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O preço da vida

Quanto vale a vida humana? Para a EPA, a agência ambiental norte-americana, a resposta é US$
9,1 milhões. Já o FDA põe o preço um pouco mais embaixo, US$ 7,9 milhões. De qualquer forma,
são valores até inflacionados diante dos US$ 3 milhões normalmente utilizados por engenheiros,
companhias aéreas e hospitais.

Embora muita gente considere um absurdo pôr um preço na vida de uma pessoa, no mundo
moderno é impossível deixar de fazê-lo. Sem essas cifras, com tudo o que há de arbitrário nelas,
uma série de questões triviais, como reformar ou não a curva de autoestrada que mata 3 pessoas
por ano, se tornariam indecidíveis. Gostemos ou não, a vida tem preço. Ele pode ser explícito, ou
permanecer como um "dirty little secret", um segredinho sujo, mas está lá.

Faço essas considerações a propósito de "O Que o Dinheiro Não Compra: os Limites Morais do
Mercado", de Michael Sandel, um dos professores mais populares de Harvard. O livro é excelente,
como quase tudo o que Sandel escreve, e, ainda assim, como frequentemente é o caso com esse
autor, tenho restrições severas a suas conclusões. Mas procedamos com calma e método.

Comecemos pelas concordâncias. Estou de pleno acordo com Sandel quando ele se queixa de que
vivemos numa época em que se evita travar discussões morais. Uma boa disputa intelectual é
sempre estimulante, especialmente se não temos a pretensão de converter ninguém a nossos
credos.

Também acho, como ele, que os economistas vêm há duas centenas de anos batendo na tecla
errada, ao criar modelos que pressupõem a existência de um Homo economicus, isto é, de
agentes plenamente racionais que visam apenas a maximizar sua própria situação. Embora seja
útil fazer contas e descobrir qual é a melhor alternativa que se coloca diante da razão, é preciso
ter em mente que as pessoas nem sempre (ou quase nunca) agem assim, como começou a ficar
claro depois que Daniel Kahneman e Amos Tversky inauguraram o campo da economia
comportamental.

Por fim, no que é um desdobramento do caso anterior, também fecho com Sandel quando ele
afirma que, ao contrário do que querem os economistas mais clássicos, o mercado não é neutro
em relação aos bens que por ele passam. Um caso emblemático é o das creches em Israel. Essas
instituições tinham um problema que já era familiar. Pais se atrasam para pegar seus filhos e isso
obrigava um dos professores a ficar até mais tarde, aguardando os retardatários. Com o objetivo
de resolver o problema, alguém teve a brilhante ideia de instituir uma multa para quem não
chegasse na hora. Contra as expectativas da teoria econômica, o índice de atrasos aumentou em
vez de diminuir. A explicação aqui é que, com uma etiqueta de preço afixada, os atrasos deixaram
de ser vistos como uma descortesia com o professor para tornar-se um serviço prestado pela
escola. Os pais sentiam-se livres para buscar seus filhos mais tarde sem dramas de consciência.
As creches perceberam o erro e voltaram atrás, mas já era tarde. Uma vez "commoditizados", os
atrasos não diminuíram.

O gostoso na prosa de Sandel é que ele conta dezenas de histórias saborosas, fazendo
julgamentos morais sem ser excessivamente moralista. Ele analisa, por exemplo, o fenômeno
relativamente recente de pagar alguém para ficar em seu lugar na fila. É aceitável? E a resposta
depende do conjunto de valores que você adota. Numa perspectiva consequencialista, não há
nenhum problema. A gambiarra não prejudica ninguém e deixa duas pessoas felizes (o comprador
e o sujeito que recebeu para esperar). O autor, entretanto, vê problemas sérios na prática. Para
Sandel, a contratação de um dublê de fila corrompe a instituição e contribui para criar uma
sociedade onde o dinheiro ganha importância relativa, o que afasta ainda mais cidadãos ricos de
pobres.

E esse é apenas um dos muitos problemas abordados. O professor também explora temas como
prostituição, mercado de órgãos, seguros de vida (nos EUA, empresas seguram a vida de seus
próprios funcionários sem que eles saibam e, evidentemente, ficam elas mesmas com o valor da
apólice no caso de sinistro), incentivos monetários a parar de fumar, submeter-se a esterilização,
entre muitos outros.
Passemos agora às discordâncias. Também elas são matizadas. É bem verdade que, muitas vezes,
o tiro sai pela culatra, como no caso das creches israelenses. E as coisas podem ficar ainda piores.
Num exemplo que não canso de repetir, é bastante educado levar uma garrafa de vinho caro para
o almoço de dia das mães que sua sogra oferece. Mas experimente dar a ela duas notas de cem
reais ao fim da refeição (o mesmo valor do vinho) que você vira "persona non grata" naquela
casa. As ideias que temos sobre o que pode ou não ser vendido às vezes nos deixam
temperamentais.

O que me incomoda no discurso de Sandel é a ênfase na ideia de que o dinheiro corrompe e


degrada tudo o que toca. Ainda que isso possa ocorrer em vários casos, não podemos esquecer
que a criação da moeda e sua crescente utilização nos mais variados aspectos da vida é um dos
principais ingredientes da bonança material sem precedentes em que vivemos. Sem a abstração
do dinheiro, que permite intercambiar valores que de outra maneira seriam incomensuráveis, eu
teria de encontrar um açougueiro interessado em ler colunas jornalísticas cada vez que quisesse
comprar um filé. Precisamos nos acautelar para não cair num reacionarismo de esquerda que
rejeite "prima facie" o avanço da monetização em campos em que ela se encontra hoje leve ou
pesadamente proscrita.

Como no caso da sogra, evitamos presentear nossos amigos com dinheiro em espécie. Acho que
isso está vinculado à ideia de que a amizade não se compra. Não usamos a moeda, mas
recorremos a coisas como vale-presentes (nos EUA, eles são muito mais utilizados do que aqui),
que não passa de uma versão piorada de dinheiro: só pode ser usado numa loja e tem prazo de
validade. Mas os vale-presentes são quase benignos quando os comparamos com a malha xadrez
berrante que ganhamos da tia velhinha ou as abotoaduras oferecidas pelo primo advogado. No
geral, acabamos recebendo um monte de coisas que não queremos e jamais utilizaremos, uma
verdadeira subtração de bem-estar, se cotejarmos o valor dessas mercadorias ao que poderíamos
comprar se tivéssemos recebido em espécie. Sandel cita um economista que fez a lição de casa,
Joel Waldfogel, e concluiu que, nos EUA, o hábito de dar presentes é responsável pela destruição
anual de US$ 13 bilhões, que é a diferença de 20% entre o valor monetário daquilo que ganhamos
e o valor pessoal que lhe atribuímos. Eu não teria nada a opor se nossas sensibilidades mudassem
um pouquinho de forma a admitir cheques em vez de abotoaduras. Vou mais longe. Acho que se
formos com cuidado, a implantação de um mercado de rins, barrigas de aluguel e assemelhados
deixará as pessoas melhor do que estão hoje.

E nossas sensibilidades vêm mudando. Os vale-presentes são um sintoma. Se recuarmos um


pouco mais, podemos lembrar que, na Idade Média na Europa, a ideologia reinante desaprovava
os juros. Em alguma medida, isso ainda ocorre no islã. Não parece exagero afirmar que essa
resistência é um dos elementos que contribui para o atraso econômico da velha Europa e do
moderno islã. Mesmo no Brasil tivemos durante muitos anos o tabelamento constitucional dos
juros em 12% ao ano. A coisa só não foi pior porque nunca fomos muito católicos no respeito à
Carta.

A verdade é que o dinheiro cria um monte de problemas e desigualdades, como as apontadas por
Sandel, mas também é verdade, e isso ele só insinua, que os mecanismos de mercado estão na
raiz de uma pujança global sem precedentes na história. Mesmo com todas as desigualdades e
injustiças, um americano pobre de hoje tem à sua disposição muito mais recursos do que o mais
rico dos americanos de cem anos atrás: 99% dos que estão abaixo da linha de pobreza nos EUA
têm acesso a eletricidade, água limpa, esgoto e uma geladeira; 95% têm TV; 88%, telefone;
71%, carro; e 70%, ar condicionado.

Mesmo as populações mais miseráveis do planeta hoje se beneficiam de avanços que devem
muito à economia de mercado, como vacinas, medicamentos e a oferta de calorias baratas. Vivem
hoje mais e melhor do que seus antepassados.

É claro que o mercado não é perfeito. Ao contrário, ele encerra um bom número de distorções que
precisam ser corrigidas, sob pena de engendrar injustiças e crises nas quais todos perdem, como
se vê claramente em alguns países da Europa. Mas, sem nunca fugir das discussões morais, como
defende Sandel, acho temerário, em nome de um ideal de pureza meio metafísico, demarcar
territórios onde o dinheiro não pode "a priori" entrar. Se precisamos tomar cuidado com a
monetização da sociedade, também precisamos nos acautelar contra utopias regressivas à la
Jean-Jacques Rousseau.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena -
Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças,
quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.

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