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Uma mulher escrevendo sobre outra mulher. Nada mais comum, não
fosse apenas um detalhe: Salema, a personagem central, consegue levar o leitor
a viver intensamente um dos dramas do nosso cotidiano – a discriminação da
mulher nos seus mais variados níveis e sua luta diante de um ambiente social e
espiritual que lhe proporciona as mais profundas ambigüidades.
Arlete Castro, com profunda sensibilidade, procura traçar a vida de
Salema, diante de seus relacionamentos familiares e junto à sociedade. Fica
evidente a opressão vivida por essa mulher, desde a mais tenra idade, quando
passa pela experiência traumática da circuncisão até seus dias de confronto com
suas crenças espirituais, quando decide romper com seu passado e viver uma
nova realidade de fé, mesmo contrariando seus antepassados.
Outro ponto que salta aos olhos na leitura deste romance é perceber a
autora enveredar por um caminho quase inusitado nos nossos dias: a
necessidade da busca de coerência na trajetória da vida. Na busca
inconseqüente do progresso e do sucesso a qualquer custo, o seu humano dos
nossos dias quebra facilmente suas convicções morais e éticas visando galgar
alguns degraus, nem que para isso ele tenha de destruir seres semelhantes a ele.
Os conflitos vividos por Salema são fruto de uma busca incessante por
algo que pudesse lhe dar sentido. Nesse caso, a tradição, seja ela qual for, pode
se transformar num fantasma que carregamos por toda a vida, sem conseguir
nos desvencilhar dele. A proposta do livro é resgatar a vida em toda a sua
plenitude, mesmo que para isso tenhamos de romper com os grilhões que nos
aprisionam.
Enganosamente, esse romance pode parecer uma simples apologia da fé
cristã. Na verdade, há muito mais do que isso. Ele leva o leitor a buscar o
verdadeiro sentido da vida. Especialmente daqueles que sofrem por quaisquer
tipos de discriminação de sexo, raça ou religião.
Recomendo a leitura desse livro, que chega em boa hora. Você será levado
obrigatoriamente a rever sua vida, junto com Salema.
Oswaldo Prado
A mulher que caminhava em meio às flores que rodeavam aquele parque
era uma advogada de sucesso. Depois de um dia intenso de trabalho ela estava
ali, apenas desfrutando o descanso que a primavera lhe poderia proporcionar.
Canteiros em forma de círculos e triângulos espalhavam-se por todos os lados
que seus olhos podiam alcançar. Ao fundo, um palácio erguia-se suntuoso,
dando um toque de riqueza àquela paisagem. Pessoas iam e vinham passeando
em meio àquele imenso jardim. Parte da história daquele povo estava contada
ali.
Ela adorava estar ali. Seus olhos se enchiam com o brilho das cores que
faziam parte da paisagem. Algumas vezes os pássaros que cantavam livres nas
árvores espalhadas ao redor a faziam lembrar-se de outros pássaros que a
haviam encantado um dia. Os casais que passavam por ela, alguns deles
marcados pela evidência do tempo passado, mas ainda enamorados, ou outros
que estavam apenas começando nessa nova caminhada, traziam a sua memória
momentos inesquecíveis que nunca mais ela viveria. As crianças que brincavam
a sua volta a levaram a pensar em outras duas pequeninas que ela não tiveram
o privilégio de conhecer. Como estariam crescidas agora!
Ela tinha a pele morena e o olhar penetrante como a maioria das mulheres
de sua raça. Com aquelas lembranças, os seus olhos encheram-se de lágrimas.
Era sempre assim. Mesmo com o trabalho bem-sucedido, os amigos, a família
que ela encontrara, o tempo não havia apagado da memória a história de sua
vida.
Em dado momento ela se abaixou e colheu uma flor. A beleza contida
naquele misto de cores a fez pensar em outro jardim, longínquo e perdido nas
lembranças de um passado distante dali.
O lugar sempre a emocionava. Não só pelas lembranças que
proporcionava, mas pela beleza que a motivava a seguir aquele a quem mais
amava.
Ali ela orava baixinho. Ela nunca deixara de orar por sua nação. Quando
ela orava, um misto de alegria e tristeza inundava o seu coração. Alegria por
estar ali, livre, viva e atuante. Tristeza por imaginar seu povo, tão longínquo
agora e aparentemente inacessível.
Ainda em oração, a mulher ergueu os olhos em direção a um grupo de
pessoas que passavam por ela.
De repente um rosto no meio da multidão de turistas e de famílias em
férias chamou-lhe a atenção. Era o mesmo cabelo longo e os mesmos olhos
claros que ela tão bem conhecia. Quanto tempo tinha se passado! Sem hesitar,
ela correu atrás da pessoa que julgava conhecer e a chamou:
- Lisa?
A jovem virou-se para ela sem entender o que estava acontecendo. Não,
não era ela. A face risonha da amiga de infância ficara, como tudo, perdida no
tempo e guardada nas lembranças que ela trazia consigo.
- Desculpe-me, pensei que fosse outra pessoa.
Decepcionada, ela se sentou num banco próximo a um dos canteiros de
flores que rodeavam o lugar. E, com a determinação de alguém que sabe aonde
quer chegar, começou a escrever...
CAPÍTULO 1
Salema
Lisa
Lisa roubou das mãos de Salema o bolo que a menina estava comendo e
enveredou pelo jardim adentro, rindo distraída, certa de que não seria
alcançada pela amiga. Mas Salema era ágil. Num piscar de olhos lá estava ela,
perto de Lisa, tirando-lhe novamente o bolo das mãos.
As duas eram amigas inseparáveis, tinham a mesma idade, andavam
sempre juntas, brincavam e compartilhava histórias que só elas conheciam.
Algumas vezes Sema se juntava a elas, e então passavam os dias conversando e
brincando seus sonhos de menina, tornando-os quase uma realidade.
Rosas, malmequeres, orquídeas e uma enorme variedade de flores podiam
ser vistas nos jardins frontais da casa de Salema. O sol realçava as cores, dando-
lhes diferentes nuanças à medida que variava a intensidade do brilho. Uma
visão pouco comum para aquela região tão árida e escaldante todos os dias.
Mas as sementes eram importadas, oriundas da Inglaterra. O pai de Lisa era o
jardineiro, e ele tinha grande trabalho para preservá-las.
A fachada da casa grande era de um branco reluzente, com grandes
chaminés, dando a idéia de um palácio em meio à paisagem repleta de outros
pequenos palácios, não tão gigantes, mas igualmente branquinhos.
A mãe de Lisa era criada na casa e, desde quando Salema podia lembrar-
se, eles estavam lá, faziam parte da vida da família. Eram estrangeiros, mas
viviam havia tantos anos ali que seus hábitos não eram diferentes dos nativos
daquela região.
Enquanto as duas meninas ainda riam da brincadeira, ouviram o chamado
urgente de Khalil. Chegara a hora de ler o Alcorão. Elas não gostaram nada de
ser interrompidas, porém Salema não ousaria desobedecer ao pai. Assim,
Salema, suas irmãs mais novas e também Lisa entraram na casa grande, onde
Khalil as esperava.
Todo um ritual deveria ser cumprido para que Khalil pudesse tocar no
santo livro. E ele não havia esquecido, Khalil tocava o livro apenas com a ponta
dos dedos, tratando-o como a coisa mais sagrada existente naquele lugar.
A leitura era feita em árabe, que para as crianças não era difícil repetir,
conforme o pai lhe ordenava, mas entender todo o significado do que faziam
era mais complicado, principalmente para a pequena Sara, que todas as vezes,
entre resmungos e queixas, adormecia no colo da ama.
- Jamais tente recitá-lo em seu idioma, pois o Alcorão é um livro que deve
ser lido no original, senão ele perderá parte de seu significado – dizia Khalil a
Lisa, tentando motivá-la a aprender.
Nessas ocasiões, Salema observava seu pai. Apesar da aparência rude e do
olhar distante, ele era um homem que acreditava fielmente em Alá, e Salema o
admirava por isso. Todos os dias, ele dedicava um momento para a leitura do
Alcorão. As crianças deveriam participar, pois isso fazia parte da educação
delas. Por volta dos 7 anos de idade, toda criança deveria ter lido o Alcorão pelo
menos uma vez. E embora as meninas não pudessem participar das orações
obrigatórias juntamente com os homens, elas também tinham o dever de
aprender. Salema já havia lido o Alcorão duas vezes, mas continuava a não
entender o porquê de muitas coisas.
Certa vez perguntou a Mirna:
- Mãe, se Alá me ama e se preocupa comigo, por que tantas vezes eu sinto
como se ele só se importasse com os homens e com as coisas que eles fazem?
- Ora, Salema, essas coisas você não tem de entender, tem apenas de
aceitar, porque é mesmo assim que Alá deseja, que não discutamos a sua lei,
apenas que a pratiquemos conforme está escrito.
Mas Salema não estava convencida. Quanto mais o tempo passava, mais
intrigada ela ficava e mais perguntas surgiam em sua mente. Terminada a
leitura, Lisa e Salema voltaram ao jardim.
- Em que está pensando, Salema? – perguntou Lisa, intrigada com o
silêncio da amiga.
- Gostaria de saber mais sobre Alá! Ele parece tão distante que chego a ter
medo dele. Eu vejo meu pai reverenciá-lo e adorá-lo, mas não entendo por que
tenho de ficar longe dele.
- Mas seu pai diz que ele está em toda parte, não é?
- Pois é, mas então por que só os homens podem ir à Mesquita e participar
das cerimônias, enquanto nós só podemos ir lá uma vez por semana, ainda
assim, contentando-nos em ficar atrás? No restante do tempo o que fazemos é
orar em casa, ajoelhadas em nosso tapete de oração.
- Maomé, o profeta, ensinou assim, não foi?
- Sim, mas não entendo bem por quê. Eu tenho medo, Lisa. Mas a verdade
é que eu não sei quem é Alá.
Lisa também não podia responder, mas ela era a única a quem Salema
tinha coragem de falar francamente sobre suas dúvidas. E Lisa também gostaria
de entender. Ela crescera ali naquela casa e aprendera a obedecer, como
qualquer outra da família. Aliás, seus pais lhe ensinaram desde pequena a
submissão a todos da casa grande. Mas em sua casa era diferente. Quando Lisa
estava a sós com sua família, ela podia sentir o amor de seus pais, o carinho que
tinham um pelo outro e também o quanto a amavam!
Os pais de Lisa tinham chegado àquela região no início dos anos 1960,
quando ela era ainda um bebê. Vieram, como tantos outros estrangeiros, em
busca de melhores dias, já que as campanhas de direitos civis, promovidas por
uma minoria em seu país, resultaram em violência civil tão grande que eles,
temendo pela segurança da família, resolveram deixá-lo. Mas as feições claras e
os olhos azuis que Lisa herdara dos pais não negavam sua origem. Também a
língua fora preservada. Eles ainda oravam a Alá, só que no silêncio do quarto,
de mãos dadas, a ponto de chorar juntos, enquanto se derramavam diante Dele!
Eles também tinham o livro sagrado. Desde que se podia lembrar, Lisa ouvira
sobre o livro. Seus pais temiam, e Lisa sabia que não podia falar dele a
ninguém, pois era proibido, e sua mãe costumava alertá-la sempre.
Um dia, quando Lisa era ainda muito pequena, sua mãe lhe disse:
- Lisa, querida, você sabe que este é o Livro de Deus, o lugar em que ele
nos ensina. Ele nos ama muito, você sabia?
- Você está falando de Alá, mamãe?
- Estou falando do Deus que criou todas as coisas, os animais, os jardins de
que seu pai cuida tão bem, as coisas bonitas que seus olhos vêem, que criou
todas as pessoas e você também!
- E Salema, mamãe?
- Sim, querida, Salema foi criada por ele, e ele a ama, como ama a todos
nós!
- Este livro é igual ao que está na casa grande, não é?
- Não, querida, este livro contém toda a verdade de Deus, por isso você
não pode sair por aí falando sobre ele. Nem diga que o temos aqui. Neste lugar
onde vivemos, se falarmos que acreditamos em outro livro que não o deles,
pode ser muito perigoso!
- Nem para Salema, mamãe?
- Nem para ela, querida, é muito perigoso!
Lisa não compreendeu, mas obedeceu. Afinal ela já estava tão habituada a
não falar que não foi difícil ficar calada. E seus pais lhe ensinavam sobre o
Livro. Ela foi crescendo e aprendendo, dentro das quatro paredes da pequena
casa onde viviam, sobre a criação de Deus, sobre seu amor, sobre as histórias
magníficas dos milagres que Deus fazia e sobre um homem, um profeta. Seu
nome: Jesus...
O que dizer para Salema sobre algo que ela também não entendia
completamente? Também ela queria compreender o porquê de tantas
diferenças. Ela sabia que havia algo especial que fazia seus pais serem tão
diferentes. Eram irlandeses e, segundo o que a mãe lhe contava, os costumes na
Irlanda eram outros, e a maioria das pessoas acreditava no profeta Jesus. Mas o
fato é que, apesar de tudo o que seus pais tinham lhe ensinado, para ela a
realidade era aquela que ela via e vivia todos os dias. Essa era a nação onde
estava crescendo, essa era a gente que conhecia. Salema queria saber sobre Alá,
e Lisa, o porquê de ele permitir tantas diferenças! Ambas precisavam encontrar
uma solução...
CAPÍTULO 3
Crescer
Mudanças
Lisa entrou correndo porta adentro. Tinha o rosto corado de quem andara
correndo sob o sol.
Salema acabara de jantar e entrou também na cozinha. Era a primeira vez
que se falavam desde que Salema começara a usar o véu. Depois de uma
semana confinada em seu quarto, a menina finalmente resolvera descer. As
duas amigas entreolharam-se. Algo as separava agora. Uma distância que
Salema sabia que tinha a ver com o que lhe acontecera. Mas queria falar,
conversar com a melhor amiga.
Naquele momento Beth estava terminando de limpar a enorme cozinha.
Havia servido o jantar, primeiro a todos os homens que vieram especialmente
para quebrar o primeiro dia de jejum do ramadã, na casa de Khalil. Depois
servira as mulheres, pois elas nunca podiam comer antes dos homens. Era um
grande trabalho, e naquele mês ela sabia que seria assim, muitos jantares depois
da quebra do jejum, para celebrar o mês do ramadã. Beth parecia muito
cansada, e assim que terminou seu trabalho deixou as meninas a sós.
As duas olharam-se outra vez. O véu que agora escondia todo o rosto de
Salema não impedia que Lisa pudesse entender o significado do olhar da
amiga. Não podia lhe ver os olhos, mas podia perceber o que estava por trás
deles. Afinal, cresceram juntas, e não havia nada que uma não pudesse
entender da outra.
- Lisa, Alá não existe, descobri isso, e agora tenha a certeza de que é
verdade!
- Você está louca, Salema, como pode dizer uma coisa dessas!
- Pense bem, Lisa, ele pode ter sido um ser criado na imaginação do
profeta. É muito lógico. Se ele fosse quem o Alcorão diz que é, as coisas não
seriam erradas como são.
- Salema, o fato de ter ficado adulta a deixou sem cérebro ou o quê?
- Não estou brincando. Você está falando assim, mas logo vai ter de usar a
abaya e o véu também, sem saber por quê.
- Eu já percebi, você está zangada porque agora já não é criança, não pode
brincar no jardim nem pode sair por aí mostrando o rosto quando bem
entender. E por isso põe a culpa em Alá e no profeta?
- É sério, Lisa, já pensou em quantas pessoas estão sofrendo neste mundo?
Já percebeu o quanto as mulheres sofrem aqui em nosso país? Por acaso algum
homem da casa ao menos uma vez falou com você, olhou para você ou
demonstrou qualquer atenção a você ou à sua mãe?
- Não, nunca. É verdade.
- Você acha que se Alá existisse ou fosse como o profeta ensinou ele
permitiria que isso acontecesse?
- Mas eu não acho que a conclusão seja simples assim. Você já pensou
que...
A conversa das meninas foi interrompida pela entrada de Mirna. Ela
chegou apressada e parecia muito nervosa. Tinha as mãos trêmulas e falava
com uma voz pouco habitual. Com ela estavam a avó e Nadya, a irmã mais
velha de Mirna.
- Saiam, meninas, precisamos conversar a sós.
Lisa e Salema deixaram a cozinha, mas ficaram muito curiosas. Salema
puxou Lisa pelo braço e fez com que ficasse com ela ouvindo atrás da porta.
- Não pode ser! Tanya não pode ter feito uma coisa dessas.
- Mas fez, e o pai descobriu. Agora ela está confinada naquele quarto.
A avó começou a chorar. Salema nunca a vira chorar daquele jeito. A avó
sempre lhe pareceu tão segura, tão forte! O que estava acontecendo agora? A
avó sempre lhe pareceu tão segura, tão forte! O que estava acontecendo agora?
- Ela conheceu o rapaz há alguns meses. Parece que é estrangeiro, inglês,
acho. É médico e trabalha no hospital da cidade.
- Mas como ela conheceu esse jovem? Ela nunca sai sozinha.
- Lembra-se de quando ela esteve doente, Mirna? Ela precisou passar dois
dias no hospital para se recuperar daquela crise nos rins. Foi o suficiente. Ali
eles se conheceram.
- Eu preciso falar com ela – disse Mirna, com a voz embargada. Isso não
pode estar acontecendo em nossa família!
- O pai já disse que de lá ela não sai. É o fim de nossa irmã, Mirna! – disse
Nadya, abraçando-a em prantos.
Lisa não disse nada. Olhou para a amiga, que, num gesto de rebeldia,
arrancou o véu que lhe cobria o rosto, dizendo:
- Você ainda acredita na existência de Alá? Algo muito grave está
acontecendo com minha família, Lisa! Não, ele não pode existir. Se ele
realmente estivesse aqui, enxugaria as lágrimas de minha avó!
CAPÍTULO 5
Tanya
Viagem a Meca
Salema foi levada por alguém a um lugar que por onde andasse deixava
marcas.
Havia uma luz tão intensa ali que seus olhos mal podia agüentar. O brilho
era como o dos raios do sol, e os reflexos ao redor faziam tudo resplandecer
como ouro refinado. A pessoa que estava com ela tinha os olhos profundos e
olhava como se pudesse ver além dos seus olhos. De repente Salema se deu
conta de que estava sem o véu. Seus cabelos negros esvoaçavam com a brisa
suave daquele lugar, e ela imediatamente se sentiu envergonhada e tentou
esconder o rosto desnudo. Mas num toque suave ele não permitiu.
Salema podia ouvir ao fundo uma melodia suave que inundava o seu
coração. Ela queria cantar também, mas não conseguia. Ele a conduzia,
mostrando-lhe cada detalhe naquele lugar. Não havia diálogo entre eles, mas a
presença dele era intensa. Depois de ter a sensação de que andaram um dia
inteiro, ele a conduziu para o lado de fora do portão. Logo após saírem, tudo
mudou. Não havia luz ali. Todo o brilho transformara-se numa escuridão
profunda. Ele a conduziu em meio a pequenas construções esbranquiçadas,
todas juntas, que lembravam sepulcros.
Salema mal podia ver os olhos dele agora, mas à medida que caminhava
sentia que seu coração se apertara, e a sensação de alívio que havia sentido
antes se fora. Salema andou por muito tempo em meio àquela escuridão. De
repente ele começou a andar de volta em direção ao portão. Agora ele já não a
conduzia, mas ela ia atrás dele.
Salema tentava chamá-lo, porém a voz não saía. Ela tentava segurar nas
vestes dele, mas suas mãos não o alcançavam. Trêmula de medo, quase
correndo, ela chegou ao portão no mesmo instante em que o homem o transpôs.
Ali ela não conseguiu dar mais nenhum passo, e com enorme estrondo o portão
se fechou, deixando-a do lado de fora, perdida naquela imensa escuridão.
Alemã acordou assustada no meio da noite, com o corpo ensopado de
suor. Sentou-se na cama, com o coração batendo descompassado e as mãos
trêmulas. “Aquilo teria sido mesmo um pesadelo?”, pensou a jovem sem
entender o significado do que se passara.
Na penumbra do quarto, Salema olhou ao redor para tentar identificar
alguma coisa que pudesse explicar o medo que se apoderara dela. Ela tinha a
sensação de não estar si. Era como se mais alguém estivesse ali, espreitando-a
de algum lugar; era tão real como a presença de Sema, que dormia tranqüila a
seu lado. O mesmo sonho e a mesma sensação vinham se repetindo já havia
uma semana. O que a princípio parecia um sonho ruim agora, ao repetir-se
tantas vezes, a deixava apavorada. “Mas qual seria o significado disso?”,
pensava, tentando recompor-se.
Salema cria verdadeiramente na mensagem dos sonhos. Ela fora ensinada
a crer, mas não se sentia motivada a compartilhá-lo com ninguém, até que
pudesse entender o que significava tudo aquilo.
Era uma manhã como todas as outras. As meninas estavam todas reunidas
na sala grande, ouvindo a ama contar-lhes uma história. Risos e pequenos gritos
podiam ser ouvidos por toda parte. A pequena Sara mal conseguia permanecer
sentada. Queria apanhar um brinquedo qualquer que estava fora de seu
alcance. Sema tentava ajudar como podia, mas acabava por ceder aos encantos
das irmãs mais novas. Salema, sentada ao lado da mãe e das tias, observava as
irmãs. Beth seria um refresco às mulheres, que tentavam aliviar-se do intenso
calor. Salema gostava quando as mulheres se reuniam. Isso significava que não
precisariam do véu, pois não haveria nesses encontros homens que as
observassem. Salema não podia concentrar-se. Pensava ainda no significado de
seu sonho, mas não conseguia decifrá-lo. Enquanto isso as outras mulheres
planejavam a viagem que a família faria à cidade santa. Partiriam dentro de
alguns dias, e ainda havia muitos detalhes a tratar, principalmente porque
certos ritos deveriam ser seguidos antes da viagem.
Adorar a Alá lado a lado com outros muçulmanos era a intenção da
peregrinação, mas Salema não estava nem um pouco interessada na viagem à
Meca. A família já havia estado lá algumas vezes, e nessas ocasiões havia neles
uma demonstração de fé que ela já não entendia. Desde a última vez que lá
estivera muitas coisas haviam se modificado em sua vida, e a jornada que antes
a encantava já não tinha a menor importância.
Salema não estava atenta a nada. Olhava ao redor da sala grande. O
ambiente era-lhe familiar, claro, afinal crescera correndo por aquele enorme
salão, escondendo-se da ama atrás de um dos sofás o afundando na espessura
dos tapetes. Ela adorava aquele lugar. Conhecia cada quadro na parede, cada
objeto que o pai mandara vir do Ocidente e que não permitia que nem ela nem
as irmãs tocassem. Certa vez, ela esbarrou num pequeno vaso de cristal que
estava sobre a mesa central. O vaso partiu-se em mil pedaços. O medo
apoderou-se dela de tal forma que ela juntou todos os cacos e, com a
cumplicidade da ama, escondeu-os numa pequena bolsa que trazia consigo. O
pai ficou furioso com a perda do vaso, mas nunca soube quem o tinha
quebrado. Era a mesma ama que agora contava a história às irmãs.
- De repente a fada se compadeceu do olhar triste da menina, tocou-lhe as
vestes com a varinha de condão e fê-la vestir-se como uma princesa. O seu olhar
triste se transformara num olhar cheio de esperança, afinal, agora já não era
infeliz, tinha o que queria, a fadinha azul havia realizado o seu maior sonho: ser
feliz como uma princesa... – narrava a ama.
“A mesma história”, pensou Salema. A mesma que tinha ouvido a ama
contar-lhes tantas vezes. Uma história muito parecida com sua própria história.
Uma menina que não era feliz com sua condição e que queria mudar. Uma
menina que morava numa pequena aldeia de um país muito distante dali, que
sonhava transformar o seu destino. Só que, diferentemente da história, na sua
vida não surgiria uma fadinha azul com a varinha de condão. Não haveria um
vestido de princesa nem um sonho realizado. Salema pensou que ela seria a sua
própria fadinha. Se quisesse mudanças, ela mesma teria de lutar para alcançá-
las.
- Salema, você também tem de se preparar para a peregrinação. Sabe o que
deve fazer, não? – perguntou Mirna, tirando Salema de seus pensamentos.
- A viagem será daqui a três dias, portanto, prepare-se. Sabe o quanto é
importante para o nosso povo essa peregrinação.
- E a tia Tanya, mãe, o que será dela enquanto estivermos fora? Não seria
possível que houvesse perdão para ela, já que estamos no período do Haj?
- Querida, agora não é o momento para pensar nisso – disse tia Soraya,
abanando o rosto com um leque para aliviar o calor. – Nas suas orações, peça a
Alá por misericórdia a sua tia Tanya. Ela bem precisa neste momento.
Salema ficava furiosa com esse tipo de comentário, mas naquele momento
nada respondeu. Então as mulheres levantaram-se e foram cada uma para os
seus aposentos preparar-se. Salema sabia bem qual seria a sua obrigação. Sabia
de cor a ordem que Alá dera aos muçulmanos para que visitassem a cidade
santa. “Proclama entre os homens a peregrinação e eles virão ter contigo a pé e
montados em todos os magros camelos, vindos de todas as ravinas profundas.”
Ela sabia que durante os preparativos de purificação todos estariam repetindo
essas palavras, prometendo a Alá fazer a sua vontade. Para Salema, entretanto,
aquilo pouco significava. Iria a Meca porque não teria escolha, mas seus
pensamentos estavam agora concentrados em como fugir dali.
Havia um silêncio profundo na varanda da casa de Salema na manhã da
partida. A jovem olhou por cima do ombro do pai e viu os criados todos
dispostos em fila para receber as últimas ordens. Lisa também estava lá, ao lado
da mãe.
Os trajes que os membros da família usavam eram simples e sem costura.
As mulheres usavam roupas escuras que lhes cobriam todo o corpo, ficando de
fora apenas o rosto, os pés e as mãos. Não usavam o véu, porque durante a
peregrinação ele não era necessário. Afinal, estariam diante de Alá, e diante
dele não era necessário esconder nada. Aí estava algo que sempre intrigara
Salema. Segundo havia aprendido, o próprio profeta Maomé dizia que o
verdadeiro véu estava nos olhos dos homens, por isso não era necessário
durante a peregrinação. Não havia jóias, maquiagem nem nenhuma tentação.
Qualquer uma delas poderia ser confundida com uma das criadas da casa.
Purificação, orações, pureza de alma era sobre o que cada um deveria
refletir antes da viagem.
Nenhuma zanga, nenhuma intriga, nenhum sentimento impuro poderiam
surgir no meio deles. Tão simples como a roupa deveria ser o interior de cada
um. Mas para Salema aquilo não tinha o menor sentido. Olhou profundamente
nos olhos de Lisa, ao se despedir da amiga, e num suspiro disse em voz baixa:
- Lisa, eu vou fugir daqui. Fique me esperando, porque, se você quiser,
iremos juntas.
Lisa não sabia o que dizer. Aquela revelação a pegou de surpresa e, antes
mesmo que pudesse chamar a atenção de Salema, ela já tinha entrado no carro
que os conduziria ao aeroporto.
CAPÍTULO 7
A peregrinação
Regresso a casa
Nayla
Bodas
Casada
Salema-mulher
- Parece que ela está enlouquecendo. Creio que não vai resistir por muito
mais tempo. – Disse a avó Lydia com tristeza.
- Você falou com ela, mãe? – perguntou Mirna, preocupada.
- O seu pai não me permite, mas já faz meses que ela está naquele quarto.
A princípio, podia ouvi-la me chamando. Ela chorava o tempo todo, mas com o
passar do tempo se calou. O que se ouvia era apenas o barulho de seus passos
quando caminhava pelo quarto ou um gemido triste por um momento ou outro.
- E agora, avó, ela continua a gemer e a chorar? – era a vez de Salema
questionar.
- Muito pior, querida, ela grita, canta, diz coisas sem sentido. E repete o
nome daquele rapaz em meio aos seus delírios.
- Oh! Tanya está doente. E nós não podemos fazer nada! Se ao menos o pai
permitisse que falássemos com ela. Ela já tem sofrido o bastante – disse Mirna,
também com uma tristeza estampada no rosto.
- Você sabe que as coisas não são assim. Ela fugiu da proteção do pai.
Jamais um homem estrangeiro poderia dar a nossa irmã a segurança que
somente os homens de nossa raça podem nos dar. Ela escolheu o seu destino
quando decidiu ter aquele relacionamento com ele – disse tia Nadya, convicta
de que elas deveriam aceitar o que se passava com a irmã.
Aquele tinha sido mais um dia escaldante. O sol brilhara o dia todo. Os
homens haviam jantado assim que voltaram da Mesquita, após as orações
habituais. As mulheres estavam todas em volta da mesa da cozinha. Haviam
acabado de jantar também e, em meio às conversas que envolviam a família, os
filhos, a escola para as meninas e o pequeno Salim, que agora já tinha quase 1
ano, elas falavam de Tanya, a irmã mais nova, que havia meses estava presa em
seu quarto e, segundo a vontade do próprio pai delas, ficaria lá até morrer.
Salema estava com elas. Essas visitas á família tinham se tornado comuns
desde que se casara, havia dois meses. Ismael não se importava em trazê-la pelo
menos uma vez por semana para estar com os pais e as irmãs. Nessas ocasiões
era muito comum se juntarem para falar como naquela noite. Salema levantou-
se da mesa, dizendo que precisava apanhar um pouco de ar. Seguiu então para
a varanda, onde se sentou confortavelmente, observando o local que mais
amava naquela casa: o jardim. Sentia-se particularmente sensível naquele dia. A
situação de tia Tanya ainda a preocupava e, embora estivesse muito feliz, pois
tinha um marido que a amava e a protegia, não conseguia deixar de pensar nela
e no sofrimento que se tornara a sua vida.
- Gosto quando você está aqui, Salema – era Lisa, que acabara de chegar à
varanda.
- Mas nada é mais como antes, não é mesmo?
Sem responder, Lisa questionou:
- Você sabia que Nayla deverá se casar assim que o noivo dela chegar da
Europa?
Nayla. Outra realidade que Salema não podia ignorar. Às vezes sentia-se
culpada por estar passando por aquela situação de conforto quando pessoas
como Nayla e Tanya estavam sofrendo tanto.
- Você tem falado com ela?
- Por duas vezes, quando a família esteve aqui. Acho que o pai dela tem
feito negócios com seu pai e por isso ele tem vindo aqui com freqüência.
- Como ela está?
- Triste, como pode imaginar. Ela esteve muito doente. Por causa disso o
pai permitiu que falasse com a mãe ao telefone. Foi um alívio para ela, mas ao
mesmo tempo um terror, porque parece que toda a família está sofrendo
também.
- Eu sinto tanto por ela.
- Não há nada que possamos fazer, você bem sabe disso, Salema.
- Não sei, talvez se eu falasse com Ismael. Quem sabe ele poderia ajudar
de alguma forma.
- Você acha mesmo que seu marido seria capaz de interferir numa situação
dessa?
Salema não sabia. Mas de qualquer forma tentaria. Mesmo que fosse para
que ele a levasse até Nayla para uma visita. Ela gostaria de conversar com
Nayla outra vez. Só tinham se falado uma vez, e mesmo assim muito do que se
passara naquele dia ela não pudera ainda entender.
- Há mais uma coisa, Lisa. Se seu pai permitir, você gostaria de viver
comigo em minha casa como minha dama de companhia?
- Está falando sério, Salema?
- Claro, seria uma oportunidade de estarmos juntas outra vez. Você
poderia vir passar dois dias por semana com seus pais.
- Eu gostaria muito de ficar com você. Há muito para falarmos.
- Então vou pedir a Ismael para tratar disso. Ele não vai se opor, já que
sabe que me sinto muito sozinha naquela casa imensa, só com a companhia da
minha sogra.
- E como tem sido convívio com ela?
- Eu não paro de rir quando estou com ela. Sempre tem uma história para
contar. Nunca a vi depressiva nem desanimada. Quando perguntei a ela se não
se sentia infeliz pelo fato de o marido dela ter outras esposas e ter de dividir o
tempo dele com elas, minha sogra respondeu que não, pelo contrário. E ela me
disse uma coisa que me fez pensar: “Minha menina, não se deve sofrer pelo que
Alá considera natural nem por aquilo que já faz parte de nós. Nós só devemos
sofrer quando qualquer coisa venha a interferir naquilo que para nós é
absolutamente natural”.
- E você aceitou isso?
- Fez-me pensar que a maioria das mulheres aqui é feliz como é, por isso
nunca tenta uma mudança, nunca questiona a sua condição.
- Você tem razão.
Enquanto ainda conversavam, Mirna avisou-as de que Ismael aguardava
Salema.
No caminho de volta para casa, Salema falou com Ismael sobre Lisa vir
morar com eles como sua dama de companhia e também sobre a possibilidade
de visitarem Nayla.
- Por que é tão importante para você visitar essa moça? Você mal a
conhece.
- Você sabe o que está se passando com ela?
- Sei, claro que sei, mas não há muito o que possamos fazer. Aliás, pelo
que ouvi, o rapaz com quem ela vai se casar deve chegar em breve.
- Sim, eu sei. Por isso mesmo gostaria de conversar com ela, tentar animá-
la de alguma forma. Dizer-lhe que pode ter uma chance de ser feliz, assim como
aconteceu conosco, não é mesmo? – respondeu Salema, achegando-se a ele.
- Está bem, vou fazer melhor ainda, vou convidá-los a nos visitar ainda
esta semana.
Salema sorriu e beijou-lhe a face, agradecida.
- Quanto a Lisa vir a ser a sua dama de companhia, não vejo nenhum
problema, desde que o pai dela permita.
- Ela disse que iria falar com ele ainda hoje.
- Vocês são amigas há muito tempo, não são?
- Crescemos juntas.
- Mas você sabe que ela é estrangeira e, embora tenha sido criada aqui, não
é como você.
- O que quer dizer com isso?
- Quero que tenha cuidado. Eu não quero a minha mulher de forma
nenhuma influenciada por qualquer pessoa que não seja eu – respondeu Ismael,
com um leve sorriso.
Ele apertou as mãos dela entre as suas e não disse mais nada, mas uma
sombra de preocupação pairou sobre Salema.
No dia em que Ismael havia marcado para receber Nayla e a família,
Salema acordou maldisposta. Não conseguia comer nada que ficasse mais de
cinco minutos no estômago. Cada vez que se punha de pé tinha a sensação de
que o quarto todo girava a sua volta. Não dormira quase nada naquela noite e
mal conseguia proferir as suas orações matinais.
Embora não fosse comum, Ismael tinha o hábito de dormir no quarto de
Salema. Quando acordou, percebeu que ela estava muito pálida e doente, e
imediatamente tentou ajudá-la.
- Você tem de ficar deitada. Vou lhe dar um medicamento e logo vai se
sentir melhor. Não coma nada. Não vai adiantar. Eu volto já.
- Ismael, chame minha mãe, por favor.
- Mas ela não vai fazer você melhorar, querida.
- Eu sei disso. Mas eu queria estar com ela.
- Está bem. Agora descanse. A propósito, falei ontem com o pai de Lisa e a
princípio ele vai permitir que a filha seja sua dama de companhia.
- Obrigada.
Quando Mirna chegou à casa de Salema, ela já tinha tomado o
medicamento que Ismael lhe dera e estava dormindo. Entrou no quarto da filha
em silêncio e ficou a observá-la. Olhou em volta daquele aposento e ficou
admirada. Tudo tinha um toque de Salema. Era possível reconhecer nas mais
pequeninas coisas os traços da filha que ela bem conhecia. Mesmo naquele
cestinho na cabeceira da cama, que estava repleto de objetos que fizeram parte
da infância dela. “Infância tão curta”, pensou Mirna. A sua menina era agora
uma mulher, adormecida naquela enorme cama de casal. Ao fitá-la assim tão
profundamente adormecida. Mirna não teve dúvidas. Ela não sabia se era a
serenidade no rosto ou o contorno do corpo da filha, ou ainda pura intuição,
mas ela tinha certeza de que Salema estava grávida. A sua Salema seria mãe.
Seus olhos se encheram de lágrimas. Tantas lembranças vieram a sua mente
naquela hora. A sua própria infância, o casamento com Khalil, as meninas que
foram nascendo, uma depois da outra, levando seu Khalil para longe dela. Oh,
como ela desejava que Salema pudesse ter outra sorte. “Oh, Alá! Faz com que
Salema tenha um filho varão!!!”
Ao despertar, Mirna ainda estava ao lado da filha.
- Então, querida, o que está acontecendo?
- Agora estou melhor, mãe, mas estive muito maldisposta.
- Seu marido ainda não descobriu o que está acontecendo com você?
- Ele disse que pode ter sido alguma coisa que comi ontem à noite, mas
não sei definir o quê.
- Querida, não se preocupe, nada mais são do que sintomas que todas as
mulheres têm quando estão no seu estado.
- Que estado, mamãe?
- Você está grávida, querida, tenho certeza.
- Grávida? Mas como Ismael não percebeu isso antes? Você tem certeza,
mamãe?
- Peça a seu marido que confirme. Ele é o médico aqui – respondeu Mirna,
sorrindo da ingenuidade da filha.
- Então eu vou ter um filho, mamãe?
Ismael entrou no quarto nesse momento e ouviu as últimas palavras da
esposa.
- O que foi que você disse, Salema?
- Minha mãe disse que estou grávida.
Mirna riu-se do espanto do genro. Ela gostava dele, parecia um homem
bom e cuidava bem de sua menina. Ele era muito mais do que Salema poderia
esperar, e isso deixava Mirna descansada.
- Tem certeza? Há quanto tempo não... Oh, é claro, só pode ser. Todos os
sintomas. Como eu não percebi isso antes?
- E agora, o que eu faço?
- Você não faz nada. Só tem de esperar para trazer ao mundo o nosso
primeiro filho varão!
Salema não respondeu. Seu marido acabara de expressar o desejo de todos
os homens. Ter um filho varão. Seu olhar encontrou o da mãe. Mirna sabia o
que a filha estava pensando. Era o medo que surgia no coração de toda mulher
que descobria estar gerando um filho. E se aquela criança fosse uma menina? O
que faria ou como agiria Ismael se o primeiro filho deles não fosse um menino?
Não, ele não era igual aos outros homens. Ela tinha certeza. Ele continuaria a
protegê-la e a ampará-la como sempre fizera. Salema respirou fundo, sentindo o
peito apertado, e uma ponta de angústia brotou dentro dela, um sentimento
novo com o qual ela teria que aprender a conviver.
CAPÍTULO 13
Descoberta
A verdade
A fuga
Imediatamente após Lisa deixar o quarto, Salema seguiu atrás dela. Mas
desistiu de conversar. Não, ela não queria ouvir mais nada. Era um assunto no
qual ela não queria sequer pensar, quanto mais falar sobre ele. Correu
apressada até o escritório onde estava Ismael. Entrou sorrateira, tentando não
interromper o trabalho do marido. Ele estava empenhado em analisar a planta
do novo hospital, que já havia sido aprovada. Agora era apenas contratar os
trabalhadores que colocariam aquele edifício em pé, e Ismael já estava
providenciando tudo isso.
Quando Salema entrou, ele ergueu os olhos dos papéis, mas não percebeu
a apreensão da esposa. Ela não lhe disse nada. Sentou-se na poltrona em frente
a ele por alguns instantes, mas logo se pôs de pé e começou a andar de cá para
lá.
- Posso ajudá-la em alguma coisa, querida?
- Eu precisava conversar com você.
- Desculpe, mas agora não posso. Há muito para fazer, e eu tenho pouco
tempo até começarmos a construção.
- É algo importante.
- Algo importante, mas que pode esperar. Por favor, Salema, eu preciso
trabalhar.
Ela deixou a sala pensativa. Não sabia se teria tido coragem de contar ao
marido sobre as conversas que tivera com Lisa. Afinal, a amiga pedira que ela
não falasse com ninguém. Ismael também a proibira de ter segredos com Lisa, e,
se ela falasse, aquilo poderia causar enormes problemas tanto para Lisa como
para Nayla. Não, foi muito melhor não dizer nada. Ainda bem que Ismael não
lhe deu atenção.
- Salema, venha ouvir a novidade. Veja o que aconteceu com a sua nova
amiga.
Era Ismael abrindo a porta do escritório, chamando-a rapidamente e
parecendo apreensivo.
- De que está falando?
- Nayla. Acabei de receber um telefonema do pai dela. Ele está
nervosíssimo.
- O que está acontecendo com Nayla?
- Ela fugiu ontem à tarde.
- Oh, enfim ela conseguiu!
- Você sabia de alguma coisa sobre isso?
- Claro que não, mas não é segredo que a situação dela me incomodava
muito.
- O pai está colocando todas as autoridades a postos. Uma mulher não
pode sair do país sozinha sem uma autorização por escrito. Ela não vai
conseguir.
- Pois eu espero sinceramente que ela consiga.
- Salema, você sabe o que o pai pode fazer com ela se a encontrar não
sabe?
- Talvez não seja pior do que já fez ao trazê-la para cá.
- Ele pode matá-la, e ninguém pode condená-lo por isso.
- E você concorda com isso, Ismael? – perguntou Salema, inflamada pelo
fato de o marido parecer estar disposto a ajudar a recuperar a jovem.
- Ele me telefonou me pedindo que eu falasse com você. Ele pensa que,
como na última vez em que ela esteve aqui vocês conversaram durante tanto
tempo, talvez ela tenha deixado escapar alguma idéia sobre a fuga.
- Eu não sei de nada. Nós nem sequer falamos sobre esse assunto. Mas
mesmo que eu soubesse de alguma coisa, Ismael, você acha que eu seria capaz
de entregá-la?
- Salema, ela não vai conseguir fugir, vai ser encontrada mais cedo ou mais
tarde, e para o seu bem é melhor que você não tenha nada a ver com isso.
Salema surpreendeu-se com o tom de voz do marido. Era a segunda vez
no mesmo dia que ele falava com ela daquela maneira. Mas o que a preocupava
mesmo era Nayla. Praticamente esquecida da conversa anterior que tivera com
lisa, ela foi procurar a amiga. Precisava contar-lhe o que estava acontecendo
com Nayla. Afinal, elas também tinham se tornado boas amigas. Acabou por
encontrá-la na cozinha, ajudando as empregadas a preparar o almoço.
- Lisa, tenho algo a lhe falar. Por favor, venha comigo.
As duas entraram na sala dos pássaros e fecharam a porta. Sempre que
alguém entrava ali, as aves agitavam-se, batendo com o bico na vidraça,
tentando chamar a atenção de quem chegava. Mas agora a beleza dos pássaros
não interessava a elas. Havia algo mais sério para falar.
Quando pai de Nayla chegou com a filha, espantou-o o sofrimento que o
rapto havia causado a ela. Para ele a menina deveria aceitar como natural o fato
de ter de obedecê-lo. Ele a amava, mas jamais aceitaria a idéia de que ela se
casasse com quem quer que fosse além do homem que ele havia escolhido
desde que era ainda uma menina. A mãe de Nayla sempre soubera disso. Ela
não deveria ter alimentado o sonho da filha de casar-se com quem quisesse. Ela
era a única culpada de a filha sofrer agora. Tentou então ocupar a filha com
atividades que pudessem despertar-lhe o interesse. Contratou uma professora.
Ela teria aulas todos os dias de árabe e inglês. O pai queria que a filha pudesse
sentir que ele estava muito interessado em seu bem-estar e em que ela pudesse
ali mesmo aprender muitas coisas. Assim, com certeza, pensava ele, Nayla
aceitaria afinal seu destino. O casamento tinha sido marcado, mas não havia
pressa. Claro que a jovem precisava de um tempo para se adaptar à sua nova
vida. O avô de Nayla costumava dizer que o filho estava relutante em fazer o
que deveria ser feito e pensava que isso se devia ao fato de ter vivido muito
tempo fora do país, o que o tornara flexível demais.
- Filho, tenha cuidado, essa jovem não foi criada como nossas mulheres
são criadas. Há nela uma influência do mal que ainda vai lhe causar problemas.
- O que quer que eu faça. O rapto e a viagem até aqui já foram um grande
pesadelo para ela. Eu não posso obrigá-la de uma hora para outra a aceitar essa
situação.
- Vê como fala? Aquilo não foi um rapto, filho. Você fez apenas o que
deveria ter sido feito já quando ela nasceu.
- Pai, você pode confiar, sei o que estou fazendo. Na data do casamento,
Nayla estará pronta para se casar e ser uma esposa muçulmana como deve ser.
As aulas de Nayla começaram numa tarde em que ela estava disposta a
tudo, menos a aprender alguma coisa. Desde que chegara, a única coisa que a
motivava era o fato de que, embora lhe tivessem tirado tudo, ninguém lhe
poderia tirar a convicção de que Deus estava com ela. Também a lembrança da
família, dos amigos e de Renato, seu amado, a fazia permanecer firme no
propósito de que mais cedo ou mais tarde sua situação mudaria. Ela não sabia
ainda como, mas tinha a convicção de que algo aconteceria. Pensando assim, ela
resolveu obedecer e esperar. Foi então que encontrou a professora pela primeira
vez, uma inglesa que vivia ali havia alguns anos com o marido. Ambos eram
professores e ensinavam na universidade.
- Então você é a jovem que chegou a pouco tempo da América do Sul? –
perguntou a senhora, para iniciarem uma conversa.
- E você é a professora que vai ficar comigo todos os dias, segundo minha
avó me disse?
- Muito bem, vejo que possui bom conhecimento de inglês. Embora
tenhamos de corrigir essa pronúncia, acentuada pela influência do seu idioma
original.
- Eu sempre freqüentei uma escola de línguas. Meu pai sempre achou
importante que eu aprendesse novas línguas, e agora eu entendo por quê.
- Do que está falando?
- Minha avó não lhe contou?
- Sim, contou-me que você chegou com seu pai, há algumas semanas, e
que deseja muito aperfeiçoar o árabe e o inglês, já que agora vai viver aqui.
- É verdade.
- Então, para iniciarmos, quero que saiba que teremos duas aulas por
semana de inglês e três aulas por semana de árabe. Pelo que sei, seu pai está
interessado em que aprenda depressa.
Nayla não sabia por que, mas algo chamou a sua atenção naquela mulher.
Parecia simpática e agradável, mas havia algo mais que ela não podia definir,
porém que a fez ficar muito à vontade para estudar com ela.
- Muito bem, vamos começar. Quero que me fale um pouco sobre você. Do
que gosta e do que não gosta de fazer. Ouvi que vai se casar, é verdade? Foi por
isso que decidiu vir viver aqui?
- Eu não decidi.
- Como assim? O que quer dizer com isso?
E Nayla contou-lhe tudo o que lhe acontecera. Desde os preparativos para
o casamento, o rapto, o noivo que ficara esperando por ela na igreja, a viagem
forçada. Os seus documentos, que lhe foram tirados assim que entrara naquele
avião, sonolenta e estática por causa do efeito do medicamento que o pai a
obrigara a tomar. Enfim, contou-lhe tudo o que acontecera para que ela
estivesse ali agora, forçada a viver num país que não era o seu.
Ires, a professora, ficou chocada. Ninguém lhe havia contado nada a
respeito, e enquanto ouvia a história daquela jovem sentia um aperto no peito
diante de uma situação tão difícil como aquela. Mas não disse nada. Terminou a
aula e saiu não sem antes lhe dar alguns trabalhos para fazer até o dia seguinte,
quando estariam juntas outra vez.
Na aula seguinte, Ires chegou na hora marcada, e Nayla já a estava
esperando. A professora tinha liberdade de estar com seus alunos em
particular, mas desde que entrara no país havia assumido o compromisso de
não falar nada sobre religião, política nem sobre outro assunto que pudesse
causar dúvidas a qualquer um deles. E ela nunca tivera problema em cumprir
esse acordo até ali. Mas agora era diferente. Estava diante de uma situação à
qual não podia ficar indiferente, por isso precisava conversar com aquela
menina.
- Nayla, você não é muçulmana, não é?
- Não, esse foi um dos motivos que fizeram meu pai abandonar a minha
mãe há alguns anos, quando ela se converteu ao cristianismo.
- Eu já deveria ter imaginado. E o seu noivo? Também é cristão?
- Sim. Mas por quê?
- Porque desde que me contou como veio parar aqui, eu não pude pensar
em outra coisa. Falei com o meu marido, e queremos tentar ajudá-la.
- O que quer dizer com isso?
- Que a sua situação não é justa. É uma violação do direito de ser livre, e
por isso alguma coisa tem de ser feita.
- Mas, pelo que vejo, ninguém aqui é livre, nem mesmo a senhora.
Desculpe, mas como poderia ajudar-me?
- Eu e meu marido temos de viajar daqui a alguns meses de volta à
Inglaterra. Deveríamos permanecer seis meses, por causa do casamento de um
de nossos filhos, mas agora vejo que teremos de ir definitivamente.
- Por que está dizendo isso?
- Porque vai conosco.
- Como? Uma das coisas que meu pai fez questão de frisar é que eu jamais
conseguiria fugir, pois uma mulher não viaja sozinha, sem a autorização do
marido ou do pai. Como posso ir com vocês?
- Eu sei disso. Nem eu posso viajar sem a autorização do meu marido.
Uma mulher não pode, mas um rapaz sim.
As duas continuaram encontrando-se todos os dias da semana para as
aulas. Enquanto estavam juntas, Nayla procurava aprender rápido, queria
mostrar ao pai que estava interessada. Ela não gostava nada de fazer aquilo,
mas não via outra maneira de conseguir sair daquele pesadelo.
Algumas vezes o desespero tomava conta dela. Achava que já não tinha fé,
que estava de uma forma ou de outra deixando de confiar em Deus para confiar
em si mesma e na sua capacidade de elaborar um bom plano de fuga. Será que
Deus queria que ela ficasse ali? Nunca dessas ocasiões em que não conseguia
encontrar uma resposta, lembrou-se de um homem de Deus que, como ela,
também teve de fugir escondido dentro de um cesto, para não ser apanhado por
aqueles que o perseguiam. Lembrou-se ainda de uma mulher que, justamente
pela fé, escondeu os espias para protegê-los. Estaria Deus de acordo com o que
ela estava fazendo? Ela tinha orado tanto! Sua família e os amigos com certeza
estavam orando também. Durante o tempo das aulas, porém, aluna e professora
estudavam detalhadamente o plano de fuga. Nayla estava admirada com o que
aquelas pessoas estavam fazendo por ela, abrindo mão da própria vida ali para
ajudá-la. Teria o SENHOR os enviado? Ela realmente não sabia.
No dia da fuga, Ires chegou como de costume, pontualmente às 2 horas da
tarde. Naquele dia, como já haviam feito outras vezes, ela pediu à avó de Nayla
uma autorização para levar a menina à universidade, alegando que esses
contatos com outras estudantes iriam ajudá-la a aperfeiçoar a sua
aprendizagem. Depois de quarenta e cinco minutos, o avô, Ires e Nayla
chegaram ao destino. O véu que cobria o rosto das duas impedia que alguém
visse o quanto estavam nervosas.
- Como o senhor sabe, nós devemos nos demorar toda a tarde. O senhor
pode nos esperar aqui? – perguntou Nayla ao avô, tentando conter o tremor que
se apoderava de todo o seu corpo.
- Sendo assim, volto para buscá-la às 6 da tarde.
Com essas palavras, deixou-as na porta da entrada da ala feminina da
universidade. As duas entraram, e qualquer pessoa que pudesse vê-las julgaria
que estavam muito apressadas. Passados quinze minutos, um carro estacionou
no mesmo portão onde estivera o avô de Nayla. Sem dizer nenhuma palavra,
ambas entraram no carro. Ali mesmo, escondidas atrás do cortinado do carro,
Nayla se transformou no filho do casal Kevin e Ires. Os cabelos da menina
haviam crescido, mas não o suficiente para que não pudessem ser aparados
como os cabelos de um rapaz. Lentes de contato azuis, uma roupa tipicamente
masculina e um chapéu combinado transformaram-na rapidamente em alguém
muito parecido com o rapaz da fotografia que estava naquele passaporte. Por
um descuido, eles tinham nas mãos o passaporte do filho, fato que já lhe havia
causado problemas, pois vivia na Inglaterra e não podia viajar. Mas, pensou
Ires, quando ele souber como aquele documento pôde ser útil, certamente
esquecerá os transtornos.
Nayla tremia sem parar. Ires alertou-a de que, se ela demorasse qualquer
nervosismo na alfândega, eles poderiam ser apanhados.
- Não diga nada, vamos deixar que Kevin vá à frente e trate de tudo.
Chegou o momento do embarque. Kevin entrou na frente com o
passaporte da esposa e do filho de 18 anos. O homem da fiscalização olhou os
documentos detalhadamente, enquanto o medo de que ele percebesse que não
havia carimbo de entrada no país no passaporte apoderou-se de Ires. Nayla, por
sua vez, orava baixinho: “Deus, perdoe-me, perdoe a minha falta de fé. Tu sabes
como me sinto por sair daqui dessa maneira, ajude-me, por favor, ajude-me!”
Olhando fixamente para o rosto do jovem à sua frente, mas sem nenhuma
dúvida sobre a identidade do rapaz, ele os deixou seguir.
Tinham conseguido. Iriam agora direto para o país europeu mais próximo.
Ali, entrariam em contato com a família de Nayla e alugariam um carro para o
restante da viagem. Enquanto isso, faltavam ainda cerca de duas horas para que
o avô de Nayla fosse buscá-la na universidade.
Na sala dos pássaros, Lisa pensou que fossem voltar a falar sobre a última
conversa que tiveram e ficou espantada quando Salema lhe disse:
- Nayla fugiu.
- Oh! Então ela conseguiu?
- Você sabia disso, Lisa.
A jovem abaixou a cabeça e não conseguiu fitar a amiga.
- Sim, eu sabia. Há muito tempo ela me disse que fugiria. Quase todas as
vezes em que nós nos encontrávamos, quando a família ia visitar o seu pai,
notava que ela estava mais convicta de que conseguiria.
- Isso é muito sério, Lisa. Ninguém pode saber que você estava a par do
assunto.
- É eu sei, mas ela nunca me disse como faria, pois nossas conversas eram
curtas. A avó de Nayla achava que ela não deveria conversar comigo.
- Então não há nenhuma hipótese de sabermos como ela fez para fugir.
- Talvez haja, porque na semana em que estive doente coincidiu de eles
passarem por lá. E, naquele dia, ela me entregou um envelope e pediu que eu
lhe desse.
- Uma carta para mim?
- Eu não sei, o envelope está fechado. Mas eu julgo que sim. Naquele dia
ela se despediu de mim, como se nunca mais fôssemos nos encontrar.
- Mas ela tem muito poucas chances de conseguir. Temo o que possa
acontecer se ela for apanhada.
- O pai deve estar furioso. Pelo que ela me disse, o casamento estava
marcado para daqui a duas semanas.
- É isso, mas, por favor, dê-me o envelope. Onde ele está?
- No meu quarto, mas escondido. Quando você estiver descansando à
tarde, após o almoço, eu levo para você. Mas tem de ter certeza de que Ismael
não estará lá.
- Fique descansada. Ele me disse que sairia logo à tarde para dar início ao
projeto do hospital.
Salema não conseguiu nem almoçar com tranqüilidade. Aliás, aqueles
enjôos todos os dias a incomodavam tremendamente. Ismael disse-lhe que logo
iriam passar, pois era uma reação normal do corpo. Ele explicara que quando
uma mulher engravida é natural que o organismo rejeite o ser que começa a ser
gerado, e o corpo demonstra isso pelos enjôos. Salema ficava orgulhosa quando
o marido ensinava todas essas coisas a ela. Nessas ocasiões ele era carinhoso e
atencioso, como no primeiro dia, o que a fazia deixar de lado suas dúvidas e
ansiedades. Mas naquela tarde os enjôos não eram por causa da gravidez. A
fuga de Nayla a estava preocupando muitíssimo. No fundo ela desejava
ardentemente que a amiga conseguisse. Ela não sabia por que, mas alguma
coisa lhe dizia que Nayla havia conseguido. Mesmo assim, o seu coração estava
apertado.
Fazia pelo menos uma hora que estava esperando Lisa, que não aparecia.
De repente, a porta se abriu.
- Você tem certeza de que seu marido não vai chegar a qualquer
momento?
- Fique tranqüila, ele só estará de volta no início da noite.
- Aqui está. Salema, tome cuidado. Isso pode ser perigoso.
- Eu sei, mas eu preciso saber. Se ela quis me dizer alguma coisa, tenho o
direito de saber.
Salema abriu o envelope. Era realmente uma carta. Algumas páginas
escritas à mão, parte em árabe, mas a maior parte em inglês. Dentro do
envelope havia também algo que não era comum para ela. Uma fotografia. Era
o rosto de Nayla, os mesmos cabelos curtos que ela tinha quando chegou, mas
um sorriso brilhante que se refletia também nos olhos da jovem. Para o seu
povo, as fotografias eram proibidas. Mas Nayla lembrara-se dela e fizera
questão de deixar-lhe o retrato. Salema começou então a ler devagar o conteúdo
da carta e, enquanto lia, as lágrimas escorriam pela face, inundando as páginas
com tanta emoção. Lisa ficou ao lado da amiga, calada, mas também
visivelmente emocionada. E Nayla escreveu:
Querida Salema,
Quando esta carta chegar às suas mãos, provavelmente eu já não esteja
mais aqui, mas não poderia partir sem lhe dizer que neste pouco tempo em que
estivemos juntas eu aprendi a amá-la. Eu nunca vou esquecer o nosso primeiro
encontro, quando foi à minha casa, lembra-se? Desde o princípio você foi
solidária comigo. Eu nunca pensei que num país como este pudesse haver
mulheres que, como você, almejam ver diferenças. Você é especial, Salema. É
especial porque sonha e porque está em busca de algo novo, de algo que eu
tenho certeza há de encontrar, porque é seu de direito, aliás, é direito de todos
nós.
Eu vou em busca da minha liberdade. Não se preocupe comigo, eu espero
conseguir. Eu só lhe peço que assim que ler esta carta a destrua, para que
ninguém possa encontrá-la, porque minha fuga envolve outras pessoas que
poderiam sofrer por minha causa, e não quero que isso aconteça. Eu sei que
corro riscos até por escrever, porque alguém pode encontrá-la comigo, ou com
Lisa, antes mesmo que a possa ler, mas resolvi arriscar porque o que eu tenho
para lhe dizer é tão importante que os riscos valem a pena. Eu não poderia ir
embora sem antes compartilhar com você alguém que é muito importante para
mim. Alguém que você conhece como profeta, mas que eu tenho conhecido
como Deus. O Deus que você acredita distante, mas que eu tenho aprendido
que se relaciona comigo. Um Deus que, como você sabe, é em essência Todo-
Poderoso, mas que justamente por isso é capaz de nos amar. Um Deus que se
relaciona conosco nas pequenas coisas, que se importa com aquilo que
sentimos, com as nossas angústias, sofrimentos, que com certeza sabe a dor do
seu coração. Um Deus que é capaz de me perdoar, mesmo neste momento de
insegurança em que não consigo entender qual é a vontade dele para mim. Eu
sou frágil, Salema, mas o Deus que eu amo me aceita como sou e me perdoa. Às
vezes eu fico me perguntando por que passei pelo que passei. Mas hoje eu sei
que, se não tivesse aqui, se não tivesse sentido na pele o que é ser uma mulher
neste lugar, tudo isso seria uma realidade muito distante para mim, mas agora
eu sei. Mas, muito antes que eu soubesse, ele sabia. Esteja certa de que Deus a
ama e quer lhe mostrar um caminho. Abra os olhos e veja o que ele quer lhe
mostrar. Ouça a sua voz, certamente ele quer falar com você. Ele é Deus,
Salema, mas não está longe. Suas mãos estão estendidas para quem quiser tocá-
las, basta segui-lo, e ele lhe mostrará um lugar especial, onde não há dor, nem
distinção, nem discriminação. Apenas a sua doce e confortadora presença.
Pense nisso, amiga. Eu vou orar por ti. Hoje eu sei que posso, pois vivi em
minha pele a dor de ser como você. Não se esqueça também de que em
momentos difíceis, quando não puder ser entendida, será ele quem fará toda a
diferença em sua vida.
Provavelmente não nos vejamos mais, mas, se for em busca do seu
caminho, certamente um dia, naquele lugar especial de que lhe falei, vamos nos
encontrar.
Já com saudades,
Nayla
A decisão
A notícia chegou dias depois de o fato ter acontecido. Ismael não quis
contar antes a Salema porque temia que isso pudesse comprometer a gravidez.
Mas sabia também que notícias como aquela não se escondem, principalmente
porque o princípio contido nesses acontecimentos é de que, com as
conseqüências do erro de algumas mulheres, outras possam aprender a se
comportar, e isso ele não poderia ignorar. Salema andava bem disposta, parecia
mudada, e Ismael atribuiu isso ao fato de ela estar esperando um filho. Naquela
manhã, especificamente, ela parecia radiante. Ele podia notar um brilho
diferente em seus olhos todas as vezes que a esposa despia o véu e o olhava
diretamente nos olhos. Esse brilho a tornava ainda mais bonita. Não era muito
comum para uma mulher olhar diretamente nos olhos de um homem, mesmo
que esse homem fosse o próprio marido, mas com a sua Salema era diferente.
Fora desde o princípio. Ele nunca pensou que pudesse amar alguém como
amava a sua esposa. Sabia que algumas normas de conduta no relacionamento
entre homem e mulher, vezes sem conta, eram quebradas entre eles, mas Ismael
não se importava. Salema era para ele o exemplo de como deve ser uma mulher
muçulmana, muito diferente das mulheres ocidentais que ele havia conhecido
no tempo em que cursava a universidade. Ela era obediente, submissa e
aceitava de bom grado o fato de ter de ser protegida por um homem, por sua
fragilidade natural.
- Salema, querida, precisamos conversar.
Ela percebeu rapidamente uma sombra no olhar do marido, por isso sabia
que havia algo errado.
- O que está acontecendo?
- Deite-se aqui. Deve continuar o repouso.
- Você sabe que eu já estou bem e que não preciso mais estar todo dia
deitada.
- Eu sei disso, mas é melhor relaxar um pouquinho agora, antes de ouvir o
que eu tenho para lhe contar.
- Há algo errado com a minha mãe?
- Não, a sua mãe está bem. Trata-se da sua tia Tanya.
- O que houve com ela?
- Ela morreu, Salema. Seu avô abriu a porta do quarto depois de alguns
dias que a empregada notou que ela nem sequer tocava na bandeja de comida.
- Oh, meu Deus! – disse Salema, sem conter o grito de dor em seu peito.
Ismael olhou para ela espantado. Algo diferente na forma como ela
invocou a Alá chamou a sua atenção, mas não disse nada. Ela estava sofrendo.
- Como foi que aconteceu?
- Você sabia que isso já era esperado. Seu avô não a perdoou. Mais cedo ou
mais tarde ela morreria. Ela já não parecia lúcida, mas talvez pudesse viver
mais tempo se não tivesse encontrado uma maneira de pôr fim à própria vida.
- Ela se suicidou?
- É o que parece. Cortou os pulsos. Havia estilhaços de uma chávena
espalhados pelo quarto. A empregada confessou que ela lhe havia pedido que
trouxesse uma bebida forte. Ela alegou ter tido pena da sua tia e acabou por lhe
levar uma chávena de café, contrariando todas as ordens do seu avô, que a
expulsou de casa.
- Oh, pobre tia Tanya, ela não pôde suportar. Oh, Deus, como ela poderia!
Ninguém no lugar dela suportaria sofrer assim.
Salema olhou para o marido com os olhos marejados de lágrimas. Ismael
tocou-lhe a face delicadamente, tentando consolá-la. Ele não gostava de vê-la
assim. Sabia que a morte da tia a faria sofrer, mas a reação o impressionara.
- Quando será o funeral?
- Você sabe que numa ocasião assim não há motivos para funeral
suntuoso, não sabe? Ela já foi enterrada.
- Quando?
- Há alguns dias. Eu não lhe contei antes porque poderia ser perigoso para
você e o bebê. E ainda é. Por favor, você não pode ficar agitada.
- Ismael, que religião é essa que arrasta as suas mulheres à loucura, a
ponto de levá-las à morte e toda gente a concordar com isso?
Salema estava furiosa agora. Enquanto enxugava as lágrimas com o canto
das mãos, andava pelo quarto de um lado para o outro, quase descontrolada.
- Essa é a sua religião, Salema. Você sabe que as coisas são assim. Alá sabe
que...
- Alá? Como pode incluir Alá nessa conversa? – ela gritava. - Alá não tem
nada a ver com os horrores que homens como você fazem às mulheres desta
nação.
- Salema, o que é isso agora? Eu entendo que esteja nervosa, triste, mas
não pode falar assim comigo.
- Ismael, por que não me contou antes? Eu tinha de saber. Eu precisava
saber!
Mais uma vez, Salema caiu nos braços do marido em prantos. Ele não
disse nada, mas aquela conversa, apesar de muito difícil, tinha-lhe despertado
para algo que não percebera antes. Alguma coisa estava realmente mudando
em Salema, algo que o inquietava e estava contido na explosão daquele
momento. Havia alguma coisa nova no comportamento de Salema que ele teria
de investigar.
- Ismael, por favor, eu quero ficar sozinha.
- Ele lhe acariciou a face mais uma vez. Delicadamente beijou-lhe a testa e
caminhou em direção à porta do quarto, mas antes que saísse, voltou o olhar
para a esposa sentada na cama, com o rosto entre as mãos, e o que se podia ver
era apenas a sombra da dúvida estampada em seu olhar.
Após Ismael ter saído, Salema ficou ali, sentada na cama por um logo
tempo. Ela não sabia o que pensar. Sua tia se fora e ninguém tentara fazer nada
para impedir que isso acontecesse. Para toda gente aquilo era natural, inclusive
para Ismael. Naquele momento o seu marido era igual a todos os homens.
Donos de suas mulheres. Detentores do poder da vida e da morte delas. O filho
remexeu-se dentro dela. Salema tocou o ventre como se pudesse acalmá-lo com
seu carinho. O que seria daquela criança? Se fosse homem talvez tivesse a
oportunidade de ser feliz. Mas e se fosse uma menina? Ela não queria pensar no
que seria ver uma filha crescer ali. Com esse pensamento, ela tentou envolver o
abdome, como se com o gesto pudesse proteger aquele pequeno ser dentro dela.
Pensou em Jesus. “Por que tia Tanya se foi, Jesus? Por que não houve uma
chance para ela também? Ao contrário do que eu pensava antes, sei que tu te
importas. Era isso que estava quase dizendo a Ismael. Tu te importas. Então por
que tu não tocaste a vida dela também? Por que não lhe deste a oportunidade
de conhecê-lo, Jesus?” Desta vez não houve resposta, e as lágrimas teimavam
em escorrer pelo rosto já encharcado de Salema.
No dia seguinte Salema pediu a Ismael que a levasse à casa dos avós.
Ismael se opôs terminantemente. Primeiro, porque ela não deveria ainda fazer
viagens de carro, depois, porque visitar aquela casa poderia significar um
perigo para ela naquele momento delicado da gravidez.
- Por favor, querido, eu só quero conversar com a minha avó. Ela deve
estar muito triste com tudo isso. Eu preciso vê-la.
- Você sabe que não está em condições de sair, não sabe?
- Mas pode conduzir com cuidado e levar-me até ela. Por favor, Ismael.
Ismael não queria ceder, mas o olhar suplicante da esposa fez com que ele
por fim decidisse levá-la, não sem fazer inúmeras recomendações. Saíram logo
após o café da manhã. Enquanto Ismael conduzia, Salema pensava na tia. Tanya
era três anos mais velha que ela. Muitas vezes, quando criança, correram juntas
no jardim da casa de Salema.
Ela era linda. Tinha a pele morena, mas os olhos possuíam uma tonalidade
clara, quase verde, que contrastavam com o tom de pele e com os cabelos
negros que lhe cobriam os olhos. Quando era criança, era muito magra, e as
pernas alongadas faziam-na parecer mais alta e mais velha também. Salema
sempre quis ser igual a ela. Tão bonita, tão inteligente e tão dedicada quanto a
tia.
Enquanto cresciam, Salema não podia se lembrar de quantas vezes haviam
visto o olhar de Tanya se perder em algum ponto da linha do horizonte. Nessas
ocasiões ela costumava dizer que algum dia ela alcançaria aquele lugar. Ao
lembrar-se disso, os olhos de Salema encheram-se de lágrimas outra vez. Ismael
viu.
- Salema, se continuar assim, vou voltar para casa daqui mesmo.
- Desculpe, estava pensando nela e não pude me conter.
- Você sabe que o que aconteceu com ela foi por sua própria escolha, não
sabe?
- Tudo porque um dia ela sonhou alcançar a linha do horizonte.
- Que está dizendo?
- Nada, estava apenas pensando.
Salema lembrou-se de que depois de algum tempo a tia parou de visitá-la.
Já não brincavam juntas, e quando se encontravam ela já não podia contemplar
o horizonte como gostava. O véu cobria o seu rosto. O corpo magro e esguio
agora era coberto pela abaya, e como naquela altura Salema ainda não podia
entender o que aquilo representava, mais uma vez quis ser igual a ela. Mas
Tanya parecia feliz. Nunca Salema a tinha visto queixar-se de alguma coisa. Era
cuidadosa e atenciosa com todos da família. Pensando agora, Salema chegou à
conclusão de que para ela nunca fora difícil ser como ela. Resignada, ela jamais
contestou alguma coisa. Mirna costumava dizer que, de todas as suas irmãs,
Tanya tinha sempre sido a mais obediente, a mais doce de todas.
- A que ponto tudo isso chegou, Ismael?
- Está falando de Tanya?
- Ela passou da condição de doce criatura a vil pecadora em questão de
pouco tempo. O que ela foi, a sua maneira de ser, a sua juventude e a sua
alegria nunca foram consideradas nessa questão.
- Eu sei, mas foi grave o que ela fez.
- Apaixonar-se perdidamente por alguém.
- Relacionar-se com alguém que não é um dos nossos.
- Ismael, quando você fala assim, me surpreende! Acha mesmo que o amor
que ela sentiu por aquele rapaz foi suficiente para que viesse a ser condenada?
- Eu acho que temos padrões que não podem ser contaminados pela falsa
liberdade que está espalhada por este mundo.
Salema calou-se, não adiantaria discutir. Seu marido também não aceitava
o que Tanya havia feito. Ninguém ali aceitava, e se havia alguém que
contestava não falaria. Mas também qualquer protesto agora não mudaria o fato
de que Tanya estava morta, castigada por ter procurado encontrar uma maneira
de alcançar o seu sonho, um ponto para sempre perdido na linha do horizonte.
- Querida, você não devia ter vindo, não pode se emocionar.
- Avô, desde que eu engravidei é o que mais tenho ouvido. Por favor, não
se preocupe, estou bem. Eu preciso saber como tudo se passou.
- Não há nada para contar além do que já sabe. Ela decidiu pôr fim à
própria vida. Cansou de sofrer.
- Eu queria ter participado do funeral.
- Não houve funeral. Seu avô mandou os empregados enterrá-la no
cemitério da família.
- Ninguém pôde se despedir dela? – perguntou Salema admirada. – Nem
as irmãs, nem a senhora, avó?
- Ele decidiu que seria melhor assim. Afinal, para ele Tanya já não era
mais a nossa filha, portanto lhe era indiferente a maneira como tudo acabaria.
- Eu não posso acreditar!
- Filha, você é uma mulher. Tem de saber que, para o seu bem e o de seus
filhos que agora começam a chegar, é melhor aceitar as coisas como elas são.
Porque se não aceitar, não os ensinará, e se não os ensinar, eles sofrerão, como
sua tia sofreu.
Salema abraçou a avó sem dizer mais nenhuma palavra. Duas gerações de
mulheres marcadas pela mesma tradição.
- Eu quero ver o quarto onde ela estava.
- Ninguém ainda entrou lá desde que tudo aconteceu. Seu avô não se
interessou em ir até lá, e eu não tive coragem nem para dar ordens às
empregadas que limpassem tudo aquilo. É melhor não entrar naquele lugar.
- Eu quero, avó, por favor, não me impeça. Você sabe o quanto eu a
amava.
A avó não contestou. Não adiantaria. Salema fora sempre insistente,
corajosa, destemida. Essas não eram boas qualidades para uma mulher, mas,
em se tratando na neta, dava-lhe certo orgulho vê-la tão decidida. Ela sabia que
isso era uma contradição, visto que acabara de perder uma filha justamente por
uma decisão errada. Mas naquele momento o que ela menos queria era discutir.
Salema entrou no quarto sozinha. Ainda na porta ela pôde sentir o mau
cheiro. O quarto estava completamente às escuras. As janelas tinham sido
vedadas. Com um candeeiro nas mãos ela foi entrando no quarto devagar,
observando cada detalhe. Havia restos de comida caídos aqui e ali. Ela sentiu o
estômago embrulhar. Se Ismael soubesse que estava ali, ficaria furioso. Talvez
ele tivesse razão. Ela não deveria ter vindo. Sentia-se doente só em olhar ao
redor do quarto. A cama estava desfeita, como se alguém tivesse acabado de
levantar-se. Roupas espalhadas pelo chão misturavam-se com as migalhas
também espalhadas. Salema tentou imaginar a tia naquele ambiente. O medo
que ela deve ter sentido. Foram meses e meses trancada, sem luz, sem a
presença de ninguém, sem alguém que se importasse. Até os empregados
tiveram ordens de não lhe dirigir a palavra. Salema sabia que só Mirna e por
fim a criada que lhe dera a chávena de café tinham falado com ela durante todo
esse tempo. A avó havia dito que nos últimos tempos ela parecia enlouquecida.
Já não gritava nem chorava, apenas balbuciava palavras inocentes. Ainda assim
o avô, não se comoveu. Estava decidido. Ela ficaria ali até morrer. Salema
ouvira sobre outras mulheres que tinham sido condenadas como Tanya. Não
havia chance para elas. A maioria, jovem e saudável era condenada a uma
longa espera até que a morte por fim chegasse. Mas Tanya não conseguira
esperar. Pusera fim à própria vida. Contemplando aquele quarto, ela se
lembrou de seu sonho, naquela noite em que quase perdera o filho. Jesus, o
profeta. O filho de Deus fora morto naquela cruz. Condenado injustamente
como sua tia o fora. Mas a sua morte tinha um propósito. Ele próprio se
entregara. Morrera para que pessoas como Tanya não precisassem ser
condenadas, mas mesmo assim ela foi. Por quê? Ela andou por todo o aposento
abrindo e fechando gavetas, procurando algo que justificasse tudo aquilo. De
repente entre as coisas espalhadas encontrou uma folha amarrotada jogada
num canto do quarto. Por fim viu que não era apenas uma, mas várias folhas
deixadas ali. Começou então a abrir uma a uma e espantou-se com o que viu.
As folhas estavam todas numeradas e ela pôde reconhecer a caligrafia de
Tanya. No topo de cada página estava escrito o versículo do Alcorão em que
homens como o avô se baseavam para tomar atitudes como aquelas com suas
mulheres: “Se as vossas mulheres cometerem a ação, chamai de entre vós
quatro testemunhas contra elas. Se os depoimentos forem realmente contra elas,
fechai-as em casa até que a morte as leve ou que Alá lhes conceda algum meio
de salvação”. Salema admirou-se de que a tia conseguisse escrever tudo aquilo
às escuras e começou a ler aquelas folhas devagar.
“Ontem à tarde estive contemplando o horizonte. Havia luz do outro lado.
Era algo incessantemente brilhante e que chamava por mim. A beleza da visão
ofuscava meus olhos, mas eu tentei caminhar até lá. Enquanto caminhava, o sol
parecia que vinha comigo, como se tentasse proteger-me de algo que eu não
conhecia, mas que queria encontrar. Andei. Andei toda a tarde e quanto mais
eu andava mais distante a luz ficava de mim. Cansada, sentei-me em um lugar
que julgava confortável. Ao meu redor havia tanta gente, pessoas que riam e
zombavam de mim. Por quê? Eu realmente não sabia.”
Quanto mais Salema lia, mas admirada ficava. Descobria tarde demais
quanta emoção havia por trás do véu que escondia o rosto da tia. E não só
Tanya, pensou ela. Mas muitas mulheres que, como ela, não têm apenas um
rosto atrás do véu, mas também vida, sonhos, desejos, anseios que jamais
podiam ser revelados. Aliás, era justamente essa a função do véu e da abaya,
esconder a natureza feminina que, para os homens, era sinônimo de pecado e
perdição.
“Eu toquei-lhe na face. Como era lindo o meu amor! Quando sorria, o seu
rosto todo resplandecia e dos dois lados da face pequenas covinhas se formava,
fazendo-o ainda mais belo. Não havia barreira entre nós naquela hora. Nem
véu, nem religião, e principalmente nenhuma escuridão. Num momento em
que eu jamais poderei esquecer, ele beijou-me suavemente os lábios. Naquela
hora meu corpo todo desejou abraçá-lo, ficar com ele, nunca mais deixá-lo
partir, mas, quando tentei tocá-lo outra vez, seu rosto foi lentamente se
distanciando de mim. Tentei alcançá-lo, mas, à medida que eu andava, mais
distante ele ficava. Mais uma vez cansada parei, e foi então que eu vi que a
imagem dele se confundia com um ponto na linha do horizonte, um ponto
inalcançável para mim.”
Aquela folha estava manchada. A tia tinha chorado quando escrevera
aquilo, e Salema chorava também. “Oh, Deus, por que tudo isso? O que falta eu
entender do seu amor para conseguir perceber a razão de Tanya ter sofrido
tanto e por fim ter acabado como acabou? Ela era tão próxima, tão amada, tão
querida! Por que, Deus, por quê?” E ela continuou a ler, uma a uma todas as
folhas. Tudo aquilo era a história de uma vida. Uma curta vida que ousou ser
diferente. Ousou acreditar que com ela poderia ser diferente. Amou. Pobre tia
Tanya! Na última folha ela escreveu:
“Este é o último dia. Tudo está escuro. A luz já não brilha. O horizonte
está distante de mim. Não há rostos nem imagens, e ninguém mais zomba de
mim. Ele também se foi, na última vez em que eu o vi ainda tentei tocar-lhe os
cabeços, mas foi em vão. Não há ninguém comigo agora. Estou só, e a minha
única certeza é que este é o fim. Já não há mais paixão em mim, nem medo, pois
isso é mesmo assim. Nunca mais vou contemplar o horizonte, não posso... não
quero. O horizonte enganou-me. Parecia tão perto que eu quis acreditar. Afora
estou cansada de andar. O sabor amargo da bebida forte ainda me aquele por
dentro. Não tenho medo, finalmente vou para lá...”
Ao terminar de ler tudo aquilo, Salema sentiu o coração bater
descompassado. O quarto girava ao seu redor e o estômago fazia voltas
enquanto o bebê se agitava em seu ventre. Teve medo. Tanya era uma mulher
entre milhares sem esperança. Salema sabia que ela conhecia o caminho para o
horizonte que a tia havia procurado, mas como levá-las até lá? A tia morrera
por acreditar em algo diferente; e com ela, como seria quando descobrissem
sobre a sua conversão? E o seu filho? O que seria dele?
- Salema, o que está fazendo aqui?
- As folhas, eu as quero, por favor, guarde-as para mim.
- Essas foram as últimas palavras de Salema antes de desmaiar nos braços
de Ismael.
Depois da morte de Tanya, nada mais seria igual para Salema. A morte
pegara-a de surpresa, e as circunstâncias trágicas que envolveram o suicídio
não saíam da sua mente. Salema já havia lido e relido aqueles papéis
encontrados no quarto de Tanya inúmeras vezes. Quanto mais lia, mais ela se
identificava com os anseios da tia. Para Salema, estavam claras a sensibilidade e
a força daquela jovem mulher que não suportou a dor da sua condição. Havia
algo mais por trás daquelas letras escritas no escuro, daqueles papéis sujos e
manchados de lágrimas. Pensando assim, ela guardou-os entre as suas coisas
mais preciosas, com a carta de Nayla e as porções da Bíblia que Lisa lhe havia
transcrito.
Depois do desmaio daquela tarde, Ismael tentara tirar-lhe os papéis,
alegando que aquilo só lhe faria mal, mas Salema insistiu em tê-los com ela. Ela
não sabia por que, mas cria que aqueles papéis eram parte integrante da
descoberta que ela estava fazendo e das mudanças que ocorriam em sua vida.
Para ela a vida da tia era um dos exemplos entre milhares de mulheres que
sofriam caladas e amedrontadas com tudo que as rodeava. E de alguma
maneira Salema sabia que Deus lhe dava mais que um relacionamento com ele.
Ele a despertava para as necessidades das mulheres de seu povo, mulheres que,
como Tanya, estavam com freqüência escolhendo um caminho sem volta. O que
poderia fazer, ela não sabia. Por mais impulsionada que estivesse, tinha medo.
Aliás, o medo era uma característica da vida de toda mulher. Ela sabia que
havia uma esperança, mas ela era uma em meio a uma multidão. Sentia-se
frágil, incapaz e insegura, mas, ainda assim, às escondidas e com a
cumplicidade de Lisa, Salema se aprofundava mais e mais na esperança e no
novo caminho que havia encontrado.
CAPÍTULO 18
Dificuldades
Ismael olhou para a esposa adormecida, agora com uma barriga enorme e
um rosto redondo de alguém que estava muito além do peso normal. Mais um
mês e o primeiro filho deles estaria em seus braços, com certeza um varão, para
dar continuidade a seu nome e a sua descendência. Mesmo com o corpo
completamente modificado por causa da gravidez, Salema estava linda. Como
ele a amava! Lembrou-se da primeira vez que a viu no dia do casamento. Ela
havia sido prometida a ele muito tempo atrás, quando ainda era uma menina.
Seus pais haviam acordado que se casariam e, embora ele tivesse vivido muitas
experiências com as mulheres ocidentais que conhecera no tempo da
universidade, sempre soube que seu lugar era ali, no seu país, com a sua gente,
esforçando-se para manter viva a tradição do seu povo. Aliás, as suas
experiências no ocidente só serviram para provar que Alá tem um povo
escolhido, seu povo, e que toda manifestação diferente da fé da sua gente vem
de uma sociedade decadente, imoral e violenta.
Ele se lembrou de quanto a beleza dela o surpreendeu desde a primeira
vez. Lembrou-se também do primeiro momento juntos, do temor dela, do medo
estampado em seu rosto diante do desconhecido e depois da entrega voluntária
àquilo que seria para eles uma grande história de amor. Até sua mãe se
encantara com a nora. Numa sociedade em que sogras são mais carrascos do
que amigas, Salema havia conquistado o coração de Maya. A esposa parecia
querer agradar a toda a gente, e ninguém que se aproximasse dela ficava
indiferente ao seu encanto natural. Certa vez seu pai, notando que o
relacionamento do filho com a esposa fugia ao que era tradicional, alertou-o:
“Ismael, tenha cuidado! A mulher é apenas uma costela; se você a endireita, ela
se quebra; se tenta apreciá-la, o gosto é ambíguo”.
Claro que ele não dera atenção às palavras do pai. Salema não era o tipo
de mulher que lhe causaria problemas. Era amável, submissa e, embora fosse
bastante insistente naquilo que queria, vivia sob sua proteção e cuidado. Não,
com certeza não teria problemas com ela. Mas a verdade é que já havia algum
tempo ele vinha notando algumas mudanças na esposa. A princípio ele pensou
que tudo tinha a ver com a gravidez. Os últimos meses tinham sido muito
difíceis para ela. A ameaça de aborto, o repouso forçado e a perda da tia, tudo
isso poderia estar influenciando o comportamento da esposa. Mas ele não
estava bem certo disso. Sentia um clima diferente entre eles. Era como se
Salema estivesse lhe escondendo alguma coisa. Ele tinha a sensação de que toda
vez que se aproximava de Salema repentinamente ela ficava constrangida ou
atrapalhada. Os olhos dela, os gestos, a maneira de andar e falar, enfim, tudo
lhe parecia estranho e ameaçador. Envolvido que estava com o término da
construção do hospital, ele vinha adiando um confronto com a esposa,
principalmente porque agora, pouco tempo antes de o seu filho nascer, ele não
queria que acontecesse nada que pudesse lhe causar algum risco. Mas agora ele
não poderia adiar mais. Aquilo era muito grave. Ainda há pouco, ao entrar na
sala dos pássaros, ele vira nitidamente Salema escondendo algo entre as
almofadas do sofá onde estava sentada. Resolveu então ficar ao lado dela para
que não tivesse oportunidade de retomar o que havia guardado. Depois de
algum tempo, exausta, ela resolvera ir para a cama, com certeza segura de que
ele não percebera nada. Ismael, entretanto, despediu-se da esposa com um beijo
na face, esperou que ela saísse e andou lentamente até a poltrona na qual ela
estivera sentada. Levantou a almofada, e qual não foi o seu espanto quando
reconheceu o que tinha nas mãos. Duas folhas escritas num inglês fluente, que
tinham sido copiadas com certeza da Bíblia, o livro dos cristãos. Mas como
Salema conseguira aqueles papéis? A divulgação e o ensino daquele livro não
eram permitidos em seu país. Quem a ajudava? E o mais grave de tudo: por que
ela estaria escondendo isso dele?
Olhando para a esposa adormecida, tão linda protegendo em seu ventre o
filho tão esperado, ele pensou que poderia estar enganado. Com certeza ele
teria uma explicação plausível para aquela situação. Com aquele pensamento,
ele lhe tocou de leve os cabelos tentando acordá-la.
- Salema, nós precisamos conversar.
Sonolenta, Salema espantou-se com o fato de Ismael procurá-la àquela
hora da noite, mas, ao sentar-se na cama para poderem falar, ela viu nas mãos
dele a causa de ele estar ali. Ismael tinha consigo os papéis que algumas horas
atrás ela havia escondido entre as almofadas do sofá.
- Salema, há muito que eu tenho notado que está acontecendo algo com
você, e eu preciso saber o que é.
- Ora, o que acontece comigo é que eu não caibo mais em nenhum lugar
desta casa e se continuar assim talvez não passe pela porta do hospital daqui a
um mês, quando a criança nascer – respondeu Salema, tentando quebrar o
clima de tensão que surgia entre eles.
- Salema, eu não estou brincando. Eu quero saber o que é isso – disse
Ismael, mostrando-lhe os papéis.
Salema estremeceu. Ela sabia que estava diante de uma situação difícil. De
um lado seu marido confrontando-a, querendo saber a verdade sobre o que
estava ocorrendo com ela; do outro, o medo de lhe revelar algo que ela sabia
que ele não poderia compreender nem aceitar. Ela não queria mentir, não
poderia. Ela sempre soube que aquele momento chegaria. Afinal, as mudanças
que a sua nova fé estava lhe fazendo era impossíveis de ser abafadas.
Contemplando o olhar de confronto com que Ismael a fitava, Salema se deu
conta de que não haveria outra saída. Ela teria de lhe contar a verdade.
- Você sabe do que se trata. A verdade é que não são os papéis, mas o
conteúdo destes e dos outros que eu tenho comigo é que tem transformado a
minha vida – respondeu Salema, fitando-o convicta.
- Você está me dizendo que estes não são os únicos? Eu não posso
acreditar que você esteja fazendo uma coisa dessas – disse ele, com a voz já
alterada.
Salema orou baixinho. Desde aquela noite em que quase perdera o filho,
ela orava sempre. Mesmo quando cumpria os rituais de oração de seu povo,
ajoelhada em seu tapete de oração, era com ele que ela falava. Agora não eram
mais orações aprendidas que saíam dos seus lábios, mas eram palavras de
alguém que o adorava e petições de alguém que tinha certeza de que estava
sendo ouvida. Com essa certeza, ela se levantou da cama, e andando devagar
por causa do peso da barriga, foi até o guarda-roupa. De um canto escondido
tirou uma pequena caixa que continha as coisas mais importantes que lhe
pertenciam. Voltou-se para o marido e, sem nenhum gesto de hesitação,
entregou-lhe a pequena caixa.
Ismael espantou-se ao ver o conteúdo. Inúmeras folhas como aquelas que
ele havia encontrado na sala dos pássaros estavam ali. Nas as leu, não era
necessário. Não era preciso ser muito inteligente para perceber que ali estavam
descritas todas as doutrinas do cristianismo. No tempo da universidade ele
tinha convivido com pessoas que acreditavam nelas. Nada daquilo era novo
para ele, mas o que o deixava perplexo era o fato de Salema dizer que aquilo a
transformava. Como ela poderia enganá-lo daquela maneira? Ainda na caixa ele
encontrou os textos que Tanya deixara. Aqueles ele já havia lido e achara tudo
uma grande bobagem, sem nenhuma importância. O que o espantou mais foi
quando encontrou a carta de Nayla. Quando terminou de lê-la, ele pôde então
entender. Como ele fora ingênuo! Tudo se passara ali em sua casa, debaixo de
seus olhos. Nayla. Essa mulher nunca deveria ter se aproximado de Salema. E
Lisa, claro. Os manuscritos todos em inglês. Claro, só podia ser ela. Era Lisa que
estava influenciando Salema. Mas com certeza não estava fazendo aquilo
sozinha. Os seus pais, os criados de confiança de seu sogro, eram eles que
deveriam estar por trás de tal maquinação.
Sem desviar o olhar em nenhum momento do rosto do marido, Salema
contou-lhe como tudo aconteceu. Falou-lhe dos sonhos, da forte experiência na
última peregrinação, das suas dúvidas após a conversa com Nayla e depois com
Lisa e da certeza que tinha que havia sido ele, Jesus, o profeta, que a protegera
naquela noite em que quase perdera o filho. Ismael ouviu em silêncio enquanto
Salema falava, nenhuma expressão no rosto. Nada nos olhos dele que pudesse
revelar-lhe o que estava pensando.
- Querido, eu quero que entenda que apesar disso eu não deixei de amar o
meu povo. O meu desejo maior agora é que de alguma forma todos possam
entender o que se passa comigo.
- Você só pode estar mesmo louca. Como pode achar que alguém
acreditaria num absurdo desses? OU que alguém aceitaria o fato de você rejeitar
aquilo de mais sagrado que nós temos – gritou Ismael, caminhando em direção
a ela.
- Mas, Ismael, eu não posso negar aquilo que aconteceu comigo. É real,
não fui eu que inventei.
- Salema, você não percebe que Alá é absolutamente inconcebível para
você ou para quem quer que seja. Nós podemos pensar o que quiser dele. Ele
não é o que nós pensamos. Ele é maior que qualquer idéia que qualquer um de
nós possa ter a seu respeito. Como pode, então, acreditar que o que pensa sobre
Alá seja a absoluta verdade? Você não percebe a sua presunção?
Agora Ismael estava diante dela, segurando-a pelos braços e sacudindo-a,
como se quisesse despertá-la de um sonho ruim.
- Salema, ouça bem. Eu quero que esqueça todo esse absurdo que acaba de
me contar. Eu quero que a partir de hoje rejeite toda essa doutrina que andou
aprendendo por aí com suas amigas. Isso é uma ordem, Salema.
O olhar dele estava fixo nela e em nenhum momento Salema notou
alguma emoção, alguma paixão na voz do marido. Naquele momento ele era o
seu dono, um homem como qualquer outro de seu povo, que tem o direito e o
domínio sobre sua mulher.
- Mas, Ismael, foi você mesmo que me ensinou que...
- Cale-se, Salema. Apenas faça o que estou mandando.
- Eu não posso fazer isso, meu marido.
Foi então que ele levantou o braço e a esbofeteou violentamente. Ela caiu.
Naquele momento Salema agradeceu o fato de estar grávida, porque senão ele a
teria espancado. Não parecia o mesmo homem. A rigidez na voz e nos gestos de
Ismael surpreendera Salema. Era a mesma que tantas vezes notara em seu pai.
- E nunca mais me olhe nos olhos. De hoje em diante, e até o meu filho
nascer, você não sai deste quarto. E está proibida de me dirigir a palavra. Eu
errei com você, Salema. Nunca deveria ter-lhe feito todas as vontades. Agora
tem um mês para pensar em tudo isso e desistir desse absurdo que acaba de me
contar.
Com essas palavras Ismael a deixou ali caída no chão. Juntou todos os
papéis, colocou-os de novo na caixa, tomou-a para si e caminhou em direção à
porta.
- Ismael, por favor, não os destrua. São importantes para mim – implorou
Salema, embora amedrontada.
Ele a fitou mais uma vez. Por um instante Salema teve a impressão de ver
uma sombra de tristeza em seu olhar. Mas, sem dizer palavra alguma, levando
a caixa consigo, Ismael deixou o quarto da esposa, fechando a porta atrás de si.
O choro foi inevitável. Ainda sentada no chão, sem forças para se levantar,
Salema olhou ao redor do seu quarto. Naquele ambiente ela fora feliz. Naquele
quarto ela fora pela primeira vez amada, valorizada e reconhecida como
alguém especial. Fora ali também que ela tivera uma das experiências mais
profundas com Jesus, quando ele lhe falara do caminho. Agora naquele mesmo
lugar ela acabara de ser rejeitada e humilhada como todas as mulheres são. Os
cortinados, o tapete macio, a cama enorme e macia, nada disso a aconchegava
mais. Estava só, e pela primeira vez ela era confrontada com a decisão de seguir
a Jesus ou salvar o relacionamento com o homem a quem amava. Num canto do
quarto, estendido ao pé da mesa-de-cabeceira, estava o seu tapete de oração.
Salema foi até lá e, ajoelhando-se, começou a conversar baixinho com aquele
que ela tinha certeza estava ali junto dela.
“Oh, Deus, ajuda-me! Eu estou só. Eu tenho medo, Jesus. Não sei o que
fazer. Tenho medo por mim e por meu filho. Tenho medo por Lisa e seus pais.
Não sei o que fazer. Escolher ficar contigo significa rejeitar tudo o que tenho,
minha família, meu marido. O que vai ser de mim? Deus, ajuda-me. Agora,
mais do que nunca, eu preciso saber que tu estás comigo.”
As lágrimas corriam-lhe livremente pela face naquele momento. Tinha as
mãos erguidas como se quisesse que alguém a levantasse dali. De repente ela se
lembrou de um dos manuscritos que Lisa havia lhe dado. Era como se uma voz
serena, vinda de dentro dela, a fizesse lembrar. Era a história de dois homens
que, mesmo presos, açoitados e acusados de perverter e propagar costumes que
não eram do povo onde estavam, ainda assim cantavam louvores ao Deus em
quem acreditavam. Mais uma vez ela foi inundada por ele, e a partir dali ela já
não se sentia mais só. A sua doce presença já lhe era conhecida. Era como se
todo o temor que sentia estivesse sendo arrancado do seu coração. Com o
mesmo poder com que Deus havia sacudido os alicerces daquela prisão, ele
poderia soltar-lhe as cadeias também. E com essa certeza, ela orou outra vez:
“Oh, Deus, por favor! Como tu abristes todas as portas àqueles homens
naquela noite, vem agora soltar as cadeias que têm aprisionado a mim e a meu
povo para que eles te conheçam como tu me tens dado a oportunidade de te
conhecer.” Ainda ajoelhada no seu tapete de oração, mas agora prostrada com a
cabeça entre as mãos, um doce canto começou a brotar dos lábios de Salema, e a
partir daquele momento ela teve a certeza de que jamais o deixaria. Qualquer
que fosse o seu futuro, ela ficaria com ele.
CAPÍTULO 19
Completa solidão
Depois de mais alguns dias no hospital, Salema teve alta, e Ismael veio
pessoalmente buscá-la. Até aquele dia ele não a procurara mais. Também não
havia permitido que ela visse os filhos, que, por sinal, já estavam em casa e
continuavam sendo cuidados pela ama-de-leite. Quando entrou no quarto da
esposa, notou seus olhos inchados. Ela esteve chorando com certeza, e, embora
isso lhe provocasse um aperto no peito, não deixou transparecer nenhuma
emoção; apenas lhe dirigiu a palavra para ordenar que cobrisse o rosto com
véu. Ao passar pelo imenso portão que dava acesso à rua, Salema ainda teve
tempo de olhar para trás e ver a imensidão daquele edifício. Ela havia estado ali
apenas uma vez no início da construção, mas até então não tinha idéia de como
era vultoso o empreendimento de Ismael. Ele sonhara com aquele hospital.
Moderno, suntuoso e muito bem equipado. A melhor equipe médica
estrangeira fora contratada, além dos médicos locais que também já atuavam
ali. Apenas a escola de medicina não havia sido inaugurada. Como eles tinham
planejado anteriormente, e embora as coisas não tivessem corrido como
desejavam, o nascimento dos filhos de Ismael inaugurou o centro cirúrgico do
hospital e, a partir dali, tudo passou a funcionar a pleno vapor. Salema sonhara
sair daquele hospital com o filho nos braços. Sabia que aquele seria um
momento só seu. Um momento que desejou compartilhar com o marido, afinal,
era o filho deles. Um filho desejado e amado muito antes do seu nascimento.
Mas agora, ao transpor aquele portão, o que ela levava consigo era a dor da
ausência dos filhos e a incapacidade de fazer qualquer coisa para reverter
aquela situação. Ela a princípio pensou que iriam diretamente para casa. Tinha
uma ponta de esperança que no ambiente onde haviam sido felizes Ismael
mudasse de idéia e a deixasse ver os bebês, por isso ficou surpresa quando o
motorista parou o carro diante do portão da casa do seu pai. Havia algum
tempo não ia até lá. Não se lembrava de quando havia sido a última vez, mas
mesmo assim podia perceber que tudo estava igual como no tempo em que ali
vivia. A fachada da casa grande continuava a reluzir de tão branca; as grandes
chaminés e o jardim bem-cuidado onde Lisa e ela tantas vezes correram e de
onde pela primeira vez tia Tanya havia contemplado o horizonte tão desejado.
Contemplando o jardim, sentiu profunda tristeza. Nunca mais correria pelo
meio das flores nem colheria malmequeres nem rosas para enfeitar os casos da
sala. Olhando o jardim, observou também um homem diferente cuidando das
flores. Onde estaria Lisa e sua família? O que teria acontecido com eles? Até
agora ninguém havia lhe falado no assunto, mas Salema, conhecendo a rigidez
do pai, temia que algo muito grave pudesse ter ocorrido com eles. Ainda
observando tudo o que estava a sua volta como se fosse aquela a última vez,
Salema entrou na sala grande logo atrás de Ismael. Mais espantada ainda ficou
ao ver que toda a sua família estava ali dentro daquela sala, com exceção apenas
das irmãs mais novas. Os avós, os pais, as tias e os seus maridos e os pais de
Ismael também. Todos olhando fixamente para ela, desde que entrou. Ela não
sabia o que estava acontecendo, mas diante da decisão que Ismael lhe impusera,
com certeza eles estavam todos ali para ouvi-la renunciar àquilo que para eles
significava uma grande traição. Diante do que via, Salema sabia que não
haveria saída. Procurando um lugar para se acomodar, tirou o véu que lhe
cobria o rosto e esperou. O avô foi quem falou primeiro. Numa sociedade
patriarcal como a que viviam, não foi surpresa para Salema ser ele a dirigir-lhe
a palavra.
- Você sabe por que está aqui, não sabe? – perguntou o avô de Salema.
- Sim, eu sei, meu avô – respondeu Salema, sem nenhuma agitação,
embora não ousasse fitar-lhe os olhos, o que não lhe seria permitido de maneira
alguma, e tivesse as mãos frias e trêmulas diante do receio que sentia pelo que
estaria por vir.
- Eu quero que saiba que esta reunião foi feita a pedido do seu marido.
Para mim e para muitos aqui, essa situação já teria resolvida de outra maneira,
mas Ismael acredita que você pode se recuperar; portanto, vamos lhe dar essa
chance. Agora eu quero que, diante de todos aqui, você relate, sem esconder
nada, exatamente como tudo aconteceu.
A voz dele era fria. Mesmo se tivesse observado qualquer sinal de
sofrimento no rosto da neta, nem por um momento mostrou alguma emoção.
Aliás, Salema não poderia esperar isso dele. Fora ele que implacavelmente
deixara morrer sua tia. E ela sabia que, se a ele fosse dado o poder de decidir
sobre sua vida, com certeza o seu fim não seria diferente.
- O senhor quer que eu lhe conte tudo?
- Tudo, quem a ajudou, quais foram as influências, se há mais pessoas
envolvidas nessa história que nós não conhecemos. E principalmente se alguma
de suas irmãs foi igualmente influenciada.
Foi então que Salema começou a falar. Falou-lhes exatamente como fizera
com Ismael, dos sonhos que a princípio a atormentaram. Do lugar onde o brilho
era intenso como os raios do sol e onde tudo resplandecia como ouro refinado.
Falou-lhes também do homem que a conduzia, mostrando-lhe tudo, inclusive o
lugar escuro do outro lado do imenso portão. Contou-lhes com detalhes a
experiência profunda que tivera durante o rito da circum-ambulação e também
dos sonhos que se seguiram. Nesse momento, embora Salema não pudesse
perceber, porque mantinha a cabeça abaixada e seus olhos fixos no chão, uma
onde de profunda indignação podia ser sentida entre eles. A jovem, porém, ao
contrário de todos ali, voltou a sentir aquela sensação de conforto que ela tão
bem conhecia. Então, orando baixinho a cada pausa que fazia, contou-lhes
ainda das dúvidas que foram surgindo à medida que conversava com Nayla e
Lisa, até aquela noite em que quase perdera os bebês. A partir dali, ela já não
tivera mais dúvidas. Contou-lhes em detalhes o sonho daquela noite. A morte
do homem. O mesmo homem de todos os seus sonhos. A crucificação dele e a
profunda convicção que tivera de que ele era Jesus, o filho de Deus, que
morrera daquela forma por amor a ela e por todos ali. Quando Salema terminou
de proferir essas últimas palavras, o avô levantou-se e num gesto esbofeteou-a
na face, diante da passividade de todos. Com o rosto ainda a arder, ela erguei os
olhos em busca da mãe. Buscava encontrar nela o apoio de alguém que a
amasse e pudesse entendê-la. Mas o que encontrou foi o mesmo misto de
indiferença e repulsa que ela via em todos ali.
- Você não vê o absurdo do que está dizendo, menina? – disse Khalil,
indignado. – Alá nunca teve filhos. Como pode acreditar que ele se dignaria a
descer até aqui para ter relações com uma mulher qualquer, para que enfim
pudesse ser o pai de Jesus?
- Não, meu pai, isso seria realmente uma blasfêmia, e qualquer religião
que ensine tal coisa deve ser mesmo rejeitada – disse Salema, convicta.
- Então, concorda que o que acaba de nos contar é uma blasfêmia.
- Eu concordo que jamais Deus teve sexo com uma mulher. Jesus não é
filho de Deus no sentido físico. O que aconteceu com Maria, a mãe de Jesus, foi
um toque sobrenatural do próprio Espírito de Deus.
Mais uma vez se fez silêncio na sala até que o mesmo foi quebrado pelo
próprio Ismael.
- Salema, você disse que acredita que o homem de seus sonhos é Jesus, o
profeta. Pois eu lhe digo que esse, que você diz ser tão especial, é um dos cento
e vinte e quatro mil profetas de Alá. Você está cansada de saber que Maomé é o
maior e o último de todos os profetas. Não vê a importância que está dando a
alguém que veio antes daquele que é o maior profeta de todos os tempos e o
único profeta de Alá na atualidade?
Salema tinha medo da resposta que daria a seguir, e se não fosse a certeza
de que Jesus estava com ela provavelmente tentaria sair correndo dali. Sabia
que tudo o que dissesse despertaria maior indignação ainda. Ela se lembrava
bem do sentimento de repulsa que sentira após a primeira conversa com Nayla.
Ela não poderia culpá-los. A fé e a tradição de toda uma gente estavam sendo
contestadas por ela, uma mulher, que lhes pertencia, que fora criada ali e que
sempre vivera sob a mesma tradição. Não, eles não aceitariam nada do que ela
dissesse, por mais fortes que fossem os seus argumentos. Ainda assim, ela
respondeu:
- Mas foi com você que aprendi que, segundo o Alcorão, o profeta Jesus
virá no fim para julgar o mundo.
- E isso é verdade. É o que diz o Santo Alcorão.
- Então, se isso é verdade, quem será o último profeta de Deus?
Ismael não teve resposta. Então Salema continuou cada vez mais convicta.
- Além disso, Jesus não é apenas um profeta, é o Salvador. O meu
salvador. E um salvador é maior que um profeta.
Ismael conteve o impulso de esbofeteá-la outra vez. Não era o momento.
Ainda tinha esperança de vê-la renunciar de uma vez por todas àquela
bobagem.
- Você não vê o engano em que está envolvida, Salema? – disse ele, mais
uma vez tentando dissuadi-la.
- Você é que não está entendendo, Ismael. Ele deu a vida por mim. Foi
crucificado pelos meus pecados, você não vê? O lugar dos meus sonhos é o
lugar para onde eu irei quando a minha vida terminar. Ele é a porta de entrada
para esse paraíso que nosso povo almeja tanto conquistar.
Nesse momento foi Khalil quem chegou até bem perto da filha e,
erguendo-a bruscamente da cadeira onde estava sentada, esbofeteou-a uma,
duas, três vezes... até a mão cansar. E, enquanto lhe batia, repetia várias vezes
que aquele paraíso existia sim, mas não era um lugar para uma mulher suja
como ela. E, enquanto Khalil lhe batia, Salema lembrou-se de que aquelas mãos
foram as mesmas que a acariciaram um dia, num momento de muita aflição.
Como ela desejara ser amada pelo seu pai! Mas foi somente naquele instante
que ela pôde compreender que Khalil jamais poderia amar quem quer que
fosse, porque ele não conhecia o verdadeiro amor.
Ninguém disse nada. Apenas um murmúrio entre as mulheres presentes
quando assistiram à cena. Embora o sangue lhe jorrasse dos lábios, Salema não
chorou. Caída no chão e sem forças para se erguer por causa da recente cirurgia,
ela permaneceu onde estava. Ninguém tentou ajudá-la. Com o rosto marcado
ela olhou para as pessoas ao redor. Ela sabia que nada resultaria daquilo, e
também estava convicta de que o momento crucial daquela conversa estava
cada vez mais próximo.
- Levante-se, Salema – ordenou o avô.
Com dificuldade, ela foi se arrastando até a – Nós já ouvimos tudo o que
tinha a dizer. Cada palavra que diante de todas essas testemunhas é prova da
sua traição. Você rejeitou o seu povo, a sua religião e a sua família. Ainda assim
o seu marido quer lhe dar a oportunidade de fazer uma escolha. Portanto, a
minha pergunta será direta, e quero também uma resposta direta, sem rodeios.
Ninguém aqui precisa ouvir mais nada sobre aquilo em que diz acreditar.
Salema não respondeu. Apenas orava e tremia sem conseguir se controlar.
- Salema, você renuncia a todas essas experiências que disse ter tido?
Renuncia às doutrinas que aprendeu pelos manuscritos encontrados por Ismael
no seu quarto? Renuncia a todos os ensinos dos cristãos sobre o profeta Jesus?
Confessa que o único livro santo é o Santo Alcorão e que não há nenhum deus
além de Alá e que Maomé é o seu profeta?
Salema não respondeu. Sabia que de sua resposta dependeria a
oportunidade de conhecer os filhos e, até mais do que isso, dependeria sua
própria vida. Ela estava certa de que o avô ou o pai prefeririam vê-la morta a
deixá-la viver a sua nova fé. Ela não sabia o que fazer. Amava Jesus
verdadeiramente. Nesses últimos meses ele tinha se revelado a ela. Ela sabia
com profunda convicção que tudo em que agora acreditava era a verdade, mas
sabia também que não haveria palavras que pudessem convencer aquelas
pessoas a sua volta. Seria necessário muito mais do que isso. Seria necessário
que eles também fossem tocados da mesma forma com que ela fora. Algo que,
como Jesus ensinara a um homem tão religioso quanto os da sua família,
deveria nascer do espírito, revelado no íntimo do homem, transformando cada
um deles em pessoas verdadeiramente diferentes. Lembrou se de Nayla, a
amiga com quem tinha convivido tão pouco, mas que se arriscara tanto por ela.
Pensou em Lisa também. Depois de tudo aquilo que acontecera ali naquela
tarde, Salema não tinha dúvidas de que algo muito grave acontecera com ela e
sua família. Então, pela primeira vez desde que estivera ali diante de todos, as
lágrimas brotaram-lhe nos olhos. Mais uma vez ela orou, buscando o auxílio
daquele que era o único que lhe havia prometido uma direção. Foi nesse
momento que, como em tantas outras vezes, ela ouviu uma voz suave, vinda de
dentro dela, que lhe prometia que não a abandonaria, mesmo que todos a
abandonassem. Foi então que senti o coração aquecido outra vez. Aos poucos o
temor deu lugar a uma imensa paz. Ela estava triste, porém convicta da sua
resposta, quando o avô a questionou outra vez.
- Salema, você renuncia ao cristianismo e a suas doutrinas?
- Não. Eu não posso fazer isso – respondeu ela, sem hesitar, olhando pela
primeira vez fixamente nos olhos do avô.
Pôde-se ouvir um burburinho dentro da sala. Homens e mulheres
exaltados diante da resposta fria e resoluta de Salema. Mirna não podia
acreditar. A filha devia estar louca. O tempo todo ela esperara que Salema fosse
abraçar a oportunidade de reconciliar-se com a família e o marido. Agora não
haveria mais volta. Aquele seria o fim de Salema.
- Ismael – chamou o avô de Salema -, você ouviu o que todos ouvimos,
não?
- Ouvi, sim.
- Agora é a sua vez de escolher. Você pode divorciar-se de Salema aqui
mesmo, diante de todos, e deixar que Khalil escolha o que fazer com ela ou você
mesmo como marido dela pode fazer o que deve ser feito.
Ismael hesitou um momento. Olhou para o sogro, tentando entender o que
esperava que ele fizesse, olhou para o pai, que havia muito condenara Salema, e
por fim olhou para o avô daquela que ainda era sua esposa.
- Eu vou fazer o que deve ser feito.
- Então, tire-a daqui imediatamente. Lembre-se de que esse é um assunto
de família e, portanto, deve ser discreto. Não se esqueça.
Ouvindo estas últimas palavras, Ismael tomou Salema pelo braço,
obrigou-a a cobrir o rosto com o véu e tirou-a da sala sem permitir que ela
sequer olhasse para trás. Ao sair, entretanto, a jovem pôde ouvir um lamento
que ela sabia vir dos lábios da mãe.
Ismael dispensou o motorista e ordenou que Salema entrasse no banco de
trás do carro. Saindo a toda velocidade, depois de transpor o portão, ele parecia
transtornado. Não disse nenhuma palavra durante todo o trajeto. Enquanto o
marido dirigia, Salema tentou imaginar para onde estariam indo. Ela sabia que,
da forma como tinha deixado a casa de seu pai, para ela não haveria mais volta.
Achou que iria morrer. Notou, entretanto, que estavam dando voltas pela
cidade. Já haviam passado pelo mesmo lugar duas vezes pelo menos. Era como
se Ismael não soubesse para onde ir. Àquela hora da tarde o movimento era
intenso nas ruas da cidade, pessoas indo e vindo de algum lugar se
encontravam aqui e ali. Salema não sabia por que, mas, ao olhar para aquela
gente, a sua gente, ela sentia o coração apertado. Mulheres de rosto coberto,
escondendo atrás do véu a beleza da imagem de Deus. Homens, alguns cuja
expressão mostrava nitidamente a dureza da vida e a rigidez dos costumes.
Outros, porém, não tão formais, mas ainda assim perpetuando nos hábitos e no
dia-a-dia a tradição e a religião do seu povo. Naquele momento, mais do que
em qualquer outro de sua vida, Salema amou sua gente. Ao observar aquelas
pessoas, cada uma delas envolvida com sua própria vida, seus afazeres, sua
história, seu mundo, ela viu brotar dentro do peito uma profunda compaixão.
Compaixão por saber que para aquelas pessoas não havia sonhos, e mesmo que
houvesse o caminho para conquistá-los era quase intransponível. Sua tia tentara
transpô-lo e morrera por isso. Salema, porém, estava certa de que o caminho
existia. Sabia também para onde esse caminho a levaria. Para o lugar especial de
que Nayla lhe falara e que ela mesma conhecera em seus sonhos. Tia Tanya
tinha almejado o horizonte, mas não chegou até lá. Talvez muitos ali também o
quisessem, mas, como a tia, vagavam em vão, porque não havia quem lhes
desse alguma direção. Foi então que Salema chorou outra vez. Mas não estava
chorando por si mesma. Chorava por aquela gente, que, tal como o povo pelo
qual Jesus chorou um dia, eram ovelhas perdidas que precisavam de um pastor.
Eram lágrimas de alguém que sabia que o seu povo precisava de pessoas que
estivessem dispostas, como Nayla e Lisa fizeram com ela, a dar-lhes uma
direção, mesmo que isso significasse o preço de uma vida. Salema não sabia
quanto tempo ainda teria. Nem sabia o que lhe aconteceria a seguir. O que ela
sabia é que era urgente a necessidade do seu povo. Foi com esse pensamento
que ela orou baixinho para que Ismael não a ouvisse.
“Oh, meu amado Deus. Hoje, com certeza, eu posso chamá-lo assim.
Porque te amo mais do que qualquer outra coisa em minha vida. Tu sabes que
para mim esta não foi uma escolha fácil. Mas estou certa de que escolhi a
melhor parte, porque dentre todas as decisões que eu poderia tomar, só tu é
„que tens as palavras de vida eterna‟. Eu estou triste. Perdi minha infância,
meus filhos, minha família e também meu marido, mas apesar disso eu já não
tenho medo, sei que estás comigo. O que lhe peço, pai, é que da mesma forma
como tu tocaste a minha vida, que tu possas tocar também o meu povo. E que,
da mesma forma como tu colocaste Nayla e Lisa em minha vida, tu possas
trazer pessoas valentes para esse lugar. Pessoas que estejam dispostas a mostrar
à minha gente o caminho até Ti.”
No instante em que Salema terminou de orar, Ismael parou o carro.
Distraída que estava com a sua conversa com Deus, ela não reconheceu
imediatamente o lugar onde estavam. Entretanto, quando Ismael lhe ordenou
que descesse, qual não foi o seu espanto ao ver que estavam diante do
aeroporto da cidade. Ela sentia dores intensas em todo o corpo. O lábio cortado
e a cabeça latejavam. Mas, mesmo assim, sem compreender o que Ismael
pretendia, ela o seguiu até a porta principal. Sem lhe dirigir a palavra, Ismael
chegou ao balcão de vôos internacionais. Ali, para surpresa de Salema, ele tirou
do bolso uma passagem de avião, um passaporte e um documento em que
Salema pôde reconhecer a assinatura do marido. Foi então que ela entendeu
que o passaporte era o seu e o documento era uma autorização dele para que
ela pudesse viajar sozinha. Depois de tratar de tudo no balcão, e ainda sem
dizer palavra alguma, ele seguiu caminhando pelo corredor do aeroporto.
Qualquer pessoa que os visse poderia imaginar que eram apenas um casal
partindo para uma viagem de rotina. Quando chegaram ao portão de
embarque, porém, Ismael parou e esperou que Salema se aproximasse. Foi
então que lentamente ele tirou o véu que lhe cobria o rosto e a abaya que lhe
servia de túnica. Desta vez ele não tentou esconder o quanto doía-lha ver o
rosto dela desfigurado daquela forma. Salema, porém, não compreendeu o que
o marido estava fazendo, até que ele disse, tocando-lhe a face ferida:
- Eu a amo, Salema.
Salema viu nitidamente a tristeza estampada nos olhos do marido. Ele
estava sofrendo. Como deveria ter sido grande o conflito que Ismael enfrentara
nestes últimos dias, desde aquela noite em que a fizera prisioneira no próprio
quarto. Só então ela pôde compreender que a decisão de Ismael de não se
divorciar dela diante da família naquela tarde foi para protegê-la. Certamente
ele sabia que, se fosse seu pai a decidir o que fazer com ela, provavelmente seu
fim seria outro. Agora, com ele ficavam seus filhos e parte do seu coração.
Assim pensando e sentindo o coração apertado por partir para sempre,
perguntou ao marido:
- Que nomes você deu aos nossos filhos, Ismael?
- O menino tem o nome Ahmed, em homenagem a meu pai; a menina se
parece tanto com você que eu não poderia dar outro nome senão o seu. Ela se
chama Salema.
Os olhos dela encheram-se de lágrimas. Estava diante de um homem
sensível, e o seu desejo naquele momento era que essa sensibilidade pudesse
fazer com que ele se tornasse um bom pai.
- Você tem de ir, Salema. O seu vôo parte dentro de instantes.
Ela não tinha mais o que dizer. Estava livre, mas deixava ali parte da sua
vida e da sua história. Consigo levava apenas a roupa com que estava vestida e
uma saudade profunda da sua infância tão curta, das irmãs mais novas e do
pequeno Salim. Como ela poderia esquecer-se da mãe, que ela tinha certeza de
que também a amava, da casa grande com seu imenso jardim e da sala dos
pássaros, onde o canto das aves a inundava de tanta alegria toda vez que ali
estava. Sentiria saudade também dos momentos felizes que tivera com Ismael.
Da cumplicidade, dos diálogos, da intimidade e do amor que ele lhe dera. Mas
mais do que tudo sentiria saudade dos filhos que não conhecera e da
oportunidade de vê-los crescer, que naquele momento definitivamente estava
lhe sendo tirada.
- Adeus, Ismael – disse ela, com profunda tristeza no olhar.
- Espere, eu tenho algo que lhe pertence – disse ele, tirando de dentro de
uma pequena mala que trazia consigo a caixa que havia tirado do quarto dela
naquela noite.
Salema não queria acreditar. Abriu a caixa e dentro dela estavam intactos
os manuscritos da tia, a carta de Nayla e a fotografia, entre outras pequenas
coisas que ela guardava ali. Os manuscritos copiados por Lisa não estavam lá
nem ela poderia esperar que estivessem.
- Muito obrigada, Ismael - disse ela, olhando para ele pela última vez.
Sem dizer mais nenhuma palavra, Salema virou-se, passou pelo portão de
embarque e caminhou pelo extenso corredor. Ele ficou ali, parado, vendo-a
andar em direção ao embarque com os cabelos longos à vista, enquanto ele
tinha nas mãos o véu que até há poucos instantes lhe escondia o rosto do
mundo. E, com os olhos marejados de lágrimas, tentando disfarçar a dor que
sentia, ele permaneceu no mesmo lugar, até perdê-la de vista em meio à
multidão.
CAPÍTULO 22
Ainda com a mesma emoção dentro do peito, Salema olhou a sua volta,
procurando alguém com quem pudesse falar. Todos aqueles dias ali tinham
sido muito especiais para ela, mas aquele em particular estava, desde a primeira
reunião da manhã, despertando-a para o que há muito tempo ela já deveria ter
feito. Era uma conferência como tantas de que já havia participado, porém
aquela lhe chamara a atenção, pois ficara impressionada com a quantidade de
pessoas reunidas ali. Eram pessoas vindas de tantas partes do mundo que, se
não fossem os intérpretes designados para as traduções, ninguém se entenderia.
Havia ocasiões em que ela se emocionava ao ver as pessoas orando em
diferentes idiomas, mas com o mesmo fervor. Salema estava realmente tocada.
Aquele momento de oração por seu povo fez com que ela se lembrasse de tudo
outra vez. Muitos anos se passaram desde que saíra de seu país. A princípio ela
pensara que iria morrer. Ao se ver sozinha na Inglaterra, um país
completamente estranho para ela, foi que percebeu o quanto estava habituada à
proteção que sempre lhe fora imposta e que até então não lhe fazia diferença.
Mas ela sobreviveu. Arrumou um emprego. Primeiro numa loja, onde ganhava
o suficiente para pagar o pequeno quarto no qual vivia e a própria comida. Mas
foi progredindo, até que conseguiu um emprego como secretária de uma
grande empresa de aviação. Falar mais que um idioma foi de grande ajuda para
ela na ocasião. Foi então que conseguiu pagar os estudos, cursou uma faculdade
e depois de algum tempo se tornou uma excelente advogada.
Nunca mais ela ouvira falar da família. Provavelmente todos pensavam
que estaria morta. Também não soubera nada dos filhos, nem mesmo de Ismael,
e ainda sofria com isso.
Levantou-se do seu lugar e começou a andar por entre as pessoas que se
esbarravam aqui e ali. Dentro de uma pasta que segurava nas mãos havia
alguns papéis. Alguns deles eram folhas muito antigas escritas a mão, num
idioma pouco conhecido por ali. Em sua maioria, entretanto, eram folhas
impressas, cujo conteúdo era a história da sua vida. Entre a multidão,
procurava uma de suas melhores amigas, que tantas vezes insistira para que
publicasse a sua história. Até aquele dia ela sempre havia rejeitado essa
possibilidade. No fundo, ela tinha certo receio de ser encontrada. O seu
argumento para não publicá-la era que o objetivo ao escrever era apenas poder
lembrar-se. Não queria esquecer detalhes importantes daquilo que tinha sido a
fase mais importante da sua vida. Mas agora, ao olhar para aqueles milhares de
pessoas ali reunidas, evidentemente comprometidas e tão tocadas quanto ela,
ficou imaginando se realmente, além das estatísticas que todos conheciam, elas
tinham a noção exata do que significava nascer, crescer e viver numa nação
como a sua, onde gerações inteiras têm vivido sem saber que existe um
caminho que pode levá-las além do horizonte, para um lugar de descanso e paz.
Por isso, ao encontrar a amiga, ela despejou a pasta em suas mãos.
- Você tem minha autorização. Pode publicar.
CAPÍTULO 23
“... elas estavam todas com o rosto coberto com o véu. No corpo, a abaya,
aquela espécie de túnica negra, cobria-lhes as vestes. Não tinham um rosto.
Todas as suas emoções estavam escondidas, toda a esperança sufocada, todos
os anseios e desejos estavam guardados dentro de corações marcados por terem
nascido mulheres. Seus nomes não importavam, suas convicções não eram
consideradas, suas vidas não eram registradas. Se havia algum desejo dentro
delas, ninguém sabia. Se amavam, não poderiam expressar, se sonhavam, não
tinham com quem compartilhar. Mas caminhavam. Andavam juntas pisando as
areias do deserto, o asfalto das ruas, como também andavam entre as vielas
estreitas de pequenas aldeias ou ainda no meio da multidão no centro de uma
grande cidade. Algumas estavam cansadas, envelhecidas, quase não podiam
caminhar mais; outras, ainda jovens, pensavam que a oportunidade viria mudar
o seu rumo e tirá-las dali. Mas na verdade era um caminhar em vão. Não havia
rumo nem direção. Ao redor delas, outra multidão de pessoas caminhava, iam
por todos os lados, mas quase não as viam nem se preocupavam com elas.
Entretanto, entre elas alguém sonhou em alcançar o horizonte, a luz que ela via
parecia incessantemente brilhante e chamava por ela. A beleza da visão
ofuscava-lhe os olhos e então ela caminhou até lá. O sol que brilhava sobre
todas lhe pareceu um companheiro que ia com ela. Mas, quanto mais andava,
mais distante ficava a oportunidade de chegar ao lugar que almejava. Cansada
e triste, ela parou. Já não havia mais a luz. Entendeu que o horizonte desejado
era inalcançável para ela, estava sozinha e, então, desistiu. A verdade é que
junto com ela muitas viram a mesma luz e também tentaram, mas da mesma
maneira o horizonte que buscavam se tornou impossível para elas. Em dado
momento, porém, daquela multidão de mulheres alguém parou a caminhada.
Olhando para o alto com as mãos estendidas como se tentasse segurar algo
invisível dos lábios da mulher pôde-se ouvir que conversava com alguém. Eram
doces as palavras que ela proferia. Fio então que, de repente, uma brisa suave
fez com que o véu que lhe cobria o rosto caísse por terra, deixando desnuda a
face morena e mostrando não as marcas do tempo, porque era jovem ainda, mas
as marcas que aquela dura caminhada havia deixado nela. No mesmo instante
aquela jovem mulher mudou de direção. Começou a andar no sentido contrário
de suas companheiras. Aqui e ali ela esbarrava com as outras que não lhe
prestavam atenção. Às vezes tentava falar-lhes, mas elas não a ouviam. E foi
tanto que andou que de repente já não fazia mais parte daquela multidão.
Então, caiu de joelhos diante daquele que mudou o rumo da sua caminhada e
clamou que a mesma brisa suave que soprara para ela, que soprava
abundantemente no meio de tantos lugares daquela multidão de mulheres,
pudesse tocar-lhes a ponto de mostrar que existe um lugar especial e
perfeitamente acessível para elas.”
Salema fechou o livro que tinha nas mãos. Acabara de ler o último
capítulo do livro que contava a sua história. Eram pouco mais de 150 páginas,
nas quais tudo o que lhe acontecera estava ali revelado. Enxugou as lágrimas
que teimavam em brotar dos seus olhos. Todos os detalhes ali registrados
estavam vivos na sua memória e permaneceriam assim enquanto vivesse.
Ainda sentia a ausência dos filhos. Essa dor era impossível de esquecer; porém
a sua esperança era que, da mesma forma que ele lhe tocara um dia, Deus
pudesse tocar a vida deles também. Mas não só a vida dos filhos, mas de todos
aqueles que andavam sem rumo, como aquelas mulheres retratadas nas páginas
do livro que contava a sua história. Lembrou-se de Nayla, a amiga. Onde estaria
ela agora? Jamais poderia saber. Ela estava certa quando disse que não mais se
veriam. Mas não era o mais importante, porque no coração de Salema havia a
certeza de que um dia naquele lugar especial elas se encontrariam.