que seja, remete sempre para uma forca, para oe nossa vista (e j4 0 nosso desejo): a forma nervosa das \ a um energon, um trabalho que dé a ler eee ae é jacto de tinta, o impeto das hastes, todos esses aciden 0 do seu gasto. O trago é uma accao visivel, Pulsao ¢ tt tes, so necessarios ao cédigo grafico e sfo por consequincis o Is suplementos. Afastemo-nos ainda do sentido: um desen} lis, sico nao da a ler nenhum signo constituido; nenhuma i, mensagem funcional passa: eu invisto o meu desejo na reali da analogia, no sucesso da feitura, na sedugio do emtile, sen, palavra, no estado final do produto: é verdadeiramente um ob- jecto que me foi dado a contemplar. Desta cadeia, que vai do O trago de TW é inimitavel (experi ee perimente : fardo nao serd nem dele nem vosso; serg: ne © que inimitavel, finalmente, € 0 corpo; © que € nenhum discurso, verbal plastico a nao ser o da ciéncia anatémica, bastante pie afinal de contas — pode reduzir um corpo a um outro corpo. esquema ao desenho ¢ ao longo da qual o sentido se evapora obra de TW. dé a ler " i pouco a pouco para dar lugar a um «lucro» cada eae cs. aa ieee ni cox aoorencer nad sera til, TW ocupa o lugar extremo: signos, por vezes, mas empali- certa infelicidade humana, sé ha um meio de panna sae decidos, desajeitados (ja 0 disseram), como se fosse completa- que.o men compoltonsagiiamsinnlssiinios enmuais- a sod mente indiferente que os decifrassem, mas sobretudo, se assim crita) seduza, arrebate ou incomode o outro corpo. sag se pode dizer, o ultimo estddio da pintura, © seu tecto: 0 papel («TW confessa ter mais o sentido do papel que o da pintura»), . E, contudo, d4-se uma reviravolta bem estranha: ja que o senti- do foi esgotado, j4 que o papel se transformou naquilo a que Na nossa sociedade, o menor trago grafico, contando que seja teremos de chamar 0 objecto do desejo, o papel pode teaparecer, proveniente deste corpo inimitavel, deste corpo certo, vale milhées. isento de qualquer fungao técnica, expressiva ou estética; ¢m O que é consumide (ja que se trata de uma sociedade de consu- certas composigdes de TW, o desenho do arquitecto, do marce- mo) é um corpo, uma «individualidade» (quer dizer: 0 que nao neiro ou do medidor reaparece, como S€ S€ alcangasse livremente pode ser mais dividido). Dito de outra maneira, na obra do ar- para a frente das tista € © seu corpo que ¢ comprado: troca na qual s6 se pode a reconhecer 0 contrato de prostituigao, Seri este contrato proprio da civilizagao capitalista? Poderse-d dizer que ele define especi- ficamente os costumes comerciais dos nossos micios artisticos (muitas vezes chocantes para muitos}? Na China popular, vi as a origem da cadeia, expurgada, libertada daqui razdes que desde ha séculos pareciam justificar a grafica de um objecto reconhecivel. Corpo obras de pintores populares (rarais), cujo nae “s em i Principio desligado de qualquer troca; ora, verificava-se Ua uma O traco, qualquer trago inscrito numa folha; dene ‘ndo dé curiosa evolugda: o pintor mais elogiado tinha feito um desenho importante, 0 corpe carnudo, 0 corpo homens ie *corpe 8 correcto ¢ vulgar (@ retrato de um secretiirio da célula do hao clef 38 j a ler); no trago grafico, nenhum corpo, nenhuma paixio, nen’: acesso nem 4 pele nem as mucosas; 0 que medida em que ele arranha, aflora (pode-se mente cécegas); pelo trago, a arte desloca-se; a Sua sede i8 abjecto do desejo (o belo corpo imobilizado nO © sujeito desse desejo: o trago, por mais ma preguica, nada mais do que o trago de uma operagdo analé- gica (fazer parecido, fazer expressiva); pelo contririo, na cae siglo abundavam outras obras, de estilo dito naif, através 171 170 Roland Barthes quais, apesar dos seus temas realistas, © corpo louco de amador urgia, estoirava, fruia (pelo redondo yoly tracos, a cor desenfreada, a repetigao inebriante dos motivos Dito de outra maneira, 0 corpo excede sempre a troca fal So € apanhado: nenhum comércio no mundo, nenhuma virtude politica pode esgotar 0 corpo: ha sempre um Ponto extremo em que ele se da por nada. artista PEUOSO dog Esta manha, pratica fecunda — em todo o caso agradavel —- olho muito lentamente um Album onde estio reproduzidas obras de TW ¢ interrompo-me muitas vezes para tentar rapidamente, em fichas, alguns rascunhos; néo o imito directamente (para qué?), imito o tracing que infiro, se nao inconscientemente, pelo menos sonhadoramente, da minha leitura; nao copio o produto, mas a producao. Ponho-me, por assim dizer, nos passos da mao. Porque essa é (para 0 meu corpo, pelo menos) a obra de TW: uma produgao, delicadamente aprisionada, encantada neste pro- duto estético a que chamamos uma tela, um desenho, cuja ¢o- lecgdo (album, exposig¢io) nunca é mais do que uma antologia de tragos. Esta obra obriga o leitor (digo: © leitor se bem que nao haja ali nada a descodificar) a uma certa filosofia do tempo: cle tem de ver retrospectivamente um movimento, © oo antigo da mio; mas desde entio, revolugdo salutar, Ee (qualquer produto?) aparece como um logro: toda sak medida em que é armazenada, consignada, publicada, Sat ciada como imagindria: o real, para 0 qual Vos chama sem odit © tragado de TW, é a produgdo: a cada ergo TW 2 og, © Museu. oe ayia 172 Cy Twombly ou nom mmulta sed multon Existe uma forma, se assim se pode di por estar despojada de qualquer es ree rrumento tragador (pincel ou lapis) desce sobre a folha, ie es: aluna — sobre ela e é tudo: nem sequer hé o rasto de eae dela, simplesmente algo colocado: & rarefacgdo quase oriental da superficie um pouco suja (€ ela 0 objecto) responde o eseotamento do movimento: nio apanha nada, larga, e esta tudo Be Se a distingao entre produto ¢ producao, sobre a qual, na minha opiniao (como ja vimos), se fundamenta toda a obra deTW, parece um pouco sofisticada, pensemos no esclarecimento deci- sivo que certas oposigdes terminoldgicas permitiram trazer a actividades psiquicas 4 primeira vista confusas: o psicanalista inglés D. W. Winnicott demonstrou bem que era falso reduzir 0 jogo da crianga a uma pura actividade hidica; e para isso lembrow a oposigao do game (jogo estritamente regulado) ¢ do play (jogo que se desenvolve livremente). TW, bem entendido, esta do lado do play e ndo do do game. Mas nao é tudo; numa segunda fase da sua demonstragao, Winnicott passa do play, ainda demasiado tigido, para o playing, o real da crianga - ¢ do artista -, é © processo de manipulagao, ndo 0 objecto produzido (Winnicott acaba por substituir sistematicamente os conceitos pelas formas verbais que thes correspondem: fantasying, dreaming, living, holding, etc.,) Tudo isto é muito valid para TW: a sua obra nao se relaciona com um conceito (o trago) mas com uma actividade (tracing); ou melhor ainda; de um campo (a folha), na medida em que uma actividade ai se desenrola, © jo89 Pa See desaparece na crianga em beneficio da sua area; 0 Sart para TW, desaparece em beneficio da érea que ele habita, liza, trabalha, sulca — ou rarefaz- Moralidade moralidade. Na sua i uma © artista niio tem moral, mas tem ‘minn? Como devo Obra, ha estas questées: que S40 0S outros para 173 — Roland Barthes desejd-los? Como devo prestar-me ao seu desejo? Como devo comportar-me no meio deles? Enunciando de cada vez uma «vi- sio subtil do mundo» (assim fala o Tao) o artista compdée o que é alegado (ou recusado) da sua cultura e © que insiste do seu préprio corpo: o que é evitado, o que é evocado, o que é repe- tido, ou ainda: interdito/ desejado: af estd o paradigma que, tal como as duas pernas, faz andar o artista, na medida em que ele produz. Como fazer um trago que nao seja estipido? Nao basta onduld-lo um pouco para lhe dar vida: é preciso — ja 0 dissemos — desajeité-lo: ha sempre um pouco de falta de jeito na inteligén- cia. Vejam estas duas linhas paralelas tragadas por TW; acabam por juntar-se, como se o autor ndo tivess¢ podido sustentar até ao fim 0 afastamento obstinado que as define ana O que parece intervir no trago de TW e conduzi-lo a beira -, ta misteriosissima disgrafia que constitui a sua arte € uma © 7" preguica (que € um dos sinais mais puros do corpo). 4 ee € precisamente ela que permite o «desenho», mas nio 4

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