Você está na página 1de 16

RECOMEÇOS

Luisa Cisterna

Calgary, Canadá
Capa: Benjamim Sathler Lenz César / BJ Plus Design
Revisão: Juliana Costa Lenz César
Fotos da capa: © iStock

Esta é uma obra de ficção. Os nomes, personagens e incidentes são produtos da imaginação
da autora. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, ou eventos é mera coincidência.
RECOMEÇOS
Direitos Autorais © 2019 de Maria Luisa Costa Cisterna

Todos os direitos reservados.

ISBN-
Agradecimentos

Nenhum projeto, grande ou pequeno, é feito por uma só pessoa. Um romance não seria
diferente.
Sou eternamente grata à minha cunhada, Maria Marta Cisterna, a primeira leitora dos meus
romances. Com profundidade, ela descobre mais segredos da minha história do que eu própria
observo. Ela também aponta onde a história não está consistente e precisa ser melhorada. Obrigada,
sorella-in-law.
Minha família tem sua participação com sua compreensão e paciência quando sumo no meu
mundo para escrever. Aqui vai um agradecimento especial à minha irmã, Juliana César, minha fiel
revisora – ela não deixa passar uma vírgula!
Aos meus leitores, o gosto de publicar mais um romance não seria o mesmo sem o incentivo
de vocês. Seus comentários carinhosos e sinceros fazem com que eu queira melhorar sempre para lhes
entregar histórias emocionantes. Amo quando me dizem que sentem cheiros e sabores quando leem
as páginas dos meus livros.

Soli Deo Gloria!


Sobre o Vale do Okanagan

Foi amor à primeira vista quando visitei o Vale do Okanagan, na província da Colúmbia
Britânica, no Canadá, há mais de uma década. A partir daí, sempre passei férias de verão com a família
nesse lugar mágico e encantador.
A região é a segunda grande produtora de vinho do Canadá e um grande celeiro de produtos
hortifrúti do país. Na estrada que liga Kelowna, a maior cidade da região, a Osoyoos, na fronteira com
os Estados Unidos, a paisagem é de pomares e vinhedos. Como sendo a única região árida do Canadá,
com vegetação rasteira e cactos, o lugar é ideal para plantações desse tipo.
No meu primeiro romance, “Amor em Construção”, não tive dúvidas de que teria que escrever
a história de meus personagens com sotaque português nessa região que serviu de abrigo para várias
famílias portuguesas que procuravam trabalho após a Segunda Grande Guerra. Não resisti e voltei ao
Vale do Okanagan em “Recomeços”. O calor do verão, os extensos lagos e as frutas e vinhos são a
marca registrada dessa região árida e deslumbrante do Canadá.

Luisa Cisterna
Calgary, Canadá
Outros Títulos da Autora

Quando Você Voltou


Amor em Construção

Visite meu website: www.luisacisterna.com


Siga no Instagram @luisacisterna_
Facebook Luisa Cisterna
Prólogo
Dois anos antes

D
e repente faltou-lhe o ar. Como o corpo da mulher que virou estátua de sal, nem
piscar Helena conseguia. Seus olhos incrédulos estavam fixos em Rogério. As
palavras que saíam da boca daquele homem, agora um estranho, embaralhavam-se
no ambiente. As ondas sonoras eram como cobras rastejando na areia quente e,
quando finalmente alcançavam os ouvidos de Helena, machucavam com seu
veneno.
“Helena, você está prestando atenção?” Rogério disse com rispidez, sem qualquer interesse
pelos sentimentos dela.
Helena engoliu em seco e tentou agarrar as palavras que ele soltava como lanças para organizá-
las de forma que fizessem sentido. O pouco que conseguira entender daqueles sons cortantes contorcia
seu estômago: divórcio, gravidez, fim. Aquilo deveria ser um pesadelo; ninguém, nem mesmo Rogério
com sua língua ácida e alma desprovida de compaixão poderia disparar aquelas informações à queima-
roupa.
A dor de Helena ficou insuportável quando ele repetiu que estava saindo de casa e que queria
o divórcio. Ele não fez o menor esforço para abrandar as palavras quando revelou que tinha uma outra
mulher e que ela estava grávida. Helena desejou que as palavras de Rogério permanecessem confusas,
que as ondas sonoras escapassem pela grande janela da sala e fossem levadas para longe pelo vento.
Mas o fato era que, conforme ele repetia aquela sentença de morte do seu casamento, a mensagem
ficava mais clara.
Helena não precisou de esforço algum para segurar as lágrimas; seu estado de choque era tão
intenso que o choro ficou engasgado na garganta. O estômago contorcia-se como se fosse sair pela
boca. Acordando do torpor, ela levantou-se do confortável sofá que parecia cheio de lanças afiadas e
deu as costas para Rogério, que estava parado ao lado da lareira com os braços cruzados. A passos
lentos e pesados, Helena foi até o janelão da ampla sala de visitas e olhou lá fora para o corredor de
árvores frutíferas que terminava na estrada. Ela teve um ímpeto de sair correndo em busca de um
lugar seguro. Aquela casa, sua casa que tanto amava, naquele momento tinha-se tornado sua sepultura.
“Helena, você não vai dizer nada?” Rogério perguntou com crescente irritação.
Helena virou-se lentamente e o encarou. A raiva que ela tinha sentido dele inúmeras vezes nos
anos de casamento pareceu explodir em sua cabeça fazendo com que ela latejasse, espalhando uma
dor terrível por trás dos seus olhos.
Rogério passou a mão pelo cabelo castanho ralo e trincou os dentes. Com grande acidez,
Helena disse:
“Em outras palavras, o que você está me dizendo é que você arrumou uma namoradinha em
algum ponto entre o Canadá e o Brasil, e agora vai ser papai. Você quer que eu lhe dê os parabéns?
Onde essa mulher está? Aqui, debaixo do meu nariz, ou lá no Brasil?”
“Não precisa ser sarcástica. E que diferença faz se ela está aqui ou lá?”
Helena aproximou-se de Rogério, levantou o queixo e cerrou as mãos rente ao corpo.
“Diferença não faz mesmo onde no mapa você foi pilantra, mas tenho o direito de saber se convivi
com essa mulher desprezível.”
“Não se preocupe. Ela está no Brasil e eu estou indo de vez para lá na semana que vem.”
O olhar de Rogério era frio. Por uma fração de segundo, Helena pensou em avançar nele e
descontar toda a dor que ele já tinha lhe causado. Não devia se espantar com a falta de caráter de
Rogério. Ele já dera sinais suficientes de que não prestava. Alguns desses sinais estavam marcados na
pele de Helena. Uma reação física dela, ainda mais no estado de raiva em que se encontrava, iria
desencadear uma série de insultos de Rogério, que não hesitaria em usar as mãos para machucá-la
ainda mais.
Helena mal podia acreditar que aquele era o homem com quem fizera planos de sair do Brasil
e vir morar naquele vale mágico do Okanagan entre as Montanhas Rochosas e o Oceano Pacífico.
Depois de cinco anos de conquistas incríveis, incluindo aquela casa dos sonhos cercada por uma
pequena floresta, como Rogério podia levar tudo aquilo para a lama? Mas Helena sabia a resposta.
Não podia esperar outra coisa dele.
“Não sei quando você vai para o Brasil e nem me interessa, mas nessa casa, comigo, você não
fica. Arrume suas trouxas e suma da minha frente. Daqui em diante, conversamos só através de um
advogado.”
Dizendo isso, Helena foi para seu ateliê, bateu a porta com toda a força que restava em seus
músculos cansados e passou a chave. Chorou, sentada no chão, entre seus cavaletes, telas e tintas.
Capítulo 1
Dias atuais

L
una levantou-se do chão onde dormia ao lado de sua dona e correu pelo corredor
para a sala de visita, latindo compassadamente, avisando que havia alguém na porta.
Girando sua banqueta, Helena colocou o pincel coberto e tinta azul em um vidro
com água, limpou a mão no avental e seguiu sua fiel companheira. Da janela, viu o
jipe estacionando ao lado do seu carro.
“Luna, tudo bem,” Helena disse para a cadela retriever, passando a mão no seu pelo denso
avermelhado.
Antes que a campainha tocasse, Helena já tinha aberto a porta para seu cliente, que se
aproximava com um sorriso confiante e a mão estendida.
“Prazer, Michael Evans.”
Depois de mais de sete anos no Canadá, Helena ainda não se acostumava com as pessoas se
apresentando com formalidade, dizendo nome e sobrenome. Ela estendeu a mão e respondeu:
“Helena, prazer. Vamos entrar.”
Luna fez as honras da casa; aproximou-se daquele estranho, abanando o rabo e cheirando sua
calça jeans.
“Seu cachorro deve ter sentido o cheiro do meu,” Michael disse e passou a mão na cabeça de
Luna.
Helena o convidou para sentar no sofá e ignorou o comentário. Deu umas batidas na própria
perna, chamando Luna para ficar ao seu lado. “Se você trouxe o material que eu pedi, podemos discutir
o que deseja.”
Puxando a cadeira estofada para mais perto da mesinha de centro, Helena sentou-se e esperou.
De uma pasta um tanto surrada, Michael tirou vários livretos e panfletos e os colocou na mesinha.
“Esse é o material em inglês e preciso da tradução para espanhol e português. Sei que é
bastante trabalho, mas temos um prazo razoável, como expliquei no e-mail. Essa é a primeira parte do
projeto e, mais para frente, vou precisar atualizar o website da revista nas duas línguas.”
Enquanto Michael explicava com mais detalhes o serviço, Helena examinou aquele rosto
queimado de sol e com a barba por fazer. Seus olhos claros expressavam um pouco de tristeza, mas,
ao mesmo tempo, determinação; ele não era tão jovem assim que não conhecesse o lado cruel da vida, Helena
pensou.
“Acha que dá para fazer isso tudo dentro desse prazo?” Michael perguntou.
“Dá sim. Estou no fim de um projeto grande, mas posso começar na semana que vem.” Helena
correu os dedos pelo cabelo castanho claro ondulado.
Os dois conversaram de modo profissional, definindo prazos e preços. Helena ofereceu água
ao cliente, que recusou, dizendo que estava com pressa e que já iria embora. Ele levantou-se e ajeitou
a camisa polo. Luna, que tinha se deitado ao lado de Helena, aproximou-se do homem e recomeçou
o exame olfativo da calça dele, sempre abanando o rabo. Helena acompanhou-o até a porta e, antes
que ela a abrisse, ele parou e passou os olhos pelas paredes da sala. Helena segurou a maçaneta com
força e seguiu o olhar dele.
“Essas pinturas são suas?” Michael perguntou e Helena assentiu com a cabeça.
“Impressionante como você utiliza o contraste de cores dos vinhedos e do pôr-do-sol. Faz o Vale do
Okanagan parecer um lugar mágico, assim como ele é de fato.”
“Obrigada.”
Com o semblante sério, Helena abriu a porta e Luna saiu na frente. Michael seguiu o cachorro
e se virou com a mão estendida para Helena.
“A gente fica em contato,” ele disse, apertando a mão dela.
“Sim,” ela respondeu.
Chamando Luna para dentro de casa, Helena fechou a porta. Ouviu o carro de Michael saindo
pela estradinha de brita enquanto voltava para seu ateliê, acompanhada de Luna. Sentou-se na
banqueta de frente para a tela com as cores do pôr-do-sol, olhou fixamente para a imagem que estava
se formando e deu um profundo suspiro.

Helena colocou a louça suja na máquina de lavar, passou um pano pelo balcão da ampla
cozinha e abriu a porta que dava para o quintal para Luna sair. A cadela deu várias voltas em torno de
uma árvore e aliviou a bexiga. Como de costume, ela correu atrás dos passarinhos, latindo loucamente,
espantando até os mais agressivos corvos. Parou imediatamente quando Helena a chamou, deu meia
volta e entrou na cozinha. De um grande pote de plástico, Helena tirou dois biscoitos em formato de
osso com cheiro de bacon e deu para Luna, que os levou para sua cama ao lado da geladeira.
“Cuida direito da casa,” Helena falou para o cachorro que olhou para ela rapidamente e voltou
a mastigar o biscoito.
No corredor entre a cozinha e a sala, Helena pegou sua enorme bolsa e parou na frente do
espelho. O cabelo na altura do ombro brilhava, mas seus olhos castanhos, como profundos poços da
alma, eram opacos. A fotografia que sua irmã tinha tirado dela antes de se mudar com Rogério para o
Canadá mostrava outra pessoa. Helena pegou o porta-retratos do aparador debaixo do espelho e
examinou o rosto dessa outra Helena cheia de planos e sonhos. Os olhos estavam radiantes e o corpo,
mais cheio de curvas.
Quanta coisa pode mudar em pouco tempo. De fato, desde que tinha conhecido Rogério, sua
vida virou de cabeça para baixo, mas não de uma forma tão positiva. Os dois tinham se conhecido em
uma festa de aniversário de um amigo em comum e Helena se viu atraída pelas ideias de Rogério de
se mudar do Brasil. Ela própria já tinha morado e estudado fora no ensino médio em uma escola
internacional. A vantagem de falar inglês a levou para a Europa, onde acabou aprendendo espanhol
ao fazer um curso de artes antes de voltar para o Brasil e entrar na faculdade de Comunicação. A
possibilidade de sair novamente e explorar outros cantos acabou aproximando Helena e Rogério, a
despeito da resistência dos pais e de sua irmã, Kelly.
O namoro relâmpago acabou em um casamento apressado por conta da mudança para a
província da Colúmbia Britânica no Canadá. A despedida dos pais e da irmã tinha sido amarga, mas
Helena tinha certeza de que a vida em Vancouver lhe daria algumas vantagens que não teria no Brasil.
Depois de dois anos na úmida cidade no litoral do Pacífico, Helena e Rogério mudaram-se para
Kelowna, no interior árido da província com seus vinhedos e pomares intermináveis. Como corretor
de imóveis, Rogério atraiu clientes interessados em adquirir uma casa ou um apartamento de veraneio
naquele vale com seus verões quentes e longos e invernos amenos.
Na busca de um sítio para um cliente, Rogério acabou apaixonando-se por uma casa cercada
de árvores frutíferas e convenceu Helena de comprarem o imóvel na saída da cidade e se mudarem do
amplo apartamento com vista para o enorme lago do Okanagan. Helena titubeou porque amava a
vista do seu ateliê improvisado em um dos quartos do apartamento. Rogério não se deu por vencido
e a convenceu quando visitaram a casa. Helena viu que poderia ter um espaço bem maior para suas
telas e tintas, além de um vasto quintal para construir um gazebo, sonho que sempre teve desde que
chegou ao Canadá.
Depois de três anos na casa, Helena a deixou do jeito que tinha sonhado. Reformou a cozinha,
pintou todos os cômodos, arrancou o carpete e colocou piso de madeira, e decorou a sala e seu quarto
com móveis antigos que ela mesma reformara. Aquele era seu oásis, seu canto de inspiração; era um
retiro particular para onde ia quando o corre-corre diário a deixava estressada. Mesmo com a notícia
de que Rogério a deixaria, Helena decidiu que continuaria na casa a despeito da ameaça constante do
ex-marido de vendê-la. No primeiro ano depois da separação, Rogério não tocou no assunto da casa,
mas ultimamente vinha mandando mensagens dizendo que estava na hora de se desfazer do oásis de
Helena.
Tentando tirar esses pensamentos da mente, ela saiu batendo a porta atrás de si. A melhor
coisa naquele momento era ir para a casa de repouso encontrar com sua turma de terceira idade na
oficina de pintura que ela própria tinha montado. Ali, ela relaxava com seu trabalho voluntário duas
vezes por semana.
Sentada ao volante do seu SUV bastante rodado, Helena desceu o caminho de brita em direção
à estrada que levava ao centro de Kelowna. Fazia bastante calor naquela tarde ensolarada, mas um
arrepio subiu por sua espinha ao olhar para a casa no retrovisor. Estava disposta a brigar com unhas
e dentes por aquele lugar que a acolheu no momento mais difícil de sua vida.
Capítulo 2

M
ichael entrou no pequeno escritório de sua casa e colocou a pasta surrada em
cima da escrivaninha. Sentou-se ao computador e organizou uns arquivos para
enviar para Helena. Queria o material traduzido para o início da temporada de
verão para aproveitar o fluxo intenso de turistas do Canadá e de outros países
que visitavam a região. Aquele vale era sua paixão assim como tudo o mais que se referia a ele: os
vinhedos, os extensos pomares, os produtores locais de vinho que começavam a ganhar notoriedade
em outros países, os artistas e os inúmeros pontos turísticos. Sua revista Okanagan Now alcançava um
número crescente de leitores interessados em conhecer a riqueza do vale. Apesar de Michael trabalhar
sozinho no escritório em casa, ele tinha alguns colaboradores free lance que prestavam serviços diversos
para que a revista fosse uma realidade.
Max, o pastor alemão guardião da casa, latiu animadamente quando a campainha tocou.
Michael foi atrás do cachorro, que desceu apressado a escada acarpetada.
Mal Michael rodou a maçaneta, um menino franzino de uns sete anos empurrou a porta e
pulou no seu colo.
“Pai, o vô me levou para tomar sorvete,” disse o garoto de cabelo louro liso e sardas no nariz.
“Você está mesmo com cheiro de chocolate,” Michael disse e passou a mão pela boca suja do
garoto. Ele fez um sinal para o pai entrar. “Pai, cadê sua chave?”
O pai entrou fazendo festa para o cachorro. Max rodopiava em volta do homem grisalho que
lhe acariciava a cabeça distraidamente.
“Troquei de camisa e deixei a chave no bolso,” disse o senhor Evans ao bater a mão no bolso.
“Essa hora estou sempre em casa mesmo,” Michael comentou. Ele colocou o filho no chão e
passou a mão no cabelo dele. “Como foi sua prova, Liam?”
O menino pegou a mochila da mão do avô, abriu o zíper e tirou uma folha de papel.
“Tirei ‘A’ porque foi fácil demais,” ele disse entregando a folha para o pai. Pai e filho se
cumprimentaram com um leve toque de mãos fechadas, o jeito que tinham de se parabenizar.
“Aproveita então e vai para seu quarto fazer a lição de casa. Já vou ajudar.”
Liam deu um abraço no avô e subiu a escada acompanhado de Max. Michael bateu de leve no
braço do pai e fez um sinal para ele se sentar.
“Não dá para eu ficar. Tenho um compromisso,” disse o senhor alto e esguio que mais parecia
irmão mais velho de Michael.
“Obrigado, pai. Liam parece bem mais animado.”
Segurando na maçaneta da porta, o pai de Michael disse:
“Cada dia é uma conquista, mas sem dúvida Liam superou a fase mais difícil. Ele é um menino
de ouro.”
“Ele é. Deus foi bom demais em me dar um filho assim.”
Os dois homens se abraçaram com um tapinha nas costas e o mais velho se despediu, entrando
logo na pick-up que parecia já ter anos e anos de estrada. Michael trancou a porta e foi em direção à
escada. Parou por um momento perto do piano e passou a mão por ele como quem acaricia o rosto
de uma mulher. Ele deu um suspiro e subiu a escada.

“Pai, olha o que eu ensinei para o Max,” disse Liam assim que o pai entrou no seu quarto. O
menino pegou a bola do cachorro, subiu na cama e levantou bem o braço. O cachorro deu um salto
e abocanhou de primeira o brinquedo. “Ele consegue pular cada dia mais alto.”
Foi a vez de Michael pegar a bola e a levantar bem no alto. Max deu o primeiro pulo, mas não
conseguiu pegá-la. No segundo pulo, o cachorro arrancou a bola da mão do dono sem qualquer
esforço.
“Ele ainda está crescendo, pai?”
“Acho que esse é o tamanho que ele vai ficar, mas talvez cresça só mais um pouquinho. Ele já
vai fazer dois anos e meio.”
Michael sentou-se na cama de Liam e bateu a mão na própria perna para ele sentar no seu
colo. Com um pulo, o menino aconchegou-se no colo do pai.
“Amo você, meu filho,” Michael disse e abraçou Liam. Max deitou-se no chão ao lado dos
dois, mastigando a bola enquanto pai e filho aproveitavam aquele momento de carinho.
Para Michael, era cada dia mais doloroso criar seu filho sozinho. Amava aquele menino com
cada fibra do seu corpo, mas se achava inadequado como pai. Trabalhava muito, mesmo que a maior
parte do tempo no escritório em casa, e, por isso, colocava parte da responsabilidade de criar Liam
em cima do seu próprio pai viúvo. Toda vez que Michael passava muito tempo fora ou tinha que viajar
pela região do Okanagan por causa da sua revista, ele sentia-se culpado de privar o menino da sua
presença. O que mantinha Michael de pé era sua fé, que insistia em lhe dizer que havia esperança
apesar da dor e do luto.
Soltando o filho, Michael disse:
“Que tal se a gente visitar a bisavó mais tarde?”
Liam deu um pulo do colo do pai e bateu palmas. “A gente pode levar Max? A bisavó adora
ele.”
Michael deu uma risada e respondeu:
“Acho que não aceitam cachorro na casa onde sua bisavó está, mas a gente pode trazê-la aqui
um dia desses para almoçar e brincar com Max.”
O menino fez um bico e passou a mão no cachorro. Michael avisou ao filho que precisava
terminar um trabalho, mas que logo sairiam. Voltando para o escritório no final do corredor, Michael
fez uma videoconferência com o desenvolvedor do seu novo website. Depois trocou mensagens com
uma das colunistas da revista e fecharam a pauta da edição de verão. Uma hora já tinha se passado e
Michael se apressou para sair com o filho. Mandou um último e-mail e levantou-se da cadeira. Preciso
administrar melhor meu horário para sair mais com Liam, ele pensou.
Michael levou o filho para o banheiro e tirou o melado de sorvete com uma toalhinha molhada
e o menino reclamou da aspereza da toalha velha. Precisava urgentemente renovar as roupas de banho,
mas não tinha tempo e a tarefa de comprar coisas para casa era um peso. Nunca teve que se preocupar
com isso; mas a situação era bem diferente agora. Ele jogou a toalhinha no cesto de roupa suja que já
transbordava e lavou o rosto do filho com a mão. A toalha de rosto seca também não estava em bom
estado, mas Michael usou menos força para enxugar o filho.
No quarto de Liam, Michael vasculhou as gavetas e achou uma camiseta que considerou
adequada para a ocasião. Ao vesti-la, Liam reclamou que a blusa estava apertada demais.
“Você cresceu, hein? Vamos ter que comprar roupa qualquer dia desses.” Michael sabia que
já tinha repetido aquela frase várias vezes na semana e, até aquele momento, não tinha arrumado
tempo para ir ao shopping.
Liam tirou a camiseta e a jogou em cima da cama. Correu para o armário e puxou uma camisa
de botão do cabide.
“Essa está melhor, mas pequena também. Dá para o gasto,” Michael falou e ajeitou o cabelo
do filho com os dedos.
Max entrou no quarto latindo e Michael entendeu o sinal de que o cachorro precisava dar sua
voltinha no quintal. Correu para a cozinha com Max e Liam atrás de si e deixou o fiel amigo sair para
marcar seu terreno na pequena área gramada atrás da casa.
Preciso cortar a grama! Michael pensou enquanto esperava o cachorro. As tarefas de casa só iam se
acumulando. Era difícil fazer tudo sozinho. Max entrou na cozinha e correu para seu pote de água.
Pai e filho saíram pela porta da frente deixando o cachorro uivando na cozinha.

Você também pode gostar