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AÇÃO DECLARATÓRIA

AÇÃO DECLARATÓRIA
Revista de Processo | vol. 22/1981 | p. 201 - 211 | Abr - Jun / 1981
DTR\1981\49

Teresa Arruda Alvim Wambier

Donaldo Armelin

Área do Direito: Civil; Processual


Sumário:

SUMÁRIO: I - Do cabimento da ação declaratória: a) Do pedido sem julgamento do mérito; b) Da


argumentação falha da contestação; c) Do engano da decisão do primeiro grau de jurisdição. II - Da
existência e validade do contrato de compra e venda das ações: a) A insubsistência da carta
notificação como ensejadora da rescisão de contrato. Conclusão.

I - Do cabimento da ação declaratória

1. A fim de explicitarmos nosso posicionamento no sentido do cabimento de ação declaratória, na


hipótese dos autos, se faz essencial, antes de mais nada, o exame do pedido e dos fatos jurídicos
que o embasam, das alegações do réu e da r. sentença do primeiro grau de jurisdição, que extinguiu
o processo.

A) Do pedido sem julgamento do mérito

2. S.M., agora autor apelante, aos 14.5.80, de acordo com opção de venda e compra que lhe fora
outorgada pelo agora réu apelado, D.G.M., adquiriu deste último 3.015.962 ações no capital social da
A.A.B., pelo preço certo e ajustado de Cr$ 230.000.000,00, a ser pago parceladamente.

3. Entretanto, o réu apelado, enviou ao autor-apelante, e comprador das ações que detinha na supra
referida S/A, uma carta-notificação, através da qual considerou-se desobrigado do contrato.

É evidente que com essa carta-notificação gerou a mais séria, perceptível e palpável incerteza
jurídica objetiva, que é o pressuposto necessário e suficiente ao cabimento da ação declaratória,
colocando-se, destarte, como causa eficiente do agir (cfr. Arruda Alvim, Código de Processo Civil
(LGL\1973\5) Comentado, vol. I, 1.ª Ed., Revista dos Tribunais, São Paulo, 1975, p. 252 e tb. Artur
Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, 1.ª reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra, 1970,
vol. I, p. 207).

O réu apelado, através da carta-notificação mencionada, firmada por mais dois irmãos, um dos quais
também assinara o instrumento da avença, pretende retirar do contrato de compra e venda perfeito e
acabado, que assinara, toda sua eficácia.

4. Ante a objetiva incerteza jurídica, gerada pela notificação, e os danos que dela advêm a S.M.,
move este apresente ação declaratória pretendendo, por meio dela, obter a estabilidade de suas
relações jurídicas, prevenindo litígio maior, e, portanto, a declaração judicial da validade e
conseqüente eficácia do contrato de compra e venda de ações da A.A.B., pois que como não se
pode, ainda, neste caso, falar de inadimplemento da obrigação assumida pelo réu apelado, não se
deve, sequer, por conseguinte, haver lugar para uma providência condenatória. O que está em causa
é, tão-só, a certeza, a segurança da ordem jurídica, uma vez que a ação declaratória, tem por
finalidade, como diz Artur Anselmo de Castro (ob. cit., p. 201) "prevenir possíveis litígios e garantir a
certeza do direito e das relações jurídicas, contribuindo deste modo para o incremento dos negócios
jurídicos. E como se trata de um bem digno de tutela, daí que a lei conceda aos interessados o
recurso à ação de simples apreciação".

Ora, "é evidente que, continua o mestre de Coimbra, em certos casos, a certeza dum direito pode
mesmo ser condição da sua própria eficácia..." e por certeza, leciona Micheli (Corso, I, p. 44), deve
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entender-se uma vantagem e, portanto, um bem, digno, em si próprio, de tutela por parte do direito;
compreende-se, portanto, que ela própria forme o objeto dum dos tipos de tutela jurisdicional que se
atuam através do processo civil, mesmo que não exista a necessidade de remover as conseqüências
da violação de um direito.

B) Da argumentação falha da contestação

5. Contestando a ação, o réu impugna a admissibilidade do uso de ação declaratória usando dos
argumentos a seguir: "o autor pleiteia a declaração - não da existência ou inexistência de relação
jurídica - mas da validade de um contrato. Ora, a existência e validade estão em planos diferentes e
não se confundem nem se podem confundir contrato e relação jurídica, por ele produzida" (fls.).

Deflui, nitidamente, pois, do trecho supra transcrito da contestação, que, para o réu apelado, não tem
o autor apelante interesse jurídico legitimatório da pretensão declarativa.

O equívoco é profundo, pois se admite ação declaratória até mesmo para se discutir sobre validade
de uma só cláusula contratual.

Alfredo Buzaid, corrobora este ponto de vista quando relaciona dentre as hipóteses de cabimento de
ação declaratória "a declaração da existência ou inexistência de uma relação jurídica, oriunda da
cláusula contratual, reputada nula por uma parte e válida pela outra" (cf. Ação Declaratória, Saraiva,
São Paulo, 1943, p. 102). O que importa, segundo Anselmo de Castro (ob. cit., p. 208) é que o
estado de dúvida afete a negociabilidade do direito em causa.

6. Mais de espaço nos deteremos no exame do posicionamento da jurisprudência, a respeito da


admissibilidade da ação declaratória, em hipóteses como a dos autos.

No momento, porém, nos ateremos ao sofisma apresentado, como se segue e, aliás, acatado pela r.
sentença que extinguiu o processo sem julgamento de mérito, por entender o autor apelante
carecedor de ação.

7. Vejamos dito sofisma:

A ação declaratória se cinge a casos de declaração de existência ou inexistência de relação jurídica.

A presente ação visa a declaração de validade de um contrato.

Considerando que existência e validade estão em planos diversos e não se confundem. Ainda, que
igualmente não se confundem contrato e relação jurídica por ele produzida, conclui o réu que:
conseqüentemente, descabe a presente ação declaratória que tem por finalidade a simples
apreciação da validade de um contrato.

8. Data máxima venia, parece-nos juridicamente inviável e inadmissível aceitar as premissas, as


considerações e a conclusão do raciocínio, acima esquematizado, por consubstanciarem meias
verdades, e, de resto, afrontarem doutrina e jurisprudência pacíficas em sentido contrário.

9. Assim, existência e validade estão em planos diversos e não se confundem com anulabilidade.

Em verdade, porém, no caso, o Código de Processo Civil (LGL\1973\5), usou no seu art. 4.º, a
linguagem a confundir o plano da existência, com o da validade, sem que com isto tenha prejudicado
a missão para que surgiu: a de o Poder Judiciário pronunciar-se sobre a certeza de uma relação
jurídica, afim de restabelecer a ordem na sociedade. Em verdade, existência e validade são
conceitos diversos; existência é quando faltam aqueles elementos sem os quais não se deve, ou não
se pode, sequer, falar de negócio jurídico, uma vez que não entrou para o mundo, do que se conclui
que intervenção alguma caberia ao Tribunal, uma vez que não existe negócio algum; validade se se
produz a condição do negócio existir pelo menos no plano da abstração, embora traga em seu bojo
máculas, que não permitem fazer surtir os efeitos queridos pelas partes, embora na aparência ele
contenha certos elementos que o caracterizem como negócio jurídico, mas que, por estar eivado de
certos vícios, o Direito o ataca de tal forma que não produz qualquer efeito; posto nestes termos é
que o Tribunal há de declarar sobre a possibilidade do negócio prosperar face à dúvida das partes.
Assim, o Código ao falar em existência quis referir-se à validade (cfr. neste ponto Antônio Junqueira
de Azevedo, Negócio Jurídico, Existência, Validade e Eficácia, 1.ª ed., Saraiva, São Paulo, 1974).

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Portanto, no linguajar comum, se considerarmos a expressão existência, em sentido empírico,


podemos, tão-só e exclusivamente, examinar da realidade palpável do instrumento material de uma
avença, por exemplo, poderíamos verificar da existência de um instrumento de contrato, que não
contém em seu bojo ajuste algum. Destarte, impõe-se a conclusão de que tal interpretação da
expressão "existência" não conduz ao entendimento jurídico da mesma, de que é insatisfatória.
"Existência", em direito, implica em validade perante o ordenamento.

10. Releva notar, ainda, que, juridicamente, a existência ou inexistência, a ser examinada pelo Poder
Judiciário, não se deve referir ao instrumento do contrato, mas sim à relação jurídica.

11. Doutra parte, o contrato não se confunde com relação jurídica. Realmente, esta afirmação é
irretorquível, todavia, como dissemos do restante da argumentação do réu apelado, incompleta e
insuficiente.

O contrato não se confunde com a relação jurídica porque esta é o conteúdo daquele. O contrato
simplesmente retrata relação jurídica, caso contrário, não mereceria a denominação de contrato, que
induz, por si só, um sinalagma, ou seja, uma relação jurídica.

Conseqüentemente, o que deve ser examinado e decidido pelos E. Julgadores é a respeito da


existência da relação jurídica, consubstanciada no contrato, peremptoriamente negada pela
carta-notificação.

12. Nessa oportunidade, cabe a pergunta do que viria a ser a própria "existência" da relação jurídica.

Inarredável, neste passo, a conclusão de que a existência dessa relação seria sua conformidade
com o sistema jurídico, como dissemos. Portanto, a validade, por sua vez, nada mais é do que a
existência conforme o ordenamento jurídico, ou seja, se a relação jurídica existe, é válida, perante o
ordenamento jurídico, caso não seja infirmada a tipologia da norma jurídica aplicável ao negócio.

13. Evidentemente, pois, cabe ação declaratória para declaração de existência no mundo jurídico de
determinada relação, que, na exata medida desse enquadramento no sistema, recebe o nome de
jurídica e válida.

14. O mesmo pode-se dizer em relação à declaração de inexistência, no mundo jurídico, de


determinada relação, pois através da ação declaratória declara o órgão judicante se ela é válida,
perante o ordenamento jurídico, ou não.

Nem há que falar, nessas hipóteses, de constitutividade dessas ações, desde que o Poder Judiciário
não inova, em qualquer dessas hipóteses, mas somente se limita a dizer da existência ou
inexistência das relações jurídicas, ou seja, de sua validade perante o direito.

Leo Rosenberg lembra, a propósito da não inovação pela sentença declaratória, que a finalidade da
ação declaratória é mais reduzida do que as ações de prestação, mas em compensação, seu objeto
é mais amplo (cf. Tratado de Derecho Procesal Civil, II, 986). Aliás, a este propósito, é peremptória a
lição de Anselmo de Castro (ob. cit., p. 206) "...as ações de simples apreciação (declaratórias)
respeitam a todas as relações jurídicas, analisáveis ou não em prestação, apenas se excluindo no
seu âmbito, os direitos potestativos insuscetíveis de exercício extrajudicial", que é o objeto dá ação
constitutiva.

15. Adotando essa orientação, encontramos, dentre inúmeros, acórdão que admite o uso de ação
declaratória para a fixação da exata inteligência e latitude dos contratos e suas cláusulas, eis que
objetiva a proclamação da existência ou não de determinada relação jurídica (cf. AC 178.295 - 1.º
TACSP - v.u. - 2.ª Câmara Cível, Assis Dias, pres. com voto; Carlos A. Ortiz, relator; Penido Burnier,
revisor).

Aliás, nesse mesmo acórdão (para que não o impugnem sem conhecimento), ficou expresso que em
a lei concedendo "ação declaratória para que a Justiça proclame a existência ou inexistência da
relação jurídica, deve ser interpretada em sentido lato", citando-se, ainda, no mesmo sentido RT
225/391, 234/239, 310/171 e 355/185.

E, de seu teor consta, in verbis: Dentro desse diapasão, é claro, que cabe a ação declaratória para a
fixação da exata inteligência e latitude dos contratos e de suas cláusulas (RT 217/183 e 458;
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302/514, 352/176, 372/251, 374/258 e 430/165).

16. Também o AP 159.579, de Presidente Prudente (1.º TACSP, v.u. da 5.ª Câmara Cível, Rodrigues
Porto, presidente com voto; Toledo Piza, relator e Octávio Stucchi), seguindo a posição dominante a
respeito da matéria, reformou sentença, que havia dado pela carência da ação por entender ser a
ação declaratória admissível "para dirimir a dúvida sobre a prevalência ou não da cláusula do
contrato de arrendamento relativa ao preço, em face das disposições do Estatuto da Terra que o
limitam".

17. Doutra parte, na AC 80.695, S.P., v.u. - 6.ª Câmara Cível, Costa Leite, presidente e relator,
Henrique Machado, revisor, Pinheiro Franco, 3,º Juiz ficou devidamente esclarecido que "a
declaratória se destina a espancar a incerteza nas relações jurídicas de forma a prevenir litígios. E a
incerteza, no caso dos autos, não pode ser negada, diante do que se estabeleceu na cláusula em
questão... Este Tribunal de Alçada, aliás, já teve oportunidade de apreciar hipótese absolutamente
semelhante, admitindo a ação declaratória, porque o que o autor visa com a ação proposta não é a
interpretação pura e simples da lei, senão obter uma certeza jurídica sobre as conseqüências
particulares do contrato de locação" (RT 302/514),

18. Outros mais acórdãos poderiam, nessa oportunidade, ser transcritos, todavia limitar-nos-emos a
citar alguns ante o translúcido posicionamento das ementas suficientes para demonstrar o
posicionamento da jurisprudência no sentido aqui sustentado.

Assim, na apelação 151.650, TJSP (rel. Milton Evaristo dos Santos, Boletim de Jurisprudência, 5/167
é expresso no sentido do cabimento de ação declaratória com o objetivo de declarar a validade de
compromisso de compra e venda, que fora dado por rescindido pelo promitente vendedor, em
decorrência no pagamento do preço.

Também, cabe ação declaratória respeitante a cláusula de compromisso de compra e venda, cuja
validade e eficácia se pretende ver declarada - AC 7.097 (rel. Manoel Carlos, em 30.10.73, JTA,
29/22).

Admite-se ação declaratória para interpretação de cláusula contratual, no que diz respeito a fixação
da exata inteligência das mesmas e no que diz com a própria latitude dos contratos. AP 78.046 (rel.
Coelho de Paula, RT 372/251).

C) Do engano da decisão do primeiro grau de jurisdição

19. Doutra parte, o douto juiz do primeiro grau, fundamentando a parte decisória, que deu pela
carência de ação, por entender incabível, na espécie, ação declaratória, usou de argumentação que,
lógica e juridicamente, faria com que tivesse decidido exatamente ao contrário, isto é, pelo cabimento
da ação.

A jurisprudência, se bem examinada, evidencia, o cabimento da presente ação.

Assim, inadmitiu-se ação declaratória para se discutir relação jurídica contida em documento
reconhecido por ambas as partes (1.º TACSP, AC 247.359, 5.ª Câmara Cível, rel. Alvaro Lazzarini, j.
em 23.8.78, in JTACSP 57/91). É evidente, pois, que, se, como no caso dos autos, a relação jurídica
não é reconhecida por ambas as partes, dado que o réu a nega, através da carta-notificação, ter
cabimento a ação declaratória (Anselmo de Castro, ob. cit., pp. 201 e 202).

Já se tem reiteradamente admitido ação declaratória para se indagar da existência e validade


jurídicas de novação, isto é, saber se houve ou não novação, e, implicações respectivas (TJPR,
apelação 225/72, rel. Des. Mercer Jr., j. em 18.12.72, RT 456/191). Nesta mesma linha, já decidiu o
STF, no RE 70.161-SC, rel. Min. Djaci Falcão, j. em 14.4.72, RTJ 62/395).

Tem cabimento a ação declaratória para o fim de se declarar a validade e eficácia de compromisso
de compra e venda, que fora dado por rescindido pelo promitente vendedor, isto é, sem existência e
validade jurídicas (TJSP, apelação 151.650, rel. Des. Milton Evaristo dos Santos, Boletim de
Jurisprudência do TJSP 5/167).

Já se julgou no sentido da admissibilidade da ação para o fim de se saber da existência ou


subsistência de servidão (TJGB, apelação 25.001, rel. Des. Olavo Tostes, RT 361/422).

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Ainda, admitida foi a ação declaratória para se saber da subsistência de fiança, isto é, se o fiador
estava ou não juridicamente vinculado à mesma, ou, então, se estava exonerado (TASP, apelação
171.557, rel. Joaquim Francisco, j. em 21.3.72, RT 441/163).

Ainda, admitiu-se a mesma ação para o objetivo de se estabelecer certeza jurídica atinente à
inalienabilidade de bens herdados, ou seja, para se definir juridicamente a situação dos bens em
relação aos herdeiros (TJSP, apelação 252.539, rel. Des. Coelho de Paula, j. em 1.10.76, RJTJSP
44/34).

Foi tida como cabível para se saber se determinadas pessoas são ou não proprietárias.
Encontravam-se estas pessoas na posse das terras, mas o seu domínio era contestado, isto é,
negado. Como estavam na posse, não podiam reivindicar. Admitiu-se a ação declaratória para que
se lhes declarasse a situação jurídica de proprietários (STF - RE 64.481-SP, rel. Min. Moacyr Amaral
Santos, j. em 18.5.71, RTJ 89/10). Esta hipótese, mutatis mutandis, assemelha-se à dos autos, pois,
entende o autor ter direito a uma situação jurídica, oriunda de contrato, o qual, todavia, teve sua
juridicidade negada, mercê da carta-notificação, da lavra do réu apelado.

O C. Supremo Tribunal Federal tem admitido a ação em casos análogos, como, ainda se pode
verificar.

Assim entendeu cabível a ação para resolver incerteza de relação jurídica existente entre incorpora
dores de unidades imobiliárias e sociedade adquirente, entendimento este que se teve por ajustado à
regra do art. 4.º, do CPC (LGL\1973\5) vigente (RE 89.362, RTJ 87/706, Rel. Min. Djaci Falcão,
votação unânime).

Verifica-se, como síntese ou denominador comum, de tais entendimentos, ter cabimento a ação
declaratória, como remédio preventivo de litígios maiores, quando exista uma incerteza jurídica
objetiva. Isto é, uma incerteza efetiva e real, que tenha gerado uma dúvida em determinado negócio
jurídico ou contrato, ou, em dada situação jurídica, como no caso vertente. E, na espécie dos autos,
o réu apelado foi o gerador da dúvida, sendo, desta forma, legitimamente, o sujeito passivo da
demanda, eis que é parte contratante originária, que, ulteriormente, negou ou pretendeu negar o
contrato que firmou. Nada mais razoável, ou, melhor dizendo, absolutamente indispensável, que a
outra parte contratante - que é o autor apelado - venha ao Judiciário para que este declare a
existência jurídica do contrato, e, correlatamente, sua validade, eliminando a dúvida séria levantada
pelo réu apelado, em sua carta-notificação.

20. Assim, foram, na r. sentença apelada, tecidas as seguintes considerações:

Deduz-se do art. 4.º, do CPC (LGL\1973\5) combinado "com as disposições de direito material,
principalmente, o art. 75, do CC, que a finalidade da ação declaratória é alcançar sempre uma
certeza jurídica sobre a existência ou inexistência de relação jurídica... Destina-se a declaratória a
fazer desaparecer uma incerteza, afirmando e definindo certa relação jurídica de forma a adquirir
estabilidade" (fls., grifos nossos).

21. Indiscutível e palpável a incerteza que concretamente paira sobre a relação jurídica entre autor
apelante e réu apelado, quando de notificação deste último ao agora, autor apelante, contendo
afirmação de desfazimento unilateral da relação jurídica consubstanciada no contrato de compra e
venda de ações, e, ao que se soma, ainda, a sua própria contestação à presente ação.

22. Se o réu apelado, então vendedor de suas ações na sociedade anônima fez nascer a incerteza
jurídica da própria existência, eis que falou em desfazimento, da relação jurídica entre ele e o
comprador das ações, autor apelado, só poderia este usar de ação declaratória para "fazer
desaparecer esta incerteza, afirmando e definindo" a "relação jurídica de forma a adquirir
estabilidade" (argumentos da sentença - fls.).

Como vemos, os próprios fundamentos da r. sentença se acoplam perfeitamente ao caso dos autos,
porém, para conclusão oposta, ou seja, do cabimento da ação declaratória para os fins visados pelo
autor apelante.

23. Em outro passo, também fundamentando o decisório, a r. sentença assevera que o conflito se
estabelece "sobre a relação jurídica e não sobre os fatos que a podem modificar...", portanto, "o
objeto da ação declaratória não pode ser um simples fato, conforme ensina Alfredo Buzaid"... (fls.).
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24. Concordamos, nessa oportunidade, plenamente com o douto magistrado: simples fatos não
podem ser objeto de ação declaratória.

Releva notar, porém, que na hipótese dos autos, de forma alguma, pretende o autor apelante
declaração de existência ou inexistência e conseqüente validade ou invalidade, perante o
ordenamento jurídico, de fatos.

A relação jurídica, que pretende o autor ver declarada existente, ou seja, válida perante o direito,
tornou-se através da notificação, supra mencionada, por parte do réu apelado ao autor apelante,
objetivamente incerta, carecendo de declaração de certeza, a qual só pode ser fornecida, pelo Poder
Judiciário, por meio de ação declaratória.

Vê-se, portanto, que o conflito de interesses, instalado pela incerteza objetiva, decorrente de
manifestação do réu apelado, se estabeleceu relativamente à relação jurídica, consubstanciada no
contrato, e não sobre fatos (meros e puros fatos), como, por certo, equivocadamente, parece ter
entendido o digno magistrado. De mais a mais, se de fato, realmente, tratasse, e isto é, só para
argumentar, ainda assim não se poderia concluir como o fez o MM. Juiz a quo, porque, como ensina
Arruda Alvim (ob. cit., p. 336): "Se um fato, todavia, implicar uma relação jurídica, ou a ela dê
nascimento, poderá então, mas por causa da relação jurídica, ser discutido (o fato e respectiva
relação jurídica dele resultante), através da ação declaratória", pois que, como nos elucida Orlando
Gomes, Introdução ao Direito Civil, 4.ª ed., Forense, o fato é um dos elementos da relação jurídica
(p. 126).

25. Por certo enganou-se o MM. Juiz a quo, eis que em outra oportunidade, no mesmo decisório,
afirma "o pedido do autor busca uma sentença que além da certeza da relação jurídica..." (fls.).

26. Assim, se o pedido busca, de acordo com a sentença, como em verdade o faz, uma decisão que
produza certeza jurídica e se esta só pode ser dada pelo Estado Juiz através da ação declaratória, a
presente ação foi corretamente proposta.

27. Mais uma vez enganou-se o MM. Juízo do primeiro grau quando assevera: "O pedido do autor
busca uma sentença que além da certeza da relação jurídica (o que já comentamos supra), conduza
ao reconhecimento de uma validade criadora de uma relação jurídica que não pode ser objeto deste
tipo de ação" (fls., grifos nossos).

28. Venia permissa, criadora foi a decisão do primeiro grau ao interpretar o pedido do autor.

Visivelmente não estamos face a ação constitutiva (ou desconstitutiva), eis que o autor apelante tão
só quer ver declarada, em juízo, a validade do contrato de compra e venda de ações, ou melhor, a
existência, perante o direito, da relação jurídica consubstanciada no contrato, a qual relação jurídica
se tornou incerta por manifestação de vontade do réu apelado.

29. Ante o exposto, concluímos que a r. sentença do primeiro grau não pode subsistir, pois assiste
direito ao autor de ver apreciado o mérito, eis que tem ele legítimo interesse jurídico nesta ação
declaratória, é parte legítima e, ademais, seu pedido encontra respaldo em nosso sistema jurídico. E
como preleciona Arruda Alvim (ob. cit., p. 352), "o critério para dar-se como existente ou não o
interesse é, exclusivamente, o processual, ou seja o interesse de agir deverá fazer com que o juiz
entenda a ação viável, mas não necessariamente fundada, pois, para este aspecto há de considerar
o contraditório e as provas que se produzam".

II - Da existência e validade do contrato de compra e venda das ações

30. Como já foi aqui relatado, aos 27.3.80, após entendimentos verbais, D.G.M. (réu apelado)
outorgou a S.M. (autor apelante) "Opção de venda de Ações", como se vê dos documentos anexos
pelo próprio punho do ofertante e, datilografado, e por ele assinado.

31. Por meio dessa opção, D.G.M. ofereceu à venda a S.M. as ações na A.A.B., das quais era titular,
fixando, já à época, o preço de Cr$ 250.000.000,00, descontando desse valor as dívidas atuais da
firma, em proporção igual a que cabe a cada ação que compõe o capital acionário da empresa".

Estabelecido na opção foi também o prazo, dentro do qual esse pagamento seria efetuado, eis que
dependia, o agora autor apelante, para saldá-lo do levantamento, no mercado, da posição
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econômico-financeira da sociedade em questão.

32. Aos 14 de maio do mesmo ano, dentro, portanto, do prazo de opção, foi entre as partes
celebrado o contrato, na comarca de B., onde reside o comprador e está situada a S.A., contrato
definitivo, perfeito e acabado, de compra e venda das ações (doc. 3 da inicial).

33. Através dele, D.G.M. vendeu a S.M. 3.015.962 ações que detinha no capital social da empresa,
pelo preço certo e ajustado de Cr$ 230.000.000,00.

34. Do exposto, deflui nitidamente que o contrato de compra e venda está perfeito e acabado,
estando nele presentes os elementos essenciais para tanto: vontade de ambas as partes, objeto
individuado, preço certo e ajustado.

35. Como a primeira parcela de pagamento se vence em agosto de 1981, cuidou o adquirente das
ações, autor apelante, de trazer progresso à S.A., poupando o numerário, usando de dinheiro próprio
e, como resulta claro, não efetuando negócios outros lucrativos.

36. Contudo, 90 dias após a venda, já consumada, recebeu o comprador carta-notificação do


vendedor, registrada sob o n. 1.237, no Cartório de Títulos e Documentos de Bandeirantes.

37. Arrependido o vendedor, D.G.M., do negócio perfeito e acabado, por razões familiares ou
econômicas, desde que o comprador já estava trazendo, com sua administração à empresa,
progresso, mas razões essas que não interessam aos EE. Julgadores, tentou ele o desfazimento
unilateral do mesmo.

38. Nesta carta-notificação, cujo valor jurídico é inexistente, sugere o notificante que houve, tão-só e
exclusivamente, ajuste de futura venda, condicionada à "necessária anuência de todos os demais
acionistas no bolo das ações, que formam o capital social; anuência esta que não foi totalmente
obtida, o que teria tornado sem efeito o documento, "desobrigadas as partes de quaisquer
responsabilidades".

Ademais, esclarece nesta carta-notificação que a cláusula contratual onde se estipula sobre herança
de pessoa viva não pode prevalecer em nosso sistema jurídico.

A) A insubsistência da carta notificação como ensejadora de rescisão de contrato.

39. Observamos que o réu apelado teve a intenção de transformar um contrato de compra e venda,
perfeito e acabado, existente e eficaz, em mera promessa de alienação de ações, desfazível
unilateralmente.

40. Entretanto, por malícia, deixou de lado o fato de que no instrumento de compra e venda de ações
se consubstanciaram dois negócios jurídicos, perfeitamente dissociáveis.

41. O primeiro deles foi efetivamente o de compra e venda de ações, relação obrigacional
definitivamente constituída e apta a gerar efeitos. Alguém vendeu ações e outro as comprou, por
preço certo e ajustado, o que, por estarem presentes os elementos essenciais para a perfeição do
contrato de compra e venda, ocasiona a irretratabilidade do negócio jurídico efetuado, e, com mais
razão, impede a retratabilidade unilateral do mesmo.

42. O segundo, que deu margem à carta-notificação, infundadamente, mas ardilosamente


engendrada, foi a avença a respeito de herança de pessoa viva, o que, concordamos, é vedado pelo
nosso ordenamento jurídico.

Acertaram as partes entre si, "que da herança das ações da mesma empresa, a ser partilhada por
direito ao comprador; ganha de L. M." (pai vivo) "e de sua esposa M.L.B.M. (mãe viva) progenitora..."

43. Em razão dessa estipulação entenderam as partes contratantes que se fazia mister a anuência
dos demais acionistas no bolo das ações, que formam o capital social, pois são eles todos irmãos (o
que apenas pode tornar fechada uma S/A), a fim de elidir eventuais conflitos quando do falecimento
de um ou dos dois progenitores.

44. Evidentemente não precisavam os sócios que ajustavam compra e venda de ações, do
conhecimento e da anuência dos demais, desde que nem lei, nem estatuto a prevêem.
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45 Assim, concordamos que foi estabelecida uma condição para um dos negócios consubstanciados
no instrumento de compra e venda de ações. Porém, essa condição de conhecimento e anuência
dos demais sócios não poderia ser por contrato estipulada para a venda de ações, uma vez que
ilegal, pois que a estipulação negocial tem a sua origem num estado de incerteza, por parte do
declarante, acerca de quais sejam os seus verdadeiros interesses, por serem estes dependentes de
circunstâncias futuras que lhe aparecem como problemáticas (M.A. Domingues de Andrade, Teoria
Geral da Relação Jurídica, 2.ª reimpressão, Livraria Almedina, Coimbra, 1966, vol. II, p. 357). Ora,
inadmissível mesmo esta cláusula, pois, e como se demonstra adiante, o réu apelado circunscreveu
o seu direito de propriedade num círculo bem mais apertado que aquele previsto em lei, cerceando e
golpeando um direito subjetivo do autor apelante.

46. Curial e do conhecimento geral, daqueles que lidam com o Direito, que a nulidade de uma
cláusula contratual não nulifica o todo, deixando só ela e as a ela pertinentes, de ter validade,
especificamente, no caso concreto onde a estipulação sobre herança de pessoa viva é ilegal, mas o
contrato, a compra e venda de ações é, não só legal, como até mesmo, incentivada pelo nosso
sistema e não pode ser vedada pelos sócios, mesmo em sociedade anônima, "de família" como é a
AAB S/A, se não, vejamos:

O art. 36 da Lei 6.404, de 15.12.76 dispõe: "O estatuto da companhia fechada pode impor limitações
à circulação das ações nominativas, contanto que regule minuciosamente tais limitações e não
impeça a negociação, nem sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da companhia
ou da maioria dos acionistas. Parágrafo único: A limitação à circulação criada por alteração
estatutária somente se aplicará às ações cujos titulares com ela expressamente concordarem,
mediante pedido de averbação no livro do "Registro de Atas Normativas" (grifos nossos).

b) Na vigência do Dec.-lei 2.627 de 1940 (antiga Lei das Sociedades por Ações) o art. 27, § 2.º
rezava igualmente: "os estatutos podem impor limitações à circulação das ações nominativas,
contanto que regulem minuciosamente tais limitações e não impeçam a sua negociação, nem
sujeitem o acionista ao arbítrio da administração da sociedade" (grifos nossos).

c) Contudo, na hipótese examinada, no estatuto da A.A.B. não há restrição alguma para a


transferência das ações, muito menos a necessidade do conhecimento e consentimento dos demais.

Logo, observemos, por oportuno e mais uma vez, que o conhecimento e consentimento foram
considerados necessários para a estipulação a respeito da herança.

d) A nova lei, destarte, além de inserir um parágrafo ao preceituado no antigo art. 27 do Decreto-lei
n. 2.627/40, regulamentando a extensão das limitações estatutariamente instituídas, restringiu tais
limitações às sociedades fechadas, como é o caso dos autos, acrescentando o que é fundamental,
para a espécie ora versada: "não sujeite o acionista ao arbítrio dos órgãos de administração da
companhia ou da maioria dos acionistas". Isto significa que qualquer disposição estatutária, se
houvesse, atrelando a transferibilidade das ações à anuência da maioria dos acionistas, que ao seu
talante pudessem negá-la, seria írrita. No caso dos autos, se a cláusula versando a anuência dos
acionistas alheios à venda, estivesse condicionando esta mesma venda, ter-se-ia uma restrição extra
estatutária gerando aquela inatacável intransferibilidade. E o que não é licito constar do estatuto não
poderão fazê-lo os acionistas fora dele, salvo acordo de acionistas, de que a espécie, à evidência,
não cuida.

e) Deve-se levar em conta, ainda, que, no caso em exame, não se cuida de ingresso de terceiro na
sociedade, mas sim de venda de ações de acionista para acionista, que não importa, a demais, em
alienação do controle da sociedade.

f) Não há pois como falar em clause d'agrement do direito francês ou claosola de gradimento do
direito italiano, aceita por alguns autores nacionais e repelida por outros (cf. contra: Trajano Miranda
Valverde; admitindo: Cunha Peixoto e Modesto Carvalhosa). Muito menos se cuida de preferência na
aquisição, já que o estatuto é silente a respeito quer de uma quer de outra restrição. Muito menos
existe qualquer dispositivo estatutário quanto à fixação do preço da alienação ou de prévio
consentimento como ocorre na transação em exame (cf. Modesto Carvalhosa entende que cláusula
impondo o prévio consentimento é valida desde que não retire do acionista o direito de alienar suas
ações). Assim seria válida tal cláusula sempre que, negado o consentimento, ficassem os acionistas
ou a sociedade obrigados a adquirir tais ações do acionista retirante pelo preço pelo qual ele as
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venderia, se não houvesse tal restrição, salvo disposição estatutária que fixe esse preço para tal fim
(Comentários I, p. 190).

47. Vige, portanto, em tema de sociedades anônimas, o princípio da transferibilidade relativa das
ações. Contudo, é pacífico que todas as restrições à livre circulabilidade das ações nominativas
devem vir explicitadas no estatuto.

Logo, o negócio entabulado entre as partes é existente e válido.

Conclusão

É de nosso parecer que:

a) a presente ação é cabível, devendo a r. decisão do primeiro grau de jurisdição ser reformada,
determinando este E. Tribunal a volta dos autos ao MM. Juiz a quo para que profira sentença sobre o
mérito; pois

Gerada a incerteza do negócio jurídico por parte do réu apelado, esta havia de ser solucionada pelo
Judiciário, e outra ação não existe que a escolhida na inicial; e

b) ficou substancialmente comprovado sobre a validade e a existência da relação jurídica, o que, por
si só, autoriza uma Decisão tal como se requereu na peça vestibular.

São Paulo, 14 de novembro de 1980.

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