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AGRADECIMENTOS

A meu marido Luiz e a meus filhos Raphael, Renan e Ricardo, quatro


pessoas especiais que me cercam dia a dia com seus talentos e dons
incentivando-me nessa aventura que é escrever.
À minha amiga Tamara Carpenter, pelo encorajamento em momentos
fundamentais.
À princesa Sultana e outras mulheres anônimas, que tiveram a coragem de
escrever a sua história.
E, acima de tudo, a Deus, que é a minha maior fonte de inspiração.
Arlete Castro
Prefácio

Uma mulher escrevendo sobre outra mulher. Nada mais comum, não
fosse apenas um detalhe: Salema, a personagem central, consegue levar o leitor
a viver intensamente um dos dramas do nosso cotidiano – a discriminação da
mulher nos seus mais variados níveis e sua luta diante de um ambiente social e
espiritual que lhe proporciona as mais profundas ambigüidades.
Arlete Castro, com profunda sensibilidade, procura traçar a vida de
Salema, diante de seus relacionamentos familiares e junto à sociedade. Fica
evidente a opressão vivida por essa mulher, desde a mais tenra idade, quando
passa pela experiência traumática da circuncisão até seus dias de confronto com
suas crenças espirituais, quando decide romper com seu passado e viver uma
nova realidade de fé, mesmo contrariando seus antepassados.
Outro ponto que salta aos olhos na leitura deste romance é perceber a
autora enveredar por um caminho quase inusitado nos nossos dias: a
necessidade da busca de coerência na trajetória da vida. Na busca
inconseqüente do progresso e do sucesso a qualquer custo, o seu humano dos
nossos dias quebra facilmente suas convicções morais e éticas visando galgar
alguns degraus, nem que para isso ele tenha de destruir seres semelhantes a ele.
Os conflitos vividos por Salema são fruto de uma busca incessante por
algo que pudesse lhe dar sentido. Nesse caso, a tradição, seja ela qual for, pode
se transformar num fantasma que carregamos por toda a vida, sem conseguir
nos desvencilhar dele. A proposta do livro é resgatar a vida em toda a sua
plenitude, mesmo que para isso tenhamos de romper com os grilhões que nos
aprisionam.
Enganosamente, esse romance pode parecer uma simples apologia da fé
cristã. Na verdade, há muito mais do que isso. Ele leva o leitor a buscar o
verdadeiro sentido da vida. Especialmente daqueles que sofrem por quaisquer
tipos de discriminação de sexo, raça ou religião.
Recomendo a leitura desse livro, que chega em boa hora. Você será levado
obrigatoriamente a rever sua vida, junto com Salema.

Oswaldo Prado
A mulher que caminhava em meio às flores que rodeavam aquele parque
era uma advogada de sucesso. Depois de um dia intenso de trabalho ela estava
ali, apenas desfrutando o descanso que a primavera lhe poderia proporcionar.
Canteiros em forma de círculos e triângulos espalhavam-se por todos os lados
que seus olhos podiam alcançar. Ao fundo, um palácio erguia-se suntuoso,
dando um toque de riqueza àquela paisagem. Pessoas iam e vinham passeando
em meio àquele imenso jardim. Parte da história daquele povo estava contada
ali.
Ela adorava estar ali. Seus olhos se enchiam com o brilho das cores que
faziam parte da paisagem. Algumas vezes os pássaros que cantavam livres nas
árvores espalhadas ao redor a faziam lembrar-se de outros pássaros que a
haviam encantado um dia. Os casais que passavam por ela, alguns deles
marcados pela evidência do tempo passado, mas ainda enamorados, ou outros
que estavam apenas começando nessa nova caminhada, traziam a sua memória
momentos inesquecíveis que nunca mais ela viveria. As crianças que brincavam
a sua volta a levaram a pensar em outras duas pequeninas que ela não tiveram
o privilégio de conhecer. Como estariam crescidas agora!
Ela tinha a pele morena e o olhar penetrante como a maioria das mulheres
de sua raça. Com aquelas lembranças, os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Era sempre assim. Mesmo com o trabalho bem-sucedido, os amigos, a família
que ela encontrara, o tempo não havia apagado da memória a história de sua
vida.
Em dado momento ela se abaixou e colheu uma flor. A beleza contida
naquele misto de cores a fez pensar em outro jardim, longínquo e perdido nas
lembranças de um passado distante dali.
O lugar sempre a emocionava. Não só pelas lembranças que
proporcionava, mas pela beleza que a motivava a seguir aquele a quem mais
amava.
Ali ela orava baixinho. Ela nunca deixara de orar por sua nação. Quando
ela orava, um misto de alegria e tristeza inundava o seu coração. Alegria por
estar ali, livre, viva e atuante. Tristeza por imaginar seu povo, tão longínquo
agora e aparentemente inacessível.
Ainda em oração, a mulher ergueu os olhos em direção a um grupo de
pessoas que passavam por ela.
De repente um rosto no meio da multidão de turistas e de famílias em
férias chamou-lhe a atenção. Era o mesmo cabelo longo e os mesmos olhos
claros que ela tão bem conhecia. Quanto tempo tinha se passado! Sem hesitar,
ela correu atrás da pessoa que julgava conhecer e a chamou:
- Lisa?
A jovem virou-se para ela sem entender o que estava acontecendo. Não,
não era ela. A face risonha da amiga de infância ficara, como tudo, perdida no
tempo e guardada nas lembranças que ela trazia consigo.
- Desculpe-me, pensei que fosse outra pessoa.
Decepcionada, ela se sentou num banco próximo a um dos canteiros de
flores que rodeavam o lugar. E, com a determinação de alguém que sabe aonde
quer chegar, começou a escrever...
CAPÍTULO 1

Salema

“Não há nenhum deus além de Alá, e Maomé é seu profeta.” Esta


confissão Salema ouvia dos lábios dos homens da casa, todos os dias, como uma
confissão de fé que jamais poderia ser esquecida.
Nesse dia, durante as primeiras orações que os homens faziam ao nascer
do Sol, Salema podia ouvir os gemidos de sua mãe, e ela já sabia por quê.
Era chegada a hora. Era o oitavo filho daquela mulher, e tinha que ser um
menino. O pai de Salema não podia sequer imaginar a hipótese de que nascesse
mais uma menina. Em meio aos gemidos da mãe, o coração de Salema batia
descompassado, nem tanto pela dor daquela hora, que por sua inexperiência ela
não entendia, mas pelo temor de ver nascer mais uma irmã e do sofrimento que
isso acarretaria a sua mãe.
- Oh! Alá – orava Salema sem ao menos saber se ele a ouviria – sei que não
há outro deus além de ti e que Maomé é seu profeta, mas, por favor, faça com
que mamãe tenha um menino, não quero vê-la triste porque meu pai a rejeita!
Depois de quarenta e cinco minutos, tudo cessou. Ouviu-se apenas um
choro agudo, proferido por pulmões certamente saudáveis, que pertenciam a
alguém que acabara de chegar. Salim! Finalmente o filho desejado! Era esse o
nome que o pai já havia escolhido.
Salema correu para encontrar a irmã mais nova e lhe contar a novidade.
- Sema, mamãe acaba de ter mais um bebê, e pode ficar satisfeita, é um
menino. O pai não vai ficar com raiva dela! Com certeza haverá festa aqui em
casa! O pai não vai perder essa oportunidade!
Salema estava feliz. Ela era uma menina franzina, pequena para seus 13
anos de idade.
Acostumada a falar pouco e a esconder-se pelos cantos, ficava observando,
sempre observando.
Uma coisa que deixava Salema vibrando era ver sua mãe feliz. Mirna era
uma mulher forte, com o semblante entristecido, na maioria das vezes porque
carregava o fato de não ter tido filhos varões, como queria o marido, pelo
menos não até aquele dia. Maldição era o que significava para uma mulher de
seu povo não dar filhos ao marido. Pela fresta da porta entreaberta, Salema vira
o rosto moreno de Mirna, encharcado pelo suor do esforço, resplandecer ao ver
pela primeira vez o pequeno Salim! Não era a alegria de ter mais um filho que
ela sentia, mas a certeza de que não seria mais desprezada.
Era uma manhã quente, o sol escaldante de todos os dias começava a
brilhar no deserto e o a multidão de homens que tinham ido à Mesquita, para as
primeiras orações, se dispersava agora. Salema já estava habituada. Todos os
dias era assim. Homens corriam agitados em direção à Mesquita mais próxima,
para orar a Alá. Quando não conseguiam chegar a tempo, prostravam-se de
joelhos onde quer que estivessem, orando e olhando sempre para a mesma
direção. Mas para onde? Salema lembrava-se bem de que, havia alguns anos,
quando ela era um pouco maior que um bebê, tinha visto o pai de joelhos em
seu tapete de orações, sussurrando palavras que ela não entendia.
Imediatamente, tentando imitá-lo, ela se ajoelhou a seu lado, no jardim da casa
grande onde moravam. Quando o homem percebeu a presença da menina e o
que ela fazia, levantou-se furioso e deu-lhe uma bofetada, que a fez cair no chão
choramingando.
- Nunca mais faça isso, Salema. Nunca mais!
E a menina ficou ali, sentada no chão, sem entender o que se havia
passado. Mas não tardou muito para ela entender que as mulheres nunca se
juntavam aos homens quando eles se reuniam para as orações.
Desde aquele dia ela não tentou mais se aproximar do pai. Ela tinha medo
dele! Era um homem alto e robusto, de rosto endurecido e tez morena e cabelos
negros normalmente escondidos pelo turbante branco forrado de seda, que
usava quase que diariamente. Ele nunca a fitava nos olhos. Aliás, ele não a
olhava e quase não falava com ela. Algumas vezes ela o via brincando com suas
irmãs mais novas, mas essas ocasiões eram tão raras que Salema se surpreendia.
A verdade é que Khalil só se descontraía quando estava naquelas reuniões
de negócios, que iam até altas horas da noite. Com ele, normalmente se reuniam
os homens da família, cada um representando uma parte dos negócios
vantajosos, que, aliás, tinham tornado sua família uma das mais respeitadas
daquela região. Khalil ditava as normas, Salema não entendia bem porque, mas
todos o temiam.
Naquela noite especialmente seu pai estava radiante. Salim, o filho varão.
Os homens bebiam e gargalhavam na sala principal, parabenizando Khalil pelo
surpreendente feito.
Nessas ocasiões, quando eles se reunião para falar de negócios, ou para
festejar como naquela noite, as mulheres da casa tinham de retirar-se. Ficavam
confinadas na ala das mulheres, em seus quartos, e só saíam de lá com ordem
expressa de Khalil.
Salema e suas irmãs mais novas estavam em volta do menino, encantadas
com seu rosto miúdo e reluzente. Somente Sara, a caçula, estava irritada e
apreensiva pela atenção dispensada ao garoto. E era mesmo anormal para elas o
que estava ocorrendo naquela casa ao longo de todo o dia! Visitas, muitas
visitas e comemorações, somente interrompidas pelas orações obrigatórias.
Anormal para elas, mas não para Mirna. Ela sempre soube que seria
assim. Afinal, durante toda a sua vida ela tinha visto os homens serem
exaltados como senhores absolutos, como os únicos que realmente importavam.
As mulheres, essas não eram consideradas. Simplesmente, obedeciam e se
calavam. A elas não era dado o direito de opinar, sentir nem mostrar-se
interessada por alguma coisa. A vida delas resumia-se em sair da obediência
total ao pai e a parentes do sexo masculino para entregar-se à obediência
irrestrita ao marido.
Salema começava a perceber essas coisas. Ela mesma aprendera bem cedo
que deveria permanecer calada. Mas Salema observava.
Ela era pequena, mas seus olhos eram enormes e atentos a tudo o que se
passava a seu redor.
Ela já tinha visto sua mãe chorar tantas vezes. Em algumas ocasiões,
Salema acariciava a face da mãe, uma face que já se habituara a ver quase todo o
tempo oculta atrás do véu enegrecido; então o que as suas mãos tocavam não
eram as marcas do tempo, mas as marcas da tristeza e rejeição.
A mãe a amava. Zangava-se com ela, ralhava com suas travessuras de
criança, mas a amava.
Salema sabia disso, por isso a menina estava feliz. Para ela, o nascimento
de Salim representava o fim das tristezas da mãe. Mas o que Salema não sabia
era que tudo estava apenas começando...
CAPÍTULO 2

Lisa

Lisa roubou das mãos de Salema o bolo que a menina estava comendo e
enveredou pelo jardim adentro, rindo distraída, certa de que não seria
alcançada pela amiga. Mas Salema era ágil. Num piscar de olhos lá estava ela,
perto de Lisa, tirando-lhe novamente o bolo das mãos.
As duas eram amigas inseparáveis, tinham a mesma idade, andavam
sempre juntas, brincavam e compartilhava histórias que só elas conheciam.
Algumas vezes Sema se juntava a elas, e então passavam os dias conversando e
brincando seus sonhos de menina, tornando-os quase uma realidade.
Rosas, malmequeres, orquídeas e uma enorme variedade de flores podiam
ser vistas nos jardins frontais da casa de Salema. O sol realçava as cores, dando-
lhes diferentes nuanças à medida que variava a intensidade do brilho. Uma
visão pouco comum para aquela região tão árida e escaldante todos os dias.
Mas as sementes eram importadas, oriundas da Inglaterra. O pai de Lisa era o
jardineiro, e ele tinha grande trabalho para preservá-las.
A fachada da casa grande era de um branco reluzente, com grandes
chaminés, dando a idéia de um palácio em meio à paisagem repleta de outros
pequenos palácios, não tão gigantes, mas igualmente branquinhos.
A mãe de Lisa era criada na casa e, desde quando Salema podia lembrar-
se, eles estavam lá, faziam parte da vida da família. Eram estrangeiros, mas
viviam havia tantos anos ali que seus hábitos não eram diferentes dos nativos
daquela região.
Enquanto as duas meninas ainda riam da brincadeira, ouviram o chamado
urgente de Khalil. Chegara a hora de ler o Alcorão. Elas não gostaram nada de
ser interrompidas, porém Salema não ousaria desobedecer ao pai. Assim,
Salema, suas irmãs mais novas e também Lisa entraram na casa grande, onde
Khalil as esperava.
Todo um ritual deveria ser cumprido para que Khalil pudesse tocar no
santo livro. E ele não havia esquecido, Khalil tocava o livro apenas com a ponta
dos dedos, tratando-o como a coisa mais sagrada existente naquele lugar.
A leitura era feita em árabe, que para as crianças não era difícil repetir,
conforme o pai lhe ordenava, mas entender todo o significado do que faziam
era mais complicado, principalmente para a pequena Sara, que todas as vezes,
entre resmungos e queixas, adormecia no colo da ama.
- Jamais tente recitá-lo em seu idioma, pois o Alcorão é um livro que deve
ser lido no original, senão ele perderá parte de seu significado – dizia Khalil a
Lisa, tentando motivá-la a aprender.
Nessas ocasiões, Salema observava seu pai. Apesar da aparência rude e do
olhar distante, ele era um homem que acreditava fielmente em Alá, e Salema o
admirava por isso. Todos os dias, ele dedicava um momento para a leitura do
Alcorão. As crianças deveriam participar, pois isso fazia parte da educação
delas. Por volta dos 7 anos de idade, toda criança deveria ter lido o Alcorão pelo
menos uma vez. E embora as meninas não pudessem participar das orações
obrigatórias juntamente com os homens, elas também tinham o dever de
aprender. Salema já havia lido o Alcorão duas vezes, mas continuava a não
entender o porquê de muitas coisas.
Certa vez perguntou a Mirna:
- Mãe, se Alá me ama e se preocupa comigo, por que tantas vezes eu sinto
como se ele só se importasse com os homens e com as coisas que eles fazem?
- Ora, Salema, essas coisas você não tem de entender, tem apenas de
aceitar, porque é mesmo assim que Alá deseja, que não discutamos a sua lei,
apenas que a pratiquemos conforme está escrito.
Mas Salema não estava convencida. Quanto mais o tempo passava, mais
intrigada ela ficava e mais perguntas surgiam em sua mente. Terminada a
leitura, Lisa e Salema voltaram ao jardim.
- Em que está pensando, Salema? – perguntou Lisa, intrigada com o
silêncio da amiga.
- Gostaria de saber mais sobre Alá! Ele parece tão distante que chego a ter
medo dele. Eu vejo meu pai reverenciá-lo e adorá-lo, mas não entendo por que
tenho de ficar longe dele.
- Mas seu pai diz que ele está em toda parte, não é?
- Pois é, mas então por que só os homens podem ir à Mesquita e participar
das cerimônias, enquanto nós só podemos ir lá uma vez por semana, ainda
assim, contentando-nos em ficar atrás? No restante do tempo o que fazemos é
orar em casa, ajoelhadas em nosso tapete de oração.
- Maomé, o profeta, ensinou assim, não foi?
- Sim, mas não entendo bem por quê. Eu tenho medo, Lisa. Mas a verdade
é que eu não sei quem é Alá.
Lisa também não podia responder, mas ela era a única a quem Salema
tinha coragem de falar francamente sobre suas dúvidas. E Lisa também gostaria
de entender. Ela crescera ali naquela casa e aprendera a obedecer, como
qualquer outra da família. Aliás, seus pais lhe ensinaram desde pequena a
submissão a todos da casa grande. Mas em sua casa era diferente. Quando Lisa
estava a sós com sua família, ela podia sentir o amor de seus pais, o carinho que
tinham um pelo outro e também o quanto a amavam!
Os pais de Lisa tinham chegado àquela região no início dos anos 1960,
quando ela era ainda um bebê. Vieram, como tantos outros estrangeiros, em
busca de melhores dias, já que as campanhas de direitos civis, promovidas por
uma minoria em seu país, resultaram em violência civil tão grande que eles,
temendo pela segurança da família, resolveram deixá-lo. Mas as feições claras e
os olhos azuis que Lisa herdara dos pais não negavam sua origem. Também a
língua fora preservada. Eles ainda oravam a Alá, só que no silêncio do quarto,
de mãos dadas, a ponto de chorar juntos, enquanto se derramavam diante Dele!
Eles também tinham o livro sagrado. Desde que se podia lembrar, Lisa ouvira
sobre o livro. Seus pais temiam, e Lisa sabia que não podia falar dele a
ninguém, pois era proibido, e sua mãe costumava alertá-la sempre.
Um dia, quando Lisa era ainda muito pequena, sua mãe lhe disse:
- Lisa, querida, você sabe que este é o Livro de Deus, o lugar em que ele
nos ensina. Ele nos ama muito, você sabia?
- Você está falando de Alá, mamãe?
- Estou falando do Deus que criou todas as coisas, os animais, os jardins de
que seu pai cuida tão bem, as coisas bonitas que seus olhos vêem, que criou
todas as pessoas e você também!
- E Salema, mamãe?
- Sim, querida, Salema foi criada por ele, e ele a ama, como ama a todos
nós!
- Este livro é igual ao que está na casa grande, não é?
- Não, querida, este livro contém toda a verdade de Deus, por isso você
não pode sair por aí falando sobre ele. Nem diga que o temos aqui. Neste lugar
onde vivemos, se falarmos que acreditamos em outro livro que não o deles,
pode ser muito perigoso!
- Nem para Salema, mamãe?
- Nem para ela, querida, é muito perigoso!
Lisa não compreendeu, mas obedeceu. Afinal ela já estava tão habituada a
não falar que não foi difícil ficar calada. E seus pais lhe ensinavam sobre o
Livro. Ela foi crescendo e aprendendo, dentro das quatro paredes da pequena
casa onde viviam, sobre a criação de Deus, sobre seu amor, sobre as histórias
magníficas dos milagres que Deus fazia e sobre um homem, um profeta. Seu
nome: Jesus...
O que dizer para Salema sobre algo que ela também não entendia
completamente? Também ela queria compreender o porquê de tantas
diferenças. Ela sabia que havia algo especial que fazia seus pais serem tão
diferentes. Eram irlandeses e, segundo o que a mãe lhe contava, os costumes na
Irlanda eram outros, e a maioria das pessoas acreditava no profeta Jesus. Mas o
fato é que, apesar de tudo o que seus pais tinham lhe ensinado, para ela a
realidade era aquela que ela via e vivia todos os dias. Essa era a nação onde
estava crescendo, essa era a gente que conhecia. Salema queria saber sobre Alá,
e Lisa, o porquê de ele permitir tantas diferenças! Ambas precisavam encontrar
uma solução...
CAPÍTULO 3

Crescer

Salema olhou ao redor, enquanto a limusine conduzida pelo motorista da


família seguia pela auto-estrada, indiferente ao que se passava. Junto com ela,
estavam tia Tanya, irmã mais nova de Mirna, a avó Lídia e mais algumas
mulheres da família, que vinham atrás em outro carro. “Um autêntico cortejo”,
pensou Salema, enquanto olhava por uma pequena fresta do cortinado que
cobria as janelas do carro.
Quando Mirna falou sobre esta viagem, Salema ficou curiosa.
- Mamãe, para onde iremos? Por que tenho de ir também?
- Não se preocupe, filha, hoje é um dia muito especial para você!
- Por que só vão as mulheres? O papai não pode ir?
- Fique calada, Salema, em breve não será mais uma menina.
Disso ela já sabia. Uma semana antes ela havia percebido que algo mudara
em seu corpo. Um fluxo que antes ela não tinha era o responsável por sua nova
condição. Correu imediatamente para contar à mãe, assustada ainda, pensando
que se havia machucado em algum lugar.
Salema não entendeu bem, mas os olhos da mãe encheram-se de lágrimas.
Ela a abraçou e disse, emocionada:
- Minha menina, minha pequena menina!
Imediatamente Mirna informou a Khalil sobre o que se passara com
Salema, e ele deu ordens para que ela tomasse as providências que o
acontecimento exigia. E lá estava Salema, indo para um lugar que ela não sabia
onde era, com o rosto coberto pelo véu. O véu e a abaya, uma espécie de túnica
preta, eram usados por todas que já tivessem a primeira menstruação e que,
portanto, Alá já considerava uma mulher. Salema ficara feliz porque agora já
podia exibir seu véu. Lisa ainda não tinha, e isso deixava Salema orgulhosa.
Afinal, não era mais uma criança!
Mas, enquanto olhava ainda pela fresta do cortinado, ela foi atraída pelo
que viu do lado de fora.
Durante o percurso, o automóvel passou por várias aldeias. Naquele lugar
havia meninos de pés descalços e rostos sujos que brincavam perto de um
córrego de água parada. Vários insetos rodeavam a cabeça deles e pousavam
sobre eles. Alguns tinham ferimentos no corpo, verdadeiras chagas abertas que
acabavam por servir de atração àqueles insetos.
Salema, que ainda não se habituara a ficar escondida atrás da abaya,
afastou-a ligeiramente para falar com a mãe:
- Quem são eles, mamãe? O que fazem aqui neste lugar?
- São na maioria estrangeiros que fugiram da guerra em seu país e vieram
aqui para tentar sobreviver de qualquer forma! – respondeu Mirna, arranjando
rapidamente o véu, para que o rosto de Salema não pudesse ser visto!
- Uma nação gigante apoderou-se de seu país, e eles não tiveram outra
saída a não ser se refugiar em alguns países vizinhos – disse a avó Lidya, muito
respeitada pela idade que tinha.
- Mas o que eles fazem, como vivem?
- A maioria trabalha para famílias como a nossa, são nossa mão-de-obra.
São pessoas como eles que nos livram de fazer o trabalho duro!
- Mas por que vivem assim? Parecem doentes e estão tão sujos!
- São as únicas condições que nosso país pode oferecer-lhes – respondeu
Mirna, sem muito interesse.
- Alguns não trabalham, vivem aqui na aldeia, isolados de tudo, tentando
ganhar a vida de alguma forma. Que Alá os proteja!
“Alá”, pensou Salema, “como poderia Alá permitir que pessoas, a que o
Alcorão diz que ele ama, vivessem naquelas condições? E como a mãe, que ela
julgava tão sensível, podia ter uma atitude tão indiferente?” Ela não sabia, mas
a semente da dúvida começava a brotar em seu coração!
Passados quinze minutos, finalmente chegaram ao destino! Fazia muito
calor naquele dia, um dia que jamais sairia da memória de Salema!
Saíram todas apressadas do carro, e a menina notou que a mãe estava um
tanto nervosa. Parecia que era uma festa e a festa era para ela. Havia outras
mulheres ali, naquela aldeia, que já estavam à espera. Sua mãe lhe explicou que
as mulheres mais velhas queriam celebrar com ela o fato de ser agora uma
mulher, e para isso, é claro, haveria uma cerimônia.
De repente, colocaram-na deitada no chão, e todas se reuniram a seu
redor. Ela estava assustada, mas não percebeu o que se passava. Só ouviu a mãe
dizer-lhe:
- Salema, fique muito quieta, e tudo vai correr bem.
Um tambor soou ao fundo, e uma dor horrível fez Salema gritas como
qualquer criança gritaria ao ser ferida daquela forma! Num instante todas a seu
redor a cumprimentavam pelo fato de agora ela fazer parte do mundo dos
adultos. Enquanto as lágrimas corriam pela face e o sangue jorrava-lhe dos
ferimentos, o coração de Salema estava de uma vez por todas dilacerado. A
menina não sabia por que, mas acabara de ser circuncidada!
Naquela noite, Salema não pôde dormir. A dor física e da alma não
permitiram. Enquanto Sema dormia tranqüila a seu lado, ela chorava baixinho.
Olhando para a irmã na penumbra do quarto, um sentimento de horror
apoderou-se dela. Naquele instante ela percebeu a condição de todas as
mulheres de sua raça. De um momento para o outro já não era mais uma
criança. Sofria. Sofria pela sua condição de mulher, num mundo, julgava ela,
dominado por homens. Sofria por sua mãe, que aceitara sua condição a ponto
de ser um instrumento para que ela se perpetuasse! Sofria por suas irmãs, tão
pequenas ainda, que mal podiam entender o mundo em que viviam. E também
sofria por Sema, pois sabia que brevemente chegaria a sua vez!
Nos dias que se seguiram àquela trágica tarde, Salema ficou confinada em
seu quarto. Não queria ver ninguém. Mirna tentara por várias vezes falar-lhe,
mas ela se recusava a dizer qualquer coisa.
Algo mudara dentro dela. Por vezes seus olhos corriam o quarto, e ela
deparava com seu tapete de oração. Ajoelhava-se, então, e tentava orar. Sim,
desde pequenina ela sabia que só um Deus existia, um criador, seu criador! Mas
ele era um Deus que ela não conhecia, que não estava minimamente interessado
nela. Mas ainda assim ela orava:
“Onde estavas, oh, Alá, quando mais precisei de ti? Por que não te
importas? Por que não olhas para mim? Se és o Deus que o Santo Livro diz que
és, onde estás? Por que não me ouves?”
Silêncio! Não havia resposta. “Alá não existia, não podia existir.” Pela
primeira vez na vida ela pensou nessa hipótese. Claro! Se ele estivesse em toda
parte, ele lhe responderia e deixaria que ela pudesse voltar a ser criança e a
correr pelo jardim, como Lisa e suas irmãs ainda faziam.
De repente, ela ouviu passos no corredor. Mirna outra vez, ou Beth, a mãe
de Lisa, trazendo-lhe comida. Alguém abriu a porta lentamente. Salema
levantou os olhos inchados e deparou com Khalil à sua frente. “O que ele
estaria fazendo ali?” Ele nunca vinha à ala reservada às mulheres e jamais
entrara em seu quarto. Ela estava sem o véu, levantou-se depressa e correu para
colocá-lo, temendo uma repreensão do pai, pois ainda não entendia bem quais
as ocasiões em que era necessário usá-lo. Ele a impediu. Tocou levemente seus
ombros e fez com que ela se sentasse na cama a seu lado.
Algo novo estava se passando. Khalil pegou a mão direita de Salema e a
colocou entre suas enormes mãos. Seus olhos fitavam os dela. Desde que
Salema se lembrava, esta era a primeira vez que ele a olhava assim.
- Tenho sentido a sua falta durante a leitura do Alcorão. Você tem feito as
suas orações, filha?
Salema não podia acreditar. O seu pai estava ali, ao lado dela, dizendo-lhe
que sentia falta dela!
A menina olhou para as mãos de Khalil sobre a sua. Uma sensação de
proteção apoderou-se dela, e um sentimento profundo enchia seu coração. Um
amor que ela nunca pensara sentir. Era o seu pai, o seu querido pai, e até então
ela nunca imaginara o quanto desejava estar com ele, poder tocá-lo assim,
poder olhar para ele sem o medo que sempre sentira! Debruçou-se sobre o seu
colo e chorou.
Eram lágrimas de toda uma infância sem a presença dele, sem o seu
carinho e sem a certeza de que ele se importava.
Ficaram assim durante muito tempo. Khalil afagava seus cabelos, e ela
continuava debruçada no colo dele. Não falavam, não era preciso. A emoção
falava por si! Ficaram assim durante longo tempo.
Então Khalil levantou-se, enxugou a face molhada de Salema e caminhou
até a porta. Antes de sair, porém, virou-se e disse-lhe:
- A abaya, Salema, não se esqueça. Quero vê-la hoje à tarde, durante a
leitura do Santo Livro. Também quero que saiba que, como no próximo mês vai
fazer 14 anos, é chegada a hora de casar-se. Prepare-se, pois, após o término do
ramadã, quando voltarmos da Cidade Santa, festejaremos o seu casamento.
A menina não queria acreditar no que acabara de ouvir. Ficou olhando
para a porta e concluiu: “Não, nada havia mudado”. Mas o que Salema não
sabia é que aquele dia teria um grande significado em sua vida, embora naquele
momento ela não entendesse!
CAPÍTULO 4

Mudanças

Lisa entrou correndo porta adentro. Tinha o rosto corado de quem andara
correndo sob o sol.
Salema acabara de jantar e entrou também na cozinha. Era a primeira vez
que se falavam desde que Salema começara a usar o véu. Depois de uma
semana confinada em seu quarto, a menina finalmente resolvera descer. As
duas amigas entreolharam-se. Algo as separava agora. Uma distância que
Salema sabia que tinha a ver com o que lhe acontecera. Mas queria falar,
conversar com a melhor amiga.
Naquele momento Beth estava terminando de limpar a enorme cozinha.
Havia servido o jantar, primeiro a todos os homens que vieram especialmente
para quebrar o primeiro dia de jejum do ramadã, na casa de Khalil. Depois
servira as mulheres, pois elas nunca podiam comer antes dos homens. Era um
grande trabalho, e naquele mês ela sabia que seria assim, muitos jantares depois
da quebra do jejum, para celebrar o mês do ramadã. Beth parecia muito
cansada, e assim que terminou seu trabalho deixou as meninas a sós.
As duas olharam-se outra vez. O véu que agora escondia todo o rosto de
Salema não impedia que Lisa pudesse entender o significado do olhar da
amiga. Não podia lhe ver os olhos, mas podia perceber o que estava por trás
deles. Afinal, cresceram juntas, e não havia nada que uma não pudesse
entender da outra.
- Lisa, Alá não existe, descobri isso, e agora tenha a certeza de que é
verdade!
- Você está louca, Salema, como pode dizer uma coisa dessas!
- Pense bem, Lisa, ele pode ter sido um ser criado na imaginação do
profeta. É muito lógico. Se ele fosse quem o Alcorão diz que é, as coisas não
seriam erradas como são.
- Salema, o fato de ter ficado adulta a deixou sem cérebro ou o quê?
- Não estou brincando. Você está falando assim, mas logo vai ter de usar a
abaya e o véu também, sem saber por quê.
- Eu já percebi, você está zangada porque agora já não é criança, não pode
brincar no jardim nem pode sair por aí mostrando o rosto quando bem
entender. E por isso põe a culpa em Alá e no profeta?
- É sério, Lisa, já pensou em quantas pessoas estão sofrendo neste mundo?
Já percebeu o quanto as mulheres sofrem aqui em nosso país? Por acaso algum
homem da casa ao menos uma vez falou com você, olhou para você ou
demonstrou qualquer atenção a você ou à sua mãe?
- Não, nunca. É verdade.
- Você acha que se Alá existisse ou fosse como o profeta ensinou ele
permitiria que isso acontecesse?
- Mas eu não acho que a conclusão seja simples assim. Você já pensou
que...
A conversa das meninas foi interrompida pela entrada de Mirna. Ela
chegou apressada e parecia muito nervosa. Tinha as mãos trêmulas e falava
com uma voz pouco habitual. Com ela estavam a avó e Nadya, a irmã mais
velha de Mirna.
- Saiam, meninas, precisamos conversar a sós.
Lisa e Salema deixaram a cozinha, mas ficaram muito curiosas. Salema
puxou Lisa pelo braço e fez com que ficasse com ela ouvindo atrás da porta.
- Não pode ser! Tanya não pode ter feito uma coisa dessas.
- Mas fez, e o pai descobriu. Agora ela está confinada naquele quarto.
A avó começou a chorar. Salema nunca a vira chorar daquele jeito. A avó
sempre lhe pareceu tão segura, tão forte! O que estava acontecendo agora? A
avó sempre lhe pareceu tão segura, tão forte! O que estava acontecendo agora?
- Ela conheceu o rapaz há alguns meses. Parece que é estrangeiro, inglês,
acho. É médico e trabalha no hospital da cidade.
- Mas como ela conheceu esse jovem? Ela nunca sai sozinha.
- Lembra-se de quando ela esteve doente, Mirna? Ela precisou passar dois
dias no hospital para se recuperar daquela crise nos rins. Foi o suficiente. Ali
eles se conheceram.
- Eu preciso falar com ela – disse Mirna, com a voz embargada. Isso não
pode estar acontecendo em nossa família!
- O pai já disse que de lá ela não sai. É o fim de nossa irmã, Mirna! – disse
Nadya, abraçando-a em prantos.
Lisa não disse nada. Olhou para a amiga, que, num gesto de rebeldia,
arrancou o véu que lhe cobria o rosto, dizendo:
- Você ainda acredita na existência de Alá? Algo muito grave está
acontecendo com minha família, Lisa! Não, ele não pode existir. Se ele
realmente estivesse aqui, enxugaria as lágrimas de minha avó!
CAPÍTULO 5

Tanya

Mirna chegou perto da porta e aguçou os ouvidos para tentar escutar


alguma coisa. Nada! Fazia uma semana que Tanya estava presa em seu próprio
quarto. Havia sido espancada. Era horrível só de pensar o que a irmã podia
estar sentindo. As janelas foram vedadas. O pai de Mirna havia mandado fazer
uma pequena passagem na parte debaixo da porta, onde os empregados
passavam os alimentos.
Não havia luz no quarto. Nada. Tanya. Estava condenada a ficar ali presa
para o resto dos seus dias. Na verdade, aquilo era uma morte lenta. Qualquer
pessoa em pouco tempo enlouqueceria se ficasse confinada daquela maneira. O
pai de Mirna proibira que ela falasse com Tanya. Mas ela ao podia deixar de
ouvir a irmã.
“Como Tanya pôde deixar que isso acontecesse”, pensava Mirna,
enquanto batia de leve, à espera de que a irmã respondesse de alguma forma.
Silêncio. Mirna tentou novamente, e desta vez ouviu um gemido.
- Tanya, você pode me ouvir?
- Mirna, me ajude. Eu não posso morrer aqui.
Mirna podia sentir que ela estava próxima da porta agora, quase podia
ouvir a respiração ofegante da irmã.
- Oh!, querida, como pôde fazer tal coisa!
- Eu o amo, Mirna. Isso era algo impossível, eu sei, mas foi mais forte do
que eu.
- Mas como tudo isso começou? Eu não consigo entender como vocês
conseguiram enganar toda a gente. Nenhuma moça solteira, como você, tem
autorização para sair sem ser acompanhada de um homem da família. O que
você fez, Tanya?
- Ele me viu pela primeira vez no hospital. Ele não podia estar ali, mas,
por uma situação qualquer que não sei explicar, ele entrou em meu quarto. Eu
estava sem o véu porque aquele lugar era reservado apenas às mulheres, e
quando dei por mim ele estava lá me olhando.
- Eu não posso acreditar. Por que não chamou alguém, por que não
escondeu o rosto assim que o viu?
- Oh!, Mirna, se você pudesse ver os olhos dele. São os olhos mais lindos
que se podem ver. Eles penetraram nos meus de tal forma que eu o amei
naquela hora.
As duas conversavam em voz baixa para que o pai não pudesse ouvi-las,
senão Mirna também seria repreendida por desobedecê-lo. Ela sabia que era
grave o que a irmã havia feito. Nenhuma mulher muçulmana tem o direito de
olhar para um homem que não seja de sua raça. Relacionar-se com ele, então, é
inadmissível, e era isso o que Tanya fizera. Ousou amar um homem que não
fora escolhido por seu pai e, o mais grave, encontrou-se com ele às escondidas
da família. Que coisa horrível! Um estrangeiro havia contemplado o rosto da
sua irmã de 16 anos, e agora ela estava ali, condenada àquela prisão, sem que
ninguém pudesse fazer nada para mudar a situação.
- Mirna, você tem de acreditar em mim. Eu tentei esquecer aquele primeiro
encontro, mas ele nunca mais saiu do meu pensamento. Uma tarde, quando fui
às compras com a mãe e o pai, ele estava lá, no Centro Comercial. Ao vê-lo, meu
coração disparou. Eu nunca havia sentido nada igual antes. As pernas
bambearam, a respiração fraquejou e as mãos não pararam de tremer. E não sei
como, mas ele me reconheceu. Não se aproximou, não tentou falar comigo, mas
num momento alguém esbarrou em mim e colocou um bilhete em minhas
mãos. Foi tudo tão rápido que eu nem pude ver quem era. Sei que era uma
mulher, mas que desapareceu na multidão.
- E o que dizia o bilhete?
- Eu a amo e quero encontrá-la.
Nesse momento Mirna ouviu Tanya chorando baixinho.
- Também dizia que estria ali, naquele lugar, na mesma hora, no dia
seguinte. Se eu quisesse vê-lo, deveria dar um jeito de estar lá também.
- E você foi?
- Sim, consegui convencer nosso irmão a me levar ao Centro Comercial.
Enganei-o dizendo que ia ao banheiro e fui encontrá-lo. Foram poucos minutos.
Meu coração batia forte, pois ninguém podia nos ver. E foi naquele encontro
que ele me beijou pela primeira vez.
- Oh!, Tanya, como pôde permitir tal coisa!
- Perdoe-me, minha irmã, mas isso é mais forte que eu. Ainda agora,
quando falo sobre como tudo se passou, posso sentir o calor do corpo dele no
meu. Eu o amo, Mirna. Por favor, você tem de me ajudar a sair daqui. Eu não
posso morrer. Fale com o pai, tente convencê-lo. Por Alá, Mirna, faça alguma
coisa por mim.
Mirna não queria acreditar no que acabara de ouvir. Paixão, um
sentimento que sempre ficara longe do vocabulário das mulheres da sua raça.
Todas elas foram ensinadas a se afastar de qualquer situação que pudesse dar
origem à paixão. Casavam-se por obrigação. Procriavam. Tinham o dever de
gerar filhos varões. E não eram amadas. Algumas mulheres tinham sorte de
casar-se com homens que estavam apaixonados por elas, mas, mesmo assim, a
sociedade impunha suas regras, e elas eram tratadas como todas as mulheres.
Ainda ouvindo os apelos de Tanya, Mirna começou a afastar-se da porta
devagar, com o coração inundado por um sentimento de incapacidade. Não, ela
não poderia fazer nada. O pai não a ouviria.
Ninguém ouviria seus argumentos. Ninguém iria interferir, mesmo que
não pudessem aceitar o método do pai de Mirna. Ele era soberano e tinha o
direito de decidir sobre a vida das mulheres que lhe pertenciam. Mesmo que
isso significasse deixar morrer a própria filha.
Quando Mirna chegou em casa e foi para o quarto, Salema foi atrás. A
menina queria saber o que se passara. Desde a noite em que vira a avó chorar,
não pôde deixar de pensar no que teria acontecido. Assim que a mãe entrou, ela
foi atrás dela.
- Mãe, o que se passa com a tia Tanya?
- Oh!, Salema, é tão grave que não gostaria de falar sobre isso agora.
- Mas você está triste, mãe. Eu sinto isso. Você foi à casa da avó...
Nesse momento Beth entrou e avisou Mirna que Khalil queria falar-lhe.
Mirna rapidamente se recompôs e foi ao encontro do marido no escritório.
Salema sentiu o embaraço da mãe em falar do assunto, mas ela precisava saber
o que estava acontecendo. Assim, quando a mãe entrou no escritório, a menina
ousou ouvir a conversa dos pais.
- Mirna, eu a proíbo de falar com sua irmã outra vez!
Salema podia ouvir a voz do pai exaltada.
- Khalil, você pode fazer alguma coisa. Você sabe que ela vai acabar
morrendo naquele lugar, sem ver ninguém, sem conversar, sem poder sair. Por
favor, faça alguma coisa!
- Você deve ter enlouquecido! Sua irmã escolheu passar por isso. Como ela
pôde pensar que conseguiria esconder o romance com aquele rapaz?
- Ela é pouco mais que uma criança, Khalil, deveria ter outra
oportunidade! Eu sei que o que fez foi horrível, mas ela é minha irmã!
- Tanya, como qualquer mulher, deveria saber o seu lugar, eu não posso e
não quero fazer nada e a proíbo de falar mais qualquer coisa sobre esse assunto!
Mirna não ousou discutir. Não adiantaria. Khalil estava irredutível! Para
ele, como para qualquer homem da sua raça, o que Tanya havia feito era
imperdoável. Ninguém interferiria, ninguém faria nada para que a jovem
pudesse viver!
Ao sair do escritório, Mirna deparou com Salema, que não tentou disfarçar
o fato de ter ficado ouvindo atrás da porta. A menina estava chocada. Ficou
parada na frente da mãe sem dizer uma palavra, até que conseguiu perguntar:
- Mãe, o que a tia Tanya fez de tão grave? Por que você e o pai falaram em
morte? Responda, mãe, o que está acontecendo com a tia Tanya?
- Não fez nada, além do fato de ser mulher.
Mirna estava cansada! Olhou para a filha mais velha, escondida atrás da
tradição do seu povo. Uma tradição que nunca iria mudar. Uma tradição que
acabara de marcar a vida de sua irmã para sempre, que certamente marcaria de
uma forma ou de outra a vida de suas filhas e das filhas de suas filhas. Enfim,
não haveria mudanças, por isso ela tinha de conversar com Salema. Alertá-la,
protegê-la...
- Eu vou lhe contar, filha. Venha até meu quarto.
Salema ouvia em silêncio enquanto Mirna lhe contava sobre o que estava
se passando com Tanya.
Arrancou o véu imediatamente após ouvir o motivo que estava levando a
tia à morte. As lágrimas escorriam pela face descoberta. Nada poderia contê-las.
Enquanto a mãe tentava convencê-la de que aquela situação era aceitável
na vida de qualquer mulher, Salema não conseguia acreditar. Em poucas
semanas ela estava descobrindo o horror que a rodeava. O seu coração já não
batia entusiasmado com as expectativas das pessoas da sua idade. O sentimento
que começava a surgir dentro dela era assustador e ao mesmo tempo aquilo que
a encorajava. Não. De alguma forma ela não iria aceitar tudo isso. Sem dizer
nenhuma palavra, a menina deixou o quarto da mãe, arrastando o véu atrás de
si, decidida a mudar as suas circunstâncias. Nem Alá poderia impedi-la. Alá,
ora Alá, esse é que não lhe impediria com certeza.
Mirna observou o olhar firme da filha e pensou se algum dia haveria uma
solução.
CAPÍTULO 6

Viagem a Meca

Salema foi levada por alguém a um lugar que por onde andasse deixava
marcas.
Havia uma luz tão intensa ali que seus olhos mal podia agüentar. O brilho
era como o dos raios do sol, e os reflexos ao redor faziam tudo resplandecer
como ouro refinado. A pessoa que estava com ela tinha os olhos profundos e
olhava como se pudesse ver além dos seus olhos. De repente Salema se deu
conta de que estava sem o véu. Seus cabelos negros esvoaçavam com a brisa
suave daquele lugar, e ela imediatamente se sentiu envergonhada e tentou
esconder o rosto desnudo. Mas num toque suave ele não permitiu.
Salema podia ouvir ao fundo uma melodia suave que inundava o seu
coração. Ela queria cantar também, mas não conseguia. Ele a conduzia,
mostrando-lhe cada detalhe naquele lugar. Não havia diálogo entre eles, mas a
presença dele era intensa. Depois de ter a sensação de que andaram um dia
inteiro, ele a conduziu para o lado de fora do portão. Logo após saírem, tudo
mudou. Não havia luz ali. Todo o brilho transformara-se numa escuridão
profunda. Ele a conduziu em meio a pequenas construções esbranquiçadas,
todas juntas, que lembravam sepulcros.
Salema mal podia ver os olhos dele agora, mas à medida que caminhava
sentia que seu coração se apertara, e a sensação de alívio que havia sentido
antes se fora. Salema andou por muito tempo em meio àquela escuridão. De
repente ele começou a andar de volta em direção ao portão. Agora ele já não a
conduzia, mas ela ia atrás dele.
Salema tentava chamá-lo, porém a voz não saía. Ela tentava segurar nas
vestes dele, mas suas mãos não o alcançavam. Trêmula de medo, quase
correndo, ela chegou ao portão no mesmo instante em que o homem o transpôs.
Ali ela não conseguiu dar mais nenhum passo, e com enorme estrondo o portão
se fechou, deixando-a do lado de fora, perdida naquela imensa escuridão.
Alemã acordou assustada no meio da noite, com o corpo ensopado de
suor. Sentou-se na cama, com o coração batendo descompassado e as mãos
trêmulas. “Aquilo teria sido mesmo um pesadelo?”, pensou a jovem sem
entender o significado do que se passara.
Na penumbra do quarto, Salema olhou ao redor para tentar identificar
alguma coisa que pudesse explicar o medo que se apoderara dela. Ela tinha a
sensação de não estar si. Era como se mais alguém estivesse ali, espreitando-a
de algum lugar; era tão real como a presença de Sema, que dormia tranqüila a
seu lado. O mesmo sonho e a mesma sensação vinham se repetindo já havia
uma semana. O que a princípio parecia um sonho ruim agora, ao repetir-se
tantas vezes, a deixava apavorada. “Mas qual seria o significado disso?”,
pensava, tentando recompor-se.
Salema cria verdadeiramente na mensagem dos sonhos. Ela fora ensinada
a crer, mas não se sentia motivada a compartilhá-lo com ninguém, até que
pudesse entender o que significava tudo aquilo.
Era uma manhã como todas as outras. As meninas estavam todas reunidas
na sala grande, ouvindo a ama contar-lhes uma história. Risos e pequenos gritos
podiam ser ouvidos por toda parte. A pequena Sara mal conseguia permanecer
sentada. Queria apanhar um brinquedo qualquer que estava fora de seu
alcance. Sema tentava ajudar como podia, mas acabava por ceder aos encantos
das irmãs mais novas. Salema, sentada ao lado da mãe e das tias, observava as
irmãs. Beth seria um refresco às mulheres, que tentavam aliviar-se do intenso
calor. Salema gostava quando as mulheres se reuniam. Isso significava que não
precisariam do véu, pois não haveria nesses encontros homens que as
observassem. Salema não podia concentrar-se. Pensava ainda no significado de
seu sonho, mas não conseguia decifrá-lo. Enquanto isso as outras mulheres
planejavam a viagem que a família faria à cidade santa. Partiriam dentro de
alguns dias, e ainda havia muitos detalhes a tratar, principalmente porque
certos ritos deveriam ser seguidos antes da viagem.
Adorar a Alá lado a lado com outros muçulmanos era a intenção da
peregrinação, mas Salema não estava nem um pouco interessada na viagem à
Meca. A família já havia estado lá algumas vezes, e nessas ocasiões havia neles
uma demonstração de fé que ela já não entendia. Desde a última vez que lá
estivera muitas coisas haviam se modificado em sua vida, e a jornada que antes
a encantava já não tinha a menor importância.
Salema não estava atenta a nada. Olhava ao redor da sala grande. O
ambiente era-lhe familiar, claro, afinal crescera correndo por aquele enorme
salão, escondendo-se da ama atrás de um dos sofás o afundando na espessura
dos tapetes. Ela adorava aquele lugar. Conhecia cada quadro na parede, cada
objeto que o pai mandara vir do Ocidente e que não permitia que nem ela nem
as irmãs tocassem. Certa vez, ela esbarrou num pequeno vaso de cristal que
estava sobre a mesa central. O vaso partiu-se em mil pedaços. O medo
apoderou-se dela de tal forma que ela juntou todos os cacos e, com a
cumplicidade da ama, escondeu-os numa pequena bolsa que trazia consigo. O
pai ficou furioso com a perda do vaso, mas nunca soube quem o tinha
quebrado. Era a mesma ama que agora contava a história às irmãs.
- De repente a fada se compadeceu do olhar triste da menina, tocou-lhe as
vestes com a varinha de condão e fê-la vestir-se como uma princesa. O seu olhar
triste se transformara num olhar cheio de esperança, afinal, agora já não era
infeliz, tinha o que queria, a fadinha azul havia realizado o seu maior sonho: ser
feliz como uma princesa... – narrava a ama.
“A mesma história”, pensou Salema. A mesma que tinha ouvido a ama
contar-lhes tantas vezes. Uma história muito parecida com sua própria história.
Uma menina que não era feliz com sua condição e que queria mudar. Uma
menina que morava numa pequena aldeia de um país muito distante dali, que
sonhava transformar o seu destino. Só que, diferentemente da história, na sua
vida não surgiria uma fadinha azul com a varinha de condão. Não haveria um
vestido de princesa nem um sonho realizado. Salema pensou que ela seria a sua
própria fadinha. Se quisesse mudanças, ela mesma teria de lutar para alcançá-
las.
- Salema, você também tem de se preparar para a peregrinação. Sabe o que
deve fazer, não? – perguntou Mirna, tirando Salema de seus pensamentos.
- A viagem será daqui a três dias, portanto, prepare-se. Sabe o quanto é
importante para o nosso povo essa peregrinação.
- E a tia Tanya, mãe, o que será dela enquanto estivermos fora? Não seria
possível que houvesse perdão para ela, já que estamos no período do Haj?
- Querida, agora não é o momento para pensar nisso – disse tia Soraya,
abanando o rosto com um leque para aliviar o calor. – Nas suas orações, peça a
Alá por misericórdia a sua tia Tanya. Ela bem precisa neste momento.
Salema ficava furiosa com esse tipo de comentário, mas naquele momento
nada respondeu. Então as mulheres levantaram-se e foram cada uma para os
seus aposentos preparar-se. Salema sabia bem qual seria a sua obrigação. Sabia
de cor a ordem que Alá dera aos muçulmanos para que visitassem a cidade
santa. “Proclama entre os homens a peregrinação e eles virão ter contigo a pé e
montados em todos os magros camelos, vindos de todas as ravinas profundas.”
Ela sabia que durante os preparativos de purificação todos estariam repetindo
essas palavras, prometendo a Alá fazer a sua vontade. Para Salema, entretanto,
aquilo pouco significava. Iria a Meca porque não teria escolha, mas seus
pensamentos estavam agora concentrados em como fugir dali.
Havia um silêncio profundo na varanda da casa de Salema na manhã da
partida. A jovem olhou por cima do ombro do pai e viu os criados todos
dispostos em fila para receber as últimas ordens. Lisa também estava lá, ao lado
da mãe.
Os trajes que os membros da família usavam eram simples e sem costura.
As mulheres usavam roupas escuras que lhes cobriam todo o corpo, ficando de
fora apenas o rosto, os pés e as mãos. Não usavam o véu, porque durante a
peregrinação ele não era necessário. Afinal, estariam diante de Alá, e diante
dele não era necessário esconder nada. Aí estava algo que sempre intrigara
Salema. Segundo havia aprendido, o próprio profeta Maomé dizia que o
verdadeiro véu estava nos olhos dos homens, por isso não era necessário
durante a peregrinação. Não havia jóias, maquiagem nem nenhuma tentação.
Qualquer uma delas poderia ser confundida com uma das criadas da casa.
Purificação, orações, pureza de alma era sobre o que cada um deveria
refletir antes da viagem.
Nenhuma zanga, nenhuma intriga, nenhum sentimento impuro poderiam
surgir no meio deles. Tão simples como a roupa deveria ser o interior de cada
um. Mas para Salema aquilo não tinha o menor sentido. Olhou profundamente
nos olhos de Lisa, ao se despedir da amiga, e num suspiro disse em voz baixa:
- Lisa, eu vou fugir daqui. Fique me esperando, porque, se você quiser,
iremos juntas.
Lisa não sabia o que dizer. Aquela revelação a pegou de surpresa e, antes
mesmo que pudesse chamar a atenção de Salema, ela já tinha entrado no carro
que os conduziria ao aeroporto.
CAPÍTULO 7

A peregrinação

Meca! Uma cidade santa. Desde pequena Salema e suas irmãs


aprenderam a importância daquela Cida. Era o lugar o povo escolhido. Lugar
onde as pessoas poderiam pisar e manifestar a sua fé.
Para lá é que suas orações eram dirigidas, era lá que a verdadeira fé era
demonstrada e era para lá que o avião os levava agora.
Cansados, chegaram ao terminal onde desembarcaram juntamente com
outros milhares de peregrinos. O aeroporto estava cheio, repleto de pessoas que
estavam ali com o propósito único de cumprir o quinto pilar do Islã.
Salema fizeram a viagem pela primeira vez quando tinha apenas 5 anos.
Todos os anos ela se maravilhava com a Sagrada Mesquita de Meca, as
escadarias de mármore, os tapetes de seda vermelha que cobrem os pátios, as
colunas de mármore branco que sustentavam o imenso templo e principalmente
com aquela multidão que irrompia na mesquita, dizendo quase em uníssono:
“Alá, tu és a paz e de ti vem a paz. O Alá de todos nós recebe-nos em paz”.
- Mamãe, por que temos de deixar o sapato do lado de fora? – perguntou
Sintia, uma das filhas mais novas de Mirna.
Salema riu, porque ela mesma já havia feito aquela pergunta quando lá
estivera pela primeira vez.
- Este lugar é sagrado, querida. Ninguém deve pisá-lo com pés imundos.
A verdade é que um misto de emoção e confusão se apoderara de Salema.
Ela planejara usar o tempo dessa viagem para organizar detalhadamente um
plano de fuga, mas de repente ela se via envolvida por toda aquela multidão e
com o que as pessoas faziam. Ela não queria, mas tudo aquilo a tocava
profundamente. Estavam agora diante da Caaba, que ficava ao centro da
Sagrada Mesquita.
- Neste lugar, meninas, Ibrahim edificou pela primeira vez um altar a Alá,
e no Alcorão diz que a primeira casa de Deus construída pelas pessoas foi esta, e
é para cá que todo o nosso povo se vira cindo vezes por dia, prostrando-se em
oração – explicou Mirna às filhas, tentando mostrar-lhes a importância do lugar.
A verdade é que tudo aquilo fazia Salema pensar. Pensou no sonho que
vinha se repetindo quase todas as noites. Olhou para as mulheres a seu redor,
tão devotas e tão certas de que o que estava fazendo era a verdade. De um lado,
a multidão de mulheres, o rosto desnudo e o coração derramando-se na
presença daquele que acreditavam ser o seu Deus. Do outro, os homens, todos
juntos, imaculados nos seus brancos trajes, a mesma devoção, o mesmo esmero
em se humilhar diante do seu Deus.
“Onde está a diferença?”, pensou Salema, enquanto a mãe lhe puxava o
braço para que se concentrasse em suas orações. “Esta é a demonstração mais
óbvia para mim de que Alá, se ele existe, não faz diferença entre essa multidão
de mulheres e a dos homens do lado de lá. Todos estão aqui, não estão? Todos
vêm em busca da mesma coisa, não vêm? Então, onde está a diferença?”
Ainda com esses pensamentos, ela começou a acompanhar as tias e a mãe
no rito da circum-ambulação. O rito consistia em girar à volta da Caaba,
contemplando A Pedra Negra, que se encontrava dentro da Caaba.
“Alá é supremo. Alá concede-nos o bem neste labor e o bem no além e
protege-nos do fogo do inferno”, repetia Salema, e repetiam todas as mulheres
ao redor dela. Salema não gostava da emoção que tomava conta dela.
Sem que Salema pudesse evitar, as lágrimas começaram a correr-lhe pela
face. Havia dor e ao mesmo tempo êxtase em sua expressão. Mirna notou que
algo estava se passando com a filha e chegou ao lado dela no instante em que
Salema desmaiou.
Tomou-a então nos braços e foi ao encontro de Khalil para buscar ajuda. A
mãe podia sentir o corpo trêmulo da filha, mesmo desmaiada. Toda a cor do
rosto se fora. Ela permaneceu naquele estado até que os voluntários, que
estavam lá para ajudar pessoas com problemas de saúde durante a
peregrinação, como ela, chegassem para assisti-la.
Salema acordou com a mãe enxugando seu rosto ainda úmido. O médico
disse que não havia nada de grave com ela. O forte calor que se fazia sentir
levava muita gente a desmaios como o que ela sofrera. Afinal, as pessoas
sacrificavam-se ao máximo sob aquele sol escaldante, com o propósito de que,
pelo sacrifício, a fé delas fosse demonstrada.
- Então, querida, sente-se melhor? – perguntou Mirna assim que ela
acordou.
- Mamãe, qual é a sua esperança nesta vida?
- Ora, Salema, não é hora de falarmos sobre assuntos como esse. Você
acabou de despertar de um desmaio e precisa ainda descansar.
- Eu não quero descansar, mamãe, quero entender por que você aceita
tudo sem dizer uma palavra. Você viu a multidão que veio a Meca? Você viu
aquelas mulheres agora há pouco? Você viu a devoção delas?
- Claro que vi. Afinal, elas estavam no lugar mais sagrado deste mundo,
cumprindo o quinto pilar do Islã e tendo o privilégio de pisar na cidade santa.
- E isso é a única coisa que as torna tão devotas?
- Mas isso é tudo, Salema. Que mais você poderia querer?
- Eu nunca pensei que pudesse sentir o que senti hoje. De repente meu
coração queria pular do peito. Por um momento, era apenas eu e a presença
forte de alguém ao meu lado. Eu quase podia tocar nele. Foi como se alguma
coisa que estava o tempo todo escondida despertasse dentro de mim. Eu não
consigo explicar, mãe, mas está acontecendo alguma coisa comigo, e vou
descobrir o que é.
Mirna fez um aceno de mão para comunicas que a conversa estava
encerrada. Afinal, ela não estava muito preocupada com os devaneios da filha;
eles passariam assim que todo aquele clima envolvente da peregrinação
terminasse. Agora ela estava mais interessada no jantar que teria de preparar
para comemorar o final do Haj. Quanto a Salema, tudo passaria assim que ela
pudesse trocar os trajes sombrios pelos vestidos coloridos e recebesse de
alguém na família um pequeno presente. Afinal, ela ainda era pouco mais que
uma criança.
Entretanto, Salema continuava pensativa. Ela não conseguia livrar-se da
sensação que tivera no momento em que girava em torno da Caaba. Durante o
jantar com a família, ela participou, riu, brincou com as irmãs, mas os seus
pensamentos com freqüência a faziam questionar. Quem é ele que esteve tão
próximo de mim? Que é ele que se dignou a aproximar-se de mim, uma
mulher? Que presença era aquela que ela não conseguia explicar?
Durante o jantar, a conversa girou em torno das coisas que se viram e
ouviram no decorrer de todos os rituais de que a família havia participado. O
que mais impressionou Sema foi o sacrifício dos animais.
- Mamãe, por que aqueles homens ganham para fazer aquilo? Perguntou
Sema, curiosa.
- Eles criam esses animais ao longo do ano, porque sabem que os
peregrinos vão precisar deles.
- Mas Alá não gosta que matem os animais, não é mamãe? – perguntou a
pequena Samira, que não se conformava em ver os animais abatidos.
- É preciso, querida. É uma forma de comemorarmos a vitória de Ibrahim,
que resistiu a Satanás e foi até o fim no propósito de sacrificar o filho Ismael,
como Alá havia pedido.
- E o filho dele morreu?
- Não, porque Alá providenciou um cordeiro para ser abatido no lugar
dele.
Salema ouvia a conversa. Já ouvira essa história tantas vezes. Sabia que
Ibrahim lutara ferozmente com o diabo quando ele tentou convencê-lo a não
sacrificar seu filho como Alá havia ordenado. Sabia que o monte Arafat era
especial, porque foi naquele lugar que Deus, no lugar de Ismael, providenciou
um cordeiro para o sacrifício. Mas desta vez algo lhe chamara a atenção. O que,
exatamente, ela não sabia, mas precisava pensar.
Foi com esse pensamento que Salema foi para a cama naquela noite.
Estava cansada. O dia tinha sido exaustivo, e o desmaio provocara-lhe uma
sensação de preguiça que só uma boa noite de sono poderia compensar.
Alguém cantava ao longe uma melodia suave, talvez alguém que estivesse
ainda comemorando o fim da peregrinação. A canção penetrava os ouvidos de
Salema como um acalento, fazendo com que seus pensamentos fossem como
ondas conscientes, em alguns momentos, e inconscientes, em outros, até a
completa exaustão. Adormeceu.
Lá estava ela no mesmo lugar, com a mesma canção, uma melodia suave
que despertava nela novamente o desejo de cantar também, mas mais uma vez
não conseguia. Ela parecia estar sozinha. De repente olhou para o centro
daquele lugar e viu algo novo. Entre o brilho reluzente do ouro erguia-se ao
centro a Caaba. Era ela mesma, aquela imensa estrutura de pedra, que tinha
uma única porta. “Mas o que a Caaba estaria fazendo ali? O lugar dele sempre
foi ao centro da Sagrada Mesquita”, pensou a menina enquanto começava a
girar em torno da estrutura, tentando repetir a conhecida oração. Mas, enquanto
girava, por mais que tentasse, não conseguia proferir palavra alguma. Chegou
até a porta. Lá dentro em um canto, pôde ver A Pedra Negra, emoldurada de
prata, símbolo do amor muçulmano a Alá. Olhou ao redor, estava mesmo
sozinha. Entrou. Estava agora frente a frente com o objeto de maior veneração
para seu povo. Tentou tocá-la. No instante em que suas mãos se ergueram para
tocar a pedra, ela pôde sentir que já não estava sozinha. Era a presença dele
outra vez. Agora já não havia a Caaba, tampouco a pedra de adoração. Em
lugar disso, havia a presença daquele homem que provocava nela uma forte
reação.
Mais uma vez ele andava à frente dela, tinha passos decididos de alguém
que conhecia bem o lugar. Pela primeira vez ela teve oportunidade de observá-
lo. Não lhe via a face, mas podia ver seu corpo. Havia algo diferente nele que
ela não conseguia perceber bem o que era. Ela já ouvira falar muito sobre reis e
rainhas. O seu próprio povo também tinha os seus, e ela sabia que muita
riqueza e majestade envolviam a vida dessas pessoas. Aquele homem que ia à
sua frente era um rei, ela tinha certeza disso, embora não soubesse por quê.
Eles caminhavam agora em direção ao portão. O mesmo que ia levá-la
para fora dali. Naquele momento Salema gritou. Ela não queria sair, ela não
queria ficar do lado de fora.
Já era madrugada quando Salema acordou. O seu corpo estava outra vez
banhado de suor, mas agora ela não sentia mais medo. Um pensamento
começou a tomar forma em sua mente. Havia um caminho, e ela estava
decidida a descobrir qual era.
CAPÍTULO 8

Regresso a casa

O avião aterrissou na hora prevista no aeroporto da cidade. Dois dos


carros da família foram enviados para buscá-los; enquanto os motoristas
ajudavam com as malas, as crianças corriam pelo corredor do aeroporto em
direção ao estacionamento. A ama tentava de uma forma ou de outra contê-las,
mas sem muito sucesso. Elas estavam felizes por voltar para casa, e a forma de
demonstrar isso era correndo sem parar.
No percurso de carro todos estavam em silêncio. No carro da frente
estavam os homens, e logo atrás vinha o carro que levava as mulheres. Quem
conduzia era o pai de Lisa, porque um dos motoristas estava doente. Salema
pensou em perguntar-lhe sobre a amiga, mas sabia que era proibido dirigir-se a
um homem que não fosse de sua família em lugares públicos, então se calou.
Olhou impressionada o movimento das ruas de sua cidade. O mercado
funcionava naquele momento, e os vendedores gritavam anunciando os seus
artigos, tentando persuadir as pessoas a comprar. Homens eram vistos por
todos os lados, as mulheres estavam lá também, mas, é claro, sempre
acompanhadas, sempre cobertas, sempre protegidas pelos seus familiares do
sexo masculino. Salema viu as mesmas casas que costumara ver desde a
infância. Uma camada fina de areia cobria as ruas e parte das calçadas onde as
pessoas caminhavam. “Talvez tenha ocorrido uma tempestade recentemente”,
pensou Salema enquanto o carro ia em frente. Tudo era igual, mas ao mesmo
tempo a sua maneira de ver as coisas tinha mudado. O véu que agora cobria seu
rosto lhe tirava o brilho de tudo o que via. Tudo tinha uma sombra negra. As
casas não eram mais brancas, as flores não refletiam as suas verdadeiras cores, o
sol não tinha o mesmo brilho e o rosto das pessoas não podia mais transmitir as
mesmas emoções. Tudo agora era visto por trás de um véu.
Para ela era como se estivesse prisioneira. Era a sensação de lhe terem
roubado coisas preciosas e fundamentais. Mas ao mesmo tempo que pensava
nessas coisas o seu coração batia descompassado só ante a possibilidade de
haver uma mudança. Salema sabia o que a esperava agora.
Um noivado e provavelmente um casamento com o homem que o pai
escolhera para ela. Uma vida como a de qualquer outra mulher daquele lugar.
Mas para a jovem algo havia mudado. Ela ainda não sabia por que, mas sabia
que com ela as coisas seriam diferentes.
Lisa estava à porta da sala grande, esperando que Salema entrasse. Ela
tinha as mãos úmidas e trêmulas, e os olhos fixos na chegada. Assim que os
carros entraram portão adentro e ela pôde ver a amiga, correu ao seu encontro.
Queria ouvi-la, queria falar com ela, já que desde a partida de Salema para
Meca ela não conseguira deixar de pensar em como fazer a amiga desistir
daquela idéia absurda de fugir.
Enquanto Sema e a ama ajudavam as irmãs menores a sair do carro
também, as duas amigas abraçaram-se. Era preciso conversar, mas agora, com
tanta gente chegando, era impossível. Khalil dava ordens, as meninas pulavam
ao redor de todos querendo chamar a atenção. O pequeno Salim chorava com
fome, o que fez Mirna entrar correndo para amamentá-lo.
Salema entrou quarto adentro, tirando os sapatos, a polia e colocando a
abaya sobre a cama. Lisa entrou com ela e ficou observando a amiga escovar os
cabelos negros em frente ao espelho. “Ela mudou”, pensou Lisa, enquanto
Salema continuava a pentear-se. Parecia que Salema havia crescido, tinha um
corpo diferente agora, as formas do corpo dela eram as formas do corpo de uma
mulher. Ela era bonita, mas Lisa sabia que o que mudara não era só a aparência
de Salema, porque com ela essas mudanças físicas também estavam ocorrendo.
Havia em Salema uma expressão diferente, parecia que por trás do brilho de
seus olhos havia algo mais que ela não conseguia entender.
O quarto de Salema era o lugar da casa de que ela mais gostava. Era como
se fosse o seu território. O ambiente em que ela podia ter os seus sonhos,
escrever as suas histórias, ler os livros de que gostava... Enfim, era onde gostava
de estar.
- Você continua a pensar em fugir, Salema? – perguntou Lisa, ainda com
os olhos fitos na amiga. – Você não pode fazer isso. Aliás, você não vai
conseguir, e seria impossível você viver longe daqui. Para onde iria? Com
quem?
- Não se preocupe, amiga, eu não vou fugir. Não agora, pelo menos. Eu sei
que há uma maneira de eu poder ser livre, mas sei que não é fugindo daqui que
eu vou conseguir.
- Oh! Eu estava mesmo preocupada e, por mais que pudesse pensar, não
podia acreditar que você teria algum êxito na fuga. Você sabe que os homens
aqui conseguem tudo o que querem.
- Você nem precisa me dizer isso. A minha família está repleta deles, e eu
poderia odiá-los, mas a verdade é que não consigo – respondeu Salema,
ajeitando as coisas nas gavetas e arranjando o quarto para que pudesse ficar
mais do seu agrado.
- E a viagem? Conte-me tudo. Gostou?
- A princípio eu não queria ir, você sabe. Mas quando cheguei lá, foi tudo
tão diferente... Lisa, eu preciso contar-lhe uma coisa...
Salema partilhou com a amiga os sonhos que vinha tendo já havia algum
tempo, o medo que sentira a princípio, mas a esperança que esses sonhos
despertaram nela quando ainda estava em Meca.
- Eu não sei explicar por que, mas alguma coisa me diz que as respostas
que procuro estão bem perto de mim, embora eu não consiga percebê-las.
- É estranho. Primeiro você sonha com um lugar que ninguém jamais viu.
Depois sente a presença desse homem. E você disse que sentiu a mesma
sensação da presença dele durante os rituais da sua família, não é mesmo?
- É, e posso lhe dizer que a sensação é de estar ao lado de alguém muito
especial, mas que não se conhece e não se pode conhecer. Ao mesmo tempo há
um desejo de ficar com ele, mas sem saber como.
- Oh! Deus! Será possível?
- O que você disse, Lisa?
- Oh! Nada. É que me lembrei de uma coisa que aconteceu durante sua
ausência. Sabe aquela casa que fica adiante, em frente ao portão?
- Sim, onde vive aquela família cujo filho viajou há vários anos para a
América do Sul?
- Então, há uma semana o filho voltou e trouxe a filha dele.
- Não me diga. Ele teve uma filha do outro lado do mundo?
- Sim, e o mais grave é que a menina veio com ele sem saber para onde
viria. Veio para se casar com o noivo arranjado pelo pai.
- Não posso acreditar. O pai seqüestrou a própria filha? Como você sabe
de tudo isso?
- Minha mãe, quando foi fazer compras, encontrou a empregada da
família. Ela disse que o clima estava horrível dentro da casa. Parece que a
menina chora noite e dia. A senhora contou à minha mãe que a menina tem 18
anos, era noite no país onde vivia e estava para se casar. O pai estava separado
da mãe há muito tempo. Eles se separaram porque a mãe era cristã, e ele nunca
aceitou o fato de a esposa ter renegado a sua religião.
- Isso é um horror, Lisa! Eu não posso acreditar!
- No cristianismo é tradição os pais acompanharem as jovens que se casam
até o local onde será realizado o casamento. Foi nesse momento, quando levava
a noiva para se casar, que ele a seqüestrou, deixando o noivo e toda a família
esperando.
- Oh! – Salema começou a chorar. Toda a esperança que ela sentiu lhe
fugira de repente, depois de ouvir tudo aquilo.
Aquela história impressionou a Salema. Quanto mais Lisa contava os
detalhes que sabia, mais Salema se entristecia. “Como um pai poderia fazer
uma coisa dessas com a própria filha? E com a família dela, que foi deixava sem
nenhuma explicação?”, pensou Salema, ainda aflita com o que ouvira. “Que
religião era aquela que fazia as pessoas sofrer, levava os homens a enganar, a
mentir, a sequestrar se preciso fosse, tudo porque tinham o direito de fazer o
que quisessem com as mulheres que lhe pertenciam?”
Naquele momento Sema escancarou a porta do quarto, interrompendo a
conversa das duas amigas. Ela era uma menina diferente. Tinha agora 10 anos
de idade. Era baixa para a sua idade e aparentava ser ainda mais nova. Ao
contrário de Salema e de suas irmãs, Sema tinha os cabelos claros. Chegavam
aos ombros, lisos e retos, cobrindo-lhe o rosto fininho. Era uma criança calma.
Gostava de estar com a irmã mais velha, embora já não pudessem mais brincar
juntas desde que Salema começou a usar o véu.
Logo que entrou, a menina começou a pular na cama, eufórica. Havia
retornado a sua casa depois de longos dias de viagem, e isso a deixava feliz.
Salema e Lisa pararam de falar para observá-la. Ela pulava e falava sem parar
de uma festa sobre a qual ouvira o pai ordenar aos criados. Ela estava tão
animada que nem percebeu as lágrimas nos olhos da irmã.
- Salema, é o seu casamento. Você vai se casar, irmã.
- O que você está dizendo, Sema?
- É verdade, o pai disse que a festa de noivado será na semana que vem.
- Como você sabe? O pai disse isso?
- Eu ouvi ele dizer a mamãe para preparar a melhor festa e organizar os
criados porque vai haver casamento aqui em casa.
Salema ficou aturdida. Olhou para Lisa sem dizer nada. As duas amigas
sabiam. A sorte dela não era muito melhor do que a da outra menina, no outro
lado da rua. Afinal, ela também se casaria com alguém que não escolhera.
Naquela noite, Salema jantava, silenciosa, com as outras mulheres. Estava
de novo pensativa.
O que poderia fazer? Ela teria que se casar. Seu pai a obrigaria. Quem seria
esse homem? Oh! Se ao menos pudesse conhecê-lo antes. A conversa com Lisa
também a deixara intrigada. Não sabia por que, mas ela estava inquieta. Não
sabia se seria pela situação da jovem em frente ou se fora algo que Lisa havia
dito. Ela não conseguia lembrar-se, mas algo a impressionara. Mas o quê?
Mirna andava preocupada. Ultimamente, Salema estava sempre calada.
Aquela menina alegre, que vivia espreitando as conversas dos adultos, que ria
por tudo e por nada, se fora. Agora, e desde que se tornara uma mulher, ela
sentia que a filha não era feliz. “Mas por quê?”, pensava Mirna. “Ela tem tudo
de que uma jovem na sua idade precisa. O pai está se preocupando com seu
futuro, tanto é assim que lhe arranjou um bom casamento, e, se Alá permitir,
com certeza ela terá muitos filhos varões. O que mais poderia Salema querer?”
Ela pensara que a viagem a Meca faria bem à filham como sempre fizera, mas
enganou-se. Ela podia ver que algo estava errado com a menina e decidiu que
ainda naquela noite conversaria com ela.
Terminado o jantar, recolheram-se todos aos seus aposentos. A viagem de
volta havia sido cansativa, e ninguém estava disposto a conversar, mesmo
porque havia muito o que fazer no dia seguinte. Para Khalil eram os negócios,
as reuniões, os almoços importantes, enfim. Para as mulheres, eram as
conversas sobre filhos, vestidos, criados ou viagens que eventualmente uma e
outra faziam acompanhando o marido.
Já era noite alta, mas no quarto de Salema ainda havia luz. Sema dormia
havia algum tempo, e Mirna conversava com Salema tentando fazê-la entender
seu papel de mulher.
- Eu errei contigo, Salema. Você foi a primeira filha, e desde o início eu
tentei protegê-la da rejeição de seu pai pelo fato de ser mulher. Fui eu que
deixei de lhe ensinar seu papel. Se eu tivesse feito o que era certo, você não
estaria sofrendo agora.
- Mas você fez o que era certo, mãe. Eu teria feito a mesma coisa.
- Mas fui eu que fiz nascer em você o ódio pela sua condição, filha. Você
não aceita o fato de as que as coisas são como são.
- Não, mãe, não é verdade. Você apenas me amou. Eu é que tenho visto o
horror de tudo isso. Pense em tia Tanya, mamãe. Ela deve estar sofrendo
horrivelmente naquele quarto, sozinha. Pense neste véu que você e todas as
mulheres têm de usar sem discutir. Pense na sua vida, mãe, que só sorriu de
verdade quando pôde dar à luz Salim. Pense em mim, mãe. Você não sabe as
marcas que me restaram depois daquela circuncisão. Eu já não suporto sequer
olhar para o meu corpo, mamãe.
- Eu sei, Salema, porque as suas marcas são as minhas marcas e as marcas
de todas as mulheres desta terra.
- E é isso que eu gostaria de ver diferente. Eu não acredito que precise ser
assim, eu não acredito que Alá queira isso. Há uma esperança, mamãe. Há uma
solução em algum lugar, eu sei disso.
- Eu amo seu pai, Salema, já pensou nisso? Eu amo verdadeiramente seu
pai e aceito o que sou por amor a ele. Seu pai nem sequer sabe que eu o amo.
Quando nos casamos, é claro que tínhamos um casamento arranjado como
todos. Mas, do momento em que o vi pela primeira vez, soube que o amava.
Salema abraçou a mãe, emocionada. Aquela revelação fez Salema recuar
em seus sentimentos de ira. Amor. Esta palavra nunca tivera tanto significado
quanto agora, quando sua mãe a pronunciava. Seria essa a solução que
procurava?
Naquela noite, antes de dormir, Salema ajoelhou-se em seu tapete de
oração. E ali, no silêncio do quarto, ela orou:
- Oh, Alá, eu sei que estás aí em algum lugar. Eu sei que estás me ouvindo.
Diz-me, qual é a solução? Por que meu coração fica dividido entre a esperança
de ver tudo diferente e esse amor de que minha mãe estava me falando? O que
é de verdade esse amor capaz de fazer mulheres como minha mãe sofrer
durante toda uma vida? Diz-me o que eu posso fazer. Para onde eu devo ir?
Ajudai-me, ajudai-me, ajudai-me.
A intensidade do clamor era tanta que Salema começou a transpirar. De
repente a mesma sensação. Alguém estava com ela. Mais uma vez ela não podia
ver nem ouvir. Mas ela sentia, sentia como sentira a presença da mãe ainda há
pouco. Abriu os olhos lentamente. Ela tinha tanta certeza da presença que
pensava que agora o veria. Olhou ao redor do quarto. Nada, apenas a sensação
confortante de que havia alguém que se importava com ela. Era ele, o homem
de seu sonho. Aquele que não se importava com o véu no seu rosto e que
caminhava com ela sem desprezar sua condição de mulher. Mas quem era ele?
Salema queria saber. Ela precisava conhecê-lo, porque naquela noite pôde
entender que o caminho era ele.
CAPÍTULO 9

Nayla

No dia seguinte, Salema acordou cedo. Levantou-se apressada e foi ao


encontro da mãe em seu quarto.
- Mamãe, quero a sua autorização para ir com Lisa visitar a nossa nova
vizinha.
- Sobre que nova vizinha você está falando, Salema?
- Da casa em frente. É que ela chegou recentemente. Uma menina que veio
com o pai da América do Sul.
- Ah! Eu ouvi dizer qualquer coisa sobre isso. Beth contou-me sobre a
situação da jovem.
- Por isso mesmo que quero conhecê-la. Acho que ela deve estar se
sentindo muito sozinha.
- Eu não acho bom que você se meta em confusão por causa de uma
pessoa que nem conhece.
- Mas, mamãe, eu quero apenas conhecê-la. Eu não vou me meter em
confusão. Quero apenas conversar com ela.
Mirna sabia que não conseguiria persuadir a filha a desistir da idéia de
visitar a menina. Seria melhor deixá-la ir, talvez assim pudesse distrair-se.
Preocupava-a, no entanto, a idéia de que a situação da jovem, embora comum,
pudesse acrescentar mais questões às dúvidas que Salema já tinha. De qualquer
forma, as jovens acabariam se conhecendo. Então, por que não deixá-la ir?
- Eu vou pedir autorização a seu pai, depois lhe digo, está bem?
- Obrigada, mamãe. Vou combinar tudo com Lisa.
- Mas você sabe que seu pai terá de nos acompanhar. Por isso terá de ser
quando ele puder.
- Mãe, por favor, fale com ele. Eu gostaria de conhecê-la ainda hoje.
Mirna ficou observando a filha enquanto ela saía apressada. “Era uma
menina”, pensou. Ela sentia pena da filha. Mas tinha esperança de que, com o
casamento, os problemas da filha terminassem. Afinal, ela teria muito com o
que se ocupar. Por falar nisso, Mirna precisava pensar nos detalhes da festa de
casamento. Havia ainda muito o que fazer até o dia da festa, e ela não tinha
tempo a perder.
Salema correu para encontrar-se com Lisa no jardim. A menina atrapalha-
se bastante ainda, correndo como uma menina e vestindo-se como uma mulher.
De repente parou estagnada. A amiga voltou-se para ela quando Salema
chamou. Mas o que ela viu não foram os olhos azuis da amiga nem o rosto que
ela bem conhecia. A abaya e o véu, Lisa os estava usando também, e Salema
sabia o que isso significava.
- Você também, Lisa? Quando foi isso?
- Já há algumas semanas. Meus pais decidiram que eu deveria seguir os
costumes daqui. Afinal, vivemos aqui, e isso só vai proteger-me como já tem
protegido minha mãe.
- Quando fala em seguir os costumes, está dizendo todos os costumes?
- Você está se referindo a quê?
- A tudo que devemos fazer para ser consideradas mulheres.
Salema não tivera coragem ainda de contar à amiga sobre a circuncisão,
por isso agora não queria assustá-la.
- Minha mãe disse apenas que eu deveria usar o véu, porque seria uma
proteção para mim. Afinal, é aqui que vivemos.
As meninas começaram um passeio pelo jardim. Estavam caladas. Já não
brincavam nem se escondiam como antes. Salema sentia que, apesar de a amiga
estar agora usando o véu, não havia para ela o mesmo peso nem o mesmo
significado que para si própria. Para Salema, o véu era um símbolo da vida
difícil que as mulheres da sua raça levavam. Para Lisa, era a proteção por estar
vivendo numa nação que não era a sua e que tinha hábitos que não eram os
seus. Não há nada a fazer. Hoje é Lisa, mais cedo ou mais tarde será Sema,
depois as irmãs mais novas, e tudo será como sempre foi. Depois de algum
tempo caladas, Salema quebrou o silêncio.
- Lisa, eu falei com a minha mãe, e talvez ainda hoje nós visitemos a nova
vizinha. Você quer ir comigo?
- Será que eu poderia?
- Eu disse a minha mãe que nós duas iríamos. É claro que isso acabará por
ser uma visita formal, pois meu pai deverá nos acompanhar também.
- Mas por que você quer conhecê-la?
- Você sabe, eu quero saber mais sobre ela.
- Está bem, vou falar com mamãe. Caso meus pais permitam, eu irei com
você.
- Esta noite, enquanto orava, senti a presença dele outra vez.
- De quem? Do seu pai?
- Ora Lisa, você sabe, do homem dos meus sonhos.
Lisa olhou para a amiga por um instante. As duas andavam juntas por
entre as flores que circundavam o jardim. Algumas vezes Lisa se abaixava para
tocar levemente a pétala de uma flor que se destacava entre as demais. Em dado
momento não resistiu e colhei uma flor cujas pétalas eram de um amarelo
brilhante, diferente dos outros tons que se espalhavam por ali. Aquele gesto
chamou a atenção de Salema. Como Lisa poderia ver brilhos e cores que ela já
não via? Como uma flor como aquela podia chamar a atenção da amiga, mesmo
atrás daquele véu?
- Salema, você se lembra quando conversamos sobre as nossas dúvidas,
não faz muito tempo, aqui mesmo no jardim?
- Claro, como poderia esquecer se cada dia que passa eu tenho mais
perguntas.
- Há algo que eu preciso dizer. Algo que se passa comigo. Eu acho que isso
vai ajudá-la a entender.
- Do que você está falando, Lisa? Estou ficando nervosa.
- Eu contei a meu pai sobre os sonhos que você tem tido e...
- Você o que? Eu disse para você não contar a ninguém!
- Desculpe, amiga, mas era preciso, e o que meu pai me disse vai ajudar
você a entender melhor o que está se passando.
- Seu pai sabe interpretar sonhos?
- Não, mas ele me revelou que...
Nesse momento a conversa das duas foi interrompida. Mirna chamou-as
para dizer que visitariam a família da jovem naquela noite. Khalil havia
concordado em fazer-lhes uma visita de cortesia.
Eram 8 horas da noite quando a família chegou diante do portão da casa
em frente. Os vizinhos já estavam esperando a visita, que fora marcada com
antecedência. Khalil concordou porque achava que aquela seria uma boa
oportunidade de estreitar relacionamentos com o vizinho que acabara de
chegar, pois isso poderia significar uma boa influência para os seus negócios, já
que sabia que o homem mantinha ainda uma empresa bem-sucedida com sede
em pelo menos dois países da América do Sul.
A família entrou e imediatamente se acomodou na sala. Os homens
retiraram-se para o escritório, onde iriam conversar amenidades enquanto
desfrutavam um bom vinho. “Talvez”, pensou Salema, “alguma bebida trazida
por ele daquelas terras longínquas”. A casa era grande. Os móveis eram de uma
madeira opaca e escura que contrastava com o colorido dos sofás e das
poltronas da sala. Não era um ambiente acolhedor. Havia traços naquela
decoração de alguém que não tinha muito bom gosto.
- Eu nunca vi um lugar assim! – comentou Lisa com Salema logo que
entraram.
- Parece frio e pouco acolhedor, não acha? Penso que tem a cara dos
donos!
Mirna apertou de leve o braço de Salema para que se calasse. As duas
meninas riram de seus pensamentos e continuaram a observar. Sentada ao lado
da mãe e de Lisa, no sofá azul-claro que ficava no meio da sala de visitas,
Salema tentou ver se via entre as pessoas da casa alguém que poderia ser a
menina que procurava. Havia, entretanto, uma mulher sentada num canto, que
mantinha a cabeça abaixada e não dizia palavra alguma enquanto as mulheres
conversavam assuntos corriqueiros.
Claro que seu rosto não estava à mostra, mas Salema pensou que só
poderia ser ela a menina que acabara de chegar.
- É ela, Lisa, tenho certeza.
- Como estão as coisas agora que tem seu filho de volta, Sintia? –
perguntou Mirna, com o intuito de entrar no assunto que as havia levado até
ali.
- Estamos alegres com a volta dele. Mas, como vê, essa não é uma situação
muito fácil. O telefone toca sem parar. As pessoas querem saber onde ele está e
o que fez com a menina. Como se ele não tivesse o direito de fazer o que bem
entendesse.
Salema ouviu aquilo, e a fúria começou a tomar conta dela. Pediu à mãe
em voz baixa que sugerisse à senhora que as jovens conversassem em outro
lugar.
- Sintia, o que acha de sua neta mostrar os seus aposentos a minha filha. É
que Salema gostaria muito de conhecê-la melhor.
- Claro, pensou que numa situação como essa seria muito bom se elas
pudessem tornar-se amigas. Embora o árabe que ela fala é o que aprendeu na
infância, quando ainda vivia com o pai. Depois nunca mais usou, a não ser
agora, que precisa se comunicar conosco.
- Oh! – exclamou Salema, sem esconder a sua indignação pelo que aquela
menina estava passando.
- Mas não se preocupe, querida. O pai já lhe contratou uma professora de
árabe, e ela vai aprender depressa. Depois, com o casamento, tudo será mais
fácil, e logo ela esquecerá a outra língua.
“Fácil?”, pensou Salema. “Como ela poderia chamar aquilo de fácil?
Obrigar uma pessoa a viver num país que não é o seu e ainda supor que ela
deva esquecer a sua própria língua? Oh!”, Salema estava furiosa. Levantou-se
do lugar com Lisa atrás de si e convidou a menina no canto da sala a mostrar-
lhe o seu quarto.
Quando as meninas entraram, Salema observou aquela jovem lentamente
despir o véu que lhe cobria o rosto. O que Lisa e ela viram, então, as chocou. Ela
tinha os olhos completamente inchados, quando o dobro do tamanho do que
seria normal. A face da jovem estava deformada por causa disso.
Chamava-se Nayla e tinha grandes olhos castanho-claros no mesmo tom
dos cabelos. Era alta e usava os cabelos bem curtos. As sobrancelhas eram
grossas e davam um destaque à face arredondada. Salema nunca tinha visto
uma mulher com cabelos tão curtos. Salema passou os olhos pelo quarto. Em
cima de uma cadeira, perto de um armário, havia um vestido estendido. Salema
nunca vira de perto um vestido assim. Era inteirinho branco, feito de uma renda
lindíssima. Com o vestido havia um pequeno arco redondo com flores artificiais
em volta, parecidas com as flores da renda do vestido.
- Este vestido era meu – disse a menina em árabe, com lágrimas brotando
dos olhos outra vez.
-E lindo – disse Lisa, admirada.
- Eu estava com ele quando ia me casar.
- Oh! É com um vestido assim que vocês se casam em seu país!
- Eu ia para a igreja. Entrei no carro do meu pai porque ele tinha
prometido a mim e a minha mãe que, já que eu havia decidido me casar e
estava feliz, ele não iria fazer nada para impedir. Ele disse inclusive que queria
participar, como um bom pai, da felicidade da única filha dele.
- Em seu país vocês podem escolher com quem querem se casar? Como
pode ser isso?
- Claro, as mulheres no meu país e em grande parte dos países do mundo
são livres para decidir, e para viver como quiserem a sua vida. Fazem a sua
escolham, trabalham, casam-se, têm filhos, estudam...
Salema já tinha ouvido falar sobre isso. Ela mesma já tinha ido com os pais
em viagens fora do país onde pôde ver as diferenças entre as mulheres da sua
terra e as outras mulheres. Mas os homens ali faziam questão de frisar que a
liberdade que essas mulheres tinham não era uma coisa que Alá podia
concordar e que por isso o seu povo era escolhido, porque viviam de acordo
com aquilo que o profeta ensinou como sendo a vontade de Alá para o seu
povo. Mas essa era a primeira vez que ela conversava com alguém tão diferente
dela.
- E sua família acreditou que seu pai estava falando a verdade? –
perguntou Lisa.
- Não podia ser diferente. Ele estava tão amoroso, tão carinhoso comigo e
tão atencioso com todos os detalhes do meu casamento. Ele mesmo escolheu o
lugar onde seria a festa. Fez os convites, participou de tudo conosco. Eu não
podia sequer imaginar que ele faria o que fez.
- Isso aconteceu no dia do seu casamento?
- A menina já não podia falar. A voz estava embargada pela emoção. Era a
primeira vez que contava o que se passara a alguém. Lisa e Salema esperaram
alguns momentos. Estavam constrangidas, sem poder falar.
- Ele me traiu. Eu confiei nele, e ele me traiu. O que faço agora com a
minha vida?
- Sua família sabe onde você está?
Minha mãe tem telefonado muitas vezes, mas ele só permitiu que eu
falasse com ela uma única vez. Ela disse que estão buscando ajuda junto ao
governo de meu país. Talvez ele possa intervir de alguma forma.
- Você acha mesmo possível?
- Não sei. Mas, mesmo que fosse possível, isso levaria muito tempo, e eu
não posso continuar vivendo aqui. Essa vida, essas roupas, essa gente que eu
não conheço. Como meu pai pôde fazer isso comigo?
Salema não tinha nada a dizer. Tentava pensar em como ajudá-la, mas
sabia que não podai fazer muita coisa. Oferecer sua amizade talvez fosse um
consolo, mas, ao contemplar tudo aquilo, toda a esperança de encontrar um
caminho começou a desfazer-se dentro dela. Não, infelizmente, tanto para
Nayla quanto para ela própria não haveria saída...
Mas, enquanto Salema pensava nessas coisas, Lisa aproximou-se da
menina, que, ajoelhada e com a cabeça sobre a cama, soluçava sem parar.
- Você sabe que há uma saída, não sabe?
- Do que está falando exatamente?
- Deus. Você o conhece, não é?
Silêncio outra vez. Por alguns segundos um leve sorriso surgiu no canto
dos lábios dela.
- Sim, eu o conheço, e o amo de todo o meu coração.
- Então você sabe que Ele é única pessoa que pode ajudá-la.
- Eu sei disso, mas, quando olho para minha vida agora, não vejo como Ele
poderia me tirar daqui.
Aquela conversa chamou a atenção de Salema. Primeira porque estavam
falando no idioma de Lisa, depois porque ela sabia que mesmo quando Lisa
falava em inglês, usava o árabe para falar de Alá, mas agora ela se referira a ele
como Deus! Por quê? Ela se lembrou de que, logo após a sua chegada, Lisa usou
essa mesma expressão quando ela lhe contou sobre os seus sonhos, e foi isso
que deixou Salema intrigada.
- O meu casamento seria um sonho. Nós estávamos tão felizes. Por que
Deus permitiu que isso tudo acontecesse comigo?
- Eu não sei lhe dizer. Eu até há bem pouco tempo atrás não o conhecia, e
agora estou aprendendo a entendê-lo.
- Você está dizendo que também o conhece? Como pode, se as pessoas
aqui nem sequer têm oportunidade de ouvir sobre Ele?
- Eu posso dizer-lhe que eu ouvi, mas você tem que ter muito cuidado ao
falar Nele por aqui.
As meninas falavam com uma voz muito baixa, o que também chamou a
atenção de Salema. Havia algo novo aqui. Salema não sabia bem definir o que
era, mas a sensação que ela tinha era de que elas estavam falando de outro
deus. De repente, Nayla levantou-se e caminhou em direção ao guarda-roupa.
Abriu a porta e de lá tirou uma pequena mala. Abriu-a. Logo as meninas
puderam ver algumas roupas completamente diferentes daquelas que estavam
habituadas a usar. Havia calças de um tecido grosso, azul-claro. Algumas
blusas que mais pareciam roupas íntimas, curtas e sem mangas. Havia pelo
menos dois vestidos que, se fossem usados ali, seriam considerados
escandalosos, pois o comprimento ficava na altura dos joelhos. Salema não
conseguia tirar os olhos do conteúdo da mala. Cada peça, cada coisa que a
menina ia mostrando a elas era uma novidade para ela.
- Esta mala estava no carro do meu pai quando ele me raptou. Eram as
roupas que eu iria levar para nossa lua-de-mel. Quando chegamos aqui, ele quis
jogar todas as minhas coisas fora, mas eu lhe implorei que não o fizesse, ele
acabou por concordar. Creio que Le não agüentava mais me ver chorar, embora
tenha me dito que essas roupas nunca mais poderiam ser usadas.
A menina continuou a mostrar a elas o conteúdo da mala. Por último, de
dentro de um compartimento escondido no fundo da mala, ela tirou um livro.
Era pequeno, mas via-se que continha muitas páginas, escritas em letras muito
pequenas. Mesmo que Lisa e Salema pudessem entender aquela língua, não
conseguiriam ler facilmente. Nayla foi até a porta do quarto, tentando ouvir se
alguém se aproximava. Nada. Voltou-se para as duas e disse:
- Este é o meu único vínculo com o meu passado. A palavra Dele. Isso
ninguém pode me tirar, é meu, está dentro de mim.
- Tenha cuidado, Nayla, você não pode andar por aí mostrando esse livro
para toda a gente.
- Eu sei, Lisa, não se preocupe. Enquanto eu crescia, até meu pai deixar
nossa casa, eu pude ver a tensão que era gerada por causa dessas diferenças. Eu
vou ter cuidado.
Salema tomou o pequeno livro das mãos de Nayla, enquanto Lisa
abraçava a menina. Ela olhou para aquele objeto tentando entender o que
significava tudo aquilo. As duas meninas tinham falado de coisas que ela não
entendia. Olhando as duas abraçadas ao seu lado, ela estava intrigada. Que
livro era aquele de que ela nunca tinha ouvido falar e que para Nayla era tão
importante? E o que mais a impressionava era que Lisa parecia entender cada
palavra do que a outra dizia.
Um leve toque na porta e a pressa com que Nayla lhe arrancou o livro das
mãos e o escondeu interromperam seus pensamentos.
- Salema, é hora de ir para casa.
CAPÍTULO 10

Bodas

Passara-se quase um mês desde que Salema e Lisa haviam visitado


Nayla. Depois disso as meninas não puderam conversar. Mesmo quando
estavam juntas, Salema não tinha coragem de fazer perguntas sobre o que se
passara naquela noite. Tampouco Lisa queria entrar em algum assunto que
tivesse a ver com sua fé. Ela estava com medo. Compartilhara com sua mãe o
que havia acontecido durante a visita a Nayla, e a mãe a proibira de falar com
Salema sobre aquele assunto outra vez. Assim, surgiu entre as duas uma
estranha barreira que começava a afetar a amizade delas. De um lado estava
Salema, cheia de dúvidas, achando que a sua melhor amiga estava lhe negando
o fato de que não há outro deus além de Alá. Do outro, Lisa que, com receio de
comprometer seriamente sua família, não podia compartilhar com a amiga a
coisa mais importante que havia descoberto, o amor de Deus.
Aquela semana era muito importante para toda a família. Haveria um
casamento naquela casa. O casamento da filha mais velha de Khalil, o que era
um acontecimento não só para a família, mas para todos aqueles que foram
convidados.
Salema andava de um lado para o outro na sala grande. Os seus pés, à
medida que ela andava, apagavam e formavam novas marcas no imenso tapete.
Ela não sabia mais o que pensar. Mais algumas horas e ela estaria casada com
um homem que não conhecia. Sabia que ele tinha o dobro de sua idade, que era
médico e que era um homem pertencente à nobreza. Ele nunca havia se casado
antes; portanto, pelo menos ela não sofreria a humilhação de casar-se com um
homem que já possuía outras mulheres.
Mirna observava a filha. Sabia que não seria fácil para ela. O casamento
tinha sido um bom negócio para Khalil. O dote que o futuro marido de Salema
pagaria por ela era uma pequena fortuna. Além disso, o jovem era de uma
família muito conceituada e poderia trazer muitos benefícios aos negócios de
Khalil. Negócios era o que interessava ao seu marido. Ter negócios bem
sucedidos e acumular riquezas. Mas, recentemente, não era apenas isso que
despertava o interesse de Khalil. Ele também havia se casado outra vez. Havia
duas semanas, sem que Mirna pudesse dizer alguma coisa a respeito, embora
tivesse tentado quando soube da notícia.
- Mas ela não passa de uma criança, Khalil. Por que precisa de uma nova
esposa? Não tem tudo o que quer conosco aqui?
- Você não pode entender. Eu tenho amor suficiente para repartir com até
quatro esposas se eu quiser. Alá protege-me nesse sentido. Além disso, quero
ter mais filhos varões e não penso que você possa repetir tamanha façanha
outra vez – respondeu Khalil, num tom irônico.
A nova esposa de Khalil era apenas um ano mais velha que Salema, e ele a
instalou em uma das casas da família. Agora Khalil passava a maior parte do
tempo que dispunha na casa da nova esposa, embora, como manda a lei do Islã,
ele tivesse de distribuir igualmente o tempo, o amor e os cuidados com as duas
famílias.
Mirna sentia-se humilhada. Sabia que não podia exigir nada de Khalil nem
interferir em suas decisões. Mas sofria porque o amava e sabia que já não o teria
de volta como antes.
Ela já não era mais a única esposa de Khalil.
Salema voltou o olhar para a mãe, como se soubesse que estava sendo
observada. Não, a mãe não podia entender. Mesmo que ela tivesse vivido
exatamente o que ela estava vivendo agora, ela não entenderia o que se passava
dentro dela. Ela sabia que não haveria saídas. Teria de casar-se. O homem que o
pai escolhera chegaria e a levaria dali. Não havia esperança.
Nunca mais ela voltara a sonhar com aquele homem e nunca mais tivera a
sensação confortante da presença dele junto dela. Parecia que o único sinal de
esperança a que ela havia se agarrado se fora: ou melhor, não passara de um
sonho.
De repente, correndo apressadas, entraram sala adentro a avó e as tias.
- Está na hora, Salema. Você tem de se aprontar – disse a avó, numa voz
que ninguém poderia contestar.
- Hoje é seu grande dia, querida, não se preocupe com nada, a única coisa
que precisa fazer é sorrir quando ele levantar o véu do seu rosto – disse tia
Nadya, tentando confortá-la.
- Como você acha que eu posso sorrir para um homem que nem conheço?
- Não se preocupe, querida, acho que seu pai soube escolher o seu marido,
porque, segundo o que dizem, além de nobre, ele é um rapaz muito bonito.
Essa conversa não animou muito Salema. Ela não estava interessada na
aparência do noivo. Ela não queria se casar. Não queria sair do lugar onde
crescera para viver com um estranho. O seu futuro marido se chama Ismael, o
mesmo nome do filho de Ibrahim. O mesmo filho que quase foi sacrificado a
Alá no passado. Mas isso não importava para ela. O nome soou mal desde a
primeira vez que ouviu. Ela não gostava do nome e muito menos da pessoa que
o usava.
Foram todas para o quarto de Salema. Beth entrou também, com uma
chávena de um chá que a avó Lidya mandara preparar, porque, segundo ela,
era uma receita infalível para relaxar. Sobre a cama estava o vestido de Salema.
Era lindo. Num tom de vermelho, como os vestidos de todas as noivas. “Mas
tão diferente do de Nayla”, pensou Salema quando contemplou o seu. Parada
no meio do quarto, ela olhou em volta.
Reviu tudo o que era seu e que agora estava deixando. Ali, no seu lugar
especial, ela fora feliz. Ali ela chorara a perda da sua infância e também ali ela
sentira que poderia haver uma esperança. Foi naquele quarto que ela pensara
pela primeira vez em fugir, e onde sentiu, por alguma razão que até aquele dia
ela não tinha entendido, que havia uma esperança, e que esta era alguém que
ela só conhecia em sonho. Sentiu vontade de chorar.
- Você vai ser a noiva mais linda que já foi vista por estas redondezas,
querida.
Salema não respondeu. Estava decidida a não dizer nada. Conteve as
lágrimas. Bebeu a chávena de chá que Beth lhe oferecia, rapidamente. Despiu-
se, quando elas lhe disseram que a água do banho estava pronta. Deixou que a
banhassem, lavassem os cabelos, perfumassem o corpo, escolhessem as roupas
íntimas, maquiassem o rosto e por fim lhe vestissem o vestido.
Naquele momento toda a ansiedade havia desaparecido. As mãos já não
estavam trêmulas, o coração não batia mais descompassado, os olhos já não
buscavam uma explicação, nem tinha nenhuma esperança. Salema havia
resolvido aceitar seu destino.
Quando Salema ficou pronta, a casa já estava cheia de convidados. De um
lado as mulheres celebrariam juntas; de outro, os homens. Os noivos só se
encontrariam na hora da cerimônia. Salema contemplou-se no espelho de seu
quarto. Estava bonita. Pela primeira vez sentiu-se realmente bonita. Por último,
um véu fino, que deixava visível o contorno do seu rosto, foi lhe colocado. Era
chegada a hora.
Os convidados estavam esperando quando Salema entrou na sala grande.
Estavam ali naquela sala todas as mulheres de sua família. “Menos tia Tanya”,
pensou Salema, sentindo a ausência da tia queria. Amigas da mãe e das tias
também estavam lá, esposas de senhores importantes que tinham negócios com
Khalil também não poderiam faltar. Também estavam ali as duas irmãs e a mãe
de seu futuro marido. Quando a sogra se dirigiu a ela, Salema sentiu um frio na
espinha. Era a primeira vez que pensava que, além do marido, teria também de
conviver com uma nova família.
- Mas que linda menina que a sua filha me saiu, Mirna!
- Sim, obrigada.
A senhora apertava as mãos de Salema entre as dela. Era uma mulher
baixa, com um rosto redondo e com as bochechas caídas. Salema pensou que
havia peso a mais naquele corpo. O pescoço desaparecia entre a cabeça e o
tronco da senhora. Usava um batom vermelho, mas, como os lábios eram finos,
o batom sobrava em volta da boca, dando um ar de desleixo. Salema sorriu ao
imaginar o que aquela senhora diria se pudesse ler seus pensamentos.
- Você vai me dar lindos netos, já estou mesmo vendo, minha linda
menina.
“Netos?”, mais uma vez Salema ficou sem palavras. Essa era outra coisa
sobre a qual ainda não havia pensado. Ela teria filhos, claro. Afinal estava se
casando, e as pessoas que se casam devem ter filhos. “Oh! Que Alá me proteja!”
Os acordes de uma canção tradicional para essas ocasiões soaram quando
Ismael, o pai do noivo e Khalil entraram na sala grande. Somente eles poderiam
estar no espaço reservado às mulheres e, além deles, o homem que iria presidir
a cerimônia.
Os homens dirigiram-se imediatamente para onde estava Salema. A
menina, que estava de costas no momento em que eles entraram, virou-se
devagar quando o pai a chamou. Pela primeira vez ela viu seu futuro marido.
Quando ele a viu, sorriu para ela. O corpo da menina estremeceu. Ela baixou a
cabeça assim que seus olhos encontraram os dele. Estava admirada! Ele era um
belo homem. Os olhos verdes num tom escuro destacavam-se na face morena.
O sorriso era largo, deixando à mostra os dentes perfeitos. Debaixo do turbante
de seda, podia-se ver a ponta dos cabelos negros, mas com umas nuanças
brancas, naturalmente desenhadas. Salema corou quando Ismael chegou muito
perto dela e levantou o véu do seu rosto. Ela não conseguiu sorrir como tia
Nadya lhe tinha ensinado, nem sequer conseguiu fitar-lhe nos olhos.
O responsável pela cerimônia proferiu algumas palavras e leu alguns
versículos do Alcorão. Ismael confirmou diante de todos que ele aceitava Salema
como a sua esposa e que agora ela estaria sob os seus cuidados. Estavam
casados. Ismael tomou as mãos delicadas de Salema. Em nenhum momento ela
disse palavra alguma. Por um momento fitou o pai. Ele parecia estar muito feliz
com o acordo que havia feito. Depois fitou a mãe. Ela também havia se casado
aos 14 anos, e, embora fosse consciente das dúvidas de Salema e partilhasse
algumas delas, o fato de Salema se casar agora era perfeitamente natural para
ela. E não só para a mãe, mas para todas aquelas mulheres que estavam
presentes ali. Para todas menos uma: Nayla. Ismael começou a conduzir Salema
para fora da sala grande. Todos olhavam para eles admirados. Enquanto saíam,
a menina passou os olhos pela sala repleta de convidados pela última vez.
Num canto, sentada ao lado de Nayla, estava Lisa, sua melhor amiga.
Neste que deveria ser o dia mais importante da sua vida, elas nem ao menos
haviam se falado. Fitaram-se por um momento, e Salema pensou ver uma
sombra de tristeza no olhar da amiga. Saíram. Pronto, para Salema estava tudo
consumado. Ela tinha cumprido a vontade de seu pai. Estava casada. Agora
passaria a ser a esposa de Ismael, e não haveria mais necessidade de buscar
saídas.
CAPÍTULO 11

Casada

Aquela era a manhã seguinte ao seu casamento. Salema acordou com o


peso do braço do marido à volta do seu corpo. Naquele momento, o sol
começava a despontar no horizonte. Ela olhou em volta do quarto que agora era
seu. A cama era enorme, como todos os móveis ali. Os cortinados eram num
tom de bege, com pequenos desenhos em relevo. No chão havia um espesso
tapete creme, que a fazia lembrar-se dos tapetes da sala grande. Alguém havia
decorado o quarto com flores e havia muitas delas espalhadas por todos os
lados, dando um toque colorido ao ambiente. Na mesa-de-cabeceira, ao lado da
cama, havia uma pequena escultura de pedra que reproduzia a face de uma
mulher e um porta-retratos, em que não havia fotografia alguma. Era um
quarto acolhedor, mas ela não o sentia como se fosse seu.
A seu lado, Ismael dormia evidentemente cansado. Ao olhar para ele, os
olhos de Salema encheram-se de lágrimas. Na memória, as recentes lembranças
da noite passada. Ela não queria mover-se na cama para não despertá-lo,
porque temia que ele começasse com tudo aquilo outra vez. Por que nunca
ninguém lhe contou? Ela sempre soubera que um homem tem todo o direito
sobre as mulheres que lhe pertencem. Sejam elas esposas, sejam filhas, mas
jamais pensou que após o casamento as coisas aconteceriam assim. As pernas
doíam-lhe e ela se sentia envergonhada. Ela sempre fora ensinada a proteger o
próprio corpo, e agora aquele homem em uma única noite lhe roubara a única
coisa que Salema julgava que era verdadeiramente sua: o seu corpo. Ao pensar
em tudo isso, ela não conseguiu conter o pranto e em meio aos soluços acabou
por despertar o marido. Ele olhou para ela sem entender o que se passava e,
quando Salema o viu acordado, encolheu-se toda como um animal acuado,
temendo que lhe tocasse outra vez.
- O que está acontecendo com você, Salema? – perguntou Ismael,
acariciando-lhe levemente os cabelos.
- Por favor, não me toque – respondeu Salema, afastando-lhe as mãos.
- Você sabe que esse é o meu direito, não sabe?
Ela não respondeu. Olhou para ele, e o que viu a deixou admirada. Havia
ternura em seu olhar, e a expressão no seu rosto era a mesma que vira na
cerimônia de casamento, quando eles haviam se encontrado pela primeira vez,
e isso a deixou um pouco mais confortável.
- Do que você tem medo, Salema?
- Você sabe.
- Você não sabia de nada, não é verdade?
Ela abaixou os olhos, envergonhada. Não lhe era natural conversar assim
com um homem. Aquilo era algo tão íntimo e, mesmo sabendo que Ismael era
seu marido, Salema estava visivelmente constrangida. Levantou-se da cama
apressada. O corpo todo dolorido, as pernas trêmulas e uma necessidade de sair
rapidamente dali. Mas Ismael levantou-se atrás dela e deteve-a segurando
firmemente numa das mãos. Salema voltou-se para ele, com a cabeça ainda
baixa. Seu corpo todo tremia agora, e ela só desejava poder ir embora. Porém,
delicadamente, Ismael tocou-lhe o queixo e ergueu o seu rosto fazendo-a fitá-lo
nos olhos. A mesma ternura estava lá. E, sem que ela pudesse esperar, ele a
beijou suavemente nos lábios. Aquilo a surpreendeu. Primeiro pelos gestos
delicados dele, depois pelo que ela própria sentiu. Era como se um calor suave
percorresse todo o seu corpo, inundando-a de uma emoção diferente, mas que
ela começava a gostar de sentir.
- Sente-se aqui, Salema – disse Ismael, conduzindo-a a sentar-se na beirada
da cama.
E ali ele começou a lhe ensinar. Falou-lhe sobre o que ele acreditava que
era o amor. O que podia significar a união de um homem e de uma mulher.
Explicou-lhe as diferenças físicas que havia entre eles. Falou com um
conhecimento que Salema não podia sequer imaginar que ele teria sobre o seu
corpo e sobre como Alá a tinha preparado para gerar filhos. Falou com tanta
intimidade que todo o medo que ela sentia desapareceu. Contou-lhe também de
suas viagens, do tempo em que vivera fora do país e quanto essa experiência
serviu para que aprendesse muitas coisas. Falou-lhe dos seus sonhos de
construir um hospital ali mesmo, para o seu povo, mas com moldes baseados
nos melhores hospitais da Europa, e também do seu desejo de encher aquela
casa de filhos, que pudessem prosseguir com a sua visão. Enquanto ele falava,
ela observava-o sem dizer palavra alguma.
- Salema, quais são os seus sonhos?
Sonhos... Nunca ninguém havia lhe perguntado quais eram seus sonhos. E
agora o seu marido queria ouvi-la falar deles. Salema não fora ensinada a
demonstrar o que sentia ou o que queria. Nos últimos meses, com tudo o que se
passou em sua vida, ela quis falar, chorar, reivindicar e até fugir, mas o
resultado foi que tudo se passou exatamente como com todas as outras
mulheres. Submissão e obediência. Mas agora Ismael queria saber sobre ele e
estava falando com ela como se eles fossem iguais.
- Eu não tenho sonhos.
Ismael acariciou-lhe a face suavemente.
- Logo você vai descobrir que tem muitos sonhos, querida! Quem sabe ir
para a universidade, ser uma educadora ou uma enfermeira. Você sabe que
aqui temos boas universidades para mulheres.
Ela não sabia por que, mas um sentimento de confiança inundou-lhe, e
então ela começou também a falar. Contou-lhe a experiência terrível da
circuncisão, a revolta que sentiu por lhe terem sido impostas uma condição e
uma mudança sem que soubesse bem por que, falou-lhe da tristeza que sentia
pela ausência do amor do pai. Enfim, contou-lhe sobre todos os seus temores,
inclusive sobre o horror que sentira com tudo o que se passara na noite anterior.
- Oh! Salema – exclamou ele, envolvendo-a em seus braços. – Perdoe-me.
Eu julguei que você estivesse preparada. Julguei que sua mãe tivesse
conversado com você.
- Você bem sabe que as mulheres aqui não são preparadas para nada.
- Ouça, querida. Eu lhe prometo que só vou querer estar contigo outra vez
quando estiver preparada. Será você a me dizer quando será esse dia.
Salema não queria acreditar. Não, ela não estava vivendo tudo isso.
Aquele homem doce, terno, quase paternal, seria mesmo o seu marido? Ele
juntou as duas mãos dela entre as suas, olhou-a fixamente e mais uma vez
tocou-lhe os lábios com um beijo. Depois disso levantou-se devagar e foi
andando em direção à porta do quarto. Salema observava. Ele a respeitava. O
seu marido não era igual aos outros homens que conhecia. Ele iria amá-la e
protegê-la. Já dera provas disso nessa manhã. E, além disso, ele era um belo
homem, dono de um dos sorrisos mais lindos que ela já vira.
- Ismael! – chamou Salema num impulso, fazendo-o voltar-se
surpreendido. Agora era a vez de Salema ir a ele numa ousadia que ela não
imaginara poder ter. Com a ponta dos dedos tocou-lhe a face pela primeira vez,
depois os lábios e os cabelos levemente grisalhos.
- Fica comigo.
Mais uma vez ele a envolveu nos braços, e desta vez ela não resistiu nem
temeu. E, naquela manhã, contra todas as expectativas que Salema podia ter,
eles se tornaram verdadeiramente marido e mulher. E Salema era uma esposa
feliz.
CAPÍTULO 12

Salema-mulher

- Parece que ela está enlouquecendo. Creio que não vai resistir por muito
mais tempo. – Disse a avó Lydia com tristeza.
- Você falou com ela, mãe? – perguntou Mirna, preocupada.
- O seu pai não me permite, mas já faz meses que ela está naquele quarto.
A princípio, podia ouvi-la me chamando. Ela chorava o tempo todo, mas com o
passar do tempo se calou. O que se ouvia era apenas o barulho de seus passos
quando caminhava pelo quarto ou um gemido triste por um momento ou outro.
- E agora, avó, ela continua a gemer e a chorar? – era a vez de Salema
questionar.
- Muito pior, querida, ela grita, canta, diz coisas sem sentido. E repete o
nome daquele rapaz em meio aos seus delírios.
- Oh! Tanya está doente. E nós não podemos fazer nada! Se ao menos o pai
permitisse que falássemos com ela. Ela já tem sofrido o bastante – disse Mirna,
também com uma tristeza estampada no rosto.
- Você sabe que as coisas não são assim. Ela fugiu da proteção do pai.
Jamais um homem estrangeiro poderia dar a nossa irmã a segurança que
somente os homens de nossa raça podem nos dar. Ela escolheu o seu destino
quando decidiu ter aquele relacionamento com ele – disse tia Nadya, convicta
de que elas deveriam aceitar o que se passava com a irmã.
Aquele tinha sido mais um dia escaldante. O sol brilhara o dia todo. Os
homens haviam jantado assim que voltaram da Mesquita, após as orações
habituais. As mulheres estavam todas em volta da mesa da cozinha. Haviam
acabado de jantar também e, em meio às conversas que envolviam a família, os
filhos, a escola para as meninas e o pequeno Salim, que agora já tinha quase 1
ano, elas falavam de Tanya, a irmã mais nova, que havia meses estava presa em
seu quarto e, segundo a vontade do próprio pai delas, ficaria lá até morrer.
Salema estava com elas. Essas visitas á família tinham se tornado comuns
desde que se casara, havia dois meses. Ismael não se importava em trazê-la pelo
menos uma vez por semana para estar com os pais e as irmãs. Nessas ocasiões
era muito comum se juntarem para falar como naquela noite. Salema levantou-
se da mesa, dizendo que precisava apanhar um pouco de ar. Seguiu então para
a varanda, onde se sentou confortavelmente, observando o local que mais
amava naquela casa: o jardim. Sentia-se particularmente sensível naquele dia. A
situação de tia Tanya ainda a preocupava e, embora estivesse muito feliz, pois
tinha um marido que a amava e a protegia, não conseguia deixar de pensar nela
e no sofrimento que se tornara a sua vida.
- Gosto quando você está aqui, Salema – era Lisa, que acabara de chegar à
varanda.
- Mas nada é mais como antes, não é mesmo?
Sem responder, Lisa questionou:
- Você sabia que Nayla deverá se casar assim que o noivo dela chegar da
Europa?
Nayla. Outra realidade que Salema não podia ignorar. Às vezes sentia-se
culpada por estar passando por aquela situação de conforto quando pessoas
como Nayla e Tanya estavam sofrendo tanto.
- Você tem falado com ela?
- Por duas vezes, quando a família esteve aqui. Acho que o pai dela tem
feito negócios com seu pai e por isso ele tem vindo aqui com freqüência.
- Como ela está?
- Triste, como pode imaginar. Ela esteve muito doente. Por causa disso o
pai permitiu que falasse com a mãe ao telefone. Foi um alívio para ela, mas ao
mesmo tempo um terror, porque parece que toda a família está sofrendo
também.
- Eu sinto tanto por ela.
- Não há nada que possamos fazer, você bem sabe disso, Salema.
- Não sei, talvez se eu falasse com Ismael. Quem sabe ele poderia ajudar
de alguma forma.
- Você acha mesmo que seu marido seria capaz de interferir numa situação
dessa?
Salema não sabia. Mas de qualquer forma tentaria. Mesmo que fosse para
que ele a levasse até Nayla para uma visita. Ela gostaria de conversar com
Nayla outra vez. Só tinham se falado uma vez, e mesmo assim muito do que se
passara naquele dia ela não pudera ainda entender.
- Há mais uma coisa, Lisa. Se seu pai permitir, você gostaria de viver
comigo em minha casa como minha dama de companhia?
- Está falando sério, Salema?
- Claro, seria uma oportunidade de estarmos juntas outra vez. Você
poderia vir passar dois dias por semana com seus pais.
- Eu gostaria muito de ficar com você. Há muito para falarmos.
- Então vou pedir a Ismael para tratar disso. Ele não vai se opor, já que
sabe que me sinto muito sozinha naquela casa imensa, só com a companhia da
minha sogra.
- E como tem sido convívio com ela?
- Eu não paro de rir quando estou com ela. Sempre tem uma história para
contar. Nunca a vi depressiva nem desanimada. Quando perguntei a ela se não
se sentia infeliz pelo fato de o marido dela ter outras esposas e ter de dividir o
tempo dele com elas, minha sogra respondeu que não, pelo contrário. E ela me
disse uma coisa que me fez pensar: “Minha menina, não se deve sofrer pelo que
Alá considera natural nem por aquilo que já faz parte de nós. Nós só devemos
sofrer quando qualquer coisa venha a interferir naquilo que para nós é
absolutamente natural”.
- E você aceitou isso?
- Fez-me pensar que a maioria das mulheres aqui é feliz como é, por isso
nunca tenta uma mudança, nunca questiona a sua condição.
- Você tem razão.
Enquanto ainda conversavam, Mirna avisou-as de que Ismael aguardava
Salema.
No caminho de volta para casa, Salema falou com Ismael sobre Lisa vir
morar com eles como sua dama de companhia e também sobre a possibilidade
de visitarem Nayla.
- Por que é tão importante para você visitar essa moça? Você mal a
conhece.
- Você sabe o que está se passando com ela?
- Sei, claro que sei, mas não há muito o que possamos fazer. Aliás, pelo
que ouvi, o rapaz com quem ela vai se casar deve chegar em breve.
- Sim, eu sei. Por isso mesmo gostaria de conversar com ela, tentar animá-
la de alguma forma. Dizer-lhe que pode ter uma chance de ser feliz, assim como
aconteceu conosco, não é mesmo? – respondeu Salema, achegando-se a ele.
- Está bem, vou fazer melhor ainda, vou convidá-los a nos visitar ainda
esta semana.
Salema sorriu e beijou-lhe a face, agradecida.
- Quanto a Lisa vir a ser a sua dama de companhia, não vejo nenhum
problema, desde que o pai dela permita.
- Ela disse que iria falar com ele ainda hoje.
- Vocês são amigas há muito tempo, não são?
- Crescemos juntas.
- Mas você sabe que ela é estrangeira e, embora tenha sido criada aqui, não
é como você.
- O que quer dizer com isso?
- Quero que tenha cuidado. Eu não quero a minha mulher de forma
nenhuma influenciada por qualquer pessoa que não seja eu – respondeu Ismael,
com um leve sorriso.
Ele apertou as mãos dela entre as suas e não disse mais nada, mas uma
sombra de preocupação pairou sobre Salema.
No dia em que Ismael havia marcado para receber Nayla e a família,
Salema acordou maldisposta. Não conseguia comer nada que ficasse mais de
cinco minutos no estômago. Cada vez que se punha de pé tinha a sensação de
que o quarto todo girava a sua volta. Não dormira quase nada naquela noite e
mal conseguia proferir as suas orações matinais.
Embora não fosse comum, Ismael tinha o hábito de dormir no quarto de
Salema. Quando acordou, percebeu que ela estava muito pálida e doente, e
imediatamente tentou ajudá-la.
- Você tem de ficar deitada. Vou lhe dar um medicamento e logo vai se
sentir melhor. Não coma nada. Não vai adiantar. Eu volto já.
- Ismael, chame minha mãe, por favor.
- Mas ela não vai fazer você melhorar, querida.
- Eu sei disso. Mas eu queria estar com ela.
- Está bem. Agora descanse. A propósito, falei ontem com o pai de Lisa e a
princípio ele vai permitir que a filha seja sua dama de companhia.
- Obrigada.
Quando Mirna chegou à casa de Salema, ela já tinha tomado o
medicamento que Ismael lhe dera e estava dormindo. Entrou no quarto da filha
em silêncio e ficou a observá-la. Olhou em volta daquele aposento e ficou
admirada. Tudo tinha um toque de Salema. Era possível reconhecer nas mais
pequeninas coisas os traços da filha que ela bem conhecia. Mesmo naquele
cestinho na cabeceira da cama, que estava repleto de objetos que fizeram parte
da infância dela. “Infância tão curta”, pensou Mirna. A sua menina era agora
uma mulher, adormecida naquela enorme cama de casal. Ao fitá-la assim tão
profundamente adormecida. Mirna não teve dúvidas. Ela não sabia se era a
serenidade no rosto ou o contorno do corpo da filha, ou ainda pura intuição,
mas ela tinha certeza de que Salema estava grávida. A sua Salema seria mãe.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Tantas lembranças vieram a sua mente
naquela hora. A sua própria infância, o casamento com Khalil, as meninas que
foram nascendo, uma depois da outra, levando seu Khalil para longe dela. Oh,
como ela desejava que Salema pudesse ter outra sorte. “Oh, Alá! Faz com que
Salema tenha um filho varão!!!”
Ao despertar, Mirna ainda estava ao lado da filha.
- Então, querida, o que está acontecendo?
- Agora estou melhor, mãe, mas estive muito maldisposta.
- Seu marido ainda não descobriu o que está acontecendo com você?
- Ele disse que pode ter sido alguma coisa que comi ontem à noite, mas
não sei definir o quê.
- Querida, não se preocupe, nada mais são do que sintomas que todas as
mulheres têm quando estão no seu estado.
- Que estado, mamãe?
- Você está grávida, querida, tenho certeza.
- Grávida? Mas como Ismael não percebeu isso antes? Você tem certeza,
mamãe?
- Peça a seu marido que confirme. Ele é o médico aqui – respondeu Mirna,
sorrindo da ingenuidade da filha.
- Então eu vou ter um filho, mamãe?
Ismael entrou no quarto nesse momento e ouviu as últimas palavras da
esposa.
- O que foi que você disse, Salema?
- Minha mãe disse que estou grávida.
Mirna riu-se do espanto do genro. Ela gostava dele, parecia um homem
bom e cuidava bem de sua menina. Ele era muito mais do que Salema poderia
esperar, e isso deixava Mirna descansada.
- Tem certeza? Há quanto tempo não... Oh, é claro, só pode ser. Todos os
sintomas. Como eu não percebi isso antes?
- E agora, o que eu faço?
- Você não faz nada. Só tem de esperar para trazer ao mundo o nosso
primeiro filho varão!
Salema não respondeu. Seu marido acabara de expressar o desejo de todos
os homens. Ter um filho varão. Seu olhar encontrou o da mãe. Mirna sabia o
que a filha estava pensando. Era o medo que surgia no coração de toda mulher
que descobria estar gerando um filho. E se aquela criança fosse uma menina? O
que faria ou como agiria Ismael se o primeiro filho deles não fosse um menino?
Não, ele não era igual aos outros homens. Ela tinha certeza. Ele continuaria a
protegê-la e a ampará-la como sempre fizera. Salema respirou fundo, sentindo o
peito apertado, e uma ponta de angústia brotou dentro dela, um sentimento
novo com o qual ela teria que aprender a conviver.
CAPÍTULO 13

Descoberta

Na hora prevista para a chegada de Nayla e da família, eles estavam lá.


Também Salema, já mais bem disposta, se encontrava na sala para recebê-los.
Todas as mulheres, como sempre ocorrem, quando estão na presença de
homens que não são da família, estavam usando o véu e a abaya. Era a primeira
vez que Salema recebia pessoas depois de estar casada, por isso estava se
sentindo um pouco insegura. A sogra, por sua vez, muito à vontade nessas
ocasiões, fazia as honras da casa. O avô e o pai de Nayla retiraram-se
imediatamente para outro aposento, e como sempre as mulheres ficaram
conversando na sala. Maya, a sogra de Salema, falava sem parar. Salema,
aproveitando a atenção dada a ela, convidou Nayla para se retirarem.
A casa em que Salema e Ismael viviam era do pai dele. Possuía vários
aposentos. A ala reservada às mulheres era repleta de quartos vazios, já que
ninguém mais, além de Salema e da sogra, vivia ali. Mas havia uma sala onde
ela gostava de estar, um lugar sem muitos móveis, mas aconchegante, arejado,
com portas de vidro que davam acesso a um viveiro artificial, onde pássaros
eram criados para encantar qualquer pessoa que ali pudesse estar. O que a
surpreendera, na primeira vez que entrara naquela sala, foi o ambiente criado
para que aquelas aves pudessem sobreviver. Num lugar tão quente como o que
viviam, era preciso muito cuidado para que as cores, o canto e a beleza das aves
fossem protegidos. Era naquela sala que Nayla e Salema conversavam agora.
- Oh! Eles são lindos! Eles me fazem lembrar a minha terra, minha família.
Em meu país, pássaros assim são muito comuns.
Enquanto Nayla falava, Salema admirava-se de sua fluência em árabe,
uma coisa que certamente era exigida dela, já que deveria ler o Alcorão. Também
o cabelo dela havia crescido, mudando-lhe um pouco as feições.
- É, eu gosto muito deste lugar. Eu passo muitas horas aqui. Gosto de me
sentar naquela poltrona e simplesmente relaxar com o canto dos pássaros.
- Você parece bem, Salema. Você é feliz com ele?
- Sim, você sabe que o meu casamento foi arranjado, como o seu...
Nayla desviou o olhar e abanou a cabeça num gesto de negação.
- Desculpe, mas você sabe que aqui as coisas são assim. O que eu não
esperava é que ele poderia me fazer feliz.
- E você está satisfeita?
- Eu não posso negar que situações como a sua me fazem pensar. Eu
gostaria de ver mudanças. Mas o que vejo são pessoas absolutamente
conformadas com a sua condição. Só que hoje eu posso entender muito melhor
a minha mãe; por exemplo, a vida dela e a forma como ela, de uma maneira ou
de outra, tem conduzido a nossa família.
- Mas há muito mais a ser feito, Salema, mas, por mais que eu olhe a meu
redor, eu vejo que, se Deus não intervir de uma forma que cause um grande
impacto, as gerações vão passar e nada de novo vai acontecer.
Mais uma vez, Nayla referia-se a Alá de uma forma diferente da habitual
para Salema, e isso lhe causava certa inquietação.
- Do que está falando, Nayla? Agora sou eu que não entendo. Alá
interveio no passado quando se revelou ao profeta. As nossas leis são por isso
todas moldadas de acordo com as revelações dadas por Alá a ele. Isso é óbvio
para qualquer um.
- Você está habituada a ler o Alcorão, não está?
- Sim, como é natural.
- Você tem ouvido falar também dos conflitos que estão acontecendo entre
países como seu e Israel?
- Ismael não gosta de compartilhar comigo assuntos desse tipo.
- Mas a verdade é que esses conflitos existem e nesse exato momento estão
ocorrendo. Porque, na verdade, eles sempre existiram.
- Não, eu realmente não sabia.
- Então provavelmente você não sabe quando é que esses conflitos
começaram.
- Realmente não.
- Se você tem o hábito de ler o Alcorão, deve saber da existência de
Ibrahim.
- Claro, ele faz parte da história do nosso povo, já que foi ele quem lutou
contra Satanás, que não queria que ele entregasse o seu filho Ismael a Alá.
- Eu sei, e isso aconteceu no monte Arafat, não é verdade?
Salema não sabia por que, mas seu rosto começava a arder, ao mesmo
tempo em que uma sensação desconfortável se apoderava dela.
- Sim, é isso, e por isso eu só posso saber sobre ele.
- Ouça, Salema, o que vou lhe dizer é algo profundamente sério, mas eu
quero que me ouça com atenção.
- Você parece nervosa, Nayla.
- É que eu tenho sofrido tanto, e poder falar sobre esse assunto com você é
a primeira coisa significativa que aconteceu comigo nos últimos meses.
- Agora eu é que estou curiosa.
- Você se lembra do livro que eu tinha em meu quarto quando você e Lisa
foram me visitar?
- Sim, algo muito pequeno, mas com muitas páginas. Eu confesso que,
depois daquele dia, embora nunca mais tivesse falado com Lisa a respeito,
fiquei muito curiosa.
- Então, aquele livro também é um Livro Sagrado. Só que não é o Alcorão.
- Você está me dizendo que existe outro livro além do Alcorão? Não,
Nayla, me desculpe, mas não posso acreditar nisso.
- É exatamente naquele livro que está relatado o primeiro conflito entre o
seu povo e os israelitas e de que forma isso aconteceu.
Salema estava agora muito nervosa. O seu estômago revirava e a cabeça
pesava-lhe. Pensou ser por causa da gravidez, mas na verdade não estava muito
certa disso.
- Ibrahim teve dois filhos, Ismael e Isaac. Ismael, segundo a Bíblia, que é o
nome dado ao livro a que me refiro, era filho de Hagar, uma escrava egípcia.
Isaac era filho de Sara, a verdadeira esposa de Ibrahim. Deus havia prometido a
Ibrahim que ele teria um filho e, embora ele fosse velho e a sua esposa também
e nunca pudessem ter filhos, ele acreditou em Deus. Mas Sara, por ansiedade e
desejo de ver a promessa de Deus cumprida, permitiu que sua escrava Hagar se
deitasse com seu marido – disse Nayla.
- E ela engravidou. Nascendo assim Ismael – completou Salema.
- Sim, o filho da ansiedade de Sara. Mas acontece que Deus não deixa suas
promessas por cumprir. E, quando Ismael já era um rapaz, Sara concebeu um
filho na sua velhice; esse, sim, o filho da promessa de Deus.
- Pelo que estou entendendo, você está querendo me convencer de que
Ismael não era importante para Alá.
- Absolutamente, não. Deus cuidou de Ismael. Depois que Isaac, Hagar e
seu filho foram rejeitados por Sara, que acabou por convencer Ibrahim a
despedir o seu filho e a escrava egípcia.
- Eu conheço parte dessa história.
- Pois, então. Eles foram andando, errantes, pelo deserto, sem saber para
onde ir. Quando a água acabou, Hagar tinha certeza de que seu filho morreria e
se afastou dele para não vê-lo partir. Ocorre que, segundo a Bíblia, Deus ouviu a
voz do menino, providenciou um poço no meio do deserto para que ele
pudesse saciar a sede e prometeu a sua mãe que dele nasceria um grande povo,
o seu povo, Salema.
- Mas, claro, quando vamos a Meca, uma das coisas que fazem parte do
ritual é representar a busca de água por Hagar.
- Então, não foi o próprio profeta que disse crer em Deus e naquilo que
tem sido revelado por Ibrahim, Ismael, Isaac, Jacó e as tribos? Não foi ele
mesmo quem afirmou acreditar nas revelações feitas também a Moisés, Jesus e
aos profetas?
- Eu sei, está lá escrito. Eu mesma já li o Livro Sagrado duas vezes, mas
você sabe que não compete a ninguém interpretar, apenas ler e aceitar.
- Eu sei disso, por isso mesmo gostaria que pensasse, Salema. Há muito
mais do que lhe tem sido ensinado.
- Mas o que eu não entendo é por que você não citou a história do
sacrifício.
- Por que não foi Ismael que Deus pediu a Ibrahim, e sim Isaac. Era Isaac o
filho que Deus tinha prometido, foi ele que Ibrahim levou ao monte a ponto de
sacrificá-lo, se preciso fosse. Mas, na verdade, o que Deus queria era provar a fé
de Ibrahim, e, para que Isaac não morresse, no exato momento do sacrifício,
Deus providenciou uma solução. Era um cordeiro que surgiu muito perto do
local do holocausto. E também de Isaac surgiu de um grande povo, os israelitas.
Para Salema, aquilo tudo era mais do que ela poderia acreditar. Estavam
ali conversando havia pouco mais de uma hora e tudo que ela tinha ouvido a
deixara atônita. Era a sua fé e as suas convicções que estavam sendo
contestadas, não apenas a sua fé, mas a fé de todo o seu povo. Ela não podia
permitir aquilo, ainda mais vindo de alguém que ela não conhecia. Lembrou-se
então do que ouvira da sobra algum tempo atrás: “Minha menina, não se deve
sofrer pelo que Alá considera natural, nem por aquilo que já faz parte de nós.
Nós só devemos sofrer quando qualquer coisa venha a interferir naquilo que
para nós é absolutamente natural”.
- Desculpe, Nayla, mas creio que a nossa conversa termina aqui. Eu não
conheço o lugar de onde vem nem aquilo em que crê. Eu sei que está sofrendo e
lhe digo sinceramente que gostaria de ver mudanças aqui também. Sei que,
como eu, há mulheres que desejam a mesma coisa, mas daí a contestar aquilo
que é a nossa verdade eu não posso aceitar.
- Eu sei que não deveria falar com você sobre esse assunto. Meu pai me
proibiu. E eu sei que corro risco ao falar com você sobre isso...
- Ainda mais porque tenho a sensação de que quando você fala de seu
Deus, não é a Alá que se refere.
- Eu sei, e não há nenhum Deus além de Alá...
- Pois, se você sabe disso, por que então...
- Desculpe, Salema, eu sei que não precisa acreditar em mim, mas, se
quiser saber mais sobre o que estou falando, converse com Lisa, vocês são
amigas, não são?
- Você está dizendo que Lisa sabe sobre esse assunto?
- Salema, desculpe-me, mas acho que está certa em dizer que nossa
conversa termina aqui. Eu falei mais do que poderia. Eu só lhe peço, já que sabe
de tudo o que estou passando, que não comente com ninguém essa conversa
que tivemos. Pode ser perigoso para nós duas.
Salema não pôde dormir toda aquela noite. Não conseguia deixar de
pensar no que ouvira de Nayla. Ismael não ficou com ela. Queria vê-la
descansada e preocupou-se com o fato de ela não estar se sentindo bem logo
após a visita de Nayla. Para ela, era impossível acreditar que tudo tivesse
acontecido como Nayla dissera. Ela mesma já havia, em meio a muitas dúvidas,
questionado a existência de Alá. Mas não poderia sequer imaginar outra fé que
não fosse a de seu povo. Suas leis eram moldadas por essa fé, suas vidas, sua
maneira de ver o mundo, enfim... É claro que havia situações incoerentes em
meio a tudo aquilo. Não fazia sentido a forma muitas vezes cruel como as
mulheres eram tratadas. Contrastando com o amor que Alá teria por seu povo,
isso realmente não fazia sentido. Mas daí a acreditar que a verdade do Alcorão é
relativa, que outro livro sagrado poderia ser mais importante que o seu livro,
que o deus que ela fora ensinada a amar e respeitar poderia não ser o único
deus do universo? Não, isso não! Essa era uma coisa que ela jamais aceitaria.
No dia seguinte, bem cedo, muito antes de qualquer pessoa acordar,
Salema já estava de pé. Não pregara o olho, e aquela sensação desconfortável
que começara a sentir desde a conversa com Nayla não a abandonara.
Levantou-se disposta a cumprir os rituais sagrados da sua religião. Ajoelhou-se,
era hora das primeiras orações matinais. Começou então a repetir o ritual das
orações que estava habituada a fazer todos os dias. Enquanto as repetia, os seus
pensamentos voavam. Sua cabeça doía. Pensou em Tanya. A tia havia sido
privada da liberdade, do amor que escolhera, da própria vida por causa daquilo
que para seu povo era a verdade. Pensou em Nayla. Ela também havia sido
tirada do convívio de quem amava, dos braços do homem a quem escolhera
para se casar, do seu país, da própria vida, enfim. Não, não havia diferença
entre as duas. Ambas estavas sofrendo, e tudo isso porque elas ousaram seguir
o próprio coração. Pensou em si mesmo, estava casada e era feliz. Tinha um
homem que a tratava com carinho, que a protegia e a quem daria um filho. E
que deveria ser um filho varão. Para o seu marido também a importância de
uma pessoa estava no fato de ser um homem ou uma mulher. As lágrimas
teimaram em aparecer. Era a primeira vez desde que se casara que se sentia
triste. Com a cabeça entre as mãos, deixou de lado as orações repetidas e
começou a falar com Deus.
“Oh, Alá, eu acredito que me conheces. Eu acredito que de onde estás tem
visto as aflições pelas quais tenho passado. Essas não são as milhas aflições, mas
as aflições de todo o meu povo, ou melhor, de todas as mulheres deste povo
que tu chamas teu. Em nome daquilo que é a verdade nós temos sofrido. Nossa
vontade não tem sido considerada, nossos corpos têm sido mutilados e usados,
nossas filhas têm sido rejeitadas. Muitas mulheres como eu têm sido mortas
todos os anos, pelos próprios pais, ou abandonadas pelos maridos em nome da
obediência à sua lei. Nós não temos identidade e não podemos decidir nem
querer mais do que os nossos pais ou maridos querem para nós. Foi isso que
planejastes para nós? Oh, Alá de todos nós, não há coerência entre ti e tudo o
que temos vivido. Oh, Alá de todos nós, concede-me que eu entenda a tua lei e
eu a aceitarei sem nunca mais contestar. Mostra-me onde está a tua verdade e
eu a perseguirei até o fim da minha vida.”
Fez-se silêncio no quarto. Salema continuava na mesma posição ajoelhada
com a cabeça entre as mãos. Não conseguia mover-se. Apenas orava baixinho.
Mas ela não estava mais só. Ela sabia. Havia mais alguém no quarto. Uma
presença que ela já conhecia embora nunca mais a tivesse sentido. O doce
aroma das flores que enfeitavam o quarto inundou o ambiente. Era ele, o
homem com quem ela havia sonhado tantas vezes. A mesma sensação de
conforto tomou conta dela. Ele tinha a capacidade de lhe tirar toda a ansiedade.
Ela não queria mover-se para não perder o conforto daquela intensa presença,
porque sabia que se o fizesse ele partiria. Ficou ali parada sem dizer uma
palavra, esperando pelo que aconteceria. De repente, uma voz suave como
jamais ouvira antes lhe soprou aos ouvidos uma frase que nunca mais
esqueceria: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão
por mim”.
Aquilo fez Salema estremecer. Levantou-se depressa e, como sempre, não
havia ninguém. Mas ela ouvira como se fosse o seu marido ou qualquer outra
pessoa falando. O que significava tudo aquilo?
Por que a presença daquele homem, e ela sabia que era uma pessoa,
embora não o tivesse visto nem ao menos uma vez, além de em seus sonhos,
tocava-a tão profundamente a ponto de dar-lhe esperança e ao mesmo tempo
despertar nela um desejo de estar com ele outra vez? Essa era a segunda vez
que em oração era inundada por aquela estranha sensação. O que isso poderia
significar? O que ele quis dizer com caminho, verdade e vida? A que pai ele se
referiu? Lembrou-se, então, de uma conversa que tivera com Lisa. Ela havia dito
qualquer coisa sobre o pai dela. Já não podia lembrar. Mas estava decidida. Lisa
e ela precisavam conversar.
CAPÍTULO 14

A verdade

Naquela tarde Khalil e toda a família vieram para visitá-los. Era


incomum Khalil dar-se ao luxo daquelas visitas, principalmente porque estava
muito ocupado, dividindo seu tempo entre as duas famílias que tinha e a
administração dos negócios. Sua esposa mais nova também estava grávida e
brevemente ele poderia gloriar-se ou não do sucesso de seu segundo
casamento. Mas o que o trazia ali era o fato de estar empenhado em ajudar o
genro na construção do novo hospital, por isso precisavam conversar.
As irmãs de Salema ficavam felizes todas as vezes que podiam visitá-la.
Subiam-lhe no colo, faziam-na mostrar toda a casa. Fartavam-se com as delícias
que Salema pedia que as criadas preparassem e corriam por todo lado, como se
estivessem na própria casa. Salim, o irmão mais novo, crescia a olhos vistos. Era
moreno como o pai, os olhos irradiavam alegria, principalmente quando podia
engatinhar pela casa ou quando era hora de Mirna alimentá-lo. E os reflexos de
estar sempre bem alimentado podiam ser vistos em sua barriga redonda e no
rosto corado e bolachudo.
Sema brincava com as irmãs. Ela era a irmã mais velha agora e
responsável por ajudar a ama a controlar toda a meninada. Salema olhou para a
irmã e uma sombra de preocupação pairou sobre ela. Sema havia crescido,
brevemente ela também seria uma mulher. Já era possível ver traços no seu
corpo das mudanças que começariam a ocorrer.
- Mãe, tem de impedir que Sema precise ser circuncidada.
- O que é isso, Salema? Isso não é assunto para falar diante de suas irmãs.
- Eu sei, mas nenhuma delas está me ouvindo agora. Você sabe do que
estou falando. Fale com o papai.
- Você sabe que decisões desse tipo são tomadas por ele. Eu não posso
questioná-lo.
- E por isso minhas irmãs terão de passar por aquele horror.
- Salema, tudo isso faz parte da proteção que Alá providenciou para nós.
Você tem de encarar as coisas dessa maneira.
Salema olhou para as irmãs. Fascinadas, tentavam chamar a atenção dos
pássaros através da vidraça. Sara, a caçula, era pouco mais que um bebê, ainda
não havia se acostumado com a idéia de perder o lugar que era seu no colo da
mãe e da ama para o pequeno Salim. Zangava-se facilmente por causa disso,
mas logo se esquecia de tudo quando a mãe lhe acariciava os cabelos ou
brincava com ela. Soraya era a irmã seguinte, com 4 anos de idade parecia uma
mocinha. A mãe contara a Salema que desde o seu casamento, a brincadeira
preferida dela e de Samira, que logo faria 6 anos, era arrancar o lençol das
camas e vestir-se com eles, fazendo-se passar por lindas noivas. Já Safia e Sinira,
já havia algum tempo preferiam estar mais sossegadas. Gêmeas, tinham 9 anos.
Agora as suas fantasias passavam a ser brincar que usavam o véu e a abaya,
como mulheres adultas.
- Mãe, há uma coisa que preciso lhe contar. Aliás eu venho tentando lhe
falar sobre isso há algum tempo, desde a última vez que seguimos para a
peregrinação.
Salema sentia que precisava confiar a sua mãe os últimos acontecimentos.
A conversa com Nayla e aquela confortante presença que a perseguia
ultimamente.
- Está acontecendo alguma coisa com você?
- Você se lembra de quando eu desmaiei ao redor da Caaba e depois lhe
disse que sentia a presença...
Khalil e Ismael entraram porta adentro naquele momento, chamando a
atenção de todos para o entusiasmo estampado em seus rostos. Salema ficou
admirada ao ver o seu pai tão à vontade ali no meio delas. Quanto a Ismael, ela
já se habituara a vê-lo entrar e sair dos aposentos sem restrições, mas para seu
pai isso não era muito comum.
- Salema, querida, vamos dar início à construção do hospital. E esse não é
o único projeto. Aliado ao hospital, vamos construir uma Escola de Medicina.
Vamos contratar os melhores professores, os melhores profissionais. Você vai
ver, vai ser um sucesso! E vamos inaugurá-lo com o nascimento do nosso filho.
- Você está pensando em contratar profissionais estrangeiros? – perguntou
Salema, interessada.
- Nosso país está crescendo, há muitos estrangeiros que querem vir para
cá. Bons profissionais que se juntarão com os profissionais que já temos, e
teremos um negócio de sucesso.
Mirna não disse nada, não estava habituada a falar muito na presença de
Khalil. Ele, por sua vez, sorria confiante. Estava realmente à vontade, parecia
motivado diante do novo projeto. Estava tão à vontade que seguiu a pequena
Sara, quando ela se achegou a ele e o puxou pelo braço para que prestasse
atenção nos pássaros, forçando-o até que ele se abaixasse e ficasse da mesma
altura. Então, sem que ninguém esperasse ou tivesse lhe ensinado, a pequena
Sara enroscou o bracinho em volta do pescoço do pai e deu-lhe um beijo
molhado na face. Por uns segundos ninguém disse nada, todos olhavam a cena,
atentos ao que se passara. Mas Khalil não resistiu aos encantos da filha,
começou a rir até se cansar, enquanto todos riam com ele. Pegou-a no colo e
beijou-a também na face corada, fazendo a rir sem parar. Isso foi o suficiente
para que todas as meninas e até Salim se enroscassem em volta do pai, que nem
por um segundo resistiu. Salema olhou para Mirna e entendeu o quanto aquilo
era importante para a mãe. Aquela era a sua família, e, independentemente das
tristezas e rejeições, pequenas manifestações de afeto como aquela eram a coisa
mais importante para ela. Os olhos da mãe estavam repletos de lágrimas.
Lisa chegou à casa de Salema uma semana depois da data prevista.
Estivera doente, com febre, e não pudera sair de casa até se recuperar. O pai de
Lisa havia concedido autorização para ela passar com Salema cinco dias da
semana, mas nos fins de semana Lisa deveria voltar para casa. Inúmeras
recomendações foram feitas antes que Lisa pudesse deixar a casa do pai e
seguisse para a sua nova morada. Todas elas eram importantes, mas a principal
era aquela que a jovem já sabia. Ela não poderia em hipótese alguma
compartilhar com Salema sua fé.
Salema, por sua vez, estava também ansiosa. Sentia que sua amizade com
Lisa havia esfriado pouco antes de seu casamento. Algo mudara na amiga, mas
ela não sabia definir o quê. Agora elas teriam de recuperar o tempo perdido.
Além disso, desde a última vez que conversara com Nayla e depois da
experiência marcante naquela manhã em seu tapete de oração, ela sentia que as
duas tinham muito o que falar. O quarto de Lisa era pequeno, mas
aconchegante, próximo ao de Salema. Ela estava instalada ali e ficara preparada
para qualquer eventualidade que Salema precisasse. Principalmente agora com
a gravidez, ela muitas vezes se sentia maldisposta e precisava de uma boa
companhia. Já Ismael, embora tivesse concordado com a vinda de Lisa, estava
preocupado.
- Salema, eu sei que você e Lisa são amigas, mas quero que tenha cuidado.
Ela veio para esta casa como sua dama de companhia. Ela vai trabalhar para nós
como os pais dela trabalham na casa de seu pai. Eu não gostaria de vê-la trocar
confidências com ela e muito menos gostaria que ela a influenciasse de alguma
forma.
- O que está dizendo? Antes de qualquer coisa, nós somos amigas. É claro
que Lisa sabe que virá para trabalhar, mas eu não posso ignorar o fato de que
nós crescemos juntas e que sempre compartilhamos tudo uma com a outra –
respondeu Salema, coma voz de quem não estava disposta a aceitar a opinião
do marido sem discutir.
- Pois então eu lhe digo que está proibida de fazer confidências a Lisa e de
falar com ela qualquer coisa que diga respeito à nossa vida, à nossa intimidade
ou a qualquer coisa ligada à nossa vida pessoal.
Era a primeira vez que Ismael lhe falava nesse tom. Salema ficou aturdida.
Por um momento em sua mente passou a idéia de que não conhecia de verdade
o marido, mas logo ele sorriu, a beijou na face e saiu. No mesmo instante Lisa
entrou, trazendo-lhe uma chávena de chá.
- O que está acontecendo, amiga? – perguntou Lisa, percebendo certa
preocupação no olhar de Salema.
- Nada que valha a pena comentar. Pode deixar que eu mesma resolvo.
Mas sente-se aqui. Acho que temos muito o que conversar. Você está melhor?
- Muito melhor agora. Você sabe que fico muito animada de estar aqui
com você.
- Seu pai não se opôs?
- Não, embora sempre haja recomendações, como é evidente.
Salema andou até a porta do quarto, abriu-a, olhou com cuidado de um
lado e de outro para certificar-se de que não havia ninguém. Mais tranqüila,
voltou a sentar-se ao lado da amiga.
- Você se lembra, Lisa, quando lhe falei sobre alguns sonhos que tive e de
como uma forte sensação, como se a presença de alguém estivesse comigo,
apoderava-se de mim de vez em quando?
- Sim, claro que sim. Você me contou isso faz algum tempo, mas depois
nunca mais falamos sobre o assunto.
- Pois, então, na verdade isso nunca mais havia acontecido até há uns dez
dias, depois de uma conversa que tive com Nayla.
- Você conversou com Nayla sobre isso?
- Não, foi depois. Mas cada vez que isso acontece eu fico mais
surpreendida. Só que dessa vez foi diferente, ele falou comigo.
- O que está dizendo, Salema? Ele falou com você?
- Sim, e o que ele disse não sai da minha mente desde aquele dia.
- E o que foi que ele lhe disse? – perguntou Lisa, curiosa e um pouco
ansiosa.
- “Eu sou o caminho, a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai senão por
mim.” E ele disse isso com a voz mais doce e mais suave que já se ouviu.
- Oh! Eu não posso acreditar! Ele lhe disse isso?
Salema, pensando que a amiga pudesse achar que ela estava
enlouquecendo, estava prestes a deixar o assunto de lado, tal era a expressão de
espanto no rosto de Lisa. Mas, quando fez menção de mudar de assunto, Lisa
pediu-lhe:
- Conte-me o que Nayla lhe disse.
Salema contou a Lisa tudo o que Nayla havia lhe revelado. Toda a história
de Ibrahim, do filho Ismael e também do filho Isaac. Contou do sacrifício do
cordeiro em lugar do filho que Deus havia pedido a Ibrahim. Contou sobre
como ela não acreditara em tudo aquilo. Ela não podia aceitar que houvesse
outro deus além de Alá.
Enquanto Salema falava, Lisa orava baixinho. “Deus, tu sabes que eu não
posso sequer abrir a minha boca para falar de ti neste lugar. Eu tenho medo por
mim e pela minha família. Mas se tu queres que eu diga qualquer coisa a
Salema, protege-me.”
- E não há, Salema. Não há outro deus além de Alá. Porque o Deus sobre o
qual Nayla falou e o Deus em que você crê são a mesma pessoa.
- Mas como pode ser, se o que Nayla me disse é completamente diferente
da verdade?
- Salema, o que eu vou lhe dizer é muito sério. Minha família proibiu-me
de compartilhar com você, mas eu não posso mais me calar. Eu sei que algo
muito sério está acontecendo. E você precisa saber o que é.
- Você está me assustando, Lisa.
- Eu vou lhe falar e creio que vá entender, mas de qualquer forma tem de
me proteger, se é verdade que se importa comigo, que nunca vai dizer a
ninguém que fui eu que lhe falei sobre isso.
- Pode ficar tranqüila, Lisa.
Agora foi a vez de Lisa levantar, andar até a porta do quarto e verificar se
não havia ninguém nos corredores.
- As palavras que essa pessoa que faz parte dos seus sonhos lhe disse estão
escritas no livro de que Nayla lhe falou, exatamente como você as citou.
- Eu não acredito.
- Você já ouviu falar de um profeta chamado Jesus, não ouviu?
- Sim, ele foi um profeta que nasceu entre o povo judeu.
- Pois ele é o homem dos seus sonhos.
- Ora, agora você está zombando de mim.
- Eu nunca falei tão sério, Salema. Jesus, que segundo a Bíblia é o filho de
Deus, é o homem com quem você tem sonhado.
- Está vendo como não estamos falando do mesmo Deus? Alá nunca teve
filhos.
- Teve sim, Salema. Mas não um filho qualquer, e sim um igual a ele, em
essência, eternidade, vida e amor.
- Você está me dizendo que esse profeta era igual a Deus?
- eu estou dizendo que esse profeta era e é o próprio Deus.
- Agora eu acho que você enlouqueceu mesmo. Já sei porque não posso
contar a nossa conversa a ninguém. Certamente iriam interná-la em algum
hospital para loucos.
Salema estava nervosa. Aquela conversa a incomodou. Teve a mesma
sensação que sentira quando Nayla falou. Era como se tudo em que tinha
acreditado até ali estivesse correndo perigo.
- Pense bem, Salema. Tudo isso tem a ver com seus sonhos. Por que acha
que alguém que não conhece lhe daria essa enorme sensação de conforto e
esperança que sente perto dele? Tente pensar nas circunstâncias que a levaram
a sentir a presença dele. Pense nas palavras que ele lhe disse. Como é que você
poderia ser capaz de inventá-las, se nunca leu nenhuma linha da Bíblia?
- Eu não sei, mas também acreditar não posso no que você está falando.
- Você se lembra de quando conversamos sobre por que Alá permite tantas
diferenças? Nem você nem eu entendíamos. Mas tanto você como eu quisemos
saber. Pois eu lhe digo que seus sonhos são a resposta que procura. Hoje eu sei
que são.
- Como pode saber isso?
- Salema, desde pequena leio a Bíblia. Mas, antes de poder compreender
tudo o que eu estou tentando lhe explicar agora, quanto mais eu lia mais
dúvidas eu tinha, porque eu sabia que estava diante de duas realidades
completamente diferentes e tinha de descobrir onde estava a verdade.
- E como foi que você descobriu?
- Eu falei com Deus. Eu não queria escolher a religião certa. Eu queria
conhecer ele. Isso aconteceu na mesma altura em que você começou a duvidar
da existência de Alá, lembra?
- Claro, mas você sabe que a viagem a Meca me levou a considerar que eu
estava errada.
- Mas por quê? Não foi lá que a presença do homem dos seus sonhos foi
mais marcante?
- Você está querendo me convencer de que no momento mais sagrado da
peregrinação era esse profeta Jesus que estava lá ao meu lado? Lisa, não é
possível.
- Salema, eu estou lhe dizendo que quem estava lá era o próprio Deus,
tentando se mostrar para você.
- Está bem, digamos que tudo isso seja verdade, mas agora isso não muda
nada.
- Mas você não vê que ele está a lhe dar uma direção? Ele disse ser o
Caminho, a Verdade e a Vida. Isso significa que ele é mais que um profeta, ele é
tudo o que você tem buscado.
Salema começou a andar pelo quarto completamente agitada. Parou
diante do espelho e ficou impressionada por ver a sua face tão vermelha e
queimando como fogo. Começou a escovar os longos cabelos. Não queria ouvir
mais, não queria pensar. Aquilo tudo não poderia ser verdade. Nayla e Lisa
tinham outra religião, era isso, e agora estavam tentando convencê-la de que ela
estava errada.
Ismael estava certo, ela tinha de ter cuidado.
- Salema, se você olhar ao redor, vai ver que todos nós somos maus,
erramos, condenamos, invejamos e fazemos toda sorte de coisas que
desagradam a Deus.
- Isso é verdade, mas, se nós formos bons, dermos as esmolas necessárias,
orarmos como o profeta ensinou, nossos pecados serão perdoados.
- Ouça, Salema, por mais que nós possamos fazer coisas boas, jamais
deixaremos de ser pessoas más por natureza. Olhe ao redor. Você mesma não
fica indignada com tantas tristezas pelas quais as mulheres do seu povo têm
passado?
- Isso é verdade.
- Pois Deus, sabendo disso, providenciou um meio para que pudéssemos
ter uma chance de ser diferentes.
- O sacrifício dos cordeiros e animais durante a peregrinação.
- O sacrifício de um único cordeiro, que foi morto e de uma vez só nos
libertou de todos os nossos pecados.
- Que cordeiro poderia ser sacrificado e libertar todas as pessoas ao
mesmo tempo e de uma só vez?
Agora era Lisa quem tremia. Falar para sua melhor amiga sobre a sua fé
era mais do que ela poderia agüentar. A emoção tomou conta dela quando
disse:
- Jesus, o filho de Deus. Esse que tem lhe dito que é o caminho. É isso,
Salema. Ele é o caminho que nos leva a descobrir não qual é a verdadeira
religião, mas a porta para um relacionamento muito especial com Deus.
- Mas, se ele morreu, como é que Le pode mostrar-me qualquer coisa?
- Ele está vivo, Salema. Tão vivo que tem estado com você todo o tempo.
Ficou morto apenas três dias. Passados esses três dias, ele voltou a viver outra
vez.
- Eu nunca ouvi falar de alguém que tivesse morrido e voltado à vida.
- Pois isso faz toda a diferença. Ele não é apenas um profeta. Ele é um rei,
Salema, e é o homem de seus sonhos, pense nisso. A partir disso que estamos
falando, só você pode decidir o que quer. Eu lhe prometo que não volto a falar
nesse assunto, a não ser que você realmente queira.
CAPÍTULO 15

A fuga

Imediatamente após Lisa deixar o quarto, Salema seguiu atrás dela. Mas
desistiu de conversar. Não, ela não queria ouvir mais nada. Era um assunto no
qual ela não queria sequer pensar, quanto mais falar sobre ele. Correu
apressada até o escritório onde estava Ismael. Entrou sorrateira, tentando não
interromper o trabalho do marido. Ele estava empenhado em analisar a planta
do novo hospital, que já havia sido aprovada. Agora era apenas contratar os
trabalhadores que colocariam aquele edifício em pé, e Ismael já estava
providenciando tudo isso.
Quando Salema entrou, ele ergueu os olhos dos papéis, mas não percebeu
a apreensão da esposa. Ela não lhe disse nada. Sentou-se na poltrona em frente
a ele por alguns instantes, mas logo se pôs de pé e começou a andar de cá para
lá.
- Posso ajudá-la em alguma coisa, querida?
- Eu precisava conversar com você.
- Desculpe, mas agora não posso. Há muito para fazer, e eu tenho pouco
tempo até começarmos a construção.
- É algo importante.
- Algo importante, mas que pode esperar. Por favor, Salema, eu preciso
trabalhar.
Ela deixou a sala pensativa. Não sabia se teria tido coragem de contar ao
marido sobre as conversas que tivera com Lisa. Afinal, a amiga pedira que ela
não falasse com ninguém. Ismael também a proibira de ter segredos com Lisa, e,
se ela falasse, aquilo poderia causar enormes problemas tanto para Lisa como
para Nayla. Não, foi muito melhor não dizer nada. Ainda bem que Ismael não
lhe deu atenção.
- Salema, venha ouvir a novidade. Veja o que aconteceu com a sua nova
amiga.
Era Ismael abrindo a porta do escritório, chamando-a rapidamente e
parecendo apreensivo.
- De que está falando?
- Nayla. Acabei de receber um telefonema do pai dela. Ele está
nervosíssimo.
- O que está acontecendo com Nayla?
- Ela fugiu ontem à tarde.
- Oh, enfim ela conseguiu!
- Você sabia de alguma coisa sobre isso?
- Claro que não, mas não é segredo que a situação dela me incomodava
muito.
- O pai está colocando todas as autoridades a postos. Uma mulher não
pode sair do país sozinha sem uma autorização por escrito. Ela não vai
conseguir.
- Pois eu espero sinceramente que ela consiga.
- Salema, você sabe o que o pai pode fazer com ela se a encontrar não
sabe?
- Talvez não seja pior do que já fez ao trazê-la para cá.
- Ele pode matá-la, e ninguém pode condená-lo por isso.
- E você concorda com isso, Ismael? – perguntou Salema, inflamada pelo
fato de o marido parecer estar disposto a ajudar a recuperar a jovem.
- Ele me telefonou me pedindo que eu falasse com você. Ele pensa que,
como na última vez em que ela esteve aqui vocês conversaram durante tanto
tempo, talvez ela tenha deixado escapar alguma idéia sobre a fuga.
- Eu não sei de nada. Nós nem sequer falamos sobre esse assunto. Mas
mesmo que eu soubesse de alguma coisa, Ismael, você acha que eu seria capaz
de entregá-la?
- Salema, ela não vai conseguir fugir, vai ser encontrada mais cedo ou mais
tarde, e para o seu bem é melhor que você não tenha nada a ver com isso.
Salema surpreendeu-se com o tom de voz do marido. Era a segunda vez
no mesmo dia que ele falava com ela daquela maneira. Mas o que a preocupava
mesmo era Nayla. Praticamente esquecida da conversa anterior que tivera com
lisa, ela foi procurar a amiga. Precisava contar-lhe o que estava acontecendo
com Nayla. Afinal, elas também tinham se tornado boas amigas. Acabou por
encontrá-la na cozinha, ajudando as empregadas a preparar o almoço.
- Lisa, tenho algo a lhe falar. Por favor, venha comigo.
As duas entraram na sala dos pássaros e fecharam a porta. Sempre que
alguém entrava ali, as aves agitavam-se, batendo com o bico na vidraça,
tentando chamar a atenção de quem chegava. Mas agora a beleza dos pássaros
não interessava a elas. Havia algo mais sério para falar.
Quando pai de Nayla chegou com a filha, espantou-o o sofrimento que o
rapto havia causado a ela. Para ele a menina deveria aceitar como natural o fato
de ter de obedecê-lo. Ele a amava, mas jamais aceitaria a idéia de que ela se
casasse com quem quer que fosse além do homem que ele havia escolhido
desde que era ainda uma menina. A mãe de Nayla sempre soubera disso. Ela
não deveria ter alimentado o sonho da filha de casar-se com quem quisesse. Ela
era a única culpada de a filha sofrer agora. Tentou então ocupar a filha com
atividades que pudessem despertar-lhe o interesse. Contratou uma professora.
Ela teria aulas todos os dias de árabe e inglês. O pai queria que a filha pudesse
sentir que ele estava muito interessado em seu bem-estar e em que ela pudesse
ali mesmo aprender muitas coisas. Assim, com certeza, pensava ele, Nayla
aceitaria afinal seu destino. O casamento tinha sido marcado, mas não havia
pressa. Claro que a jovem precisava de um tempo para se adaptar à sua nova
vida. O avô de Nayla costumava dizer que o filho estava relutante em fazer o
que deveria ser feito e pensava que isso se devia ao fato de ter vivido muito
tempo fora do país, o que o tornara flexível demais.
- Filho, tenha cuidado, essa jovem não foi criada como nossas mulheres
são criadas. Há nela uma influência do mal que ainda vai lhe causar problemas.
- O que quer que eu faça. O rapto e a viagem até aqui já foram um grande
pesadelo para ela. Eu não posso obrigá-la de uma hora para outra a aceitar essa
situação.
- Vê como fala? Aquilo não foi um rapto, filho. Você fez apenas o que
deveria ter sido feito já quando ela nasceu.
- Pai, você pode confiar, sei o que estou fazendo. Na data do casamento,
Nayla estará pronta para se casar e ser uma esposa muçulmana como deve ser.
As aulas de Nayla começaram numa tarde em que ela estava disposta a
tudo, menos a aprender alguma coisa. Desde que chegara, a única coisa que a
motivava era o fato de que, embora lhe tivessem tirado tudo, ninguém lhe
poderia tirar a convicção de que Deus estava com ela. Também a lembrança da
família, dos amigos e de Renato, seu amado, a fazia permanecer firme no
propósito de que mais cedo ou mais tarde sua situação mudaria. Ela não sabia
ainda como, mas tinha a convicção de que algo aconteceria. Pensando assim, ela
resolveu obedecer e esperar. Foi então que encontrou a professora pela primeira
vez, uma inglesa que vivia ali havia alguns anos com o marido. Ambos eram
professores e ensinavam na universidade.
- Então você é a jovem que chegou a pouco tempo da América do Sul? –
perguntou a senhora, para iniciarem uma conversa.
- E você é a professora que vai ficar comigo todos os dias, segundo minha
avó me disse?
- Muito bem, vejo que possui bom conhecimento de inglês. Embora
tenhamos de corrigir essa pronúncia, acentuada pela influência do seu idioma
original.
- Eu sempre freqüentei uma escola de línguas. Meu pai sempre achou
importante que eu aprendesse novas línguas, e agora eu entendo por quê.
- Do que está falando?
- Minha avó não lhe contou?
- Sim, contou-me que você chegou com seu pai, há algumas semanas, e
que deseja muito aperfeiçoar o árabe e o inglês, já que agora vai viver aqui.
- É verdade.
- Então, para iniciarmos, quero que saiba que teremos duas aulas por
semana de inglês e três aulas por semana de árabe. Pelo que sei, seu pai está
interessado em que aprenda depressa.
Nayla não sabia por que, mas algo chamou a sua atenção naquela mulher.
Parecia simpática e agradável, mas havia algo mais que ela não podia definir,
porém que a fez ficar muito à vontade para estudar com ela.
- Muito bem, vamos começar. Quero que me fale um pouco sobre você. Do
que gosta e do que não gosta de fazer. Ouvi que vai se casar, é verdade? Foi por
isso que decidiu vir viver aqui?
- Eu não decidi.
- Como assim? O que quer dizer com isso?
E Nayla contou-lhe tudo o que lhe acontecera. Desde os preparativos para
o casamento, o rapto, o noivo que ficara esperando por ela na igreja, a viagem
forçada. Os seus documentos, que lhe foram tirados assim que entrara naquele
avião, sonolenta e estática por causa do efeito do medicamento que o pai a
obrigara a tomar. Enfim, contou-lhe tudo o que acontecera para que ela
estivesse ali agora, forçada a viver num país que não era o seu.
Ires, a professora, ficou chocada. Ninguém lhe havia contado nada a
respeito, e enquanto ouvia a história daquela jovem sentia um aperto no peito
diante de uma situação tão difícil como aquela. Mas não disse nada. Terminou a
aula e saiu não sem antes lhe dar alguns trabalhos para fazer até o dia seguinte,
quando estariam juntas outra vez.
Na aula seguinte, Ires chegou na hora marcada, e Nayla já a estava
esperando. A professora tinha liberdade de estar com seus alunos em
particular, mas desde que entrara no país havia assumido o compromisso de
não falar nada sobre religião, política nem sobre outro assunto que pudesse
causar dúvidas a qualquer um deles. E ela nunca tivera problema em cumprir
esse acordo até ali. Mas agora era diferente. Estava diante de uma situação à
qual não podia ficar indiferente, por isso precisava conversar com aquela
menina.
- Nayla, você não é muçulmana, não é?
- Não, esse foi um dos motivos que fizeram meu pai abandonar a minha
mãe há alguns anos, quando ela se converteu ao cristianismo.
- Eu já deveria ter imaginado. E o seu noivo? Também é cristão?
- Sim. Mas por quê?
- Porque desde que me contou como veio parar aqui, eu não pude pensar
em outra coisa. Falei com o meu marido, e queremos tentar ajudá-la.
- O que quer dizer com isso?
- Que a sua situação não é justa. É uma violação do direito de ser livre, e
por isso alguma coisa tem de ser feita.
- Mas, pelo que vejo, ninguém aqui é livre, nem mesmo a senhora.
Desculpe, mas como poderia ajudar-me?
- Eu e meu marido temos de viajar daqui a alguns meses de volta à
Inglaterra. Deveríamos permanecer seis meses, por causa do casamento de um
de nossos filhos, mas agora vejo que teremos de ir definitivamente.
- Por que está dizendo isso?
- Porque vai conosco.
- Como? Uma das coisas que meu pai fez questão de frisar é que eu jamais
conseguiria fugir, pois uma mulher não viaja sozinha, sem a autorização do
marido ou do pai. Como posso ir com vocês?
- Eu sei disso. Nem eu posso viajar sem a autorização do meu marido.
Uma mulher não pode, mas um rapaz sim.
As duas continuaram encontrando-se todos os dias da semana para as
aulas. Enquanto estavam juntas, Nayla procurava aprender rápido, queria
mostrar ao pai que estava interessada. Ela não gostava nada de fazer aquilo,
mas não via outra maneira de conseguir sair daquele pesadelo.
Algumas vezes o desespero tomava conta dela. Achava que já não tinha fé,
que estava de uma forma ou de outra deixando de confiar em Deus para confiar
em si mesma e na sua capacidade de elaborar um bom plano de fuga. Será que
Deus queria que ela ficasse ali? Nunca dessas ocasiões em que não conseguia
encontrar uma resposta, lembrou-se de um homem de Deus que, como ela,
também teve de fugir escondido dentro de um cesto, para não ser apanhado por
aqueles que o perseguiam. Lembrou-se ainda de uma mulher que, justamente
pela fé, escondeu os espias para protegê-los. Estaria Deus de acordo com o que
ela estava fazendo? Ela tinha orado tanto! Sua família e os amigos com certeza
estavam orando também. Durante o tempo das aulas, porém, aluna e professora
estudavam detalhadamente o plano de fuga. Nayla estava admirada com o que
aquelas pessoas estavam fazendo por ela, abrindo mão da própria vida ali para
ajudá-la. Teria o SENHOR os enviado? Ela realmente não sabia.
No dia da fuga, Ires chegou como de costume, pontualmente às 2 horas da
tarde. Naquele dia, como já haviam feito outras vezes, ela pediu à avó de Nayla
uma autorização para levar a menina à universidade, alegando que esses
contatos com outras estudantes iriam ajudá-la a aperfeiçoar a sua
aprendizagem. Depois de quarenta e cinco minutos, o avô, Ires e Nayla
chegaram ao destino. O véu que cobria o rosto das duas impedia que alguém
visse o quanto estavam nervosas.
- Como o senhor sabe, nós devemos nos demorar toda a tarde. O senhor
pode nos esperar aqui? – perguntou Nayla ao avô, tentando conter o tremor que
se apoderava de todo o seu corpo.
- Sendo assim, volto para buscá-la às 6 da tarde.
Com essas palavras, deixou-as na porta da entrada da ala feminina da
universidade. As duas entraram, e qualquer pessoa que pudesse vê-las julgaria
que estavam muito apressadas. Passados quinze minutos, um carro estacionou
no mesmo portão onde estivera o avô de Nayla. Sem dizer nenhuma palavra,
ambas entraram no carro. Ali mesmo, escondidas atrás do cortinado do carro,
Nayla se transformou no filho do casal Kevin e Ires. Os cabelos da menina
haviam crescido, mas não o suficiente para que não pudessem ser aparados
como os cabelos de um rapaz. Lentes de contato azuis, uma roupa tipicamente
masculina e um chapéu combinado transformaram-na rapidamente em alguém
muito parecido com o rapaz da fotografia que estava naquele passaporte. Por
um descuido, eles tinham nas mãos o passaporte do filho, fato que já lhe havia
causado problemas, pois vivia na Inglaterra e não podia viajar. Mas, pensou
Ires, quando ele souber como aquele documento pôde ser útil, certamente
esquecerá os transtornos.
Nayla tremia sem parar. Ires alertou-a de que, se ela demorasse qualquer
nervosismo na alfândega, eles poderiam ser apanhados.
- Não diga nada, vamos deixar que Kevin vá à frente e trate de tudo.
Chegou o momento do embarque. Kevin entrou na frente com o
passaporte da esposa e do filho de 18 anos. O homem da fiscalização olhou os
documentos detalhadamente, enquanto o medo de que ele percebesse que não
havia carimbo de entrada no país no passaporte apoderou-se de Ires. Nayla, por
sua vez, orava baixinho: “Deus, perdoe-me, perdoe a minha falta de fé. Tu sabes
como me sinto por sair daqui dessa maneira, ajude-me, por favor, ajude-me!”
Olhando fixamente para o rosto do jovem à sua frente, mas sem nenhuma
dúvida sobre a identidade do rapaz, ele os deixou seguir.
Tinham conseguido. Iriam agora direto para o país europeu mais próximo.
Ali, entrariam em contato com a família de Nayla e alugariam um carro para o
restante da viagem. Enquanto isso, faltavam ainda cerca de duas horas para que
o avô de Nayla fosse buscá-la na universidade.
Na sala dos pássaros, Lisa pensou que fossem voltar a falar sobre a última
conversa que tiveram e ficou espantada quando Salema lhe disse:
- Nayla fugiu.
- Oh! Então ela conseguiu?
- Você sabia disso, Lisa.
A jovem abaixou a cabeça e não conseguiu fitar a amiga.
- Sim, eu sabia. Há muito tempo ela me disse que fugiria. Quase todas as
vezes em que nós nos encontrávamos, quando a família ia visitar o seu pai,
notava que ela estava mais convicta de que conseguiria.
- Isso é muito sério, Lisa. Ninguém pode saber que você estava a par do
assunto.
- É eu sei, mas ela nunca me disse como faria, pois nossas conversas eram
curtas. A avó de Nayla achava que ela não deveria conversar comigo.
- Então não há nenhuma hipótese de sabermos como ela fez para fugir.
- Talvez haja, porque na semana em que estive doente coincidiu de eles
passarem por lá. E, naquele dia, ela me entregou um envelope e pediu que eu
lhe desse.
- Uma carta para mim?
- Eu não sei, o envelope está fechado. Mas eu julgo que sim. Naquele dia
ela se despediu de mim, como se nunca mais fôssemos nos encontrar.
- Mas ela tem muito poucas chances de conseguir. Temo o que possa
acontecer se ela for apanhada.
- O pai deve estar furioso. Pelo que ela me disse, o casamento estava
marcado para daqui a duas semanas.
- É isso, mas, por favor, dê-me o envelope. Onde ele está?
- No meu quarto, mas escondido. Quando você estiver descansando à
tarde, após o almoço, eu levo para você. Mas tem de ter certeza de que Ismael
não estará lá.
- Fique descansada. Ele me disse que sairia logo à tarde para dar início ao
projeto do hospital.
Salema não conseguiu nem almoçar com tranqüilidade. Aliás, aqueles
enjôos todos os dias a incomodavam tremendamente. Ismael disse-lhe que logo
iriam passar, pois era uma reação normal do corpo. Ele explicara que quando
uma mulher engravida é natural que o organismo rejeite o ser que começa a ser
gerado, e o corpo demonstra isso pelos enjôos. Salema ficava orgulhosa quando
o marido ensinava todas essas coisas a ela. Nessas ocasiões ele era carinhoso e
atencioso, como no primeiro dia, o que a fazia deixar de lado suas dúvidas e
ansiedades. Mas naquela tarde os enjôos não eram por causa da gravidez. A
fuga de Nayla a estava preocupando muitíssimo. No fundo ela desejava
ardentemente que a amiga conseguisse. Ela não sabia por que, mas alguma
coisa lhe dizia que Nayla havia conseguido. Mesmo assim, o seu coração estava
apertado.
Fazia pelo menos uma hora que estava esperando Lisa, que não aparecia.
De repente, a porta se abriu.
- Você tem certeza de que seu marido não vai chegar a qualquer
momento?
- Fique tranqüila, ele só estará de volta no início da noite.
- Aqui está. Salema, tome cuidado. Isso pode ser perigoso.
- Eu sei, mas eu preciso saber. Se ela quis me dizer alguma coisa, tenho o
direito de saber.
Salema abriu o envelope. Era realmente uma carta. Algumas páginas
escritas à mão, parte em árabe, mas a maior parte em inglês. Dentro do
envelope havia também algo que não era comum para ela. Uma fotografia. Era
o rosto de Nayla, os mesmos cabelos curtos que ela tinha quando chegou, mas
um sorriso brilhante que se refletia também nos olhos da jovem. Para o seu
povo, as fotografias eram proibidas. Mas Nayla lembrara-se dela e fizera
questão de deixar-lhe o retrato. Salema começou então a ler devagar o conteúdo
da carta e, enquanto lia, as lágrimas escorriam pela face, inundando as páginas
com tanta emoção. Lisa ficou ao lado da amiga, calada, mas também
visivelmente emocionada. E Nayla escreveu:

Querida Salema,
Quando esta carta chegar às suas mãos, provavelmente eu já não esteja
mais aqui, mas não poderia partir sem lhe dizer que neste pouco tempo em que
estivemos juntas eu aprendi a amá-la. Eu nunca vou esquecer o nosso primeiro
encontro, quando foi à minha casa, lembra-se? Desde o princípio você foi
solidária comigo. Eu nunca pensei que num país como este pudesse haver
mulheres que, como você, almejam ver diferenças. Você é especial, Salema. É
especial porque sonha e porque está em busca de algo novo, de algo que eu
tenho certeza há de encontrar, porque é seu de direito, aliás, é direito de todos
nós.
Eu vou em busca da minha liberdade. Não se preocupe comigo, eu espero
conseguir. Eu só lhe peço que assim que ler esta carta a destrua, para que
ninguém possa encontrá-la, porque minha fuga envolve outras pessoas que
poderiam sofrer por minha causa, e não quero que isso aconteça. Eu sei que
corro riscos até por escrever, porque alguém pode encontrá-la comigo, ou com
Lisa, antes mesmo que a possa ler, mas resolvi arriscar porque o que eu tenho
para lhe dizer é tão importante que os riscos valem a pena. Eu não poderia ir
embora sem antes compartilhar com você alguém que é muito importante para
mim. Alguém que você conhece como profeta, mas que eu tenho conhecido
como Deus. O Deus que você acredita distante, mas que eu tenho aprendido
que se relaciona comigo. Um Deus que, como você sabe, é em essência Todo-
Poderoso, mas que justamente por isso é capaz de nos amar. Um Deus que se
relaciona conosco nas pequenas coisas, que se importa com aquilo que
sentimos, com as nossas angústias, sofrimentos, que com certeza sabe a dor do
seu coração. Um Deus que é capaz de me perdoar, mesmo neste momento de
insegurança em que não consigo entender qual é a vontade dele para mim. Eu
sou frágil, Salema, mas o Deus que eu amo me aceita como sou e me perdoa. Às
vezes eu fico me perguntando por que passei pelo que passei. Mas hoje eu sei
que, se não tivesse aqui, se não tivesse sentido na pele o que é ser uma mulher
neste lugar, tudo isso seria uma realidade muito distante para mim, mas agora
eu sei. Mas, muito antes que eu soubesse, ele sabia. Esteja certa de que Deus a
ama e quer lhe mostrar um caminho. Abra os olhos e veja o que ele quer lhe
mostrar. Ouça a sua voz, certamente ele quer falar com você. Ele é Deus,
Salema, mas não está longe. Suas mãos estão estendidas para quem quiser tocá-
las, basta segui-lo, e ele lhe mostrará um lugar especial, onde não há dor, nem
distinção, nem discriminação. Apenas a sua doce e confortadora presença.
Pense nisso, amiga. Eu vou orar por ti. Hoje eu sei que posso, pois vivi em
minha pele a dor de ser como você. Não se esqueça também de que em
momentos difíceis, quando não puder ser entendida, será ele quem fará toda a
diferença em sua vida.
Provavelmente não nos vejamos mais, mas, se for em busca do seu
caminho, certamente um dia, naquele lugar especial de que lhe falei, vamos nos
encontrar.
Já com saudades,
Nayla

Salema terminou de ler a carta visivelmente emocionada. Elas tinham se


relacionado tão pouco, no entanto a amiga lhe dizia que a amava. Aquela carta
a surpreendeu. Entregou-a a Lisa para que pudesse ler também. Não, aquilo
não poderia ser coincidência. Nayla não podia saber de seus sonhos e dos
encontros que tivera com aquele a quem Lisa disse ser o profeta Jesus. No
entanto, ela praticamente descrevera as suas emoções e sensações como se
soubesse. Falara também de um lugar, que, pela descrição da amiga, era o lugar
de seus sonhos. O lugar com o qual sonhara tantas vezes e onde, segundo
Nayla, um dia poderiam encontrar-se.
- Você entende agora o que eu falava pela manhã?
- Lisa, eu quero que me traga uma Bíblia. Quero lê-la.
- Eu não posso fazer isso, é perigoso. Meus pais jamais permitiriam que eu
trouxesse uma Bíblia para você.
- Pois então copie trechos para mim. Eu preciso conhecer o que diz esse
livro.
- Copiar? Eu não sei. Confesso que tenho medo, Salema.
- Por favor, Lisa. Eu preciso saber.
- Eu vou tentar, Salema, mas você sabe o risco que corre se seu marido
encontrá-la lendo coisas como essas.
- Nayla arriscou-se para que eu pudesse ler esta carta. Ela poderia ter sido
apanhada, você sabe.
- Mas há alguém que se arriscou muito mais por você, Salema, por mim e
por todos nós, e se quiser poderá conhecê-lo.
Salema olhou novamente para o papel que tinha nas mãos. Olhou para o
rosto estampado na pequena fotografia. A dúvida e a incerteza não a deixavam.
Ela tinha de saber a verdade. Ela precisava saber o que significava tudo aquilo.
Levantou-se, dobrou a carta de Nayla, transformando-a num pequeno
embrulho, e, juntamente com a fotografia, guardou-a junto das suas coisas
pessoais. E saiu.
CAPÍTULO 16

A decisão

Ela entrou no escritório do marido em busca do Alcorão. Como em toda


casa, o livro estava ali, colocado num lugar alto, e ela sabia que não podia tocá-
lo de qualquer maneira, mas precisava entender. Quando tentava alcançá-lo,
Ismael entrou no aposento e a surpreendeu.
- O que está fazendo, Salema?
- Oh, Ismael, eu preciso muito entender mais sobre a nossa fé. Eu não sei o
que se passa comigo, mas sinto que há fundamentos naquilo em que
acreditamos que eu não conheço.
- Mas por que está tão aflita? – perguntou o marido intrigado. – Suas mãos
estão frias, o que aconteceu, querida, ainda está mal disposta?
- Fale-me sobre o Alcorão.
- Você quer ler agora.
- Não. Desde bem pequena o tenho lido, você sabe, mas agora eu gostaria
de entendê-lo. Há muitas coisas que eu não sei.
- Sente-se aqui.
Como era doce o seu marido! Quando Salema estava com ele, sentia-se tão
segura. Ele era tão diferente dos homens que ela conhecia. Ismael era especial.
Em pouco mais de dois meses de casamento ele demonstrara mais afeto e
atenção do que ela havia recebido em toda a sua vida. Ao mesmo tempo as
dúvidas que martelavam agora sua mente não permitiam que encontrasse paz
naquele momento.
- Você sabe que o Alcorão é um livro eterno e que foi escrito por Alá em
placas de ouro, não sabe? – perguntou Ismael, com aquele ar de professor que
ela admirava tanto.
- Sim, eu entendo isso. E o que fez o profeta? Recitou de memória tudo o
que ouviu?
- Exatamente. Vejo que aprendeu tudo como deve ser.
- Mas você acha que há outros livros que podem ser considerados
sagrados, Ismael?
- Há, os cristãos têm o seu livro.
- Então é verdade!
- O que é verdade, Salema?
- Existe outro livro além do Alcorão.
- Mas por que essa dúvida agora? O que está acontecendo, Salema?
- Nayla tinha um livro desses.
- Eu sabia que aquela menina não deveria ter se aproximado de você. Eu
disse a seu pai que deveríamos ter tido mais cuidado.
- Por favor, continue. Eu preciso saber.
- Acontece, querida, que o livro que os cristãos consideram sagrado nada
mais é do que revelações dadas por Alá a outros profetas antes de Maomé.
- Isso significa que todos têm a mesma importância?
- Não. Aí está a questão. Maomé ensinou que houve um profeta para cada
época. Eles começaram em Adão e terminaram nele, e a cada um deles foi dado
um livro sagrado. Todos esses livros se perderam, com exceção da Lei dada a
Moisés, dos Salmos dados a David, do Evangelho dado a Jesus...
- Jesus, o profeta?
- Isso mesmo. E a junção desses livros todos que não se perderam forma
para os cristãos o que eles chamam de Bíblia, o seu Livro Sagrado.
- E o Alcorão?
- O Alcorão confirma os livros que vieram antes dele, por isso não
precisamos dos outros. E Maomé é o selo dos profetas, o último e o maior de
todos eles. Penso que isso não é nada que não saiba, não é?
- Sempre li, mas confesso que, para mim, recitar o Alcorão não é o mesmo
que entendê-lo.
- A propósito, Nayla saiu do país, passou pela fiscalização do aeroporto
vestida como um homem.
- Oh! Ela teve coragem! Mas como ela conseguiu?
- A professora dela e o marido ajudaram-na. Nayla não poderia ter feito
isso sozinha. O pai tentou interceptá-los no aeroporto de destino, mas eles já
haviam desembarcado.
- E agora?
- Quanto a Nayla, eu não sei, mas, quanto ao casal que a ajudou, a família
vai tentar procurá-lo. Ela tem alguns contatos na Inglaterra, pessoas que
poderão encontrá-lo.
- Mas por quê?
- O casal tem de dar uma explicação.
- A família pode fazer alguma coisa contra ele?
- Não, porque está protegido em seu próprio país. Mas aqui essas pessoas
não poderão pôr os pés nunca mais.
- Então a essa hora Nayla pode estar a caminho de casa? Livre, enfim!
Salema não conseguia esconder o alívio que sentia pela amiga.
- Pelo menos até o pai tentar buscá-la outra vez.
- Será que ele seria capaz de tentar novamente?
- Todos o têm aconselhado a que não tente. Inclusive o noivo, que não
estar interessado em se casar com uma mulher que andou por aí vestida de
homem. Mulheres como ela há muitas aqui, e só têm trazido problemas à nossa
gente. Não crêem no que cremos, revoltam-se e tentam convencer pessoas como
você de que elas estão certas. Vão todas para o inferno, que é o lugar reservado
a todos aqueles que não crêem como nós – disse Ismael, num tom de voz que
assustou Salema.
Mais uma vez o marido a surpreendia com suas palavras. Será possível
que ela poderia estar enganada com Ismael?
Naquela noite, na penumbra do quarto, enquanto Ismael dormia a seu
lado, Salema tirou de uma pequena caixa em que guardava suas coisas pessoais
a carta de Nayla, leu-a e releu-a inúmeras vezes.
Havia algo ali que lhe chamara a atenção. Não era apenas o fato de Nayla
ter-lhe revelado e compartilhado com ela a sua fé o que a surpreendia. Era algo
mais. Ela não sabia exatamente o que, mas havia algo mais ali por trás daquelas
linhas, e ela queria entender o que era. Ismael revirou-se na cama, e Salema
imediatamente escondeu a carta debaixo da almofada.
- Não consegue dormir, Salema?
- Estou sem sono.
- O que está acontecendo? Ainda pensando na sua amiga fugitiva?
- Não é nada, volte a dormir Ismael.
O marido olhou para ela com os olhos semifechados, virou-se para o lado
e adormeceu novamente. Com as mãos trêmulas pelo susto, Salema pegou a
carta outra vez, dobrou-a e a pôs de volta no mesmo lugar onde havia
guardado anteriormente. Deitou-se ao lado de Ismael, procurando não fazer
barulho para não acordá-lo. Por que se sentia tão agitada? Em sua mente as
lembranças iam e vinham. Pensou na primeira vez em que sonhara com ele.
Havia dois lugares, e ele estava lá para lhe mostrar os dois. Lembrou-se da
aflição que sentiu quando ele a deixou do lado de fora daquele portão. Trevas.
Seu corpo se arrepiava só de lembrar aquela sensação. Pensou também na
última viagem a Meca, na Caaba e na emoção que tomara conta dela quando a
presença dele a inundou naquele lugar. Será que Lisa tinha razão? Será ele o
profeta que ela acreditava ser o filho de Deus?
A seu lado Ismael ressonava baixinho. O vento que vinha do deserto
soprava lá fora, em um uivo contínuo, batendo sem piedade na janela do
quarto, fazendo a vidraça estremecer. Seria uma noite de tempestade. Enquanto
o barulho do vento crescia mais e mais à medida que o tempo passava, na
mente de Salema surgia como um relâmpago de luz a imagem do homem de
seus sonhos. Ele parecia estar no meio do deserto. O vento que soprava lá fora
ao mesmo tempo soprava ao redor dele, formando um redemoinho de areia que
o envolvia, fazendo-o quase desaparecer. Salema também estava lá. Ela podia
vê-lo, mas não tocá-lo. O seu corpo parecia encharcado. Sangue. Salema olhou
novamente, uma coroa estava sobre sua cabeça, mas não era a coroa de um rei.
Era feita de espinhos, que, cravados na cabeça do homem, faziam o sangue
escorrer, inundando-lhe a face. Era visível o sofrimento estampado em seu
rosto. De onde estava, ela não podia ver por que ele estava ali naquela situação.
De repente o vento amainou, e com ele o redemoinho. Agora ela via claramente.
O homem estava pendurado num madeiro em formato de cruz. Tinha os braços
estendidos e pregados ali, como se fosse um objeto. Os pés, da mesma forma,
estavam pregados. Uma sensação de dor intensa apoderou-se dela. Por que ele
estaria ali? Por que alguém faria algo assim com um homem como ele? Ele
estava cansado. Com os braços estendidos, sua respiração era ofegante. À volta
dele Salema podia ver apenas vultos de pessoas rindo, zombando, cuspindo
nele. Ela quis gritar, mas a voz não lhe saía. Em dado momento o homem olhou
diretamente para ela, e Salema pôde ver a dor estampada em seus olhos. Mas
não era apenas a dor física que estava estampada ali, havia algo mais que ela
não pôde entender. De repente, ele levantou os olhos para os céus e disse na
mesma voz suave que Salema já conhecia: “Pai, perdoa-lhes, porque eles não
sabem o que fazem”. Só mais alguns instantes se passaram até que a cabeça dele
pendeu a para frente com o peso do crânio. Já não havia mais vida naquele
madeiro. Ele se fora. E, sem que ela pudesse conter, um grito de dor pôde-se
ouvir daquela jovem mulher: Eu o matei! Eu o matei! Eu o matei!
Ismael acordou assustado com os gritos de Salema. Ela se agitava de um
lado para outro na cama e continuava a dizer que havia matado alguém. Ele a
abraçou, tentando consolá-la.
- Calma, querida. Foi só um sonho. Você não pode se agitar assim!
- Eu o matei, você não entende. Eu o matei! – disse ela, tentando
desvencilhar-se dos braços dele. De repente uma dor aguda fez Salema curvar-
se, colocando a mão ao redor do ventre. Na cama, no lugar onde estivera
deitada, uma grande mancha de sangue indicava que algo de grave se passava
com ela. Ismael não quis esperar que os empregados acordassem o motorista
para que ele os conduzisse ao hospital. Correndo como um louco pelas ruas da
cidade, ele tentava chegar a tempo de salvar seu filho. Salema, deitada no banco
de trás, curvava-se por causa da dor que sentia no abdome. Estava com medo.
Ismael aplicara uma injeção, mas a dor ainda não tinha passado. Ela sabia que o
seu filho corria riscos e não queria perdê-lo. Chorando baixinho ela lembrou-se
de seu sonho. Não conseguia esquecer aqueles olhos tristes fitando os dela.
Parecia tão real. Era como se ela tivesse estado ali com ele naquele lugar.
Caminho. Mais uma vez aquela palavra martelava em sua mente. Ela sabia que
não podia esperar mais. Estava diante de uma realidade que não conhecia
totalmente, mas sabia que tinha uma decisão a tomar. E ali, em meio às dores
que ainda sentia, baixinho para que Ismael não ouvisse e sem que ninguém a
tivesse ensinado, pela primeira vez ela se dirigiu diretamente a ele em oração:
“Profeta... Jesus, sei que estás aqui. Tu tens estado comigo, não tens? Eu
acredito que és tu. Não porque me disseram, mas porque eu vi a tua dor. Foste
tu que me mostraste, não foi? Eu sei que foi. O teu olhar naquela hora atingiu o
meu coração, eu quase não pude suportar a dor de saber que... foi por mim, não
foi? Foi por mim que tu sofreste tudo aquilo? Profeta... Jesus, eu não entendo
tudo ainda, mas quero te conhecer, quero entender mais o que é o teu caminho.
Agora, por favor, me ajuda. Se tu tens todo o poder que eu tenho conhecido,
por favor, deixa viver o meu filhinho”.
Mais uma vez aquela onda de paz que Salema já conhecia tão bem a
inundou completamente. O medo se foi, bem como a dor que sentia. Ismael
estacionou o carro no portão principal do hospital. Providenciou tudo para que
ela fosse atendida imediatamente. De repente a aflição do marido parecia
apenas uma demonstração a mais de que ele se importava com ela. Mas não
havia mais por que se preocupar. Seu filho estava salvo, ela sabia, assim como
sabia que havia alguém muito especial que estava com ela. Uma decisão que ela
ainda não sabia, mas que transformaria toda a sua vida.
CAPÍTULO 17

Uma nova mulher

Deslocamento de placenta. Este foi o diagnóstico da médica que atendeu


Salema no hospital. Mas já não havia riscos. O bebê estava salvo, mas ela teria
de repousar, porque ainda poderia haver novos sangramentos, o que seria
perigoso para a vida da criança. Depois de dois dias no hospital, Salema voltou
para casa, com muitas recomendações para que descansasse o máximo possível.
Ismael solicitou aos empregados que transformassem a sala dos pássaros na
sala de repouso de Salema e deu ordens a Lisa para que providenciasse tudo o
que fosse necessário, assim Salema não precisaria se levantar para nada.
Quando chegaram em casa, os olhos dela brilharam ao ver que a sua sala
preferida fora transformada especialmente para ela. Aquilo a deixava orgulhosa
do marido que tinha. Era um bom homem, pensava. Que bom se todas as
mulheres do seu povo pudessem encontrar alguém tão especial como era o seu
Ismael. Os dias passavam lentamente. Salema sentia-se bem e não gostava nada
da idéia de ter de ficar deitada o tempo todo. Mas Ismael era rigoroso com ela.
Não permitia que os empregados descuidassem um minuto sequer da atenção
que deveriam lhe dar. Às vezes, ela contemplava o próprio corpo. Estava
mudando. Sentia-se engordando dia a dia e, quase sem nada para fazer, sabia
que logo estaria com o dobro do seu peso normal.
Aquele período de repouso foi também providencial para ela. Salema
sabia. Lisa, conforme o combinado, havia copiado alguns trechos da Bíblia e
agora ela tinha acesso àquilo que os cristãos chamavam de Palavra de Deus. Era
tudo muito novo e algumas vezes ela não podia entender. Outras vezes,
maravilhava-se como que descobria agora. Naquela tarde, enquanto o canto
suave dos pássaros a rodeava de um encanto muito especial, ela lia sobre como
o profeta Jesus havia se aproximado de uma mulher rejeitada por todos a sua
volta. Aquela era uma mulher como outra qualquer. Tanto era assim que tirava
água de um poço para saciar a sua sede numa hora em que ela sabia que não
haveria ninguém. Provavelmente a história da vida de muitas outras mulheres.
Mas ele não se importou. Falou com ela, mesmo que isso significasse a
incompreensão das pessoas a sua volta. Salema começou a pensar que ele, da
mesma forma que se aproximou da mulher, se aproximara dela. Lembrou-se de
quando ele esteve com ela à volta da Caaba. Um homem jamais faria isso, mas
ele fez. Com certeza porque ele não era apenas um homem. Salema sentiu o
corpo arrepiar-se com aquela compreensão. Era como se de repente os seus
olhos fossem abertos para algo que ela nunca havia enxergado antes. Agora
Salema lia que a mulher o serviu de água, mas não sem antes questioná-lo. Ela
não entendia. Como um judeu poderia pedir água a uma mulher samaritana
como ela? Ali estava escrito que judeus e samaritanos não se entendiam. Outra
lição. Aquele homem não fazia distinção. Para ele a mulher a sua frente era uma
pessoa, e ele a tratou como tal. Mas o que o profeta quis dizer com rios de água
viva? Nem aquela mulher entendeu nem Salema. Pensou então no deserto que
rodeava o seu país. Havia escassez de água naquele lugar e para seu povo
aquela bebida era o bem mais precioso. E agora o homem prometia que, se ela
quisesse, ela poderia lhe dar de beber de tal forma que ela jamais teria sede
outra vez. O que isso poderia significar? Enquanto Salema pensava, Lisa entrou
na sala trazendo-lhe o lanche.
- Lisa, o que são rios de água viva?
- Você tem de ter cuidado, Salema. Passa horas lendo esses papéis, mas,
assim como eu entrei aqui, poderia ter sido o seu marido.
- Não se preocupe, eu sei que não posso mostrar nada disso a Ismael, mas
eu tenho sido cuidadosa.
- O que foi mesmo que você perguntou?
- O que são rios de água viva. Que Jesus quis dizer com isso?
- Que ele é a fonte dessa água. Vê, aqui está escrito que se alguém beber
dessa água não terá mais sede alguma.
- Isso quer dizer que...
- Você observou quem era aquela mulher?
- Uma mulher rejeitada.
- Por quem?
- Pelos judeus.
- E pelo seu próprio povo. Ela era uma mulher, veja aqui, que já havia
casado muitas vezes. Quer dizer, na verdade, ela já havia vivido com vários
homens sem ao menos estar casada. Como ela seria vista se vivesse aqui entre
nós?
- Provavelmente já teria sido morta por seu mau comportamento.
- Pois então. Mas Jesus não se importou. Ele sabia quem ela era, ele a
conhecia. Tanto é que ele fala sobre tudo o que ela fizera sem ao menos ela ter
contato a ele nada sobre a sua vida.
- É verdade. Então isso significa que ele não se importa com o pecado?
- Isso significa que ele se importa tanto que está oferecendo a solução.
- Rios de água viva!
- Isso mesmo. E a fonte está nele.
Salema voltou os olhos outra vez para o papel que estava lendo.
Impressionava-a o fato de Jesus se importar com aquela mulher. A seu lado
estava a comida que Lisa acabara de trazer. Olhando para o copo de suco a sua
frente, ela pensou que muitas mulheres ali bem próximo dela tinham um copo
como aquele para saciar a sede, mas não tinham sequer a possibilidade de
conhecer aquilo que ela agora descobria.
Lisa e ela precisavam falar baixinho, sabiam que corriam risco. Não só
elas, mas também os pais de Lisa, que, se fossem apanhados ensinando a sua
própria religião, poderiam sofrer graves conseqüências. Salema temia pela
amiga e pela família dela. Mas o que fazer quando aquilo tudo que descobria
era grande demais para ficar somente guardado com ela? Lisa estava admirada
ao ver a transformação que aquela verdade realizava em Salema. A amiga havia
lhe contato os detalhes do sonho que tivera na noite em que fora levada às
pressas para o hospital. Quando Lisa lhe entregara a parte das Escrituras que
descrevia a morte de Jesus, ela viu o espanto nos olhos de Salema ao descobrir
tantas semelhanças com o que havia sonhado. Salema contara também sobre a
oração que fizera e o quanto acreditava que o profeta havia salvado a vida do
seu filho. Lisa contara aos pais as mudanças que ocorriam com Salema e
também o fato de ela agora querer conhecer a Bíblia. Contou-lhes também que a
partir daquele momento copiaria alguns trechos do livro para que Salema
pudesse ler. Eles ficaram felizes por Salema, mas ao mesmo tempo muito
preocupados, pois sabiam que isso poderia significar um grande risco. Mas
como proibir alguém de conhecer a verdade? Até agora tinham tentado de
alguma forma proteger-se. Mas a verdade é que, se havia uma possibilidade
naquele lugar de alguém se aproximar de Jesus, não seriam eles que
impediriam. Autorizaram Lisa a fazê-lo, não sem antes recomendar todo o
cuidado possível.
- Lisa, o profeta chama Deus de Pai.
- Lembra-se de quando nós conversamos e eu lhe disse que ele era o filho
de Deus?
- Claro, como poderia esquecer tal coisa? Foi uma revelação surpreendente
demais para mim.
- Mas tenho aprendido com os meus pais que ele quer nos ensinar que
podemos ter um relacionamento com Deus como um pai tem com um filho.
- O relacionamento com o meu pai foi sempre de rejeição. Ele nunca
aceitou o fato de ter uma mulher como primeiro filho.
- Veja bem, Salema, com quem Jesus está falando?
- Com uma mulher.
- Então, e é para essa mulher que está ensinando sobre o relacionamento
com o Pai.
Salema ficou pensativa outra vez. Os seus pensamentos a levaram àquela
semana logo após a sua circuncisão. Aquela fora a primeira vez que ela
questionara a existência de Alá, como ele poderia ter permitido que ela passasse
por tudo aquilo. Lembrou-se, entretanto, que justamente quando ela chorava
por se sentir abandonada seu pai pela primeira vez veio até ela de uma forma
que nunca esqueceria. Quando ele entrou em seu quarto naquele dia, ela
pensou que ele a repreenderia, mas, ao contrário, ele a tomou nos braços e a
consolou. Os olhos de Salema encheram-se de lágrimas quando ela se lembrou
daquele momento. Aquela tinha sido uma ocasião muito especial. Não se
lembrava de algo assim ter acontecido antes nem depois. Era uma
demonstração de afeto de que ela não havia se dado conta, mas que fora muito
importante e agora ela entendia a razão. Naquele dia, em meio a tantas aflições,
Deus estava ali mostrando o seu amor por intermédio da vida de seu pai.
Enquanto ela duvidava de sua existência, ele estava ali para lhe mostrar que ele
queria cuidar dela como um pai amoroso deveria cuidar de sua filha.
- Você entende o que ele quer dizer com adorar o pai em espírito e em
verdade?
- Onde você foi ensinada a adorar a Deus?
- Durante as orações diárias e em Meca, a cidade Santa. Você sabe que
milhares de peregrinos vão para lá todos os anos. Eles querem adorar a Alá,
prestar-lhe sacrifícios, ter seus pecados perdoados pelo sacrifício dos animais.
Enfim, é um lugar sagrado.
- Lembra quando me contou do sonho que teve quando foi a Meca pela
última vez?
- Sim, acho que lhe contei todos os sonhos que tive.
- Lembra-se dos detalhes do sonho?
- Houve uma época em que eram sempre os mesmos, o mesmo lugar
calmo, e a presença dele, mostrando-me tudo.
- Mas daquela vez houve algo diferente, não foi?
- Espere... Ah! Agora me lembro, a Caaba no meio daquele lindo lugar.
- Lembra-se do que se passou?
- Eu tentei cumprir o ritual de adoração, e quando fui tentar tocar a pedra
negra...
- Você o viu, não foi?
- Sim, e quando isso aconteceu, eu já não pude mais ver a Caaba nem
nada.
- O que acha que ele quis lhe ensinar?
- Não sei. Talvez...
- Que não é aquela estrutura que preenche a sua vida. Que não é ali que
ele está. Ele não faz parte daquele ritual.
- A Caaba desapareceu no mesmo instante em que comecei a sentir a
presença dele.
- Isso quer dizer que...
Salema nem deixou que Lisa terminasse. Ela estava entendendo.
Espantava-a o fato de não ter percebido isso antes. Claro. Adorar em espírito
significa muito mais que adorar uma estrutura de pedra, e é isso que seu povo
vinha fazendo durante toda a sua história. Ao reler aquela parte da Bíblia, ela
podia ver que aqueles povos também tinham um lugar especial em que eles
julgavam poder adorar a Deus, porém o que o profeta ensinava era que não só
eles, mas todos deveriam adorá-lo de uma forma completamente diferente da
que ela tinha aprendido até ali.
Lisa saiu, deixando Salema sozinha. A amiga precisava pensar. Era tudo
muito novo e surpreendente para ela, e Lisa sabia que todas aquelas revelações
teriam de ser absorvidas devagar. Enquanto arrumava a louça na cozinha, Lisa
pensava que para ela mesma ainda havia coisas que a confundiam. Dúvidas por
vezes surgiam e ainda a faziam questionar suas próprias convicções. Nessas
ocasiões seus pais lhe ensinavam. Como Salema, ela também vinha absorvendo
devagar tudo o que aquela nova vida lhe dava e ficava feliz por poder ver a
transformação que ocorria não só em sua vida, como na vida de sua melhor
amiga. De repente sentiu o coração apertado, uma sensação de desconforto que
a levou a orar. “Deus, proteja-nos, por favor, proteja-nos. Livra-nos de todo o
mal”.

A notícia chegou dias depois de o fato ter acontecido. Ismael não quis
contar antes a Salema porque temia que isso pudesse comprometer a gravidez.
Mas sabia também que notícias como aquela não se escondem, principalmente
porque o princípio contido nesses acontecimentos é de que, com as
conseqüências do erro de algumas mulheres, outras possam aprender a se
comportar, e isso ele não poderia ignorar. Salema andava bem disposta, parecia
mudada, e Ismael atribuiu isso ao fato de ela estar esperando um filho. Naquela
manhã, especificamente, ela parecia radiante. Ele podia notar um brilho
diferente em seus olhos todas as vezes que a esposa despia o véu e o olhava
diretamente nos olhos. Esse brilho a tornava ainda mais bonita. Não era muito
comum para uma mulher olhar diretamente nos olhos de um homem, mesmo
que esse homem fosse o próprio marido, mas com a sua Salema era diferente.
Fora desde o princípio. Ele nunca pensou que pudesse amar alguém como
amava a sua esposa. Sabia que algumas normas de conduta no relacionamento
entre homem e mulher, vezes sem conta, eram quebradas entre eles, mas Ismael
não se importava. Salema era para ele o exemplo de como deve ser uma mulher
muçulmana, muito diferente das mulheres ocidentais que ele havia conhecido
no tempo em que cursava a universidade. Ela era obediente, submissa e
aceitava de bom grado o fato de ter de ser protegida por um homem, por sua
fragilidade natural.
- Salema, querida, precisamos conversar.
Ela percebeu rapidamente uma sombra no olhar do marido, por isso sabia
que havia algo errado.
- O que está acontecendo?
- Deite-se aqui. Deve continuar o repouso.
- Você sabe que eu já estou bem e que não preciso mais estar todo dia
deitada.
- Eu sei disso, mas é melhor relaxar um pouquinho agora, antes de ouvir o
que eu tenho para lhe contar.
- Há algo errado com a minha mãe?
- Não, a sua mãe está bem. Trata-se da sua tia Tanya.
- O que houve com ela?
- Ela morreu, Salema. Seu avô abriu a porta do quarto depois de alguns
dias que a empregada notou que ela nem sequer tocava na bandeja de comida.
- Oh, meu Deus! – disse Salema, sem conter o grito de dor em seu peito.
Ismael olhou para ela espantado. Algo diferente na forma como ela
invocou a Alá chamou a sua atenção, mas não disse nada. Ela estava sofrendo.
- Como foi que aconteceu?
- Você sabia que isso já era esperado. Seu avô não a perdoou. Mais cedo ou
mais tarde ela morreria. Ela já não parecia lúcida, mas talvez pudesse viver
mais tempo se não tivesse encontrado uma maneira de pôr fim à própria vida.
- Ela se suicidou?
- É o que parece. Cortou os pulsos. Havia estilhaços de uma chávena
espalhados pelo quarto. A empregada confessou que ela lhe havia pedido que
trouxesse uma bebida forte. Ela alegou ter tido pena da sua tia e acabou por lhe
levar uma chávena de café, contrariando todas as ordens do seu avô, que a
expulsou de casa.
- Oh, pobre tia Tanya, ela não pôde suportar. Oh, Deus, como ela poderia!
Ninguém no lugar dela suportaria sofrer assim.
Salema olhou para o marido com os olhos marejados de lágrimas. Ismael
tocou-lhe a face delicadamente, tentando consolá-la. Ele não gostava de vê-la
assim. Sabia que a morte da tia a faria sofrer, mas a reação o impressionara.
- Quando será o funeral?
- Você sabe que numa ocasião assim não há motivos para funeral
suntuoso, não sabe? Ela já foi enterrada.
- Quando?
- Há alguns dias. Eu não lhe contei antes porque poderia ser perigoso para
você e o bebê. E ainda é. Por favor, você não pode ficar agitada.
- Ismael, que religião é essa que arrasta as suas mulheres à loucura, a
ponto de levá-las à morte e toda gente a concordar com isso?
Salema estava furiosa agora. Enquanto enxugava as lágrimas com o canto
das mãos, andava pelo quarto de um lado para o outro, quase descontrolada.
- Essa é a sua religião, Salema. Você sabe que as coisas são assim. Alá sabe
que...
- Alá? Como pode incluir Alá nessa conversa? – ela gritava. - Alá não tem
nada a ver com os horrores que homens como você fazem às mulheres desta
nação.
- Salema, o que é isso agora? Eu entendo que esteja nervosa, triste, mas
não pode falar assim comigo.
- Ismael, por que não me contou antes? Eu tinha de saber. Eu precisava
saber!
Mais uma vez, Salema caiu nos braços do marido em prantos. Ele não
disse nada, mas aquela conversa, apesar de muito difícil, tinha-lhe despertado
para algo que não percebera antes. Alguma coisa estava realmente mudando
em Salema, algo que o inquietava e estava contido na explosão daquele
momento. Havia alguma coisa nova no comportamento de Salema que ele teria
de investigar.
- Ismael, por favor, eu quero ficar sozinha.
- Ele lhe acariciou a face mais uma vez. Delicadamente beijou-lhe a testa e
caminhou em direção à porta do quarto, mas antes que saísse, voltou o olhar
para a esposa sentada na cama, com o rosto entre as mãos, e o que se podia ver
era apenas a sombra da dúvida estampada em seu olhar.
Após Ismael ter saído, Salema ficou ali, sentada na cama por um logo
tempo. Ela não sabia o que pensar. Sua tia se fora e ninguém tentara fazer nada
para impedir que isso acontecesse. Para toda gente aquilo era natural, inclusive
para Ismael. Naquele momento o seu marido era igual a todos os homens.
Donos de suas mulheres. Detentores do poder da vida e da morte delas. O filho
remexeu-se dentro dela. Salema tocou o ventre como se pudesse acalmá-lo com
seu carinho. O que seria daquela criança? Se fosse homem talvez tivesse a
oportunidade de ser feliz. Mas e se fosse uma menina? Ela não queria pensar no
que seria ver uma filha crescer ali. Com esse pensamento, ela tentou envolver o
abdome, como se com o gesto pudesse proteger aquele pequeno ser dentro dela.
Pensou em Jesus. “Por que tia Tanya se foi, Jesus? Por que não houve uma
chance para ela também? Ao contrário do que eu pensava antes, sei que tu te
importas. Era isso que estava quase dizendo a Ismael. Tu te importas. Então por
que tu não tocaste a vida dela também? Por que não lhe deste a oportunidade
de conhecê-lo, Jesus?” Desta vez não houve resposta, e as lágrimas teimavam
em escorrer pelo rosto já encharcado de Salema.
No dia seguinte Salema pediu a Ismael que a levasse à casa dos avós.
Ismael se opôs terminantemente. Primeiro, porque ela não deveria ainda fazer
viagens de carro, depois, porque visitar aquela casa poderia significar um
perigo para ela naquele momento delicado da gravidez.
- Por favor, querido, eu só quero conversar com a minha avó. Ela deve
estar muito triste com tudo isso. Eu preciso vê-la.
- Você sabe que não está em condições de sair, não sabe?
- Mas pode conduzir com cuidado e levar-me até ela. Por favor, Ismael.
Ismael não queria ceder, mas o olhar suplicante da esposa fez com que ele
por fim decidisse levá-la, não sem fazer inúmeras recomendações. Saíram logo
após o café da manhã. Enquanto Ismael conduzia, Salema pensava na tia. Tanya
era três anos mais velha que ela. Muitas vezes, quando criança, correram juntas
no jardim da casa de Salema.
Ela era linda. Tinha a pele morena, mas os olhos possuíam uma tonalidade
clara, quase verde, que contrastavam com o tom de pele e com os cabelos
negros que lhe cobriam os olhos. Quando era criança, era muito magra, e as
pernas alongadas faziam-na parecer mais alta e mais velha também. Salema
sempre quis ser igual a ela. Tão bonita, tão inteligente e tão dedicada quanto a
tia.
Enquanto cresciam, Salema não podia se lembrar de quantas vezes haviam
visto o olhar de Tanya se perder em algum ponto da linha do horizonte. Nessas
ocasiões ela costumava dizer que algum dia ela alcançaria aquele lugar. Ao
lembrar-se disso, os olhos de Salema encheram-se de lágrimas outra vez. Ismael
viu.
- Salema, se continuar assim, vou voltar para casa daqui mesmo.
- Desculpe, estava pensando nela e não pude me conter.
- Você sabe que o que aconteceu com ela foi por sua própria escolha, não
sabe?
- Tudo porque um dia ela sonhou alcançar a linha do horizonte.
- Que está dizendo?
- Nada, estava apenas pensando.
Salema lembrou-se de que depois de algum tempo a tia parou de visitá-la.
Já não brincavam juntas, e quando se encontravam ela já não podia contemplar
o horizonte como gostava. O véu cobria o seu rosto. O corpo magro e esguio
agora era coberto pela abaya, e como naquela altura Salema ainda não podia
entender o que aquilo representava, mais uma vez quis ser igual a ela. Mas
Tanya parecia feliz. Nunca Salema a tinha visto queixar-se de alguma coisa. Era
cuidadosa e atenciosa com todos da família. Pensando agora, Salema chegou à
conclusão de que para ela nunca fora difícil ser como ela. Resignada, ela jamais
contestou alguma coisa. Mirna costumava dizer que, de todas as suas irmãs,
Tanya tinha sempre sido a mais obediente, a mais doce de todas.
- A que ponto tudo isso chegou, Ismael?
- Está falando de Tanya?
- Ela passou da condição de doce criatura a vil pecadora em questão de
pouco tempo. O que ela foi, a sua maneira de ser, a sua juventude e a sua
alegria nunca foram consideradas nessa questão.
- Eu sei, mas foi grave o que ela fez.
- Apaixonar-se perdidamente por alguém.
- Relacionar-se com alguém que não é um dos nossos.
- Ismael, quando você fala assim, me surpreende! Acha mesmo que o amor
que ela sentiu por aquele rapaz foi suficiente para que viesse a ser condenada?
- Eu acho que temos padrões que não podem ser contaminados pela falsa
liberdade que está espalhada por este mundo.
Salema calou-se, não adiantaria discutir. Seu marido também não aceitava
o que Tanya havia feito. Ninguém ali aceitava, e se havia alguém que
contestava não falaria. Mas também qualquer protesto agora não mudaria o fato
de que Tanya estava morta, castigada por ter procurado encontrar uma maneira
de alcançar o seu sonho, um ponto para sempre perdido na linha do horizonte.
- Querida, você não devia ter vindo, não pode se emocionar.
- Avô, desde que eu engravidei é o que mais tenho ouvido. Por favor, não
se preocupe, estou bem. Eu preciso saber como tudo se passou.
- Não há nada para contar além do que já sabe. Ela decidiu pôr fim à
própria vida. Cansou de sofrer.
- Eu queria ter participado do funeral.
- Não houve funeral. Seu avô mandou os empregados enterrá-la no
cemitério da família.
- Ninguém pôde se despedir dela? – perguntou Salema admirada. – Nem
as irmãs, nem a senhora, avó?
- Ele decidiu que seria melhor assim. Afinal, para ele Tanya já não era
mais a nossa filha, portanto lhe era indiferente a maneira como tudo acabaria.
- Eu não posso acreditar!
- Filha, você é uma mulher. Tem de saber que, para o seu bem e o de seus
filhos que agora começam a chegar, é melhor aceitar as coisas como elas são.
Porque se não aceitar, não os ensinará, e se não os ensinar, eles sofrerão, como
sua tia sofreu.
Salema abraçou a avó sem dizer mais nenhuma palavra. Duas gerações de
mulheres marcadas pela mesma tradição.
- Eu quero ver o quarto onde ela estava.
- Ninguém ainda entrou lá desde que tudo aconteceu. Seu avô não se
interessou em ir até lá, e eu não tive coragem nem para dar ordens às
empregadas que limpassem tudo aquilo. É melhor não entrar naquele lugar.
- Eu quero, avó, por favor, não me impeça. Você sabe o quanto eu a
amava.
A avó não contestou. Não adiantaria. Salema fora sempre insistente,
corajosa, destemida. Essas não eram boas qualidades para uma mulher, mas,
em se tratando na neta, dava-lhe certo orgulho vê-la tão decidida. Ela sabia que
isso era uma contradição, visto que acabara de perder uma filha justamente por
uma decisão errada. Mas naquele momento o que ela menos queria era discutir.
Salema entrou no quarto sozinha. Ainda na porta ela pôde sentir o mau
cheiro. O quarto estava completamente às escuras. As janelas tinham sido
vedadas. Com um candeeiro nas mãos ela foi entrando no quarto devagar,
observando cada detalhe. Havia restos de comida caídos aqui e ali. Ela sentiu o
estômago embrulhar. Se Ismael soubesse que estava ali, ficaria furioso. Talvez
ele tivesse razão. Ela não deveria ter vindo. Sentia-se doente só em olhar ao
redor do quarto. A cama estava desfeita, como se alguém tivesse acabado de
levantar-se. Roupas espalhadas pelo chão misturavam-se com as migalhas
também espalhadas. Salema tentou imaginar a tia naquele ambiente. O medo
que ela deve ter sentido. Foram meses e meses trancada, sem luz, sem a
presença de ninguém, sem alguém que se importasse. Até os empregados
tiveram ordens de não lhe dirigir a palavra. Salema sabia que só Mirna e por
fim a criada que lhe dera a chávena de café tinham falado com ela durante todo
esse tempo. A avó havia dito que nos últimos tempos ela parecia enlouquecida.
Já não gritava nem chorava, apenas balbuciava palavras inocentes. Ainda assim
o avô, não se comoveu. Estava decidido. Ela ficaria ali até morrer. Salema
ouvira sobre outras mulheres que tinham sido condenadas como Tanya. Não
havia chance para elas. A maioria, jovem e saudável era condenada a uma
longa espera até que a morte por fim chegasse. Mas Tanya não conseguira
esperar. Pusera fim à própria vida. Contemplando aquele quarto, ela se
lembrou de seu sonho, naquela noite em que quase perdera o filho. Jesus, o
profeta. O filho de Deus fora morto naquela cruz. Condenado injustamente
como sua tia o fora. Mas a sua morte tinha um propósito. Ele próprio se
entregara. Morrera para que pessoas como Tanya não precisassem ser
condenadas, mas mesmo assim ela foi. Por quê? Ela andou por todo o aposento
abrindo e fechando gavetas, procurando algo que justificasse tudo aquilo. De
repente entre as coisas espalhadas encontrou uma folha amarrotada jogada
num canto do quarto. Por fim viu que não era apenas uma, mas várias folhas
deixadas ali. Começou então a abrir uma a uma e espantou-se com o que viu.
As folhas estavam todas numeradas e ela pôde reconhecer a caligrafia de
Tanya. No topo de cada página estava escrito o versículo do Alcorão em que
homens como o avô se baseavam para tomar atitudes como aquelas com suas
mulheres: “Se as vossas mulheres cometerem a ação, chamai de entre vós
quatro testemunhas contra elas. Se os depoimentos forem realmente contra elas,
fechai-as em casa até que a morte as leve ou que Alá lhes conceda algum meio
de salvação”. Salema admirou-se de que a tia conseguisse escrever tudo aquilo
às escuras e começou a ler aquelas folhas devagar.
“Ontem à tarde estive contemplando o horizonte. Havia luz do outro lado.
Era algo incessantemente brilhante e que chamava por mim. A beleza da visão
ofuscava meus olhos, mas eu tentei caminhar até lá. Enquanto caminhava, o sol
parecia que vinha comigo, como se tentasse proteger-me de algo que eu não
conhecia, mas que queria encontrar. Andei. Andei toda a tarde e quanto mais
eu andava mais distante a luz ficava de mim. Cansada, sentei-me em um lugar
que julgava confortável. Ao meu redor havia tanta gente, pessoas que riam e
zombavam de mim. Por quê? Eu realmente não sabia.”
Quanto mais Salema lia, mas admirada ficava. Descobria tarde demais
quanta emoção havia por trás do véu que escondia o rosto da tia. E não só
Tanya, pensou ela. Mas muitas mulheres que, como ela, não têm apenas um
rosto atrás do véu, mas também vida, sonhos, desejos, anseios que jamais
podiam ser revelados. Aliás, era justamente essa a função do véu e da abaya,
esconder a natureza feminina que, para os homens, era sinônimo de pecado e
perdição.
“Eu toquei-lhe na face. Como era lindo o meu amor! Quando sorria, o seu
rosto todo resplandecia e dos dois lados da face pequenas covinhas se formava,
fazendo-o ainda mais belo. Não havia barreira entre nós naquela hora. Nem
véu, nem religião, e principalmente nenhuma escuridão. Num momento em
que eu jamais poderei esquecer, ele beijou-me suavemente os lábios. Naquela
hora meu corpo todo desejou abraçá-lo, ficar com ele, nunca mais deixá-lo
partir, mas, quando tentei tocá-lo outra vez, seu rosto foi lentamente se
distanciando de mim. Tentei alcançá-lo, mas, à medida que eu andava, mais
distante ele ficava. Mais uma vez cansada parei, e foi então que eu vi que a
imagem dele se confundia com um ponto na linha do horizonte, um ponto
inalcançável para mim.”
Aquela folha estava manchada. A tia tinha chorado quando escrevera
aquilo, e Salema chorava também. “Oh, Deus, por que tudo isso? O que falta eu
entender do seu amor para conseguir perceber a razão de Tanya ter sofrido
tanto e por fim ter acabado como acabou? Ela era tão próxima, tão amada, tão
querida! Por que, Deus, por quê?” E ela continuou a ler, uma a uma todas as
folhas. Tudo aquilo era a história de uma vida. Uma curta vida que ousou ser
diferente. Ousou acreditar que com ela poderia ser diferente. Amou. Pobre tia
Tanya! Na última folha ela escreveu:
“Este é o último dia. Tudo está escuro. A luz já não brilha. O horizonte
está distante de mim. Não há rostos nem imagens, e ninguém mais zomba de
mim. Ele também se foi, na última vez em que eu o vi ainda tentei tocar-lhe os
cabeços, mas foi em vão. Não há ninguém comigo agora. Estou só, e a minha
única certeza é que este é o fim. Já não há mais paixão em mim, nem medo, pois
isso é mesmo assim. Nunca mais vou contemplar o horizonte, não posso... não
quero. O horizonte enganou-me. Parecia tão perto que eu quis acreditar. Afora
estou cansada de andar. O sabor amargo da bebida forte ainda me aquele por
dentro. Não tenho medo, finalmente vou para lá...”
Ao terminar de ler tudo aquilo, Salema sentiu o coração bater
descompassado. O quarto girava ao seu redor e o estômago fazia voltas
enquanto o bebê se agitava em seu ventre. Teve medo. Tanya era uma mulher
entre milhares sem esperança. Salema sabia que ela conhecia o caminho para o
horizonte que a tia havia procurado, mas como levá-las até lá? A tia morrera
por acreditar em algo diferente; e com ela, como seria quando descobrissem
sobre a sua conversão? E o seu filho? O que seria dele?
- Salema, o que está fazendo aqui?
- As folhas, eu as quero, por favor, guarde-as para mim.
- Essas foram as últimas palavras de Salema antes de desmaiar nos braços
de Ismael.
Depois da morte de Tanya, nada mais seria igual para Salema. A morte
pegara-a de surpresa, e as circunstâncias trágicas que envolveram o suicídio
não saíam da sua mente. Salema já havia lido e relido aqueles papéis
encontrados no quarto de Tanya inúmeras vezes. Quanto mais lia, mais ela se
identificava com os anseios da tia. Para Salema, estavam claras a sensibilidade e
a força daquela jovem mulher que não suportou a dor da sua condição. Havia
algo mais por trás daquelas letras escritas no escuro, daqueles papéis sujos e
manchados de lágrimas. Pensando assim, ela guardou-os entre as suas coisas
mais preciosas, com a carta de Nayla e as porções da Bíblia que Lisa lhe havia
transcrito.
Depois do desmaio daquela tarde, Ismael tentara tirar-lhe os papéis,
alegando que aquilo só lhe faria mal, mas Salema insistiu em tê-los com ela. Ela
não sabia por que, mas cria que aqueles papéis eram parte integrante da
descoberta que ela estava fazendo e das mudanças que ocorriam em sua vida.
Para ela a vida da tia era um dos exemplos entre milhares de mulheres que
sofriam caladas e amedrontadas com tudo que as rodeava. E de alguma
maneira Salema sabia que Deus lhe dava mais que um relacionamento com ele.
Ele a despertava para as necessidades das mulheres de seu povo, mulheres que,
como Tanya, estavam com freqüência escolhendo um caminho sem volta. O que
poderia fazer, ela não sabia. Por mais impulsionada que estivesse, tinha medo.
Aliás, o medo era uma característica da vida de toda mulher. Ela sabia que
havia uma esperança, mas ela era uma em meio a uma multidão. Sentia-se
frágil, incapaz e insegura, mas, ainda assim, às escondidas e com a
cumplicidade de Lisa, Salema se aprofundava mais e mais na esperança e no
novo caminho que havia encontrado.
CAPÍTULO 18

Dificuldades

Ismael olhou para a esposa adormecida, agora com uma barriga enorme e
um rosto redondo de alguém que estava muito além do peso normal. Mais um
mês e o primeiro filho deles estaria em seus braços, com certeza um varão, para
dar continuidade a seu nome e a sua descendência. Mesmo com o corpo
completamente modificado por causa da gravidez, Salema estava linda. Como
ele a amava! Lembrou-se da primeira vez que a viu no dia do casamento. Ela
havia sido prometida a ele muito tempo atrás, quando ainda era uma menina.
Seus pais haviam acordado que se casariam e, embora ele tivesse vivido muitas
experiências com as mulheres ocidentais que conhecera no tempo da
universidade, sempre soube que seu lugar era ali, no seu país, com a sua gente,
esforçando-se para manter viva a tradição do seu povo. Aliás, as suas
experiências no ocidente só serviram para provar que Alá tem um povo
escolhido, seu povo, e que toda manifestação diferente da fé da sua gente vem
de uma sociedade decadente, imoral e violenta.
Ele se lembrou de quanto a beleza dela o surpreendeu desde a primeira
vez. Lembrou-se também do primeiro momento juntos, do temor dela, do medo
estampado em seu rosto diante do desconhecido e depois da entrega voluntária
àquilo que seria para eles uma grande história de amor. Até sua mãe se
encantara com a nora. Numa sociedade em que sogras são mais carrascos do
que amigas, Salema havia conquistado o coração de Maya. A esposa parecia
querer agradar a toda a gente, e ninguém que se aproximasse dela ficava
indiferente ao seu encanto natural. Certa vez seu pai, notando que o
relacionamento do filho com a esposa fugia ao que era tradicional, alertou-o:
“Ismael, tenha cuidado! A mulher é apenas uma costela; se você a endireita, ela
se quebra; se tenta apreciá-la, o gosto é ambíguo”.
Claro que ele não dera atenção às palavras do pai. Salema não era o tipo
de mulher que lhe causaria problemas. Era amável, submissa e, embora fosse
bastante insistente naquilo que queria, vivia sob sua proteção e cuidado. Não,
com certeza não teria problemas com ela. Mas a verdade é que já havia algum
tempo ele vinha notando algumas mudanças na esposa. A princípio ele pensou
que tudo tinha a ver com a gravidez. Os últimos meses tinham sido muito
difíceis para ela. A ameaça de aborto, o repouso forçado e a perda da tia, tudo
isso poderia estar influenciando o comportamento da esposa. Mas ele não
estava bem certo disso. Sentia um clima diferente entre eles. Era como se
Salema estivesse lhe escondendo alguma coisa. Ele tinha a sensação de que toda
vez que se aproximava de Salema repentinamente ela ficava constrangida ou
atrapalhada. Os olhos dela, os gestos, a maneira de andar e falar, enfim, tudo
lhe parecia estranho e ameaçador. Envolvido que estava com o término da
construção do hospital, ele vinha adiando um confronto com a esposa,
principalmente porque agora, pouco tempo antes de o seu filho nascer, ele não
queria que acontecesse nada que pudesse lhe causar algum risco. Mas agora ele
não poderia adiar mais. Aquilo era muito grave. Ainda há pouco, ao entrar na
sala dos pássaros, ele vira nitidamente Salema escondendo algo entre as
almofadas do sofá onde estava sentada. Resolveu então ficar ao lado dela para
que não tivesse oportunidade de retomar o que havia guardado. Depois de
algum tempo, exausta, ela resolvera ir para a cama, com certeza segura de que
ele não percebera nada. Ismael, entretanto, despediu-se da esposa com um beijo
na face, esperou que ela saísse e andou lentamente até a poltrona na qual ela
estivera sentada. Levantou a almofada, e qual não foi o seu espanto quando
reconheceu o que tinha nas mãos. Duas folhas escritas num inglês fluente, que
tinham sido copiadas com certeza da Bíblia, o livro dos cristãos. Mas como
Salema conseguira aqueles papéis? A divulgação e o ensino daquele livro não
eram permitidos em seu país. Quem a ajudava? E o mais grave de tudo: por que
ela estaria escondendo isso dele?
Olhando para a esposa adormecida, tão linda protegendo em seu ventre o
filho tão esperado, ele pensou que poderia estar enganado. Com certeza ele
teria uma explicação plausível para aquela situação. Com aquele pensamento,
ele lhe tocou de leve os cabelos tentando acordá-la.
- Salema, nós precisamos conversar.
Sonolenta, Salema espantou-se com o fato de Ismael procurá-la àquela
hora da noite, mas, ao sentar-se na cama para poderem falar, ela viu nas mãos
dele a causa de ele estar ali. Ismael tinha consigo os papéis que algumas horas
atrás ela havia escondido entre as almofadas do sofá.
- Salema, há muito que eu tenho notado que está acontecendo algo com
você, e eu preciso saber o que é.
- Ora, o que acontece comigo é que eu não caibo mais em nenhum lugar
desta casa e se continuar assim talvez não passe pela porta do hospital daqui a
um mês, quando a criança nascer – respondeu Salema, tentando quebrar o
clima de tensão que surgia entre eles.
- Salema, eu não estou brincando. Eu quero saber o que é isso – disse
Ismael, mostrando-lhe os papéis.
Salema estremeceu. Ela sabia que estava diante de uma situação difícil. De
um lado seu marido confrontando-a, querendo saber a verdade sobre o que
estava ocorrendo com ela; do outro, o medo de lhe revelar algo que ela sabia
que ele não poderia compreender nem aceitar. Ela não queria mentir, não
poderia. Ela sempre soube que aquele momento chegaria. Afinal, as mudanças
que a sua nova fé estava lhe fazendo era impossíveis de ser abafadas.
Contemplando o olhar de confronto com que Ismael a fitava, Salema se deu
conta de que não haveria outra saída. Ela teria de lhe contar a verdade.
- Você sabe do que se trata. A verdade é que não são os papéis, mas o
conteúdo destes e dos outros que eu tenho comigo é que tem transformado a
minha vida – respondeu Salema, fitando-o convicta.
- Você está me dizendo que estes não são os únicos? Eu não posso
acreditar que você esteja fazendo uma coisa dessas – disse ele, com a voz já
alterada.
Salema orou baixinho. Desde aquela noite em que quase perdera o filho,
ela orava sempre. Mesmo quando cumpria os rituais de oração de seu povo,
ajoelhada em seu tapete de oração, era com ele que ela falava. Agora não eram
mais orações aprendidas que saíam dos seus lábios, mas eram palavras de
alguém que o adorava e petições de alguém que tinha certeza de que estava
sendo ouvida. Com essa certeza, ela se levantou da cama, e andando devagar
por causa do peso da barriga, foi até o guarda-roupa. De um canto escondido
tirou uma pequena caixa que continha as coisas mais importantes que lhe
pertenciam. Voltou-se para o marido e, sem nenhum gesto de hesitação,
entregou-lhe a pequena caixa.
Ismael espantou-se ao ver o conteúdo. Inúmeras folhas como aquelas que
ele havia encontrado na sala dos pássaros estavam ali. Nas as leu, não era
necessário. Não era preciso ser muito inteligente para perceber que ali estavam
descritas todas as doutrinas do cristianismo. No tempo da universidade ele
tinha convivido com pessoas que acreditavam nelas. Nada daquilo era novo
para ele, mas o que o deixava perplexo era o fato de Salema dizer que aquilo a
transformava. Como ela poderia enganá-lo daquela maneira? Ainda na caixa ele
encontrou os textos que Tanya deixara. Aqueles ele já havia lido e achara tudo
uma grande bobagem, sem nenhuma importância. O que o espantou mais foi
quando encontrou a carta de Nayla. Quando terminou de lê-la, ele pôde então
entender. Como ele fora ingênuo! Tudo se passara ali em sua casa, debaixo de
seus olhos. Nayla. Essa mulher nunca deveria ter se aproximado de Salema. E
Lisa, claro. Os manuscritos todos em inglês. Claro, só podia ser ela. Era Lisa que
estava influenciando Salema. Mas com certeza não estava fazendo aquilo
sozinha. Os seus pais, os criados de confiança de seu sogro, eram eles que
deveriam estar por trás de tal maquinação.
Sem desviar o olhar em nenhum momento do rosto do marido, Salema
contou-lhe como tudo aconteceu. Falou-lhe dos sonhos, da forte experiência na
última peregrinação, das suas dúvidas após a conversa com Nayla e depois com
Lisa e da certeza que tinha que havia sido ele, Jesus, o profeta, que a protegera
naquela noite em que quase perdera o filho. Ismael ouviu em silêncio enquanto
Salema falava, nenhuma expressão no rosto. Nada nos olhos dele que pudesse
revelar-lhe o que estava pensando.
- Querido, eu quero que entenda que apesar disso eu não deixei de amar o
meu povo. O meu desejo maior agora é que de alguma forma todos possam
entender o que se passa comigo.
- Você só pode estar mesmo louca. Como pode achar que alguém
acreditaria num absurdo desses? OU que alguém aceitaria o fato de você rejeitar
aquilo de mais sagrado que nós temos – gritou Ismael, caminhando em direção
a ela.
- Mas, Ismael, eu não posso negar aquilo que aconteceu comigo. É real,
não fui eu que inventei.
- Salema, você não percebe que Alá é absolutamente inconcebível para
você ou para quem quer que seja. Nós podemos pensar o que quiser dele. Ele
não é o que nós pensamos. Ele é maior que qualquer idéia que qualquer um de
nós possa ter a seu respeito. Como pode, então, acreditar que o que pensa sobre
Alá seja a absoluta verdade? Você não percebe a sua presunção?
Agora Ismael estava diante dela, segurando-a pelos braços e sacudindo-a,
como se quisesse despertá-la de um sonho ruim.
- Salema, ouça bem. Eu quero que esqueça todo esse absurdo que acaba de
me contar. Eu quero que a partir de hoje rejeite toda essa doutrina que andou
aprendendo por aí com suas amigas. Isso é uma ordem, Salema.
O olhar dele estava fixo nela e em nenhum momento Salema notou
alguma emoção, alguma paixão na voz do marido. Naquele momento ele era o
seu dono, um homem como qualquer outro de seu povo, que tem o direito e o
domínio sobre sua mulher.
- Mas, Ismael, foi você mesmo que me ensinou que...
- Cale-se, Salema. Apenas faça o que estou mandando.
- Eu não posso fazer isso, meu marido.
Foi então que ele levantou o braço e a esbofeteou violentamente. Ela caiu.
Naquele momento Salema agradeceu o fato de estar grávida, porque senão ele a
teria espancado. Não parecia o mesmo homem. A rigidez na voz e nos gestos de
Ismael surpreendera Salema. Era a mesma que tantas vezes notara em seu pai.
- E nunca mais me olhe nos olhos. De hoje em diante, e até o meu filho
nascer, você não sai deste quarto. E está proibida de me dirigir a palavra. Eu
errei com você, Salema. Nunca deveria ter-lhe feito todas as vontades. Agora
tem um mês para pensar em tudo isso e desistir desse absurdo que acaba de me
contar.
Com essas palavras Ismael a deixou ali caída no chão. Juntou todos os
papéis, colocou-os de novo na caixa, tomou-a para si e caminhou em direção à
porta.
- Ismael, por favor, não os destrua. São importantes para mim – implorou
Salema, embora amedrontada.
Ele a fitou mais uma vez. Por um instante Salema teve a impressão de ver
uma sombra de tristeza em seu olhar. Mas, sem dizer palavra alguma, levando
a caixa consigo, Ismael deixou o quarto da esposa, fechando a porta atrás de si.
O choro foi inevitável. Ainda sentada no chão, sem forças para se levantar,
Salema olhou ao redor do seu quarto. Naquele ambiente ela fora feliz. Naquele
quarto ela fora pela primeira vez amada, valorizada e reconhecida como
alguém especial. Fora ali também que ela tivera uma das experiências mais
profundas com Jesus, quando ele lhe falara do caminho. Agora naquele mesmo
lugar ela acabara de ser rejeitada e humilhada como todas as mulheres são. Os
cortinados, o tapete macio, a cama enorme e macia, nada disso a aconchegava
mais. Estava só, e pela primeira vez ela era confrontada com a decisão de seguir
a Jesus ou salvar o relacionamento com o homem a quem amava. Num canto do
quarto, estendido ao pé da mesa-de-cabeceira, estava o seu tapete de oração.
Salema foi até lá e, ajoelhando-se, começou a conversar baixinho com aquele
que ela tinha certeza estava ali junto dela.
“Oh, Deus, ajuda-me! Eu estou só. Eu tenho medo, Jesus. Não sei o que
fazer. Tenho medo por mim e por meu filho. Tenho medo por Lisa e seus pais.
Não sei o que fazer. Escolher ficar contigo significa rejeitar tudo o que tenho,
minha família, meu marido. O que vai ser de mim? Deus, ajuda-me. Agora,
mais do que nunca, eu preciso saber que tu estás comigo.”
As lágrimas corriam-lhe livremente pela face naquele momento. Tinha as
mãos erguidas como se quisesse que alguém a levantasse dali. De repente ela se
lembrou de um dos manuscritos que Lisa havia lhe dado. Era como se uma voz
serena, vinda de dentro dela, a fizesse lembrar. Era a história de dois homens
que, mesmo presos, açoitados e acusados de perverter e propagar costumes que
não eram do povo onde estavam, ainda assim cantavam louvores ao Deus em
quem acreditavam. Mais uma vez ela foi inundada por ele, e a partir dali ela já
não se sentia mais só. A sua doce presença já lhe era conhecida. Era como se
todo o temor que sentia estivesse sendo arrancado do seu coração. Com o
mesmo poder com que Deus havia sacudido os alicerces daquela prisão, ele
poderia soltar-lhe as cadeias também. E com essa certeza, ela orou outra vez:
“Oh, Deus, por favor! Como tu abristes todas as portas àqueles homens
naquela noite, vem agora soltar as cadeias que têm aprisionado a mim e a meu
povo para que eles te conheçam como tu me tens dado a oportunidade de te
conhecer.” Ainda ajoelhada no seu tapete de oração, mas agora prostrada com a
cabeça entre as mãos, um doce canto começou a brotar dos lábios de Salema, e a
partir daquele momento ela teve a certeza de que jamais o deixaria. Qualquer
que fosse o seu futuro, ela ficaria com ele.
CAPÍTULO 19

Completa solidão

Os dias passavam devagar com Salema trancada naquele quarto. Já


haviam se passado duas semanas desde a discussão com Ismael. Ela nunca mais
o vira. Aliás, ela nunca mais vira ninguém daquela casa, além da criada, que
vinha todos os dias ajudá-la com suas necessidades pessoais e trazer-lhe
comida. Era uma nova criada, com a aparência de ser mais jovem do que ela,
que provavelmente estava trabalhando no lugar de Lisa, sua amiga e dama de
companhia. O que teria sido feito de Lisa? O seu coração ficava apertado só de
pensar que alguma coisa de ruim pudesse ter acontecido com ela. Em uma das
vezes em que a criada estava no quarto, Salema perguntou-lhe sobre a amiga.
Ela não respondeu. Nunca falava. Salema entendeu que ela tinha ordens
expressas para não lhe dirigir a palavra. Algumas vezes, Salema ouvia passos
no corredor que chegavam bem perto da porta do seu quarto e depois se
distanciavam. Ela tentava imaginar quem seria. Na ala das mulheres, apenas as
criadas, a sogra e as cunhadas tinham acesso quando vinham visitar a família.
Também aquilo não importava. Quem quer que fosse, não queria se aproximar
dela; portanto, ela nada tinha a fazer. Com os dias monótonos e sem a liberdade
que tinha, Salema imaginava o que estaria acontecendo do lado de fora. Às
vezes, pensava na sala dos pássaros. A sua sala favorita. Lembrou-se do
cuidado que Ismael tivera em prepará-la melhor só para que ela pudesse passar
o período de repouso obrigatório no lugar mais bonito da casa. Agora ela não
podia sequer ir até lá. Estava privada de tudo. Sentia-se exausta. Cada vez
maior por causa do final da gravidez, ela tinha os pés e as mãos completamente
inchados e doloridos. Ela passara a maior parte dos dois últimos dias na cama.
Os enjôos também estavam de volta. Desde aquela noite da discussão com
Ismael, ela se sentia mal disposta. Quase não conseguia comer as refeições que a
criada trazia. Só o cheiro dos alimentos lhe causava náuseas. Mesmo assim, ela
insistia em comer qualquer coisa pensando no bem-estar do filho. Agora faltava
pouco. Salema sabia que mais alguns dias e Ismael teria de entrar ali para levá-
la ao hospital. Quando ela pensava nisso, tentava imaginar como seria. Estava
ansiosa por ver o rosto do filho. O peso da barriga, as dores que vinha sentindo
nos últimos dias, o cansaço e principalmente a solidão faziam-na desejar ainda
mais a chegada do filho. Quando ele já estivesse com ela, Salema poderia então
ter alguém ao lado dela. Mesmo que Ismael não a quisesse ver nunca mais, ela
teria o filho.
Aquelas semanas ali isolada a tinham feito pensar muito sobre a causa do
seu cativeiro. Ela gastava a maior parte do tempo orando e pensando nas coisas
que aprendera enquanto tinha os manuscritos de Lisa. Ela não queria esquecer-
se de nada do que já havia aprendido. Em um desses dias, na tentativa de se
lembrar, começou a reescrevê-los. Salema sabia que aquilo não seria como
aqueles textos copiados diretamente da Bíblia, mas eram uma forma de manter
vivas em sua memória as verdades em que agora acreditava. E assim iam
passando seus dias. Naquela tarde, entretanto, após um cochilo rápido, Salema
ouviu rodar a chave da porta do quarto. Pensou ser a criada outra vez trazendo-
lhe qualquer coisa. Mas qual não foi o seu espanto quando viu a mãe diante de
si. Salema levantou-se e correu até a mãe, na esperança de que ela tivesse vindo
lhe ajudar a sair daquela situação. Mirna, porém, tinha uma expressão fria no
olhar. Não tentou abraçá-la nem manifestou alguma alegria em vê-la. Pelo
contrário, afastou-se de Salema quando ela se aproximou mais.
- Salema, não se aproxime de mim. Eu vim até aqui porque alguém precisa
saber como você está. Afinal, seu dia se aproxima.
- Mãe, porque está falando comigo dessa maneira?
- Você não sabe mesmo, Salema?
- Mãe, eu não posso acreditar que você também esteja me rejeitando. Eu
imaginei que todos o fariam, menos você, mãe. Eu pensei que não tivesse vindo
me ver porque não tinha permissão de Ismael, ou de meu pai. Não acredito que
não posso contar com você, mamãe.
- Salema, não vê que é um absurdo o que fez?
- Mas o que eu fiz, mamãe? Você sabe realmente o que está acontecendo
comigo?
- O que eu sei é que tem negado aquilo que é mais precioso em nós. A
nossa fé. Você tem desonrado o nosso povo, ao dizer que acredita nesse livro
totalmente corrompido que os cristãos dizem ser a Palavra de Deus.
- Não é verdade, mãe. A Bíblia não foi corrompida. Ismael ensinou-me
tempos atrás que Deus... – começou Salema, mas sem muitas forças para
argumentar. Sentia-se muito cansada. Voltou-se novamente e sentou-se na
cama. Mirna ficou admirada ao ver o estado de Salema. Algo estava errado com
a filha. Ela estava completamente inchada. Seus pés e suas mãos estavam o
dobro do tamanho normal, e era visível o abatimento no rosto da filha. Aquilo
não tinha só a ver com o final da gravidez, e Mirna era experiente nessa
questão. Ou ela estava muito enganada, ou Salema estava doente.
- Há quanto tempo tem se sentido assim, mal disposta, Salema? –
perguntou Mirna, preocupada.
- Desde que Ismael me deixou assim.
Agora a respiração dela era ofegante. Mirna não resistiu. Embora tivesse
ordens expressas de Khalil e Ismael para não dar nenhuma atenção à filha, ela
não pôde resistir ao vê-la daquela maneira. Afinal apesar de tudo o que estava
acontecendo, Salema era sua filha, e naquele momento ela estava precisando
dela. Com esse pensamento Mirna chegou mais perto, arranjou os travesseiros
de Salema e ajudou-a a deitar-se novamente, tocando-lhe delicadamente a face.
Foi então que suas suspeitas se confirmaram.
- Salema, você está com febre alta! – exclamou Mirna, com visível
preocupação.
- Eu não sei, mãe. A verdade é que há dois dias mal consigo me levantar.
- Você tem se alimentado?
- Pouco, eu tenho muitas náuseas. Mas não se preocupe, tudo vai correr
bem. Você não sabe quanto eu tenho sentido a sua falta – disse Salema,
chorando e estendendo a mão em direção à mãe.
Mirna hesitou por um momento, mas, ao ver a menina tão frágil, pouco
mais que uma criança, sofrendo ali e abandonada naquele quarto, embora não
concordasse com o que Salema havia feito, tomou-lhe as mãos entre as suas.
- Querida, fique quieta agora. Você precisa de um médico nesse momento.
Não fale muito nem se emocione demais. Pense no seu filho, Salema.
- Mas, mamãe, eu queria tanto lhe contar. Queria tanto que pudesse
entender.
- Eu prometo que vamos conversar. Mas agora se cale, fique aqui por um
momento. Eu volto num instante.
Salema observou a mãe sair e deixá-la sozinha outra vez. As lágrimas
teimavam em escorrer-lhe dos olhos. Embora aquele fosse um dia quente, ela
estava com frio. Tentou imaginar o que aconteceria a seguir. Seu coração batia
forte com a possibilidade de ver Ismael outra vez. Ela ainda o amava, não havia
dúvidas disso, embora soubesse que um abismo havia surgido entre eles desde
aquela noite em que estiveram juntos pela última vez. Sentia-se fraca. O quarto
todo girava a sua volta, sons de vozes distantes chegavam-lhe aos ouvidos.
Pareceu-lhe reconhecer a mãe e a sogra. As vozes iam e vinham, penetrando-lhe
a mente, mas sem que ela pudesse entender. De repente uma dor aguda no
braço fez com que ela tentasse se erguer. Era alguém vestido de branco que lhe
aplicava uma injeção. Havia mais alguém sentado a seu lado. Tentando
reconhecer quem era, Salema fixou o olhar na pessoa que segurava seu pulso e
lhe media a tensão arterial. E, apesar do mal-estar que sentia, ela não teve
dúvidas. Era Ismael, seu marido, que estava com ela outra vez. Tentou dizer
qualquer coisa, porém as palavras não lhe saíam dos lábios, mas, antes de
adormecer, Salema ouviu nitidamente o marido ordenar:
- A pressão arterial dela está muito elevada. Os sintomas são de eclampsia.
Vamos levá-la para o hospital imediatamente. Meu filho pode estar correndo
risco de vida.
Salema acordou assustada. Ela não sabia onde estava e nem o que tinha se
passado com ela. Olhou ao redor e entendeu que estava num dos quartos do
hospital de Ismael. Tinha o corpo ligado a alguns aparelhos, e pelo visto era
alimentada pelo soro que pingava devagar logo acima de sua cabeceira. Quanto
tempo ela estaria ali? Não sabia dizer. Sentia-se mal. Começou então a lembrar-
se daquela tarde em seu quarto. Sentindo uma dor forte na parte inferior do
abdome, ela tocou a barriga. “Meu filho”, gritou Salema, completamente
assustada ao perceber que não estava mais grávida. “Onde está o meu filho?”
CAPÍTULO 20

A decisão mais importante

Depois que Ismael percebeu a gravidade do estado de Salema, ele a levou


imediatamente para o hospital. Eles haviam sonhado juntos em inaugurar o
hospital com o nascimento do filho deles. Mas isso fora em outra época, antes
de Salema traí-lo daquela maneira. Desde que descobrira o que Salema fizera e
depois do confronto entre os dois, ele nunca mais fora o mesmo. Estava triste.
Foi com imensa tristeza que ele compartilhou, primeiro com o pai, depois com o
sogro o que estava acontecendo com Salema. Ismael lembrava-se da indignação
do pai.
- Você sabe o que nossa lei permite num caso desses, não sabe?
- O que quer dizer, pai?
- Se ela fosse minha mulher, não viveria para contar aos outros sobre esse
absurdo.
- Eu não posso fazer isso, pai, ela está grávida. É o meu filho que vai
nascer em breve.
- Então espere a criança nascer e depois faça o que deve ser feito.
Com o sogro não fora diferente. Ele disse a Ismael que a decisão teria de
ser dele. Ele era o marido. Mas alertou-o de que não queria Salema de volta. Se
ele apenas se divorciasse dela, seria ele, Khalil, que tomaria a decisão
implacável. Uma mulher que fez o que Salema havia feito não merecia
continuar convivendo com as outras pessoas. O castigo de Tanya seria pouco
para ela. Mas a Khalil cabia uma decisão importante. O que fazer com Lisa e sua
família? Depois que Ismael lhe contou sobre a maneira como Lisa havia ajudado
Salema, ele se viu responsável por permitir que dentro de sua própria casa uma
família como aquela tivesse vivido tantos anos. Ele sempre soubera que,
embora aceitassem a maneira de viver e a fé de seu povo, eram pessoas
diferentes e tinham uma fé diferente, mas nunca imaginou que um dia eles
quebrariam o compromisso que haviam feito, quando ali chegaram, de nunca,
em hipótese alguma, divulgar outra fé e outra doutrina que não fosse o
islamismo. Agora Khalil deveria tomar uma decisão quanto a eles. Ele fora
traído, e isso não suportava. A filha mais velha estava irremediavelmente
perdida por culpa deles e ele não sabia até onde as outras filhas e o pequeno
Salim também tinham sido influenciados. Por isso estava irredutível, não
haveria perdão para Lisa e seus pais. Nem os pedidos incessantes de Mirna
para que ele tivesse misericórdia de Beth e da filha o fizeram mudar de idéia.
Assim, alguns dias depois da descoberta de Ismael e sem que ninguém
soubesse como explicar, a família desapareceu sem deixar nenhum vestígio do
seu paradeiro.
Quando Mirna soube o que havia acontecido, juntamente com duas cridas,
foi até a casa onde eles viviam. Vasculhou cada canto para entender o que
Khalil havia feito com eles. Mas não havia vestígios. A casa estava intacta, como
se tivessem saído para retornar em breve. Olhou à volta de tudo e em dado
momento algo lhe chamou a atenção. Ao lado da cama, uma velha Bíblia estava
aberta em cima da mesa-de-cabeceira. Aquilo foi o suficiente para lhe dar a
certeza de que eles haviam partido para nunca mais voltar. Naquele momento,
Mirna voltou-se para as criadas e ordenou-lhes que limpassem aquela casa e
que queimassem tudo o que pudesse lembrar que aquela família tinha um dia
vivido ali.
Ismael, entretanto, não sabia o que fazer. Embora soubesse que a situação
era grave e que teria de tomar uma decisão, ele sofria. Amava Salema. Não
queria demonstrar isso nem queria deixar que percebessem que estava indeciso,
mas era certo que a amava. Não voltara a ver Salema desde aquela noite em que
a esbofeteara. Mas não podia negar que sentia imensa falta dela. Às vezes, sem
que ninguém percebesse, ele andava pelo corredor da ala das mulheres em
direção ao quarto dela e tentava ouvir algum som que viesse de dentro. Sentia-
se ridículo ao fazer isso. Se alguém o visse, certamente iria qualificá-lo de fraco.
O seu pai tinha razão quando dizia que o Ocidente havia influenciado
demasiadamente a sua vida. Estava agora, como muitos que conhecera no
passado, deixando que os sentimentos o dirigissem. Mas Ismael sabia que tinha
que ser forte. Afinal, da sua decisão dependia o futuro do filho que estava para
nascer. Ele não poderia permitir que o menino fosse educado por uma mãe
como Salema. Não, ele não vacilaria. Faria o que deveria ser feito. Foi com essa
convicção que ele entrara no quarto da esposa naquela tarde, depois de Mirna
ter-lhe contado o que estava ocorrendo. Mas, no momento em que viu Salema
naquele estado, o impulso que o moveu foi salvá-la imediatamente, e salvar
também a vida do filho.
Quando Salema chegou ao hospital, o seu estado era considerado grave.
Uma equipe médica foi chamada a intervir. Usaram todos os recursos
necessários para que a eclampsia fosse controlada. Era preciso que fossem
rápidos, e uma cesariana foi necessária. Felizmente, após algum tempo, e apesar
de em alguns momentos Salema ter estado entre a vida e a morte, os médicos
foram bem-sucedidos, e qual não foi a surpresa de Ismael ao perceber que não
só Salema lhe dera o filho desejado como também uma filha. Depois de dois
dias na unidade de terapia intensiva, Salema fora transferida para o quarto,
sedada, por causa do seu estado, e ainda necessitando de alguns cuidados. Fora
deixada sob os cuidados de uma enfermeira. Os filhos estavam saudáveis. Uma
ama-de-leite os amamentava enquanto Salema se recuperava. Ismael estava
muito orgulhoso. Tinha o filho varão que tanto desejava. A menina também era
linda e não havia como negar a sua semelhança com a mãe. Ismael sabia que
agora que seus filhos haviam nascido, nada mais o impedia de tomar uma
decisão. Pelo seu pai, Salema teria sido abandonada à própria sorte, logo após o
parto difícil. Mas ele não poderia fazer isso. Como médico, cabia-lhe salvar a
vida da esposa. A sua vida pessoal seria decidida entre quatro paredes.
Qualquer que fosse a sua decisão, seria feita logo após a recuperação total de
Salema. Enquanto ele ainda pensava nessas coisas, um enfermeiro entrou em
seu gabinete para lhe avisar que a esposa havia acordado. Era chegada a hora
da derradeira conversa. Não haveria como adiar mais, e ele já havia tomado a
sua decisão.
Ismael entrou no quarto de Salema quando a enfermeira a ajudava a
sentar-se. Fora grande o susto dela quando percebera que o filho havia nascido.
Como a criada que a ajudava em seu quarto, a enfermeira não falava com ela.
Compreendeu então que seu cativeiro continuava, mas agora havia uma
diferença, ela tinha que saber do filho. Para onde o teriam levado, por que não o
traziam? Ela estava acordada havia horas, repetindo em vão que precisava ver o
filho, porque ninguém lhe dizia nada. A enfermeira saiu imediatamente após a
entrada de Ismael. Caminhando em direção à cama em que estava sentada
Salema, ele observou que ela já não corria nenhum risco. A cor voltara ao rosto
e, embora ainda enferma, ela estava bonita outra vez. Mas não foi para isso que
ele fora até ali. Eles tinham de ter uma conversa. A mais séria desde que se
conheceram. Algo inevitável e decisivo para ambos, que mudaria certamente o
rumo da vida deles.
- Onde está o meu filho, Ismael? – perguntou Salema, ansiosa. – Desde que
acordei tenho feito essa pergunta, mas ninguém me diz nada. Está acontecendo
alguma coisa com ele?
- Nosso filho está bem, não se preocupe. Aliás, não só ele como a menina
também – respondeu Ismael, tentando esconder a emoção por compartilhar
com ela algo que até pouco tempo atrás era tão precioso para eles.
- Você está me dizendo que eu dei à luz dois filhos?
- Um menino e uma menina, ambos saudáveis e sem nenhuma seqüela por
causa do parto difícil que teve.
- Oh, Deus! Obrigada! – exclamou Salema, sem perceber que o rosto de
Ismael se fechara diante de sua exclamação. – Eu quero vê-los Ismael, por favor.
Eu já estou bem, não há mais necessidade de ficarem longe de mim.
- Você não pode, Salema, não agora. Antes disso eu quero saber qual foi a
sua decisão.
- Do que está falando? – perguntou Salema, apreensiva.
- Você sabe. Você me traiu, Salema. Traiu o nosso povo e a nossa religião.
Mas eu estou lhe dando uma chance de renunciar agora e também diante da
nossa família a essa fé absurda que diz ter.
- Eu não posso fazer isso, Ismael.
- Não só pode, como deve fazê-lo, Salema. Porque, se não o fizer, nunca
verá os seus filhos. Eu me divorciarei de você e deixarei que seu pai decida o
que fazer com você.
- Ismael, não pode fazer isso. Eles são meus filhos. Você não pode me
colocar nessa condição. Por favor, tire o que quiser de mim, mas não as crianças,
eu lhe peço. Deixe-me vê-los, Ismael.
Ismael não disse nada, apenas se manteve ali, parado, impassível, sem
nenhuma demonstração de compaixão, enquanto Salema soluçando e chorando
em evidente desespero implorava a ele que a deixasse ver os filhos.
- Essa é uma decisão que não é minha. Você tem de decidir se quer ficar
com as crianças ou não. Se renunciar a esse absurdo e publicamente declarar
que rejeita essa religião, tudo voltará a ser como antes e aí, então, poderá ver
nossos filhos. Dentro de poucos dias você deixará o hospital. Até lá terá algum
tempo para pensar em tudo isso. Pense bem. Está em suas mãos a decisão.
Com essas palavras, Ismael saiu deixando Salema perplexa. Não, ela não
podia acreditar que o marido estava fazendo aquilo com ela. Como um homem
que ela julgara tão especial era capaz de agir agora de maneira tão cruel? Um
sentimento de ira inundou-a. Ela estivera cega o tempo todo. Ismael sempre
fora como qualquer outro homem, ela é que nunca se dera conta disso. Ou
melhor, talvez tivesse percebido, mas não quisesse acreditar. Ele a tratava tão
bem, fingia que a amava e agora era capaz de lhe tirar o bem mais precioso que
tinha: os filhos. Salema agora chorava sem parar. Chorava por ela mesma e pela
dor que sentia, chorava pelas mulheres de seu povo, subjugadas, desprezadas,
desconsideradas e tão bem-cuidadas como qualquer objeto da casa do marido,
úteis enquanto necessárias e abandonadas à própria sorte quando não mais
interessavam. Mulheres entre as quais a sua filhinha, agora incluída. Ela não
sabia o que fazer. A dor em seu peito era muito maior do que a dor física que
sentia pela cirurgia. Sempre determinada e convicta, apesar de viver numa
sociedade em que tais qualidades não eram nem um pouco valorizadas numa
mulher. Teria de escolher entre a sua fé e a possibilidade de viver ao lado dos
filhos. Eis uma escolha que ela não se sentia capaz de fazer.
CAPÍTULO 21

O preço de ser livre

Depois de mais alguns dias no hospital, Salema teve alta, e Ismael veio
pessoalmente buscá-la. Até aquele dia ele não a procurara mais. Também não
havia permitido que ela visse os filhos, que, por sinal, já estavam em casa e
continuavam sendo cuidados pela ama-de-leite. Quando entrou no quarto da
esposa, notou seus olhos inchados. Ela esteve chorando com certeza, e, embora
isso lhe provocasse um aperto no peito, não deixou transparecer nenhuma
emoção; apenas lhe dirigiu a palavra para ordenar que cobrisse o rosto com
véu. Ao passar pelo imenso portão que dava acesso à rua, Salema ainda teve
tempo de olhar para trás e ver a imensidão daquele edifício. Ela havia estado ali
apenas uma vez no início da construção, mas até então não tinha idéia de como
era vultoso o empreendimento de Ismael. Ele sonhara com aquele hospital.
Moderno, suntuoso e muito bem equipado. A melhor equipe médica
estrangeira fora contratada, além dos médicos locais que também já atuavam
ali. Apenas a escola de medicina não havia sido inaugurada. Como eles tinham
planejado anteriormente, e embora as coisas não tivessem corrido como
desejavam, o nascimento dos filhos de Ismael inaugurou o centro cirúrgico do
hospital e, a partir dali, tudo passou a funcionar a pleno vapor. Salema sonhara
sair daquele hospital com o filho nos braços. Sabia que aquele seria um
momento só seu. Um momento que desejou compartilhar com o marido, afinal,
era o filho deles. Um filho desejado e amado muito antes do seu nascimento.
Mas agora, ao transpor aquele portão, o que ela levava consigo era a dor da
ausência dos filhos e a incapacidade de fazer qualquer coisa para reverter
aquela situação. Ela a princípio pensou que iriam diretamente para casa. Tinha
uma ponta de esperança que no ambiente onde haviam sido felizes Ismael
mudasse de idéia e a deixasse ver os bebês, por isso ficou surpresa quando o
motorista parou o carro diante do portão da casa do seu pai. Havia algum
tempo não ia até lá. Não se lembrava de quando havia sido a última vez, mas
mesmo assim podia perceber que tudo estava igual como no tempo em que ali
vivia. A fachada da casa grande continuava a reluzir de tão branca; as grandes
chaminés e o jardim bem-cuidado onde Lisa e ela tantas vezes correram e de
onde pela primeira vez tia Tanya havia contemplado o horizonte tão desejado.
Contemplando o jardim, sentiu profunda tristeza. Nunca mais correria pelo
meio das flores nem colheria malmequeres nem rosas para enfeitar os casos da
sala. Olhando o jardim, observou também um homem diferente cuidando das
flores. Onde estaria Lisa e sua família? O que teria acontecido com eles? Até
agora ninguém havia lhe falado no assunto, mas Salema, conhecendo a rigidez
do pai, temia que algo muito grave pudesse ter ocorrido com eles. Ainda
observando tudo o que estava a sua volta como se fosse aquela a última vez,
Salema entrou na sala grande logo atrás de Ismael. Mais espantada ainda ficou
ao ver que toda a sua família estava ali dentro daquela sala, com exceção apenas
das irmãs mais novas. Os avós, os pais, as tias e os seus maridos e os pais de
Ismael também. Todos olhando fixamente para ela, desde que entrou. Ela não
sabia o que estava acontecendo, mas diante da decisão que Ismael lhe impusera,
com certeza eles estavam todos ali para ouvi-la renunciar àquilo que para eles
significava uma grande traição. Diante do que via, Salema sabia que não
haveria saída. Procurando um lugar para se acomodar, tirou o véu que lhe
cobria o rosto e esperou. O avô foi quem falou primeiro. Numa sociedade
patriarcal como a que viviam, não foi surpresa para Salema ser ele a dirigir-lhe
a palavra.
- Você sabe por que está aqui, não sabe? – perguntou o avô de Salema.
- Sim, eu sei, meu avô – respondeu Salema, sem nenhuma agitação,
embora não ousasse fitar-lhe os olhos, o que não lhe seria permitido de maneira
alguma, e tivesse as mãos frias e trêmulas diante do receio que sentia pelo que
estaria por vir.
- Eu quero que saiba que esta reunião foi feita a pedido do seu marido.
Para mim e para muitos aqui, essa situação já teria resolvida de outra maneira,
mas Ismael acredita que você pode se recuperar; portanto, vamos lhe dar essa
chance. Agora eu quero que, diante de todos aqui, você relate, sem esconder
nada, exatamente como tudo aconteceu.
A voz dele era fria. Mesmo se tivesse observado qualquer sinal de
sofrimento no rosto da neta, nem por um momento mostrou alguma emoção.
Aliás, Salema não poderia esperar isso dele. Fora ele que implacavelmente
deixara morrer sua tia. E ela sabia que, se a ele fosse dado o poder de decidir
sobre sua vida, com certeza o seu fim não seria diferente.
- O senhor quer que eu lhe conte tudo?
- Tudo, quem a ajudou, quais foram as influências, se há mais pessoas
envolvidas nessa história que nós não conhecemos. E principalmente se alguma
de suas irmãs foi igualmente influenciada.
Foi então que Salema começou a falar. Falou-lhes exatamente como fizera
com Ismael, dos sonhos que a princípio a atormentaram. Do lugar onde o brilho
era intenso como os raios do sol e onde tudo resplandecia como ouro refinado.
Falou-lhes também do homem que a conduzia, mostrando-lhe tudo, inclusive o
lugar escuro do outro lado do imenso portão. Contou-lhes com detalhes a
experiência profunda que tivera durante o rito da circum-ambulação e também
dos sonhos que se seguiram. Nesse momento, embora Salema não pudesse
perceber, porque mantinha a cabeça abaixada e seus olhos fixos no chão, uma
onde de profunda indignação podia ser sentida entre eles. A jovem, porém, ao
contrário de todos ali, voltou a sentir aquela sensação de conforto que ela tão
bem conhecia. Então, orando baixinho a cada pausa que fazia, contou-lhes
ainda das dúvidas que foram surgindo à medida que conversava com Nayla e
Lisa, até aquela noite em que quase perdera os bebês. A partir dali, ela já não
tivera mais dúvidas. Contou-lhes em detalhes o sonho daquela noite. A morte
do homem. O mesmo homem de todos os seus sonhos. A crucificação dele e a
profunda convicção que tivera de que ele era Jesus, o filho de Deus, que
morrera daquela forma por amor a ela e por todos ali. Quando Salema terminou
de proferir essas últimas palavras, o avô levantou-se e num gesto esbofeteou-a
na face, diante da passividade de todos. Com o rosto ainda a arder, ela erguei os
olhos em busca da mãe. Buscava encontrar nela o apoio de alguém que a
amasse e pudesse entendê-la. Mas o que encontrou foi o mesmo misto de
indiferença e repulsa que ela via em todos ali.
- Você não vê o absurdo do que está dizendo, menina? – disse Khalil,
indignado. – Alá nunca teve filhos. Como pode acreditar que ele se dignaria a
descer até aqui para ter relações com uma mulher qualquer, para que enfim
pudesse ser o pai de Jesus?
- Não, meu pai, isso seria realmente uma blasfêmia, e qualquer religião
que ensine tal coisa deve ser mesmo rejeitada – disse Salema, convicta.
- Então, concorda que o que acaba de nos contar é uma blasfêmia.
- Eu concordo que jamais Deus teve sexo com uma mulher. Jesus não é
filho de Deus no sentido físico. O que aconteceu com Maria, a mãe de Jesus, foi
um toque sobrenatural do próprio Espírito de Deus.
Mais uma vez se fez silêncio na sala até que o mesmo foi quebrado pelo
próprio Ismael.
- Salema, você disse que acredita que o homem de seus sonhos é Jesus, o
profeta. Pois eu lhe digo que esse, que você diz ser tão especial, é um dos cento
e vinte e quatro mil profetas de Alá. Você está cansada de saber que Maomé é o
maior e o último de todos os profetas. Não vê a importância que está dando a
alguém que veio antes daquele que é o maior profeta de todos os tempos e o
único profeta de Alá na atualidade?
Salema tinha medo da resposta que daria a seguir, e se não fosse a certeza
de que Jesus estava com ela provavelmente tentaria sair correndo dali. Sabia
que tudo o que dissesse despertaria maior indignação ainda. Ela se lembrava
bem do sentimento de repulsa que sentira após a primeira conversa com Nayla.
Ela não poderia culpá-los. A fé e a tradição de toda uma gente estavam sendo
contestadas por ela, uma mulher, que lhes pertencia, que fora criada ali e que
sempre vivera sob a mesma tradição. Não, eles não aceitariam nada do que ela
dissesse, por mais fortes que fossem os seus argumentos. Ainda assim, ela
respondeu:
- Mas foi com você que aprendi que, segundo o Alcorão, o profeta Jesus
virá no fim para julgar o mundo.
- E isso é verdade. É o que diz o Santo Alcorão.
- Então, se isso é verdade, quem será o último profeta de Deus?
Ismael não teve resposta. Então Salema continuou cada vez mais convicta.
- Além disso, Jesus não é apenas um profeta, é o Salvador. O meu
salvador. E um salvador é maior que um profeta.
Ismael conteve o impulso de esbofeteá-la outra vez. Não era o momento.
Ainda tinha esperança de vê-la renunciar de uma vez por todas àquela
bobagem.
- Você não vê o engano em que está envolvida, Salema? – disse ele, mais
uma vez tentando dissuadi-la.
- Você é que não está entendendo, Ismael. Ele deu a vida por mim. Foi
crucificado pelos meus pecados, você não vê? O lugar dos meus sonhos é o
lugar para onde eu irei quando a minha vida terminar. Ele é a porta de entrada
para esse paraíso que nosso povo almeja tanto conquistar.
Nesse momento foi Khalil quem chegou até bem perto da filha e,
erguendo-a bruscamente da cadeira onde estava sentada, esbofeteou-a uma,
duas, três vezes... até a mão cansar. E, enquanto lhe batia, repetia várias vezes
que aquele paraíso existia sim, mas não era um lugar para uma mulher suja
como ela. E, enquanto Khalil lhe batia, Salema lembrou-se de que aquelas mãos
foram as mesmas que a acariciaram um dia, num momento de muita aflição.
Como ela desejara ser amada pelo seu pai! Mas foi somente naquele instante
que ela pôde compreender que Khalil jamais poderia amar quem quer que
fosse, porque ele não conhecia o verdadeiro amor.
Ninguém disse nada. Apenas um murmúrio entre as mulheres presentes
quando assistiram à cena. Embora o sangue lhe jorrasse dos lábios, Salema não
chorou. Caída no chão e sem forças para se erguer por causa da recente cirurgia,
ela permaneceu onde estava. Ninguém tentou ajudá-la. Com o rosto marcado
ela olhou para as pessoas ao redor. Ela sabia que nada resultaria daquilo, e
também estava convicta de que o momento crucial daquela conversa estava
cada vez mais próximo.
- Levante-se, Salema – ordenou o avô.
Com dificuldade, ela foi se arrastando até a – Nós já ouvimos tudo o que
tinha a dizer. Cada palavra que diante de todas essas testemunhas é prova da
sua traição. Você rejeitou o seu povo, a sua religião e a sua família. Ainda assim
o seu marido quer lhe dar a oportunidade de fazer uma escolha. Portanto, a
minha pergunta será direta, e quero também uma resposta direta, sem rodeios.
Ninguém aqui precisa ouvir mais nada sobre aquilo em que diz acreditar.
Salema não respondeu. Apenas orava e tremia sem conseguir se controlar.
- Salema, você renuncia a todas essas experiências que disse ter tido?
Renuncia às doutrinas que aprendeu pelos manuscritos encontrados por Ismael
no seu quarto? Renuncia a todos os ensinos dos cristãos sobre o profeta Jesus?
Confessa que o único livro santo é o Santo Alcorão e que não há nenhum deus
além de Alá e que Maomé é o seu profeta?
Salema não respondeu. Sabia que de sua resposta dependeria a
oportunidade de conhecer os filhos e, até mais do que isso, dependeria sua
própria vida. Ela estava certa de que o avô ou o pai prefeririam vê-la morta a
deixá-la viver a sua nova fé. Ela não sabia o que fazer. Amava Jesus
verdadeiramente. Nesses últimos meses ele tinha se revelado a ela. Ela sabia
com profunda convicção que tudo em que agora acreditava era a verdade, mas
sabia também que não haveria palavras que pudessem convencer aquelas
pessoas a sua volta. Seria necessário muito mais do que isso. Seria necessário
que eles também fossem tocados da mesma forma com que ela fora. Algo que,
como Jesus ensinara a um homem tão religioso quanto os da sua família,
deveria nascer do espírito, revelado no íntimo do homem, transformando cada
um deles em pessoas verdadeiramente diferentes. Lembrou se de Nayla, a
amiga com quem tinha convivido tão pouco, mas que se arriscara tanto por ela.
Pensou em Lisa também. Depois de tudo aquilo que acontecera ali naquela
tarde, Salema não tinha dúvidas de que algo muito grave acontecera com ela e
sua família. Então, pela primeira vez desde que estivera ali diante de todos, as
lágrimas brotaram-lhe nos olhos. Mais uma vez ela orou, buscando o auxílio
daquele que era o único que lhe havia prometido uma direção. Foi nesse
momento que, como em tantas outras vezes, ela ouviu uma voz suave, vinda de
dentro dela, que lhe prometia que não a abandonaria, mesmo que todos a
abandonassem. Foi então que senti o coração aquecido outra vez. Aos poucos o
temor deu lugar a uma imensa paz. Ela estava triste, porém convicta da sua
resposta, quando o avô a questionou outra vez.
- Salema, você renuncia ao cristianismo e a suas doutrinas?
- Não. Eu não posso fazer isso – respondeu ela, sem hesitar, olhando pela
primeira vez fixamente nos olhos do avô.
Pôde-se ouvir um burburinho dentro da sala. Homens e mulheres
exaltados diante da resposta fria e resoluta de Salema. Mirna não podia
acreditar. A filha devia estar louca. O tempo todo ela esperara que Salema fosse
abraçar a oportunidade de reconciliar-se com a família e o marido. Agora não
haveria mais volta. Aquele seria o fim de Salema.
- Ismael – chamou o avô de Salema -, você ouviu o que todos ouvimos,
não?
- Ouvi, sim.
- Agora é a sua vez de escolher. Você pode divorciar-se de Salema aqui
mesmo, diante de todos, e deixar que Khalil escolha o que fazer com ela ou você
mesmo como marido dela pode fazer o que deve ser feito.
Ismael hesitou um momento. Olhou para o sogro, tentando entender o que
esperava que ele fizesse, olhou para o pai, que havia muito condenara Salema, e
por fim olhou para o avô daquela que ainda era sua esposa.
- Eu vou fazer o que deve ser feito.
- Então, tire-a daqui imediatamente. Lembre-se de que esse é um assunto
de família e, portanto, deve ser discreto. Não se esqueça.
Ouvindo estas últimas palavras, Ismael tomou Salema pelo braço,
obrigou-a a cobrir o rosto com o véu e tirou-a da sala sem permitir que ela
sequer olhasse para trás. Ao sair, entretanto, a jovem pôde ouvir um lamento
que ela sabia vir dos lábios da mãe.
Ismael dispensou o motorista e ordenou que Salema entrasse no banco de
trás do carro. Saindo a toda velocidade, depois de transpor o portão, ele parecia
transtornado. Não disse nenhuma palavra durante todo o trajeto. Enquanto o
marido dirigia, Salema tentou imaginar para onde estariam indo. Ela sabia que,
da forma como tinha deixado a casa de seu pai, para ela não haveria mais volta.
Achou que iria morrer. Notou, entretanto, que estavam dando voltas pela
cidade. Já haviam passado pelo mesmo lugar duas vezes pelo menos. Era como
se Ismael não soubesse para onde ir. Àquela hora da tarde o movimento era
intenso nas ruas da cidade, pessoas indo e vindo de algum lugar se
encontravam aqui e ali. Salema não sabia por que, mas, ao olhar para aquela
gente, a sua gente, ela sentia o coração apertado. Mulheres de rosto coberto,
escondendo atrás do véu a beleza da imagem de Deus. Homens, alguns cuja
expressão mostrava nitidamente a dureza da vida e a rigidez dos costumes.
Outros, porém, não tão formais, mas ainda assim perpetuando nos hábitos e no
dia-a-dia a tradição e a religião do seu povo. Naquele momento, mais do que
em qualquer outro de sua vida, Salema amou sua gente. Ao observar aquelas
pessoas, cada uma delas envolvida com sua própria vida, seus afazeres, sua
história, seu mundo, ela viu brotar dentro do peito uma profunda compaixão.
Compaixão por saber que para aquelas pessoas não havia sonhos, e mesmo que
houvesse o caminho para conquistá-los era quase intransponível. Sua tia tentara
transpô-lo e morrera por isso. Salema, porém, estava certa de que o caminho
existia. Sabia também para onde esse caminho a levaria. Para o lugar especial de
que Nayla lhe falara e que ela mesma conhecera em seus sonhos. Tia Tanya
tinha almejado o horizonte, mas não chegou até lá. Talvez muitos ali também o
quisessem, mas, como a tia, vagavam em vão, porque não havia quem lhes
desse alguma direção. Foi então que Salema chorou outra vez. Mas não estava
chorando por si mesma. Chorava por aquela gente, que, tal como o povo pelo
qual Jesus chorou um dia, eram ovelhas perdidas que precisavam de um pastor.
Eram lágrimas de alguém que sabia que o seu povo precisava de pessoas que
estivessem dispostas, como Nayla e Lisa fizeram com ela, a dar-lhes uma
direção, mesmo que isso significasse o preço de uma vida. Salema não sabia
quanto tempo ainda teria. Nem sabia o que lhe aconteceria a seguir. O que ela
sabia é que era urgente a necessidade do seu povo. Foi com esse pensamento
que ela orou baixinho para que Ismael não a ouvisse.
“Oh, meu amado Deus. Hoje, com certeza, eu posso chamá-lo assim.
Porque te amo mais do que qualquer outra coisa em minha vida. Tu sabes que
para mim esta não foi uma escolha fácil. Mas estou certa de que escolhi a
melhor parte, porque dentre todas as decisões que eu poderia tomar, só tu é
„que tens as palavras de vida eterna‟. Eu estou triste. Perdi minha infância,
meus filhos, minha família e também meu marido, mas apesar disso eu já não
tenho medo, sei que estás comigo. O que lhe peço, pai, é que da mesma forma
como tu tocaste a minha vida, que tu possas tocar também o meu povo. E que,
da mesma forma como tu colocaste Nayla e Lisa em minha vida, tu possas
trazer pessoas valentes para esse lugar. Pessoas que estejam dispostas a mostrar
à minha gente o caminho até Ti.”
No instante em que Salema terminou de orar, Ismael parou o carro.
Distraída que estava com a sua conversa com Deus, ela não reconheceu
imediatamente o lugar onde estavam. Entretanto, quando Ismael lhe ordenou
que descesse, qual não foi o seu espanto ao ver que estavam diante do
aeroporto da cidade. Ela sentia dores intensas em todo o corpo. O lábio cortado
e a cabeça latejavam. Mas, mesmo assim, sem compreender o que Ismael
pretendia, ela o seguiu até a porta principal. Sem lhe dirigir a palavra, Ismael
chegou ao balcão de vôos internacionais. Ali, para surpresa de Salema, ele tirou
do bolso uma passagem de avião, um passaporte e um documento em que
Salema pôde reconhecer a assinatura do marido. Foi então que ela entendeu
que o passaporte era o seu e o documento era uma autorização dele para que
ela pudesse viajar sozinha. Depois de tratar de tudo no balcão, e ainda sem
dizer palavra alguma, ele seguiu caminhando pelo corredor do aeroporto.
Qualquer pessoa que os visse poderia imaginar que eram apenas um casal
partindo para uma viagem de rotina. Quando chegaram ao portão de
embarque, porém, Ismael parou e esperou que Salema se aproximasse. Foi
então que lentamente ele tirou o véu que lhe cobria o rosto e a abaya que lhe
servia de túnica. Desta vez ele não tentou esconder o quanto doía-lha ver o
rosto dela desfigurado daquela forma. Salema, porém, não compreendeu o que
o marido estava fazendo, até que ele disse, tocando-lhe a face ferida:
- Eu a amo, Salema.
Salema viu nitidamente a tristeza estampada nos olhos do marido. Ele
estava sofrendo. Como deveria ter sido grande o conflito que Ismael enfrentara
nestes últimos dias, desde aquela noite em que a fizera prisioneira no próprio
quarto. Só então ela pôde compreender que a decisão de Ismael de não se
divorciar dela diante da família naquela tarde foi para protegê-la. Certamente
ele sabia que, se fosse seu pai a decidir o que fazer com ela, provavelmente seu
fim seria outro. Agora, com ele ficavam seus filhos e parte do seu coração.
Assim pensando e sentindo o coração apertado por partir para sempre,
perguntou ao marido:
- Que nomes você deu aos nossos filhos, Ismael?
- O menino tem o nome Ahmed, em homenagem a meu pai; a menina se
parece tanto com você que eu não poderia dar outro nome senão o seu. Ela se
chama Salema.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Estava diante de um homem
sensível, e o seu desejo naquele momento era que essa sensibilidade pudesse
fazer com que ele se tornasse um bom pai.
- Você tem de ir, Salema. O seu vôo parte dentro de instantes.
Ela não tinha mais o que dizer. Estava livre, mas deixava ali parte da sua
vida e da sua história. Consigo levava apenas a roupa com que estava vestida e
uma saudade profunda da sua infância tão curta, das irmãs mais novas e do
pequeno Salim. Como ela poderia esquecer-se da mãe, que ela tinha certeza de
que também a amava, da casa grande com seu imenso jardim e da sala dos
pássaros, onde o canto das aves a inundava de tanta alegria toda vez que ali
estava. Sentiria saudade também dos momentos felizes que tivera com Ismael.
Da cumplicidade, dos diálogos, da intimidade e do amor que ele lhe dera. Mas
mais do que tudo sentiria saudade dos filhos que não conhecera e da
oportunidade de vê-los crescer, que naquele momento definitivamente estava
lhe sendo tirada.
- Adeus, Ismael – disse ela, com profunda tristeza no olhar.
- Espere, eu tenho algo que lhe pertence – disse ele, tirando de dentro de
uma pequena mala que trazia consigo a caixa que havia tirado do quarto dela
naquela noite.
Salema não queria acreditar. Abriu a caixa e dentro dela estavam intactos
os manuscritos da tia, a carta de Nayla e a fotografia, entre outras pequenas
coisas que ela guardava ali. Os manuscritos copiados por Lisa não estavam lá
nem ela poderia esperar que estivessem.
- Muito obrigada, Ismael - disse ela, olhando para ele pela última vez.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Salema virou-se, passou pelo portão de
embarque e caminhou pelo extenso corredor. Ele ficou ali, parado, vendo-a
andar em direção ao embarque com os cabelos longos à vista, enquanto ele
tinha nas mãos o véu que até há poucos instantes lhe escondia o rosto do
mundo. E, com os olhos marejados de lágrimas, tentando disfarçar a dor que
sentia, ele permaneceu no mesmo lugar, até perdê-la de vista em meio à
multidão.
CAPÍTULO 22

Inglaterra – Muito tempo depois

Ainda com a mesma emoção dentro do peito, Salema olhou a sua volta,
procurando alguém com quem pudesse falar. Todos aqueles dias ali tinham
sido muito especiais para ela, mas aquele em particular estava, desde a primeira
reunião da manhã, despertando-a para o que há muito tempo ela já deveria ter
feito. Era uma conferência como tantas de que já havia participado, porém
aquela lhe chamara a atenção, pois ficara impressionada com a quantidade de
pessoas reunidas ali. Eram pessoas vindas de tantas partes do mundo que, se
não fossem os intérpretes designados para as traduções, ninguém se entenderia.
Havia ocasiões em que ela se emocionava ao ver as pessoas orando em
diferentes idiomas, mas com o mesmo fervor. Salema estava realmente tocada.
Aquele momento de oração por seu povo fez com que ela se lembrasse de tudo
outra vez. Muitos anos se passaram desde que saíra de seu país. A princípio ela
pensara que iria morrer. Ao se ver sozinha na Inglaterra, um país
completamente estranho para ela, foi que percebeu o quanto estava habituada à
proteção que sempre lhe fora imposta e que até então não lhe fazia diferença.
Mas ela sobreviveu. Arrumou um emprego. Primeiro numa loja, onde ganhava
o suficiente para pagar o pequeno quarto no qual vivia e a própria comida. Mas
foi progredindo, até que conseguiu um emprego como secretária de uma
grande empresa de aviação. Falar mais que um idioma foi de grande ajuda para
ela na ocasião. Foi então que conseguiu pagar os estudos, cursou uma faculdade
e depois de algum tempo se tornou uma excelente advogada.
Nunca mais ela ouvira falar da família. Provavelmente todos pensavam
que estaria morta. Também não soubera nada dos filhos, nem mesmo de Ismael,
e ainda sofria com isso.
Levantou-se do seu lugar e começou a andar por entre as pessoas que se
esbarravam aqui e ali. Dentro de uma pasta que segurava nas mãos havia
alguns papéis. Alguns deles eram folhas muito antigas escritas a mão, num
idioma pouco conhecido por ali. Em sua maioria, entretanto, eram folhas
impressas, cujo conteúdo era a história da sua vida. Entre a multidão,
procurava uma de suas melhores amigas, que tantas vezes insistira para que
publicasse a sua história. Até aquele dia ela sempre havia rejeitado essa
possibilidade. No fundo, ela tinha certo receio de ser encontrada. O seu
argumento para não publicá-la era que o objetivo ao escrever era apenas poder
lembrar-se. Não queria esquecer detalhes importantes daquilo que tinha sido a
fase mais importante da sua vida. Mas agora, ao olhar para aqueles milhares de
pessoas ali reunidas, evidentemente comprometidas e tão tocadas quanto ela,
ficou imaginando se realmente, além das estatísticas que todos conheciam, elas
tinham a noção exata do que significava nascer, crescer e viver numa nação
como a sua, onde gerações inteiras têm vivido sem saber que existe um
caminho que pode levá-las além do horizonte, para um lugar de descanso e paz.
Por isso, ao encontrar a amiga, ela despejou a pasta em suas mãos.
- Você tem minha autorização. Pode publicar.
CAPÍTULO 23

Alguns meses depois

“... elas estavam todas com o rosto coberto com o véu. No corpo, a abaya,
aquela espécie de túnica negra, cobria-lhes as vestes. Não tinham um rosto.
Todas as suas emoções estavam escondidas, toda a esperança sufocada, todos
os anseios e desejos estavam guardados dentro de corações marcados por terem
nascido mulheres. Seus nomes não importavam, suas convicções não eram
consideradas, suas vidas não eram registradas. Se havia algum desejo dentro
delas, ninguém sabia. Se amavam, não poderiam expressar, se sonhavam, não
tinham com quem compartilhar. Mas caminhavam. Andavam juntas pisando as
areias do deserto, o asfalto das ruas, como também andavam entre as vielas
estreitas de pequenas aldeias ou ainda no meio da multidão no centro de uma
grande cidade. Algumas estavam cansadas, envelhecidas, quase não podiam
caminhar mais; outras, ainda jovens, pensavam que a oportunidade viria mudar
o seu rumo e tirá-las dali. Mas na verdade era um caminhar em vão. Não havia
rumo nem direção. Ao redor delas, outra multidão de pessoas caminhava, iam
por todos os lados, mas quase não as viam nem se preocupavam com elas.
Entretanto, entre elas alguém sonhou em alcançar o horizonte, a luz que ela via
parecia incessantemente brilhante e chamava por ela. A beleza da visão
ofuscava-lhe os olhos e então ela caminhou até lá. O sol que brilhava sobre
todas lhe pareceu um companheiro que ia com ela. Mas, quanto mais andava,
mais distante ficava a oportunidade de chegar ao lugar que almejava. Cansada
e triste, ela parou. Já não havia mais a luz. Entendeu que o horizonte desejado
era inalcançável para ela, estava sozinha e, então, desistiu. A verdade é que
junto com ela muitas viram a mesma luz e também tentaram, mas da mesma
maneira o horizonte que buscavam se tornou impossível para elas. Em dado
momento, porém, daquela multidão de mulheres alguém parou a caminhada.
Olhando para o alto com as mãos estendidas como se tentasse segurar algo
invisível dos lábios da mulher pôde-se ouvir que conversava com alguém. Eram
doces as palavras que ela proferia. Fio então que, de repente, uma brisa suave
fez com que o véu que lhe cobria o rosto caísse por terra, deixando desnuda a
face morena e mostrando não as marcas do tempo, porque era jovem ainda, mas
as marcas que aquela dura caminhada havia deixado nela. No mesmo instante
aquela jovem mulher mudou de direção. Começou a andar no sentido contrário
de suas companheiras. Aqui e ali ela esbarrava com as outras que não lhe
prestavam atenção. Às vezes tentava falar-lhes, mas elas não a ouviam. E foi
tanto que andou que de repente já não fazia mais parte daquela multidão.
Então, caiu de joelhos diante daquele que mudou o rumo da sua caminhada e
clamou que a mesma brisa suave que soprara para ela, que soprava
abundantemente no meio de tantos lugares daquela multidão de mulheres,
pudesse tocar-lhes a ponto de mostrar que existe um lugar especial e
perfeitamente acessível para elas.”
Salema fechou o livro que tinha nas mãos. Acabara de ler o último
capítulo do livro que contava a sua história. Eram pouco mais de 150 páginas,
nas quais tudo o que lhe acontecera estava ali revelado. Enxugou as lágrimas
que teimavam em brotar dos seus olhos. Todos os detalhes ali registrados
estavam vivos na sua memória e permaneceriam assim enquanto vivesse.
Ainda sentia a ausência dos filhos. Essa dor era impossível de esquecer; porém
a sua esperança era que, da mesma forma que ele lhe tocara um dia, Deus
pudesse tocar a vida deles também. Mas não só a vida dos filhos, mas de todos
aqueles que andavam sem rumo, como aquelas mulheres retratadas nas páginas
do livro que contava a sua história. Lembrou-se de Nayla, a amiga. Onde estaria
ela agora? Jamais poderia saber. Ela estava certa quando disse que não mais se
veriam. Mas não era o mais importante, porque no coração de Salema havia a
certeza de que um dia naquele lugar especial elas se encontrariam.

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