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Copyright © 2023 | Lyta Racielly

Todos os direitos reservados.


Revisão | Débora Ciampi Eller


Design de Capa e Diagramação | Lyta Racielly
Imagens e Ilustrações | Canva & Pixabay

Os personagens e eventos retratados neste livro são fictícios. Qualquer


semelhança que não seja expressa previamente pela parte da autora, trata-se
de mera coincidência.
É expressamente proibida a reprodução, total ou parcial, ou qualquer tipo
de impressão sem prévia autorização da autora deste livro.  Abre-se exceção
para citações breves para resenhas e avaliações.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei nº 9610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.

Contents
 
Nota da Autora
Playlist
Prólogo
Capítulo Um
Capítulo Dois
Capítulo Três
Capítulo Quatro
Capítulo Cinco
Capítulo Seis
Capítulo Sete
Capítulo Oito
Capítulo Nove
Capítulo Dez
Capítulo Onze
Capítulo Doze
Capítulo Treze
Capítulo Quatorze
Capítulo Quinze
Capítulo Dezesseis
Capítulo Dezessete
Capítulo Dezoito
Capítulo Dezenove
Capítulo Vinte
Capítulo Vinte e Um
Capítulo Vinte e Dois
Capítulo Vinte e Três
Capítulo Vinte e Quatro
Capítulo Vinte e Cinco
Capítulo Vinte e Seis
Capítulo Vinte e Sete
Capítulo Vinte e Oito
Capítulo Vinte e Nove
Capítulo Trinta
Capítulo Trinta e Um
Capítulo Trinta e Dois
Capítulo Trinta e Três
Capítulo Trinta e Quatro
Capítulo Trinta e Cinco
Capítulo Trinta e Seis
Capítulo Trinta e Sete
Capítulo Trinta e Oito
Epílogo
Agradecimentos
About The Author
Books By This Author

Para meu futuro marido, seja lá onde você esteja, esta obra fez
parte do meu processo de te esperar.
 
E para todas as garotas que cresceram na igreja e nunca
conseguiram se identificar com nenhuma protagonista de romance.
 
Nosso momento chegou!
 

“Mas não quero que seja apenas o meu querer.


Que sua vontade prevaleça sobre o meu futuro.
Só lhe peço uma coisa, Deus:
o prepare para mim.”
(Orei por Você – Kell Carvalho)

É uma questão de trabalho e tempo


Não será fácil a jornada
Tempestades ao relento
Enquanto o sonho toma forma
Com o Criador vale cada momento
Mesmo no sofrimento, há alegria no agora
(Navios - Noemi Nicoletti)
Nota da Autora
Querida futura leitora ou leitor,
Por favor, não pule isso aqui, é extremamente importante vocês lerem!
Sejam bem-vindos a “Uma Oração de Amor”, a partir do momento
que você abriu esse e-book já é um membro oficial da Família Mendes.
(Não seja a ovelha negra da família e nos abandone.)

Antes de iniciar a sua leitura, tenho alguns avisos importantes:


Primeiramente, ressalto que esse é um romance cristão, ou seja, aqui
você irá encontrar um livro pautado em princípios bíblicos para o
relacionamento amoroso.
Entretanto, tenho consciência que sou uma humana pecadora e
passível de erro, então não leve tudo aqui como 100% verdade. Vá
para a Bíblia acima de tudo, ela é a única coisa inerrante no qual
podemos nos basear.
Outra coisa, o livro se passa nos anos 80. Apesar disso, não é uma
ficção histórica, não espere vir aqui e encontrar um manual de como
era viver naquela época, você irá se decepcionar.
Existem diversas gírias e expressões locais, procurei deixar a
explicação de todas nos hiperlinks, perdão se faltou alguma.
Por último, “Uma Oração de Amor” possui livro físico! Caso tenha
interesse, entre em contato comigo pelo Instagram (@tulipaperegrina)
para ver se está com algum lote aberto.
Tenha uma boa leitura!
Com carinho,
Lyta Racielly
Playlist
Durante a leitura você irá encontrar diversas músicas, estas fizeram parte
da construção do livro.
Caso queira ter uma experiência mais imersiva, é só clicar aqui ou
scannear o QR Code abaixo.
 

Querido futuro marido, onde você está?


Hoje eu acordei com a sensação de que deveria orar pela sua
vida.
Não faço ideia de onde esteja, entretanto algo me diz que não
está tudo bem. Oro para que o Espírito Santo esteja com você
neste momento, suprindo todas as suas necessidades, e que seus
olhos se voltem para a cruz, entendendo que Ele deve ser seu
maior alvo.
Com carinho,
Marta
14 de novembro de 1982
Prólogo
Me lembro bem
A primeira vez que te olhei
Nos teus olhos eu encontrei
Ternura e amor
Como eu nunca vi igual
(Pamela & Alex Gonzaga - Um Verso de Amor)

Da varanda da casa principal, o senhor se apoiava na cerca branca recém-


pintada enquanto observava seus filhos e netos brincando no campo à frente.
Toda a família estava reunida para a comemoração dos cinquenta anos de
casamento dele e de sua esposa.
O homem não sabia como agradecer a Deus pela bênção de viver o
suficiente para ver todos os seus filhos crescerem, formarem suas famílias e,
acima de tudo, serem felizes e completos nEle. Apesar das lutas e sufocos,
nenhum deles se desviou do Caminho, todos se mantiveram fiéis a Deus.
— Amor?
O homem desviou seu olhar e o direcionou à mulher que se aproximava.
Sua doce Marta.
Pequenas gotas de lágrimas se acumularam nos cantos de seus olhos ao
relembrar de toda a trajetória dos dois até aquele momento, desde os choros
até as risadas.
Ele abriu os braços em um convite silencioso para que ela se
aconchegasse. A mulher compreendeu imediatamente a mensagem, devido
aos cinquenta anos de casados. Após esse tempo, um casal aprende a se
comunicar apenas com o olhar.
O homem depositou um lento beijo na testa da esposa e afastou seu rosto
para admirá-la. Era a mesma de quando a viu pela primeira vez, no culto, ao
voltar para a igreja.
Por fora, ela não era mais igual; com os anos, sua beleza física acabou
deteriorando-se, mas isso não era capaz de calar o amor que ele sentia, pois
não foi baseado na beleza exterior, mas, sim, em uma aliança feita perante
Deus.
— Eu já disse que você é a mulher mais linda do mundo? — Ele passeou
seus dedos pelo rosto da esposa, acariciando-o.
— Para… — Marta murmurou escondendo o rosto na camiseta do esposo
e sentindo as bochechas esquentarem.
Ele sorriu com aquela reação. Tantos anos juntos e a personalidade dela
não mudara nada.
— Você se lembra de quando nos conhecemos?
— E tem como esquecer? — A senhora riu baixinho, recordando-se
daquela época tão distante, mas ainda presente em seus pensamentos.
Os dois voltaram a observar sua família, sua descendência, fruto de tanta
oração ainda na juventude do casal, antes mesmo de se conhecerem.
— Vovô, vovó! — Luís gritou enquanto corria em direção à varanda onde
o casal estava.
— Oi, meu príncipe — ela respondeu com a voz embargada pelas
lembranças.
— Estão chamando vocês, chegou a hora de narrar a história da família!
— A criança falava com a típica animação infantil.
— Nós já vamos, fala para eles se prepararem.
O garoto voltou correndo em direção aos gramados, onde todos
aguardavam o grande momento.
— Preparada? — o senhor perguntou estendendo a mão para ajudá-la a
andar.
— Não — eles riram juntos —, mas vamos lá. — Marta deu um sorriso de
plena felicidade.
Juntos, os dois caminharam para o lugar combinado. Chegou a hora de
contar a história da família.
Capítulo Um
“Não sei quantas letras tem o seu nome
Mas já o escrevi dentro de mim
Há anos eu te amo à distância
Na verdade sonho com você desde criança.”
(Marcela Taís – Espera por Mim)

“Querido futuro marido, sou eu de novo...”


Minha paixão pelas palavras surgiu ainda na infância, logo na época em
que comecei a ser alfabetizada. Primeiro foram os livros, histórias em que eu
podia viajar para diversos mundos sem jamais sair do meu quarto. Em
seguida, veio a escrita.
Desde sempre meus pais me incentivaram a redigir cartas, afinal, era uma
das únicas formas de contato existentes. Se eu quisesse conversar com
minhas amigas, parentes ou qualquer outra pessoa, deveria ser por meio
delas, uma vez que as chamadas telefônicas eram muito caras.
Mas, quando cheguei à adolescência, descobri outra utilidade para minhas
cartas: entregá-las ao meu futuro marido.
Não, eu não o conhecia. Sinceramente, não sabia nem se iria me casar
algum dia. Mas, mês após mês, desde os meus doze anos, eu escrevia uma
carta ao homem tão misterioso e aguardado por mim.
Para minha sorte, estava com a caneta longe do papel no instante que ouvi
algumas batidas na porta do quarto, caso contrário, teria manchado a carta.
— Filha? — Ouvi a voz da minha mãe me chamando.
Tinha dito a mim mesma que seria rápida ao escrever, mas acabei me
animando e perdi a noção do horário.
“Com Amor, Marta!”
Finalizei e a guardei junto às outras noventa e quatro no baú de madeira.
Apoiando as mãos na mesa, forcei meu corpo a levantar e terminar de se
arrumar. Frequentávamos, há seis meses, uma igreja do bairro por influência
da minha única amiga daqui e sua mãe, porém eu ainda não tinha conseguido
me envolver com nenhum ministério, nem mesmo o de jovens.
Após passar um pouco de rouge para tirar a aparência pálida do rosto,
respirei fundo enquanto analisava meu reflexo no espelho do guarda-roupa.
Surpreendentemente, estava me sentindo bonita naquele dia, só esperava que
os outros pensassem o mesmo e não fosse apenas algo da minha cabeça.
— Vamos? — questionei, chegando à sala, onde minha família me
esperava.
— Você está linda, filha. — Abri um sorriso pequeno diante do sorriso do
meu pai.
Após a afirmação, ele ajudou minha mãe a caminhar até o carro, com os
dois filhos seguindo-os logo atrás.
Para mim, ainda era estranho viver na área urbana da cidade grande. Até o
começo do ano,  eu morava no interior, em uma pequena colônia na fazenda
de vovô no norte do Paraná. De repente nos mudamos para a capital do
estado, onde tudo era muito barulhento e distante.
— Ouvi dizer que hoje teremos visitantes — minha mãe começou a falar,
na tentativa de quebrar o silêncio.
— Ouviu de quem? — meu pai quis saber.
— Estava conversando com Carla, mãe da Júlia, lembra dela? Moça
adorável, é a amiguinha da Marta.
Afundei no banco com a forma dela de falar, parecia que estava referindo-
se a duas crianças, e não a mulheres em idade de casar. Meu irmão, como
sempre, não perdeu a oportunidade de caçoar da minha cara.
— Lembro, sim, meu amor, ela não sai lá de casa, esqueceu?
— Então, ela tem outro filho, o Gabriel, ele voltou esta semana para casa e
vai pela primeira vez à igreja hoje.
— Finalmente vou ter um guri[1] frequentando a nossa casa — Jonas, meu
irmão, se intrometeu na conversa.
— Por quê? — papai perguntou, confuso.
— A família da Júlia vira e mexe vai lá, então é óbvio que o guri vai
começar a ir também.
— Até parece que ele vai querer fazer amizade com você — murmurei.
Mas, para a minha infelicidade, foi alto o suficiente para eles ouvirem.
Todos viraram seus rostos para mim, confusos com a minha fala. — O quê?
Eu e a Júlia conversamos, o garoto é engajado nas atividades religiosas, em
missões, tudo que você nunca foi. Além do mais, ele é mais velho. — Ergui
os ombros.
Não pude segurar uma risada ao ver a cara de descontentamento do meu
irmão, já falava há muito tempo sobre ele ser mais presente na igreja.
Sabia que deveria incentivar a amizade dele com o Mendes, mas, quando
vi, já tinha cedido à tentação de provocá-lo.
— Ou... — Jonas começou e fechei os olhos, com medo do que sairia da
boca dele, devido ao tom insinuoso da sua voz. — Talvez ele comece a ir
para cortejar a Martinha… já está na hora de ter um pretendente, não é?
— Do jeito que sua irmã é bicho do mato? Duvido. Se ela continuar assim,
vai morrer solteira. — Meu pai entrou na conversa, piorando tudo.
Comecei a esfregar as mãos no vestido para não me estressar, parecia que
tinham feito um complô contra mim. Não era a primeira vez, eles sempre me
julgavam por nunca ter namorado.
— Deixem a menina em paz! No momento de Deus, o homem certo vai
aparecer. — Suspirei aliviada quando mamãe me defendeu. — E você,
Jonas, sem ficar de brincadeiras para cima de Gabriel. Carla me falou que
ele realmente é um garoto sério, além do mais, é bem mais maduro que você.
O resto do caminho foi preenchido por uma discussão: de um lado, meu
irmão querendo se defender falando que era maduro, sim; do outro, minha
mãe listando todas as artes dele desde criança e explicando por que não era.
Naqueles momentos, me arrependia de não levar meu walkman[2]
na
bolsa, seria tão mais fácil colocar meus fones e ouvir os últimos lançamentos
da Amy Grant. Como não tinha aquele recurso no momento, apenas observei
toda aquela discussão, torcendo para chegarmos logo ao local e temendo
pelo futuro.

Eu mal havia colocado o pé para fora do carro quando Júlia se aproximou


eufórica.
— Vem, Marta. — Ela pegou minha mão e começou a me puxar em
direção à entrada da igreja.
— Calma, por que tanta pressa?
— Oras, meu irmão chegou. Não me venha dizer que esqueceu, eu não
paro de falar dele tem no mínimo uns dois meses, desde que recebemos a
notícia de sua volta.
Com certeza eu não poderia ter esquecido e, mesmo que tivesse, minha
mãe relembrou tudo no nosso trajeto.
— É claro que não.
— Ótimo, uma pena que eu só vou poder apresentar vocês depois do
culto, porque ele está conversando com o pastor. Coitado, mal chegou e o
pastor já o escalou. Mas é aquilo, né, querem aproveitar a oportunidade
enquanto ele está aqui. Sabe, duvido que o Biel vai ficar muito tempo, ele só
pensa em missões o tempo todo, logo vai embora de novo.
Assenti e deixei Júlia continuar falando; apesar do pouco tempo de
amizade, já sabia que não havia nada capaz de impedi-la de terminar sua
linha de pensamento. Um ponto positivo da nossa amizade era este: ela
gostava muito de falar e eu não tinha problema nenhum em ouvir. Nós nos
dávamos bem por isso.
Apesar de termos nos conhecido há pouco menos de seis meses,
estávamos desenvolvendo uma grande amizade. E eu ficava feliz, porque,
pela primeira vez, eu tinha alguém com quem contar — que não fossem
minhas primas.
Júlia continuou discorrendo sobre os motivos de o irmão ficar e sobre sua
preocupação em arranjar uma cunhada logo, pois ele já tinha quase vinte e
cinco anos e nenhum lance em vista.
Assim que o pastor pegou no microfone, nós duas nos calamos para
prestar atenção. O culto seguiu como de costume: oração e louvor. Então,
aproveitando a deixa da apresentação dos visitantes, Gabriel foi chamado
para subir ao púlpito.
— Bom, irmãos. Como tivemos muitos membros novos nesses últimos
meses, quero apresentar o rapaz aqui. Esse é o Gabriel, filho da dona Carla.
— Conforme o pastor falava, dava para perceber o orgulho na voz do
homem. — Gabriel é missionário e voltou recentemente de campo. Mas
agora é para ficar, não é? — A igreja riu em conjunto com a cara dele de
discordância, demonstrando que logo já estaria viajando de novo.
Ouvi Júlia bufar ao meu lado e a olhei inquisitiva.
— Eu só queria meu irmão mais presente em casa — ela murmurou. —
Eu esperava que ele desistiria de ir depois da morte do meu pai, mas não, foi
só passar os primeiros meses e já foi para longe.
Pensei em diversas coisas para falar, mas não sabia se alguma delas seria
adequada para aquele momento. Júlia não falava muito sobre a morte do pai,
o pouco que eu sabia era que ele tinha falecido cerca de uns dois anos antes
de nos mudarmos para Curitiba, então não cheguei a conhecê-lo.
— Precisamos ver como vai ser, confiar e descansar em Deus — respondi
sem graça. Aquela era uma resposta comum e, na prática, não possuía alívio
nenhum. Mas eu não sabia o que falar para reconfortá-la.
Ainda refletindo sobre a angústia da minha amiga, voltei minha atenção ao
culto, em que o pastor ainda apresentava o Mendes.
— A nossa igreja ajuda a sustentar Gabriel, pois entendemos o dever de
apoiar quem foi chamado para ser missionário e sabemos da dificuldade que
é trabalhar nesse campo, em que tantos possuem o coração endurecido para a
Palavra de Deus.
Após agradecer, o pastor dispensou o jovem e começou a pregação, que
foi baseada em Lucas 1:2, ainda mantendo o foco em missões.
Enquanto ele falava, pensei sobre a minha vontade de ir para campo
missionário. Porém eu me conhecia o suficiente para saber que jamais me
daria bem lá, além de todos falarem a mesma coisa: eu era tímida demais
para poder evangelizar alguém.
Então me lembrei da conversa no carro, quando Jonas insinuou sobre
Gabriel e eu. Se nos casássemos, seria tão mais fácil ir.
Ao perceber o rumo dos meus pensamentos, balancei a cabeça e me
esforcei para focar a mente em outra coisa. Não podia ficar criando
expectativas, sabia muito bem que alguém como ele nunca seria capaz de
gostar de alguém como eu.

Após o culto terminar, tentei enrolar Júlia ao máximo, mas ela não se
rendeu às minhas desculpas esfarrapadas. A garota quase me arrastava
enquanto andávamos.
Senti o coração acelerar ao ver o meu destino: o grupo de jovens.
Desde que cheguei à igreja, a única pessoa com quem eu havia conversado
ali era a Júlia, e apenas porque a mãe dela era amiga da minha, então fomos
obrigadas a conviver, e graças a Deus nos aproximamos, senão eu ainda
estaria sozinha.
Por ser mais fechada, eu raramente frequentava o culto de jovens. Na
verdade tinha ido apenas uma vez, mas tive a “grande sorte” de ir justo
quando várias igrejas se juntaram, deveria ter mais de cinquenta pessoas ali,
mal acabou e voltei para casa, ignorando todos os outros insistentes convites
de Júlia.
Contudo, pelo jeito, a garota conseguiu a situação perfeita para me forçar
a me aproximar deles. No mesmo instante, eles pararam de conversar e uma
voz lá no fundinho da minha cabeça sussurrou que era por minha causa.
— Oie — Júlia cumprimentou a todos de forma geral. — Gente, essa é a
Marta, aquela amiga sobre quem comentei!
Mordi o lábio, envergonhada, sem saber como reagir, por isso apenas
acenei sem jeito. Foi Gabriel quem teve a iniciativa da rodinha para me
cumprimentar.
Olhando-o de perto, percebi algumas características nele semelhantes às
de Júlia. Além de que ele também não era tão diferente do descrito pela
minha amiga, mais ou menos alto, com cabelos loiros e olhos claros, cuja cor
eu não conseguia identificar olhando rápido. E, apesar de ter repreendido
esse pensamento um segundo depois, admiti que ele realmente era bonito.
— Olá, Marta, prazer! — o Mendes estendeu a mão para mim. Estava tão
nervosa que não percebi seu gesto e apenas acenei com a cabeça,
cumprimentando-o.
— Oi, Marta! — Uma outra jovem se aproximou animada e me
cumprimentou com um beijo no rosto. — Eu sou a Mariana, mas pode me
chamar de Mari — ela falava enquanto ia se afastando um pouco. — Seja
bem-vinda à nossa igreja, espero que tenha gostado do culto!
Abaixei a cabeça, pensando em como falar que na verdade eu já estava há
vários meses na igreja, mas, graças a Deus, a Júlia interveio por mim.
— Mari, na verdade a Marta está há uns seis meses aqui — ela explicou
embaraçada.
O rosto de Mari começou a tomar um tom avermelhado, era visível como
ela ficou sem jeito com a situação.
— Mil desculpas, é que e-eu…
— Tudo bem — ousei falar, pela primeira vez até então, para acalmá-la.
— Eu fico no canto mesmo, normal você não perceber. — Tentei ser o mais
gentil possível no meu tom de voz.
O que não era uma mentira, eu nunca me envolvi em nenhum grande
evento da igreja; quando eu ajudava, era na casa de Júlia para produzir
alguma coisa da decoração ou alimentação. Então, seria difícil alguém me
perceber.
— Nem pensar, isso é uma falha minha. Como filha do pastor e
principalmente filha de Deus, eu devo ser gentil com os irmãos. Depois vou
querer conversar a sós com você, tudo bem?
Assenti, concordando, mas por dentro torcendo para ela esquecer isso e
seguir a vida como foi nesse tempo todo.
A realidade é que, apesar de entender o lado da Mariana e saber que ela
procurava resolver a situação constrangedora, eu me sentia cada vez mais
deslocada naquele ambiente. Para mim parecia óbvio o quanto estava
atrapalhando a conversa deles e como só estavam esperando eu sair para
voltar aos seus assuntos. Além do mais, eu só queria ir para a minha casa
logo e me refugiar no quarto junto de um livro.
— Bom, então vou apresentar o pessoal para você conhecer. — Até tentei,
mas, antes que conseguisse protestar, Mari já estava falando. — Como eu
disse, sou a Mari, e aquela magrinha lá — Ela apontou para uma menina que
estava afastada, conversando com outras garotas. —, é minha irmã, a Luísa,
mas ela você já deve conhecer, a Lu vive ajudando papai nos cultos.
Assenti, concordando. Na realidade eu já sabia sobre as duas e os nomes
de todos os outros, pois sempre ouvia Júlia comentando. Mas a deixei falar,
já que era sua vontade ser receptiva.
— Esse é o Gabriel, que você acabou de conhecer. Esse cheio de tranças
aqui — ela puxou um rapaz pelo moletom —, é o David. David, dá oi para a
Marta — ordenou.
— Oi, Marta! — Ele acenou constrangido pela atitude da amiga.
— Oi — respondi.
— E seja bem-vinda ao nosso clube das Luluzinhas!
— Mariana! — os dois rapazes chamaram a atenção da moça ao mesmo
tempo.
— Tá bom, tá bom. — Ela revirou os olhos. — Seja bem-vinda ao clube
das Luluzinhas e dos Bolinhas!
— Seja bem-vinda a essa loucura que são esses daqui — Gabriel falou,
rindo. Porém sua atenção foi captada por alguma coisa, ou alguém, atrás de
mim. — Gente, com licença, já volto. — E saiu na direção da pessoa.
Comecei a estalar os dedos, tentando dissipar o nervosismo. Eles, então,
passaram a conversar sobre alguma festa de casamento que estava para
acontecer. E novamente me senti jogada de lado, mesmo com as várias
tentativas da Mariana em me envolver, eu não entendia o assunto, nem ao
menos estava prestando muita atenção, afinal, não seria convidada mesmo.
Quando eu ia me virar para a Júlia pedindo para sairmos dali, outra pessoa
se aproximou e fui obrigada a esperar mais um tempo.
— Olha, tem gente nova aqui — Luísa chegou referindo-se a mim.
— Oi, Lu, essa é a Marta. Ela chegou recentemente na igreja. — Mariana
começou a nos apresentar. — Recentemente entre aspas, tem uns meses já —
disse com um sorriso amarelo.
— Ah, sim, é aquela guria[3] quietinha, lembro de ter visto algumas vezes.
Oi, Marta, prazer, eu sou a Luísa, mas pode me chamar de Lu! — Ela
chegou da mesma forma que a irmã, me cumprimentando com um beijo no
rosto.
Então, embarcamos em uma conversa sobre vários assuntos. Dessa vez, a
Luísa fazia questão de me incluir, sempre perguntando minha opinião,
falamos sobre livros, filmes, as revistas de que mais gostávamos, etc. Ela
tomava cuidado em manter a conversa sempre em uma linha em que eu não
ficaria de fora.
— Aproveitando que está quase todo mundo aqui — Mariana chamou
atenção para si. —, estou pensando em realizar um culto de jovens na praça
no próximo mês, vocês vão, né?
— Claro, até lá a Nina já vai ter chegado, ela pode ajudar também —
David comentou.
— Sério, Dave? — Pela expressão de alegria da Mari, ela era
superpróxima dessa moça. — Ai, estou com saudades dela.
Pensei em perguntar quem era Nina, porém achei melhor ficar quieta; se
ela viesse, eu descobriria. Ou eu poderia falar com Júlia depois.
— Sim, na verdade ela já está no Brasil, mas foi passar uns dias na casa
dos parentes lá em São Paulo, e, se não acontecer nenhum contratempo,
chega ainda esta semana — ele explicou.
— Será uma bênção, todo mundo sabe que a Nina tem um dom
maravilhoso para tocar e cantar — Luísa adicionou e todos concordaram.
— Eu me lembro da última vez, ela fez um dueto lindo com o Gabriel,
precisamos refazer — Mari falou. — Estou contando com a ajuda de vocês.
— Pode confirmar a minha presença, da Júlia e da Marta!
Ao ouvir a fala de Gabriel, levei um susto. Rapidamente virei o corpo para
prestar contas da sua confirmação sem falar comigo antes.
Porém não contava com a presença dele centímetros atrás de mim. No que
me movi, acabei trombando no rapaz, derrubando o copo de café de sua mão
e, por consequência, molhando a sua roupa.
— Ai, meu Deus, perdão — pedi desesperada.
Peguei um lenço que tinha na bolsa e esfreguei para secar a blusa dele,
mas parei ao constatar o quão imprópria tinha sido a minha atitude e o quão
próxima estava do rapaz.
E, ao perceber que todos me encaravam chocados, acabou só piorando o
nervosismo que eu já estava sentindo.
Pedindo desculpas e licença, saí rumo ao banheiro, mas a minha
verdadeira vontade era me enfiar em um buraco no chão.
Capítulo Dois
“Não me olha assim
Com esse ar de quem sonhou
A vida inteira em me encontrar
Porque eu vou acreditar.”
(Aline Barros - Por Toda a Minha Vida)

— Marta, por favor, abra essa porta.


Assustada, ergui a cabeça ao ouvir a voz de Gabriel do lado de fora.
Eu tentei me controlar, repetia para mim mesma que estava tudo bem, foi
só um acidente. Mas minha mente não obedecia aos meus comandos, ela
continuava repetindo, a cada segundo, a cena e tudo o que eu poderia ter
feito diferente.
— Marta, você está bem? Você se machucou? — Uma angústia me abateu
ao ouvir o tom de preocupação em sua voz, não parecia estar bravo. Mas e se
tudo fosse uma ilusão? E se, quando eu saísse, ele começasse a gritar?
Engolindo em seco, repeti para mim mesma que eu precisaria sair daqui
em algum momento, meus pais deveriam estar me procurando para irmos
embora.
Caminhei até a pia para passar uma água no rosto, tentando me acalmar.
Logo após enxugar o suor da mão na barra da saia, segurei a maçaneta,
forçando-me a puxá-la.
Não tive coragem de levantar o rosto para Gabriel, me mantive olhando
para as sapatilhas e pensando se já poderia sair dali.
— Você se machucou? Acabou se queimando? — ele questionou
cauteloso.
Não tinha palavras para descrever a confusão dentro de mim naquele
momento. Ao invés de ficar bravo, como imaginei, ele se preocupou com o
meu estado, achando que eu tinha me machucado.
— Não, não, não chegou a derramar em mim — expliquei e ouvi um
suspiro de alívio dele. — Mil desculpas, e-eu não queria te causar um
infortúnio, além de provavelmente ter estragado a sua roupa. Irei comprar
uma para substituir, eu prometo — comecei a falar, nervosa, e não percebi
que ele estava achando graça da minha atitude.
— Está tudo bem, o café já estava frio e eu não sou desses que se importa
com roupa. — Respirei aliviada em saber que não o havia machucado, só
muito tempo depois fui perceber a mentira dele, pois havia perguntado se me
queimei. — Ei, olha para mim — ele pediu com calma.
Negando com a cabeça, pedi licença e comecei a andar para longe dali,
porém Gabriel segurou meu cotovelo quando tentei passar por ele. Por
instinto puxei meu braço com força, só percebendo o que causei quando vi o
rapaz vermelho e sem jeito.
— Me perdoa, eu não deveria ter te tocado.
Assenti, ainda em choque, e saí o mais rápido possível de perto dele, antes
que pagasse outro mico. Nunca mais me envolveria com aquele grupo de
novo.
Abraçando meu próprio corpo, vi de longe toda a minha família e, para
minha tristeza, os Mendes reunidos, aguardando nós dois. Engoli em seco ao
me aproximar, torcendo para ninguém falar comigo, mas logo minhas
expectativas foram quebradas.
— Oi, querida — Carla direcionou a fala a mim quando parei ao lado da
minha mãe. — Está tudo bem?
— Uhum. — Sorri sem graça.
Tentei falar por meio do olhar, implorando aos meus pais para irmos
embora — não aguentava mais ficar naquele ambiente, queria meu quarto
—, mas fui ignorada.
— Gabriel, querido — Fechei os olhos, engolindo em seco ao ouvir minha
mãe falando com o rapaz. —, você não faz ideia do quanto estava ansiosa
para lhe conhecer.
Ele deu uma risada baixa, no mínimo sem saber como reagir também.
Minha vontade era de mandar minha mãe ficar quieta, porém eu, como filha,
não possuía autoridade nenhuma para fazer aquilo.
— Qualquer dia você poderia nos contar sobre as suas viagens
missionárias, nossa Martinha também sonha em ir para o campo, mas a
coitada é tão tímida.
Levei a mão ao rosto, respirando fundo para não surtar de vez, como se já
não tivesse passado por toda aquela situação anterior, vinha mais uma para
piorar tudo. Meu rosto queimava naquele momento.
— Mãe... — murmurei, tentando parar a falação dela, mas não adiantou
nada, ela continuou me ignorando.
— Imagino que deva ter missionárias envergonhadas assim também,
afinal, é humano, mas elas devem ser casadas, porém minha filha...
— Mãe! — a cortei, chamando sua atenção.
Ela não parecia nem um pouco com a mulher que havia me defendido no
carro há menos de duas horas. Eu a entendia, minha mãe era apaixonada
pelo filho mais velho dos Mendes, ela foi uma das responsáveis por eu ter
criado uma mínima expectativa de existir algo entre nós com todas as suas
falas sobre como seria lindo um casamento com o rapaz, antes mesmo de
conhecê-lo — expectativa que tratei de matar o quanto antes.
— Também existem missionários e missionárias introspectivos e solteiros,
dona Lisa. Nós não podemos comandar isso, só obedecemos à vontade de
Deus — Gabriel interveio. Anotei mentalmente para agradecê-lo depois por
aquilo.
— Sim, sim, compreendo.
— Além do mais, se esse for o chamado dela, a timidez não irá afetar. Em
campo missionário, existem diversas áreas — ele voltou a falar de forma
gentil.
Pela expressão de minha mãe, ela não gostou nem um pouco da
repreensão velada. Torci para que isso fosse o suficiente para ela parar de
endeusá-lo, mas infelizmente não aconteceu como desejava.
— Compreendo, fico feliz em ter um missionário para conversar cara a
cara. Às vezes é difícil entender essa realidade tão diferente da nossa. Por
que vocês não vão jantar lá em casa hoje? Assim é mais uma oportunidade
para nos conhecermos melhor.
— Mãe… — murmurei de novo, chamando a atenção dela. E completei
em pensamento com um: “fica quieta, pelo amor de Deus”.
Virei para o meu pai, tentando descobrir por que ele não tinha falado nada
ainda, e percebi que ele nem ao menos prestava atenção, estava em uma
animada conversa com o irmão Marcos.
— Sinto muito, querida Lisa — Carla interveio. — Hoje não vai dar, já
marcamos com o pastor e sua família.
E, como se soubesse que sua família era o assunto, Luísa apareceu.
— Com licença. — Ela chegou pulando nos ombros de Gabriel, que
gentilmente a afastou. — Posso pegar carona com vocês, tia Carla? Meu pai
precisou levar alguns irmãos embora e não sobrou vaga para mim. — A
menina abriu o típico sorriso de quando estamos pedindo alguma coisa.
— É claro, querida — Dona Carla respondeu com carinho. — Vamos,
Júlia? O pastor já saiu, não podemos nos atrasar.
Os momentos seguintes foram de despedida e minha mãe já adiantou que
queria marcar alguma coisa ainda naquela semana.
Assim que eles saíram, virei-me para ela.
— Mãe? Você é louca? — questionei irritada pela atitude dela mais cedo.
— Louca, não, apenas garantindo que meu genro seja bonito e cristão. —
Ela piscou para mim e saiu para chamar papai e Jonas.
Capítulo Três
“Parece que foi ontem quando tudo começou
No primeiro olhar meu coração despertou
Foi tudo tão novo, e eu nem sabia o que dizer
Correspondida, eu só queria você”
(Bruna Karla - Parece que foi Ontem)

Dois dias se passaram desde o último encontro com os Mendes, minha


mãe havia feito questão de ir no dia seguinte, segunda-feira, à casa de Carla,
convidando-os para almoçarem aqui no domingo.
Então, já tentava me preparar psicologicamente para aguentar as suas
indiretas, ainda mais após ela deixar explícito que estava dando uma de
cupido.
Durante esse tempo, fui levada a refletir sobre como estava o meu próprio
coração. Desde pequena sonhava em formar a minha família e sempre tive
uma convicção muito clara de que precisaria ter a aprovação dos meus pais,
seria isso um sinal? Porém, no mesmo momento que surgiam esses
pensamentos abruptos, eu já tentava rebatê-los, explicando para mim mesma
que estava apenas me iludindo — nunca alguém como Gabriel olharia para
mim.
— Marta?
— Oi, mãe — respondi, sem desviar os olhos do livro em minhas mãos.
— Você pode ir ao mercado, filha?
— Agora? — questionei com um visível desânimo. Detestava parar meu
livro pela metade. — Vou só terminar esse capítulo e já vou — respondi
rápido ao ver a cara dela.
Ouvi um suspiro fundo dela, mas, por fim, concordou comigo. Ela havia
sido minha principal incentivadora no mundo literário, então conhecia bem
as manias de leitores.
Cumprindo minha promessa, ao terminar de ler a incrível e romântica
declaração de Darcy à Lizzie e sua negação bruta, saí à procura de minha
mãe para pegar a lista de compras.
Ainda imersa na história, comecei a caminhar em direção ao mercadinho
do bairro. Ficava pensando em como seria legal uma versão de “Orgulho e
Preconceito” contemporânea. Se era perfeito assim, imaginava se fosse nos
nossos tempos, mas ainda mantendo o ar cristão. Com a cabeça no mundo
dos livros, levei um susto ao sentir uma moça tocando no meu braço para me
parar.
— Desculpa te atrapalhar, mas você pode me ajudar? — Pela forma como
ela olhava para os lados, devia ter se perdido.
— Hã? Claro, depende na verdade… — respondi confusa, ainda voltando
para a realidade.
— Então, eu estou procurando um mercadinho, eles mudaram de endereço
e eu não faço ideia de onde foram parar.
— A mercearia do seu Galileu? — Ela assentiu, surpresa por eu acertar de
primeira, mas, por ser a única vendinha do bairro, não era tão difícil assim
de adivinhar. — Fica a poucas quadras daqui.
— Você pode me explicar certinho? Se não for te atrapalhar e ocupar seu
tempo, claro — completou, em seguida.
— Eu estou indo lá agora, se quiser me acompanhar. — Seria bem mais
fácil do que narrar todo o percurso, isso se eu própria não acabasse me
confundindo na hora de explicar.
— Se puder, eu agradeço. — A moça abriu um sorriso.
Indicando que seguíssemos para frente, começamos a caminhar. Para a
minha alegria, havia um silêncio entre nós, então eu não precisava me
preocupar em produzir assunto, era apenas levar a menina lá e pronto.
Infelizmente ela não pensava da mesma forma; de repente, a moça estagnou
e segurou meu braço, forçando-me a parar também.
— Um minuto, esqueci de perguntar, qual seu nome? — questionou,
virando de frente para mim.
— Marta, e o seu?
— Sou Carina, prazer — Ela estendeu a mão, esperando uma resposta.
Ainda desconfiada, acabei a cumprimentando. Após a rápida apresentação,
voltamos a caminhar, mas dessa vez o clima já estava melhor e não
parecíamos tanto duas estranhas.
Enquanto eu aproveitava o silêncio, a moça começou a explicar como
havia se perdido. Tentei dizer que não precisava, mas não adiantaria muito,
então apenas a deixei falando.
Ela disse estar em um churrasco na casa de um amigo e ser responsável
por fazer a compra. No entanto não aceitou companhia, pois queria ser
independente. Segundo ela, em breve moraria no bairro, mesmo que por
pouco tempo, e precisava conhecer melhor a região.
— Ah, sim, bom, estamos chegando. — Apontei para a fachada do outro
lado da rua.
— Graças a Deus, eles já devem estar estranhando o meu atraso.
Abri um sorriso amarelo antes de entrarmos no mercado. Dentro do
ambiente, nós nos separamos, mas, para a minha infelicidade, nos
reencontramos no caixa, ela estava logo na minha frente na fila.
— Ora, ora, quem é viva sempre aparece. — Ouvi a voz do dono do
mercado e estranhei vê-lo vindo em minha direção.
— Oi, seu Galileu, saudades — Carina respondeu e respirei aliviada ao
perceber que ele falava com ela.
— Sim, dona Carina, voltou quando?
— Cheguei em Curitiba esta semana, mas, da Espanha, faz algumas já,
estava com uns familiares. O senhor mudou de lugar, né? Tá muito bonito
aqui.
Enquanto pagamos a compra, ela foi colocando os assuntos em dia com o
homem. Explicou que estava na casa da mãe, que o casamento seria em
breve e prometeu tomar um café na casa dele e sua esposa. E, por fim, ela
perguntou se ele poderia pedir para um tal de Pedro levar as compras.
Não prestei atenção nessa parte, pois estava terminando de passar as
minhas compras. Mas bem que havia estranhado como ela levaria tanta coisa
com apenas duas mãos.
Quando terminei de pagar, percebi que ela estava me esperando. Fiquei
sem graça de dispensá-la, então permiti a companhia.
— Então, Marta, o que você faz da vida? — ela perguntou após um tempo
de precioso silêncio.
— No momento eu estou apenas ajudando meus pais em casa, não sei
ainda o que fazer ou qual carreira seguir — falei tímida. — E você? —
Completei antes de ouvir sobre procurar uma faculdade ou algo como eram
novos tempos e mulheres não deveriam ficar paradas.
— Eu sou missionária — ela falou com os olhos brilhando —, voltei esta
semana de uma escola na Espanha e, após casar, pretendo ir trabalhar com
comunidades indígenas. — Era perceptível o amor com o qual fazia aquilo.
Senti um aperto no coração, pensando na vontade que eu tinha de também
ir para campo, porém a oportunidade nunca surgiu — nem surgiria.
Era engraçado como, do nada, começaram a aparecer diversas pessoas em
contato com missões na minha vida.
— Menina, amei conversar com você, mas tenho que ir, a casa do meu
noivo é virando aqui. Beijos, espero te encontrar de novo, foi um prazer te
conhecer.
Despedindo-se com um abraço, Carina desceu a rua saltitando e foi
quando eu vi outra pessoa conhecida subindo.
Apressei o passo, mas não foi rápido o suficiente para fugir dele.
— Marta? Posso te ajudar? — A voz de Gabriel soou logo atrás de mim.
— Não precisa, obrigada, pode… continuar o seu caminho. — Tentei ser o
mais simpática possível, logo voltando a caminhar.
Naquele momento constatei que os Mendes não sabiam receber um “não”,
pois logo ele puxou de maneira forçada as sacolas da minha mão e saiu
andando ao meu lado.
— Estou indo para a sua casa mesmo e seria hipocrisia te deixar levar
esses pesos até lá.
— Hum, obrigada — Mesmo não concordando, devia reconhecer o ato
dele, minhas mãos já estavam começando a doer.
O silêncio não durou mais do que alguns minutos, pois logo Gabriel já
voltou a falar.
— Foi bom te encontrar no caminho, estava querendo falar com você a
sós. — Como se lembrasse de sua existência, meu coração acelerou ao ponto
de sair pela boca a qualquer momento. — Quero novamente pedir desculpas
por ter te tocado sem a sua permissão. — A confusão deve ter ficado
estampada na minha cara, pois logo ele se explicou. — No domingo, após o
culto, eu segurei o seu braço. Me perdoa, não devia ter feito aquilo.
Fiquei sem reação diante da fala dele. Eu mal me lembrava da situação,
não havia dado importância ao acontecimento, na verdade fiquei pensando
em outras coisas que não tinham nada a ver com ele ter me tocado de relance
no braço.
E foi naquele momento que percebi o quanto Gabriel Mendes era
diferente. Outros homens não teriam dado a mínima, mas ele não, ele se
dignou a vir pedir desculpas por algo tão simples.
— Não precisava, na verdade eu mal lembrava disso. — Fui sincera. — E,
aproveitando a oportunidade, peço perdão por ter estragado sua roupa, e eu
também acabei te tocando pra limpar, eu — respirei fundo quando percebi
estar me atrapalhando —, enfim, só me desculpe.
— Imagina, fui um pouco ousado em confirmar sua presença no culto da
praça. — Ele riu e deu para notar a falta de arrependimento do ato. — Júlia
comentou sobre você comigo. Acho que está na hora de começar a interagir
com o pessoal da igreja.
Abri e fechei a boca várias vezes, injuriada com a ousadia dele, sem nem
saber o que falar, principalmente sobre Júlia comentar meus problemas com
o irmão, que eu mal conhecia, inclusive.
Aproveitei a deixa de ter chegado em casa para ganhar um tempo para
pensar em uma resposta, estava acostumada a ser deixada no meu cantinho,
não a ter alguém contrariando minhas decisões, obrigando-me a conviver em
sociedade.
Avisar a minha mãe sobre nosso visitante foi a mesma coisa que soltar
uma bomba dentro de casa, ela entrou em desespero por não ter sido alertada
da vinda do rapaz antes.
— Gabriel, querido, que prazer ter você aqui em casa. — Ela o
cumprimentou de longe. — Quanta falta de modos, filha, entre, rapaz, sinta-
se à vontade. Ah, não, espere.
Ela fechou a porta, deixando-o do lado de fora, e começou a arrumar a
sala correndo, colocando as almofadas no lugar, tirando louças sujas... E
apenas depois de tudo isso foi que ela me permitiu abrir a porta para deixá-lo
entrar.
Enquanto indicava para ele o caminho, levei a mão ao rosto, tentando
conter a vergonha que sentia perante as ações de mamãe.
— Na verdade eu só vim a mando da minha mãe, ela perguntou se vocês
teriam alguns pratos para emprestar. Estamos fazendo um churrasco na casa
de alguns amigos, mas foi gente a mais do que o previsto e os pratos
acabaram — Gabriel explicou, parecendo à vontade no ambiente, como se já
tivesse visitado ali várias vezes.
— Temos, sim, vou pegar — falei na tentativa de sair dali e me livrar da
situação.
— Não precisa, eu pego, guardei os pratos em um lugar diferente. — Ela
saiu caminhando depressa antes que eu contestasse.
Franzi o cenho, sem acreditar na atitude dela, a última pessoa a guardar as
louças tinha sido eu e não existia outro lugar para ela as ter enfiado.
Percebendo não ter o que fazer, me virei para o rapaz.
— Desculpa por… isso! — Apontei sem jeito para a direção por onde
minha mãe saiu. — Mas, sabe, eu achava que você pediria desculpas
também pela sua fala naquele dia, afinal, não fui consultada antes de ter a
minha presença confirmada em um evento que não quero ir. — Cruzei os
braços perante o olhar surpreso do Mendes.
Com aquele sorriso de lado, Gabriel colocou as mãos nos bolsos da calça,
arrumando sua postura.
— Bom, mas eu já confirmei, e esperamos a sua presença no culto de
sexta-feira também.
— Eu não vou. — Arqueei as sobrancelhas.
Estava desacreditada diante da ousadia dele de chegar na minha casa
dando ordens na minha vida como se estivesse tudo bem.
— Não se preocupe, vou resolver essa questão. — Ele piscou. — Aliás,
Marta, a sua mãe está demorando um pouco, não? — Gabriel mudou de
assunto antes que eu pudesse rebater.
— Aham — concordei.
As compras ficavam no armário da cozinha, que era no cômodo ao lado.
Não levava tanto tempo assim para pegar uns pratos de plástico, colocar em
uma sacola e voltar.
— Com licença — falei, saindo à procura da minha mãe.
Ao chegar lá, parei na porta, observando-a colocar prato por prato, bem
devagar, em uma bolsa de pano, tirava, passava um papel, limpando a poeira
imaginária, e colocava de novo.
— Mãe! O que você está fazendo?!
— Oi, filha. — Ela acenou enquanto arrumava a sua postura. — Estava
dando mais tempo para que vocês dois pudessem conversar e se conhecer.
Fiquei abismada com a ousadia dela. Sim, ela já havia deixado bem clara
sua preferência por Gabriel, mas estava tomando um rumo muito exagerado,
principalmente pelo fato de que não havia nem uma semana que eu
conhecera o rapaz.
Não aconteceria nada entre nós dois e minha mãe precisava entender isso.
Do contrário, ela apenas geraria mais situações constrangedoras para nós
dois e para a nossa família.
— Mãe, desculpa, mas, por favor, para com isso. Está se tornando chato
para nós dois — falei tentando não parecer mal-educada, mas querendo que
ela compreendesse meu ponto.
Peguei o pacote da mão dela e, respirando fundo, caminhei até Gabriel,
entregando para ele.
— Desculpe a demora.
— Tudo bem, até sexta!
Fiz uma careta enquanto o acompanhava até a porta e dei um longo
suspiro assim que a fechei, pensando ainda na sua audácia de agora há
pouco.

A minha semana estava sendo agitada. Logo na quarta de manhã, recebi


uma visita — que não era nenhum Mendes — pela primeira vez desde a
mudança.
Fiquei surpresa ao ouvir Jonas entrando de supetão no quarto, mandando-
me ir para a sala, pois tinha uma menina da igreja querendo falar comigo. Ao
chegar lá, vi Mariana parada na entrada tendo uma animada conversa com
minha mãe.
— Oi, Marta. — Ela me cumprimentou com um abraço. — Lembra
quando comentei sobre querer conversar com você? Então, cá estou.
— Ah, lembro, sim. — Abri um sorriso, tentando não demonstrar que na
verdade estava torcendo para ela ter esquecido dessa promessa.
— Não consegui no domingo, pois precisava ir embora logo, meus pais
marcaram um jantar com os Mendes para saber mais sobre o tempo do Biel
em missões. Aí, consegui tempo livre só hoje para vir.
— Bom, vou deixar vocês a sós, quer tomar alguma coisa, Mariana? —
minha mãe se intrometeu.
Após Mari agradecer e dizer que não queria nada, mamãe saiu.
— Eu quero te pedir desculpas pelo meu erro, de novo, deveria ter feito
isso há meses. Mas vamos colocar o assunto em dia, como você está?
Acabou se machucando depois do incidente na igreja?
Olhei discretamente para o relógio da sala, pensando quanto tempo é
necessário ficar fazendo cortesia para visitas. Será que com cinco minutos já
dava para mandar embora?
Então, com calma, expliquei a ela que não havia me machucado, que já
havia conversado com Gabriel e havíamos nos resolvido.
— Que bom, eu fiquei preocupada com você — ela falou por fim.
— Entendo, mas, como disse, está tudo bem. — Respirando fundo, voltei
ao meu plano de mandá-la embora. — Mais alguma coisa? Estou um pouco
ocupada…
Lendo meus livros. Fiquei com vontade de completar.
— Ai, mil desculpas, já te libero. Mas o outro assunto que queria falar:
nesta sexta teremos um culto de jovens lá na igreja, você podia ir, né?
— Não sei, não me sinto bem com muita gente — murmurei.
— Ah, quanto a isso, não se preocupe, será mais o nosso grupo mesmo, e
a Nina, que chegou esta semana. Vai ser da hora ter você conosco, por favor
— ela pediu, fazendo cara de cachorro sem dono.
Respirando fundo, comecei a pensar em como fugir dessa, mas por fim
decidi aceitar. Seria apenas um culto, eles veriam que eu não tinha talento
nenhum e não me convidariam mais, deixando-me em paz na minha vida.
— Tudo bem — falei mordendo o lábio.
— Obrigada, fico feliz! Prometo que você não vai se arrepender. Agora
vou indo, preciso confirmar com o Biel para ele dar carona a você também,
beijos. — Nos despedimos e fechei a porta, raciocinando o que acabou de
acontecer.
Após ela sair, lembrei-me de Gabriel falando que resolveria essa questão
de eu ter me negado a ir no culto e fiquei irritada por ter caído certinho nos
seus planos.
Fui para o meu quarto pensando se fiz certo em aceitar a proposta. Mas,
por outro lado, eu vivia reclamando sobre ter apenas Júlia como amiga,
quem sabe não seria uma oportunidade para conhecer novas pessoas.
A maior questão era que eu não sabia se estava a fim de sair da minha
zona de conforto, aprendi a me contentar com o pouco que tinha.
Minha única expectativa sobre o futuro era casar e formar a minha família.
Até tinha outros sonhos, como missões, mas eram coisas inalcançáveis na
minha cabeça, nunca iria acontecer.

— Quem será que vai ser o dono de vocês? — questionei sozinha


enquanto pegava meu baú de cartas e colocava na cama.
Com frequência me ocorria o pensamento de que eu poderia nunca me
casar, talvez não existisse alguém à minha espera. Tais pensamentos me
afligiam, um futuro solteira, sem poder casar, ter filhos e formar uma
família, estaria destinada a viver apenas com os meus pais na mesma rotina
monótona de sempre.
Mas, nesses momentos, eu apenas balançava a cabeça e ia orar. Pedia para
Deus me ensinar a me contentar apenas nEle e não prender meu coração em
sonhos humanos, coisas desta terra. Não era fácil confiar, não era fácil não
ter uma perspectiva de como seria minha vida.
Muitas vezes eu apenas queria saber como seria meu futuro,
descomplicaria tanto.
— Querido futuro marido, você existe? — sussurrei segurando uma das
cartas.
Capítulo Quatro
“Grande é o Senhor
E mui digno de louvor
Na cidade do nosso Deus Seu Santo monte
Alegria de toda terra”
(Adhemar de Campos - Grande é o Senhor)

Enfim, havia chegado sexta-feira.


Pela milésima vez, olhei no espelho, conferindo como eu estava, vendo se
faltava algo, se tinha algum rasgo na roupa ou borrado no rosto.
Internamente eu travava uma batalha: por um lado, eu queria a todo custo
que eles gostassem de mim, de como eu era, queria fazer mais amigos; por
outro, queria que todos vissem como eu não era um deles e me deixassem
em paz, como foi neste último ano todo.
— Pai, por favor, me ajuda — sussurrei, encarando o meu próprio reflexo.
Poucos segundos depois, ouvi uma buzina denunciando a chegada de
Gabriel. Pedindo mais uma vez forças a Deus, saí do quarto e fui em direção
a eles.
Eu temia que estivesse muito informal com a saia jeans e uma camisa
branca, mas fiquei aliviada ao ver Júlia usando um macacão do mesmo
tecido da minha saia e Gabriel também com uma roupa mais despojada.
Ao me ver, o rapaz saiu do carro e abriu a porta de trás para mim.
— Obrigada.
— Não tem de quê, milady! — Ele fez uma tentativa de reverência. —
Fico feliz de você ter aceitado vir.
Senti minha bochecha começar a pegar fogo e tratei de entrar logo no
veículo. Assim que me acomodei, ele fechou a porta, sentando-se no lugar
do motorista.
— Ai, amiga, estou tão feliz que você veio. Mas acho isso injusto, porque
eu convido há meses e você nunca aceitou. Já a Mariana te convida pela
primeira vez e você já aceita. — Júlia cruzou os braços, emburrada.
Se estivéssemos apenas nós duas, eu me sentiria mais livre para zoar com
ela. Mas com Gabriel ali, não me sentia confortável em fazer brincadeiras,
ainda mais por não saber a relação entre ele e a Mariana, pois já tinha dado
para perceber que ambos eram bem próximos.
— Depois eu te explico. — Torci para ela entender o fim do assunto.
— Vou cobrar, hein? — Então, virou-se para o irmão. — Você e a Nina
vão fazer o louvor, né? Amiga — Ela se dirigiu a mim. —, você não sabe
como o Gabriel e a Nina formam uma boa dupla, sério. Ela, na voz, e ele, no
violão e no vocal também, nossa, sou apaixonada. — Ela bateu palma.
— Vai ser bom relembrar os velhos tempos — Gabriel comentou rindo.
Durante o percurso até a igreja, os dois foram falando sobre músicas e
outros assuntos relacionados, às vezes me envolvendo na conversa. Com
isso, descobri que Júlia era uma péssima cantora, Luísa sabia tocar teclado e
David, bateria.
— E cá estamos, chegamos! — O rapaz falou ao estacionar o carro na
frente da igreja.
Ordenando para esperarmos, ele primeiro abriu a porta para Júlia e depois
fez o mesmo comigo. Também estendeu seu braço, indicando que era para
encaixar o meu no dele, da mesma forma que Júlia fazia no outro.
— Não precisa. — Sorri sem graça, enfiando as mãos no bolso.
— Nem vem, quem está te convidando sou eu, me nego a uma recusa.
— Gabriel, é sério, eu não quero — respondi sendo um pouco mais grossa
no tom de voz. Fiquei com medo de ele se chatear, mas ele apenas deu de
ombros, indicando para caminharmos.
— Sabe, Marta, às vezes meu irmão parece ser desses filmes antigos,
cheio de cortesias, abrindo porta de carro, fazendo reverências e tudo. Não
que eu reclame; na verdade, isso só aumenta o meu conceito para o meu
futuro marido.
— E quem disse que você vai casar? — Júlia parou no caminho e se virou
para colocar as mãos na cintura, fingindo-se de brava. — Você vai ser
sempre minha bebê e vou te aprisionar na torre mais alta. O macho que
quiser se aproximar precisará lutar pela sua honra — ele explicou, fazendo-a
revirar os olhos.
— Às vezes cavaleiro medieval até demais — ela sussurrou para mim,
mas alto o suficiente para ele ouvir, respondendo com uma gargalhada.
Com aquele clima de gracejos e piadas, entramos no templo, vendo apenas
David. O rapaz tinha um violão no colo, tentando dedilhar alguma coisa,
contudo era perceptível que não se dava bem com o instrumento.
— Oi, Mendes, oi, Marta, a Mari conseguiu convencer você a vir? —
Balancei a cabeça indicando que sim. — Seja bem-vinda! Gabriel, aquele
negócio lá vai rolar? — Ele se voltou ao rapaz, mudando de assunto.
Os dois embarcaram em uma conversa sobre música, missões e vários
nomes que eu não conhecia, como Igor e Sarah. Pelo jeito, Júlia também os
conhecia, pois entrou na conversa animada pela gravidez da mulher.
Eu ia virar para pegar uma água, quando minha ação foi interrompida com
a chegada de Mariana e Luísa. A mais nova se aproximou correndo até
Gabriel para cumprimentá-lo e, depois, veio até nós.
— Oi, Mar, posso chamar você assim, né? Então, a Mari tinha comentado
comigo que você vinha, ai, que maneiro! Vai ser legal ter pessoas novas.
Respondi à pergunta e devolvi em cortesia, ela era simpática em um nível
exagerado.
— Cadê a Nina? — Mari perguntou, tentando quebrar o silêncio que se
formou.
Mas não foi preciso ninguém responder, a porta foi aberta e uma menina
loira e alta entrou. Ela foi correndo abraçá-la e, pela forma como se falavam,
ambas eram bem próximas.
Franzi o cenho, tentando lembrar de onde já tinha visto a garota, então,
quando as duas se soltaram, a reconheci. Era a menina do mercado.
— Não creio, Marta? — Nina, ou Carina, como eu a conhecia, veio até
mim e me cumprimentou com um abraço. — Eu sabia que nos veríamos de
novo, que legal que você faz parte da igreja.
— De onde vocês se conhecem? — David se aproximou e depositou um
beijo na testa da moça.
Eu achei incrível a coincidência. Quem poderia imaginar que a garota do
mercado era a mesma de quem tanto falavam na igreja e, por acaso, era a
noiva do David? Até parecia que estávamos na colônia de vovô, onde todo
mundo se conhecia, e não na cidade grande.
— Lembra da menina que eu falei que me ajudou quando eu me perdi?
Então, é a Marta — ela explicou.
— Oi, Carina, prazer te reencontrar — respondi gentil.
Após conversarmos rapidamente, sua atenção voltou ao resto do grupo.
— Vamos começar? — A voz de Luísa se sobressaiu, chamando a atenção
do pessoal.
Eu caminhei até o banco, sentando mais afastada deles, e suspirei ao ver
Carina caminhando até mim.
— Nem pensar, você vai sentar junto de todo mundo, aqui somos uma
família — ela falou determinada e, segurando meu braço, me levou até o
grupo.
Respirando fundo, me sentei ao lado de Júlia e vi minha amiga sorrindo
vitoriosa, era o sonho dela que eu me envolvesse mais.
— Bom, vamos começar? — Gabriel falou ao terminar de afinar o violão.
— Nina, conduza o louvor, por favor.
A moça assentiu e, após fazer uma oração, iniciou o cântico.
Assim como todos falaram, realmente ela possuía uma bela voz e ambos
— ela e Gabriel — formavam uma boa dupla musical.
Fechei meus olhos e, mesmo tentando esquecer onde eu estava, era
impossível não ouvir as vozes ao meu lado, comparando-as com a minha
desafinada. Quando percebi, meu tom estava tão baixo que nem eu mesma o
escutava.
Sabia que não deveria ficar me comparando naquele sentido, porém ainda
assim não conseguiria me soltar.
Após mais outros dois louvores, Gabriel, o responsável por trazer a
palavra da noite, largou seu violão e pegou a Bíblia, sentando-se em um
banquinho à frente de todos.
— Bom, eu estava orando esta semana para Deus me direcionar sobre o
que era para falar e, em uma conversa com o David e a Nina na terça, me
veio o tema “perfeito” — Ele fez aspas com o dedo. —, se assim posso dizer.
— Soltou um pequeno riso.
Após a introdução, ele pediu para abrirmos em Mateus 6 e começou a ler
do versículo 25 ao 34.
O sermão da noite foi sobre ansiedade e sobre a importância de entregá-la
a Cristo. Gabriel falou com maestria sobre a necessidade de confiar nossas
aflições e anseios ao Senhor, porque Ele sabe o melhor para nós e os Seus
planos são muito melhores.
Foi um tema que veio de encontro ao meu coração, recordando-me da
minha preocupação com o futuro, sobre com quem eu me casaria, se teria
filhos, se me tornaria missionária ou não, qual faculdade faria, onde moraria.
Naquele momento percebi como eu tentava planejar cada detalhe da minha
vida.
Compreendi como, apesar de, da boca para fora, eu ter dito que entreguei
tudo a Deus, internamente eu ainda me agarrava a querer saber tudo do meu
próprio futuro, a querer comandá-lo, dizendo que eu mesma sabia o melhor
para mim, o que me faria feliz. Mas, como um puxão de orelha do Senhor,
Ele de novo me lembrou de que eu não tinha controle de nada.
— Eu posso completar com um versículo? — Mariana, ao final, perguntou
com a mão erguida. Após a aprovação, ela leu Eclesiastes 3:1-8.
Depositando a Bíblia no colo, ela ergueu a cabeça e falou com uma firmeza
surpreendente: — Nós nos preocupamos com tantas coisas e esquecemos
que existe um tempo exato para cada acontecimento, e, ansiá-lo ou não, não
mudará nada. Como Salomão diz mais adiante, Deus fez tudo no seu devido
tempo, apesar de ter colocado um senso de eternidade no coração humano,
ninguém é capaz de entender toda a obra de Deus do começo ao fim.
Gabriel agradeceu a contribuição e, depois de acrescentar mais algumas
coisas, fez uma oração, encerrando aquele momento.
— Mudando de assunto. — Mari caminhou até a frente, sentando na
plataforma. — Precisamos discutir sobre o culto na praça daqui duas
semanas, estive anotando umas ideias e estou louca para contar. E eu
também conversei com o pessoal da igreja do Tiago e eles aceitaram nos
ajudar nesse trabalho. — Ela começou a falar sem dar tempo para os outros
tirarem dúvidas ou contestarem.
Fiquei confusa, sem saber quem era Tiago, mas, por ninguém mais ter
questionado, compreendi que deveria ser mais alguém conhecido deles.
Nesses momentos, me arrependia de nunca ter me envolvido mais, pois já
estava há meses ali e sabia pouquíssimas coisas.
— Tudo bem, realmente precisamos ver essa questão, mas e se fizéssemos
isso comendo aquela pizza recheada de queijo na Nonna? — David chamou
a atenção de todos para si.
Nonna era uma pizzaria conhecida da região; se não me enganava, ficava
bem perto da igreja. No mesmo instante, eles começaram a confirmar a
presença e me assustei quando vi todos olhando com expectativa para mim.
— Você vai? — Mari questionou.
— E-eu?
— Se você não quiser, tudo bem, eu te levo para sua casa — Gabriel falou
com uma voz calma. — Mas será muito bem-vinda em nosso meio. — Ele
enfiou a mão no bolso e vi um incentivo em seu olhar para que eu aceitasse.
Engoli em seco, sentindo os sintomas de mais uma crise de nervosismo e
timidez. Comecei a pensar em todas as possibilidades. Eu poderia ficar em
casa, aconchegada na cama com um livro, ou ir para a pizzaria e ficar em um
ambiente barulhento, além de ser obrigada a conversar com eles. A resposta
mais lógica seria a primeira opção, não correria riscos e não sairia da minha
zona de conforto.
Porém o pouco tempo ali, e vendo a forma como eram amigos, fez nascer
uma pequena chama no meu coração, o desejo de me sentir pertencente a um
grupo também.
Respirando fundo, assenti com a cabeça, feliz pela ideia de meu pai em me
dar algum dinheiro antes de sair de casa, ele argumentou que poderíamos
sair e eu iria precisar. Tinha que agradecer quando voltasse.
— Aceito — murmurei tão baixo que me assustei de eles terem ouvido.
No momento que minha resposta saiu, eles comemoraram com pulinhos e
Júlia me deu um daqueles abraços espalhafatosos. Envergonhada pela atitude
exagerada dela, me afastei com gentileza, sentindo um calor subir pelo rosto.
Como o estabelecimento ficava na rua de trás, iríamos a pé mesmo.
Durante o percurso, foram todos conversando animados, falavam sobre
diversos assuntos, de quase todos eu não tinha o menor conhecimento. Pelo
que Júlia tinha me contado, a maioria deles era amigo desde criança, tendo
crescido juntos na igreja, a mais nova ali era Nina, que chegou há três anos,
e eu agora.
Apesar das diversas tentativas deles em me envolver, eu acabei ficando
mais para trás, preferindo apenas ouvir e observar a interação. Em certo
momento, Gabriel também diminuiu o passo até ficar ao meu lado.
— Fico feliz de você ter aceitado vir junto — ele disse com sinceridade.
Assenti, sem saber o que falar, mas ele logo continuou: — Viu como
podemos ser pessoas legais também? — Ele abriu um sorriso de lado e
correu, gritando alguma coisa para David antes que eu pudesse retrucar.
Capítulo Cinco
“Parece um sonho
Descobri o amor através de um gesto seu
Bastou só um olhar
Para acreditar que eu não ouvirei um adeus
Você me ensinou a letra da canção
Que me faz tão feliz, e aquece meu coração”
(Pamela - Você me Conquistou)

O
letreiro em neon escrito “Nonna’s Pizzaria” denunciava que havíamos
chegado ao estabelecimento. Os donos já pareciam conhecer o pessoal, pois
cumprimentaram a todos com um abraço e uma mulher nos encaminhou para
um lugar que ela disse ser o favorito deles.
— Agora conte as ideias, Mari — Nina pediu ao sentarmos.
— Bom, eu estava pensando em começarmos um evangelismo à tarde,
para convidar as pessoas para o culto à noite. Aí, teria alguma coisa com
crianças, poderíamos tocar uns louvores, essas coisas, para atrair atenção,
sabe?
— Sim, eu e a Ju ficamos responsáveis pelos pequenos, como sempre —
Luísa se candidatou.
— Você vai querer fazer alguma coisa, Marta? — Mariana me questionou
sem desviar os olhos do seu caderno.
Neguei. Mesmo que quisesse, não sabia fazer nenhum desses grandes
trabalhos igual a eles.
— Tudo bem, então, mas, se tiver alguma ideia, não fique com receio de
opinar, tá? — Ela deu uma piscada e concordei com a cabeça.
Então, eles engajaram na conversa, discutindo sobre quem faria o que
durante o dia do culto. Mas, em determinado momento, o garçom se
aproximou, interrompendo-os.
— Vai ser o de sempre? — ele questionou.
— Sim — Gabriel respondeu devolvendo os cardápios. — Ah, não,
espera! Marta — Ele se virou para mim. —, você quer algum sabor
específico? Nós vamos pedir uma de frango, uma de quatro queijos, uma
bolonhesa, uma napolitana e talvez uma doce de chocolate branco.
Abri a boca, surpresa pelo número de pizzas, fazendo um cálculo rápido,
daria em torno de oito pedaços para cada um.
— Sem problemas, podem ser esses mesmo — falei e o garçom assentiu,
afastando-se.
— Esses dois vão competir por quem come mais — Luísa se direcionou a
mim, explicando.
— Como?
— Sim, da última vez eu comi doze pedaços — Gabriel se gabou,
encostando-se na cadeira.
— Doze?! — questionei abismada.
Eu não conseguia me imaginar passando de três pedaços, e isso era
quando eu estava com muita fome.
— Isso aí é magro de ruim. — Mariana bufou, jogando uma bolinha de
guardanapo no rapaz.
— Eu tenho corpo atlético. — Ele ergueu os ombros, sorrindo. —
Brincadeira, ou não, mas realmente faço bastante esforço nas construções, aí,
por consequência, como mais.
David, então, declarou que dessa vez iria vencer, o que desencadeou uma
“discussão” sobre quem era o melhor nisso.
— Vocês dois podem fazer o favor de agirem como os adultos que
aparentam ser? — Nina elevou a sua voz com um tom bravo, mas ambos
apenas gargalharam na cara dela. — Misericórdia — ela murmurou com um
olhar de repreensão.
Eu estava surpresa e encantada pela amizade deles, a sinceridade dos dois
em rirem dela e ela levando tudo na brincadeira. Era admirável aquele laço e
união que tinham.
— Gente, papo firme, vocês não acham melhor cuidar da saúde, não?
Porque no momento os dois estão na fase do metabolismo acelerado ainda,
mas vai vir a idade e as consequências dessas competições bestas vão
aparecer — Nina voltou a falar, séria. Gabriel e David abaixaram a cabeça
concordando. — Além do mais, quem precisa te fazer engordar sou eu
quando for sua esposa, David, não o pizzaiolo!
Gabriel tentou segurar a risada, mas não conseguiu e contagiou toda a
mesa.
— Quero só ver quando for a sua vez, Gabriel — David o repreendeu.
— No momento quem está com um casamento às portas é você, meu
amigo. — Ele deu “leves” tapinhas nas costas de David.
— Mas você também tem que pensar em encontrar uma esposa, formar
uma família, alguém para te auxiliar, sabe? — O outro rebateu.
— Ah, caso seja da vontade de Deus, eu não reclamaria.
— E o que você procura em uma mulher? — Mari questionou,
envolvendo-se no assunto.
— Ah — ele coçou a nuca, pensando —, que ela seja uma cristã genuína,
que busque a Deus, que goste de evangelizar, falar do evangelho, seja uma
mulher ativa na obra, sei lá, essas coisas básicas.
Mordi o lábio, pensando em como eu não teria qualquer possibilidade com
ele, pois não cumpria muitos requisitos devido à vergonha e timidez. Não era
como se eu quisesse, de forma alguma, mas precisaria avisar minha mãe para
ela perder suas esperanças, pois ela estava bem mais animada para um futuro
entre nós dois do que eu.
No momento em que ele falou, vi os olhos de Luísa se abaixarem, com um
pequeno sorriso tímido surgindo e, pela sua expressão, percebi que ele já era
o dono das afeições de alguém.
— E você, Mariana? — Gabriel rebateu com um sorriso para a morena.
— Você sabe muito bem que nem penso nisso. — Ela ergueu o queixo,
demonstrando seriedade, mas dava para ver que estava segurando a risada.
— Ai, Mari, não sei como você não quer se casar — Júlia falou rindo. —
Eu fico me imaginando entrando na igreja de branco, com a marcha nupcial
ao fundo e Gabriel me levando em direção ao amor da minha vida. Então,
daremos nosso primeiro beijo e entraremos na escola oficial de santificação
e teste de paciência — ela narrou, suspirando.
— Pelo menos não perco meu tempo sonhando acordada e consigo me
dedicar cem por cento à obra do Senhor — a morena se defendeu. — Não é
que eu não queira casar, não reclamaria, mas também não tenho problemas
em morrer solteira servindo a Deus.
— Vemos claramente que não somos nem um pouco parecidas nesse
quesito — Luísa murmurou, levando todos a darem risada do seu jeito.
— Vemos claramente quem puxou a parte romântica da família. —
Mariana brincou e abraçou a irmã de lado. — Mas sério, gente, se, se — ela
reforçou — eu chegar a ter um marido, tenho pena do coitado. Capaz de ser
mil vezes mais romântico que eu, mesmo sendo homem.
— Gabriel não tem esse problema, meu Deus, a esposa dele vai ser
sortuda, pensa em um cara romântico. — Júlia falava e me lembrei da
brincadeira na vinda para a igreja. — Sério, vira e mexe ele aparece com
buquê de flores para mim e minha mãe, compra chocolate, dá presente. Tudo
com esse jeito palhaço dele.
— Júlia — o rapaz, com uma expressão séria, chamou sua atenção.
Ela soltou um “desculpa” e se calou, envergonhada por ter levado uma
repreensão em público, mas poucos segundos depois ela já voltou a sorrir
com seu jeito costumeiro.
— E você, Marta? — Levei um susto ao ouvir Mariana falando comigo.
— E-eu? — gaguejei.
— Sim, como você está na questão de expectativas? Agora voltadas ao
casamento.
— Ah, eu… — Fiz uma pausa, tentando organizar os pensamentos para
falar sem revelar muito de mim. — Essa é uma ansiedade minha, sonho em
encontrar um homem piedoso para ser meu esposo, mas estou entregando
nas mãos de Deus, não tenho controle disso.
Até pensei em lhes falar sobre as minhas cartas e como elas me ajudavam
a orar por ele, mas isso se encaixaria na parte do revelar demais, por isso
achei melhor ficar quieta.
— É o jeito, né? Infelizmente não temos como prever o futuro — Luísa
falou dando de ombros. — Vamos aproveitar um dia de cada vez.
O grupo, então, entrou em uma animada conversa sobre a palavra de mais
cedo, trazendo diversos versículos extras e discutindo sobre os mais diversos
tipos de ansiedade.
Eu não cheguei a me envolver, mas também não fiquei tão deslocada
como das outras vezes que tinha vindo. Fiquei feliz por ter conseguido me
enturmar um pouco, pensando se teria a chance de vir na próxima semana.
E, principalmente, se teria coragem de admitir ter curtido estar ali.

— Pai, desculpe pela hora — pedi assim que cheguei em casa e vi meu pai
sentado no sofá da sala assistindo Chacrinha.
Ele bateu a mão no ar, como se me dissesse para relaxar.
— Gabriel falou comigo — respondeu sem desviar o olhar da televisão.
— Falou? — Fechei a porta e encostei-me nela, esperando a resposta. —
Pai! — Chamei ao ver que ele não prestava a mínima atenção.
— Desculpa — Ele finalmente se virou para mim. —, mas, então, ele veio
aqui à tarde, você estava no quarto e até ofereci para te chamar, mas ele disse
que queria conversar comigo mesmo. Confesso ter ficado nervoso...
— Pai… — interrompi, indicando para chegar logo ao ponto principal.
Ele tinha uma mania terrível de contar toda a história e acontecimentos
anteriores.
— Enfim, ele veio pedir permissão para te levar ao culto, também avisou
que vocês poderiam sair depois e chegariam tarde, por isso te dei o dinheiro.
Rapaz de ouro aquele.
Após agradecer, caminhei para o quarto pensando no quanto meus
sentimentos estavam mudando, mesmo sem a minha permissão, em menos
de uma semana.
Capítulo Seis
“Eu me exalto, me consolo
Pinto um quadro com meu rosto
Eu levanto meu bom nome
E no fim a queda é grande
Eu assumo um lugar alto
Usurpando esse trono
Que nem mesmo o melhor de nós
É digno de assentar”
(Doxologia Primitiva - Filipenses, O Avesso)

O sábado havia se passado sem maiores problemas. Eu aproveitei cada


segundo da calmaria, pois sabia que o domingo guardava grandes emoções.
Minha vontade era de me enfiar debaixo da terra devido às insinuações da
minha mãe querendo bancar a casamenteira para o meu lado.
À noite, eu aproveitei o bom humor dela e tentei conversar, pedindo para
ela parar com aquilo.
— Mãe, é sério. — Suspirei, vendo a sua expressão irritada pela chamada
de atenção da própria filha. — Eu e o Gabriel não vamos ter nada, eu não
sou o tipo de garota para ele e, além do mais, você pode acabar estragando a
nossa amizade com a Júlia e a Carla por causa disso.
— Ambas me apoiam!
— Mas o Gabriel não, se ele, por diversos motivos, acabar se irritando,
pode acabar envolvendo a mãe e a irmã nisso. E ninguém sabe se ele já ora
por outra pessoa.
Nesse momento meus pensamentos foram levados para Mariana, eu já
tinha observado que ambos eram íntimos e a possibilidade de estarem
orando não parecia tão longe assim, mesmo ela tendo dito que não pretendia
se casar.
— Tá bom, desculpa — ela falou irritada, erguendo as mãos para o alto.
— Agora não posso mais querer ver minha filha casada antes da minha
morte?
— Ô mãe, para de drama — Jonas se intrometeu, entrando na cozinha.
Quanto da conversa ele havia escutado? — Todo mundo sabe que vaso ruim
não quebra!
Meu irmão, assim que pegou uma maçã, falou isso e saiu correndo antes
que dona Lisa voasse para cima dele.

No domingo eu acordei mais animada, feliz por saber que minha mãe ao
menos tentaria não ser tão direta. Suspirando, criei coragem para levantar da
cama. Havia chegado o tão esperado almoço da minha mãe.
Após os cuidados básicos matinais, peguei meu material e me dirigi à
cozinha, procurando algo para comer. Ao chegar lá, vi mamãe andando de
um lado para o outro preocupada.
— Filha, me ajuda, você viu onde está a farinha?
— Mãe, são nove da manhã — argumentei bocejando. — Você deveria
estar fazendo o café, não se preocupando com o almoço.
— Marta! Precisamos ter certeza de que todos os ingredientes estão certos,
pois, caso falte algo, posso te pedir para ir buscar. Aliás, não seria mal, vai
que você acaba encontrando sua amiguinha de novo? — Sorriu, piscando
para mim.
Desviei o olhar sem comentar nada, pois não havia nem ao menos contado
sobre o fato de já ter visto Carina na igreja, sabia que ela iria “surtar”, então
preferi enrolar mais um pouco.
— Tenho certeza de que você comprou tudo — desconversei, pegando a
lista da mão dela e ajudando a conferir se faltava algo.
Após confirmarmos que tínhamos tudo, peguei um pão com uma xícara de
chá e fui me sentar no jardim para fazer o devocional.
Uma hora depois, encerrei-o com uma oração, surpresa com como todas
as vezes Deus me mostrava algo diferente na leitura. Vendo ainda ter tempo,
aproveitei para fazer uma leitura bíblica. Estava envolvida na história de
Davi, quando ele fugia do próprio filho e...
— Marta!
Levei a mão ao coração, sentindo-o a mil pelo grito de Júlia. Minha amiga
estava encostada no portão e segurava o riso por causa de como reagi.
Olhando-a feio, caminhei até lá, apoiando meu corpo do lado de dentro da
grade.
— O que foi? — questionei séria e fingindo-me de brava.
— Vim ficar com você até o almoço, não posso mais? — Ela fez uma voz
dramática, preparando-se para ir embora.
Revirando os olhos, abri o portão e ela entrou dando pulinhos de alegria.
— Você já terminou seu devocional? — perguntou preocupada ao ver
minha Bíblia e meu caderno no chão. Assenti e ela desembestou a falar: —
Massa, estou tão animada. Você sabe como queria esse almoço faz tempo,
não é?
— Uhum — murmurei, pegando minhas coisas. — Mãe, estou no quarto
com a Júlia — gritei ao entrar em casa.
No mesmo instante, minha mãe surgiu enxugando as mãos no pano de
prato e cumprimentou a minha amiga.
— Oi, Julinha, como você está?
— Estou bem, tia Lisa, obrigada. Marta, vamos?
Assim que fechei a porta do quarto, Júlia se jogou na cama, dando risada.
Fiz careta para sua reação e fui guardar meu material. Diferente de mim,
Júlia era uma garota toda alegre, risonha e sempre conseguia arrancar um
sorriso meu, nem que fosse pelas besteiras faladas.
— Amiga, você não se esqueceu do meu aniversário mês que vem, não,
né? — perguntou quando sentei ao seu lado.
— E tem como esquecer? Você só fala dele há meses.
— Vai saber, né? — Deu de ombros. — Eu estou tão animada, enfim
dezoito anos.
Suspirei sem falar uma palavra, já havia avisado que tudo continuaria
igual, chegar à maioridade não mudava nada.
— Eu estava com medo de o Biel não chegar a tempo, mas graças a Deus
deu tudo certo. Agora, me ajuda, qual cor você acha que combina mais
comigo? Rosa ou azul? — Ela ergueu duas bexigas, uma de cada lado do
rosto, e eu fui obrigada a ver qual ficava melhor com seu tom de pele.
Enquanto ela tagarelava sobre sua tão esperada festa, eu apenas ia
concordando e opinando sobre a decoração ou músicas a serem tocadas. E,
nesse clima, o tempo passou tão rápido que me assustei quando mamãe
apareceu chamando nós duas para ajudarmos a arrumar a mesa.

A chegada de Gabriel foi marcada pela grande alegria de minha mãe e


pelo grande desespero do meu pai e de Jonas. Os dois haviam sido avisados
durante a semana toda para não envergonharem a família, então, quando o
rapaz entrou na sala acompanhado de Carla, foi cumprimentado quase com
reverências.
Segurei a risada vendo Jonas revirar os olhos quando mamãe quis
apresentar a casa.
— Mãe, eu tô com fome! — ele falou quando ela estava prestes a entrar
no quarto dele, recebendo um olhar assassino de nossa progenitora.
— Gabriel, querido, tudo bem para você?
Era visível o quanto o rapaz estava constrangido com toda a atenção e
amor recebido por ela.
— A mãe sabe que isso só piora a imagem dele sobre ela, né? — Jonas
sussurrou para mim enquanto caminhávamos até a cozinha.
— Duvido muito — murmurei de volta.
Meu pai fez a oração pelo alimento e, graças a Deus, o almoço seguiu em
tranquilidade, com apenas algumas conversas soltas sobre o tempo, a igreja e
a Bíblia.
Em um certo momento, ousei erguer meu olhar para Gabriel, mas o
abaixei, sentindo meu rosto queimar de vergonha ao perceber que ele
também me olhava.
— Então, Gabriel, em que área você atua como missionário?
Ao ouvir a pergunta da minha mãe, ergui a cabeça, também interessada na
resposta. Já o tinha ouvido conversar por cima sobre isso, mas nunca
explicando exatamente a sua função.
— Não sei se vocês sabem, mas sou formado em Engenharia.
Segurei a vontade de rir, queria lhe falar que já sabíamos quase tudo da
sua vida por meio de Júlia, mas achei melhor não interromper.
— Hoje eu viajo para regiões mais necessitadas ou onde aconteceu algum
desastre e, junto a uma equipe de profissionais, construímos casas de baixo
custo para as famílias.
— Nossa, mas você podia estar ganhando dinheiro com sua faculdade e
faz isso? — Jonas fez uma careta e tanto eu quanto mamãe viramos bravas
para ele.
Eu ia brigar com ele, mas Gabriel me olhou, balançando a cabeça em
negativa. Franzi a testa, sem compreender o seu motivo, até ele começar a
falar.
— Você já passou fome, frio ou sede? Já precisou dormir embaixo da
chuva? Ou acordar no meio da noite porque está chovendo dentro da sua
casa? — ele questionou com gentileza, direcionando-se ao meu irmão, e este
negou com a cabeça. — Então, muitas pessoas vivem nessas condições e
elas não têm formas de sair. É gratificante quando entregamos uma casa para
uma família e eles vêm nos agradecer com lágrimas nos olhos, pais que
estavam desesperados pela situação de seus filhos e agora têm um lugar
seguro para criá-los. Deus nos chamou para fazer o ide e cuidar das pessoas,
não apenas para ficar dentro de casa reclamando da nossa boa vida.
Engoli em seco ouvindo tudo e pensando no quanto eu era abençoada por
ter um teto e comida na mesa.
— Se eu tenho renda, esta me foi dada para ajudar o próximo. Eu e minha
família não precisamos de muito, então aproveito que Deus nos abençoou e
uso esse dinheiro com o próximo. Não tenho ambições de ser milionário.
Meu único objetivo é, no dia da minha morte, saber ter feito um bom
trabalho como cristão e ter dado um bom testemunho em vida.
— Nossa — Jonas murmurou sem erguer seu olhar da mesa.
Eu o conhecia e sabia que estava envergonhado da sua fala. Na verdade,
todos fomos confrontados com a nossa forma de viver sem olhar além.
— Como vocês constroem as casas? — meu pai perguntou tentando
quebrar o clima que ficara ao redor da mesa.
Então, os dois entraram em uma conversa sobre materiais, encanamento e
outras coisas relacionadas a essa área.
Eu aproveitei para refletir sobre as palavras de Gabriel e pensava em como
eu poderia ajudar a mudar a vida de alguém sem me perder de quem era.

— Filha, você pode lavar a louça, por favor? — minha mãe me pediu ao
findar do almoço.
Como eu estava querendo sair logo dali antes de me enfiarem em outro
constrangimento, concordei. Levantei-me e fiz sinal para Júlia ir comigo,
mas Carla segurou minha amiga, alegando que precisavam conversar sobre a
festa. Como minha mãe era confeiteira, iria fazer o bolo e, de acordo com
elas, precisavam decidir os detalhes sobre isso e sobre a decoração.
Meu pai sumiu com Jonas, afirmando que aquilo era papo de mulherzinha.
Pegando algumas louças, segui para a cozinha e, quando estava voltando
para pegar as outras, vi Gabriel entrando com a panela.
— Vou te ajudar com a louça, quero fugir da conversa de aniversários e
bolos coloridos — explicou revirando os olhos. — Eu pego o resto, pode ir
agilizando aí.
Poucos minutos depois, ele chegou trazendo o resto dos utensílios e me
ajudou a organizar na pia.
Gabriel havia se oferecido para enxugar enquanto eu lavava, assim
diminuindo o trabalho e o tempo. Aceitei e na mesma hora o rapaz pegou o
pano de prato; eu colocava no escorredor, ele já pegava para secar.
— Achei interessante o que você falou sobre missões. — Tentei quebrar o
silêncio.
— Ah, sim, sua mãe comentou domingo passado sobre seu interesse. —
Olhei para ele e o vi segurando a risada, recordando aquela situação.
— Não me lembre daquilo. — Abaixei a cabeça, envergonhada. — Ela às
vezes, quase sempre — murmurei —, perde o limite e exagera.
— Ela não fez por mal.
— Eu sei — Dei uma risada baixa, lembrando as diversas situações
constrangedoras em que ela me enfiou. —, eu sei que ela tem boas intenções,
mas eu não sou a menina espontânea sonhada e idealizada por ela. — Mordi
o lábio, nervosa e surpresa, nunca havia falado sobre isso com ninguém e, de
repente, solto para um cara que conheci há uma semana. — Desculpe, você
não tá aqui para ouvir meus dramas. — Senti as bochechas queimarem de
vergonha.
Era por motivos assim que eu preferia ficar na minha e não conversar,
sempre soltava algo inadequado.
— Tudo bem, eu não vou contar para ela, é normal o desabafo. Sua
personalidade é mais introvertida mesmo. — Parei de lavar a louça e encarei
a pia, respirando fundo para tentar me controlar. — Eu estava conversando
com a minha mãe e com a Júlia sobre você, e elas comentaram mesmo desse
seu jeito mais retraído.
Franzi a testa, questionando-me sobre o motivo de eles falarem sobre
mim.
— Mas você deveria tentar interagir mais — ele continuou e eu revirei os
olhos, vendo o rumo da conversa. — Ei, é sério, sabia que timidez em
muitos casos é um egocentrismo?
— Como é que é? — questionei, abismada pela ousadia dele. Pelo pouco
tempo que o conhecia, já tinha percebido como Gabriel era bem direto na
hora de falar, e nem sempre isso era bom.
— Sim, apesar de as pessoas introspectivas alegarem preferir ficar fora do
centro das atenções, na verdade elas sempre pensam que o mundo gira ao
redor delas e todos prestam atenção nos seus movimentos. É uma coisa meio
inconsciente, mas mesmo assim um pecado, pois nos colocamos acima de
Jesus — ele se explicou. — Não sei se você já reparou em Apocalipse 21:8,
lá está escrito que os incrédulos, homicidas, prostitutos, feiticeiros,
mentirosos e, inclusive, os tímidos — Ele deu ênfase à palavra. —, irão para
o lago que arde com fogo e enxofre.
Ele fez uma pausa, esperando eu digerir, antes de continuar. Na verdade,
eu estava mais pronta para revirar os olhos, não era como se fosse a primeira
vez que eu escutava aquelas palavras.
— É interessante analisarmos como a timidez está incluída entre tantos
outros pecados abomináveis, sabe por quê? Os tímidos, ou podemos chamar
de covardes, têm vergonha de testemunhar sua fé publicamente, sempre
pensando na opinião do outro. Sua estima em si mesmos é tão elevada que
não conseguem considerar outra pessoa. Têm vergonha de evangelizar, de
falar aos outros sobre Jesus. Pensamos tanto em nós mesmos a ponto de
esquecer das outras almas indo para o inferno por nossa culpa, pois não
apresentamos Cristo a elas.
— Até parece que você estudou para dar esse sermão… — Revirei os
olhos, entregando-lhe uma vasilha.
— Pior que estudei mesmo, foi a minha pregação domingo retrasado.
Apoiei a mão na pia, respirando fundo, e por fim me rendi a uma risada
incrédula. Gabriel era inacreditável mesmo.
Apesar da armadura, precisei admitir que eu fui confrontada, em parte,
pelo discurso dele. Era algo novo para mim? Não, mas me incomodava todas
as vezes que ouvia.
— Desculpe se eu forcei algo. — Aproximando-se, fez um carinho no
meu ombro, após ver que continuei séria. — Ai, meu Deus, me perdoa! —
Ele se afastou, constrangido. — Acaba sendo automático tocar, eu me
esqueci, desculpe.
— Tudo bem, Gabriel. — Sorri para ele, tranquilizando-o, mas na verdade
tentava controlar as batidas do meu próprio coração.
Confessei para mim mesma o fato de, diferente da primeira vez que ele me
tocou, eu ter gostado, foi uma sensação estranha, algo que nunca tinha
sentido antes.
— Obrigada pela conversa, eu vou orar para Deus trabalhar mais isso em
mim — admiti dando de ombros.
— Ei, mas você não precisa mudar e ser uma pessoa totalmente diferente,
extrovertida, é a sua personalidade e gosto desse seu jeito. — Ele apoiou-se
na mesa e abriu um sorriso de lado, olhando para mim. — Só não deixe um
traço da sua personalidade se tornar um pecado e tente conversar mais com
as pessoas, pelo seu próprio bem, ninguém vai te morder.
Soltei risada com a última sentença dele. Era estranho como a forma com
que Gabriel agia conseguia quebrar um lado meu, eu sentia liberdade para
ser mais “Marta” com ele.
Só precisava tomar cuidado para traçar bem os limites disso.
— Mas, então, me conte como é ser missionário, você comentou um
pouco no almoço, mas eu queria saber mais sobre essa realidade — pedi
sorrindo enquanto voltávamos à nossa tarefa.
Então Gabriel começou a narrar sobre sua vida em campo, sobre seu
trabalho construindo casas e sobre as famílias a que se apegou lá. Também
relatou algumas situações, entre outras coisas. Seus olhos brilhavam
enquanto falava, demonstrando um verdadeiro amor pela obra.
Naquele momento me dei conta de que precisava aumentar minhas
orações para Deus guardar meu coração, senão correria sérios riscos de me
machucar.
Capítulo Sete
“Se eu pudesse no tempo voltar
Pouparia meu coração de se machucar
E o diria para se acalmar
Pediria pra não chorar
Quando vi o amor errado se acabar”
(Marcela Taís - Espera por Mim)

Após terminarmos a louça, voltamos para o lado de fora e encontramos


três olhares curiosos. Eu não disse nada, apenas me sentei e todas as minhas
respostas na conversa eram monossilábicas, ainda com a cabeça nos minutos
anteriores.
Não que tenha sido ruim ter passado um tempo com Gabriel, bem longe
disso, mas o simples fato de ter sido bom já era algo horrível. Eu estava
preocupada com o rumo da conversa, em conflito comigo mesma sobre até
onde minha timidez era parte da minha personalidade e onde começava a ser
pecado, além da tensão do momento em si.
Menos de dez minutos depois, os Mendes foram embora para casa e enfim
consegui respirar aliviada. Tranquei-me no quarto e passei o resto do dia
lendo para ocupar meus pensamentos.
Mas, ao chegar o crepúsculo, fui obrigada a encarar o fato de que veria
Gabriel no culto e não teria como ser grossa ou séria, não após nossa
interação à tarde.
Para minha sorte, mal havia pisado na igreja quando Carina veio me
cumprimentar e já me obrigou ir me sentar com ela, então pude evitar
conversar com Gabriel. Eu tentei negar o convite, e fui ignorada.
Meu instinto era puxar o braço e responder de forma brusca, ela não tinha
essa liberdade para querer mandar onde eu sentava ou não. Porém lembrei-
me das palavras do Mendes mais cedo, incentivando-me a conversar, então
decidi aproveitar a oportunidade para colocar isso em prática.
Aquelas que antes não sabiam nem meu nome hoje me cumprimentavam
com beijos no rosto e agiam como se fôssemos íntimas e amigas de anos.
Para mim era estranho esse conceito de proximidade.
Eu comecei a refletir e admirá-las pelo fato de conseguirem se socializar
tão rápido, por conseguirem agir dessa forma com alguém que mal
conheciam.
— Olha, por mim as flores seriam tulipas — Nina falava. Quando o culto
acabou, as meninas se aproximaram e começaram a conversar sobre o
casamento da garota, este, pelo que entendi, aconteceria daqui a dois meses.
— Mas já é difícil conseguir no Brasil, né? E nesta época do ano, então... —
Ela bufou, fazendo bico.
— As rosas vão ficar um arraso — Mariana reconfortava a amiga.
— Vão, sim, mas eu estou pensando na possibilidade de usar flores
artificiais só para serem minhas queridas tulipinhas! — A loira fez uma
expressão sonhadora e jogou a cabeça para trás, rindo. — Minha mãe ia me
matar — murmurou.
— Até imagino a dona Margareth. — Luísa aprumou as costas, entrando
na personagem. — “O que são essas coisas industrializadas na festa da
minha primogênita? Eu exijo flores naturais e da melhor qualidade, vocês
estão ofendendo a mãe natureza.” — A garota mudou sua voz e fez todas
caírem na gargalhada.
Eu abaixei minha cabeça, rindo baixo; apesar de não entender todas as
referências da conversa, era bom me sentir incluída e diversas vezes —
quando se lembravam — elas viravam para mim explicando quem era quem.
Sete dias atrás, eu murmurava por precisar ir ao culto e não conseguir
interagir, não ter mais amigas além de Júlia. Agora eu via o quanto tudo
mudou em menos de uma semana, refletia sobre o quanto me aproximei de
outras meninas.
Elas mudaram de assunto, indo para o aniversário da Júlia no próximo
mês. E começaram a discutir sobre as suas fantasias.
Pouco tempo depois, meus pais me chamaram para ir embora, mas, no
meio do caminho, Gabriel me parou, perguntando como eu estava e me
acompanhou até meu carro.
Minha imaginação sempre foi fértil, então era fácil dar corda a ela e criar
cenários em que o Mendes se tornaria meu futuro marido. Não importava
que tinha apenas uma semana que nos conhecemos, quantas vezes já não li
nos livros sobre amor à primeira vista?
Fechei meus olhos, pedindo para Deus tirar aquilo de mim, não era a hora
nem o momento para me apaixonar. Era óbvio que ele conversava comigo
apenas como amigo, da mesma forma como fazia com todo mundo. Mas
minha cabeça sonhadora já criava mil e uma teorias.
Eu compreendia que não seria errado me interessar por um rapaz, afinal,
nós dois somos cristãos e nós dois temos o propósito do casamento. Porém
eu também sabia que eu deveria guardar meu coração apenas para meu
marido, senão estaria pecando ao deixar pedaços dele espalhados por aí.
— Deus, por favor — murmurei, impedindo o rumo dos meus
pensamentos.

Levantei-me na manhã seguinte animada para um novo dia. Pouco antes


de adormecer, me veio uma ideia e queria logo colocá-la em prática.
Após me vestir, já caminhei até a escrivaninha pegando um papel. Em
pouco tempo, a folha, antes branca, estava cheia de palavras e eu continuava
a escrever mais e mais.
Enquanto estava com aquela caneta na mão, conseguia esquecer as
preocupações lá fora e me entregar ao momento.
Quando terminei, fechei os olhos, fazendo uma breve oração e
agradecendo a Deus pela graça de ter me dado criatividade. Eu
provavelmente, com certeza, não teria coragem de ler aquilo em voz alta,
mas pedia para que Deus me desse coragem no dia, ou quem sabe um dia.
A conversa com Gabriel no dia anterior surtiu alguns efeitos e eu
procurava pensar em formas de falar sobre Cristo sem tentar me tornar outra
pessoa.
— Bom dia, pai — falei ao me sentar na mesa da cozinha.
Pelo horário, minha mãe ainda deveria estar dormindo; enquanto ela
gostava de ficar até tarde, trabalhando, meu pai amava acordar cedo, dizia
render mais pela manhã.
E eu havia puxado isso dele.
— Nossa, filha, você está animada, o que aconteceu? — ele perguntou
com um sorriso.
— Deus é perfeito, é incrível a forma como Ele nos mostra mais dEle dia
após dia — desconversei, pegando minha xícara de chá.
— Vou fingir que acredito que você não está aprontando alguma coisa. —
Deixou um beijo em minha testa antes de voltar para o fogão, fazendo seu
café. — Fala logo, Marta Carolina.
— Quarta posso ir na Júlia? Ela e as meninas vão se reunir para discutir
sobre a festa. E, aliás, preciso de carona para ir ao centro comprar as coisas
da minha fantasia.
— É claro, você não sabe como fico feliz vendo você interagindo mais. E,
sobre ir ao centro, pode ser, também preciso comprar a minha, do seu pai e
do seu irmão. Uma pena que você não quis ir de ovelha — dona Lisa se
intrometeu na conversa, após chegar de supetão.
— Mãe! — Revirei os olhos. — Eu ficaria ridícula!
— Ficaria fofa, isso, sim. Mas, graças a Deus, Jonas é uma bênção e se
candidatou para o sacrifício.
— Literalmente — murmurei e ela deu risada.
— Acho que sábado conseguimos ir, você já viu os itens necessários?
Assenti e comecei a explicar para os dois a minha roupa. Eu estava
animada para saber se mais alguém descobriria a minha fantasia, o que eu
duvidava muito, então tentaria ser o mais verossímil possível.
Passei o resto da manhã ajudando minha mãe com as tarefas da casa, o
que me distraiu bastante dos meus pensamentos. E ao mesmo tempo refletia
sobre o que havia escrito há pouco, pensando em como melhorá-lo.
— Mãe… — comecei a falar, receosa.
Eu estava encostada no balcão da cozinha e enfiei a mão no bolso, um
pouco tensa. Daqui a pouco iríamos para a casa da Júlia; eu, para discutir
sobre o aniversário da minha amiga e minha mãe, para jogar conversa fora
com a Carla. A Carina estaria lá e eu precisava contar para minha mãe.
Após ela fazer sinal com a mão, continuei, tomando cuidado com as
palavras.
— Então — respirei fundo —, lembra daquela menina da igreja? A loira,
noiva do David?
— Sim, sim, Carina, né? Um amor de garot…
De repente ela se virou para mim e vi seu cérebro percebendo as
semelhanças dos nomes.
— É a sua amiguinha do mercado? — questionou com a boca aberta,
assenti, dando risada de sua reação. — Por que você não me contou? Ai, que
legal, filha, e ela vai estar na Júlia? — Confirmei de novo. — Own,
finalmente você está ampliando seu círculo de amizades, orei tanto por isso.
Revirei os olhos diante da melosidade dela, mas também não discordava.
Eu estava feliz por conseguir mais amigas. Tá, eu não podia chamá-las de
amigas, no máximo conhecidas, por enquanto. Porém já era muito além do
que pensava que teria de contatos.
Pouco depois, saímos em direção aos Mendes. Durante todo o longo
percurso de dois minutos, minha mãe foi falando sobre diversos assuntos e
vi que ela estava se segurando para não comentar de um certo rapaz. Fiquei
feliz por ver que ela estava se esforçando um pouco.
Gabriel estava saindo bem na hora que chegamos lá. Ele parou ao nos ver
e sorriu, cumprimentando-nos.
— Oi, Lisa, oi, Marta. — Tive a impressão de que o olhar do rapaz se
demorou um pouco mais quando falou comigo, mas logo ele se voltou para
nós duas. — Minha mãe está na sala e a Júlia, na varanda, perto da piscina
com as meninas, vocês já sabem o caminho. — Ele fez uma mesura com a
cabeça e abriu um sorriso para mim antes de se afastar portão afora.
Minha mãe arqueou as sobrancelhas, mas graças a Deus ficou em silêncio.
Entramos enquanto eu tentava controlar o tremor das minhas mãos.
— Ela chegou! — Ouvi o grito de Luísa quando passei pela porta da
varanda.
Vi as meninas acenando perto da piscina e me aproximei de lá. Como já
estavam todas sentadas, dei um “olá” geral antes de me sentar, assim
evitando cumprimentos com beijinhos e abraços.
O chão estava forrado com os mais diversos materiais, desde tecidos,
sulfite até uma caixa com discos de vinil para a escolha das músicas da festa.
— Estávamos discutindo sobre nossas fantasias, você vai de quê? —
Mariana explicou e me questionou logo depois.
— Boa sorte para ela te contar — Júlia falou por mim —, estou
implorando para saber e essa aí não diz nada.
— No dia vocês vão descobrir. — Dei de ombros, sorrindo com a
curiosidade delas.
— Ai, isso não vale. — Luísa bufou e deitou-se de costas no chão. — Eu
vou de ovelhinha. — Ela fez uma expressão angelical.
— E eu vou de pastora de ovelhas — Mariana completou, rindo. — Esse
desfile promete.
— Que desfile? — perguntei confusa.
— Ah, sim, a gente acabou de ter a ideia, todos que vierem fantasiados
vão participar de um desfile, em que no final a fantasia mais criativa ganha
um troféu, que precisamos decidir ainda — Júlia explicou. — E quem vier
com fantasia combinando vai desfilar junto.
— Hum, e será obrigatório? — perguntei como quem não quer nada.
A última coisa que queria era chamar atenção na frente de todo mundo.
— Eu até queria, mas Mariana votou na opção de deixar as pessoas terem
“livre-arbítrio” ao menos nessa escolha — Luísa explicou, levando-me a
arquear a sobrancelha com a sua indireta teológica. — Só quem quiser
mesmo, senão fica um clima chato. — Assenti concordando.
Elas seguiram perguntando sobre as fantasias e a maioria contou a sua,
exceto eu e a Nina. A loira alegou que queria fazer uma surpresa e ver a
reação das pessoas apenas no dia.
Júlia havia se retirado para pegar doce para nós e, poucos minutos depois,
a vimos caminhando brava em nossa direção.
— Gente, vocês não vão acreditar! — A loira gritava, carregando um pote
na mão. — O Gabriel comeu o nosso sorvete. — Ela ergueu o recipiente,
mostrando que estava quase no final.
— Isso tem toque de David, eles estavam juntos — Carina constatou
suspirando. — Acho que vamos precisar ir comprar mais, bora, gurias? —
Antes mesmo de ser respondida, a moça já levantava, batendo o pó da roupa.
Eu neguei, só queria ficar um pouco a sós, mas não expliquei o motivo
para elas. Porém a Luísa também falou que preferia ficar recortando as
coisas.
— Vocês três conseguem carregar as sacolas sozinhas. — A garota deu um
soquinho no ar, incentivando-as.
Elas balançaram a cabeça em negativa, mas logo se retiraram para ir
comprar os doces.
Como eu não queria ficar jogando conversa fora, foquei em recortar os
EVAs, até que ouvi a Luísa chamando-me com a voz trêmula.
— Oi. — Larguei a tesoura e concentrei-me nela, estranhando a sua
atitude.
Não fazia ideia de qual seria o assunto, porém, pelo seu tom de voz, era
algo sério.
A garota abriu e fechou a boca diversas vezes, pensando em como iniciar
o assunto, ela estava nervosa e não ousava me encarar nos olhos, mantendo
seu olhar em suas mãos — que por sinal mexiam sem parar no tecido da
saia.
— Marta, sei que nos conhecemos há pouco tempo, mas posso te
perguntar, meio revelar, algo?
Olhei-a sem entender, não tínhamos nenhum tipo de intimidade para ela
trazer algum segredo. Gaguejando, questionei se tinha certeza e ela
confirmou.
— Você conhece bem a Júlia, né? — Assenti. — E o Gabriel? Conhece
também? Vi vocês trocando algumas conversas e olhares.
Franzi a testa com o rumo da conversa. Comecei a ficar nervosa pela
menção do nome dele, com medo do que ela iria falar.
— Mais ou menos, na verdade você o conhece bem mais do que eu, por
quê?
Por fim, Luísa suspirou antes de questionar:
— Mas você é alguém atenciosa, enfim, você acha que o Gabriel gosta de
mim?
Por um momento, senti como se todo o meu chão tivesse sumido, mas,
para a minha sorte, estava sentada e consegui disfarçar o choque pela sua
pergunta.
— Como? — Foi a única coisa que consegui falar sem demonstrar o
turbilhão acontecendo dentro de mim.
— É… É que eu… — Ela fechou os olhos, puxando com força o ar antes
de continuar: — Eu sei, não somos próximas nem nada, mas é por isso que
te procurei. As outras gurias da igreja já sabem, então elas não serviriam de
muita ajuda. E eu queria a visão de alguém de fora, sabe? Alguém que não
estivesse por dentro do assunto.
Ponderei por longos minutos antes de pensar em qual resposta lhe dar. O
interesse dela nele era aparente, só não sabia se Gabriel já havia percebido
ou não.
— Luísa, eu… — comecei, mas fui interrompida pela garota.
— Espera, desculpa, deixa eu me explicar primeiro. — Assenti, feliz por
ter mais tempo para pensar. — Eu gosto do Gabriel tem, digamos, uns anos
já… — Ela mordeu o lábio, sorrindo sem graça. — Crescemos juntos, então
é meio automático acabar surgindo um sentimento. Eu até chorei bastante
quando ele e a Mari oraram juntos.
— O Gabriel e a Mariana já oraram juntos? — perguntei chocada e só
depois me arrependi, ao perceber a minha indiscrição.
— Ai, meu Deus, eu não devia ter falado isso, desculpa. — Ela colocou a
mão na boca, assustada. — Foi coisa boba, tem uns dois ou três anos só e
não deu em nada. Na verdade ambos não sentiam nada de nada um pelo
outro, só coisa de irmão mesmo, mas o pessoal da igreja ficava comentando
sobre o quanto formariam um belo casal, e realmente formariam — Ela
frisou, rindo. —, mas não era pra ser. Menos de quinze dias depois de
conversarem sobre isso, eles se tocaram de que não iria fluir, então acabou
aí, e até teve uma pregação beeemmm feia na igreja sobre os irmãos
defraudarem pessoas com insinuações assim e…
Ambas nos viramos assustadas ao ouvir um barulho, achando ser as
meninas, mas era apenas um carro passando na rua de trás.
— Enfim, deixa eu ir direto ao ponto, eu continuei orando e Deus nunca
me disse a resposta, e eu também era muito nova, então nunca teria nada
nessa época. E, assim, eu já tenho quase dezoito, já estou entrando no
“mercado de casamento” — Ela fez aspas com os dedos e dei risada junto do
termo. —, e fico pensando se talvez tenha chegado a hora.
Engoli em seco, escolhendo com cuidado minhas próximas palavras.
— Quais são os motivos para você pensar que ele pode estar gostando de
você?
— Você lembra do dia na pizzaria? — Assenti. — Então, eu cumpro todos
os requisitos, sonho em ser missionária, busco a Deus, tenho estudado para
ser uma futura esposa piedosa, sou extrovertida igual a ele, me dedico à
obra. Então formaríamos um bom casal. Ai, me fala sua opinião, estou
nervosa. — Ela deu risinhos juvenis enquanto batia as mãos na perna.
Ponderei sobre sua linha de raciocínio e, sim, ela seria a esposa perfeita, a
sonhada por Gabriel. Uma parte de mim relutou, contra a minha vontade, em
aceitar isso, mas eu precisava reconhecer o fato. E graças a Deus não estava
apaixonada por Gabriel, só cheguei a cogitar os sentimentos, mas não estava
apaixonada, isso era um fato. Orei sobre isso? Sim. Mas eu sabia que poderia
vir uma resposta negativa e deveria estar preparada para tal.
Porém, ao que tudo indicava, o rapaz ainda não retribuía o sentimento de
Luísa, por isso não podia incentivá-la.
— Bom, Luísa — comecei, escolhendo bem as palavras —, eu não sei te
dizer, mal conheço você ou o próprio Gabriel, então realmente não sei falar
se ele gosta de você — falei calma, esperando sua reação.
— Você acha que eu deveria me declarar? Eu já tentei demonstrar de
outras formas, mas ele nunca disse nada. — Ela abaixou os olhos,
suspirando.
Nesse momento me compadeci da menina à minha frente. Eu não sabia
como era estar tão apaixonada assim, nunca cheguei a ter tal sentimento, a
primeira vez estava sendo agora com Gabriel, mas não chegou a florescer
tanto, podei logo cedo. Ela o guardava há anos já.
— Olha, eu ouvi um texto há algum tempo e pode ajudar. — Respirei
fundo, ajustando a postura. — Era alguma coisa assim: “O que você deve
fazer para chamar a atenção do rapaz por quem você está interessada? Nada,
quero dizer, nada que o envolva. Não telefone para ele, não envie um
bilhetinho com o desenho de uma flor, de um sorriso, ou de um peixinho ao
lado da assinatura. Não se aproxime dele no corredor para dizer: ‘Preciso
muito conversar com você!’. Não aparente tristeza perto dele, não finja que o
ignora, não corra atrás dele. Não lhe faça favores especiais, não conte a nove
amigas ‘íntimas’ — Fiz aspas com os dedos. —, de seus sentimentos por
ele.”1
— Então, o que eu posso fazer? — ela questionou chocada.
— Nesse texto, a Elisabeth Elliot diz para entregar tudo na mão de Deus;
se ele for o homem que Deus lhe tem preparado, “O Senhor dá graça e
glória; nenhum bem sonega aos que andam retamente.” Aplique-se em
obedecer ao Senhor em pureza e santidade, e não em “garantir” o seu
“homem”. Deus tem seus próprios planos para que você e seu futuro esposo
se conheçam. Não precisa de sua ajuda nem de seus conselhos.1
Ficamos uns minutos em silêncio enquanto ela absorvia e pensava, eu não
fazia ideia do rumo de seus pensamentos, mas, pela sua expressão, eu a tinha
pegado de surpresa.
— Além do mais — continuei —, se ele estiver interessado, vai procurar
você e os seus pais para isso, não fique ansiosa ou criando expectativas com
algo fora do seu controle.
— Eu fiz tudo que você, ela, mandou não fazer — Luísa murmurou sem
me encarar, sua voz estava embargada, demonstrando que segurava o choro.
— Obrigada pelos conselhos.
Desobedecendo ao meu próprio instinto de afastamento, engatinhei até ela
e a abracei com força, buscando demonstrar estar com ela ali.
— Entregue tudo nas mãos de Deus — falei ao me afastar. — Não é
fácil… Como eu sei que não é! Luto dia após dia, mas Ele sabe o melhor
para nós. — Ela concordou com a cabeça. — E — Fiz uma pausa, pensando
se seria o certo a contar, mas, como estávamos só nós duas, não faria mal.
—, uma coisa que me ajuda, eu escrevo cartas para o meu futuro marido.
— Como assim? Você já tem um pretendente? — ela questionou, levando
a mão à boca aberta. — Me conta tudo!
— Não, não faço nem ideia de com quem, ou se, eu vou me casar um dia,
mas, desde os meus doze anos, escrevo cartas para ele. Às vezes é um
desabafo, às vezes conto alguma situação que aconteceu comigo, e outras
vezes são apenas orações pedindo para Deus guardá-lo e guiá-lo até o dia em
que nos conhecermos.
— E você escreve com que frequência? — Ela me olhava com interesse e
curiosidade.
— Uma vez por mês, às vezes mais, mas todo mês escrevo uma. Isso me
ajuda a orar por ele e a me guardar.
— E-eu acho que vou começar a escrever também, obrigada! — Ela se
aproximou, dando-me mais um abraço apertado. — Sei que nos conhecemos
há pouco tempo e você nem é muito mais velha, mas já te admiro como uma
mulher piedosa e espero que possamos ser mais amigas — ela falou olhando
nos meus olhos.
Nesse momento senti a garganta fechando e fiquei emocionada com o seu
relato. Agradeci meio sem jeito e, ao que tudo indicava, terminamos a
conversa na hora certa, pois as outras meninas tinham acabado de chegar.
— Comprei sorvete, bolacha, marshmallow e tudo a que temos direito —
Júlia falou colocando as sacolas no chão.
Pela reação delas, não haviam percebido a situação ocorrida há pouco e
fiquei feliz por isso, era melhor aquela conversa permanecer apenas entre
nós duas.
— Estou vendo que não vou entrar no vestido de casamento — Nina
gracejou, abrindo um dos pacotes de doce.
Capítulo Oito
“Olha eu tô desconfiando
É sintoma de amor
Mas eu não tô vacinada
Só te peço agora por favor
Cuida do meu sentimento
Eu tive medo de me apaixonar
De repente aconteceu e algo me diz
Que eu vou te amar”
(Pamela - Sintoma de Amor)

As semanas até o culto na praça passaram surpreendentemente rápido.


Após a conversa com a Luísa, eu parei de orar sobre mim e o Gabriel. Não
me sentia bem fazendo isso, não com alguém tão próximo de mim gostando
dele.
E meus conselhos para ela também serviram para mim, Gabriel não era o
único rapaz piedoso que eu encontraria na vida. Então, eu deveria entregar
meu coração apenas ao escolhido por Deus.
Porém eu também não me afastaria completamente.
Nessa nossa pouca convivência, Gabriel se mostrou um bom amigo,
alguém com quem eu podia contar. Claro, não seríamos melhores amigos,
mas não faria mal conversarmos. E ele era uma das poucas pessoas com
quem eu me sentia bem em estar perto.
Suspirei, segurando o papel, estava com medo de ele rir da minha cara,
mas a nossa conversa sobre se arriscar pelo evangelho me vinha à mente.
Com esse incentivo, me levantei para ir até a casa de Júlia. Os Mendes me
dariam carona até a praça, pois meus pais só poderiam ir à noite.
Ao ver Gabriel no portão da casa dele, senti um frio na barriga, era a
primeira vez que ficaríamos a “sós” desde minha conversa com Luísa, e meu
coração ainda relutava um pouco.
— Oi — cumprimentei ao chegar perto.
— Oi, Marta. — O rapaz se desencostou do portão e me cumprimentou
com a cabeça, não forçando nenhum contato físico. — Como você está?
— Estou bem, obrigada. Aliás, a Júlia já está vindo? — perguntei antes de
entrarmos em algum assunto pessoal.
— Sim, ela está terminando de se arrumar. — Ele abriu a boca para falar
mais alguma coisa, mas a fechou em seguida.
Precisei conter o bichinho da curiosidade que se apoderou de mim.
Encostei no carro e fiquei brincando com o laço do cinto da calça, esperando
passar o tempo.
De repente me lembrei do papel em meu bolso e ele pareceu ganhar um
peso a mais. Abri a boca para falar com Gabriel sobre isso, mas algo me
conteve, então achei melhor ficar em silêncio e tentar em outro momento.
— Marta… — Gabriel me chamou e ergui a cabeça, curiosa para ouvi-lo,
mas ele foi interrompido pela irmã.
— Cheguei! — Júlia gritou, saindo do portão. — Que tal? — Ela deu um
girozinho, exibindo-se.
Levei a mão à boca, segurando o riso ao ver a garota. Ela estava de maria-
chiquinha com uma roupa toda colorida, além da maquiagem também
variando em tons divertidos.
— Tá linda, Ju. — Gabriel deu um beijo em sua testa, sendo empurrado
logo depois por ela, alegando que ele bagunçaria seu cabelo. — Agora
vamos? Estamos atrasados.
— Vamos!
Assim como da última vez, o rapaz abriu a porta para eu e Júlia entrarmos.
Ela se sentou ao seu lado, enquanto eu fui no banco de trás.
A conversa durante o trajeto girou toda ao redor do evento. O tal de Tiago
era um antigo membro da nossa igreja, porém ele manteve a amizade com
todos e, por isso, uniriam os jovens de ambas as igrejas para uma causa
maior.
O grupo trabalhou arduamente no último mês para conseguirem organizar
todas as coisas. Eu fiquei admirada com a dedicação do pessoal nisso, todos
fazendo a sua parte e resultando em algo maravilhoso.
Em diversos momentos, me questionava onde estive nos últimos seis
meses, para chegar ao ponto de não conhecer nem me envolver em nada
assim. Claro, Júlia me falava sobre tudo, mas eu negava me envolver com
tanta veemência que ela, com o tempo, parou de convidar. Realmente,
conforme Gabriel tinha dito, a minha timidez me privou de muitas
experiências.
Ao chegarmos, Júlia foi correndo se encontrar com as meninas e terminar
os últimos preparativos para as crianças. Além de Luísa, havia mais algumas
mulheres, e até uns rapazes desconhecidos, fantasiados para a causa.
— Você vai ficar na equipe de apoio, né? — Gabriel questionou, vendo-
me avaliar o local.
Assenti com a cabeça, esperando-o ir embora, mas o rapaz continuou:
— Então se eu precisar de alguma coisa já sei de quem encher o saco. —
Ele deu uma piscada para mim e saiu em direção a outro grupo de pessoas.
Eu odiava isso, detestava como ele falava alguma frase de efeito e saía
como se não tivesse acontecido nada. Respirei fundo e procurei por Mariana,
ela era a líder do meu grupo. Encontrei-a perto das caixas de som com uma
prancheta em mãos.
— Oi, Mari — falei, aproximando-me dela. — Precisa de algo?
— Oie, graças a Deus você apareceu, preciso de alguém para me ajudar a
contar as Bíblias. Conseguimos parceria com uma editora e recebemos
várias como doação, então não sabemos nem a média de quantas temos.
— Hum, claro, onde estão?
Ela apontou para umas caixas fechadas perto dos bancos. Fiquei feliz em
me envolver em um trabalho em que não precisaria conversar com outras
pessoas.
— Vou ver se acho alguém para te ajudar — ela falou, já saindo apressada.
Ao chegar, me vi um pouco perdida, pois as caixas estavam lacradas e eu
não tinha nada para rasgar. Fiquei alguns minutos pensando, quando senti
alguém atrás de mim.
— Oi, moça bonita, precisa de ajuda? — Virei, levando um susto ao ouvir
uma voz masculina por trás. Era um rapaz, devia ter seus vinte e poucos
anos, e possuía cabelos negros encaracolados. Ele exibia um estilete em
mãos e sorria.
— Olá — respondi.
— Prazer, eu sou o Matheus, mas pode me chamar de Mah ou de Theus!
— Ele escondeu a mão com o objeto atrás das costas e colocou a outra à
frente para me cumprimentar.
— Olá, meu nome é Marta, agora você pode, por favor, abrir as caixas? —
falei, começando a me irritar com a brincadeira idiota dele.
— Xi, já te falaram que uma menina tão bonita não pode ficar tão séria
assim? Tenho certeza de que seu sorriso é lindo, devia exibi-lo mais. —
Arqueei a sobrancelha, perplexa pela ousadia dele.
Vendo que sua tentativa foi fracassada, o rapaz assentiu e finalmente abriu
as caixas.
— A Mari me mandou para te ajudar.
— Ah, sim. Então, você conta dessa caixa e eu conto desta. — Dei as
ordens, esperando que ficássemos em silêncio enquanto contávamos.
Mas, para a minha tristeza, não aconteceu dessa forma. Ele continuou com
gracejos, alegando querer tirar um sorriso meu, elogiando as coisas mais
absurdas em mim e fazendo comparações bobas. Diversas vezes perdi a
contagem por causa do rapaz e devo ter exibido meu descontentamento em
meu rosto, pois logo vi Gabriel caminhando em nossa direção com uma
expressão séria.
— Está tudo bem aqui? — ele questionou, olhando para mim.
— Oi, Gabriel. — Não tive tempo de responder, pois Matheus me cortou
com uma voz séria, perdendo o carisma de minutos antes. — Achei que você
ficaria com o louvor, não ajudando na equipe de apoio. — Estufou o peito,
encarando-o. — Eu e a Martinha estávamos numa nice aqui, vai procurar
algo para fazer.
— Oi, Matheus — ele respondeu no mesmo tom. — Marta, preciso
conversar com você. — Ignorou a segunda afirmação e, com um aceno da
cabeça, me indicou para segui-lo.
Deixando a minha anotação certinha, fui atrás dele, aliviada por me afastar
dali.
— Ele te falou alguma coisa indevida? — Gabriel perguntou, virando-se
para mim após estarmos a uma distância considerável.
— Nada demais. — Balancei a cabeça em negativa, não causaria encrenca
por causa de comentários bobos. — Vocês dois já se conheciam?
— Infelizmente. O Matheus é um velho conhecido já e um galanteador de
primeira. Ele estava gracejando, não estava?
— Um pouco. — Assenti, sem graça pela situação. — Mas dá para
perceber o tipo de rapaz que ele é.
— Massa, quer me acompanhar? Estou indo comprar uma bebida. —
Hesitei, pensando na contagem das Bíblias, mas concordei, sem vontade de
voltar para lá. — Eu fico revoltado vendo rapazes cristãos agindo assim —
Gabriel continuou a falar enquanto andávamos —, você, graças a Deus,
percebeu o tipo de rapaz que ele é e não se influenciou, mas muitas moças
carentes caem nesses “elogios” e são defraudadas depois, pois eles não
querem nada com ninguém — desabafou.
— É uma tristeza isso, as próprias mulheres mostram não saber o seu
valor, pois do que valem elogios se as atitudes não demonstram o mesmo?
Claro, isso mostra a carência no coração delas, ao se apegarem a
reafirmações assim e esquecerem seu valor em Cristo.
Gabriel estava pagando o suco quando parou e se virou para mim, então
abriu um daqueles sorrisos de lado dele, olhando nos meus olhos.
— É por isso que gosto de conversar com você. — Ele se virou para o
atendente antes de continuar. — Nossas conversas sempre são produtivas,
nos levando a olhar para Cristo.
Um frio na barriga me dominou com a fala dele, mas consegui responder
em um tom normal, ou assim eu espero. Não ficaria remoendo aquilo.
— E nós tivemos o quê? Três, quatro conversas longas? — Cruzei os
braços, encarando-o com a sobrancelha arqueada. — Como você pode ter
certeza disso?
— Simplesmente porque, mesmo com tão poucas conversas, todas nos
levavam para a Bíblia. Já está predestinado.
— O quê?
— A nossa amizade! — Deu uma piscadela e abaixou a cabeça, rindo. —
Aliás, já que tivemos três ou quatro longas conversas, posso te chamar de
Martinha também?
— Martinha? — Franzi a testa, eu detestava aquele apelido, fazia eu
parecer uma criança.
— É fofo, tem problema eu te chamar assim? O Matheus chamou na
primeira conversa. — Ele se virou com uma falsa inocência nos olhos, mas
um sorriso zombeteiro em lábios, tirando sarro do meu desespero de
momentos antes.
— Não somos íntimos a esse ponto, piá[4]. — Cerrei os olhos, mas me
denunciei ao não conseguir segurar o riso com a sua expressão pelo termo
usado.
— Tá bom, Martinha. — Ele soltou antes de sair do alcance do meu tapa.
Eu só revirei os olhos e, após agradecer o vendedor, o segui. O nosso
percurso foi regado a risadas e brincadeiras — da parte dele, para deixar
claro. Eu apenas balançava a cabeça com as suas palhaçadas.
Um pouco antes de chegarmos ao lugar onde estavam as Bíblias, Gabriel
segurou em meu braço, obrigando-me a parar.
— Desculpa se eu exagerei na brincadeira, não queria te magoar.
— Tudo bem, só não me chama de Martinha, não gosto desse apelido. —
Ele fez uma continência, levando-me a dar risada enquanto caminhava rumo
às Bíblias.
Durante todo o resto da contagem, não consegui tirar um singelo sorriso
dos lábios, lembrando da conversa com Gabriel. Era incrível como a cada
momento ele ia me tirando do meu casulo particular.
De novo senti o coração balançar, mas fiz uma oração pedindo para Deus
guardá-lo. Eu não me apaixonaria por ele, apenas criaria uma amizade
saudável, deveria aprender a olhá-lo como irmão em Cristo.
De onde eu estava, tinha a visão da equipe infantil e comecei a me
questionar se Gabriel possuía algum sentimento pela Luísa; parte de mim
torcia para que sim, não queria pensar como ela ficaria caso ele se
envolvesse com outra mulher.
Graças a Deus, Matheus não me atazanou mais com seus comentários, ao
menos eu achava que não, triste engano.
— Marta, você e Gabriel estão namorando?
Capítulo Nove
“É impossível
Que a chuva volte ao céu
Sem molhar o chão
E crescer as flores
É impossível ouvir a minha voz
E dizer não”
(Hipona - Graça)

— O quê? — Minha voz deve ter saído um pouco, muito, mais alta que
o normal, pois algumas pessoas em volta nos olharam. — De onde você
tirou isso? — perguntei em um tom mais baixo.
— Ah, vocês saíram juntos e ele ficou com um sorriso bobo. Mas vocês
devem estar de rolo, então? Quem diria, hein? Gabriel de maio[5]
com
alguém…
— Eu e Gabriel não estamos de rolo — falei com horror só de pensar
nessa possibilidade. Um dos meus princípios básicos era não sair por aí
beijando um monte de bocas antes do altar. — Somos apenas amigos, só
isso.
— Eita, desculpa, bicho, foi só uma suposição, não precisava ficar assim.
Bufando, assim que terminei a contagem, saí dali antes de me estressar
mais ainda.
Tudo que eu mais queria no momento era fugir do meu próprio coração,
mas as pessoas ficavam criando suposições bobas, levando-me a cair cada
vez mais nele.
— Tudo bem, Marta? — Mari perguntou assim que eu cheguei perto dela.
— Sim, por quê?
— Você está com cara de quem lambeu limão azedo. O Mah não é dos
mais agradáveis, mas não sabia que seria tão ruim assim.
Balancei a cabeça negando e entreguei a lista, não iria lhe explicar o
conteúdo da nossa conversa, nem louca. Após conferir, ela me dispensou
dizendo apenas para prestar atenção para o caso de alguém precisar de ajuda.
O resto da tarde foi tranquila, eu era chamada com as pessoas pedindo
água, ou para repor o estoque das Bíblias, ou apenas para baterem um papo e
desestressarem das histórias ouvidas.
Essa última parte foi a mais difícil para mim. Estranhei quando Nina me
pediu uma garrafa de água e aproveitou a oportunidade para desabafar sobre
o relato de uma das mulheres abordadas, em que ela contou traumas sofridos
na infância. A garota à minha frente começou a chorar de repente e eu não
soube reagir ou falar, então apenas a reconfortei, dedicando meu tempo a
ouvir.
A experiência da tarde foi boa, pois compreendi que uma guerra não se
fazia apenas da linha de frente. Outras pessoas “menos importantes” também
eram essenciais para a vitória, havia a necessidade de enfermeiros ajudando
os soldados, de gente para socorrê-los.
Meio emocionada com a minha nova descoberta, sentei-me em um dos
bancos e fiz uma oração sincera, pedindo a Deus para me fortalecer e dar
sabedoria nisso. Quantas vezes queria dar bons conselhos, mas as palavras
não saíam da minha boca, eu tentava falar, mas não me sentia sábia para isso
e, quando dizia algo, não parecia ser suficiente para ajudar.
Ao erguer a cabeça, meus olhos foram direcionados a Gabriel. Eu me
arrependi de não ter aproveitado nossa interação mais cedo para entregar o
papel com o meu poema, mas, tomando uma dose de coragem, fui até onde
ele estava.
— Gabriel? — chamei-o com um tremor na voz.
Eu ainda não estava certa da minha decisão, mas a nossa conversa sobre
me arriscar pela Palavra se repetia a todo momento na minha cabeça.
— Oi.
— Podemos conversar a sós? — pedi, arrependendo-me logo depois.
Ele me encarou confuso, mas, após se despedir das pessoas com quem
conversava, assentiu, caminhando comigo até um lugar mais afastado da
multidão, onde teríamos privacidade para conversar — mas ainda à vista de
todos.
— Aconteceu alguma coisa? — questionou preocupado.
— Sim, não, mais ou menos. — Suspirei e fiz uma pausa para organizar
meus pensamentos. Eu estava nervosa e meu corpo mostrava isso, como o
suor nas mãos, o coração disparado e as pernas tremendo. — E-eu vou
querer fazer uma apresentação pro evangelismo.
A reação de Gabriel foi imediata, ele arregalou os olhos e abriu a boca,,
mostrando não esperar aquilo.
— É que e-eu escrevi um negócio e... — Percebi, então, como era inútil
aquilo, eu não iria conseguir. — Quer saber? Esquece, desculpa por tomar
seu tempo — falei já me afastando.
Porém senti Gabriel segurando minha mão e puxando-me de volta para
ele. Mas, ao invés de soltá-la, o rapaz continuou a segurando. Por
consequência, senti meu coração disparar e não sabia dizer se era culpa do
nervosismo pelo pedido que fiz ou da nossa proximidade.
— Ei, me fala, o que você escreveu? — pediu olhando nos meus olhos.
Desviei o olhar e o abaixei para o meu bolso, retirando, com a mão livre,
um papel dobrado de lá. Engoli em seco antes de começar a me explicar:
— Eu gosto de escrever, e estava pensando muito sobre a nossa conversa
naquele almoço lá em casa, em que você falou sobre a timidez e o nosso
pecado. — Fiz uma pausa, para ver se Gabriel me acompanhava, e ele
assentiu, indicando para eu continuar. — Então pensei em escrever um
poema, não sei se é uma coisa infantil, mas só queria tentar, sabe? Tentar
falar um pouco sobre Cristo. — Mordi o lábio e o olhei de esguelha,
esperando sua reação.
— Posso ler? — ele questionou, estendendo a mão para o papel.
Entreguei e abaixei meus olhos, sem coragem para encará-lo. Gabriel,
então, soltou meus dedos, para poder segurar com firmeza o papel. Comecei
a esfregá-los, sentindo um formigamento no local que ele segurou.
Seus olhos passaram de um lado para o outro da página por alguns
segundos, mas que para mim pareceram horas de espera. Após terminar, o
rapaz dobrou a folha com cuidado.
— Marta, isso está incrível.
— Sério? — questionei desacreditada.
Ele era a primeira pessoa a ver qualquer tipo de escrito meu e, para mim,
isso ainda era algo estranho. Em todos esses anos, Gabriel também foi a
primeira pessoa em que eu confiei para mostrar algo tão íntimo assim.
— Sim, está, muito. — Ele abaixou a cabeça, buscando meu olhar. Ao
encará-lo, vi sinceridade em sua fala e tive um sentimento estranho no peito.
— Eu posso lê-lo? Ou você prefere ler?
— Então, esse era um outro pedido que gostaria de fazer, eu queria que
fosse anônimo.
— Mas...
— Gabriel — Interrompi antes de ouvir seus argumentos. —, eu já estou
me arriscando demais, nunca ninguém tinha lido nada meu, então, por favor,
não conte para ninguém quem escreveu. Talvez no futuro eu tenha coragem
de me revelar, mas agora prefiro que isso fique só entre nós dois.
— Tudo bem, obrigado por dividir esse segredo comigo. — Ele abriu um
sorriso e guardou o poema em sua calça. — Me sinto extremamente feliz e
honrado por isso, milady — brincou.
Gabriel, então, fez um gracejo e depositou um beijo na minha mão,
finalizando com uma pequena reverência. Eu ri da bobagem dele antes de o
rapaz se afastar em direção aos amigos.
Balancei a cabeça e fui terminar de me preparar para o culto dali a alguns
minutos.
Enquanto procurava um lugar para me sentar, me veio o pensamento de
Gabriel acabar contando quem era a autora do poema, por causa de sua
ousadia tão comum. Mas fechei os olhos, procurando pensar em outra coisa,
torcendo para que ele não fizesse isso.
O culto estava prestes a começar e eu já havia arranjado um lugar em um
banco de madeira para poder assistir.
Gabriel caminhou em direção ao microfone e o vi retirando o poema de
seu bolso. Nesse momento, senti o coração disparar, quase saindo pela boca,
comecei a esfregar as mãos na roupa, tentando disfarçar o nervosismo. Eu
torcia para ele não falar nada sobre a autoria, realmente esperava por isso.
— Boa noite, irmãos, sejam todos bem-vindos ao nosso culto na praça.
Bom, enquanto o grupo de louvor se prepara, gostaria de ler um poema para
iniciar o culto.
Ele limpou a garganta antes de começar a ler em voz alta:
— “Ao sair nas ruas
Meu guia Tu és, ó Senhor
Sobre as Tuas maravilhosas obras
Contarei aonde eu for
Pessoas cruzam o meu caminho
Algumas estão perdidas em si mesmas
Outras não sabem bem o que fazem aqui
Mas de uma coisa eu sei
Apenas Cristo poderá alcançá-las e trazer a esperança do que está por
vir
Ainda não sei o que o Senhor viu em alguém como eu
Pobre, pecador e miserável
Mas, um dia, a Tua luz raiou,
Tirou-me do fundo do poço e me socorreu
Hoje eu vivo para Ti
Vivo para levar o Teu amor
Àqueles que perdidos estão
E necessitam de um Salvador
O Evangelho é pregado nas ruas
Teus filhos cumprem a missão
Os que receberam a Tua Graça
Compartilham com o mundo as
Boas novas de Salvação
‘Ide por todo o mundo e pregai o evangelho a toda criatura’
Essa foi a ordem que o Senhor nos deu
E eu farei o que for preciso
Para levantar o necessitado e o abatido
Na força do Teu poder e para a glória do Deus bendito
Ajuda-me a confiar
Ajuda-me a obedecer-Te
Ajuda-me a perseverar
Quero conhecê-lO e fazê-lO conhecido
Quero levar Tua palavra a quem nunca a ouviu
Falar a todos que És onipotente,
Onipresente, Deus forte, Príncipe da Paz
E ser útil ao Teu reino enquanto o ar entrar em minhas narinas
E depois descansarei desta vida
Tendo a certeza de que minha missão foi cumprida
Não quero mais desperdiçar nenhum dia
Longe da Tua obra
Sei que vidas serão transformadas
E não vai ser mérito meu
Pois é tudo pela Graça
A graça que me envolveu”[6]
Meus ouvidos se fecharam quando ele terminou de recitar o poema. Eu
fiquei com tanto pavor e medo das opiniões que parei de ouvir tudo ao redor.
Meu coração batia alto o bastante para sobrepor as conversas.
Só percebi o passar do tempo ao ver o grupo de louvor se organizando,
entre eles estavam Gabriel, Luísa e Nina, além de membros de outras igrejas.
Após três músicas, David iniciou a pregação sobre os perdidos.
O rapaz falou com desenvoltura e em uma linguagem jovial sobre as
Doutrinas da Graça, exemplificando cada um dos pontos, desde a nossa
depravação total até a necessidade de um salvador e nossa incapacidade de
procurá-lO sozinhos.
A forma como David explicava atraía a atenção, pois era um conteúdo
bem teológico, mas saía na linguagem daqueles que não conheciam os
jargões “gospel”. Porém ele não enfeitou o evangelho, apenas simplificou-o
para leigos.
Quando percebemos, a praça estava bem mais cheia do que no começo,
muitos se amontoavam para tentar ver quem era o jovem a pregar.
E, mesmo sem um discurso emocionalista carregado de idealismos fofos,
muitos dos ouvintes começaram a chorar, dando-se conta do seu estado.
Claro, também foram muitos a ignorar aquilo, ou a sair reclamando sobre
estar tendo algo em praça pública. Porém nosso propósito inicial era que, se
ao menos uma alma fosse tocada, já teria valido todo o esforço.
— Bom, não sei quem você é, não conheço sua vida nem seu passado,
mas, mesmo com tudo isso, Cristo morreu na cruz por todos os seus pecados.
Não somos justos por obras da lei, somos declarados justos pela fé. Então,
caso você tenha se encontrado como um dos injustos, reconhecendo ser um
pecador miserável que carece da graça de Deus, e queira conversar, procure
um de nós. Somos a patota [7]com blusa preta de cruz. — David segurou na
própria camiseta para mostrar.
Aos poucos o público foi se dispersando. Vários foram embora, mas
outros ficaram e procuraram a equipe.
Como eu estava na equipe de apoio, graças a Deus não iria me envolver
com a parte de conversar, até as camisetas eram diferentes para não me
confundirem com a equipe do evangelismo.
De longe eu observava todos, prestando atenção se em algum momento
seria solicitada minha ajuda. Os grupos foram divididos de duas em duas
pessoas, sendo sempre um homem e uma mulher juntos.
Em determinado momento, vi Gabriel sinalizando para mim. Estranhando,
caminhei até o rapaz.
— Marta, você pode ficar rapidinho comigo? A Júlia precisou dar uma
saída e não podemos ficar sozinhos.
Assenti, sem saber como reagir, não havia me preparado nem participado
do “treinamento” para aquilo. Após alguns segundos, uma moça se
aproximou querendo conversar e me vi entrando em desespero.
Gabriel, vendo meu estado, segurou com calma minha mão. De forma
mágica ele conseguiu me passar segurança e tranquilidade, tanto com aquele
gesto quanto com seu olhar.
A mulher começou a desabafar, deixei tudo no encargo de Gabriel para
questionar, ficando apenas a ouvir.
Ela contou sobre sua relação com os pais, sobre quando o pai a expulsou
de casa por ter começado a namorar aos quatorze anos e sobre o quanto ela
sofria na mão do esposo agora. Em poucos segundos, ela começou a chorar e
eu, sabendo que seria indelicado para o Gabriel, por ser homem, fiz o
sacrifício e passei com carinho a mão em suas costas, mostrando estar ali.
O Mendes entrou apresentando versículos bíblicos e ele não poupou em
mostrar o pecado dela ao desobedecer os pais envolvendo-se tão nova em
um relacionamento, porém também mostrou o erro dos pais dela ao não
saberem ensiná-la da maneira correta.
— Você, como cresceu em um lar evangélico, conhece sobre Adão e Eva,
certo? — Ela assentiu. — Então, a partir do momento em que os dois, sendo
os representantes de toda a humanidade, comeram do fruto proibido, eles
caíram em pecado e trouxeram isso para toda a sua descendência. Como o
rapaz disse agora há pouco — Gabriel apontou para onde David havia
pregado. —, todos pecamos e carecemos da glória de Deus. E esse pecado se
mostra em tudo, desde a sua desobediência até o erro dos seus pais. E o
único capaz de nos salvar é Cristo! Por isso você deve se arrepender, pois,
mais do que ter pecado contra seus pais, você pecou contra o próprio Deus.
Nesse momento, a mulher se encontrava aos prantos e me abraçou de lado,
aconchegando-se. Apertei-a, pensando em quanto tempo ela deveria estar
sem receber um abraço sincero ou um carinho sem segundas intenções.
— E-eu fiz tantas coisas erradas, blasfemei contra Deus, não sei se tenho
perdão, nem ao menos o mereço.
Nesse momento, senti um incômodo, um aperto no coração empurrando-
me para falar. Mesmo lutando contra esse ímpeto, quando vi já estava
falando.
— Sabe, quando Jesus morreu na cruz, Ele levou todos — Dei ênfase. —
os nossos pecados, não apenas os que nós pensamos ser os mais leves ou os
piores, mas todos eles. E, a partir do momento em que achamos que não
temos perdão, estamos invalidando o sacrifício dEle, dizendo que não foi
suficiente para nos salvar. Claro, devemos ter consciência de que estamos,
sim, ofendendo a Santidade quando caímos e erramos, mas também devemos
entender que fomos perdoados para a glória de Deus. Não, nós não
merecemos perdão, mas ele nos foi dado, é a graça. Lembra a passagem da
mulher adúltera? Jesus não a condenou, Ele impediu os líderes de matá-la a
pedrada, porém também declarou a ela: “Vá e não peques mais.” Ela foi não
apenas perdoada como também chamada ao arrependimento. Confesse seus
pecados a Ele, peça perdão e arrume a sua vida.
Ao terminar de falar, eu estava surpresa comigo mesma e com a forma
como as palavras saíram da minha boca, sem o meu controle ou sem eu
pensar nos detalhes de cada uma delas, como fazia normalmente.
Gabriel, então, tomou a frente, completando a minha fala e, por fim,
fizemos uma oração pela vida dela. Ele lhe disse para procurar uma igreja
onde pudesse ter acompanhamento e aconselhamento nessa caminhada.
Antes de ir embora, a mulher me deu um forte abraço, agradecendo e
dizendo que fomos instrumentos de Deus na vida dela.
Assim que ela se retirou, um peso saiu de mim e eu me dei conta do que
havia acabado de fazer.
— Muito bom, Marta — Gabriel falou sorrindo ao me ver em choque.
— Eu não sei como falei aquilo, é sério.
— Deus usa quem Ele quer e onde Ele quer. E, como ela disse, Ele te usou
para falar com aquela mulher, te dando sabedoria nas palavras. Eu amo essa
sensação, sei bem como é!
Capítulo Dez
"O amor não é cor, ele é simples demais
Como a brisa ele vem no frescor da manhã
Mas foi no teu olhar então
Que eu pude perceber
Que as cores do amor vejo em você"
(Fernanda Brum - As Cores do Amor)

Era um sábado, final da tarde, quase anoitecendo, e eu estava deitada na


cama pensando em algo para fazer até dar a hora de dormir, quando ouvi um
grito de papai da sala.
— Marta, é a Júlia!
Respirei fundo caminhando até a sala, onde ficava o único telefone da
casa. Pelo valor cobrado, eram raras as ligações e, quando feitas, eram
rápidas. Por isso a chamada durou menos de cinco minutos.
Mal desliguei e já fui até o quarto onde minha mãe passava as roupas.
— Mamãezinha linda do meu coração — gracejei, abraçando-a por trás.
— O que você quer, Marta Carolina? — Ela cruzou os braços me
encarando.
— Então, a Ju me chamou para ir na casa dela jogar tabuleiro, talvez
assistir a algum filme e também dormir lá! — Enfiando a mão no bolso,
olhei para ela com expectativa, esperando que ela me deixasse ir.
— Só você e ela?
— Não, o Gabriel vai estar, a Nina com o David, mas, até onde sei, ele
não vai dormir, só jogar.
— Marta, não sei…
— Mãe, eu vira e mexe durmo lá, além do mais, é uma oportunidade de
me aproximar de talvez mais uma amiga. — Tentei apelar para o emocional
dela.
Eu estava entediada e, surpreendendo até a mim mesma, queria um pouco
de interação. As últimas semanas estavam me transformando, pois eu estava
gostando de conversar e ter mais amizades.
— Tá bom, mas seu pai vai te levar, porque está anoitecendo já.
— Te amo! — falei dando um beijo na bochecha dela.
— Só quando quer alguma coisa.
Dando risada, fui até meu quarto arrumar a minha mochila para passar a
noite. Como dessa vez teriam homens lá também, preferi não levar um
pijama em si, e, sim, uma roupa mais leve para me vestir com decência.
Logo, meu pai apareceu para me apressar alegando que em breve
começaria seu show de TV, então, se eu não me adiantasse, não iria também.
Após conferir tudo, saímos, a pé mesmo, até a casa da Júlia. Ele
murmurou um “se cuida e vigia” antes de me observar ir até a porta onde a
moça já me esperava.
Ao entrarmos, vi que os colchões já estavam espalhados no chão e
diversos pacotes de guloseimas também.
— Gabriel foi com David alugar alguma fita e depois pegar a Nina na casa
da tia, e mamãe se trancou no quarto dela para não atrapalhar a gente, mas
avisou que vai descer algumas vezes para dar uma olhada. — Ela explicou
enquanto subíamos até o seu quarto. — Estou vendo que vou segurar vela
hoje — Júlia murmurou quando sentei na cama dela.
— E por quê? — Franzi a testa fingindo não entender o motivo. — O
único casal é David e Nina.
Não que eu fosse sonsa, tinha percebido a intenção da fala dela, mas
preferi ignorar pelo bem da minha saúde mental.
— Esquece. — Ju bateu a mão no ar. — Me ajuda a arrumar o quarto? As
meninas vão dormir aqui.
Revirei os olhos com o seu pedido sem vergonha, mas já levantei
auxiliando minha amiga a dobrar as cobertas, guardar o material da escola e
tudo o mais naquele quarto bagunçado. Então descemos para a sala,
terminando de ajeitar as coisas lá embaixo.
Quando chegaram, Gabriel me cumprimentou com um aceno de cabeça e
correu para cima, alegando precisar tomar um banho. Já Nina me deu um
abraço com dois beijinhos no rosto e David, apenas um aceno de longe
também.
— Marta, você vai no acampamento de férias? — Nina me questionou.
— Eu não sei, não estou sabendo muito sobre ele — respondi brincando
com a carta de baralho na minha mão.
— Um grupo de missionários se organiza todos os anos para realizar uma
experiência em missões para jovens que não podem se dedicar por meses de
forma integral, seja por causa da escola, da faculdade ou por qualquer outro
motivo — David começou a explicar. — É um período de quinze dias, em
que, na primeira semana, temos algumas aulas, que variam de evangelismo,
paternidade, e por aí vai. E na segunda, atuamos com foco missionário,
fazendo diversos trabalhos pelas cidades, sempre levando Cristo como
centro.
— Aliás, foi em um evento desse que “conheci” essa belezinha. — Nina
disse apertando a bochecha do noivo. — Mas então, vamos?
— Eu não sei, preciso ver com meus pais ainda, os dois são bem
protetores nessa questão.
— Se quiser eu posso falar com eles. — Gabriel se intrometeu na
conversa, chegando com um pote de Milhopan[8]. — Vai ser uma bênção, eu
participo desde os doze anos e meu pai liderava alguns.
Me surpreendi com a rapidez do seu banho, mas ele estava com os cabelos
úmidos comprovando que o tomou.
— Pode ser, talvez eles te ouçam. — Sorri agradecendo.
— Eu sou o rosa! — Júlia gritou chegando na sala e jogando-se no
colchão em que eu estava sentada.
Após a empurrar para sair de cima de mim, cada um se sentou em volta do
tabuleiro para, enfim, começarmos o jogo. Gabriel acabou sentado de um
lado meu, Júlia do outro, Nina ao lado dela e David, depois e por
consequência, ao lado de Gabriel também, já que formávamos uma roda.
O jogo seguiu por horas, causando uma competição feia entre Júlia, Nina e
David. Após estar falida, larguei as cartas e saí da roda, apoiando minhas
costas no sofá, aguardando o desfecho.
— Largou os bets[9]? — Gabriel perguntou, sentando ao meu lado. Ele
também, de uma hora para a outra, tinha perdido todas as suas propriedades
pouco depois de mim.
— O que é isso? — questionei sem entender sua fala.
— É uma expressão daqui de Curitiba, significa desistir de alguma coisa,
você nunca ouviu? — Balancei a cabeça negando. — Acredita que já entrei
em vários apuros por causa disso?
Desviando os olhos do jogo, virei para ele, prestando atenção enquanto ele
falava animado.
Eu achava uma graça isso no rapaz, sempre que se dedicava a algo, ficava
gesticulando, sorrindo e carregava um brilho no olhar ao expor seus
pensamentos.
— Como nasci e cresci aqui, sou muito acostumado com as palavras e
expressões curitibanas, então muitas vezes estou todo animado conversando
quando a patota me olha sem entender nada, aí lá vou eu me dar conta de
que usei o vocabulário local e explicar palavra por palavra.
— Quando eu me mudei, estranhei muito as pessoas falando “piá”,
demorei um bom tempo até entender que se referiam a “menino”. — Ri,
lembrando de não entender nada quando chamavam meu irmão assim.
— Sim, e tem também o pão com vina, é um sarro falar isso e ninguém
entender que estou me referindo à salsicha.
Ficamos por um bom tempo conversando sobre expressões e gírias, eu
também falei de algumas do norte do Paraná e ele mencionava outras daqui
muito desconhecidas para mim.
Só fomos perceber o encerrar do jogo quando a Júlia deu um grito
declarando vitória sobre a Nina.
— Agora só falta saber administrar sua mesada tão bem quanto o dinheiro
do jogo — Gabriel a provocou e recebeu uma língua para fora em resposta.
— Sobre o que vocês conversavam? — Ela abriu um pacote de
marshmallow e me ofereceu.
— Expressões de Londrina versus as de Curitiba — expliquei após
terminar de mastigar.
— Nada supera as paulistas, desculpa aí! — Nina bateu a mão no cabelo.
— Cês ficaram mó cota conversando aí e a gente ficou aqui moscando, cê é
louco, parça!
— Alá, a guria mal chegou e já tá dando dolangue[10] para cima da gente,
vai viajar na maionese[11] pra outro canto — Júlia rebateu rindo.
— O melhor de ter vivido nas duas cidades é que conheço tudo das falas
de vocês — David entrou no assunto.
Então voltamos à comparação de gírias, mas dessa vez envolvendo as
paulistas junto. Várias eram comuns nas três regiões, outras ninguém
conhecia e a pessoa precisava explicar.
Em determinado momento, Carla apareceu dizendo que veio ver se
estávamos nos comportando e roubou um dos pacotes de doce, deixando os
filhos revoltados. Após ela subir, de alguma forma, o assunto mudou e logo
já começamos a falar sobre família e filhos.
— Se depender de mim, eu queria ter uns quatro ou cinco filhos —
declarei em determinado momento, já que o assunto era a quantidade
sonhada por nós.
— Já pensou, cinco piazinhos correndo no galeto pela casa.
Gabriel deve ter percebido minha cara de confusa pela sua fala, pois se
aproximou e explicou baixo que “galeto” significava “alta velocidade”.
— Eu estava conversando com o Dave e quero muito poder adotar uma ou
duas crianças — Nina revelou e Júlia fez uma careta.
— Eu tenho medo de adotar, principalmente quando são maiores.
— Olha, eu entendo, mas acho hipocrisia, ainda mais vindo dos cristãos.
Somos uma igreja adotada por Deus, mas nos negamos a adotar outras
crianças. Sendo que existem muitas espalhadas por aí em busca de um lar
amoroso, sonhando em ter um pai e uma mãe cuidando deles.
Cruzei meus braços e abaixei a cabeça, prestando atenção na conversa,
pois era um assunto que eu tinha dúvidas e não tinha muitos argumentos
nem contra, nem a favor.
— Carina, mas não vejo isso como obrigatório! — Gabriel entrou em
defesa da irmã.
— Mas os cristãos também não podem tratar como último caso, Gabriel,
como alternativa apenas para a hipótese de Deus não lhes abençoar com
filhos. Isso quando pensam como uma possibilidade, né? Porque muitos
procuram até barriga de aluguel, mas não as milhares de crianças
abandonadas nos orfanatos.
— Nina… — David murmurou, chamando-lhe a atenção.
— Desculpa, e-eu acabei saindo do controle — ela pediu e recostou-se no
peito do noivo, que a acalentava, fazendo carinho em seu braço.
— Sabe — Júlia começou —, eu gostaria de entender mais sobre isso, é
muito pouco falado nas igrejas.
— Qualquer dia dá para pedir para o irmão Marcos falar sobre isso, ele
tem experiência com adoção — David ofereceu.
— Verdade, amor. Mas vamos mudar de assunto? Estamos aqui para nos
divertir, e não causar discussão.
— Aliás, esse filme vai sair ou não?
Junto de sua fala, Gabriel levantou, indo pegar a sacola com as fitas
alugadas.
— Então, gente, eu queria muito ter conseguido “De Volta para o Futuro”,
mas, para a nossa tristeza, ainda não foi lançado em VHS. Então temos “Star
Wars: Episódio VI” ou “O Peregrino”, qual a escolha de vocês?
Com uma vitória de três a dois, as meninas ganharam, optando pela
adaptação do livro do John Bunyan, deixando os dois rapazes revoltados por
não verem o tal “Retorno do Jedi”, seja lá o que for isso.
Após o fim do filme, iniciou-se um debate sobre literatura e cristãos,
principalmente na ficção.
— Por isso eu amo a rainha Isabella, uma cristã que usa de sua influência
na ficção — Nina pontuou em determinado ponto da conversa.
— Marta, você não sabe, né? Espera aí. — Júlia saiu correndo enquanto
Gabriel murmurava um “lá vem ela de novo”.
Ao voltar, a loira jogou um livro no meu colo. Era um exemplar de
“Coração de Diamante”, com uma dedicatória da autora para Júlia logo na
contracapa.
— Como?
— Esse nojento aí fez uma viagem com meu pai para Porto das Rosas e,
por algum motivo, conheceu a própria rainha!
— Duas observações: o motivo é que a irmã dela era da nossa equipe e a
Isabella não era rainha ainda, Júlia! Não tinha como eu imaginar que ela se
casaria com o príncipe, era só uma menina comum na época, ou eu, pelo
menos, pensava que era…
— Você é burro, Gabriel, você é burro…
Após mais alguns minutos de conversa, em que Gabriel foi obrigado a
contar com mais detalhes sobre essa ida dele ao país, Carla apareceu,
mandando todo mundo ir dormir, porque já eram quase três da manhã.
— Está muito tarde para você ir embora, Dave, dorme no quarto do
Gabriel e amanhã cedinho ele te leva para casa — ela ordenou antes de
voltar aos seus aposentos.
Ao chegar no quarto, eu e as meninas ficamos batendo papo por mais uma
hora, mais ou menos, e um dos assuntos foi elas me explicando como
funcionaria o acampamento de férias e compartilhando as lembranças dos
anos anteriores.
Quando orei antes de dormir, pedi para Deus me dar a oportunidade de
participar, para Ele me dar uma chance de ter uma experiência assim.
Capítulo Onze
“Mas a luz de velas o homem lê
Que o justo viverá pela fé
É, o justo viverá
É, o justo viverá pela fé
É, o justo viverá”
(João Mano - Tese 95)

E chegou o dia 31 de Outubro, o tão esperado dia da Reforma


Protestante!
Para o mundo, é nessa data que eles comemoram o Halloween. Apesar de,
graças a Deus, não ser uma prática comum no Brasil, sempre vemos os
jovens saindo para beber e ouvimos comentários acerca do Dia das Bruxas,
com alguns poucos arriscando-se a usar fantasia.
Porém nós, cristãos protestantes, tínhamos outro motivo muito mais
profundo para nos alegrarmos nesse dia: há quase quinhentos anos, Martinho
Lutero pregava suas 95 teses contra a Igreja Católica nas portas do Castelo
de Wittenberg.
A comemoração não era em si pelo fato da divisão do cristianismo, pois
isso nem mesmo era o objetivo de Lutero com a revolução. Porém ele queria
que a Igreja voltasse à Bíblia, desejava que seus fiéis largassem a crença na
salvação pelas obras e voltassem a ver a graça de Deus.
Comemoramos porque os cristãos voltaram a olhar com atenção para a
Bíblia. Além disso, a Reforma Protestante foi o pontapé para o evangelho
genuíno se espalhar mundo afora na linguagem leiga, e não tendo seus
escritos apenas em latim.
Então, como uma forma de unir o útil ao agradável, Júlia decidiu adiar sua
festa de aniversário por seis dias e celebrá-la em 31 de Outubro. Seria uma
festa à fantasia com temática bíblica, buscando colocar o cristianismo em
evidência em todos os parâmetros.
Como uma fã de Teologia, eu não poderia ter escolhido uma fantasia mais
propícia. Enquanto me olhava no espelho, terminava de me caracterizar
como Catarina Von Bora, a primeira-dama da Reforma Protestante.
Eu tinha vindo pela manhã para a casa de Júlia, passamos a tarde
enrolando brigadeiro e colocando a decoração. Enquanto estávamos
terminando de nos arrumar, ela contava toda animada sobre as coisas que
planejou para a festa e sobre alguns familiares e amigos que iriam visitá-la.
— Ai, amiga, é maravilhoso fazer dezoito anos, né? — ela falou enquanto
terminava de ajustar a sua tiara.
Conforme o planejado, Júlia havia se fantasiado de rainha Ester, sua
personagem favorita da Bíblia.
— A única coisa diferente é que agora você pode ser presa — Dei risada.
—, é sério, a gente fica tão animada para uma coisa que não tem efeito
nenhum.
De repente senti uma almofada batendo na minha cara e gargalhei ao ver a
cara de brava dela.
— Desculpa aí, senhora chata estragadora de sonhos. Você pode me deixar
ser feliz pelo menos no meu aniversário? Amanhã eu volto para a realidade.
— Tá bom, então, senhorita dezoito anos — respondi com deboche.
Gargalhamos juntas e paramos ao ouvir batidas na porta, Júlia gritou
ordenando para a pessoa entrar.
— Oi, meninas, desculpe estragar a diversão, mas os convidados estão
começando a chegar — Gabriel falou e deu um passo para trás, assustado
com a bagunça de roupas do quarto.
— Quando você casar, não vai ser muito diferente — a irmã dele falou,
fazendo-o revirar os olhos.
— Misericórdia, tá repreendida toda seta do Inimigo — ele murmurou.
Por consequência recebeu duas travesseiradas, uma vinda de mim e outra
de Júlia.
— Aliás, Gabriel — A loira se levantou, parando na frente dele. —, cadê
sua fantasia? — Cruzou os braços, encarando-o.
— Eu não disse que você veria só na festa? Então, você vai ver só na
festa. — Abraçou a irmã, provocando-a.
— Gabriel Neto, se você bagunçar meu cabelo, você vai apanhar — ela
disse, fazendo o rapaz gargalhar alto.
— Como um presente de aniversário para você, vou fingir que acredito em
suas ameaças. — Ele deu um beijo em sua testa antes de se afastar, fugindo
de um tapa. — Aliás, Marta, você vai do quê?
— Na festa você descobre! — respondi com a mesma desculpa dele.
Eu ainda não estava pronta, pois faltava terminar de ajeitar o vestido e
fazer o coque no cabelo. Então ele não reconheceria minha roupa.
— Hahaha, me pegou, muito engraçado. Vou indo, não se atrasem,
meninas.

Há alguns anos, aprendi com minha bisavó a costurar roupas, então fiz
questão de fazer minha fantasia, de forma a não gastar tanto dinheiro dos
meus pais. Foi um árduo trabalho desde que comecei a fazê-la no final de
setembro, mas no fim tinha gostado do resultado.
Encarando meu reflexo no espelho, eu fiquei feliz por ter chegado ao
menos perto de como pretendia estar, e esperava muito que outras pessoas
me reconhecessem.
— Então? — Virei para Júlia, esperando o comentário dela.
— Uau, primeira-dama da Reforma Protestante, está podendo, hein — ela
brincou.
Levei a mão à boca, feliz e chocada por ter sido reconhecida ao menos por
alguém.
Como nós duas estávamos prontas, caminhamos rumo à sala da casa dos
Mendes, que era onde aconteceria a festa. Pelo fato de Júlia ser a
aniversariante, tínhamos chegado alguns minutos antes do horário de início,
para ela conseguir recepcionar bem a todos.
Algumas pessoas já haviam chegado, como a família pastoral. Seguindo o
roteiro, Mari vestia trajes remetendo aos tempos bíblicos com um cajado em
mãos e Luísa estava em um típica fantasia de ovelhinha a ser pastoreada.
Eu estava indo cumprimentá-las quando vi Gabriel entrando no salão.
— Ah, não… — murmurei ao vê-lo em trajes típicos de um monge, em
uma clara referência a Martinho Lutero.
Não sei dizer ao certo quanto tempo passei em choque, encarando o rapaz,
mas despertei ao ouvir Júlia gritando do meu lado:
— Eu não acredito que vocês combinaram de vir fantasiados de casal!
Que lindo! Por isso não me contaram, né? Queriam fazer surpresa para todo
mundo.
— Júlia, não, cala a boca! — briguei com ela. Com o canto do olhar, eu
via Luísa nos encarando.
Eu não a julgava, o que ela poderia estar pensando de mim? Há algumas
semanas, a garota me confessara seu sentimento pelo rapaz e hoje nós dois
estamos simplesmente com fantasias combinando.
Respirei fundo, tentando me controlar e decidir o que fazer, ainda mais em
relação a ela.
— Eu não fazia ideia da fantasia do Gabriel — comecei a falar em tom
baixo para fazer a Júlia calar a boca. — Foi uma terrível coincidência.
— Ou nem tão terrível assim, vai que Deus…
— Júlia! — Chamei-lhe a atenção.
— Tá bom! — A garota ergueu as mãos, rendendo-se.
Para minha sorte, Gabriel ainda não tinha percebido nada. Ele estava
conversando com um outro rapaz. Após alguns minutos sem saber como
reagir, o homem ao lado dele indicou com a cabeça para o nosso lado e os
dois começaram a caminhar.
— Eu não acredito nisso — Júlia murmurou.
Eu iria perguntar o que, mas eles já estavam próximos demais para isso.
— Oi, Juju — ele a cumprimentou sorrindo animado.
— Olá, Nicolas.
Aproveitando que eu não era o centro das atenções, fiz uma análise rápida
do rapaz. Ele era da mesma altura do Gabriel, mas os cabelos eram negros,
além de usar um par de óculos no rosto. Então, só depois percebi o motivo
do choque de Júlia, ele estava fantasiado de rei, combinando com ela, de
rainha.
— Ei, gostaria de te dar seu presente de aniversário.
Ela, após receber a permissão do Gabriel, se retirou com ele em direção
aos jardins da casa.
— Então — Gabriel começou a falar após alguns minutos em silêncio. —,
primeira-dama da Reforma Protestante, né?
— Martinho Lutero, né? — respondi na mesma brincadeira.
Ambos ficamos nos encarando com um sorriso nos lábios,  achando
divertida a terrível coincidência de estarmos nos completando. Eu estava
perdida em seu olhar e levei um susto quando fomos interrompidos por um
flash.
— Ai, que lindos! — Mariana murmurou após retirar a máquina
fotográfica do rosto. — Gostei da combinação da fantasia, ficou supimpa.
— Não foi combinado — Gabriel respondeu por nós dois, incomodado
com o tom de voz dela. — Ficamos surpresos em ver a coincidência.
— Jura? — Ela se surpreendeu. — Ia falar uma coisa, mas, além de
crente, sou misteriosa. Tchau, tenho outros casais, ops, pessoas para tirar
fotos! — Ela se afastou antes de conseguirmos dar-lhe uma repreensão.
— Vamos mesmo precisar ficar aguentando essas piadinhas? — questionei
irritada.
— Relaxa, logo passa. Daqui a pouco encontram outra coisa para encher o
saco.
Eu estava para me retirar em busca de um refúgio, mas uma aparição na
porta chamou a atenção de todos da festa.
— Ah, não, desta vez eles se superaram — Gabriel falou, rindo.
Nina e David entravam no salão fantasiados de nada mais, nada menos do
que os Smilinguidos. Eles usavam uma roupa toda preta, com luvas e sapatos
amarelos, ela com coturno e David apenas de meias. Além de uma tiara com
as anteninhas das formigas.
Por onde eles passavam, desfilando com pompa, arrancavam risadas do
pessoal com a criatividade.
— Muito meu casal de formigas missionárias — Gabriel zombou quando
eles vieram para perto da gente.
— Vocês dois também não estão nada mal! — Nina respondeu, rindo. —
Amei a ideia de virem de casal.
— Não foi combinado — murmurei, já exasperada com aquelas
insinuações.
Eu não os julgava, realmente parecíamos um casal fantasiados lado a lado
dessa forma.
— Oi, Marta! — Luísa se aproximou e vi a chateação explícita em seu
olhar.
Durante os minutos seguintes, conversamos sobre amenidades, sem
profundidade nenhuma. Luísa elogiou a fantasia de Smilinguido dos nossos
amigos, falamos sobre a dela, falamos sobre tudo, exceto sobre eu e Gabriel
estarmos combinando.
Por fim, após os assuntos terem acabado, Luísa se virou para nós, dizendo:
— Vocês deveriam desfilar, formam um bom casal!
— Luísa… — comecei a falar, mas ela me interrompeu.
— Eu estou falando sério. E — ela fez uma pausa e vi seus olhos
enchendo-se de água —, desculpe, com licença.
Antes que pudéssemos fazer qualquer coisa, a menina se retirou correndo
em direção aos banheiros.
Nesse momento eu me culpei, a última coisa que queria era magoá-la. Eu
me arrependi da fantasia escolhida, por ter feito suspense com ela e por não
ter um plano B para me trocar.
— Droga, sabia que em algum momento isso iria acontecer — Gabriel
murmurou, esfregando o rosto. — Já volto, gente! — O rapaz caminhou na
mesma direção para onde ela tinha ido.
— Marta — Nina me chamou ao ver o meu estado —, não foi sua culpa.
Olhei-a, notando que estávamos sozinhas, ela deveria ter pedido para
David sair e nem percebi.
— Todo mundo já falou para a Luísa que ela e o Gabriel não vão ficar
juntos, eu mesma já perdi as contas de quantas vezes a aconselhei. Além do
mais, ele nunca deu nenhum tipo de sinal para ela. Te garanto, conheço os
dois há anos e ela se iludiu sozinha.
Balancei a cabeça, sinalizando compreender, mas ainda não conseguia
aceitar minha atitude. Tudo bem, não foi proposital, mas eu não queria
magoá-la.
Nessas últimas semanas, fiz o possível para me afastar, e afastar meus
sentimentos, de Gabriel. Sim, não me distanciei completamente, procurava
dizer a mim mesma que manteríamos uma relação cordial, pois eu gostava
da amizade do rapaz, tinha apreço por conversar com ele.
Mas naquele momento me questionei se fiz o correto e se não deveria ter
cortado de vez qualquer interação, por respeito à Luísa.
Não sei dizer quanto tempo eu e Nina ficamos conversando até uma Júlia
corada aparecer na nossa frente. Ergui a sobrancelha, questionando-a em
silêncio, mas ela apenas deu de ombros, ignorando-me.
— Cadê o Gabriel? — perguntou olhando em volta.
— Conversando com a Luísa, acho eu — Nina respondeu, como se não
fosse nada demais.
— Sobre?
— Assuntos dos dois! — A moça deu de ombros. — Ai, Ju, quando isso
aqui vai animar?
— Estamos só esperando o restante dos convidados chegarem.
No mesmo momento, ela se afastou para cumprimentar mais algumas
pessoas, senão seria considerada uma péssima anfitriã, de acordo com suas
palavras. Nina também saiu, alegando que precisava procurar David.
E, enfim, consegui ficar sozinha com meus pensamentos. Aproveitando o
momento, sentei em um dos bancos e fiquei lá por longos minutos apenas
apreciando a festa.
Eu realmente não me importava de ficar isolada, gostava de observar as
pessoas sem ser parte do centro das atenções. Um dos meus “hobbies” —
por assim dizer — era ficar tentando adivinhar quais seriam as conversas
analisando apenas as expressões corporais.
Júlia mesmo, pela sua cara e a forma como interagia com a mulher à sua
frente, parecia conversar com alguém que não via há um bom tempo. Os
longos fios loiros da mulher denunciavam que ela deveria ser uma Mendes
também; pelo meu chute, uma tia ou prima de Jacarezinho.
Minha amiga me contou uma vez que Josué, o pai dela e do Gabriel, tinha
muitos irmãos e parentes, então, após a morte dele, os três não ficaram em
nenhum momento desamparados. Principalmente nos primeiros meses,
sempre tinha alguém os visitando para fazer companhia.
Nas minhas observações, vi Gabriel voltando ao salão e tentei adivinhar
como estavam seus sentimentos, mas sua postura não denunciava nada. Ele
procurava algo e pareceu encontrar quando avistou meus olhos o
observando.
Envergonhada por ter sido pega em flagrante, abaixei meu olhar para
minhas mãos até ouvi-lo me cumprimentando.
— Posso me sentar ao seu lado?
Assenti com a cabeça, sem ter nenhuma palavra para falar. Ficamos alguns
minutos em silêncio antes de ele quebrá-lo.
— Como você está? — questionou com um tom carinhoso na voz. Sua
pergunta poderia ter mil interpretações, mas eu entendi muito bem a que ele
se referia.
— Estou bem, vocês se resolveram?
Nesse momento, Luísa entrou pela porta, ela estava bem mais silenciosa
que o normal e, mesmo me vendo, não ousou se aproximar. Na verdade
desviou com um semblante quase de nojo e caminhou até algum lugar fora
do meu campo de visão.
— Não se preocupa, logo ela para de birra — Gabriel falou ao ver minha
reação perante a atitude dela.
— Por que ela está assim?
Olhei para Gabriel e o vi comprimindo os lábios com uma expressão
culpada, porém não deu mais explicações em um primeiro momento.
— A Luísa ainda é uma criança em muitos pontos, principalmente na falta
de maturidade — ele disse. — Por ser a caçula e por alguns outros motivos
da infância dela, o pastor sempre a mimou muito, quase nunca lhe dizendo
não. Então digamos que agora ela está aprendendo a duras penas que nem
tudo é como deseja, ainda mais quando envolve outras pessoas — murmurou
a última frase, mas acabou sendo alto o suficiente para eu ouvir.
Uma curiosidade sem igual tomou conta de mim diante daquilo e do
porquê de ela estar brava justo comigo, mas consegui me controlar, o medo
da descoberta era maior do que a vontade de saber.
O rapaz, então, decidiu mudar de assunto e começamos a comentar sobre
as outras fantasias da festa.
Ele apontou, rindo, para um dos seus primos. O garoto tinha o corpo
inteiro enrolado de gaze e uma placa escrita “Lázaro” na frente e, quando ia
andar, imitava um zumbi.
— Sua família também não foi nada mal no quesito criatividade.
Balancei a cabeça, ainda envergonhada por eles com suas fantasias.
Papai estava de Abraão, usava uma longa barba artificial branca, roupas da
época e um cajado em mãos. Mamãe vestia-se assemelhando-se a um anjo.
Já meu irmão havia vindo como Isaque e carregava uma ovelha de pelúcia
no colo.
— Na hora do desfile, eles vão encenar o quase sacrifício de Isaque —
comecei a explicar diante de um olhar curioso dele —, e creio que as
fantasias já são autoexplicativas.
— E você não quis participar desse lindo e amoroso momento familiar? —
Gabriel perguntou, zombando da minha cara.
— Eu não, eles queriam que eu fosse a ovelha para Jonas interpretar a
mesa de pedra, mas nem preciso dizer que neguei veementemente, né?
Nunca pagaria um mico desse em público.
— É, eu iria me surpreender se te visse ali na frente — brincou. — Aliás,
você vai não querer mesmo desfilar comigo?
— Nem louca — respondi rapidamente, e acabei sendo seca demais.
— Desculpa, não queria te pressionar, é só porque seria legal.
— Eu sei, mas realmente não quero.
Abracei-me e olhei para Luísa, temendo magoar mais ainda a menina se
fizesse aquilo.
Capítulo Doze
“Pra que ganhar o mundo, e não te achar aqui dentro?
Se for pra te amar, eu vou fazer isso direito
Pra que ganhar o mundo, e não te achar aqui dentro?
Se for pra te amar, eu vou fazer isso direito
Tira de mim toda idolatria”
(Marcela Taís - Idolatria)

— Marta Carolina Almeida, eu não aceito essa desfeita — Júlia


ralhava comigo. Uma de suas mãos estava na cintura enquanto, com a outra,
ela apontava para mim. — Me dê um único motivo plausível para isso, e eu
quero um bom motivo, não essas suas desculpas bobas sobre não aparecer.
Por ser branca feito papel, qualquer nervosismo já mudava seu tom de
pele, então, nesse momento, minha amiga estava com as faces bem coradas.
Apertei os lábios sem saber como explicar. Sim, um dos motivos era não
querer me expor, mas eu sabia o quanto isso também magoaria Luísa, porém
não falaria isso para a Júlia, para não constranger a garota.
Eu me sentia como uma criança pequena diante deles. O pessoal estava ao
meu redor incentivando-me a desfilar com Gabriel.
Olhei para o rapaz e o vi em silêncio, respeitando qualquer decisão minha,
mas seu olhar carinhoso me incentivava a aceitar a proposta.
— Eu não sei, gente — murmurei confusa.
— Marta, para de drama e aceita logo! — Luísa falou com a voz exaltada.
— Com sua atitude, você aparenta estar querendo apenas chamar atenção e
ser paparicada, porque todo mundo sabe que no final você irá aceitar. Desde
a igreja, você sempre ficou esperando as pessoas te darem atenção e, quando
deram, se inseriu surpreendentemente bem e agora tá mudando a forma de
agir, porque sempre precisa que todos estejam ao seu redor — Sua voz
carregava deboche.
Uma parte inconsciente e insegura de mim agarrou-se àquelas palavras,
fazendo-as penetrar no meu coração. Refletindo sobre meus atos, parecia que
eu estava fazendo um simples drama quando na verdade não era nada
daquilo.
Eu não fazia ideia de por que Luísa me destratava, não tinha culpa se
Gabriel não gostava dela nem de ter vindo com a fantasia combinando.
Se pudesse, voltaria há pouco mais de um mês e teria mudado tudo, não
deveria ter aceitado aquelas propostas ridículas para interagir, deveria ter me
afastado, sabia que não daria certo. Eu não era alguém sociável, não deveria
ter saído do meu casulo e da minha zona de conforto.
Uma tensão cercou o ambiente, todos segurando a respiração, esperando a
minha resposta. Eu vi Júlia abrir a boca, mas fiz um sinal para ela ficar
quieta, eu falaria por mim mesma dessa vez.
Uma parte, a parte decente e cristã de mim, me dizia para não falar nada,
para ter domínio próprio e não me render. Mas eu a calei, estava com o ego
ferido e minha única vontade era machucar de volta. Naquele momento
todas as palavras direcionadas por anos a mim voltaram, mesmo as que
pensei ter esquecido ou perdoado, cada momento, frase e olhares de
menosprezo pela minha personalidade. E ali eu conheci uma Marta que
nunca gostaria de ter conhecido.
— Luísa — comecei, olhando-a e falando com um tom de voz calmo, bem
diferente do dela. — Sendo sincera, eu não faço ideia do motivo para você
estar me tratando assim, mas também não tenho culpa se suas vontades não
são satisfeitas como você quer, não tenho culpa se você não sabe receber um
não, se todo o mundo precisa se dobrar para os seus momentos de crise.
Você deveria olhar para si mesma primeiro.
Pelo canto do olho, vi a expressão de Gabriel se fechar, tanto pela minha
atitude quanto por eu ter usado uma conversa íntima nossa para ferir a garota
à minha frente.
Mas eu não queria saber, só estava cansada de tudo aquilo.
— Desculpe se minha presença atrapalhou a sua vida, mas não se
preocupe, não irá mais — soltei por fim antes de sair pisando duro.
Eu não queria pensar nas minhas palavras nem nas consequências delas,
apenas caminhei até a região da piscina buscando ficar sozinha. Ao chegar
lá, me sentei em um canto escuro e isolado, onde ninguém me acharia, e
chorei, coloquei para fora todos os sentimentos guardados durante todo esse
tempo.
Não sei por quanto tempo fiquei ali e, devido ao meu estado, não tinha
percebido uma pessoa se aproximar. Então me assustei quando senti um
toque suave no ombro.
Ergui a cabeça vendo o rapaz sentar-se perto de mim, e, para a minha
surpresa, ele me puxou e me abraçou de lado.
Fechei os olhos, rendendo-me ao momento, era a primeira vez que eu e
Gabriel tínhamos um contato assim, em que ele me abraçava, e eu apenas me
aninhei mais nos braços dele.
Sim, eu sabia que era errado nós dois estarmos sozinhos. Se alguém com
más intenções visse, poderia muito bem criar falsos boatos, mas eu não tive
forças para me afastar, para sair daquele momento.
Ele também manteve uma distância respeitável entre nós, não ultrapassou
a barreira da decência em momento algum, apenas movendo as mãos,
acariciando com gentileza meu braço.
Fechei os olhos, aproveitando o carinho e, aos poucos, o choro foi
diminuindo, restando apenas um leve assoar do nariz.
— Me perdoa? — pedi baixo, envergonhada pela minha atitude de
minutos atrás.
— Não é a mim que você precisa pedir perdão.
— A você também, eu usei um desabafo seu para machucá-la, não devia
ter feito isso.
— Está perdoada, não se preocupa.
Ele se afastou e me culpei por sentir falta do calor dos seus braços.
Abracei, então, minhas pernas e virei a cabeça, olhando para ele, pensando
em como falar. Ele imitou minha posição e ficamos alguns minutos nos
olhando assim, até eu criar coragem para  colocar para fora:
— Eu não sei o que deu em mim, não sou eu aquela garota.
Fechei os olhos e encostei a cabeça no joelho, arrependida das minhas
atitudes.
— Você é exatamente aquela garota! — Olhei-o sem entender. Nessa
altura do campeonato, já deveria ter aprendido sobre o quanto Gabriel
conseguia ser direto. — Ali, você foi exatamente a pessoa que era antes de
se converter, seguiu a sua natureza depravada e se rendeu aos desejos do seu
coração egoísta. Mas, sim, aquela não era a garota cristã que você diz ser,
aquela renovada pelo sangue de Cristo e que deveria amar os seus irmãos.
Você não seguiu os ensinamentos que dizem para, caso alguém lhe bata em
uma face, dar a outra também, e retribuiu a ofensa dada.
Engoli em seco enquanto ouvia as cajadadas dele.
— Mas, graças a Deus, você tem a chance do arrependimento e a Bíblia
também nos ensina a pedir perdão, então… — Ele indicou a cabeça para o
salão. — E, é claro, não se esqueça de pedir perdão a Deus, pois o maior
ofendido da história foi Ele ao ver suas filhas brigando de forma ridícula.
— Eu estou tão envergonhada. — Suspirei.
— Deveria estar mesmo — ele falou e sorriu quando mostrei a língua.
— Você sabe se existe alguma forma de chegar ao quarto da Júlia sem
passar pela sala? — perguntei, mudando o assunto, decidida a ir logo.
— Sim, ali atrás tem uma porta que leva ao andar superior. — Ele apontou
para o lugar.
Ficamos mais algum tempo nos olhando, eu não sabia dizer se se
passaram segundos, horas ou meses, mas compartilhávamos uma intimidade
recém-gerada entre nós, um laço que eu esperava nunca acabar.
A cada momento eu me apegava ainda mais a Gabriel e, mesmo tendo
medo do resultado final, não conseguia voltar atrás.
— Melhor você ir logo — ele quebrou o contato visual —, a Júlia estava
desesperada antes e, agora, deve estar surtando sem a presença de nós dois.
Então percebi o quanto meu ato estúpido teria arruinado a festa da minha
amiga. Ela falava há meses disso e, por causa de segundos em que me rendi
à carne, eu a estraguei.
Eu comecei a levantar, mas Gabriel indicou que eu esperasse. Ele colocou-
se de pé e estendeu a mão para me ajudar.
Sorri diante dos modos cavalheirescos do rapaz e aceitei, mas, mesmo de
pé, ele não soltou minha mão. Gabriel olhou por alguns segundos para ela
antes de usá-la para me puxar para um abraço.
Naquele momento, então, ele fez uma oração, pedindo para Deus me guiar
e pedindo para que o Espírito Santo entrasse cada dia mais em meu coração,
moldando o meu caráter aos padrões bíblicos. Era a primeira vez que ele
orava diretamente por mim e eu me controlava para não me deixar render às
lágrimas de novo.
— Se cuida, Marta. Não deixe seu coração depravado vencer, firme seus
olhos na cruz e saiba que Deus sempre vai estar presente na sua vida —
sussurrou no meu ouvido por fim.
Gabriel se afastou, não me dando a oportunidade de dizer algo. Em
silêncio ele me levou até a porta e deu as coordenadas sobre como chegar
aos quartos, depois caminhou de volta para a festa.
— Gabriel — gritei antes de ele sumir de vista. — Obrigada!
Vendo um dos belos sorrisos dele, subi rapidamente as escadas com um
sorriso bobo em lábios. Em velocidade recorde, arrumei minha maquiagem e
os fios de cabelo soltos. Por causa do choro, meus olhos estavam inchados,
mas torci para ninguém perceber.
Respirei fundo antes de criar coragem, precisava procurar alguém para
conversar.
Mas eu mal tive oportunidade de pensar muito, pois, antes de virar o
corredor, vi Luísa encostada em uma das paredes. Ao perceber a minha
presença, a garota arrumou sua postura, mas não me olhou, fixando-se nos
seus sapatos.
— Luísa...
— Marta...
Começamos a falar ao mesmo tempo e caímos na risada. Esse momento
quebrou um pouco da tensão entre nós duas e facilitou a conversa. Ela
aproveitou, então, para tomar a iniciativa:
— Eu quero te pedir perdão pelas minhas palavras no salão, fui grossa e
descontei em você meus problemas. Você não tem culpa se o Gabriel... —
De repente a menina parou e arregalou os olhos. — Enfim, quero te pedir
perdão por aquilo, não fui justa com você.
Fiquei curiosa sobre qual seria o fim de sua frase, mas preferi não
investigar mais, com medo da descoberta. Por isso sufoquei aqueles
sentimentos querendo sair, mesmo sabendo que ficaria toda a noite
remoendo cada um.
— Também peço desculpas, eu não agi como uma cristã na forma como te
tratei e acabei estourando e falando coisas indevidas — falei com
sinceridade, forçando-me a olhar em seus olhos.
Ela, então, me abraçou com força e, naquele ato, senti como se
tivéssemos, enfim, nos resolvido. Uma alegria tomou conta de mim, pois
estava ganhando uma nova amiga.
— Mas, olha, eu me surpreendi com você, hein, quem diria que existia
uma Marta grossa aí dentro? — ela alfinetou em tom de brincadeira.
— Eu não me orgulho disso — respondi, mas sabia que ela estava apenas
tentando aliviar o clima. — Agora vamos, porque tem um aniversário para
continuar.
Ainda em brincadeiras e risadas, ela me abraçou de lado e, mesmo
incomodada com o gesto, começamos a andar em direção ao salão.
Nem preciso dizer o quanto os jovens se surpreenderam ao nos encontrar
assim.
Nos aproximamos do pessoal, mas prestei atenção em Gabriel. Borboletas
tomaram conta do meu estômago em contentamento ao vê-lo sorrindo
orgulhoso e feliz por termos nos resolvido.
Júlia, como sempre com seu expressionismo exagerado, abriu a boca e
levou a mão até ela, chocada pela cena.
— Qual o milagre do dia? — Nina foi a primeira a quebrar o silêncio.
— Deus ensinando sobre perdoar e pedir perdão! — Luísa respondeu por
nós duas.
Graças a Deus os momentos seguintes se seguiram sem ficarmos voltando
à discussão de minutos antes e, então, Júlia enfim deu início ao tão sonhado
desfile dela.
Gabriel também não desfilaria mais, por precisar ficar no microfone sendo
o narrador de tudo. Eu sabia ser apenas uma desculpa por causa dos
acontecimentos de momentos atrás e seu olhar para mim segundos antes de
virar revelou o novo laço criado.
O Mendes primeiro explicou que o desfile seria dividido em dois
momentos: aqueles que só desfilariam e os que encenariam alguma coisa
com base nas suas fantasias.
— E, para abrir a passarela, quero chamar a rainha Ester e o rei Assuero!
Júlia, então, lindamente entrou desfilando ao lado de Nicolas, ambos
sorriam e lado a lado pareciam ter saído de uma capa de revista. Após eles
foi a vez do pastor e sua esposa, fantasiados de Rute e Boaz
Em seguida, alguns parentes e amigos dos Mendes foram, uma das
fantasias mais criativas foi um rapaz vestido de pirâmide egípcia e, de
acordo com ele, foram os hebreus que ajudaram a construir.
A primeira parte foi encerrada com David e Nina, ambos carregavam
Bíblias na mão e andavam como se estivessem evangelizando o público.
Após isso, Gabriel deu uma pausa para comermos e bebermos, já avisando
aos atores para irem se organizando.
— Quer? — Ele se aproximou de mim, oferecendo uma coxinha.
— Obrigada! — Peguei o alimento, mas procurei manter-me ainda
distante, por respeito à Luísa.
— Filha, corre aqui! — Minha mãe apareceu do além e me puxou
correndo para a cozinha da casa. — Você não quer mesmo interpretar a
pedra? Até trouxe a capa!
— Mãe, pelo amor de Deus, não! — Levei a mão ao rosto, respirando
fundo.
Acabei de ter uma séria discussão sobre participar ou não do desfile e ela
agora me vinha com isso.
Minha mãe, então, ergueu o queixo, brava, e deu a volta com um sorriso
vitorioso, como se seus planos tivessem dado certo, não querendo admitir ter
falhado miseravelmente em me convencer.
Balancei a cabeça e voltei para perto dos meus amigos para terminarmos
de assistir ao desfile. David tinha pegado uma cadeira para ele se sentar e
tinha uma Nina furiosa por ele não ter pensado nela, mas, na verdade, ele
estava mais a provocando mesmo.
— Gabriel, você tem tantos anos de amizade com meu noivo e ainda não o
ensinou a tratar bem as damas?
— Olha, esse aí é osso duro de roer, quem precisa domá-lo agora é você!
Eu já desisti. — Ele estendeu uma cadeira para eu me sentar.
Abaixei a cabeça, agradecendo, mas estranhei ele não pegar para a irmã,
até ver Nicolas vindo com uma também.
— Bom, gente, vou lá, que chegou meu momento de arrasar como
narrador! — O rapaz se despediu, caminhando de volta ao seu posto.
Alguns minutos se passarem antes de finalmente começarem as
encenações.
A primeira foi de Moisés abrindo o Mar Vermelho, o tio dos Mendes tinha
se fantasiado do hebreu e seus filhos tinham ido de azul, simbolizando o
mar.
Logo após ele, Gabriel chamou a Mari e a Luísa, ouso dizer ter sido uma
das encenações que mais arrancaram risadas, pois a mais nova andava
engatinhando e gritando “béé” enquanto a mais velha fingia tentar trazer a
ovelha de volta para o aprisco.
— E ainda tem gente dizendo que as ovelhas escolhem por conta própria
ir para o pastor — Mariana soltou no final, antes de ser obrigada a arrastar
pela perna uma Luísa em gargalhadas para fora do centro.
Depois deles, veio a minha família. Senti meu rosto pegar fogo quando
Jonas se encolheu em duas cadeiras — que haviam sido o improviso para as
pedras —, aí de repente mamãe entrou gritando, mandando parar e, logo
depois, alguém jogou uma ovelha de pelúcia para eles.
— Eu não sei por que ainda me surpreendo com a criatividade do crente
brasileiro — Carina falou, rindo, ao final das apresentações.
Depois dos meus familiares, tinham vindo alguns outros, como Davi
lutando contra Golias, Sansão e Dalila e até mesmo Adão e Eva sendo
criados e comendo do fruto proibido, enquanto Gabriel fazia a leitura do
texto bíblico.
Uma salva de palmas soou aos corajosos de plantão e, então, Carla —
vestida de Noemi — chamou a atenção de todos para cantarem parabéns.
O pastor foi quem fez a oração, abençoando a aniversariante e pedindo
para Deus lhe dar graça nessa nova fase da vida e sabedoria para os desafios
que viriam à frente. E, então, os convidados foram finalmente liberados para
aproveitarem a festa.
Quem quisesse podia ir dançar, brincar com as dinâmicas espalhadas pela
casa ou ficar quieto em seu canto observando tudo. Eu, obviamente, escolhi
a última opção.
Munida com uma barquinha de maionese e um copo com Cini
Abacaxi[12], eu dava risada, vendo os micos que o pessoal estava pagando na
pista de dança.
— Se eu te chamar para dançar você não vai aceitar, né? — Gabriel
perguntou ofegante ao sentando ao meu lado para um descanso.
— Nem pensar.
— Uma pena. — Ele fez bico.
— Você e a Júlia são iguaizinhos, ambos dramáticos — murmurei,
fazendo-o cair na gargalhada. — Por que você não chama a Luísa para
dançar? — Ele fez uma cara de deboche olhando para mim. — Ei, é sério,
não é porque você não sente nada por ela que não podem ser amigos. E eu
estou vendo a Mari e o David dançarem, e ele tem noiva! — Apontei para a
pista, onde meus dois amigos rodopiavam ao som da música animada.
— Tenho medo de a Luísa criar expectativas em cima disso — ele
confessou, nervoso.
— Compreendo.
Comecei a balançar minhas pernas, sem saber o que falar, ficamos em
silêncio durante alguns minutos antes de a Carina vir chamar Gabriel para
dançar com ela, pois — de acordo com ela — David a tinha trocado por um
prato de salgadinho.
E, realmente, o rapaz negro estava sentado no chão fora da área de dança e
tinha vários petiscos em mãos.
Passei o resto da festa sentada lá, rindo, de vez em quando alguém vinha
para conversar e logo depois já saía para fazer alguma coisa. Foi um bom
momento e consegui aproveitar os instantes sozinha para colocar os
pensamentos, e sentimentos, em ordem.
Eu, ao menos, achava.
Capítulo Treze
“Eu acredito em você
Eu acredito nos sonhos de Deus
Pra tua vida, amiga”
(Eyshila e Fernanda Brum - Impossivel de Esquecer)

— Mana, a Carina tá aqui — Jonas abriu a porta de repente para


avisar.
Para a minha sorte, tinha terminado de escrever. Eu estava escrevendo a
carta de outubro alguns dias atrasada. O décimo mês do ano se passou tão
rápido que acabei me esquecendo de escrever nele, então me colocava em
dia e contava as novidades ao meu futuro — e espero que existente —
marido.
Eu não me lembrava de ter combinado nada com Nina, então me
preocupei com uma visita repentina assim. Tínhamos nos visto ontem, no
culto dos jovens, e a moça agiu normalmente.
Agradeci ao meu irmão e guardei todas as cartas e materiais antes de ir
atendê-la.
— Oi, Marta! — Ela acenou sorrindo encostada na porta.
— Oi, Nina! — cumprimentei de volta, mas tinha um tom de
questionamento na minha voz e ela não demorou a perceber.
— Podemos conversar no seu quarto?
Pela primeira vez na vida, eu via Carina com sinais de nervosismo, o que
era até estranho. Assentindo, a guiei até o cômodo. Após entrarmos e
fecharmos a porta, ela se virou para mim entregando-me um envelope.
Com cuidado, o abri e vi um convite de madrinha.
— Vai ser em menos de um mês — ela começou a explicar, vendo minha
cara confusa —, eu já comecei a entregar os convites há uns meses, mas na
época não te conhecia ainda. Mas nos aproximamos e você se tornou uma
amiga querida, então, conversando com o Dave, nós queríamos saber se você
aceita ser nossa madrinha. — Ela mordeu os lábios e me olhava com
expectativas.
— Nina, e-eu… — Tentei falar, mas estava emocionada demais para
formular alguma coisa.
Jamais tinha imaginado receber um convite assim. E, confessei, também
não tinha nem expectativas de ir ao casamento, já que ela, mesmo me
incluindo nas conversas, nunca tinha mencionado diretamente a minha
presença lá.
— Muito obrigada!
Ela, então, me abraçou e acabei retribuindo o gesto. Quando orei, há
alguns meses, pedindo a Deus por mais amigas, não imaginava que Ele
responderia de forma tão rápida nem que me aproximaria tão intimamente
das meninas da igreja.
— Assim, você vai entrar junto do Gabriel, tudo bem? — ela falou ao nos
afastarmos.
— Hã, claro. — Fiquei confusa com o porquê de a própria Júlia não entrar
com ele, contudo não quis externar a dúvida ainda, por medo da resposta.
Desde o aniversário da Júlia, eu tentava evitar pensar no rapaz loiro que
sempre conseguia arrancar um sorriso de mim. Sempre que meus
pensamentos corriam até ele e ao momento compartilhado juntos, procurava
encher minha cabeça com qualquer coisa, tudo para não me deixar ficar
revivendo aquilo.
E, para a minha sorte, ontem ele precisou faltar ao culto, pois, de acordo
com a irmã dele, ocorreu um problema na antiga empresa do pai e ele
precisou ficar até tarde em reunião com o tio.
— Ai, que bom! — Nina me deu um abraço forte mais uma vez. — No
próximo sábado, vamos nos reunir lá na casa da minha tia e já vou avisando
que sua presença é obrigatória, nem pense em fugir, dona mocinha. —
Apontou o indicador para mim e demos risada.
— Vai mais alguém fora as meninas da igreja?
— Sim, a minha prima, ela já até é casada, então vai saber ajudar nisso,
porque eu estou simplesmente perdida! — Nina ergueu as mãos, suspirando.
— Mas, em nome de Jesus, vai dar tudo certo, Ele está no comando.
— Amém! — falei sorrindo.
Sentamos na cama enquanto ela contava mais algumas coisas sobre a
organização do casamento, falando que não via a hora de finalmente se
juntar ao amor da sua vida e explicando alguns dos seus temores na vida a
dois.
— Nina — chamei-a —, como você e o David se conheceram?
Sempre tive essa dúvida, já tinha escutado alguns comentários aqui ou
acolá, mas nada concreto para juntar as peças.
E se tinha uma coisa que eu amava era saber histórias de amor,
principalmente as da vida real.
— Ah, então, nós somos amigos de infância — ela contou com um sorriso
bobo.
— Sério? — Ajeitei-me, esperando que ela continuasse.
— Uhum. — Ela, que já estava à vontade na cama, juntou as pernas e
começou a narrar com um brilho apaixonado no olhar. — Nós praticamente
crescemos juntos lá em São Paulo, nossas famílias moravam na mesma base
missionária, então nós dois sempre estávamos brincando. Mas, quando ele
tinha uns dez anos, por aí, os pais dele se mudaram aqui para Curitiba e
acabamos perdendo totalmente o contato.
Carina parou alguns segundos para respirar e reordenar seus pensamentos
enquanto eu a olhava com expectativa para saber como os dois acabaram
noivos.
— Bom, nós ficamos sem nos ver por mais de uma década, aí há três anos
eu participei daquela Escola Missionária de Férias aqui no Paraná e David
também estava.
— Uau — Fui sincera. —, e quem reconheceu quem primeiro?
— Ele! — A moça começou a mexer no cabelo com um sorriso bobo nos
lábios e seu olhar distante indicava que estava relembrando aquele momento.
— Eu era uma das coordenadoras, então peguei no microfone para explicar e
me apresentei, né? Com nome, sobrenome, a cidade e minha organização. O
Gabriel contou que na hora o David, que estava folheando a Bíblia
desinteressado, virou a cabeça e ficou a explicação inteira me encarando,
chocado.
Eu estava surpresa com a história deles, nunca tinha pensado ser tão fofa.
Ficava imaginando se algum dia eu também teria um testemunho lindo assim
para contar aos meus filhos.
— Depois do culto, ele me procurou, se apresentando, eu me surpreendi
ao descobrir que o pirralho que eu cresci junto tinha se tornado bem, assim,
né? Um homem tão bonito. — Nessa hora ela escondeu um rosto vermelho
no travesseiro. — Nós dois, desde o reencontro, começamos a orar um pelo
outro sem saber se era recíproco. Mantivemos a amizade por alguns meses,
eu frequentava a igreja quando estava em Curitiba, na casa dos meus tios, e
acabei me aproximando do resto do pessoal. Até que, quando eu estava
viajando, ele teve a oportunidade de ir para São Paulo e pediu a minha mão
em casamento para os meus pais. Então — Ela jogou o corpo para frente,
rindo. —, o David é louco — murmurou antes de continuar. — Eu já estava
fazendo uma escola lá na Espanha, e ele juntou as economias e viajou para lá
só para se declarar e fazer o pedido.
— Não acredito?! — Coloquei a mão na boca, surpresa, não tinha
imaginado que o rapaz era romântico assim.
— Pois é, primeiro e último ato de romantismo dele! — Ela revirou os
olhos, respondendo ao meu questionamento interno. — Mas iniciamos os
preparativos, ele voltou para o Brasil e já começou a juntar dinheiro para
uma casinha simples. E, então, eu só consegui voltar em setembro, faltando
dois meses para o meu casamento.
— Que lindos — falei ao final. — Vocês dois têm uma bela história para
contar aos filhos de vocês! — declarei, sorrindo.
— Sim, olha, se depender de nós, pretendemos ter pelo menos uns cinco
ou seis. Tanto eu quanto ele amamos crianças, então quanto mais enchermos
nossa aljava melhor.
— Ownt, que Deus os abençoe.
— Amém. Agora preciso ir, minha mãe chega hoje e ela tá uma fera,
porque não quisemos fazer a festa em São Paulo. — Ela deu um salto,
desamassando a saia.
— Mas, realmente, por que escolheram Curitiba?
— Os avós do Dave querem presenciar o casamento, mas eles não têm
mais saúde para pegar uma viagem longa assim. Então, entramos em comum
acordo de fazer aqui — ela explicou.
Após nos despedirmos e eu agradecê-la novamente pela honra, a levei até
o portão.
Graças a Deus meus pais estavam fora de casa, então não houve
questionamentos sobre o que ela teria ido fazer ali.
Entrei no quarto ainda com um sorriso bobo enquanto segurava o convite,
eu precisava contar sobre aquilo para certa pessoa.
Sentando na mesa, peguei novamente a carta e adicionei um adendo ao
final.
“P.S. Querido futuro marido, você não vai acreditar no que
acabou de acontecer! Lembra quando, alguns meses atrás, falei
sobre querer mais amigas? Então, Deus respondeu minha
oração. Acabei de receber um convite para ser madrinha de
casamento…”
Capítulo Quatorze
“Família em amor

Unidos pelo sangue do Senhor

Permaneceremos juntos pela fé

Se algum dia você tropeçar

Contigo vou estar, te levantar

Pela graça do Senhor te sustentar

Como família em amor”


(Purples & Asaph Borba – Família)

Surpreendentemente, após a festa da Júlia, eu não vi mais o Gabriel.


Primeiro foi na sexta-feira, quando ele foi para a reunião com o tio. No
domingo cedo, ele precisou viajar para resolver um problema, então não nos
vimos no culto. Já na sexta seguinte, quem precisou faltar fui eu, pois meus
pais saíram e precisei ficar cuidando do Jonas.
Em diversos momentos, tinha certeza de que ele estava me evitando, pois,
entre esses eventos principais, fui diversas vezes no meio da semana na casa
dos Mendes e minha amiga me informou que ou ele estava no quarto, ou
tinha saído cinco minutos antes de eu chegar.
Em outros, eu pensava se era Deus mandando eu me distanciar dele, se
não estava me envolvendo demais. Eu não conseguia esquecer o momento
na piscina e me culpava por ter gostado, pois, querendo ou não, foi errado
estarmos a sós ali.
Eu evitava pensar, procurava de todas as formas não admitir o que estava
sentindo e precisei confessar que foi bom esse afastamento dele. Eu consegui
compreender melhor meus sentimentos e por que me apegava tanto a
Gabriel.
Voltei a orar por ele, por “nós”, pedia para Deus me dar direção. Eu não
queria me apaixonar por ele e no final me machucar; queria estar inteira para
o meu futuro marido, poder chegar no dia do casamento e dizer que ele fora
o único homem a quem entreguei meu coração.
Júlia estava se maquiando ao meu lado e eu fiquei pensando em como ela
reagiria caso soubesse o tom dos meus pensamentos, ainda mais por
envolver o seu irmão. Mas, mesmo ela não sabendo, Deus sabia, e eu deveria
focar no que Ele estava achando disso.
Graças a Deus tanto minha amiga quanto minha mãe pararam com
qualquer insinuação sobre nós, eu não sabia como poderia estar hoje se
tivessem continuado. Sim, eu via mamãe ainda com as suas expressões
quando o nome de Gabriel era mencionado em alguma conversa, mas ela
não continuou com afirmações sobre nos casarmos nem nada do tipo.
— Júlia, eu achei que você iria entrar com Gabriel no casamento da Nina
— externei uma das minhas dúvidas desde o convite da moça.
— Ah, eu ia — ela falou normalmente e, após isso, deu um pulo, levando
a mão à boca.
— E? Qual o motivo da mudança? — pressionei-a.
— Hum, ah, a Nina achou melhor eu entrar com outra pessoa, para não
ficar estranho sendo meu irmão, sabe?
Arqueei a sobrancelha sem acreditar na sua desculpa esfarrapada, seria
ainda mais lógico deixar ambos juntos.
— Tá, mas por que ela o colocou justamente comigo? Fui a última a entrar
— insisti, vendo que tinha coisa a mais na história. — Tem a Luísa e até a
Mari…
— Vou lá saber, Marta. — Júlia bufou e voltou ao espelho sem me olhar.
— Devia ter perguntado para a própria Carina quando ela te fez o convite.
Permaneci em silêncio, até havia pensado em ter questionado a loira, mas
acabei preferindo não discutir mais aquele assunto.
Júlia deu de ombros, encerrando a conversa, e levantou para procurar algo
para prender o cabelo.
Fiquei analisando os movimentos dela, pensando no que a garota escondia
de mim, mas eu a conhecia e sabia que não me falaria nada.
— Gabriel chegou, vocês duas estão prontas? — Meu pai bateu na porta,
fazendo minha amiga se desesperar atrás do objeto.
— Marta, você não tem um rabicó para me emprestar, não?
Sem falar nada, abri a gaveta que estava na frente dela quando ela estava
sentada, e ela me olhou desacreditada.
— Ridícula — murmurou, por eu tê-la deixado procurando, e pegou um
dos amarradores antes de sair pela porta.
Meus temores se concretizaram quando eu saí do quarto e senti meu
coração dando uma cambalhota ao ver Gabriel em pé na sala, conversando
com meus pais.
Não o ter visto desde o aniversário da Júlia me obrigou a remoer e
questionar tanto meus próprios sentimentos quanto se havia algo da parte
dele.
Aparentemente o humor do rapaz não estava dos melhores, pois ele ficou
todo o caminho em um silêncio absoluto e até as tentativas da irmã em
conversar eram respondidas de forma monossilábica.
Apenas quando pisei para fora do carro percebi o quanto o ambiente
dentro dele estava tenso.
Nina cumprimentou a nós duas e apresentou sua prima. A mulher, Sarah,
devia ter uns vinte e cinco, ela contou que era casada há três e estava grávida
do primeiro filho do casal.
— Já sabem o sexo do bebê? — Júlia questionou, acariciando a barriga
proeminente.
Eu, como sempre, não tive coragem de abrir a boca além das formalidades
básicas. Então fiquei com as mãos no bolso da saia e observei com interesse
a mulher.
— Ainda não, vamos fazer uma consulta após o casamento da Ca —
explicou sorrindo.
Elas nos levaram até uma sala, onde as outras meninas da igreja já
estavam à espera. Após o leve incidente na festa, Luísa, graças a Deus, não
virou mais a cara, a garota se aproximou de mim e me deu um forte abraço.
Então começamos a conversar sobre como seria a festa. Carina explicou
tudo em detalhes; como ela e David eram missionários, não fariam nada
muito grande e a maior parte da decoração, comida e lembrancinhas seriam
feitas de forma caseira.
— O Gabriel procurou o David dizendo que, como presente de casamento,
ele e a família nos dariam a festa, obrigada, Ju. — Ela olhou com amor para
a amiga e ambas se abraçaram.
— A ideia foi do meu irmão mesmo, estávamos nós três pensando em qual
presente dar e ele comentou como vocês estavam com dificuldade para a
festa, então conversamos com meu tio, que tem um salão no centro, e foi
rápido para resolver. — A menina deu de ombros, explicando.
— Nina, você já se deu conta de que daqui a exatas três semanas será uma
mulher casada? — Luísa comentou com um olhar cheio de expectativas.
— E ainda será a primeira do grupo a casar — Júlia pontuou. — Façam
suas apostas de quem será a segunda. — A garota colocou a mão no queixo e
olhou para cada uma.
— Eu tenho meus chutes, mas vou ficar quieta, porque, além de crente,
sou misteriosa — Mariana falou.
— Isso virou seu bordão já — Nina a alfinetou e ela deu de ombros, rindo.
— Acho que todo mundo aqui já imagina quem será a próxima —  Luísa a
olhou zombeteira.
Eu estava confusa na conversa, fiquei me perguntando o que tinha
perdido, porque eu não fazia ideia de sobre quem comentavam. Uma
vozinha começou a sussurrar que elas não confiavam em mim, afinal,
tínhamos nos aproximado há poucos meses, elas não tinham motivos para
me contar se estivesse acontecendo algo.
— O que eu perdi, meninas? — Sarah questionou. — Quem mais aqui
está noiva? — A mulher nos encarou uma a uma, procurando alianças nos
dedos.
— Infelizmente não sou eu — Júlia declarou, suspirando. — Oi, Deus, sou
de novo, se o Senhor quiser, sua filha não está pronta, mas pode mandar e
me capacitar — ela declarou, deitando-se no sofá de forma dramática.
— Ce-li-ba-to! — Mari falou, sílaba por sílaba, provocando a menina.
— Eu repreendo! — A Mendes ergueu as mãos, brincando.
— Eu não entendo esse desespero de vocês para casarem — Sarah
começou a falar com uma voz tranquila, mas havia uma leve repreensão por
trás. — Casamento é uma bênção? Sem dúvidas, amo meu marido. Mas
também tem as suas dificuldades, nem tudo é festa. Muitas coisas que eu
poderia fazer solteira, hoje não posso. Aproveitem a solteirice para se
dedicar ao Senhor, não percam tempo com desespero sobre o futuro.
Após a fala, a moça pediu licença, alegando precisar ir ao banheiro, e ela
até brincou que em breve a Nina e a “moça misteriosa” entenderiam a
necessidade das grávidas.
— Estou com a Sarah, não quero casar e não entendo nem um pouco esse
desespero de vocês.
— Mari, eu já disse para você parar com esse negócio de dizer que não vai
casar, que não quer casar, etc. Casamento glorifica a Deus! — Luísa falou
com irritação na voz.
E nesse momento toda a atmosfera mudou, o que antes era um clima
divertido, agora se transformou em tensão, as meninas aprumaram as costas,
prontas para discutirem.
— Não glorificamos a Deus somente com o casamento. E o Senhor sabe, e
todo mundo também, como eu quero servir e ser missionária, sem marido
mesmo. Mas me sinto forçada a pensar em casamento, porque, se não, estou
sendo egoísta e vivendo só para mim. Olha, eu não duvido que, nas
condições certas, eu venha a me apaixonar, mas não anseio por isso no
momento.
— Mas, Mariana…
— E se ela realmente tiver o dom do celibato? — Carina cortou Luísa.
— Olha quem está falando, você está com casamento marcado para menos
de um mês e estamos aqui exatamente para te ajudar nele — Júlia rebateu
com deboche.
— E daí? Deus pode ter planos de casamento para mim e de celibato para
a Mariana, não somos a mesma pessoa. — Nina voltou a falar e ela olhava
com firmeza para as garotas.
Eu, nesse meio, só fiquei quieta no meu canto, mas prestando atenção a
cada palavra da discussão. Preferiria não me intrometer para não acabar
sobrando para mim, pois parecia que logo sairiam faíscas delas.
— Enfim, voltando para a Mari — Nina continuou. — E se ela realmente
tiver o dom do celibato? E se no futuro Deus a chamar para ser missionária
solteira? E se ela casar e tiver vários filhos? E se casar e não tiver filhos
biológicos, mas Deus der graça para adotar? E se casar, não tiver filhos e for
para a missão com o marido? E existem vários outros “e se”, porque nós não
sabemos o querer de Deus. Mas sabemos que no momento ela mora com os
pais, atua na igreja, não tem casamento em vista, não está em missão e luta
para vencer pecados e estar satisfeita em Cristo e somente nEle. Mas as
pessoas querem ser “deus” na vida dela e não conseguem aceitar isso, então
vamos lutar, porque ela precisa estar como o resto de nós, e eu me incluo
nessa categoria — Nina ressaltou —, desesperadas pelo casamento e se
apaixonando pelo primeiro rapaz que demonstrar o mínimo de caráter
piedoso pela frente.
— Além do mais — Mari voltou a falar, incentivada pelo discurso da
amiga. —, tivemos um claro exemplo disso no passado, quando eu e Gabriel
nos envolvemos apenas porque ambos éramos cristãos verdadeiros e,
portanto, todos diziam que tínhamos obrigação de casar um com o outro.
Graças a Deus desistimos dessa loucura antes mesmo de entrarmos no
namoro. Mas e se eu tivesse me apaixonado por ele por causa dessas
insinuações? Como eu ficaria? Com um coração partido e choramingando,
porque o broto que eu gostava não me queria? E perderia uma amizade
incrível com ele, porque as pessoas não sabem calar a boca e querem mandar
no futuro dos outros, sendo que elas não podem controlar nem o delas
próprio! — A garota terminou, nervosa, e seu tom de voz saiu bem mais
alto.
Após a sua fala, o clima ficou ainda mais tenso e vi alguns olhares virados
para mim, que estava totalmente alheia à situação e não entendi a
movimentação.
— E pelo amor de Deus, gente, vocês acham que Deus não pode mudar a
opinião dela? Que, no momento certo, ela não pode vir a ter esse desejo? —
Carina completou, retomando a discussão.
— Está tudo bem aqui? — Todas viramos assustadas ao ver uma Sarah
chocada na porta. — Eu só fui ao banheiro, o que perdi?
— Nada! — Luísa falou com grosseira.
— Luísa, agora já chega! — Mariana perdeu a paciência de vez. — Como
você quer se chamar de cristã se nem age como tal? E como quer casar dessa
forma?
— Você está querendo dizer alguma coisa com isso? — A outra já se
levantou para se defender.
Eu suspirei, vendo exatamente a cena da festa, mas dessa vez eu era uma
das telespectadoras. Queria interromper para não acontecer o mesmo, porém
não sabia o que falar.
— Exatamente o que eu disse — Mariana retrucou. — Você se acha no
direito de distribuir suas grosserias para todo mundo sem nem pensar na
pessoa, vimos isso claramente no aniversário da Júlia. E agora pensa estar
pronta para um casamento, mas já vai dar patada no seu marido na primeira
discussão? Não sabendo resolver os problemas ao receber um não? E, é
claro, você precisa aprender a ter um temperamento que glorifique a Cristo!
— Você não sabe nada sobre mim!
— Imagina se eu soubesse, eu sou sua irmã e cresci vendo você usar…
— Mariana, chega! — Júlia a interrompeu. — Você está perdendo a razão
agora, e você, Luísa, está repetindo a mesma coisa que aconteceu na minha
festa, acabando com um momento feliz por causa das suas futilidades.
— Agora começou a ressuscitar defunto, sendo que eu já te pedi
desculpas! — Luísa ergueu sua voz.
— Gente, basta! — Surpreendendo a todas, e até a mim mesma, gritei,
levantando. — Luísa, a Júlia está certa, estamos acabando com o casamento
da Nina por causa de briga. Sim, você precisa mesmo aprender a controlar
seu temperamento explosivo, mas aqui não é lugar disso. Cada uma de vocês
três vá tomar água, respirar um ar e daqui a cinco minutos voltem como se
fossem melhores amigas, se arrependendo disso, pedindo primeiro perdão a
Deus e depois umas às outras — ordenei, vendo todas saindo quietinhas.
Totalmente desacreditada com a minha explosão, caí dura no sofá,
tentando raciocinar o que acabei de fazer.
A mais perdida da história era Sarah, ela tinha uma expressão chocada
antes de sair da frente da porta para as meninas passarem.
— Elas são sempre assim? — perguntou, apontando para fora.
— Luísa, sim, da última vez se envolveu em uma discussão com a Marta,
agora foi com a própria irmã. Oro para que Deus mude isso nela e lhe dê
alguma forma de usar essa potência colérica para a obra dEle — Carina
desabafou, esfregando o rosto.
Abaixei a cabeça, envergonhada por relembrar minha atitude e quanto eu
mesma perdi meu domínio próprio discutindo com a garota.
— Em nome de Jesus — sua prima reforçou. — Mas agora me fala, quais
vão ser as cores da decoração? — perguntou, voltando ao assunto principal.
Nina, então, começou a narrar suas ideias com animação. Minutos depois,
as três voltaram aparentemente bem e enfim pudemos entrar de vez na
discussão boa acerca do casamento.

A reunião tinha acabado um pouco mais cedo, eu estava pensando em


como contactaríamos Gabriel para vir nos buscar quando a própria Sarah se
ofereceu para nos levar até em casa. Dessa vez, Júlia ajudou a orientar o
caminho, porque eu não conhecia nada.
Ao chegarmos, Júlia entrou comigo para pegar uma blusa emprestada.
Travei na porta quando me deparei com Gabriel, Carla e meus pais
sentados no sofá conversando. Os quatro tinham expressões relativamente
sérias e se assustaram com a nossa chegada.
— Oi, meninas — meu pai foi o primeiro a falar —, chegaram cedo.
Gabriel já ia sair para buscar vocês daqui a pouco.
— É, a Sarah, prima da Nina, nos trouxe — Júlia explicou por nós. —
Amiga, vamos? — Ela me cutucou, puxando pelo braço. — Deixe os adultos
resolverem os problemas deles!
Não entendi nem um pouco a mudança repentina da garota, que me
empurrou, gritando para a chamarem quando estivessem indo embora.
Eu tentei voltar ao assunto, mas ela desconversava de todas as maneiras
possíveis, então, por fim, desisti, ficando deitada na cama com meus
próprios pensamentos. Tentava entender a presença de Gabriel e por que eu
estava tão afetada com o afastamento dele.
Júlia continuou narrando acontecimentos sem sentido, apenas aguçando a
minha curiosidade sobre o porquê de ela se esforçar tanto para não falar
sobre o motivo de a mãe e o irmão estarem na sala da minha casa.
Depois de uns quinze minutos nisso, Carla bateu na porta, chamando-a. A
mulher me cumprimentou com um sorriso gentil, fazendo perguntas de
cortesia antes de as duas irem embora.
Eu preferi não sair do quarto para reencontrar Gabriel, não me importei
com a gentileza esperada por eu ser a dona da casa, já que ele próprio me
ignorou na minha chegada. Bufei, frustrada, sem entender a bagunça dos
meus sentimentos.
Sabia que deveria ir para a Bíblia, há dias não fazia o meu devocional e
ignorava levar aquela parte do meu coração para Deus. E novamente optei
pelo caminho mais fácil, pegar um romance para ler e, assim, poder dar mais
cordas à minha imaginação.
Capítulo Quinze
“Eu quero dizer
Com todo o meu coração
Ajuda-me a amar Você
Mais do que eu o amo
Então eu sei que posso
Amá-lo mais
Do que ninguém”
(John Waller - The Marriage Prayer)

A véspera do casamento da Nina chegou com grande animação.


Como já planejado, toda a preparação da noiva seria feita na casa da Júlia,
desde a noite anterior, em que ficaríamos conversando, até a moça se
maquiar para o casamento. Nós estávamos sentadas na sala e minha memória
retornou ao dia de jogos do mês passado, mas dessa vez eram apenas
mulheres, e várias mais velhas também.
Já vestida com meu pijama, eu folheava um livro emprestado pela Júlia.
Era um romance cristão da Isabella Lewis, a tal rainha de Porto das Rosas, e
ela disse que eu amaria o enredo. Estava curiosa para começar a ler, mas
preferi deixar para quando estivesse a sós, e não cheia de conversas em
volta.
— Em menos de vinte e quatro horas, minha bebezinha já vai ser uma
mulher casada — Margareth exclamou, chorosa.
A mulher era extremamente parecida com Nina, tanto fisicamente quanto
com a personalidade extrovertida.
— Quero nem imaginar quando a Juju ou o Gabe casarem. — Entrando na
brincadeira, Carla abraçou a filha mais nova e ela revirou os olhos diante do
drama da mãe.
— Você vai dar graças a Deus quando se livrar de nós dois.
— Eu vou ficar sozinha e abandonada nesta casa, isso, sim — rebateu e
Júlia a empurrou murmurando “dramática”.
— Aliás, Carla, e o Gabriel? Vai casar, não? — Margareth deitou-se no
colchão, aguardando ansiosa a resposta.
— Olha, tenho minhas suspeitas de que logo esse aí tá comprometido!
Acabei me assustando com a fala de Júlia e ergui a cabeça, curiosa. Porém
rapidamente a abaixei, temendo falsas interpretações com a minha atitude,
restando apenas um coração acelerado.
— Como assim? — Mirian, mãe do David, olhou-a surpresa. — O Biel?
Conta melhor essa história, dona Carla.
Eu já estava quieta antes, então não mudei muito de como eu já era
normalmente, mas senti um aperto — indesejado — no peito ao presenciar
aquela conversa. Eu me mexi, ajeitando-me melhor, e fiquei ouvindo com
receio de perceberem minha expressão.
Com a visão periférica, vi Carla dando um tapa leve em Júlia, mas a
menina apenas deu de ombros.
— Quando for a hora certa, se ela chegar a acontecer, vocês vão ficar
sabendo, por enquanto está apenas entre ele e Deus. Agora chega, esse
assunto não deveria nem ter sido iniciado para começar.
Elas mudaram a conversa para o casamento do dia seguinte, relembrando
quando aconteceu o delas próprias.
Graças a Deus, Luísa estava no banho e não ouviu aquilo. Fiquei com
medo, pensando em qual seria a reação dela quando descobrisse que Gabriel
estava orando por alguém. Isso se esse alguém não fosse ela própria, talvez
seja esse o motivo de ele ter se afastado no último mês, por ter descoberto
sentimentos pela garota e ficado com vergonha por ter feito aquelas
afirmações.
Então meus pensamentos voltaram para o dia em que as meninas diziam
fazer apostas sobre quem seria a próxima a casar e, com certeza, aquilo tinha
alguma relação com hoje. Senti uma mão fazendo carinho no meu ombro e
tive um sobressalto.
— Marta? Está tudo bem, querida? — Carla perguntou gentilmente, com
uma genuína preocupação no olhar.
— Hã, claro, por quê? — questionei, desconcertada por ver que só
estavam ela e Júlia ali.
— Estamos indo jantar, te chamamos, mas você parecia estar em outro
mundo.
— E-eu estava pensando na história do livro. — Menti, envergonhada por
minha atitude.
Carla trocou um olhar com Júlia, mas não disse nada, apenas me auxiliou
a levantar.
Eu não entendia por que tinha ficado tão mexida com o fato de Gabriel
estar orando por alguém; nós não tínhamos nada nem éramos tão próximos
para ele me revelar algo íntimo assim.
Agora fazia sentido a Júlia ter parado com todas aquelas insinuações sobre
nós dois, ele deve ter conversado com ela sobre essa outra pessoa. A questão
era: quem era essa garota? Sabia ser alguém do grupo, mas não conseguia
pensar em especificamente ninguém.
Enquanto jantávamos, eu ficava analisando e pensando quem das meninas
poderia ser. Tirando Nina e Júlia, obviamente, as outras do grupo eram
Mariana e Luísa.
Júlia era irmã dele, nem era uma possibilidade a ser cogitada. Mari tinha a
questão de já ter revelado que oraram juntos e não tinham sentimentos um
pelo outro; claro, poderia ter surgido algo, talvez, agora, mas não fazia muito
sentido diante da fala da menina na casa da Sarah há apenas duas semanas.
Quem sobrou foi Luísa, e, mesmo apesar de todas as discussões da festa,
talvez ele tenha mudado de opinião.
E eu!
Levei um susto com o rumo dos meus pensamentos, mas logo os descartei,
não teria lógica Gabriel gostar de mim, além de ele nunca ter demonstrado
nada além de uma simples amizade.
Contudo eu sabia como gostaria se isso fosse verdade. Eu amava estar na
companhia dele, Gabriel soube me tirar do casulo como ninguém, me fazia
rir, era um homem piedoso, do jeitinho que sempre orei. Além de tudo, era
missionário; se nos casássemos, eu teria essa oportunidade de estar em
campo, acompanhando-o.
Respirei fundo, voltando a prestar atenção na conversa para não acontecer
o mico de minutos atrás novamente, enquanto repetia para meu coração
parar de criar situações para me iludir.
— Ambos já éramos convertidos, mas eu não tinha esperanças de casar no
papel e na igreja — Carla narrava sobre quando foi pedida em casamento. —
O Gabriel devia ter uns dois anos, por aí. Um belo dia cheguei em casa e ela
estava toda cheia de flores até o jardim ali — Apontou para o ambiente a
poucos metros de nós. —, e o Biel segurava um cartaz escrito “você aceita
casar com o papai?”
Nesse momento a mulher acabou rendendo-se às lágrimas e Júlia a
abraçou, refugiando-a.
— O Josué fez uma declaração linda, falando sobre como Cristo restaurou
o nosso casamento e como ele queria fazer da forma certa dali em diante, me
tratar como uma verdadeira irmã até o dia em que formássemos uma aliança
diante de Deus. Pelos próximos dez dias, dormimos em quartos separados e
fizemos uma cerimônia simples na igreja mesmo, só com alguns parentes e
amigos.
— O Gabriel sempre se inspirou muito no Josué, né? — Mirian perguntou,
mas já sabíamos a resposta.
— Demais — Júlia murmurou, arrancando risos.
— Sim. — Carla fez uma pausa para limpar as lágrimas antes de
continuar. — O Josué morria de medo de o Gabriel seguir o exemplo dele
antes de ser cristão. Mas isso, na verdade, só aumentou a admiração dele, o
Gabriel tinha, e tem, orgulho em ficar contando como o pai sempre agiu
como um verdadeiro cavalheiro depois de ser convertido.
— Vocês o criaram muito bem, tem razão em ter orgulho dos dois —
Margareth a elogiou.
Após agradecer, sem graça, as outras mais velhas começaram a contar
suas próprias histórias de romance. E nós, jovens, apenas ouvíamos,
admiradas com os testemunhos e sonhando com quando seria a nossa vez.
— Mas já vou avisando, casamento não é só romance, não, na verdade a
parte romântica sonhada por nós mal aparece, porque, desde o primeiro mês,
já começam as lutas.
— Ué, tia Mirian, mas vocês, casadas, também não negam ser felizes. —
Luísa apontou o dedo, semicerrando os olhos para ela.
— E eu falei algo contra isso? — A mulher ergueu as mãos, defendendo-
se. — Apenas estou falando para vocês já irem desfazendo essa visão
romântica, são dois pecadores depravados se casando, garanto que não vai
ser fácil, pergunta para a sua mãe.
Erguemos o olhar para Kátia, e ela assentiu, concordando.
— Muitas vezes perco a paciência com João e acabo pecando, mas Deus
nos dá graça para pedir perdão e nos reconciliar depois, como a Mirian
falou, somos pecadores convivendo quase vinte e quatro horas por dia
juntos, pelo resto da vida. Não é à toa que Martinho Lutero chama o
casamento de escola de caráter, pois somos testadas a todo momento para
desenvolver paciência, amor, perdão, longanimidade, domínio próprio e
muitas outras características essenciais para os cristãos.
— Então, acho que vou pensar duas vezes antes de entrar em um
casamento — Júlia falou séria, arrancando risadas de todo mundo.
— Meninas, casamento não é uma coisa qualquer, entrar em um
relacionamento matrimonial é algo muito sério e vocês precisam se preparar.
Talvez alguém aqui não queira casar — ela direcionou um olhar carinhoso
para a filha mais velha —, ou talvez deseje muito isso. Não importa em qual
das duas opções você esteja, vocês precisam estudar sobre feminilidade para
representarem a noiva de Cristo.
— Ai, podiam ter me falado antes para ir me preparando, né? — Nina
murmurou, por fim, encolhendo os ombros.
Aquelas duas primeiras letras exclamadas por Nina resumiram tudo dentro
de mim, o quanto as palavras ditas ao longo dessa conversa me fizeram
refletir se realmente estava pronta para casar.
— E não importa se uma moça nunca se case ou se se casará amanhã —
Kátia voltou a falar. —, vocês precisam estudar e aprender sobre a
verdadeira feminilidade para glorificarem a Deus sendo aquilo que Ele criou
vocês para serem.
De repente Margareth deu um pulo da cadeira.
— Olha a hora! Enfim, vamos dormir, porque temos uma noivinha que
precisa estar descansada para casar amanhã. E aproveitem para refletir sobre
o assunto.
Batendo as mãos, conseguiu mandar todo mundo de volta para a sala.
Deitada no meu colchão, meus pensamentos estavam a mil, variando entre
a descoberta de Gabriel estar orando por alguém e a conversa sobre a
seriedade de um casamento, que me mostrou como eu ainda não estava
pronta para encarar um.

O dia seguinte se passou em um piscar de olhos, logo todas estavam


desesperadas para se arrumarem e tínhamos uma noiva com os nervos à flor
da pele com cada detalhezinho. Como tinha muita gente nos Mendes, eu
apenas atrapalharia, por isso fui para minha casa me arrumar.
Na frente do espelho, passei as mãos pela saia levemente arredondada do
vestido, sorrindo por me sentir bonita. O tom rosé dava um ar fofo que eu
amava, além das mangas descendo em tule até perto do punho, trazendo a
delicadeza. Graças a Deus o vestido era apenas até o joelho, assim evitando
que morrêssemos de calor.
Conforme as orientações, eu, como madrinha, precisava chegar mais cedo,
então papai me levou primeiro e depois voltou para casa para terminar de se
arrumar.
A parte da cerimônia seria na nossa igreja mesmo e uma mulher lá na
frente me guiou até a salinha dos fundos, onde estavam me aguardando.
Capítulo Dezesseis
“E quem diria
Olhando para trás
Que essa história ainda tinha um final feliz
Esses dois mundos distantes se encontram
E nasce o amor”
(Vocal Livre - Eles se Amam)

Prendi o fôlego ao passar pela porta e ver Gabriel conversando com


alguns amigos.
O rapaz estava usando um terno preto exatamente para o seu tamanho,
contrastando com os cabelos loiros levemente bagunçados, denunciando a
sua mania de passar os dedos nele.
Fechei os olhos, me dando conta dos meus pensamentos, mas eu não
conseguia desviá-los, não quando lembrava que ficaria o casamento inteiro
ao lado dele.
Eu estava arrependida de ter ficado refletindo ontem, não devia ter ido tão
fundo no meu próprio coração. Ao analisar o motivo para estar tão
incomodada com ele estar orando, acabei chegando a conclusões não muito
agradáveis no momento.
— Marta, vem logo — Júlia gritou, acenando de onde eles estavam.
Forcei minhas pernas a caminharem até eles e senti o coração acelerando a
cada passo dado. Parei ao lado deles, porém não falei nada, preferindo ficar
quieta.
— Relaxa — Gabriel falou baixo, aproximando-se de mim.
— O quê?
— Eu sei que dá nervoso ao pensar em daqui a pouco entrar na frente de
todo mundo, acredite, também estou com frio na barriga. — Ele deu uma
risada baixa. — Tenta puxar o ar e soltar diversas vezes, vai ajudar.
Murmurei “obrigada” sem jeito.
Eu não iria revelar que minha situação não era por causa das pessoas, ao
menos não até o momento. Devido aos meus sentimentos, nem lembrava
mais sobre a entrada, então agora tinha dois motivos para ficar nervosa.
Cruzei meus braços, fazendo o exercício de respiração passado por ele, e
aos poucos fui sentindo o coração se acalmar.
Constantemente sentia os olhos de Gabriel se desviarem da conversa,
direcionando-os com carinho para mim e em momento algum ele saiu do
meu lado, me dando pequenos sorrisos de vez em quando, tentando me
animar.
Não parecia nem um pouco a mesma pessoa que me ignorou por semanas,
ou talvez tudo tenha sido coisa da minha cabeça, uma invenção criada por
mim.
— Pronta? — ele questionou quando Margareth começou a chamar os
padrinhos para se organizarem.
— Não, mas vamos lá — respondi, rindo.
Com gentileza, o rapaz segurou minha mão, encaixando-a em seu braço.
Precisei segurar o ar, por medo do nosso contato. Para a minha sorte, ele
pensava ser devido ao nervosismo de ser o centro das atenções por alguns
minutos, o que também piorava tudo.
— Tem muita gente? — sussurrei quando anunciaram o início das
entradas.
— Mais ou menos — ele falou em um tom igualmente baixo —, mas
aproveite o momento, não se esqueça de sorrir e se divertir. Eu vou estar
aqui do seu lado o tempo todo, nada vai acontecer.
Assenti, mais uma vez puxando o ar. O olhar dele perscrutou meu rosto
por um tempo, parecendo querer dizer mais ou fazer algo, mas, após
suspirar, apenas olhou para frente, arrumando a sua postura.
Aproveitei a deixa para me arrumar também e, então, abriram as portas,
anunciando as entradas.
Os primeiros eram os mais próximos: a irmã e o cunhado de David, os
primos dele e da Nina, e outros parentes. Após isso, começaram os amigos.
Júlia, que estava na nossa frente, acompanhada de um dos muitos amigos
em comum com o noivo, virou desejando um “boa sorte” antes de ela
própria entrar.
Senti um pavor ao me dar conta de que agora seríamos nós dois. Gabriel
apertou forte minha mão antes de começarmos a caminhar.
Durante todo o percurso, evitei ficar olhando em volta ou analisar quem
estava lá, senão acabaria me estabanando e cedendo ao nervosismo. Fiz
conforme o orientado, abri um singelo sorriso até chegarmos ao fim.
Quando paramos, vi, pelo canto do olho, Gabriel soltando o ar e não
consegui segurar o riso por ver o rapaz nervoso. Como ainda estávamos em
pé na frente, continuei sorrindo, aguardando o resto dos padrinhos.
Mari entrou com um rapaz, que, depois, descobri ser um velho amigo de
infância dela também, e Luiza estava acompanhada de um primo.
— Aposta quanto que ela vai chorar? — Gabriel sussurrou quando
anunciaram a entrada da noiva.
— Nada, toda noiva chora no dia do seu casamento — respondi-lhe, rindo.
— Ah, é? E você vai chorar no seu?
Desviei o olhar da porta, direcionando-o a ele sem entender a pergunta, ele
apenas abriu um de seus sorrisos de lado, dando de ombros.
— Não duvido muito, é um dia emocionante. — Senti meu rosto começar
a esquentar.
— Pois é, acho que até eu vou chorar no meu — revelou com uma pitada
de sarcasmo na voz.
Abaixei a cabeça, segurando a risada, não conseguindo pensar rápido em
uma resposta a altura.
— Espero estar viva para ver Gabriel Mendes chorando — sussurrei antes
de as portas se abrirem e a marcha nupcial começar a ser tocada.
Nina estava simplesmente linda. O vestido era a cara dela. Inteiro rendado
com arabescos florais, as mangas iam até o punho e eram levementes
bufantes, com as tradicionais ombreiras em cima. Também não era decotado,
tendo sua gola fechada em renda no pescoço.
Quando o olhar dela encontrou o de David, pequenos brilhos refletindo as
lágrimas escorreram pelo seu rosto. Desviando o olhar para o noivo,
encontrei-o também sorrindo emocionado, olhando-a.
Lembrei-me da história de romance dos dois, do quanto lutaram até estar
aqui. De terem ficado separados por anos, mas Deus os uniu novamente
quando já adultos.
Quando eu pensava na minha própria história de amor, orava para Deus
também me dar um lindo testemunho assim. Meu sonho era poder juntar
meus filhos e poder contar junto ao meu marido como nos apaixonamos.
E esse era um dos meus maiores temores ao constatar ter algum
sentimento romântico em relação a Gabriel, o medo de não ser
correspondida. Na última noite, passei horas pensando em todas as suas
atitudes, mas em nenhum momento ele demonstrou claramente que gostava
de mim.
Puxei o ar, tentando pensar em outra coisa, principalmente quando ele
próprio estava ao meu lado, sorrindo e admirando os amigos.
Eu não julgava Luiza por se apaixonar por ele, não quando eu mesma me
via com medo de admitir tal sentimento.
O pai de Nina deixou-a no altar, dando um beijo em sua testa antes de
olhar feio para David, arrancando algumas risadas dos convidados.
Então, o pastor João começou a liturgia. Ele explicou sobre o casamento
ser a representação de Cristo e sua Igreja, mas também era a união de dois
pecadores, com pensamentos, criações, desejos e egoísmos diferentes.
Lembrei da conversa de ontem com as mulheres, em que elas ressaltaram
exatamente as mesmas coisas.
Para mim, uma das partes mais lindas da pregação foi quando o pastor
exemplificou sobre como Cristo trabalha em nós a partir do pecado do
cônjuge e dos filhos:
— Como vamos aprender misericórdia, paciência, bondade, amor
incondicional, compaixão, se casamos com alguém que nunca falha, que não
exige nada, que sempre reconhece suas falhas? Como vamos aprender
misericórdia com alguém que não merece, se casamos com alguém que
merece nosso amor, que merece só coisas boas?
Em seguida explicou sobre como o principal propósito do casamento é nos
tornarmos parecidos com Jesus para a glória de Deus.
— Sempre tentamos transformar nosso cônjuge e nossos filhos em nossa
imagem, por isso temos tantos problemas. Casamos com alguém que não
atinge as nossas condições. Casamos com alguém que precisa de
misericórdia e, então, aprendemos a dá-la e nos tornamos parecidos com
Jesus, e o cônjuge também é transformado![1]
Nesse momento, por algum motivo bobo desconhecido por mim, eu já
estava emocionada e sentia pequenas lágrimas começarem a descer. Gabriel,
com um sorriso de canto, me estendeu um lenço para secá-las. Tive vontade
de negar, mas realmente precisava para não borrar mais a maquiagem.
A cerimônia seguiu-se com o lava-pés. Enquanto os noivos revezavam em
lavar os pés um do outro, o pastor explicou a simbologia como sendo para
demonstrar a aliança que estavam firmando de sempre servir, de se
comprometer a nunca querer ser superior, mas a estarem sempre prontos a
serem servos.
Era a primeira vez que via isso em um casamento e me encantei com o
simbolismo por trás. Aquele simbolismo expressava o quanto o casamento
significava mais, fiquei admirada de ver a forma como os noivos escolheram
demonstrar todo seu comprometimento um para com o outro.
Com o anúncio para a entrada das alianças, um casal de criancinhas, prima
da Nina e primo do David, começaram a andar, carregando uma almofada
em suas mãos. Os dois não deviam ter nem cinco anos e derreteram o
coração de todo mundo vestidos cheios de pompa.
Olhando para eles, fiquei pensando se algum dia Deus me abençoaria com
meus próprios filhos, se eu teria crianças abençoadas e como talvez eles
seriam fisicamente. Consequentemente comecei a refletir sobre meu futuro
esposo, como nos conheceríamos e se ele ao menos existia.
Incitada por aqueles pensamentos, meu coração acelerou quando Gabriel
se inclinou murmurando alguma coisa sobre os dois pequenos e o quão
bonitinhos eram. Eu estava tentando fugir daqueles sentimentos, mas estar
tão perto dele não auxiliava em nada.
O pastor voltou a falar e, pegando uma das alianças, começou a brincar
com ela no dedo, mostrando-a para o público.
— Quando estudamos Teologia, vemos a existência dos diversos pactos
entre Deus e seu povo, Deus e Cristo. Fazer uma Aliança com alguém é
fazer um pacto. A Aliança é uma entrega, é quando o meu interesse pessoal
deixou de ser o mais importante e agora a vida compartilhada vira uma
prioridade. Na Aliança não existe mais o Eu, agora somos Nós. No momento
em que você forma uma Aliança, você tem um aliado, vocês estão no mesmo
time e ele não é seu inimigo, nem ela é sua inimiga, vocês estão juntos para
terem uma família e refletirem a glória de Deus. O casamento é uma dupla
Aliança: entre você e seu cônjuge e vocês dois com Deus. É um
compromisso que assumimos quando fazemos nossos votos, esses
juramentos definem o pacto que estabelecemos.[2]
Após mais algumas palavras sobre casamento e piadas com o jeito
espalhafatoso da noiva, que quase derrubou o copo do pastor, eles fizeram os
votos oficiais:
— Eu, David Hernandes, tomo você, Carina Carvalho Silva, como minha
legítima esposa, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na
saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida,
até que a morte nos separe; de acordo com a santa vontade de Deus e do
presente regulamento, me comprometo a você.
Ele carinhosamente colocou a aliança em seu dedo e deixou um beijo por
cima. Ela pegou o microfone, então, e começou a falar com a voz embargada
pela emoção:
— Eu, Carina Carvalho Silva, tomo você, David Hernandes, como meu
legítimo esposo, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na tristeza, na
saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da minha vida,
até que a morte nos separe; de acordo com a santa vontade de Deus e do
presente regulamento, me comprometo a você. — Ela repetiu o gesto com a
aliança.
— E eu, diante de Deus, vos declaro marido e mulher — o pastor fez uma
pausa, olhando-os com expectativa —, pode beijar a noiva! — anunciou,
dando um passo para trás e abrindo um sorriso orgulhoso em ver mais um
casal unido.
Nina abaixou os olhos, encarando o chão, e seu rosto começou a ganhar
um tom avermelhado, denunciando a sua vergonha naquele momento. Ela
tinha nos revelado ontem à noite seus temores, pois nunca tinha beijado,
enquanto o noivo já teve uma vida amorosa anteriormente.
David a olhou com ternura e, puxando-a pela cintura, acariciou
gentilmente seu rosto antes de selar os lábios de ambos em um beijo curto.
Instintivamente levei a mão ao ouvido com o grito de Gabriel
comemorando e não consegui evitar a careta quando o noivo fez um
soquinho no ar comemorando. Nina também revirou os olhos, até um
momento como aquele foi transformado em cômico pelos dois.
Respirei fundo para não ceder à irritação de ver Gabriel cheio de piadinhas
e graça com David após a cerimônia. Como não podia sair de perto dele,
minha única alternativa era me segurar para não falar nada. Minha esperança
era de que ambos se comportassem quando fosse o meu casamento.
Os noivos foram os primeiros a saírem e não demorou muito para meu pai
aparecer, me chamando para ir também.

Meu maior desejo no momento era me sentar e poder espairecer. Já fazia


uns dez minutos que estávamos no toalete, e Júlia e Luiza insistiram que
precisavam retocar a maquiagem e, depois, passaram a arrumar o cabelo,
que, com certeza, não tinha um fio sequer fora do lugar.
— Vai que meu predestinado esteja aqui, meus pais se conheceram assim,
no casamento de um amigo em comum! — Júlia alegou quando perguntei o
motivo de quererem estar tão perfeitinhas.
Cansada daquela enrolação, me despedi — sob os protestos das garotas —
e voltei para o salão.
Vagueei meus olhos pelo local à procura de um lugar separado para me
sentar, mas estagnei quando eles pararam em Gabriel e Igor, esposo da
Sarah, conversando. Ambos estavam com expressões sérias e parecia ser um
assunto importante, principalmente com Gabriel gesticulando intensamente.
Por fim, eles apertaram a mão um do outro, como em um acordo, antes de o
rapaz se levantar.
Com medo de ser pega em flagrante, tratei de me desviar e achar logo uma
cadeira. Mas fui interrompida quando o próprio Gabriel se materializou na
minha frente.
— Oi, Marta.
— Oi — respondi sem olhá-lo.
Nesse momento, para minha desgraça, as luzes principais se apagaram,
deixando um clima romântico e dando início às danças. Gabriel sorriu antes
de me perguntar com a mão estendida:
— Aceita dançar comigo?
 

 
[1] Mauro Fraga
[2] Darrel e Márcia
Capítulo Dezessete
“Pra maior festa da vida quem convida é o amor
O céu acende luzes e nos faz um favor
Sinceridade no olhar, linda canção vai embalar
Quero encontrar meu par pra minha dança começar
Segura a minha mão, você terá que me cuidar
É teu meu coração, se você for meu par
Ninguém gosta de solidão, mas escolhi te esperar
Fiz uma oração pra este dia chegar
Fiz uma oração para encontrar meu par!”
(Escolhi te Esperar – Marcela Taís)

Repetindo para mim mesma para permanecer normal, forcei-me a encarar


Gabriel e assenti com a cabeça. Quando sua mão tocou a minha, meus
ouvidos ressoaram meu coração acelerado e eu torcia para não ser tão alto a
ponto de ele ouvir.
Não pude evitar sentir o peito aquecendo quando ele, já me conhecendo e
sabendo que eu não gostava de chamar atenção, me levou a um canto mais
reservado do salão, demonstrando um cuidado atencioso de sua parte.
Com gentileza, Gabriel colocou uma de suas mãos na minha cintura,
segurando-me perto de seu corpo; enquanto, com a outra, ele entrelaçou seus
dedos aos meus, começando a nos levar no embalo da música.
Depois de um tempo, percebi ser a famosa “The Wedding Song”, do Paul
Stookey. Foi uma das primeiras que ouvi quando ganhei o walkman.
Eu tentava controlar meus sentimentos, mas, a cada interação entre nós,
eles só aumentavam, e agora pareciam querer explodir.
Enquanto dançávamos, me sentia literalmente nas nuvens e temia dar
qualquer passo em falso, tendo como consequência uma queda livre.
Permaneci com os olhos fechados, a cabeça levemente encostada em seu
peito, sem coragem para encará-lo.
— Você dança bem — ele sussurrou, sendo o primeiro a quebrar o
silêncio.
— Obrigada — agradeci, envergonhada. 
Ao mesmo tempo em que queria o fim da música para me esconder
daquela confusão, do frio na barriga e das famosas borboletas no estômago,
também queria ficar ali, em seus braços, para sempre. Jamais havia
experimentado tais sentimentos tão controversos.
E foi naquele momento que eu percebi como não adiantava fugir, estava
claro e perceptível: eu estava apaixonada por Gabriel.
Não, não foi algo que veio de repente, uma paixão consumidora. Foi algo
construído em cada conversa, em cada sorriso ou troca de olhares, um amor
lento e devagar.
Queria procurar alguém para conversar e me ajudar a compreender o que
acontecia dentro de mim, mas não fazia ideia de quem seria essa pessoa.
Tinha medo; medo de falar sobre isso em voz alta e sair ferida no final de
tudo.
— Está tudo bem? — Estava tão concentrada em meus próprios
pensamentos que me sobressaltei com a pergunta de Gabriel.
— Sim, por quê? — questionei, desconcertada. Mesmo sabendo ser
impossível, inconscientemente fiquei com medo de que ele tivesse lido todos
os meus temores.
— Você está com um olhar distante, parece estar pensando em muitas
coisas.
— E isso é ruim?
— Não. — Ele riu e senti um aperto, por achar a risada dele bonita. — Na
verdade admiro isso em você, a forma como sempre pensa duas vezes antes
de falar alguma coisa. 
Gabriel, então, ergueu o olhar e eu me vi perdida nele, ficamos um longo
tempo assim, entre sorrisos, olhares, eu abaixando o rosto envergonhada e
ele rindo, fazendo alguma brincadeira.
Após o fim da música, o rapaz me guiou para fora da pista de dança, onde
ficamos lado a lado, olhando o vai e vem de pessoas. Mesmo sem
necessidade, ele não se afastou.
Como todas as portas do salão estavam abertas, um vento passou,
causando-me um calafrio. Sem perceber, passei minhas mãos em meus
braços arrepiados.
Estranhei quando senti um casaco sendo colocado nos meus ombros e
virei a cabeça, vendo Gabriel ajeitá-lo.
— Toma, você está com frio — explicou.
Abaixei a cabeça sorrindo, sem conseguir falar nada por causa da
vergonha. Com o canto dos olhos, arrisquei-me a olhá-lo e ele também me
encarava. Ambos viramos repentinamente para frente, dando uma risada
baixa.
— Desculpem atrapalhar o momento fofo de vocês — Júlia apareceu do
nada na nossa frente —, mas vou precisar roubar a Marta.
Tentei reclamar, porém ela segurou minha mão, arrastando-me até uma
sala adjacente ao local. Suspirei, irritada por ter sido tirada daquela bolha,
mas preocupada pela pressa dela.
— O que aconteceu? 
— Não sei, a Luísa está chamando todas nós do grupo.
E foi só nesse momento que me lembrei da garota, do quanto meus atos de
hoje podem tê-la magoado. Um gosto amargo passou pela minha garganta e
só me dei conta de que ainda estava com o casaco de Gabriel quando Nina
arqueou as sobrancelhas, apontando para ele.
Meu rosto pegou fogo, mas Luísa bateu palma na nossa frente, chamando
a atenção para si e forçando-me a tentar disfarçar aquilo. As outras meninas
também estavam ali e pareciam tão confusas quanto eu com o convite.
— Então, eu chamei todas aqui porque quero me despedir de vocês —
revelou com as mãos para trás, nervosa.
— O quê?
— Como assim?
— Que história é essa, dona Luísa?
Foram diversos questionamentos feitos por nós. A única que não estava
surpresa era Mariana, que se mantinha ao lado da irmã em todo o momento.
— Calma, eu vou explicar. Estive orando, conversei muito com meus pais
e amanhã vou para a casa da minha tia, em Santa Catarina.
— Vamos te ver no acampamento de verão? — Nina perguntou com as
mãos na cintura.
— Então, essa é a parte complicada. — Ela mordeu os lábios, desviando o
olhar. — E-eu preciso tirar um tempo apenas para mim e Deus, por isso, no
começo de janeiro, estarei indo para São Paulo, onde vou fazer uma escola
missionária.
Após mais algumas perguntas, os próximos momentos foram cheios de
choro e lágrimas, as outras deram longos abraços nela, desejando “boa sorte”
e outras conversas como essa. Mesmo sendo considerada amiga dela, me
senti deslocada, por tê-la conhecido há poucos meses, diferentemente das
outras, que a conheciam há anos, eu tinha poucas memórias para
compartilhar.
— Você não vai fugir de um abraço, não — Luísa falou, já me puxando
pelos braços quando dei uns passos para trás, longe do aglomerado. —
Muito obrigada por tudo, sério, você não faz ideia do quanto me ajudou com
suas palavras e próprio testemunho de vida. Ah — ela olhou para os lados
antes de confessar baixo —, eu já tenho duas cartas escritas! 
Abri um sorriso e trocamos mais algumas palavras antes de ela se afastar.
Luísa explicou que ainda ficaria a noite inteira na festa, mas preferiu se
despedir antes do que correr o risco de irmos embora sem ela falar conosco.
— E, por favor, não se esqueçam de me mandar o convite do casamento,
presencio o casal desde o primeiro dia e exijo estar presente na cerimônia!
— pontuou, jogando o cabelo para trás.
Franzi a testa tanto com sua fala quanto por Júlia e Nina colocarem a mão
na boca, segurando a risada. A primeira, então, chamou a atenção para si,
mudando de assunto.
Aproveitando aquela distração, retirei o casaco, disposta a devolvê-lo ao
dono o mais rápido possível. Fiquei tão envolta naqueles sentimentos que
não percebi o quão errado era até ver a reação das outras meninas, ao menos
na minha cabeça.
Ao chegar lá, Gabriel dançava com sua mãe, arrancando muitas risadas
dela. Ao me ver, o rapaz me dedicou um lindo sorriso antes de voltar a
atenção à sua progenitora.
Para não atrapalhá-los, deixei o paletó no meu colo para entregar quando
ele terminasse a dança. Quando me sentei à mesa, mamãe lançou um olhar
questionador, mas não falou nada. Ficamos ali, conversando, e, de vez em
quando, eu sentia certos olhos verdes sendo direcionados a mim.
Capítulo Dezoito
"Às vezes tudo o que eu tenho a oferecer são cacos
Ainda mais considerando tudo o que és pra mim
E as vezes eu não sei o que juntar de tantos cacos
Me constrange saber que ainda sim eu sou amado
Eu não posso mudar a realidade do meu coração
Não adianta fingir o que não sou
Se antes de falar conheces a intenção”
(Amanda Rodrigues - Por Tudo o que És)

É incrível como Deus responde a todas as nossas orações, ainda que a


maior parte não seja a resposta que gostaríamos de receber. Como diz em
Provérbios 16:1, nosso coração corrupto faz planos, mas é Deus quem dá a
resposta certa.
Na noite de sábado, quando me deitei, ainda estava anestesiada perante os
sentimentos experimentados há pouco. Se fechasse os olhos, conseguia
relembrar as sensações e foi assim que adormeci, segurando-me naqueles
doces sonhos, criando inúmeras fantasias de como gostaria de ser pedida em
namoro.
Na manhã do dia seguinte, enrolei para levantar. Ao pensar sobre a noite
anterior e o meu envolvimento com Gabriel, senti um aperto no coração, um
sentimento de haver algo errado. Por causa disso, peguei meu café da manhã
e voltei para o quarto, querendo ficar a sós.
Com o canto do olho, vi minha Bíblia na escrivaninha e pensei em como
havia falhado nos devocionais, deixando sempre para depois.
Ultimamente minha vida tinha virado de ponta cabeça, meus dias, antes
vagos e dedicados à leitura, se preencheram com envolvimento no grupo da
igreja e pensamentos — mesmo não propositais — sobre Gabriel.
Ter percebido meus sentimentos por ele não me ajudou nem um pouco,
pois ficava revivendo nossos momentos, tentando ver se aquilo era recíproco
ou não.
Voltando a me concentrar no livro à minha frente, peguei a Bíblia,
folheando-a e ainda refletindo sobre o meu pecado em ter parado com os
estudos, fazendo apenas leituras rápidas. Era interessante ver como, quando
quebramos uma rotina, ela demora para voltar novamente aos eixos.
Fechando meus olhos, fiz uma oração, pronta para dedicar a minha manhã
exclusivamente ao Senhor.
— Pai, eu não sei os Seus propósitos, não sei quais são os Seus sonhos
para a minha vida, mas, por favor, não deixe eu me entregar nas mãos de
alguém que não seja aquele escolhido por Ti para ser meu marido. Eu não
quero distribuir pedaços meus por aí, e, sim, estar inteira no altar. Por favor,
oro pedindo Seu direcionamento, que o Senhor aja em meu interior para não
me permitir seguir meus próprios sentimentos. Abra meus olhos, Pai, para o
que não consigo ver. Te louvo e agradeço por tudo, em nome de Jesus,
amém!
Com a Bíblia e o caderno em mãos, folheei-a, procurando algum trecho
para poder estudar. Um riso baixo e nervoso escapou quando caí exatamente
em Provérbios 4:23.
​“Acima de tudo, guarde o seu coração, pois dele procedem as fontes da
vida.”
Eu não acreditava na bibliomancia, esse negócio de abrir em uma página
aleatória e acreditar que aquilo é a ordem de Deus no momento. Mas eu
sabia muito bem como Ele poderia nos trazer ensinamentos por meio de
leituras assim da Bíblia.
Mesmo sem permissão e sem compreender exatamente o motivo, meus
olhos marejaram e pequenas lágrimas começaram a descer. Aquele aperto no
peito voltou com força, fazendo-me perceber o quão hipócrita eu estava
sendo nesses últimos meses.
Luísa era um exemplo, eu falei para a garota guardar o coração para o
futuro marido, mas eu não tinha feito isso. Revivendo cada acontecimento,
principalmente os com Gabriel, vi como fui totalmente imprudente comigo e
com ele.
Eu, a pessoa que desde a infância se gabava por nunca ter namorado, por
estar se guardando para o futuro marido, não fiz isso.
A cada pensamento, a dor no peito aumentava mais e mais, a dor de ouvir
um “não” de Deus, de ter aquele desejo negado.
Parecia bobo o quanto aquilo mexeu comigo, o quanto fui afetada, sendo
que eu e Gabriel não chegamos a nos envolver diretamente, não falei dos
meus sentimentos, não me declarei, nem ele se pronunciou, mas era
exatamente isso que vinha me dilacerando por dentro.
Exatamente pelo fato de ele nunca ter falado nada, nunca ter demonstrado
realmente existir algum sentimento da parte dele, e eu simplesmente me
entreguei de mão beijada.
Quão mal aquela dança de ontem poderia ter sido interpretada? Ou até
mesmo nossa conversa no jardim no aniversário da Júlia... Enquanto ele
provavelmente apenas me tratava com cortesia e amizade, eu deixei um
sentimento romântico aflorar.
Comecei a refletir sobre o fato de ele estar orando por alguém. Podia ser
eu, mas podia muito bem não ser, poderia ser uma garota qualquer, até
alguém que eu não conhecia. Então, quando eu me rendi àquele momento
nosso de ontem, fui imprudente, agi sem pensar e segui meu coração
depravado.
É difícil explicar o motivo; se alguém perguntasse, acharia que eu estava
sendo dramática. Porém eu, desde que entendi a importância do casamento,
tinha como meta me apaixonar apenas por quem viria a ser meu marido, era
um sonho do qual me descuidei e caí, pois não havia prova nenhuma de que
Gabriel seria essa pessoa.
Quando chegou o horário do culto, eu pensei em fugir, me esconder, me
proteger de ver Gabriel. Mas seria pecado faltar simplesmente por causa de
um rapaz, ao menos isso eu compreendia.
Suspirando e com mil questionamentos na mente, fiz uma maquiagem
leve, apenas para tirar a palidez do rosto. Não estava com vontade de me
arrumar hoje; ao parar para me olhar, não conseguia ver beleza alguma em
mim que se dignasse a isso.
— Você já está pronta, meu amor? — papai perguntou quando cheguei na
sala, onde ele e meu irmão estavam esperando minha mãe.
Assenti de leve com a cabeça e ganhei um beijo protetor na testa. Eu não
estava com vontade de conversar e ele percebeu, por isso, apenas sentei no
sofá, deixando meus pensamentos me levarem longe.
Voltei à terra quando mamãe apareceu gritando para irmos logo, porque
estávamos atrasados.
— A última a se arrumar aqui foi você.
— Fica quieto, Paulo, se você fizesse mais um banheiro, como pedi, não
teríamos esse problema — ela rebateu, colocando o cinto.
— Como se estivéssemos esbanjando dinheiro, né, Lisa?
Sem paciência para mais uma discussão dos meus pais, fechei os olhos,
ligando uma música qualquer no walkman para abafar o barulho. A cada
momento, aquele aperto no coração aumentava e eu me via perdida em meus
próprios sentimentos.
Quando chegamos na igreja, Gabriel realizou meus maiores temores. O
rapaz me viu de longe, porém não se aproximou, apenas abrindo um
pequeno sorriso e voltando a conversar com Igor. Engoli em seco,
concentrando meu olhar para frente, não querendo demonstrar o quanto
fiquei abalada com aquela atitude dele, ainda mais levando em conta a nossa
proximidade de ontem.
Porém, provavelmente, esse foi o motivo de sua atitude. Percebendo meus
sentimentos, se afastou para não gerar segundas expectativas.
O culto não demorou a começar. Sentada junto à minha família, prestei
atenção à liturgia, cantei, ouvi a introdutória, os avisos, tudo como se
estivesse longe, apenas como uma telespectadora naquele corpo.
O pastor João, então, passou para a palavra da noite, chamando um pastor
convidado.
Ao ver o homem barbudo subir, reconheci ser o esposo de Sarah, prima de
Nina. Falando nela, dei graças a Deus pelos dois estarem viajando na lua de
mel, do jeito que a garota era insistente, tentaria descobrir o motivo do meu
abatimento e eu não conseguiria me controlar.
Tentei me esforçar para prestar atenção, mas eu estava totalmente
distraída, o que só notei após o fim do culto, quando o pastor João voltou
para os avisos finais. Fechei meus olhos, percebendo como eu estava relapsa,
ao invés de me apegar a Deus, estava cedendo ao meu próprio desespero.
— Oi, Marta! — Sarah me cumprimentou quando eu já estava do lado de
fora da igreja, aguardando meus pais.
Minutos antes, Gabriel passou por mim. Ele parou, questionando como eu
estava, e logo já sumiu em direção ao seu carro. Porém nada perto de como
ele agiu na noite anterior.
Um lado meu dizia que o Mendes estava me ignorando de propósito, o
outro repetia que, na verdade, ele estava agindo normalmente, meu coração
que tinha imaginado algo diferente e “romântico”.
— Oi — respondi-lhe, tentando me manter normal.
— Está tudo bem? Você me parece um pouco abatida.
Eu tinha vontade de responder de forma grossa, mas a mulher expressou
com tanto carinho a preocupação que apenas dei de ombros, em uma
tentativa de fugir um pouco.
— Um pouco doente, eu acho, mas vou melhorar.
— Uhum — murmurou com uma cara de quem não acreditava na minha
resposta —, se precisar conversar, pode aparecer lá em casa, qualquer coisa
pega o endereço com a Nina, vai ser um prazer te receber.
Fiquei com vontade de rir, tentando pensar de onde ela achava ter
conseguido tanta intimidade comigo, eu nunca teria coragem de aparecer
assim na casa de quem mal conheço. 
Dando-me um beijo na testa de forma maternal, a mulher se retirou, pois
Igor a tinha chamado.
Enquanto via os dois caminhando de mãos dadas rumo ao carro deles e a
barriga da espera do primeiro filho dela, senti novamente aquele vazio no
coração, a culpa me consumindo mais uma vez.
Capítulo Dezenove
A vida que deu
A vida que ainda vai nos dar
A vida que veio pra mostrar como se viver
A vida que tenho te entrego sem medo de errar
Sei que posso confiar em Ti, ó Deus
Dono da Vida
(Danni Distler - Dono da Vida)

— A cada dia eu agradeço mais a Deus por termos vindo para cá —


papai falou no carro enquanto voltávamos para casa após a formatura de
Júlia. — Conseguimos nos fixar em uma igreja e temos nos envolvido cada
dia mais.
— Sim — mamãe concordou —, estou muito feliz em ver as amizades que
você tem criado, Marta, lá em Londrina você só convivia com suas primas,
agora tem realmente se envolvido mais.
Revirei os olhos, preferindo ficar quieta na conversa deles, mas realmente
concordava, era admirável a forma como Deus estava me aproximando das
outras pessoas. Senti um peso ao lembrar de uma dessas aproximações que
não deu certo. Esforçando-me, joguei aquele pensamento para o fundo da
minha mente, deixando para ele me atormentar apenas ao anoitecer, quando
eu não teria distrações para fugir da minha própria cabeça querendo reviver
cenas de um passado não tão distante.
— Antes, a Marta mal saía de casa e agora vai até participar do
acampamento dos jovens.
Ergui a cabeça com a fala do meu pai, interessada de repente na conversa.
— Vou?
Poucos dias depois da conversa na casa dos Mendes, eu comentei com
meus pais sobre o acampamento, mas ele disse um não convicto, falando que
filha dele não ia viajar sozinha por aí. Então, coloquei em oração e nunca
mais abri a boca sobre isso.
— Sim, sim, tinha esquecido de te contar, Gabriel falou comigo, me
explicou como funcionava certinho, eu e sua mãe oramos, mas por fim
acabei deixando. Aliás, já até paguei a primeira parte para o rapaz.
— Ai, meu Deus!
Levei a mão à boca, surpresa demais para acreditar naquilo.
— Agradeça ao Gabriel, filhota. Ele e a dona Carla foram conversar
conosco lá em casa, o rapaz explicou tudo sobre como funcionava o
acampamento e garantiu que ele próprio ficaria de olho em você. Sabe,
Marta, não me importaria de adicionar um novo título a ele, não, viu? Como
aquele começando com G…
— Pai! — dei um grito exasperado, não permitindo o fim de sua fala.
Meu irmão virou o rosto, escondendo um sorriso zombeteiro, mas sem
falar nada, para a minha sorte.
— Ah, vai, todo mundo já percebeu que está acontecendo alguma coisa
entre vocês dois, ambos são péssimos atores. Hoje mesmo, Gabriel não
conseguia tirar os olhos de você, mesmo tentando disfarçar. Não sei por que
não estão juntos ainda — ele continuou falando.
Tive vontade de murmurar “eu também não”, mas preferi ficar quieta.
Eu entendia a intenção do meu pai, mas aquilo só piorava o desespero
dentro de mim e a raiva que sentia por  meus pais não me ajudarem a
guardar o coração.
Só eu sabia da dor que sentia por ter me iludido e, quando eles soltavam
aquelas coisas, não colaboravam em nada, pois geravam pequenas faíscas de
esperança, estas que, no fundo, eu sabia não serem correspondidas.
Vendo minha cara fechada, os dois não falaram mais nada e eu agradeci
internamente por isso.
Chegando em casa, fui a primeira a pular do carro e correr para me trancar
no quarto. Ao sentar na cama, meus olhos foram atraídos para as cartas.
Sentia como se eu tivesse traído alguém, mesmo sabendo que na prática
não foi exatamente assim. Porém eu realmente tinha me envolvido com
alguém que não seria o destinatário delas, o futuro dono.
Se é que vai ter algum um dia!
Pensei em tentar escrever algo, mas não estava com disposição para
pensar em palavras bonitas, nem sabia como narrar ou contar aquilo.
Para fugir novamente daqueles pensamentos, peguei minha Bíblia e sentei
para ler mais um pouco antes de dormir, pedindo socorro a Deus e para Ele
me guardar, pois confiar na minha própria força vinha se tornando um
desastre. Não consegui ir muito longe na leitura, com frequência meus olhos
se desviavam e novamente aquelas memórias se sobrepunham ao texto
diante de mim.
Fechando o livro, adormeci, revivendo cenas que queria esquecer.

Era segunda-feira de manhã quando Júlia apareceu de repente lá em casa


querendo conversar. Eu não reclamei, pois ajudaria a distrair minha cabeça
dos meus próprios problemas. A garota também não comentou mais do
irmão, o que foi motivo de um agradecimento silencioso da minha parte.
Nesse momento ela tagarelava sobre a festa de formatura ocorrida há dois
dias  e sua alegria em finalmente ter se livrado da escola, mas também sobre
a confusão por não saber para onde seguir com a vida dali para frente.
— Você não vai acreditar! — Soltei a fala, fazendo-a se calar, peguei um
vestido simples, já que, surpreendentemente, estava calor, e fui me trocar no
banheiro. 
Ouvi os gritos em protesto por deixá-la sozinha com sua curiosidade.
— O que aconteceu? — questionou preocupada quando voltei.
Apoiando meu corpo na almofada entre as pernas, fiz alguns segundos de
tensão para provocá-la. Ela era ansiosa, então ficava extremamente irritada
quando eu fazia isso.
— Eu vou no acampamento de verão — revelei-lhe por fim.
— Ai, meu Deus, sério? — Minha amiga deu um pulo, sentada, e levou as
mãos à boca. — Seu pai deixou?
— Sim, ele me contou ontem à noite. Gabriel conversou com ele sobre
isso e meu pai até mesmo pagou a primeira parte, para você ter ideia —
expliquei. — Aliás, me conta mais sobre o acampamento, agora posso ouvir
sem ficar triste com a possibilidade de não ir.
Cruzando as pernas, Júlia começou a falar sobre a programação e as
atividades do lugar, além dos diversos trabalhos em que atuavam na
comunidade. Como eu nunca tinha ido para Ponta Grossa, ela contou um
pouco sobre a cidade também.
— Como é corrido, não temos muito tempo para passear, porque nosso
objetivo não é diversão nesse sentido. Mas ouvi boatos sobre estarem
tentando organizar para levar o pessoal no Buraco do Padre, você precisa
ver, já fui alguns anos atrás, é a coisa mais linda! — Ela gesticulava e
começou a explicar sobre o parque geológico e as belas cachoeiras do local.
Nós ficamos conversando até perto do almoço, chamei-a para comer aqui,
mas ela negou, explicando que a mãe a queria em casa para não ficar sozinha
durante a refeição, pois Gabriel estava no escritório com o tio.
Meu sorriso vacilou ao ouvir o nome dele ser pronunciado, além de o
coração ter ganhado algumas batidas a mais. Aproveitando que Júlia estava
virada para a porta, consegui — ou ao menos tentei — voltar ao meu estado
natural.
A nossa conversa sobre o acampamento só me deixou mais ansiosa para a
viagem. Eu temia muito falhar, temia ser obrigada a me expor de alguma
forma, principalmente porque haveria pessoas de todo o Brasil lá, muitos
desconhecidos, muitos olhos direcionados aos meus erros.
Eu orei, colocando aquela ansiedade nas mãos de Deus, Ele saberia como
trabalhá-las da melhor forma possível.
Capítulo Vinte
“Passo a passo eu vou seguir
Sem temer o que há de vir
E eu sei que vou viver pra crer
E ver essa alegria que traz vida de novo
Que traz vida de novo
Cada dia até o fim”
(Ana Heloysa - Ode à Alegria)

[1 mês depois]

Com a cabeça encostada no vidro do carro enquanto íamos rumo a Ponta


Grossa, eu refletia sobre essas últimas semanas em Londrina com a minha
família, que se mostraram um verdadeiro desafio. Por algum motivo, tudo
parecia apontar para a resposta negativa de Deus em relação a Gabriel.
Além de meus pais não calarem a boca um minuto sobre os Mendes —
ouvi várias vezes mamãe conversando com minhas tias sobre,
principalmente, Gabriel. Thelma, minha prima, também tinha aparecido com
um namorado e Larissa estava aguardando o primeiro filho. Bruna, outra
prima, estava em São Paulo, arrumando a mudança para a universidade.
Eu estava imensamente feliz por elas, sem dúvida alguma, amava minhas
primas e me alegrava com suas conquistas também. Mas isso não me
impedia de pensar que poderia estar comemorando junto. Durante aquelas
poucas horas no casamento da Nina, tive certeza sobre um futuro junto de
Gabriel apenas para Deus estragar todos os meus sonhos na manhã seguinte.
Porém também tinha receio em relação ao caminho que Thelma estava
seguindo. Hoje, após o almoço, ela ficou deitada com o namorado no sofá,
trocando beijos, e, quando Larissa perguntou sobre o casamento, ambos
disseram ser novos e que queriam terminar a faculdade e conseguir um
dinheiro antes de pensar no matrimônio.
Lari ficou desconfortável quando, após o discurso, eles voltaram a trocar
carinhos e sussurros. Ela não era a única naquela situação, mas eu não me
envolveria mais. Havia discutido semana passada sobre isso com Thelma e
ela apenas jogou: “Pelo menos eu tenho namorado, você, com suas regras
legalistas, não vai conseguir ninguém, nunca.”
Eu sabia que não era verdade, Nina e David namoraram com foco em
pureza, Sarah também tinha contado sua história, todas aquelas mulheres, no
dia da despedida de solteira, falaram seus testemunhos. Mas nenhuma dessas
lembranças impediu aquelas palavras de penetrarem no meu coração, muitas
vezes fazendo-me questionar a mim mesma se estava fazendo mesmo o
certo.
— Não vejo motivo para casar rápido, nós dois somos jovens e temos
tempo para aproveitar. Além disso, de que adianta casar cedo para fazer você
sabe o que e não conhecer o parceiro de verdade? — a garota expôs seus
motivos, dando mais um beijo no namorado.
Pela graça, meu pai apareceu poucos minutos depois chamando para irmos
embora. 
Eu só não dei um “Glória a Deus”, porque seria falta de modos. Quase
pulando do sofá, pedi cinco minutos e corri até meu quarto na casa de vovô
para pegar as malas.
A maioria das minhas coisas quem levaria seriam meus pais quando
voltassem para Curitiba, eu apenas peguei o básico para sobreviver aqueles
quinze dias no acampamento.
Meu irmão até tinha cogitado nos acompanhar, porém no fim desistiu,
resolvendo ficar com os meninos na fazenda. 
Suspirando, fechei os olhos, sentindo o sono chegar com o embalo do
movimento do carro. 

Nós paramos algumas vezes na estrada, principalmente para abastecer e


comermos algo. E, mesmo com um acidente no caminho, chegamos ao local
em torno de cinco da tarde
Ao estacionar na escola, papai orou agradecendo pela nossa proteção antes
de sairmos do carro.
Eu estava nervosa, sentia meu coração batendo acelerado e, mesmo
tentando, não conseguia fazer minhas mãos pararem quietas.
Enfiando-as no bolso da jaqueta, foi impossível impedir a vergonha ao ver
tantas pessoas desconhecidas ali, todos pareciam me ver e julgar com o olhar
conforme eu passava. Sentia seus olhos percorrendo cada pedaço de mim, de
cima a baixo, analisando minha roupa, meus gestos, meu cabelo, meu tom de
pele… Além disso, eles pareciam penetrar meus pensamentos e ver meu
nervosismo, meus medos e o quanto eu tinha chances de pagar um mico.
Não sabia explicar o quanto odiava aquela sensação. Como acabei criando
intimidade com os jovens da igreja, tinha me esquecido do quão angustiante
ela era.
— Marta! — Ouvi o grito de Júlia quando passamos pelo portão.
Não consegui acenar de volta, ela chamou mais atenção do que eu já
estava recebendo. Encolhendo os ombros, caminhei devagar até onde ela
estava, ganhando um abraço exagerado seu.
— Estávamos esperando vocês, oi, tio Paulo! O Biel já volta, ele foi
resolver umas coisas com o Igor.
Reconheci o nome do esposo de Sarah, a prima da Nina. Procurei ignorar,
mas senti o coração parar de bater quando Gabriel se aproximou com um
sorriso escancarado, conversando com o homem.
Ao me ver, percebi o sorriso dele vacilar, e isto apenas piorou o que eu
estava sentindo naquele momento. 
— Oi, Paulo — ele cumprimentou meu pai do típico jeito masculino, com
aqueles tapinhas nas costas. — Oi, Marta, tudo bem? — Assenti, sem
coragem de olhar para ele ainda.
— Bom, crianças, eu vou indo. Irei passar a noite na casa de um amigo e
não quero chegar tarde. Filha, podemos conversar rapidinho?
Repetindo as mesmas mil instruções que havia me dado a viagem inteira,
ele terminou com um abraço, dizendo o quão orgulhoso estava de mim.
— É lindo ver o quanto você cresceu, eu sou mais fechado, na minha, mas
nunca esqueça o quanto te amo e admiro os passos de fé que você está dando
rumo ao que Deus tem te falado. Se cuida e, qualquer coisa, já sabe.
Deixando um beijo na minha testa, ele se despediu também dos outros três
e acenou já de longe.
Quando o vi afastando-se, percebi como estava literalmente sozinha agora,
não tinha como me esconder na barra da minha família. Uma sensação
sufocante começou a tomar conta do meu peito e repetia os exercícios de
respiração para me acalmar, não que estivessem funcionando muito.
Gabriel e Igor embarcaram em uma rápida conversa sobre equipes e
reuniões e o homem também partiu, mas não antes de me falar que avisaria à
esposa sobre a minha chegada.
— Então, Marta, fez uma boa viagem? — Gabriel questionou em uma
tentativa de puxar assunto, já que a irmã, mesmo do nosso lado, estava
conversando com uma amiga.
— Uhum — murmurei.
Era a primeira conversa que tínhamos desde que recebi o "não" de Deus e
eu estava envergonhada e com medo de os meus sentimentos aflorarem
novamente. Essas semanas afastados não ajudaram muito, apenas me sentia
mais culpada quando revivia os momentos com ele, mas também sentia
saudade das nossas conversas.
— Vou te ajudar a levar suas coisas para o quarto — ele falou, quebrando
o desconfortável silêncio e chamando Júlia também. — Posso?
Balancei a cabeça e ele pegou minha mala com uma facilidade
impressionante. O colchão, ele mesmo já tinha trazido, pois não teríamos
possibilidade, já que eu estava na casa dos meus avós, então os Mendes
tinham se oferecido para ajudar.
Conforme caminhávamos, eu ia admirando o colégio, ele era enorme,
composto de dois andares. Júlia explicou que transformaram as salas de aula
nos quartos, no primeiro piso seriam os casais, principalmente com filhos, e
no segundo, os solteiros, tendo uma divisão nos corredores para os meninos
e outra, para as meninas.
— Desculpe, eu estou com a cabeça um pouco cheia de preocupações —
Gabriel pediu quando parou em frente a uma porta. — Depois conversamos
mais, mas seja bem-vinda, espero que seja um período edificante para você.
Qualquer coisa, só me chamar.
Acenando, ele caminhou para longe, deixando-me ali parada. Fechei meus
olhos, irritada pelo coração acelerado e as borboletas no estômago. Júlia
também se despediu, falando algo sobre encontrar algumas amigas de longa
data.
“Pai, me ajuda!” Orei enquanto abria devagar a porta do quarto. 
Para a minha sorte, não tinha mais ninguém, então teria alguns minutos
sozinha.
Não foi difícil encontrar a cama de Júlia, era a mais bagunçada e cheia de
tralhas em cima. Ao lado da dela, estava um colchão vazio, que supus ser o
meu.
Sentada nele, corri os olhos, analisando melhor o local. Sua principal
função era uma sala de aula, então as carteiras estavam amontoadas nas
paredes. No quadro também tinha uma tabela dos horários, com o início dos
cultos, jantar, devocionais, manutenção e mais alguns outros; ao lado estava
escrito “avisos”, mas sem nada ainda.
Meus minutos a sós foram proveitosos, consegui fazer a leitura bíblica
antes de algumas meninas entrarem conversando animadas. Ao me verem,
elas me cumprimentaram e eu apenas respondi um “oi”, torcendo para
saírem logo.
E, bem, meus desejos não foram realizados, pois elas se sentaram nos
colchões do lado oposto do quarto, continuando a conversar em voz alta
sobre nada mais, nada menos do que a lista dos garotos bonitos do lugar.
Procurando não fazer uma careta, me deitei, torcendo para minhas amigas
chegarem logo e eu parar de ouvir aquilo, era tanta superficialidade que elas
nem pareciam se dizer cristãs, em nenhum momento Cristo havia sido
citado.
Após uns trinta minutos, Júlia apareceu contando sobre a tal amiga da
Bahia, que não via há dois anos, pois no último acampamento a menina não
pôde comparecer.
— Cheguei! — Nina gritou, abrindo a porta com tudo e nos assustando.
As outras meninas do quarto ergueram o olhar, quando não reconheceram
quem era, voltaram ao que estavam fazendo. Eu tinha conseguido me
desligar do assunto sobre os garotos e não prestar atenção, mas infelizmente,
antes disso, ouvi o nome do líder loiro de Curitiba sendo citado na lista e não
gostei do incômodo gerado por aquilo.
— Saudade de vocês!
Após dar um abraço forte em nós duas, Nina se deitou no colchão de Júlia
e começou a contar como foram as últimas semanas. Como depois da lua de
mel eles foram ficar um tempo em São Paulo com a família dela, não
tínhamos nos visto desde o casamento. 
— Você vai ficar nesse quarto também? — Júlia questionou após ela
terminar de explicar o quão complicado estava sendo esse primeiro mês
juntos, mas que dia após dia Deus os ajudava a irem aprendendo a superar as
diferenças. — Ou conseguiram um para os dois?
— Não e mais ou menos. Nós ficaremos em uma cabana lá no pátio, eles
priorizaram os quartos de casal para quem tem filhos, porque precisam de
mais espaço mesmo. Mas não me importo, não, amo ficar juntinha do meu
marido. — Deu de ombros, fazendo a Júlia mostrar a língua.
Juntando as pernas no corpo, apoiei minha cabeça no joelho, abrindo um
sorriso feliz por ela. E eu realmente estava, era lindo ver o brilho no olhar de
Nina enquanto contava do David, dava para ver o quanto o amava.
— E aí, animadas? 
— Uhum — murmurei, deixando para Júlia falar todo o resto.
— Ai, muito! Quero saber com quem vou ficar na equipe! Sinceramente?
Espero não ser ninguém que eu precise revirar os olhos a cada segundo…
Brincadeirinha. — Ela abriu um sorriso amarelo quando Nina lhe deu uma
bronca com o olhar. — Mas estou ansiosa para as aulas, as atividades, nossa
interação e a semana do prático também, quando vamos colocar tudo para
fora, falando de Deus. Eu já disse o quanto estou animada?
Sem conseguir segurar, balancei a cabeça, rindo do jeito dela e ganhando
uma travesseirada na cara em resposta.
— Fico feliz com sua animação, Juju, porque eu estou na liderança da
manutenção e faço questão de te colocar bastante para a obra de Deus nisso
também. Agora aproveitem o resto do dia de folga, amanhã começa a labuta.
Deixando um beijo para nós duas, Nina se despediu, explicando que
precisava ir para a reunião dos líderes, mas depois voltava para
conversarmos mais.
— Cadê a Mari, Ju? — perguntei quando ela fechou a porta.
— Ela vai chegar amanhã cedo, houve um imprevisto com o carro do
pastor. Mas, como vai ser ele a pregar amanhã à noite, vai dar tempo.
O resto da tarde foi nós duas terminando de arrumar nossas coisas e
interagindo com as outras meninas do quarto. Júlia era quem mais falava,
mas, pela primeira vez, eu consegui também trocar algumas palavras com as
desconhecidas, após, é claro, de um grande esforço.
A conversa tinha rendido tanto que nós nem percebemos o anoitecer, a
janta seria distribuída às seis e meia da tarde, mas, quando chegamos lá, a
fila de espera já era grande.
Eu estava acostumada a comer perto das onze, mas, como aqui as regras
eram outras, lá estava eu com meu prato e garfo à espera para não passar
fome depois — e estranhando precisar me alimentar mais cedo do que
tomava café normalmente.
O banho eu também tinha estranhado, pois foi feito nas duchas
improvisadas que montaram nos banheiros da escola, além de serem quase
setenta meninas para tomar banho e se trocar lá. 
— Que demora! — Júlia resmungou segundos antes de pedirem silêncio
para a oração. — Eu amo o primeiro dia, pena que daqui a pouco vai
começar a ser gororoba [13]toda santa janta! 
— Contentamento, amiga! — provoquei-a, recebendo uma língua de fora.
Com hambúrguer e fritas nos pratos, começamos a procurar um lugar para
sentar, até ver Nina acenando freneticamente para nós duas.
— Oi, Ni, oi, Dave! 
— Oi, Júlia — o rapaz a cumprimentou em resposta. — Animada? 
— David, cala a boca! Isso lá é pergunta para se fazer a Júlia Mendes? Ela
sempre tá animada. — Nina colocou a mão no rosto e ele a abraçou de lado,
rindo.
Fiquei envergonhada por presenciar a intimidade demonstrada pelos dois,
então abaixei minha cabeça, concentrando-me no alimento. Estava tudo
correndo muito bem, até Gabriel chegar, sentando-se ao meu lado.
— Eu tinha esquecido o quão demoradas eram essas filas, estava com
saudades!
— Só você mesmo para gostar de aguentar isso — Júlia resmungou.
— Ah, vai, Jujubinha, é muito leg…
— Gabriel, cala a boca! — Júlia deu um grito, chamando a atenção das
mesas ao nosso redor.
Levei a mão à boca, para não demonstrar o quanto estava rindo com ele
usando um apelido íntimo daqueles em público. O rapaz demorou alguns
segundos antes de entender o erro e, quando o percebeu, voltou a falar,
mudando para um assunto totalmente aleatório.
Aos poucos a conversa foi engajando, até entrarmos em uma debate sobre
teologia. Como não conhecia muito de escatologia[14], fiquei aprendendo, ao
invés de opinar.
— Que arrebatamento secreto não existe, é fato e não tem base bíblica,
agora, se eu vou antes ou depois da tribulação, tô nem aí, só quero ser
arrebatada e ir pro Céu. — Júlia deu de ombros após a calorosa discussão
sobre pré ou pós-tribulacionismo.
— A questão é: o Céu vai descer ou vai subir?
— Nina, todo mundo sabe que o Céu vai descer.
— Ah, é? E qual a sua base bíblica, senhor sabe tudo? — A loira desafiou
Gabriel.
— Apocalipse 21:2: “Vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do
céu.”
— Vamos voltar um versículo, vamos? — Ela pegou a Bíblia ao lado e
folheou, procurando a parte desejada. — “Vi o novo céu e a nova terra, pois
o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe.” Então,
Gabe, você foi refutado.
— Então, Ninoca — ela crispou os olhos diante da provocação com o
apelido —, quando estudamos mais a fundo, compreendemos que o mar do
qual esse versículo se refere é a água salgada onde vivem os monstros, o
Antigo Testamento representa o mar como habitação destes, como vemos em
Jó, Salmos e Isaías. E em Apocalipse também fala da besta que emerge do
mar. Então ele, o mar, será substituído pela água vivificante e fresca.
Era perceptível o quanto Gabriel se animava quando o assunto era
teologia, na verdade ele se animava em qualquer assunto. Gesticulando
ferozmente, ele começou a explicar que esse novo céu e nova terra não se
referiam a um novo mundo, mas, sim, a uma transfiguração do nosso mundo.
Que o fato de ser tudo novo indicava a extensão e meticulosidade da
transfiguração, mas o resultado é a redenção, não uma mera abolição do
velho.
Meus olhos pareciam pingue-pongue, indo de um lado para o outro,
observando o debate.
— Ah, gente, quer saber? Tô nem aí também se eu vou comer meu
banquete no Céu lá no céu ou no Céu-terra. Estando com Jesus, tô feliz! —
Júlia encerrou a discussão e seu irmão revirou os olhos.
— Já que acabou a diversão, vou indo. Vocês dois não se esqueçam de
estar às sete no auditório. — Gabriel apontou para o casal, levantando-se
após terminar de comer.
— Pelo amor, só isso de tempo para comer? — David respondeu com
careta.
— Nada que você já não esteja acostumado, já comeu em menos tempo —
o outro gritou de volta, saindo do refeitório.
— É, Marta, seja bem-vinda à loucura! Quero as duas sete e meia lá, hein.
Beijos — Nina se despediu, puxando à força o esposo. — Eu preciso
terminar de me arrumar e falta menos de dez minutos, come no caminho!
Apesar de eu e Júlia termos quarenta minutos ainda, não demoramos para
voltar ao quarto para nos arrumarmos. Quando chegamos, havia mais
colchões do que antes e, consequentemente, mais malas e pessoas.
Para alguém como eu, que preferia ficar sozinha, aquelas duas semanas
seriam pura tortura, a última coisa que eu teria era tempo de solitude.
Sentando no colchão, comecei a me maquiar, observando de longe Júlia
fazendo amizade com as recém-chegadas. Voltando a me concentrar no
espelho em minhas mãos, passei o batom, pensando se eu estava me
arrumando muito para um simples culto de abertura.
Eu estava nervosa para aquele período, ainda mais por estar sozinha sem
meus pais pela primeira vez. Mas também via como isso era uma resposta de
anos de oração e estava decidida a aproveitar o máximo possível.
Quem diria que eu mudaria tanto em tão pouco tempo?
Júlia tinha se juntado com as duas meninas, alegando que elas estavam
sozinhas, precisando de companhia. Em uma breve conversa, elas se
apresentaram como Ana Luiza e Lavínia.
— Posso te chamar de Analu? 
— Eu prefiro Ana Luiza mesmo — a garota respondeu, desconfortável
com a insistência da Mendes em criar um apelido.
— Affz. Mas, então, Marta, a Aninha é de Curitiba, acredita? Mais
especificamente de Pinhais, isso, né?
Revirei os olhos com o novo apelido e vi a menina repetindo meu gesto,
mas preferindo ignorar para evitar o estresse. Pelo jeito, era genética essa
mania de ficar apelidando as pessoas, principalmente no diminutivo.
Quando nos aproximamos do auditório, onde aconteceriam os cultos, já
estava cheio de jovens aguardando a abertura das portas. Desconfortável
com tanto movimento e vozes altas, me aconcheguei em um canto,
esperando poder entrar logo.
Eu não sabia explicar a sensação do lugar. Ao mesmo tempo que era
estranho ter tanta gente, eu também estava gostando de estar rodeada de
pessoas cristãs, sem ouvir palavrão — no máximo, usavam os famosos
insultos gospel, como Filho de Nabucodonosor, Serpente do Éden e outros
muito criativos.
As portas não demoraram para abrir e foi uma confusão de jovens
tentando entrar para conseguir bons lugares. Tentando não levar cotovelada,
passei de fininho pelo canto e sentei na última fileira, onde ninguém ficaria
me olhando.
— Eu amo isso! — Júlia sussurrou antes de se concentrar no louvor.
Foi prazeroso ver tantas pessoas focadas apenas em adorar a Deus.
Gabriel, como sempre, estava no violão e precisei me forçar a não ficar
encarando o rapaz.
Ainda me sentia culpada pela paixonite de semanas atrás e tinha raiva do
meu coração corrupto por não a deixar passar, por me permitir ceder a esses
sentimentos.
Após três louvores, pediram para sentarmos e começaram os avisos e
explicações sobre aqueles quinze dias.
Fiz uma careta quando falaram o horário do café: sete e meia da manhã.
Precisaria acordar às sete para estar pronta a tempo.
— E eu pensando ter me livrado de acordar cedo quando me formei —
Júlia resmungou irritada.
Micael era o principal organizador do acampamento. O homem estava na
faixa dos quarenta anos e trouxe uma palavra, falando da importância e
seriedade das missões.
Prestando atenção em cada detalhe, ia anotando tudo em um caderno,
sabendo o quão importante eram aquelas pregações e que eu deveria levá-las
para a vida.
Capítulo Vinte e Um
“Pela cruz me chamou
Gentilmente me atraiu
E eu, sem palavras, me aproximo
Quebrantado por seu amor”
(Quebrantado - Vineyard)

Os dias ali estavam passando em uma velocidade fora do normal.


Na segunda de manhã, foram divididas nossas equipes, eu fiquei sob a
liderança da Sarah e do esposo, o Igor. Agradeci a Deus por aquilo, pois,
mesmo não sendo tão próximas, era uma conhecida e alguém por quem eu
vinha criando uma grande estima.
Meu tempo também era escasso, tínhamos atividades da manhã até a
noite, tendo apenas uma pausa antes da janta para tomar banho e, após os
cultos, davam uma hora para o pessoal conversar antes de irmos dormir.
Agora estávamos na manutenção, ou a “Tia Manu”, como o pessoal
chamava carinhosamente. Hoje tínhamos sido destinados a limpar o gramado
em torno do colégio. De onde estávamos, também era possível ouvir o
barulho das máquinas, pois, enquanto nós, mulheres, íamos catando os lixos,
os homens cortavam a parte já limpa da grama.
Após dar o horário, aproveitei meus dez minutos de descanso no
refeitório, tomando água. Usei aquele tempo para refletir um pouco nos
últimos dias, mas logo fui interrompida quando Gabriel entrou no ambiente
conversando com um menino. 
Ao me ver, balançou a cabeça em um cumprimento e continuou o assunto
com o rapaz.
Meus sentimentos estavam uma bagunça, por isso fiquei feliz por estar
tendo uma rotina cheia, pois, assim, até mesmo dormir era rápido e meus
pensamentos não voavam para longe.
Novamente querendo focar em outra coisa, levantei, indo para o ponto de
encontro da minha equipe, precisava me distrair.
— Oi, oi, patotinha, já está todo mundo aqui? — Igor chegou perguntando
em sua típica animação. — Marta, você pode ler o seu devocional para nós?
Ergui a cabeça abruptamente quando ouvi a fala do homem após finalizar
a oração. Era costume na nossa equipe, a cada dia, alguém ler o seu
devocional da manhã e dar alguma aplicação em cima, mas eu não esperava
ser escolhida — ou ao menos torcia para esquecerem da minha existência
nesses momentos.
— E-e-eu não quero — gaguejei, sentindo meu rosto pegar fogo e o corpo
começar a tremer.
Não sei se o que mais me deu vergonha foi o fato de ter sido exposta ou os
olhares de pena dos outros em cima de mim.
— Vai, Marta, por favor, imagino que devem ser excelentes os seus
escritos! — Larissa, uma moça da equipe, insistiu, tentando me animar.
— Sim, todo mundo falou sobre o seu.
— Para de drama, anda logo.
Minha respiração começou a ficar descompassada com a insistência dos
outros do grupo, Igor e Sarah tentavam impedir, mas já tinha se tornado uma
algazarra.
— Chega! — O grito do líder fez todos calarem a boca. — Cadê a empatia
e o amor de vocês pelo seu próximo? Se ela não se sente à vontade, ninguém
aqui pode obrigá-la a participar, deveriam dar espaço e procurá-la para
conversar a sós depois.
A intenção dele era boa, mas, a cada palavra em busca de me defender,
apenas piorava o abismo dentro de mim, só me causava mais angústia e
vontade de correr para fora dali.
Após pedir para outra moça da equipe ler o dela, Igor mudou o tema para
os trabalhos que seriam realizados na próxima semana e quais ações nós
tomaríamos para completá-los.
Ao invés de subir para tomar um banho ao fim da reunião, preferi
caminhar até a quadra do colégio. Eu precisava ter um tempo a sós com
Deus, não aguentaria as insistentes perguntas de Júlia sobre por que eu
estava daquele jeito.
Passos ecoaram pelo piso e não precisei erguer o olhar para descobrir
quem era.
Capítulo Vinte e Dois
Jesus, seja o centro e tudo a sustentar
A cada passo nesta vida, cada área dominar
Seja o meu Sol, motivo e inspiração
O astro rei do universo, a sustentar meu coração
(Purples & Suylô - Seja o Centro)

— Posso me sentar aqui? — Hesitante, balancei a cabeça assentindo.


— Você quer conversar? — Sarah perguntou baixo, tomando cuidado para
não invadir meu espaço.
Primeiro neguei com a cabeça, depois assenti e por fim admiti, confusa:
— Não sei! — sussurrei, estalando os dedos.
Pela primeira vez, eu queria ser abraçada, queria ser reconfortada e chorar
no colo de alguém. Mas não conseguia falar isso, não conseguia ter iniciativa
para procurar isso, a vergonha de ser rejeitada, de ouvir um não, era maior.
Armei um escudo em minha volta ao ponto de ninguém ter coragem de se
arriscar.
Só fui perceber que estava chorando quando senti as lágrimas pingando na
minha mão, tentei não permitir, mas só piorava com o quanto mais segurava.
Naquele momento eu parecia estar a ponto de explodir, me sentia sufocada,
como se estivesse presa, sem nada para me soltar.
Sarah primeiro acariciou as minhas costas, mas depois acabou me
puxando para seus braços. Tomando cuidado com a barriga de cinco meses,
me aconcheguei ali, apreciando aquele carinho.
Aquela não era a nossa primeira conversa; nesses primeiros dias de
acampamento, tivemos um momento de discipulado, em que pude criar uma
intimidade maior com a mulher. Entretanto não fui tão vulnerável quanto
estava sendo agora.
As lágrimas desceram em abundância quando ela fez uma breve oração
pedindo para Deus me confortar e trabalhar no meu interior.
— Marta, estou te analisando há tempos, o que aconteceu? Como você se
sente quando tenta falar em público? — Após meu silêncio, ela completou:
— Se não se sentir à vontade para conversar, me perdoe, só estou
preocupada.
Congelei aterrorizada por alguns segundos, eu queria muito poder
conversar, mas tinha medo de ela rir dos meus motivos, de zombar, como
todo mundo fazia, de não entender e apenas piorar a situação.
— Eu quero — comecei, tomando coragem. Eu vivia orando para ter
alguém para conversar e agora Deus tinha me dado a oportunidade. — Mas é
coisa boba…
— Olha pra mim — obedeci —, se é algo capaz de te deixar aterrorizada
daquela forma para falar em público, garanto, não é bobo ou irrelevante. As
pessoas têm mania de diminuir as lutas dos outros porque não são as mesmas
das delas, e isso é a coisa mais horrível de se fazer, menosprezar a dor de
alguém.
Com uma voz baixa, comecei a tentar explicar um pouco da confusão
dentro de mim.
— Não sei, e-eu só não consigo, travo e parece que o mundo vai acabar.
Muitas vezes nem mesmo eu entendia; quando tentava abrir a boca,
travava. Era como se visse as outras pessoas rindo e depois virando-se para
falar de mim pelas costas.
Era um medo de errar, falar heresias ou magoar alguém com as minhas
palavras.
A última vez que havia tirado essa minha armadura foi um desastre,
quando perdi a cabeça com Luísa e quase acabei com a festa de Júlia.
E, quando era em relação a evangelizar, piorava… e se eu ensinasse algo
errado? E se eu falasse heresias e levasse pessoas à perdição?
Falei desses meus medos para Sarah, que disse:
— Primeiro, nem todo mundo está tão preocupado com você quanto você
pensa.
— Ajudou muito. — Revirei o olho, bufando.
Era sempre a mesma coisa: eu não era o centro das atenções. Mas não é
como se fosse possível encucar isso na minha cabeça e fazê-la parar de
reagir daquela forma.
— Bom, eu não vou mentir para você sobre eu ter uma solução milagrosa,
porque não tenho, nem tentar acariciar seu ego, porque não sou assim. Por
isso é tão importante estudo e seriedade quando estamos pregando a Palavra,
porque, se ensinarmos heresia, nós somos as responsáveis por isso. Você está
com a sua Bíblia aí?
Pegando o livro, abri em Apocalipse 22:18-19 conforme seu pedido e li os
versículos ali escritos: “Declaro a todos os que ouvem as palavras da
profecia deste livro: Se alguém lhe acrescentar algo, Deus lhe acrescentará
as pragas descritas neste livro. Se alguém tirar alguma palavra deste livro de
profecia, Deus tirará dele a sua parte na árvore da vida e na cidade santa, que
são descritas neste livro.”
— Enfim, tendo consciência dessa necessidade de palavras bíblicas, você
precisa analisar só uma coisinha: você não prega para os outros por temor do
Senhor em falar heresias ou é por amor à sua própria imagem?
Sentindo uma dor no peito, lembrei-me de umas das minhas primeiras
conversas com Gabriel, lá na cozinha de casa, quando ele falou algo
parecido com relação à timidez. Puxando a perna, apoiei meu queixo em
cima do joelho, refletindo sobre tudo aquilo.
Não era difícil saber em qual categoria eu estava, e sem dúvidas não era a
boa.
— Nós não somos capazes de controlar o que os outros dirão a nós ou
sobre nós. Porém podemos escolher se faremos com que essas ideias façam
parte do modo como continuaremos a pensar sobre nós mesmos. Não
podemos escolher não passar pela dor, mas podemos escolher se queremos
fazer aquela dor perdurar e continuar no sofrimento.
Abraçando meu joelho, ouvia Sarah com atenção enquanto ela entrava no
assunto sobre perfeccionismo e orgulho. Eu nunca tinha parado para pensar
sobre como o orgulho poderia me fazer distorcer minhas falhas,
aumentando-as ou diminuindo-as, nem em como me fazia reagir de forma
exagerada aos pecados e imperfeições. Nunca tinha reparado que esse tipo
de resposta não é motivada por uma preocupação genuína com o fato de ter
pecado contra Deus, e sim com meu desejo egoísta de ser perfeita.
— A consciência de um perfeccionista normalmente foi programada por
seu desejo desordenado por aprovação dos homens ou pelo medo de ser
rejeitado por eles, e não pela Palavra de Deus. Ao invés de termos temor do
Senhor, temos temor dos homens.
— Ai, essa doeu — murmurei, levando-a a dar risada.
— Você quer acrescentar algo? — ela questionou após alguns minutos em
silêncio.
— Não, estou processando. — Comprimi os lábios, rindo. — Talvez
depois te procure para falar mais.
Não era nenhuma mentira, eu realmente estava refletindo e tentando
assimilar aquele tanto de novas perspectivas que eu nunca tinha parado para
analisar sobre mim mesma.
— Mudando de assunto, vou aproveitar o momento... — Ergui a cabeça
curiosa, ainda mais com expressão temerosa em seu rosto. — Desculpe se
for muito intrusiva, mas e o coração? Como ele está?
No mesmo momento, desviei o olhar para as paredes da quadra. Era tão
perceptível assim? Eu sabia que ela seria a melhor pessoa para pedir ajuda,
mas eu não queria conversar sobre aquilo, não ainda, não queria soltar
aqueles pensamentos ocultos dentro de mim.
Tinha a noção de que aqueles dias ali no acampamento mexeriam comigo,
só não esperava que fosse ser tanto como estava acontecendo.
Por alguns breves segundos, me arrependi de entrar no assunto, mesmo
antes de falar qualquer coisa, mas, tomando um fôlego de coragem, abri a
boca e comecei a explicar tudo aquilo que vinha me incomodando.
Desabafei sobre meus sentimentos, os momentos com Gabriel, minha
confusão, minhas lutas.
Sarah já tinha me dado essa oportunidade de me abrir, era uma mulher
mais velha, casada e tecnicamente mãe. Eu poderia confiar nela. Ela ouviu
com paciência meus lamúrios e ficou um tempo em silêncio antes de falar.
— Bom — ela respirou fundo —, Gabriel chegou a dizer algo para você?
Ele deixou claro? Com palavras?
— Não sei, as ações dele parecem ter deixado algo explícito,
principalmente no casamento da Nina, e… o Gabriel que eu conheço, e você
também conhece, não parece ser alguém que defrauda pelo mero prazer.
— Marta, algo foi verbalizado? Houve algum sentimento sendo dito com
palavras? Saídas da boca dele?
Encarando uma mancha no chão, repassei todas as cenas dos últimos
meses. Apesar de vários “quases”, de acordo com a minha imaginação fértil,
nunca houve algo verbalizado.
— Não…
— Você pediu a minha opinião, então vou ser sincera.
Com o coração acelerado, balancei a cabeça, indicando para ela continuar.
Não, eu não queria ouvir, mas sabia o quanto precisava naquele momento.
— Eu não posso dizer se Gabriel foi imprudente ou não, estamos vendo
apenas pelo seu lado. Você me explicou sobre algumas ações e atitudes, mas
talvez quem tenha romantizado muito foi você. Coisas que ele pode ter feito
como amigo, para dar um auxílio, eu conheço Gabriel há anos, ele ama se
intrometer e dar pitaco na vida dos outros na tentativa de ajudar — ela
ressaltou com um riso em lábios —, e você, com seu coração corrupto,
interpretou com segundas intenções, mesmo que inconscientemente. Por
outro lado, ele também pode ter sido imprudente e te defraudado, sem
perceber, com esse jeito dele, o que seria um pecado. Mas não importa a
parte dele, nós estamos falando da sua.
— Eu…
Meus pensamentos estavam a mil por hora, eles não paravam de correr de
um lado ao outro, tentando interpretar o que estava acontecendo. Mesmo
querendo falar algo, não conseguia formular a frase.
— Nas últimas semanas — falei —, eu refleti muito sobre isso e vi que,
mesmo lutando contra, desde que o conheci, já vinha começando a nutrir
alguma coisa, principalmente com os muitos comentários de Júlia, dos meus
pais, das meninas na igreja... Gabriel parecia ser a pessoa perfeita para mim,
aquele para me resgatar de onde eu estava.
— Mas quem precisa fazer isso não é Deus?
Virei a cabeça, encarando-a, nunca tinha visto problema em sonhar com
um marido para me tirar da minha realidade.
Segurando minha mão, Sarah a massageou com carinho antes de voltar a
falar:
— Você idealizou que seria seu marido quem a tiraria da sua zona de
conforto e, quando Gabriel apareceu, preenchendo todos os requisitos, você
substituiu a pessoa abstrata por ele, certo? Mesmo que inconscientemente…
Assenti; apesar de querer discordar, sim, tinha feito aquilo.
— Contudo, entretanto, todavia, isso não deveria ser o papel de Cristo?
Não deveria ser Ele a te levar para além de si mesma? Não deveria ser Ele a
pessoa com quem você sonha sobre o seu futuro? Mesmo que isso envolva
um marido e filhos. Será que você não colocou seu futuro marido no lugar
do próprio Deus para te salvar? — Ela fez uma pausa antes de concluir: — E
se você nunca se casar? Ainda será contente em Cristo?
Mordi o lábio, refletindo.
Não, na minha cabeça não existia um futuro sem envolver formar uma
família. Não conseguia nem mesmo imaginar quem eu poderia ser sem estar
casada.
— Pelo silêncio, imagino sua resposta. Querida, existem muitos homens
por aí, homens pecadores, que geram expectativas mesmo sem poder, ou
querer, supri-las. Você comentou comigo sobre a palavra dada por Deus para
você guardar seu coração, agora mais do que nunca você precisa fazer isso.
Não é errado surgir o sentimento ou a possibilidade, o errado serão as suas
atitudes perante isso.
— E o que eu faço agora? — Bufei, frustrada com todas as novas
informações. — Fica por isso mesmo? Como eu reajo? Eu estou perdida,
Sarah…
— Primeiro, você precisa orar e pedir perdão a Deus, pedindo para Ele ser
o dono da sua vida e te preparar para obedecê-lO quando for solicitado, até
mesmo sem um marido. Converse com Deus, Ele já sabe o que você está
sentindo, mas abra seu coração com sinceridade, quanto mais fundo você
fala sobre isso, mais você entende o que está acontecendo.
Assenti devagar, esperando que ela terminasse sua colocação.
— E segundo, você precisa também orar para aprender a ver Gabriel
apenas como um irmão em Cristo, porque é isso que ele é. Lembre-se de
Paulo, Marta, o conselho em 1 Timóteo 5:2 também é válido para as moças.
Trate-o com toda a pureza, como se fosse seu irmão.
Capítulo Vinte e Três
“Não foi por merecer que Ele me levou a outro lugar
Não foi porque eu tinha alguma coisa boa pra dar
Mas foi porque um dia a Sua graça me alcançou
Então Você chamou
E eu disse: Ai de mim, só vou viver se for assim
Falando do Seu nome, da sua morte e vida
Da graça, do perdão e do amor
Que já pagou toda a dívida”
(O Caminho e o Guia - Ana Heloysa)

Durante todo o resto do tempo até o culto da noite, eu fiquei com a


cabeça longe, pensando ainda em como minhas atitudes estavam me
entregando. Se Sarah percebeu, será que Gabriel sabia também?
Dessa forma, o afastamento dele tinha mais lógica ainda, ele estava
orando por alguém, então obviamente não sentia nada por mim e não queria
me deixar criar falsas expectativas. Como eu queria voltar atrás e fazer tudo
diferente.
— Marta, o que aconteceu? — Júlia interrompeu meus pensamentos
batendo a mão na mesa.
Estávamos no refeitório jantando e eu mal tinha mexido no meu prato, não
estava com fome para isso.
— Por quê?
— Você está com o olhar longe a noite toda, eu fiz a mesma pergunta
umas cinco vezes e a única resposta era “uhum” ou “tá bom”, entretanto a
questão era discursiva.
— O que você quer saber, Júlia? — perguntei, já exausta do falatório.
— Nada! — ela gritou, levantando e batendo os pés para lavar a sua louça.
Massageei a têmpora sem paciência para a garota ficando de bode[15],
ainda mais hoje. Pedindo desculpas e licença, levantei para lavar meu prato
também, mas fui interrompida por Gabriel me chamando.
— Me deixa abençoar sua vida, irmã? — ele questionou, estendendo a
mão.
Respirei fundo para não discutir com ele, o rapaz não tinha culpa pelos
meus sentimentos, não deveria descontar nele, ainda mais quando ele próprio
fez questão de se afastar.
— Como?
— Lavar sua louça.
Olhando-o, entendi o pedido. Gabriel estava com vários pratos e talheres
acumulados nos braços. Era uma mania do povo aqui, vira e mexe saíam
pedindo para lavar a louça dos outros como forma de “abençoar” a pessoa. 
Balançando a cabeça, entreguei os utensílios a ele e agradeci antes de
subir para tomar um banho com o objetivo de tentar relaxar.
Minha cabeça estava prestes a explodir com tantas coisas acontecendo.

Eu tentava pensar positivo, mas, quanto mais olhava o meu reflexo no


espelho do banheiro, mais via coisas que poderiam dar errado,
miseravelmente errado. Seis dias se passaram desde que começou o
acampamento e, cada vez mais, Deus me forçava a sair do meu casulo, mas
agora eu não iria conseguir.
As meninas ao meu lado riam, fazendo gracinhas; eu queria me sentir
como elas, conseguir não me importar tanto ao ponto de brincar e me
divertir.
— Você vai amar, amiga!
Com um sorriso forçado para Júlia, voltei ao espelho para terminar a
maria-chiquinha no cabelo. 
— Olha se não são minhas palhacinhas mais bonitinhas! — Nina gritou na
porta do banheiro e eu só faltei querer me enfiar dentro de um buraco, quer
dizer, querer eu queria, só faltou o buraco mesmo. 
Será que o espaço entre dois colchões é fundo o suficiente para me
esconder?
Hoje teria uma festa infantil no bairro onde o colégio estava localizado,
organizada pelos próprios missionários com o objetivo de evangelizar
aquelas crianças, para poder falar do evangelho de Jesus aos pequeninos.
E só tinha um leve problema: minha equipe ficou responsável justamente
pela parte de evangelizar.
Eu tinha tentado trocar com alguém para poder ajudar na parte da
alimentação, organização ou limpeza. Mas Sarah foi enfática em afirmar que
eu não me livraria, ela faria questão de me colocar lá.
Desde a decisão dela, eu orava a cada instante pedindo coragem, porque
por mim mesma não conseguiria realizar aquela tarefa.
Os minutos seguintes se passaram como se eu fosse apenas uma
telespectadora da minha vida, me vi terminando de vestir o macacão, Júlia
puxando minha mão para correr até o refeitório para não perdermos a hora,
uma moça muito gentil pedindo licença para encostar no meu rosto e o toque
do pincel na pele.
Apertei os lábios, categorizando todos os possíveis desastres. Quando a
menina abaixou meu queixo, meus olhos focaram em Gabriel brincando de
“maximus ninja”, que consistia em não deixar ninguém bater na sua mão,
senão seria eliminado.
Olhando-o de longe imaginei como, se estivéssemos comprometidos, ele
poderia me ajudar em muitas questões. Perto de Gabriel eu conseguia me
soltar mais, ele sabia como ninguém me tirar do meu lugar secreto. Mas
infelizmente isso não aconteceu, ele nem ao menos sentia algo por mim e eu
não deveria ficar pensando nessas coisas, pois apenas me autodefraudaria
mais ainda.
— Que palhacinha mais linda! — a menina brincou quando me entregou o
espelho.
Meus lábios esticaram junto ao meu reflexo. Ela havia feito um leve
contorno branco com o pancake e um delineado rosa, resultando em
arabescos, além do nariz vermelho e da boca, também com batom vermelho,
em formato de coração.
A moça ali refletida era linda, mas eu não me reconhecia nela. Eu, Marta
Almeida, não conseguia me ver como alguém fantasiada prestes a sair em
público. Agradecendo-a, levantei para dar lugar a outra pessoa e fui para o
canto orar, clamando por coragem.
— Bora, turma! Todo mundo aqui para repassarmos o cronograma.
Ao grito de Micael, os alunos fizeram uma bolinha no meio do refeitório
enquanto o rapaz subia em uma mesa para conseguir ser visto. Demorou
mais alguns minutos para todos chegarem e ele começou a repassar o
cronograma da festa.
— Equipe Josué 1:9, todos aqui por favor! — Igor gesticulava no portão
da escola.
No início do acampamento, todos os grupos haviam recebido o nome de
um versículo bíblico por meio de sorteio e foi uma grande ironia quando
descobri que o meu era “Sede fortes e corajosos”.
— Tudo bem, Marta? — Ana Luiza perguntou, chegando por trás.
— Uhum, por quê?
— Você está com uma cara meio abatida, pensei que pudesse estar
passando mal — a garota se explicou, envergonhada.
Mesmo sendo do mesmo quarto e da mesma equipe, acabamos não nos
aproximando tanto e, confessei, era mais minha culpa do que dela. Para mim
não era tão fácil sair conversando com desconhecidas, não havia feito
grandes amizades neste lugar ainda.
Menos de meia hora depois, já havia crianças por todo lado, até tentei me
camuflar, mas os olhos de águia de Sarah me acharam e ela saiu me puxando
para me juntar à equipe. Nosso principal papel seria sair pelo bairro falando
da festa para os pais.
Eu me esforcei para tentar me pronunciar também, mas sentia meus lábios
grudados e a língua parecia chumbo, nada, simplesmente nada saía da minha
boca.
Pedindo licença, tentei caminhar de volta para o colégio, contudo, quando
percebi, estava perdida entre as ruas, não lembrava nem mais como voltar
para onde minha equipe estava.
— Por que eu fui sair de lá? — murmurei arrependida.
Perscrutei em volta com o olhar, não conseguia reconhecer nada, nenhum
estabelecimento ou placa. Desistindo, sentei em um dos bancos pela rua,
clamando a Deus por misericórdia e socorro, ainda mais ao ver muitas
pessoas encarando a garota vestida de palhaço no meio do nada.
Fechei o punho, fincando com força a unha na pele e tentando pensar em
qualquer solução, mas não conseguia achar nenhuma saída. 
Eu não deveria ter vindo, não deveria ter aceitado aquele convite para o
culto de jovens, jamais deveria ter saído do meu casulo, onde me sentia
segura.
Eu me surpreendi quando ouvi uma voz conhecida chamando meu nome e
me forcei a encarar, envergonhada, seu olhar de pena.
— Desculpa, Sarah, eu não consigo — falei quando ela sentou do meu
lado.
A mulher ficou alguns segundos em silêncio antes de segurar na minha
mão, incentivando-me a olhá-la.
— Eu também não.
— Eu sei, você vai me dizer que sozinha não consegue, que eu preciso
confiar em Deus. Mas eu realmente não vou conseguir, por favor, quero ficar
na minha.
— Olha, essa aqui é a Sarah. — Franzi a testa não entendendo onde ela
queria chegar quando colocou o nariz vermelho. — Essa aqui é a Loirinha!
— falou com uma voz infantil.
Não fui capaz de impedir os lábios de formarem um sorriso com a
descontração da mulher. Tirando o objeto do rosto, ela o colocou em minhas
mãos, fechando meus dedos em volta. Olhei-a sem compreender a atitude.
— Esse nariz, eu ganhei da minha líder anos atrás, no meu primeiro
evangelismo, e hoje estou passando para você.
— Mas…
— Shiu, deixa eu explicar!
Ela arrumou a postura para ficar mais confortável com a barriga, mas não
soltou de minha mão.
— Quando eu estou com esse nariz, não sou mais a Sarah tímida e
envergonhada, e, sim, a Loirinha, uma palhaça com o objetivo de espalhar a
alegria de Jesus por aí. Eu não sei como funciona, mas é algo totalmente
mágico o quanto conseguimos nos desconectar de nós mesmas, esquecemos
quem somos e só o prazer de ver a felicidade de uma criança já vale
qualquer mico.
— Não acho que isso vá funcionar comigo — sussurrei, sentindo no peito
aquele horrível aperto da incompetência e da timidez. — E não entendo por
que você me deu isso se é um objeto com valor emocional tão especial.
— Porque ele me ajudou e agora chegou a hora de ajudar outras pessoas
também. E eu confio em você para cuidar com carinho dele. Agora, sobre a
primeira parte, por que você não testa?
Mesmo sem concordar, coloquei aquele negócio no nariz, sentindo-me
ridícula, mas acabei esboçando um quase sorriso ao vê-la batendo palmas,
como se fosse uma grande conquista.
— Agora você precisa escolher um nome.
— Preciso? — resmunguei, fazendo careta. — Não sou boa com essas
coisas.
— Uhum, é muito importante para a sua nova identidade palhacesca. E
você pode muito bem utilizar uma característica sua ou dar um
ressignificado a algo ruim. O meu, por exemplo, veio porque sempre fui
chamada de loirinha, e não no bom sentido. Pode parecer bobo, mas foi algo
que me magoou muito. Então, quando precisei definir meu nome, Deus me
relembrou dessa mágoa e decidi transformar isso em algo positivo. Hoje,
quando penso no apelido Loirinha não é mais com o peso de antes, e, sim,
como algo da minha identidade, porque realmente sou loira, e que Deus usa
para poder alegrar ao mundo.
— Que lindo, mas eu não consigo pensar em nada com um significado
assim para mim — confessei.
— Não precisa ser agora, no momento certo ele vai surgir e, às vezes,
também pode nem ter um significado profundo, apenas ser algo do seu
agrado. Agora você vai lá levar Jesus para aquelas crianças, combinado?
Assenti, ainda um pouco contrariada. Ela levantou, dando-me cinco
minutos para aparecer, e me explicou o caminho de volta. Aproveitei o
tempo para fazer uma oração, pedindo graça e sabedoria para conseguir
cumprir aquilo.
Quando cheguei perto daquelas pessoas, num primeiro momento não
conseguia interagir. Fiquei um pouco atrás de todos apenas escutando e
pensando em quais palavras poderia usar, prestava atenção nos outros, vendo
como brincavam e evangelizavam.
— E você?
Levei um susto quando um menininho se aproximou apontando para mim.
Diante dos olhares vigilantes dos pais dele e do pessoal da minha equipe,
não tive escolha senão atendê-lo.
Seus cachinhos negros balançavam conforme ele se mexia e seus olhos
também eram escuros, quase pretos. Olhando rapidamente, eu não dava nem
uns oito anos para ele.
— O que tem eu? — Abaixei para ficar na altura dele e me esforcei para
dar um ar infantil ao tom de voz.
— Qual o seu nome?
Fiquei alguns segundos olhando para os olhos daquela criança, vendo
como Deus nos obrigava a tomar decisões, mesmo quando queríamos fugir.
Por alguns segundos, eu fiquei olhando-o, até relembrar de umas aulas de
Teologia que tive na igreja em novembro e as brincadeiras de algumas
meninas.
— Eu sou a Tulipinha! — apresentei-me, sorrindo. — E você? Qual o
nome desse príncipe tão lindo?
— Eu sou o Pedrinho! — Fez uma continência exagerada. — Ah, não,
você disse que eu sou um príncipe, né? 
Mudando a postura, o rapazinho fez uma reverência toda atrapalhada,
deixando um beijo na minha mão.
— Uau, você é muito educado, sabia? — Ele assentiu, rindo. — E você
sabia que daqui a pouco vai ter uma apresentação bem legal para príncipes
educados como você?
— Sério?
— Aham, vai ter um monte de brincadeiras da realeza e sabe o melhor? —
Ele balançou negativamente a cabeça, prestando atenção em cada palavra
minha. — Nós vamos falar sobre o Rei dos Reis, você conhece Jesus? Então,
vamos ter muiiitaaa coisa sobre ele.
— Pai, posso ir? Por favorzinho? — Pedro juntou as mãos, olhando com
expectativa para os pais.
Ambos deram uma resposta positiva, arrancando pulinhos e gritinhos
infantis do menino. Após me dar um forte abraço, ele se aproximou dos dois
enquanto pegavam com Sarah a informação de onde aconteceria certinho.
— Você arrasou — ela sussurrou no meu ouvido antes de já ir correndo
atrás de outra criança.
Durante os próximos minutos, eu fui conseguindo me soltar e brincar
mais. Era como Sarah me falou, algo mágico, conseguíamos nos desprender
totalmente de nós mesmas naquele momento. Eu havia acabado de falar com
mais uma criança quando ouvi a voz de Gabriel atrás de mim.
— Ora, ora, temos uma palhacinha aqui?
Meu coração parecia que ia sair do peito quando levantei e me virei para
vê-lo. O rapaz também estava fantasiado a caráter com uma roupa toda
colorida e inclusive aqueles sapatos grandes de palhaço.
— Sim, senhor! — Resolvendo tentar deixar a timidez de lado, fiz uma
continência, arrancando uma risada dele.
— E posso saber seu nome, senhorita palhacinha?
Fiz um suspense por alguns segundos, pensando no que ele pensaria da
minha escolha.
— Tulipinha — revelei, mordendo o lábio.
Gabriel abriu a boca, surpreso, e pouco depois formou um dos sorrisos que
eu amava, mas não deveria gostar, muito menos admirar.
— Ah é, Tulipinha? — ele me provocou com o nome.
— Uhum, e o senhor?
— Prazer, sou o Genebrinha! — revelou, apertando os lábios.
Eu me alegrei por compreender a origem do termo. Genebrinha fazia
referência à Bíblia de Genebra e à fé reformada, além de Genebra ter sido a
cidade onde Calvino iniciou a Reforma Protestante na Suíça. E,
ironicamente, o apelido Tulipinha era originado do acróstico TULIP, que
resumia os cinco pontos das Doutrinas da Graça. Ou seja, ambos havíamos
escolhido nomes que combinavam.
Eu havia conhecido recentemente ambos os termos devido aos cultos dos
jovens. As últimas semanas antes das férias foram focadas em conteúdos
mais massivos de Teologia e eu estava amando aquele universo e a riqueza
de conteúdos. Meu próximo desejo era comprar uma Bíblia de estudo, mas
estava fora das possibilidades financeiras no momento.
— É, eu preciso falar com a Sarah e o Igor.
— Ah, sim, eles estão… — Dei a volta procurando o casal. — Ali! —
Apontei para um banco onde ela estava sentada.
— Obrigado, com licença… Tulipinha, aliás, combina com Martinha!
Revirei os olhos, vendo-o pegar no meu pé com meu apelido, observei-o
caminhando sem perceber que ainda estava com um sorriso em lábios.

— Amiga, vem aqui!


Eu estava sentada no banco exausta após termos feito uma faxina na
quadra para limpar a sujeira da festa, não tinha nem forças para levantar e ir
até os quartos tomar um banho.
Para a glória de Deus, o evangelismo foi um sucesso. Todas as equipes se
empenharam com seus papéis e eu ri muito quando uma delas apresentou um
teatro infantil — criado por eles mesmos — para explicar as Doutrinas da
Graça de forma divertida.
Mas, infelizmente, Júlia atrapalhou meu momento de refletir nos feitos
desta tarde para sair me puxando pela mão e fui obrigada a fazer esforço
para alcançar a velocidade dela. A garota me fez esperar no corredor em
frente ao nosso dormitório enquanto ela estava lá dentro, pouco tempo
depois Gabriel apareceu, encostando-se na parede à minha frente.
Quando eu criei coragem para questioná-lo sobre o que estava
acontecendo, fui impedida por Júlia abrindo a porta. Ela segurava um pacote
dourado em mãos e parecia ansiosa quando começou a me explicar.
— Nós estávamos querendo te dar um presente de Natal, mas não
fazíamos ideia do quê. Então, em uma conversa com o Biel e minha mãe,
decidimos escolher isso, esperamos que goste. Feliz Natal, quase um mês
atrasado! — explicou, estendendo o presente.
Olhei desacreditada para os dois, sem entender a motivação deles, para
mim era algo muito irreal, tanto que não tive nenhuma reação.
— Não é nada muito elaborado, na verdade pensamos nisso por causa de
uma conversa no culto dos jovens. Vai, aceita — Gabriel incentivou, vendo
minha hesitação.
Posterguei por alguns segundos ainda, mas assenti, pegando o pacote.
Ambos me olhavam com expectativa enquanto eu tentava manobrar para
conseguir abri-lo com as mãos.
Pelo peso, eu desconfiava ser um livro, mas meus olhos se encheram
d'água quando retirei o pacote e vi uma Bíblia de Estudos. Era inacreditável,
eu estava orando há poucas horas sobre isso.
Aquela foi a primeira das muitas provisões que viveria com Deus em
missões.
— E-eu não sei o que falar!
Deslizei os dedos pela capa e abri, vendo uma dedicatória na primeira
página “Que Deus continue te usando e que você possa crescer nEle a cada
dia mais com este livro. Com amor, os Mendes.”
— Eu lembrei quando você comentou ter poucos livros cristãos e até
pensamos em comprar algum assim, mas chegamos à conclusão de que,
acima de tudo, é necessário um aprendizado das Escrituras, por isso uma
Bíblia de Estudos seria mais adequada. Espero que tenha gostado. — Gabriel
colocou a mão no bolso e deu um abraço de lado na irmã.
— Eu amei, muito obrigada! — Tentei ser o mais sincera possível,
realmente tinha amado o presente.
Comecei a passar as páginas, ainda boba com aquele presente tão especial.
Após eles me explicarem um pouco sobre como funcionava, sobre as notas e
artigos, Gabriel se despediu para ir a uma reunião da liderança.
Em momentos assim, eu percebia como era difícil não me apaixonar por
ele e só dificultava o desapaixonar.

Domingo era a nossa folga, foi engraçada a correria das meninas para
lavar roupas. Quem morava aqui na cidade também nos levou para passear e
pudemos conhecer um pouco mais daquele lugar tão lindo. O culto havia
sido de manhã, por consequência ouvimos várias reclamações de quem
esperava poder acordar tarde, mas também foi bom, pois não ficamos
neuróticos no passeio para voltarmos a tempo do culto.
Obviamente os líderes tinham ido junto e era difícil não rir quando
baixava o guia turístico em Gabriel, mesmo ele não sabendo quase nada
sobre o local.
Todavia a noite de segunda-feira não tardou a chegar e, com ela, mais uma
vez um balde de água fria nos meus sentimentos.
O responsável pela pregação era Igor, fiquei animada, pois, além de ser
meu líder, as palavras dele eram excelentes. O tema não havia sido revelado
anteriormente, como era de costume, por isso estávamos todos curiosos para
saber o que viria.
— Bom, não vou ficar falando muito sobre mim, pois o foco da noite é a
Palavra — falou quando terminou a breve apresentação sobre si mesmo. —
Peço que abram em Cânticos 8:4.
Folheei com gosto a Bíblia, ainda admirando cada pedacinho dela, e não
pude evitar o longo suspiro quando vi qual era o versículo.
“Prometam, ó mulheres de Jerusalém, que não despertarão o amor antes
do tempo.”
Capítulo Vinte e Quatro
“Faz de mim pequeno cristo
Digno de ser filho teu
Anunciando as boas novas
Salvação que vem de Deus”
(Oração - Purples)

Quando crescemos no evangelho, temos a tendência de cair no erro de


nos acharmos perfeitos; claro, é algo inconsciente, mas acontece.
Afinal, eu nunca bebi, nunca fumei, nunca fiquei de rolo com alguém,
nunca me desviei. Não tinha nenhum pecado grandioso para testemunhar
sobre a minha conversão, inclusive nem data específica eu tinha do dia que
"aceitei" Jesus, era algo natural desde criança para mim.
Porém somos pecadores como qualquer outra pessoa do mundo, a
diferença é que fomos agraciados com a bênção de crescer conhecendo a
Deus.
Mas se dar conta disso não é fácil. Reconhecer quantos pecados eu tenho
dói, dói muito.
Por ter uma tendência à melancolia, eu gostava muito de me isolar para
refletir sobre o que vinha acontecendo. Nesse momento estava aproveitando
a breve folga do almoço sentada em um banco isolado do colégio, em uma
tentativa de colocar no papel um pouco de todo esse processo.
O culto de domingo ainda martelava na minha cabeça. Não foi muito
diferente da minha conversa com a Sarah, provavelmente ela deve ter falado
com o marido. Igor apenas explanou mais o assunto, terminando de me
estraçalhar por dentro.
Abri o caderno para reler uma das frases que mais me marcou: “Deus não
nos dá permissão para entrar na zona de vulnerabilidade sem construir uma
cerca de proteção à nossa volta. Essa cerca é o voto pactual; aquilo que
chamamos de casamento. É feito perante Deus e diversas testemunhas. O
problema é que a nossa juventude está entrando nessa zona sem ao menos ter
qualquer tipo de segurança de um relacionamento.”[16]
É fácil entrar em um campo de degradação emocional, fácil até demais. E
eu bem sabia disso.
Esses pensamentos ainda ocupavam minha mente quando me juntei aos
outros no auditório para mais um dia de reunião.
— Como vocês sabem, no próximo mês começam as Escolas de
Treinamento e Discipulado, as inscrições já foram abertas, inclusive temos
pouquíssimas vagas. O banner na frente do auditório explica um pouco de
cada base.
Voltando minha atenção ao palestrante, Micael continuou falando sobre as
inscrições para as Escolas de Missão Integral. Apesar de ter muita vontade,
eu já tinha certeza absoluta de que não participaria, então não dedicava
muita atenção ao discurso.
Ao fim da reunião, eu estava caminhando rumo ao segundo andar e
pensando em tirar um cochilo até o horário do almoço, mais um momento
para fugir dos meus pensamentos.
Porém toda a animação se esvaiu quando vi Sarah parada na frente do meu
quarto com um sorriso estranho.
— Marta, querida, você está ocupada?
— Hum, não — respondi, torcendo para ela ser rápida.
— Podemos conversar por um minuto? Ou cinco, talvez dez, vai depender
de você.
Balancei a cabeça positivamente, mas, enquanto a acompanhava até onde
fosse lá que ela queria conversar, pensava em como acabar com o assunto o
mais rápido possível, já que só dependia de mim.
— Você viu que o Mica estava falando sobre as Escolas de Treinamento?
— Sarah começou quando sentamos na quadra. — O que achou delas?
— Interessante, mas não é para mim — falei, sincera.
— Por que, Marta?
— Sarah, olha pra mim — me exaltei, abrindo os braços —, eu tenho
medo da minha própria sombra, não consigo encarar ninguém nos olhos, não
consigo iniciar uma conversa, muito menos evangelizar na rua. Você acha
mesmo que eu tenho chamado missionário? Eu não sou uma Carina, que
consegue se entrosar com todo mundo, meu lugar é na minha casa e só me
resta torcer para algum dia um homem se interessar por mim e eu exercer um
papel de mãe, e pronto, eu não tenho muita expectativa de vida. Você é uma
dessas, é casada, está para ter seu primeiro filho, sua vida é toda perfeita.
Pela segunda vez na minha vida, explodi com alguém.
Juntava a TPM, a rotina atípica e todos aqueles sentimentos em conflito
dentro de mim, em que a todo segundo precisava fugir dos meus
pensamentos, pela angústia daqueles dias. Na primeira oportunidade os
coloquei para fora e descontei na coitada da Sarah.
— Você acha mesmo que o chamado de uma mulher se resume apenas a
um casamento? 
— O quê?
Apesar de todo o meu surto, ela não se alterou em nenhum momento,
muito pelo contrário, a cara de paisagem era pleníssima.
— Você acha mesmo que o chamado de uma mulher se resume apenas a
um casamento? — repetiu. — Marta, você criou um deus dentro de você,
uma idolatria em cima do marido perfeito. Você pensa que quando casar será
completa, mas sinto em te dar uma triste notícia: um homem nunca vai te
completar. E, muito pelo contrário, por causa da sua alta expectativa, você
vai desgraçar seu casamento, por querer transformar seu marido nos seus
sonhos.
— Mas…
— Você falou tudo que queria, agora vai me deixar falar também.
Engoli em seco.
— Sabe o motivo pelo qual você se apaixonou pelo Gabriel? Ele supriria
todas as suas necessidades. Afinal, é um missionário, então você estaria onde
sempre sonhou, mas seria a sombra dele. Não seria a Marta, e, sim, a esposa
do missionário. Mesmo em campo, seu anseio seria apenas para seu marido e
seus, talvez, filhos. Mas e se eles morressem? Todo seu propósito de vida
acabaria, porque você viveu exclusivamente para algo terreno, para seu deus
matrimonial.
— Sarah, não foi bem assim que eu quis dizer!
— E outra — ela fez um sinal com a mão, mandando eu esperar —, eu
sou, sim, casada, e sou muito feliz com meu marido, mas eu sei que o
propósito da minha existência não é exclusivamente o Igor e meu filho, ou
filha, e, sim, glorificar a Deus com meus dons e talentos. Marta, existe uma
diferença gritante entre sonhar em casar e idolatrar o casamento, e você está
na segunda opção.
— Você não sabe o que está falando. 
Meu coração estava acelerado, uma pressão me enchia por dentro, uma
raiva e a vontade de chorar de tanto ódio. Ela tinha dito essas palavras como
se soubesse de cada sentimento meu.
— Prova o contrário, então, porque é essa ideia que você está passando
em toda a nossa conversa, como se estivesse presa na sua torre de timidez
esperando o príncipe do cavalo branco vir te salvar…
Sem deixá-la concluir sua fala, levantei e saí a passos duros dali,
carregando aquela sensação sufocante presa dentro do peito; eu explodiria a
qualquer instante.
Não suportaria voltar para o quarto, não naquele momento.
A cada passo parecia que as paredes estavam se fechando ao meu redor, a
respiração falhava, não conseguia puxar o ar.
Sem entender o que estava acontecendo, corri para o banheiro, trancando-
me na primeira cabine pela frente.
Eu precisava de ar.
Agachei, colocando a cabeça entre as pernas. Não era a primeira vez que
tinha aquela sensação, ela me acompanhava constantemente, todos os dias.
Nos últimos meses, ela praticamente sumiu, porém voltou com força naquele
momento, estava se preparando para me pegar novamente.
Eu precisava respirar.
Os minutos pareceram horas, ou talvez tenha sido o contrário? Ninguém
veio me procurar, não deveria ter passado quase nada.
Mesmo em desespero, fiz uma oração, pouco lembrava quais tinham sido
minhas palavras, mas me agarrei na esperança de Cristo me tirar dali. 
— Marta?
Ouvi a voz de Júlia no banheiro, eu não queria encará-la, não queria
encarar ninguém. Me forcei a ocultar o choro, ela não podia me ver. Mesmo
após ela ter saído, continuei alerta, eles estavam me procurando.
Eu precisava sair dali.
Tudo que queria nesse momento era a minha mãe, era ser abraçada e
acalmada por ela, mas ela estava bem longe daqui.
Eu não deveria ter vindo.
Não sei como não percebi os passos, nem o movimento da pessoa
sentando-se no chão, apenas tive meu coração mais acelerado ainda, como se
fosse possível, ao ouvir uma voz falando para mim:
— Respira comigo: um, dois, três, quatro, cinco, seis. Segura: um, dois,
três. Expira: um, dois, três, quatro.
Carina estava encostada do outro lado da porta, não a questionei, apenas
me concentrei em sua voz calma repetindo aqueles comandos.
Alguns minutos se passaram, aquela dor no peito não tinha sumido, mas a
sensação já estava mais longe. Eu já conseguia respirar com calma.
— Estou levantando e vou abrir a sua porta, não se preocupe, tranquei o
banheiro.
Temi o olhar de pena, porém a garota apenas sentou do meu lado, ela não
me abraçou, não forçou nenhum contato nem me obrigou a falar, somente
ficou ali me fazendo companhia. 
— Obrigada — sussurrei em um fio de voz após algum tempo em silêncio.
— Todas as vezes que você precisar controlar a respiração faça esse
exercício, vai ajudar.
Ela não questionou se eu estava melhor nem o porquê de eu ter ficado
daquele jeito, e agradeci mentalmente por isso.
— Como você me encontrou?
— Estávamos te procurando, a Sarah me puxou para o canto, avisando
sobre a discussão entre vocês, imaginei que tivesse se trancado em algum
lugar para ficar a sós. Foi a Júlia quem te viu aqui, ela percebeu que algo não
estava certo e me chamou, ela sabia que não tinha capacidade para lidar com
a situação.
Balancei a cabeça, realmente ela não saberia e foi prudente em não tentar.
Trocamos mais algumas palavras antes de a garota realizar uma oração e me
ajudar a levantar.
A palpitação estava quase sumindo, era apenas um incômodo distante.
Nina me deixou a sós enquanto passava uma água no rosto, os olhos
vermelhos e inchados evidenciavam o choro, mas não mostravam nem um
por cento da agonia sentida.
Quando saí, fui direto para o quarto, não queria jantar.
Júlia havia deixado um chocolate na minha cama, com um bilhete para
meditar no Salmo 42. Pegando a Bíblia, fiquei longos minutos lendo cada
versículo e meus olhos focaram no último.
“Por que você está tão abatida, ó minha alma? Por que está tão triste?
Espere em Deus! Ainda voltarei a louvá-lo, meu Salvador e meu Deus!”
Eu precisava fazer alguma coisa; puxando meu caderno, comecei a
rabiscar algumas palavras, tentando distrair a minha mente. Era algo que já
estava pensando há umas semanas e ali foi o momento certo.
Ouvi vozes, estavam terminando de jantar. As meninas entraram no
quarto, mas praticamente ignoraram a minha presença, apenas questionando
se eu estava bem.
— Meninas! — Larissa gritou, entrando no ambiente, ela não era daqui,
mas sempre aparecia, então não me surpreendi com sua presença. — Vocês
ficaram sabendo da bolsa?
— Que bolsa? — Ana Luiza questionou do colchão.
— A base de Florianópolis vai sortear hoje à noite uma bolsa com a taxa
de inscrição e a metade da Escola de Treinamento para algum dos alunos do
acampamento.

Quando fiz a inscrição, não contei nada para a Sarah, Júlia, Nina, nem
qualquer outra pessoa. Aproveitei quando estavam todos tomando banho e
desci para o hall onde as fichas estavam em cima da mesa.
Desde que Larissa falou do sorteio, algo me incomodava para preencher o
formulário. Mesmo que ganhasse, ainda teria metade da Escola para pagar, e
era uma alta quantia.
Mas e se…?
Eu tinha medo, muito medo, ainda mais depois do acontecimento da tarde.
Contudo uma força parecia me empurrar para ali, algo inexplicável me
incentivava a preencher aquele simples papel.
Como era algo mais provisório, apenas para o sorteio, não era a ficha
completa ainda. Se eu fosse escolhida, iriam me chamar para fornecer
minhas demais informações, além de também pedirem para meu pastor
preencher a recomendação da liderança. 
A parte boa de os líderes da base de Florianópolis estarem aqui era que
não teríamos todo o trabalho de enviar a ficha pelo correio, esperar a
resposta e só depois arrumar minha mala. Tudo bem, os telefones
residenciais facilitariam esse contato, mas ainda era muita burocracia.
— Onde você estava? Saí do banho e não te vi no quarto — Júlia
perguntou uns dez minutos após minha volta, mas vi como, durante todo
esse período, ela me olhava de esguelha com a curiosidade estampada no
rosto.
— Coisa pessoal. — Não queria magoá-la, mas também não queria
compartilhar esse desejo no momento. — Obrigada por mais cedo. — Não
precisei explicar, ela entendeu sobre o que estava falando e apenas sorriu em
troca.
Eu fiquei pensando, se eu fosse selecionada — uma chance ínfima diante
do número de inscritos —, o que falaria para meus pais? Será que eles
liberariam? E Sarah, Gabriel e tantos outros? Quais seriam as suas reações?
Quando descemos para o auditório para a programação da noite, era
visível meu nervosismo, várias vezes fui parada por conhecidos
questionando se eu estava bem, pois estava pálida além do normal, segundo
eles.
Apenas com um balançar de cabeça, eu desconversava. Já sentada, minha
atenção não se fixava no cara falando. 
Hoje era uma noite com o propósito de ser mais descontraída, não focada
em uma pregação ou aula específica. Era um bate-papo com alguns
missionários mais antigos e, apesar de não ser antigo, Gabriel estava sentado
junto na roda, representando o pai e os anos que ele serviu em missões.
Vendo Gabriel descontraído e rindo, era difícil não deixar meus
sentimentos aflorarem, aqueles que eu tanto tentava sufocar a todo custo. As
palavras de Sarah repetiam-se na minha cabeça, ecoando sobre a idolatria do
casamento e o meu desejo do príncipe de cavalo branco para me resgatar.
Júlia ao meu lado demonstrava abertamente sua animação, ela também
havia sido convidada para o bate-papo, mas, surpreendendo a todos, preferiu
deixar os holofotes apenas no seu irmão.
— Talvez seja uma pergunta muito íntima, então, se preferir não
responder, fique à vontade. Como é a sua relação com missões e a morte do
seu pai? Ainda mais levando em conta que tudo aconteceu durante uma
viagem missionária. E, novamente, meus sentimentos a vocês — o
apresentador olhou para Júlia — pela grande perda.
O semblante de Júlia, antes alegre, ficou sério. Conhecia minha amiga e
sabia bem como ela não gostava de relembrar a morte do pai nem os eventos
posteriores com a ida do irmão.
— Bom, confesso que imaginei uma pergunta nesse sentido, mas ainda é
difícil pensar em uma resposta para dar — Gabriel começou. — Primeiro,
sobre meu pai. Quando o perdemos, foi um baque, mas ter me tornado
missionário integral não esteve ligado à morte dele, eu já tinha planos sobre
isso, porém eles incluíam meu pai em cada passo, o que foi duramente
alterado depois daquele 14 de novembro. Talvez eu apenas tenha me tornado
mais dedicado a isso como forma de honrar a Josué Mendes, tem sido algo
no qual tenho refletido muito ultimamente. Mas me contento em saber que
ele está hoje no lugar onde tanto sonhava e pregava.
— Enquanto Gabriel se tornou mais apaixonado por missões, eu fui
pegando pavor — Júlia pensou alto, mas só eu escutei, então preferi ignorar
no momento.
Um silêncio se fez enquanto o rapaz tomava uma água.
Eles fizeram mais algumas perguntas sobre os projetos e planos futuros do
Mendes antes de chamarem outro missionário de carreira.
— Agora — Mica pegou no microfone depois do fim das entrevistas —,
lembram-se sobre o anúncio de uma bolsa parcial para a Escola na base de
Florianópolis? Vamos ao sorteio?!
Um silêncio tenso preencheu o salão, milhares de cabeças espichadas para
descobrirem se teriam essa graça ou não. Enquanto Júlia lixava as unhas sem
o mínimo interesse, Mari estava frenética, pois ela também tinha se inscrito.
Naquele momento comecei a torcer por ela, seria a chance que tanto
sonhava.
— E o grande sortudo ou sortuda é… 
Ele puxou uma ficha e abriu o papel para ler. De repente gritos começaram
a ecoar quando o nome finalmente foi lido.
— Marta Carolina Almeida!

Querido futuro marido, como você está?


Faz tempo que eu não escrevo para você, mas foi impossível
não pegar a carta e o papel hoje para poder conversar um
pouco.
Chegou mais um Dia dos Namorados e ainda não te conheci.
Eu achava que no Brasil essa data era difícil, mas em Porto das
Rosas tudo gira em torno do "Valentine's Day”, há pelo menos
duas semanas só se fala dessa data em todas as rádios.
Durante toda a minha vida, eu pensava que, com essa idade, já
estaria casada e talvez até com nosso primeiro filho nos braços,
e, por um tempo, jurei que isso aconteceria ano retrasado.
Mas, como diz o ditado: “Deus não está nem aí para o seu
planejamento”. E sinceramente? Agradeço muito por isso.
Hoje estou em outro país, fluente em outro idioma e vivendo
algo que jamais imaginei.
Neste momento, estou sentada na escrivaninha do quarto,
observando pela janela a neve caindo. Às vezes fico
imaginando onde você está, será que você também ora por
mim, como eu oro por você?
É difícil não me render à carência, a imaginação voa pensando
como deve ser seu abraço, sua voz, seu sorriso. Nesses
momentos, oro para Deus guardar meu coração, para esse
sentimento não me dominar e para que eu continue com meus
olhos focados exclusivamente na cruz.
Preciso ir, Ashley decidiu que teríamos um “date” das solteiras,
as meninas da base também virão aqui para passarmos esta data
juntas.
Oro para que você esteja bem e para que, onde quer que esteja e
como quer que seu dia tenha sido hoje, Deus guarde seu
coração para quando nos encontrarmos.

Com amor,
Marta.
14 de fevereiro de 1987
Capítulo Vinte e Cinco
“A como é grande todo esse amor
Por isso eu canto alegre e sorridente
Que para ser feliz com a gente
Tem que amar como Ele amou”
(Seguindo Seus Passos – Sem Fronteiras Music)

Minha vida virou um caos. Um completo, inteiro, total caos. 


Ter meu nome anunciado na frente de todos foi algo inesperado, nunca
tinha ganhado nenhum sorteio e obviamente não esperava que justo esse
fosse ser o primeiro. Fiz a inscrição só para tirar o peso da minha
consciência.
Os dias seguintes foram todos de diversos “parabéns”, os Mendes me
levaram de volta para Curitiba e, durante todo o caminho, ficavam falando
sobre não fazer ideia da minha inscrição. O olhar de Gabriel era estranho, ele
estava muito feliz, feliz até demais, enquanto tagarelava sem parar ao
volante sobre o quanto eu amaria a escola. Já Júlia estava séria, chateada por
eu não ter contado para ela sobre meu interesse.
— Vê se trata de voltar, hein, não quero perder mais uma amiga para
missão — ela falou abraçando-me enquanto nos despedíamos.
— É claro que volto — respondi, incerta.
Mas, enquanto entrava naquele ônibus em direção à Escola Missionária,
algo dentro de mim dizia que o retorno seria apenas para visitas.
Meus pensamentos estavam longe enquanto eu ainda admirava o fato de
estar naquela igreja, em outro país, quando minha atenção voltou para os
olhares inquisidores de Ashley.
— Agora teremos um momento de intercessão liderado por uma das
missionárias.
Ela me olhou em busca de confirmar que eu não desistiria novamente;
assentindo mais para mim mesma do que para ela, levantei do banco,
chamando a atenção da igreja.
Cada passo até o púlpito fazia parecer que eu havia corrido uma maratona,
minhas pernas tremiam e eu temia, a qualquer momento, tropeçar e cair.
Com todo o cuidado do mundo, subi os quatro degraus do palco e, com suor
na palma das mãos, peguei o microfone da minha amiga.
Após um ano em Porto das Rosas, meu inglês porto-rosense tinha
melhorado de forma considerável, mas era bem diferente conversar com
outras pessoas do que dirigir uma intercessão.
Graças a Deus, boa parte do país era fluente nos dois idiomas, inglês e o
próprio porto-rosense, porque, se eu precisasse falar no dialeto, estaria
perdida.
— Hoje eu quero falar com vocês sobre os povos não alcançados, com
foco nos nativos do meu país, o Brasil — expliquei após cumprimentar a
igreja no idioma.
Há algumas semanas, eu já vinha sendo desafiada a estar à frente de algo
no culto. Pregar estava totalmente fora de cogitação, palavra da oferta
também, louvor muito menos, só restava a intercessão. 
Ainda não era um processo fácil sentir todos aqueles olhos sobre mim,
precisava me forçar a empurrar para longe aquela voz dizendo que eu ia
errar e eles zombariam de mim. E, por precisar falar em outra língua, piorava
mil vezes, o medo de falar alguma palavra errada e levar todos a uma heresia
era enorme.
Estudei muito para falar desse assunto, conversei com missionários de
carreira, li e procurei sobre o tema. Além disso, eu não precisava ser
perfeita, estava tudo bem errar ou não saber alguma informação.
Eu não entraria em pânico novamente.
Seguindo a técnica ensinada por Ash, foquei meus olhos em um único
ponto e comecei a explicar sobre a carência bíblica dos povos indígenas. Dei
também alguns dados, como o fato de existirem centenas de tribos não
alcançadas apenas dentro do território brasileiro, isso dos grupos que
sabíamos da existência, mas com certeza há muitos outros sem nosso
conhecimento. 
Lembrei-me da Nina, com seu foco para trabalhar na tradução de Bíblias
para esses povos não alcançados; agora mesmo estavam ela e o Dave em um
Centro de Capacitação para Tradutores em Porto Velho.
Após terminar de explicar, fiz uma oração e saí o mais rápido possível dali
de cima. Tentando manter a elegância, caminhei até o lado de fora, jogando-
me na primeira cadeira longe dos olhos das pessoas no culto.
— Quer?
Ergui meu olhar, vendo Daniel me oferecer um copo de água, agradeci e o
peguei, virando em um único gole. 
— Obrigada!
— Você foi muito bem, fiquei orgulhoso te vendo lá na frente.
Abri um meio-sorriso sem saber como reagir, não gostava de ser elogiada
por causa disso. Mas também estava me sentindo orgulhosa de mim mesma,
não me achava capaz de falar para tantas pessoas e, ao menos até onde
percebi, não cometi nenhuma gafe.
Pensar nisso me lembrou do meu primeiro evangelismo, quase dois anos
atrás, e das pessoas que me acompanhavam.
Apertei as unhas para não deixar o choro surgir, a saudade do Brasil estava
esmagadora, a cada dia o anseio pelo abraço dos meus pais só aumentava e
até tinha saudades das histerias da Júlia.
Desde que recebi o direcionamento de Deus para permanecer em Porto das
Rosas, eu vinha guardando dinheiro para pelo menos uma visita. Contudo
morar em outro país não era nada barato, era pouca a quantia que conseguia
deixar reservada e, de vez em quando, alguma emergência me obrigava a
gastar tudo que economizei.
Se desse certo, conseguiria passar três meses em Curitiba este ano, eu
estava orando por isso, precisava desse tempo sabático.
— Vamos? — Daniel questionou, interrompendo meus pensamentos
relacionados à minha terra natal.
Falei para ele ir primeiro, que eu já ia. Depois de virar outro copo de água,
conferi o cabelo no espelho do banheiro, ao lado do bebedouro, e fui para a
igreja. Mal me sentei ao lado de Ashley e ela já me deu um cutucão,
parabenizando. Ignorando-a de propósito, já que ela me provocou, foquei em
assistir à pregação.
— Olha nossa intercessora! — O pastor Peter deu uns tapinhas nas minhas
costas.
Abri um sorriso diante de seu comentário, mas não falei nada.
Rapidamente eles mudaram de assunto, começando a falar sobre a equipe do
Brasil que receberíamos na próxima semana, seria um oásis poder conversar
em português com pessoas da minha cultura.
Não que eu não gostasse de Porto das Rosas, pelo contrário, eu amava,
mas era diferente a sensação.
— Gente, vamos pedir hambúrguer? — Ashley perguntou quando estavam
se dispersando.
— Claro! Quero um com bacon e bastante cebola, o melhor sabor que
existe, e você não ouse falar que cebola no lanche é horrível, dona Ashley!
— Daniel se pronunciou, já indo pegar um papel para anotar os pedidos. —
Marta, você vai querer quais sabores?
— E-eu não quero — menti.
— Tem certeza?
— Uhum — Tentei ser o mais vaga possível para não mentir mais.
A verdade era que eu não tinha dinheiro para pagar, não se quisesse viajar
para o Brasil em setembro.
Meus pais não tinham condições de ficar enviando dinheiro para mim toda
hora. Durante as minhas duas semanas em casa, logo após o acampamento
de férias, Gabriel me ajudou a levantar alguns mantenedores, sendo, em
resumo, ele mesmo e o pastor João. A ajuda era muita, porém ficava apenas
para pagar os custos básicos para sobreviver, sem sobras para esbanjar com
lanches extras. Aqui em Porto, consegui outros apoiadores, principalmente
irmãos da igreja, mas, ainda assim, ficava apenas no básico.
Queria ir para a casa onde estava morando com Ashley, porém já era tarde
e perigoso voltar sozinha.
Passaram-se longos minutos até Daniel e a trupe entrarem com as várias
caixas na mão. Eles foram entregando os pacotes de cada um e levei um
susto quando Daniel estendeu uma para mim.
— O quê? — questionei confusa ao pegar e mais confusa ainda ao ver que
era meu favorito.
— Você acha mesmo que deixaríamos você sem comer? — Ashley falou,
sentando ao meu lado. — O Dani conversou comigo e resolvemos te
abençoar, como seus amigos, sabíamos qual sabor você gostava!
Já deveria estar acostumada, mas fui pega de surpresa.
Desde aquele sorteio, um ano e meio atrás, comecei a viver milagres que
nunca tinha vivido. Antes eu via outras pessoas testemunharem do que Deus
foi realizando na vida delas e internamente sempre dizia querer viver o
mesmo. E a minha vez chegou.
Um versículo para tentar resumir tudo isso era de Jó 42.5: “Antes eu te
conhecia só por ouvir falar, mas agora eu te vejo com os meus próprios
olhos”.
Antes eu conhecia Deus por meio dos testemunhos dos outros, mas agora
tinha meus próprios testemunhos para contar, vivenciei com meus próprios
olhos a provisão dEle.

Uma das coisas que eu amava em missão eram os momentos dedicados à


meditação na Palavra, todo o nosso cronograma já era pensado para ter essa
uma hora a mais. Na casa dos meus pais, muitas vezes eu não conseguia esse
tempo, precisava fazê-lo picado, já aqui ninguém me atrapalhava, pois todos
estavam com o mesmo objetivo.
Sentada na varanda de casa, fechei meus olhos, refletindo um pouco sobre
tudo o que aconteceu nos últimos meses; se duvidar dava até para fazer uma
linha cronológica.
Em janeiro do ano retrasado, eu e minha família nos mudamos para
Curitiba.
Em setembro, conheci Gabriel.
Em outubro, me aproximei das meninas da igreja e criei uma amizade com
elas. Nesse mesmo mês, participei do meu primeiro evangelismo, além de ter
tido algo escrito por mim, um poema, proclamado em voz alta pela primeira
vez também.
Em novembro, fui chamada para ser madrinha de um casamento e percebi
estar apaixonada pela primeira vez na vida.
Em dezembro, levei um baque, vendo que não era retribuída e o quanto
meu pecado me iludiu com uma vida perfeita.
Em janeiro, surpreendendo a todos e até a mim mesma, fui para um
acampamento missionário de férias. Ali foi onde literalmente tudo virou de
ponta cabeça e ganhei também o sorteio com a bolsa para a Escola de
Missões de cinco meses.
Em fevereiro, fui para essa Escola. Chegando lá, as únicas pessoas que eu
conhecia eram Sarah e Igor.
De fevereiro a abril, tudo foi mexido dentro de mim, até coisas das quais
não queria me lembrar. Por meio daqueles 3 meses de aula teórica, vi o
quanto criei barreiras, a fim de me defender dos meus próprios pecados; fui
diversas vezes confrontada em relação à paternidade, identidade e meu
temor dos homens. Nesse tempo, também precisei lutar contra os resquícios
dos meus sentimentos por Gabriel, percebi ter colocado sobre ele a
responsabilidade de ter me tirado da minha bolha e jurava que, por causa
disso, nos casaríamos, mas, não, me autodefraudei continuamente.
Ali, eu também descobri que as minhas crises eram chamadas de “crises
de ansiedade”. Desde que contei para Sarah sobre elas, comecei a ser
acompanhada por uma psicóloga na base, a Julie, e foi um tempo muito bom
para me autoconhecer mais. Após isso, como viajaria, ela não poderia
continuar de perto comigo, contudo passou diversos exercícios e versículos
para meditar caso viesse a ter mais alguma crise.
Em maio, fomos enviados para os práticos, em que, junto a uma equipe,
iríamos por dois meses servir em igrejas, praticar aquilo que tanto
aprendemos na teoria. Eu fui direcionada para Porto das Rosas, na esperança
de que seriam apenas dois meses e, então, eu logo voltaria para o conforto do
meu lar.
Muitas vezes, tínhamos a ideia de que no prático apenas iríamos servir e
ajudar os outros, mas, pelo contrário, nossos processos de mudança interna
aumentavam progressivamente. Uma das minhas maiores lutas era a timidez,
obviamente três meses não resolveram tudo e, sendo missionária, precisava
interagir com os membros da igreja; era um sacrifício cada “oi” e conversa
mantida.
Para a minha surpresa, Sarah também ficou como minha discipuladora no
teórico. A presença dela foi muito importante, pois ela foi uma das
responsáveis por eu estar ali, além de ser a única pessoa em que confiei para
abrir meu coração.
Em uma das nossas conversas mais sinceras, eu pedi desculpas pelas
palavras que dirigi a ela naquele dia em janeiro, quando fiz acusações sem
fundamento nenhum. Foi difícil quebrar meu orgulho e me humilhar, mas foi
um momento muito importante para mim, o começo de uma mudança no
temperamento.
Ainda no mês de junho, recebi o direcionamento para permanecer em
Porto das Rosas. Lutei muito, mas, quando vi todas as portas se fecharem,
apenas aceitei a vontade de Deus. 
Desde então, passaram-se onze meses comigo trabalhando no país. Aqui
fiz uma Escola de três meses de estudo da Bíblia e alguns treinamentos
relacionados a discipulado. E vinha dedicando meu tempo à aplicação dessas
duas áreas na comunidade ao redor.
Em dezembro, vi neve pela primeira vez e passei meu Natal com a família
de Ashley em um chalé nas montanhas, foi incrível, apesar da saudade de
casa.
Agora estava aqui, seria uma das responsáveis por ajudar os missionários
brasileiros, ensinando o inglês e guiando-os em suas atividades no país.
Ainda não acreditava que o sonho da Marta de dois anos atrás estava se
realizando.
Era estranho também pensar em como não sentia mais aquela ansiedade
desesperada para casar. Em casa, minha única perspectiva de futuro era o
casamento, senão moraria o resto da vida com meus pais; já quando vim para
missões, vi que não, existiam muitos caminhos para mulheres solteiras e,
olhando de certo ponto, era até mais vantajoso estar solteira, podendo me
dedicar cem por cento ao ministério, sem marido e filhos para cuidar. Paulo,
em 1 Coríntios 7, resumiu bem isso, falando que o solteiro cuida das coisas
do Senhor, mas o casado precisa cuidar de sua família.
Comecei a ouvir uma movimentação e, quando olhei no relógio, percebi
que o tempo de meditação tinha acabado há dez minutos, estava atrasada
para a reunião. Hoje chegaria a equipe do Brasil e eles ficariam na base aqui,
na Vila das Tulipas.
Minha casa era praticamente geminada com o local, então não demorei
muito para entrar na sala de reuniões onde já estavam Ashley e Daniel
discutindo, como sempre.
Eu torcia para eles serem um casal, seria um belíssimo cão e gato, digno
de Elizabeth e Darcy. Ela tinha comentado que eles já tinham namorado há
muitos anos, mas, por motivos pessoais, terminaram e, desde então, viviam
em pé de guerra.
— Ninguém liga se você prefere azul, a cor da festa vai ser vermelho, por
causa da bandeira do… — Ela parou quando me viu abrindo a porta,
mudando sua expressão da água pro vinho. — Ah, oi, Marta, o Richard foi
buscar o pessoal, estávamos conversando sobre a decoração do desfile de
Porto, o que acha de vermelho e branco? 
— Não sei, vermelho e azul ficaria um charme — comentei, ganhando um
revirar de olhos dela e uma piscadela de agradecimento dele.
Ficamos revisando os detalhes do prático da equipe, onde ficariam
acomodados e os horários, confirmando cada informação para passar com
exatidão aos dois líderes.
Alguns minutos depois, começamos a ouvir a voz do pessoal chegando.
Nunca pensei o quanto ficaria feliz ao ouvir meu bom e velho português
sendo falado. 
Como a sala ficava no segundo andar, caminhamos até a sacada para
observá-los.
Todo o meu corpo congelou, com um arrepio descendo pela espinha,
quando avistei certos cabelos loiros e ouvi aquela voz tão conhecida por
mim.
Capítulo Vinte e Seis
“Por onde for, seja expressão do teu amor
Ao redor do mundo ou do outro lado dessa rua
Falarei do teu amor”
(Iphalpa - A Rua e o Mundo)

Gabriel estava ali.


Um lado meu queria sair correndo e abraçá-lo, por ser alguém familiar. O
outro queria apenas se trancar em casa para nunca mais encontrá-lo,
envergonhada por tudo o que aconteceu há quase dois anos.
— Marta, você tá bem? Ficou pálida de repente… — Ashley questionou.
Daniel já havia ido falar com o pessoal, só faltávamos nós duas.
— Estou, sim, só impressão sua. — Eu a tranquilizei. — Vamos? 
Enquanto descia as escadas, comecei a refletir sobre meus sentimentos,
pensando se existia algum resquício da minha paixão por ele, mas não
encontrei nada, nem mesmo um coração acelerado ou as borboletas no
estômago. No momento só existia a vergonha de uma mulher que percebeu o
quanto foi burra em suas próprias ações. Como o encararia depois de tudo
aquilo?
Quando os olhos de Daniel me encontraram, ele gesticulou para ir até ele.
O estadunidense conversava alegremente com o Mendes.
— Gabriel, essa é a Marta, a moça que comentei ser do Brasil, ela é a
responsável por ajudar vocês durante esses dois meses.
Os segundos pareceram horas quando Gabriel virou abruptamente para me
examinar, seu olhar estava visivelmente surpreso e eu só queria almoçar e
correr para o quarto, apesar de, sim, saber que isso não aconteceria.
— Oi, Marta! — ele cumprimentou em português, sem desviar seus olhos
dos meus.
— Oi, Gabriel! — respondi sem saber como reagir.
— Vocês já se conheciam? — Ashley chegou perto de nós com uma outra
moça até então desconhecida para mim, deveria ser a outra líder da equipe
deles.
— Sim, a Marta é da minha igreja, melhor amiga da minha irmã mais
nova — o Mendes explicou em um inglês fluente, levando a moça a olhar
surpresa para mim e fazendo eu me sentir uma criança com a segunda
colocação.
— Antes que você pergunte, eu não sabia que era a equipe dele. —
Erguendo as mãos como forma de rendição, me justifiquei antes de Ashley
questionar.
— Vamos almoçar? — Daniel falou, chamando a atenção do pequeno
grupo.
Enquanto caminhávamos, Gabriel veio até meu lado, provocando-me com
um tom baixo, que apenas eu escutei:
— Então, missionária agora, né? Daniel comentou sobre uma ótima líder
brasileira…
— Cala a boca! — Apesar da frase grossa, o sorriso em meus lábios não
escondeu que era apenas uma forma de provocá-lo também. 
Era estranho reencontrar alguém da minha “vida normal”, tanta coisa
mudou em um ano e meio, não sabia como agir.
Fomos até o refeitório, onde as cadeiras já estavam preparadas. A base não
era muito grande, então a pequena equipe gerou uma certa comoção, ainda
mais por serem estrangeiros.
Aproximando-me da mesa já com meu prato, Gabriel puxou a cadeira para
eu e outra moça perto dele nos sentarmos, constrangendo os outros homens
que já estavam acomodados.
Como alguns não sabiam inglês, parte da conversa foi em português.
Ashley e Daniel tinham ido almoçar com outro grupo, mas uma portuguesa e
outra brasileira se sentaram conosco alegando estar com saudade do seu
idioma.
— Declaro que o nosso português é o verdadeiro! — Elisa pontuou antes
mesmo de abrirem a boca.
— Tudo bem, pelo menos não somos nós os ladrões de ouro — Gabriel a
respondeu.
E ali iniciou-se uma bela discussão comparando ambos os países.
Obviamente Portugal estava em desvantagem, tendo apenas uma pessoa para
defendê-lo, e, bem, brasileiros amam uma discussão e uma oportunidade
para se acharem os sabichões.
A conversa seguiu com experiências de ambos os países e comparações
com a língua e a cultura.
Durante aquele tempo, pude me acostumar um pouco com a presença de
Gabriel e, quando conversamos mais tarde, durante o descanso pós-
refeições, não foi tão ruim assim, já conseguia manter um assunto e me
surpreendi em como rendeu.
— Gostei do novo corte — pontuou, assustando-me ao se sentar ao meu
lado. — Nunca tinha te imaginado com o cabelo tão curto, combinou com
você!
— Obrigada. Eu cortei quando Deus bateu o martelo para eu permanecer
aqui, eu precisava externalizar a mudança drástica que tinha acontecido
dentro de mim. 
Ele também estava diferente, tinha deixado a barba crescer, o que o
deixava com aparência de mais maduro. Mas, obviamente, não mencionei
isso a ele.
— Inclusive, me conta melhor essa história. Você tem noção do quanto
seus pais surtaram quando receberam aquela ligação com a carta?
Rindo, usei os próximos minutos para explicar a minha decisão e como
Deus falou comigo. Contei também um pouco sobre meus próximos passos
em missões, ou, ao menos, quais eram os meus planos, se iriam se
concretizar era outra história.
— Estou pensando em ficar em casa no próximo semestre — ele contou
em determinado ponto. — Tenho tido alguns direcionamentos sobre onde ir,
mas estou preocupado com Júlia.
Mordi o lábio sem saber o que falar. Deveria contar sobre os desabafos
dela? Deixava os dois se resolverem sozinhos? 
— Por quê? — questionei apenas, tentando entender a situação e até onde
poderia ir.
— Ela nunca escondeu o fato de não gostar de missões, nem o desgosto
por eu ter ido logo após a morte do nosso pai. Eu sei que esse é meu
chamado, mas estava conversando com o pastor João e ele falou sobre a
família ser meu ministério mais importante. Antes só tinha relacionado
família, inconscientemente, com esposa e filhos, mas o Espírito Santo
trabalhou em mim para perceber o quanto negligenciei o cuidado da minha
mãe e irmã, principalmente a Ju.
Estava pensando em falar mais alguma coisa, mas Daniel apareceu
avisando que precisava mostrar o quarto de Gabriel. Ele dormiria na casa do
estadunidense junto de outro rapaz, enquanto os alunos da equipe iriam se
alojar na base.
Me despedi do Mendes e fui para casa. Tentei ler um pouco, porém a
minha cabeça continuamente voltava ao assunto e à preocupação com a
minha melhor amiga.
Como ela agiria quando eu voltasse após tanto tempo em missões?

Capítulo Vinte e Sete


Para nós Ele é, da vida, o melhor
Nosso mover e existir, paraíso aqui
Só a Ele entregar o princípio e o fim
Do universo o Rei, do mundo a luz
(Projeto Sola – Da Vida, O Melhor)

Eu já tinha perdido a conta de quantos evangelismos tinha feito, mas


nunca esquecia a sensação deles. Um dos maiores problemas em ser
missionário é que, na cabeça das pessoas, somos super-heróis sem medo de
nada, então era um absurdo uma missionária com medo de evangelizar.
Mas, bem, essa era eu!
Após um momento de intercessão de horas, saímos andando pelos bairros
da Vila das Tulipas. 
Morando há um ano aqui, já tinha gravado o nome de quase todas as ruas.
Eu era simplesmente apaixonada pela forma como o país foi construído,
todas as vilas tinham nome de uma parte das flores e os bairros e ruas eram
também relacionados à natureza. Ouvi que muito dessa organização era
herança da rainha Grace, esposa do rei Martin, quando ajudaram a estruturar
as regiões mais pobres do reino.
— Chegamos — anunciei quando alcançamos a Praça dos Girassóis —,
agora é com vocês.
Uma das regras era formar duplas, uma mulher e um homem, igual
naquele primeiro evangelismo em Curitiba. Inicialmente eu iria com Daniel,
depois mudou para Júlio, um garoto da equipe, e, por último, fiquei quem eu
menos queria: Gabriel.
Não que eu tivesse algum problema com ele, mas era alguém conhecido
até demais, então eu teria dificuldade em ter iniciativa para falar, ainda mais
em outro idioma e tendo mudado tanto minha cosmovisão.
— Isso me lembra daquele evangelismo em 14 de outubro, sabe? 
Arqueei a sobrancelha, ou ao menos tentei, vendo o quanto ele era pontual
até com o dia exato, eu mal lembrava o mês.
— Uhum — murmurei sem vontade de conversar sobre o passado. 
Gabriel logo percebeu, pois mudou a postura e começou a andar comigo
procurando pessoas para conversarmos. Para minha sorte os primeiros foram
todos homens, então o meu papel era mais acompanhar e completar uma
coisa ou outra, pena que não foi tudo assim.
— Sua vez, vamos abordar aquela menina! — ele cochichou no meu
ouvido, apontando com a cabeça para uma garota sentada.
Enrolando alguns segundos, logo tomei coragem para me aproximar, o
Mendes veio junto para, caso eu esquecesse alguma coisa, ele tomar as
rédeas.
— Com licença, eu posso me sentar aqui?
A garota negra assentiu com a cabeça, dando um pequeno espaço no
banco. 
— Qual seu nome? — Gabriel questionou, também envolvendo-se na
conversa.
— Liv.
Ela devia ter no máximo uns quinze anos, chutando alto, dezesseis.
Ficamos alguns minutos conhecendo-a um pouco, descobri que era da região
dos Pomares, mas se mudou para Vila das Tulipas quando o pai conseguiu
uma transferência de emprego.
— Liv, eu posso te contar uma história? — questionei tirando uma folha
de sulfite da mochila. — Mas, primeiro, eu preciso de ajuda para decidir o
nome da nossa protagonista…
— Mia!
— Tudo bem, era uma vez uma linda menina chamada Mia, desde criança
ela sonhava em ser… O que você acha que ela queria ser?
— Empresária, meu sonho é fundar uma empresa e ser rica quando ficar
mais velha.
— Hum, Mia, desde quando era novinha, sonhava em ser empresária,
durante a infância ela inclusive teve diversos negócios, banquinha de
limonada, já vendeu seus brinquedos na garagem e até mesmo se oferecia
como massagista para os vizinhos.
Conforme ia falando, fui fazendo a primeira dobra no sulfite, formando
um triângulo, mas ela nem percebeu, até que eu mostrei a seta apontada para
cima e vi seus olhos começando a brilhar, percebendo a “magia” do negócio.
— Quando cresceu, Mia continuou estudando para realizar esse sonho.
Aos dezenove anos, ela criou a primeira empresa oficial e continuava
enriquecendo. Porém ela começou a perceber como isso não preenchia a sua
felicidade, havia um vazio dentro dela. — Então fui dobrando o triângulo
para formar uma casa. — Com o tempo, Mia se apaixonou por um rapaz da
empresa e logo eles se casaram, a expectativa dela era de que com isso
pudesse preencher esse vazio, afinal, os desenhos sempre contam sobre o
“felizes para sempre”.
Apesar de estar falando com fluência, comecei a ficar nervosa. Gabriel
percebeu e fez uma pressão com a mão nas minhas costas. Incrível como
aquele simples gesto me acalmou e incentivou a continuar. 
— Porém, ainda assim, Mia não estava completa, ela continuava com
aquele sentimento de vazio dentro dela. Então, imaginou que, se começasse
a viajar pelo mundo, poderia ser finalmente feliz, afinal, quem não teria a
alegria completa conhecendo vários países e sendo rica? 
Dobrando o papel mais uma vez, montei um avião e fiz como se ele
estivesse voando pelo ar. Era incrível como isso atraía a atenção da pessoa;
Liv mesmo não desviava o olhar, curiosa para saber como terminaria a
história.
— Mia procurou preencher seu vazio com o emprego, com a família e
com muita viagem e dinheiro, mas nada a fez feliz. — E, então, entramos na
parte mais legal, quando comecei a rasgar o papel. — Ela passou a tomar
medidas drásticas, a primeira foi começar a se cortar. — A montagem ficou
parecendo uma faca, fiz como se tivesse me cortando e reparei como Liv
puxou a manga da blusa, escondendo os pulsos. — Os amigos, então, a
chamaram para festas e lá ela começou a usar drogas, a beber e fumar. — Fiz
como se fosse um cigarro. — Nada disso a preenchia.
Mais uma vez fui abrindo e formei uma arma.
— Por fim, ela tentou até mesmo se matar, era a única solução para
preencher o vazio do seu coração, afinal, não existiria mais vazio após a
morte.
Uma lágrima escapou do olho de Liv, Gabriel imediatamente sentou do
seu outro lado, colocando a mão com respeito em seus ombros.
— Mas, quando Mia estava em seu pior momento, ela reencontrou uma
amiga de infância e essa amiga lhe contou sobre o amor que preenche todo o
vazio, que Jesus Cristo, o Filho de Deus, morreu em uma cruz por ela. Isso
não significava que seria um processo fácil, Mia vai precisar se arrepender
dos seus pecados e começar a ir atrás de uma nova vida, obedecendo aos
mandamentos dAquele que a criou. Ela aceitou o desafio e aquele vazio foi
preenchido, ela se sentiu completa pela primeira vez na vida, pois voltou
para a sua essência, voltou para perto do seu Pai. 
O final do origami, se posso assim chamar, era uma cruz. Coloquei o papel
na mão de Liv e ela o apertou com firmeza, mas sem o amassar. Ficamos
algum tempo em silêncio, até ela ter a iniciativa de falar algo.
— Eu sou a Mia, eu fiz exatamente igual a ela e há alguns minutos realizei
uma oração para que, se houvesse uma vida melhor, alguém viesse conversar
comigo.
Ajustei-me ao seu lado e a abracei. Fiz um sinal para Gabriel terminar
enquanto eu afagava os cabelos dela.
— Então sua oração foi respondida, mas o preço dela é alto. Vai doer
mudar de vida, porque você vai precisar retirar tudo que você tentou enfiar
naquele vazio.
Ele, então, fez uma ilustração que achei sensacional:
— Imagina um copo, qual é a função dele?
— Tomar água? — ela respondeu receosa.
— Exato, esse copo a partir de agora é seu coração. Agora, imagine que,
ao invés de tomar água, o dono dele encheu de carrinho de brinquedo,
aqueles pequenos. O copo está cumprindo a função original dele? — Liv
negou com a cabeça. — Mas ele está cumprindo uma função, certo?
— Sim?
— Agora, para cumprir essa função, o dono dele começou a colocar vários
e vários carrinhos, apertou o copo e as paredes dele. A função do copo não é
armazenar carrinhos, ele não tem espaço para isso, então o copo estava cheio
de coisas, parecia estar tendo um bom uso, mas estava longe do seu
propósito original. Você está conseguindo entender?
Ele esperou até ela assentir com a cabeça para continuar:
— O copo passou para um novo dono e este queria que o copo cumprisse
o seu propósito, porém, para isso, ele precisaria tirar todos os carrinhos de
dentro dele, e esse processo dói. Imagina os carrinhos raspando na parede do
copo, as rodas, os arranhões, não é fácil esvaziar aquilo que foi preenchido
de forma errada. Porém, quando retirou tudo, o Dono o preencheu com água,
esse líquido não feria as paredes do copo e preenchia cada espacinho que os
carrinhos, mesmo apertados, deixavam aberto. O copo voltou à sua essência,
ao propósito para o qual foi criado. 
A palavra estava sendo direcionada para a menina, mas eu tratei como se
fosse para mim também, pensando no meu propósito e em quantas vezes eu
tentava fugir dele.
— Assim é o nosso coração, nós o preenchemos com coisas erradas, mas
vai continuar o vazio, aquele espaço vago, e só continuaremos colocando
outras e outras coisas. Porém, quando entregamos nosso coração para Cristo,
Ele vai retirar tudo aquilo de ruim, mas vai doer muito, para só então poder
preencher com o amor que lança fora todo o medo.
Ficamos mais alguns minutos conversando com ela e, dessa vez, com foco
na vida espiritual. Liv cresceu em um lar cristão, mas, com a influência de
amizades, se desviou, e isso gerou diversas questões, chegando até mesmo a
tentativas de suicídio. Por um acaso, descobrimos que a avó dela morava no
mesmo bairro da base e da igreja onde eu servia.
— Se ela começar a frequentar realmente, vou acompanhá-la de perto —
comentei com Gabriel após passar o endereço para a garota.
Dessa vez, foi a hora de Gabriel se surpreender. Escondi o sorriso, vendo a
sua felicidade com o quanto Deus me transformou nesse tempo.
— Marta, já te disseram que você é uma boa contadora de histórias? —
ele falou quando sentamos para comer uma casquinha.
— Como?
— A forma como você contou a história, sua desenvoltura em ir criando
conforme as respostas dela, o tom e os gestos, você tem muito talento para
essa área, eu percebo isso desde a época do poema. Não sei, talvez deveria
investir na escrita e contação de história.
Não consegui responder nada. Isso já vinha sendo uma oração minha há
algum tempo, desde que, no acampamento de verão, comecei a rabiscar a
história de um livro, na qual vinha mexendo aos poucos. Porém não tinha
comentado com ninguém sobre isso, nem mesmo com a minha
discipuladora. Então foi um choque ouvir essa ideia de outra pessoa.
Mal sabia eu como aquele dia seria um dos primeiros na confirmação do
meu chamado.
Capítulo Vinte e Oito
Era você, a menina dos meus sonhos que eu me apaixonei
A menina que as flores e o cartão eu mandei
Pra anunciar que era amada mesmo sem saber
Admirada muito antes de te conhecer
Me perdoe esse tempo todo sem falar
Bem antes de te conhecer você vivia a vagar
Nos meus porões, nos pensamentos meus
Até que um dia dentro do ônibus aconteceu
As nossas vidas se encontraram
Obrigado, meu Deus
(Willian Nascimento – Era Você)

Presenciar o Gabriel amigo era bem diferente do Gabriel líder, e eu


aprendi a admirar muito essa segunda personalidade dele durante esses
meses.
Estava de longe observando-o dar ordens para a equipe. Em poucos
minutos, começariam as comemorações do aniversário de Porto das Rosas e
aqui, se tem uma coisa de que os porto-rosenses se orgulham, é de seu
nacionalismo.
Arrumando a tiara de flores no cabelo, abri um sorriso quando o Mendes
se aproximou com um suco de abacaxi com hortelã que ele arranjou na
barraquinha de comidas brasileiras.
O rapaz havia comprado a ideia da festa, com camiseta, bermuda e chinelo
floridos, cumprindo o protocolo da tradição. Enquanto eu usava o vestido
roxo cintilante e o acessório no cabelo. 
— Se não me engano, você comentou uma vez que esse era seu suco
favorito, espero não ter errado ou que a milady não tenha mudado o seu
paladar!
— Está certíssimo, senhor, mas quando comentei isso? — questionei após
agradecer pelo copo.
— Aí você já está querendo demais da minha memória, Little Marta!
Contente-se com a informação.
Gabriel sempre dava um jeito de me provocar; aqui, ao invés de usar o
“Martinha”, ele aderiu ao “Little Marta”, mesmo quando conversávamos em
português. Era engraçado que, vindo dele, o apelido não ficava tão péssimo
quanto quando meus tios falavam.
— Você conhece a origem do país? — ele voltou a falar após alguns
segundos.
E, mesmo sem permissão, o rapaz embarcou em seu lado historiador,
narrando sobre o rei Abraham, como o nome do país surgiu devido aos
jardins avistados logo quando ele se aproximava da ilha.
— Acho que a minha parte favorita da história é como a rainha Grace se
arriscou para salvar os refugiados cristãos — comentei, lembrando o quanto
aquilo me impactou quando ouvi pela primeira vez.
— Sim, eu amo como isso influenciou a concluírem a tradução da Bíblia
para o porto-rosense.
Entramos em um animado debate sobre a origem de Porto das Rosas e
como o cristianismo influenciou na prosperidade do país.
— Eu amo estudar a transformação da cidade de Genebra quando… Com
licença.
Em instantes Gabriel foi correndo ajudar uma das moças da vila, ela
carregava um cesto de flores grande demais para o seu porte físico.
Mais uma coisa que me puxou para a realidade foi perceber como ele
simplesmente era cavalheiro com todo mundo. Por longos meses, me iludi,
achando ser especial, mas tal atitude apenas fazia parte do Mendes.
Esse tempo todo convivendo juntos me fez refletir sobre como estava meu
coração e indagar o meu maior medo: será que ainda estava apaixonada por
ele?
Pelo menos naquele momento, a resposta era não. Eu o admirava, era
impossível não se cativar com o caráter do rapaz, e não era apenas eu, todo
mundo que convivia com ele tinha o mesmo sentimento. A diferença era que
eu me deixei levar, achava que, apenas por ele ser exatamente como sempre
sonhei, tinha o “direito” de casar com ele.
— Uau, está digna de uma festa dos Jardins! — Ashley gritou,
aproximando-se.
— Eu me esforcei um pouco — brinquei. Passei as últimas semanas eu
mesma costurando o vestido, eu amava essas festas típicas daqui. — Você
também caprichou no visual, hein.
Durante os últimos dias, a garota tinha tido crise, pois todas as roupas que
achávamos ou ficavam muito apertadas ou muito decotadas para o seu corpo
e, até poucas horas atrás, ela tinha decidido simplesmente usar um jeans e
uma blusa florida.
— Daniel descobriu uma loja plus-size enquanto voltava do Condado das
Flores e comprou para mim — explicou quando questionei como ela tinha
conseguido o vestido em tão pouco tempo.
— Já decidiu qual vai ser sua resposta?
Há alguns dias, o rapaz tinha se declarado para ela, contudo ela ainda
estava indecisa. Eles tinham namorado na adolescência, quando nenhum dos
dois era cristão, e, por mil e um motivos, terminaram, mas todo mundo
percebia que ainda havia sentimentos ali. 
Então não foi nenhuma surpresa quando cheguei em casa semana passada
e a encontrei simplesmente em prantos porque ele a tinha pedido em
casamento.
— É complicado, eu tenho medo de quebrar o coração de novo.
— Você sabe que ele mudou, não sabe? 
Ficamos longos minutos conversando sobre essa questão do coração,
sobre perdão e as transformações feitas por Cristo, inclusive nela própria.
— Estou orando — sussurrou pouco antes de o próprio Daniel se
aproximar com Gabriel.
No mesmo momento, ligaram o carro de som com as músicas mais
pedidas das rádios do momento.
— Bora lá, vamos fingir ser patriotas porto-rosenses hoje, qual o lugar
favorito da ilha para vocês? — o estadunidense gritou, tentando fazer sua
voz sobressair a de Amy Grant.
Vendo ser impossível conversarmos ali, nos afastamos, sentando embaixo
da estátua da princesa Lieve, sobrinha do rei Martin, que foi a responsável
por escrever e catalogar toda a história de Porto.
— Eu amo a Praia das Rosas — Gabriel começou respondendo —, foi o
primeiro ponto turístico que visitei quando vim aqui pela primeira vez com
meu pai.
— Lá é simplesmente incrível, mas para mim a praia mais bonita é a de
Gardênia, no interior do Condado das Ervas.
— Okay, as praias podem ter seu charme, mas a visão das montanhas é de
tirar o fôlego, ainda mais no inverno. E você, Marta, praia ou montanhas?
Dei risada da pergunta de Daniel, a resposta era óbvia.
— Como não conheço nenhuma praia, só me restam os chalés na
montanha. Passei o último Natal lá com a família de Ashley.
Então os três rostos se viraram chocados para mim, como se tivesse
confessado um pecado..
— Marta, meu anjo, você mora em uma ilha e nunca viu a praia? —
Ashley era a mais revoltada do grupo. — Eu não estou acreditando nesse ato
de crime e difamação contra Porto das Rosas, somos conhecidos pelas
nossas praias!
— Só nunca tive a oportunidade — tentei me defender —, meu voo foi
direto para a Vila das Tulipas, não teve escala na capital.
— Bom, precisamos resolver isso, se não for aqui em Porto, que seja no
Brasil, afinal, Curitiba está a menos de duas horas da praia de Caiobá! —
Gabriel falou determinado, dando uma piscadinha logo em seguida.

Aos poucos, as minhas lágrimas começaram a se misturar com as gotas


geladas da água.
Aquele não era um dos dias mais quentes do ano, contudo eu precisava
sentir o gelo na minha pele, eu necessitava do choque.
Nunca achei que ficar longe da minha família doeria tanto, mas doía. A
falta deles era algo cortante, doía na alma.
— Pai, me ajuda!
Puxei o ar com toda a força do mundo, tentando controlar as lágrimas,
ninguém merecia descer e me encontrarem com o rosto inchado.
No dia seguinte, eu comemoraria meu aniversário de 22 anos, o segundo
longe da minha família. 
E esse fato era aterrorizante.
A saudade de cada um apertava forte e eu não tinha certeza se conseguiria
ir vê-los este ano. Um imprevisto me obrigou a gastar uma parte do dinheiro
da passagem, deixando-me novamente naquele branco.
Naqueles momentos, só me restava confiar e me segurar em Deus, porque
Ele não me deixaria só.
Não sei quanto tempo demorei no banho, e não me importei também, eu
merecia esse “presente” para mim mesma. 
Após colocar um vestido florido, apertei com força a toalha no cabelo,
tentando enxugá-lo o mais rápido possível. Procurava ignorar o desespero
dentro de mim.
— Vai ficar tudo bem.
Tentei me convencer.
Quando sentei à mesa para escrever uma carta aos meus pais, refleti sobre
como deve ter sido para Cristo ter ficado longe de casa. Tudo bem, Deus
nunca o abandonou, mas será que a sensação era a mesma?
Acabei rindo sozinha, chegando à conclusão de que realmente Ele
conheceu todas as nossas lutas e, mesmo assim, nunca pecou.
Com isso em pensamento, dediquei os próximos trinta minutos
exclusivamente à minha família. Narrei como estava sendo o último mês
aqui, as experiências e como estava amando esse tempo. Preferi não abordar
sobre o quanto era difícil estar longe deles, então apenas disse como sentia
muita saudade e estava orando pela possibilidade de ir no próximo mês.
— Eu não acredito que você escreveu isso, Ashley! — A voz de Daniel se
sobressaiu na sala.
A equipe do Brasil iria embora em duas semanas e, como uma pré-
despedida, todos vieram para a minha casa assistir a um filme com pipoca.
Mas Daniel e Gabriel, os dois mosqueteiros, obviamente quiseram vir antes
para encher o saco.
Mal tinha aberto a porta quando ouvi aquela frase que congelou até o mais
profundo do meu ser:
— Querido futuro marido, como você está? — o estadunidense começou a
fazer graça, debochando.
— Mas não fui eu que escrevi isso.
Se antes meu corpo estava frio, ele se esquentou por completo em uma
mistura de vergonha e raiva. Pela tarde eu estava sozinha em casa e
aproveitei para escrever um pouco, mas, pelo jeito, infelizmente esqueci que
não morava sozinha.
Quando vim para Porto das Rosas, comecei a escrever meus pensamentos
na língua local, como forma de imergir na cultura. Ao que tudo indica, não
foi uma ideia tão boa assim.
— Você não deveria invadir a privacidade dos outros, Daniel Wilson! —
Sem pensar nas consequências, apenas puxei o papel da mão dele.
Todos estavam chocados, mas Gabriel, que encarava a estante, virou,
derrubando o livro em suas mãos. Eu me forcei a não olhá-lo, não queria ver
a porcaria do riso zombeteiro em seu rosto como sempre.
— Ma-Marta, desculpa, eu não sabia que era seu.
— E, mesmo que não fosse, você não deveria abrir as coisas assim, isso se
chama falta de educação.
Ignorei Daniel me chamando e bati a porta do quarto com força.
Como os encararia depois daquilo?
Tanto pelo meu “show” quanto pela própria escrita no papel, não fazia
ideia de até onde ele poderia ter lido, só esperava não ter ido até o final.
Colocando a carta na pasta em que as guardava provisoriamente, sentei na
cama, fazendo exercícios de respiração para me acalmar.
Quando outras vozes começaram a se misturar, me forcei a ir para a sala,
pelo menos com outras pessoas não ficaria o climão, eu assim esperava.
Graças a Deus, ninguém mais tocou no assunto, assistimos ao filme com a
animação típica dos brasileiros e, de bônus, a gente ficou provocando Ashley
e Daniel ao termos diálogos em português.
Minha vontade era que minha comemoração fosse uma coisa mais caseira,
mas ninguém me deixou passar meu aniversário em uma casa fria e solitária.
Então decidiram auto-organizar uma festa sem minha permissão.
Mesmo sendo meu aniversário, eu não era o centro. Encostada na parede,
permaneci ali para ninguém me achar.
Estava com o pensamento tão longe que me surpreendi quando Gabriel
parou ao meu lado, dando-me um susto. Desde a situação da carta, ele ficou
em silêncio, praticamente me ignorando — não que eu tivesse tentado algum
diálogo também. 
— E-eu não sabia que você estava com alguém — o rapaz soltou após
alguns segundos.
Afastei o refrigerante da boca para não me engasgar, tamanha foi minha
surpresa. Olhei-o sem entender, de onde ele tinha tirado aquilo?
— Como assim, Gabriel?
— A carta. Convivemos praticamente todo dia nesses dois meses e não vi
você conversando com nenhum homem para já estar comprometida dessa
forma, minha maior teoria seria o Daniel, mas ele claramente gosta da
Ashley.
— Não! — praticamente gritei.
Vendo ter chamado atenção de algumas pessoas em volta, tampei a boca,
assustada. Tudo que eu não queria era que outros tivessem conhecimento
daquele diálogo.
Respirei fundo algumas vezes, tomei refri, respirei mais fundo e ainda
gaguejei na hora de explicar que não, eu ainda não conhecia o tal dono das
cartas, era só uma forma de orar por ele.
— Ah, desculpa, eu… — Segurei o riso ao ver Gabriel constrangido, ao
menos alguma vez na vida consegui deixá-lo vermelho de vergonha. —
Bom, nesse caso, posso dar esse presente sem causar ciúmes em ninguém.
Eu odiava aquela sensação de borboletas no estômago; não, não queria
repetir minha queda novamente. Ignorei qualquer teoria da conspiração
criada pela minha cabeça com o alívio no rosto de Gabriel após a notícia de
que eu não estava comprometida.
Era só preocupação com a melhor amiga da irmãzinha dele, ele já tinha
deixado bem claro como me via.
— Ai, meu Deus! 
Foi impossível esconder o choque e, se eu não tivesse segurado firme,
com certeza teria deixado cair o livro no chão.
Em minhas mãos, estava simplesmente um exemplar de “Coração em
Chamas”, sendo que ele nem havia sido lançado oficialmente.
— Abre, tem uma surpresa dentro.
Nessa hora, precisei me encostar na parede, a própria Rainha Isabella
Lewis Halley havia deixado uma dedicatória no livro.
— Gabriel Mendes Neto, como você conseguiu isso? 
— Como você sabe meu último nome? — ele se exasperou, ignorando
minha pergunta.
— Júlia me contou, agora me explica essa situação, você não roubou isso,
não, né?
— Pelo amor de Deus, não! Digamos que eu conheça a Isabella de antes
de ela se tornar rainha, a irmã dela já participou de uma viagem missionária
comigo. Então, mexi um pauzinho aqui e ali, e feliz aniversário!
Eu ainda estava desacreditada com aquele presente, definitivamente
Gabriel não tinha juízo nenhum na cabeça.
— Muito obrigada, sério.
Ignorando as convenções sociais dos porto-rosenses, abri uma exceção,
dando um abraço de lado no rapaz, ele precisava entender o quanto amei o
presente.
— Pera, pera, tá tudo bem? Marta Almeida me dando um abraço por livre
e espontânea vontade? O que eu perdi desses quase dois anos da sua vida?
Revirei os olhos, ignorando as suas brincadeiras, mas percebi que ele
também estava feliz. 
Guardei o presente no pacote, indo colocá-lo no cantinho da mesa, não
precisava de mais ninguém questionando como ele havia conseguido aquilo.
De noite, eu me gabaria com exclusividade para Ashley.
Capítulo Vinte e Nove
“Me sinto tão amada isso faz bem
Ao coração da gente quando tem
Alguém pra dividir um grande amor
Como a brisa da manhã assim você chegou
Uma ótica perfeita de amor
Uma ponte sobre um rio de dor
Na minha vida um sonho lindo se realizou
Um presente enviado pelo meu Senhor”
(Bruna Karla - Que Bom que Você Chegou)

De muitas coisas que aprendi nesse tempo em missões, uma é um fato


absoluto: Deus gosta de nos surpreender, e quando menos esperamos.
A primeira vez que viajei de avião foi para ir até Porto das Rosas ano
passado e, agora, eu retornava ao Brasil da mesma forma.
No dia do meu aniversário, Amanda havia me procurado para conversar.
Ela soube sobre meu plano de ir para casa e o dela era continuar em Porto
das Rosas, Deus a havia chamado para atuar no Condado das Sementes, uma
das regiões mais pobres do país.
— Com isso eu quero te passar a minha passagem, não está com a volta
inclusa, mas sei que já é uma ajuda grande nos custos.
E, pelas próximas três semanas, passei marcando um X no calendário com
os dias que faltavam para retornar para casa.
Como eu voltei com a equipe, precisava me adequar ao cronograma deles.
Por isso, passei uma semana em São Paulo antes de embarcar com Gabriel
no ônibus para Curitiba.
— Como é estar de volta ao Brasil após tanto tempo? — Ele havia sentado
ao meu lado, deixando-me ficar na janela.
— Estranho, nostálgico, bom, diferente. É um misto de sentimentos. —
Não tinha como explicar o que se passava dentro de mim quando nem
mesmo eu entendia.
Ao mesmo tempo em que aquela saudade estava sendo saciada, eu parecia
uma estrangeira no lugar, principalmente por ter perdido o costume de falar
português o tempo todo.
— Vão te chamar de nojenta, você sabe, né? Olha ela, Little Marta,
esquecendo uma palavra na língua mãe, ui, ui!
Definitivamente se eu desse corda, riria durante toda aquela viagem com
as palhaçadas de Gabriel.
— Sabe o que eu achei engraçado, Mendes?
— Hum, Almeida? — debochou.
Outro costume de Porto das Rosas era chamar as pessoas pelo sobrenome,
mas obviamente não era nem um pouco usual por aqui e eu sabia que daria
muita bola fora.
— Você, como líder, não é todo engraçadinho assim, pelo contrário, eu
nem reconhecia ser o mesmo rapaz de Curitiba. Acho que o clima brasileiro
te influenciou a voltar com tudo nas piadas.
— Hahaha, esse é um lado exclusivo para quem tem intimidade comigo.
Passamos as próximas horas conversando e rindo. A Marta de anos atrás
nunca imaginaria que isso poderia acontecer sem eu criar mil e uma ilusões,
contudo estava gostando de viver aquela amizade, se é que podia chamar
daquela forma.
Ninguém no Brasil sabia do meu retorno, tinha decidido fazer uma
surpresa para todos. A data também conciliou com Nina e David tirando um
tempo sabático em Curitiba.
Mas, como sabiam que Gabriel voltaria, estavam praticamente todos em
sua casa para uma festa de boas-vindas ao melhor missionário do mundo,
segundo ele.
— Você tem certeza de que minha família vai estar lá? — questionei,
aflita. Tinha medo de eles não estarem e ficarem chateados por não os ter ido
ver primeiro.
— Absoluta, eu te disse, consegui me aproximar deles nesse tempo,
principalmente do seu pai.
Sim, ainda no primeiro dia em Porto, eu o obriguei a contar todas as
novidades. Ele falou que meu pai estava mais próximo e até indo ao culto de
homens na igreja.
Mas eu ainda não acreditava muito naquilo.
Confiando na palavra de Gabriel, fiquei escondida atrás da porta enquanto
ele entrava para cumprimentar a todos, causando uma enorme euforia de
abraços.
— Gabriel, o que é aquela mala rosa? — Nina questionou, apontando para
a porta.
O ato tinha sido proposital, já que ele nunca usaria algo tão “menininha”.
Aproveitando o gancho, dei um passo para dentro, revelando-me a todos.
— Mentira!
Senti falta dos gritos de Júlia, não tive nem tempo para pensar antes de a
loira se jogar nos meus braços. 
Mas o abraço que eu mais estava ansiosa para sentir era o dos meus pais e
do meu irmão. Foi apenas quando os “perdi” que passei a valorizar os laços
familiares, a amar até os momentos de estresse
— Eu estava com tanta saudade de vocês! — sussurrei enquanto os dois
me apertavam.
— Nós também, meu amor.
— Nem acredito que minha princesinha está aqui. Vamos precisar
conversar, porque até hoje não engoli essa história de te esperar voltar em
cinco meses e a bonita enviar uma carta com um telefonema avisando que
ficaria fora por anos.
Dei risada enquanto secava as lágrimas, minha maquiagem havia ido por
água abaixo, literalmente.
Em segundos Júlia tinha pegado uma caneta, escrevendo meu nome ao
lado do de Gabriel no cartaz de “bem-vindo de volta”.
Ter vivido um ano e meio em outro país transformou totalmente a minha
forma de agir. Antes, eu já não era uma das pessoas mais sociáveis, contudo
agora me sentia deslocada de uma forma sem igual.
— Sei que está uma confusão de sensações aí dentro, fora o fuso horário
que já nos deixa desnorteadas, logo você se acostuma — Sarah comentou,
sentando ao meu lado.
— É diferente, não me sinto mais incluída nisso tudo.
Outra pessoa de quem eu tinha sentido muita saudade era dela, de poder
conversar e me abrir. Nos dias mais tensos, eu usava o telefone fixo da sala
para ligar, mas ainda era bem diferente do olho a olho, e bem mais caro
também, levando em conta até mesmo a distância dos países.
— Você mudou muito, mas o pessoal daqui não, eles continuam vivendo
as mesmas vidas. Esteja preparada para entendê-los.
E os próximos dias provaram o quanto ouvir isso foi necessário.
Sentada ao lado de Júlia e Mari no culto, era assustador perceber que tudo
estava exatamente igual, sem tirar nem pôr. E isso não se limitou apenas aos
eventos, até mesmo as pessoas seguiam em suas vidas normais.
Contudo isso não me impediu de perceber o quanto Deus continuava
fazendo a sua obra.
Esperei uma Júlia nervosa com minha decisão de voltar de forma tão
súbita, não tive nem coragem de ligar para ela, apenas escrevi uma carta
contando sobre meus sentimentos e minha escolha. Por isso, quando voltei,
esperava que ela gritasse comigo, mas recebi alguém de braços abertos e
incentivando-me a permanecer.
Passamos as semanas seguintes conversando sobre diversos assuntos, ela
se dividia entre a culpa pelo irmão abandonar as missões e a alegria por tê-lo
em casa.
— Eu sei que o Biel vai voltar no próximo semestre, mas ter meu irmão ao
meu lado pelo menos por seis meses vai ser bom para aprender a conciliar
meus sentimentos, Deus tem falado comigo sobre o chamado dele —
confessou quando dormi na sua casa um dia desses —, este ano foi intenso
para mim também, e não ter nem você nem ele por perto me deixou com
muito, muito mesmo, tempo livre para orar.
Estava feliz por ela, era bom ver que Deus continuava trabalhando na vida
das pessoas, mesmo eu não fazendo parte desse processo tão importante.

— Um, dois, um, dois, baixo, em cima!


— Pare, vem aqui e volte pra calçada, pare, vem aqui e volte pra calçada!
Eu amava teatro infantil, esse em específico, então, era um dos meus
favoritos. Mesmo conhecendo toda a engenhoca do abrir e fechar dos braços,
não conseguia segurar a risada com os olhares deles achando que iam se
bater a qualquer hora.
Fui convidada a passar uma semana na base de Curitiba auxiliando na
montagem da próxima equipe de prático. Havia me hospedado na casa de
Sarah durante esse tempo, já que meus pais moravam do outro lado da
cidade.
— Tudo — começaram a gritar um por um.
— Que.
— Fizer.
— Faça.
— Para.
— A glória.
— De Deus! — gritaram todos juntos.
Mal terminaram as palmas e a equipe já tinha se deitado exausta no chão
gelado, cada um com a sua garrafa de água.
— Eu amo o “Profissões”, mas fico morta toda vez — Cecília, uma das
meninas que conheci aqui, murmurou ao se jogar ao meu lado.
Bem, não a julgava, na verdade entendia totalmente. No tanto de baixa e
sobe, pelos meus cálculos era uns dezesseis agachamentos, fora ter que ficar
gritando o tempo todo. Porém a alegria das crianças e adultos, diga-se de
passagem, fazia valer a pena qualquer dor.
Daqui a duas semanas, faríamos um impacto em um dos parques de
Curitiba, então as equipes estavam ensaiando, tanto os teatros infantis —
como “Profissões” e “Ladrão da Alegria” —, quanto os de pantomima, meus
favoritos para assistir.
Júlio, o líder da base, deu um grito mandando todo mundo ir tomar um
banho e descansar, as atividades estavam encerradas por hoje.
Além da parte de evangelismo com a comunidade, estávamos na euforia,
organizando para estrear as Escolas Introdutórias de Missões no próximo
semestre.
Mal entrei na casa de Sarah e já fui sendo recepcionada pelo choro de
Nicolle. A menina de poucos meses se esgoelava e não deixava a coitada da
mãe nem tomar o café da tarde direito.
Sem titubear, peguei o pacotinho roxo com babados no colo.
— Hein, bebê, o que foi? 
Enquanto a balançava de um lado para o outro, ia conversando com ela.
Em minutos o barulho foi diminuindo e ganhei até mesmo uma risada de
recompensa. 
— Obrigada — Sarah disse ao sair do quarto com os cabelos molhados
após um bom banho —, Igor precisou ir para uma reunião de urgência e não
tive tempo de me programar. Quer me passá-la?
Neguei com a cabeça. Nunca tinha convivido muito com crianças, até
chegar em missões e sempre estar com alguma por perto, seja nos
evangelismos ou os próprios filhos de missionários, e simplesmente me
apaixonei por essas coisinhas pequenas.
Sem querer, isso acendia minha vontade de formar a minha família, ficava
imaginando para quem meus filhos puxariam, como seria a mistura. Mas
logo já desanimava, pensando que não casaria tão cedo. 
Graças a Deus, com a minha rotina cheia, mal sobrava tempo para pensar
nisso e eu também via cada vez mais oportunidades como missionária
solteira em campo.
— Você seria uma ótima mãe — minha discipuladora soltou, como se
estivesse lendo meus pensamentos.
Comprimi os lábios, ignorando a pressão crescente dentro de mim.
— Sarah…
— Marta, você sabe que sonhar em se casar não é pecado, não sabe? Nem
orar pela sua futura família, seu futuro marido.
— Eu sei, mas tenho medo de deixar isso novamente se tornar um ídolo
no meu coração.
— Será que algum dia deixou de ser?
Olhei-a assustada, levando-a a dar risada. Aproveitando que Nicolle
dormiu, ela pegou a pequenina e a levou para o berço no quarto, dando-nos
mais intimidade para conversar.
— É uma linha muito tênue entre o desejo saudável pelo casamento e a
idolatria, ainda quero estudar mais sobre o assunto, porém percebo que o
desejo se transformou em ídolo quando bate o desespero ao pensar que
nunca nos casaremos, eu era assim há alguns anos. Cristo precisa ser total e
inteiramente meu único alvo, se eu preciso de mais alguma coisa para me
preencher, significa que Ele não está mais no trono do meu coração.
Encostei no ombro dela, refletindo, mas sem formar ou expressar uma
opinião sobre o que ela disse por alguns minutos.
— Eu não sei, tenho evitado pensar no assunto, tenho medo de deixar me
envolver muito novamente. Hoje eu acho que não, no dia a dia tenho visto
mais possibilidades como solteira, porém ainda existe aquele desejo de
formar uma família, ser como meus pais e avós, criar meus filhos, isso é
idolatria?
— Não, mas não deixe isso te consumir ao ponto de, em tudo, você
depender do seu, talvez, futuro marido, ele deve ser o cabeça do lar, mas não
o centro do seu coração. Garanto, se você amar a Deus cada vez mais, só
assim vai poder amar ao rapaz em sua totalidade.
Horas depois, sentada na mesa do meu quarto, resolvi quebrar mais um
padrão na minha rotina. Retirando uma folha cheia de frufru, peguei a caneta
para escrever uma carta ao meu futuro marido.
Querido talvez futuro marido, 
Faz um tempo que não apareço, não é? Você até deve ter
estranhado a quebra na rotina mensal de anos. Mas para mim
foi bom, me ajudou a tirar o casamento do centro do meu
coração.
Não tenho muita coisa para falar, na verdade meu recado é bem
curto, mas minha oração do dia é para que você ame a Deus
mais do que a mim, deseje a Ele mais do que a mim, meu maior
medo é ser seu objeto de idolatria, igual você já foi para mim
um dia.
Não sei quando vamos nos encontrar, oro para que isso
aconteça no momento certo, quando ambos já estivermos
totalmente satisfeitos nEle.
Enfim, preciso ir dormir, porque amanhã acordo cedo, até
algum dia por aí.
Com amor,
Marta.
Capítulo Trinta
“Te amo
Não posso esconder algo verdadeiro
Que veio de deus
Podemos escrever uma nova história (nova história)
Então vamos viver Deus, você e eu...
Juntos por este caminho
Deus, você e eu…”
(Saulo Vianna - Deus, Você e Eu)

Oevangelismo no parque estava sendo um sucesso. Naquele dia, fazia


praticamente dois anos desde que tudo começou a se revirar na minha vida.
Vestida de palhacinha, eu estava sentada no gramado brincando de adoleta
com uma das crianças. Com seus cachos ruivos, Rosaline grudou em mim
desde que começamos, seus pais estavam por perto e eu percebia como seus
olhos não escapavam da filha de apenas cinco anos.
— Tia, você vai fazê teatlo também? — ela perguntou quando as meninas
começaram a formar o círculo para a apresentação de “O Ladrão da
Alegria”.
— Não, esse vai ser outras tias e tios que vão apresentar, vamos lá assistir?
Balançando freneticamente a cabeça, ela me deu a mãozinha gorducha e
caminhamos até o grupinho. Quando ia me sentar no chão, levei um susto ao
sentir uma mão me tocando nas costas.
— Marta, nós podemos conversar?
Pela forma como Gabriel não me encarava, algo não estava certo.
Indicando para os pais da pequena ficarem de olho nela, acompanhei o rapaz
ainda sem entender nada que estava acontecendo.
A sensação de ansiedade aos poucos foi começando a dar seus indícios.
Seguindo as instruções de Julie, fazia a contagem da respiração
massageando minha palma, um tique para me acalmar.
— Você já ouviu sobre a história do parque? — ele questionou, fazendo-
me ficar ainda mais perdida com a situação, mas pelo menos foi bom para
distrair a cabeça.
Neguei e ele, então, começou a contar sobre quando o prefeito Jaime
Lerner decidiu transformar a antiga sesmaria — parecida com uma fazenda,
de acordo com ele — em parque com o objetivo de conter as enchentes.
Eu sinceramente não estava nem um pouco a fim de ouvir aquilo, mas
Gabriel ficava tão animado quando falava das coisas que conhecia — ele
ficava gesticulando e virava sorrindo toda hora, perguntando se eu entendia
— que não tive coragem de interrompê-lo.
Foi bom, porque pude me esquecer da sensação de enjoo causada pelo
nervosismo. Ele nos guiou até um banco após a ponte de madeira, onde não
tinha multidão e eu tinha uma visão completa do parque.
— Uau! — exclamei ao me deparar com a vista.
Eu apoiei meus braços no joelho para poder admirar melhor. Na frente
tinha um lago, não muito grande de largura, mas o comprimento eu perdia de
vista, pois mais adiante uma vegetação o cobria e eu não sabia dizer se ele
continuava depois ou não.
E, além disso, havia alguns animais na água, como patos, e, na grama ao
redor, diversas capivaras movimentando-se. De longe, dava para ver o
pessoal da base apresentando, mas a voz deles já não era tão audível.
Gabriel estava apoiado igual a mim e sorria vendo a minha reação. Ele,
então, virou-se de repente para frente antes de falar:
— Marta, e-eu gostaria de conversar com você.
Tirei meus olhos do lago e os voltei para ele. O Mendes estava inquieto,
ele passava a mão pela nuca constantemente. Eu achei graça em vê-lo assim,
já que, na maior parte do tempo, ele era descontraído e confiante em si.
Mas, quando ele pegou nas minhas mãos, percebi como ele tremia, e não
era o único. Eu estava um pouco, muito, assustada com a seriedade dele e a
forma como eu era olhada.
— Primeiro, eu quero te pedir perdão.
Eu abri a boca para questionar o motivo, quando ele me calou com um
gesto. Unindo os lábios, voltei a prestar atenção nele, tentando combater
minha guerra sentimental interna ao mesmo tempo.
— Sinceramente, não sei como começar a explicar, estou totalmente
perdido, mas espero que entenda minhas palavras.
Encostei-me no banco, na dúvida se mantinha meu olhar nele ou se
desviava totalmente.
— Ano retrasado, eu me envolvi sentimentalmente com você, não sei
explicar como começou, mas chegou em um ponto em que percebi ter
avançado seriamente o sinal e que pequei contra você, pois acabava
demonstrando meus sentimentos, como no casamento do Dave, mas não
assumi nem ao menos o compromisso de namoro. Pensei muitas vezes se te
chamava para pedir perdão, mas sabia que isso seria uma forma de te
defraudar também, pois geraria algo que não eu poderia suprir naquele
momento.
Minha respiração estava falha e eu tentava a todo custo entender a
mensagem de Gabriel nas entrelinhas, mas meu cérebro não queria acreditar.
Não era tudo uma invenção minha?
— Durante esses anos, eu orei continuamente por você, para não ter feito
um estrago no seu coração, muitas vezes até pedia para ter sido tudo apenas
da minha cabeça e para que você não tivesse se envolvido em nenhum
momento, estava disposto a seguir com a minha vida caso, no final dos cinco
meses, que se transformaram em quase dois anos. — Ele balançou a cabeça,
rindo. — Se eu percebesse que você estava se relacionando com outra
pessoa, mas, me perdoe o egoísmo, eu orava para que Deus guardasse seu
coração para mim. Também foi um tempo de muita reflexão com as minhas
atitudes, não apenas pecando contra você, mas principalmente contra Deus,
pois Ele foi o maior ofendido com o meu pecado, ao não seguir o cortejo da
maneira correta.
Respira, Marta, respira.
Eu não conseguia nem falar nada diante do choque e da surpresa do que
estava ouvindo, não fazia sentido, simplesmente não fazia. 
— Porém em nenhum momento deixei de sentir algo e percebi isso
claramente quando nos reencontramos em Porto das Rosas — ele falava tudo
sem parar para respirar direito, nem ao menos olhava na minha direção,
deixando seus olhos direcionados aos animais no lago.
Deveria ser um sonho, com certeza.
Ele falou rápido demais, devo ter entendido errado.
Gabriel estava se declarando para mim?
— Desde aquele dia, eu tive absoluta certeza do que precisava fazer, mas
ainda não sabia se já era a hora. Para ajudar, você quase me matou do
coração com aquela carta, eu fiquei desesperado quando ouvi o Daniel a
lendo, mas, após sua explicação, voltei a ter alguma esperança.
Então foi por isso a sua reação, ele não estava zombando de mim ou
apenas preocupado, considerando-me um tipo de irmã mais nova.
Gabriel gostava de mim.
Não podia ser.
— Durante os últimos três meses, eu orei constantemente, conversei muito
com minha mãe e principalmente Igor, pedindo ajuda para não agir ou
demonstrar de forma precipitada novamente, também conversei com seus
pais, pedindo permissão antes de qualquer coisa.
Com meus pais? Há quanto tempo isso tinha acontecido? Tirando os dias
na base, em todos os outros eu estava em casa e não os vi conversando em
momento algum. E os dois nem demonstraram nada.
Não fazia sentido nenhum, logo agora que consegui controlar meus
sentimentos. Deus já tinha dito não, simplesmente não tinha lógica. Talvez
fosse uma brincadeira de mau gosto, mas não era do feitio de Gabriel. 
Será que eu estava sonhando? Se sim, agora era a hora de uma voz
estridente gritar meu nome, avisando que eu estava atrasada para o café.
— Marta — ele chamou a minha atenção, obrigando-me a olhar para seu
rosto e pegando gentilmente minha mão direita —, eu quero ser bem claro,
não estou simplesmente declarando sentimentos, eu estou te pedindo em
casamento. Você aceita se casar comigo e me deixar ler aquelas benditas
cartas?
Capítulo Trinta e Um
Foi o pôr do sol ou talvez as estrelas
Que pareciam soletrar a nossa história lá no céu
A minha canção favorita
Que tocou na hora certa e despertou
as borboletas que estavam adormecidas
(Noemi Nicoletti - Borboletas)

Eu fiquei longos minutos com a boca aberta, encarando Gabriel,


totalmente chocada pela declaração e o pedido. Apesar de, sim, ter sonhado
— mesmo não querendo — com isso, para mim ainda era inacreditável estar
ouvindo aquelas palavras. Meu cérebro não raciocinava para conseguir
responder.
— Marta? — Voltei ao mundo quando o senti acariciando minha mão e
olhando para mim com um certo desespero diante do meu silêncio.
Abri e fechei a boca algumas, muitas, vezes antes de conseguir formular
uma frase aceitável.
— Eu preciso orar! Eu realmente preciso orar… — Foi a única coisa que
consegui obrigar meus lábios a dizerem.
Minha vontade era de dizer “sim”, me jogar em seus braços, ser
rodopiada, só Deus sabia o quanto foi difícil agir racionalmente. Mas, antes
de tomar qualquer decisão, deveria conversar com Quem controlava a minha
vida. Além do mais, não compreendia a lógica de Ele nos manter afastados
se acabaria nos unindo depois.
Naquele momento, senti toda a angústia de todos esses meses voltando
com tudo, elas me sufocavam, praticamente tirando meu ar. Não fazia
sentido.
E, acima de tudo, minha cabeça ainda girava pela própria declaração dele.
Durante todo aquele tempo, em que eu achava que ele estava orando por
alguém, Gabriel acabou de falar, na minha frente, que a pessoa era eu.
Também tinha a questão de que, sim, ele tinha dado sinais, não era
invenção da minha cabeça, eu tinha sido defraudada.
— Eu sei — ele disse —, não esperava nada menos do que isso vindo de
você.
Fiquei com vontade de perguntar o que ele quis dizer com essa última
parte, mas estava desesperada demais internamente para ter muitas reações.
Um silêncio estranho permaneceu entre nós até eu lembrar de uma pauta
importante.
— Gabriel, eu volto para Porto das Rosas no próximo mês.
— Sobre isso, não vejo problemas em nos casarmos em um mês. —
Minha vontade foi de gritar, mas logo ele emendou, aliviando um pouco para
o seu lado: — Mas eu tinha pensado que, se você aceitasse, poderia adiar
alguns meses esse retorno.
— Mas e seu trabalho aqui?
— Como você sabe, eu sou formado em Engenharia.
Balancei a cabeça, concordando. Era até engraçado pensar que, apesar da
faculdade, eu mal via Gabriel atuando naquela área.
— Tem um tempinho que questionava a Deus sobre não estar exercendo a
minha profissão nesses últimos anos. Então, durante os meses em Porto das
Rosas, recebi uma proposta de uma especialização em Construções de Baixo
Custo, para depois ir trabalhar no Condado dos Pomares com as
comunidades.
Por ser a mais longe da capital, a região noroeste de Porto das Rosas era
uma das mais precárias também, sendo muito conhecida pelo tráfico de
pessoas e a pobreza extrema.
— Então eu teria que me mudar para lá com você?
Algumas pessoas achariam loucura estarmos discutindo isso, certeza que
falariam para deixarmos essa conversa para depois de firmarmos o
relacionamento. Mas eu não, eu precisava saber onde estaria pisando antes
de dizer o “sim”.
O Mendes balançou a cabeça, concordando.
— O curso na Vila das Tulipas tem a duração de um ano, seria um bom
tempo para você se preparar.
Perdi a conta de quantas vezes puxei e soltei o ar nessa conversa.
Discretamente belisquei minha perna para ver se não era apenas um sonho
ou algo assim, mas continuava totalmente presente nesta realidade.
— Como eu disse, preciso orar, não estava preparada para tudo isso.
Ele assentiu, era uma vida inteira para decidir de forma tão rápida.
Indicando com a cabeça, fomos caminhando em silêncio até onde estava a
concentração de missionários.
— Eu não sei se o seu sentimento é recíproco nem se algum dia chegou a
ser. Você tem quanto tempo precisar para decidir, só peço que, quando
souber a resposta, me fale a verdade, por favor, seja ela qual for.
— Aham.
Conforme Gabriel se afastava, era impossível não pensar no quanto eu o
admirava e como a forma que ele guiou toda essa… declaração — se posso
assim dizer — mostrava o caráter dele. Meu olhar procurou o ponto do
banco onde estávamos e era impossível não rir pensando como deve ter
ficado engraçada a cena de dois palhaços sérios conversando.
Voltei minha concentração para o evangelismo. Mas, mesmo sentada cheia
de crianças em volta, eu tinha a sensação de certos olhos verdes estarem me
vigiando.
Capítulo Trinta e Dois
“Eu sempre achei difícil entender
Como duas vidas podem
Se tornar apenas uma
Mas quando eu te encontrei, eu te amei
E um milagre aconteceu
E então eu entendi
Que Deus tem sempre um plano para nós
É preciso paciência e ouvir Sua voz”
(Leonardo Gonçalves - Quando Deus Criou Você)

Duas semanas tinham se passado, acho que nunca orei tanto quanto
durante esses 15 dias. Acordava e orava, almoçava e orava, dormia e orava,
respirava e orava. Nunca obedeci tanto a Paulo quanto agora, quando ele nos
aconselhou para estarmos no Espírito em todas as circunstâncias.
Eu sabia que não deveria procurar a paz, pois nosso coração é enganoso e
corrupto, mas ao mesmo tempo não queria ficar nessa dúvida, com o medo
de estar fazendo algo errado.
Nesse momento eu estava em um discipulado na casa de Sarah, pedindo
misericórdia e socorro a Deus pela vigésima vez durante esse período.
— Marta, vamos lá, quando estamos orando por alguém em relação a um
casamento, não vai cair um raio do céu nem vamos ouvir uma voz como de
trovão falando que deve ser ele o cara ou não. Mas, nas Escrituras, nosso
manual de vida, Deus deixou diversas instruções implícitas e explícitas em
relação ao casamento. Eu fiz uma lista com elas, algumas são bem óbvias,
visto que já conheço o Gabriel, mas mesmo assim quero te levar a refletir.
Assenti, ajeitando a postura, enquanto ela pegava um caderninho e uma
caneta.
— Ele é cristão? Vocês compartilham a mesma fé e visão teológica?
— Sim? — Parei por alguns segundos, pensando principalmente na linha
teológica, mas, por todas as nossas conversas, a resposta era óbvia. — Sim,
fiquei em dúvida por causa da visão teológica — expliquei, vendo seu olhar
arregalado.
— Hum, próxima. Vocês têm o mesmo chamado?
— Sim! — Antes eu até poderia ter dúvidas, mas as nossas conversas
desde junho deixaram bem claro que ambos fomos chamados para a mesma
área, até para o mesmo país.
— É esse o homem com quem você quer passar o resto da vida? Isso
significa todos os dias de todas as semanas de todos os meses de todos os
anos desde o presente momento até a morte de um de vocês. Você está
disposta a ser submissa a ele?
Meu olhar ficou distante por um bom tempo e, graças a Deus, Sarah não
me apressou, essa era uma das perguntas que eu não esperava receber.
Primeiro, foquei na parte inicial, se eu estava disposta a passar o resto da
vida com Gabriel. Fechei os olhos, tentando imaginar como seria acordar
daqui a dez anos ao lado dele, ao mesmo tempo em que era muito estranho,
também me dava borboletas no estômago só de pensar. Mesmo diante do que
já conheci dele, inclusive a personalidade extremamente extrovertida que me
irritava de vez em quando, sim, eu não me incomodaria de morrer ao seu
lado.
E sobre a questão da submissão, sim, eu admirava muito Gabriel como um
homem cristão, admirava a forma como ele tratava a mãe e a irmã, como
tratava as pessoas ao seu redor.
— Sim! — respondi, finalmente, sem perceber o sorriso bobo em meus
lábios após pensar em um futuro assim.
— Por último, mas muito importante. Qual a opinião da sua família sobre
ele? E da família dele sobre você?
Dessa vez eu não precisava nem pensar, já era muito óbvio bem antes de
eu chegar a cogitar alguma coisa.
Uns dois dias depois da declaração, aproveitei que meu irmão estava na
escola e sentei para conversar com meus pais. Chamei apenas os dois para
poder desabafar, pedindo o conselho deles, não importava quão doidinhos
eram, também eram meus pais e as pessoas que mais me conheciam no
mundo. Foi um momento sério, até me surpreendi com as respostas.
— Filha, você sabe o quanto eu aprovo esse relacionamento, o quanto
admiro o Gabriel, principalmente após ele ter nos procurado antes mesmo de
falar com você. Porém não queremos te obrigar a nada. Sim, vocês têm a
nossa bênção, mas, se Deus falar contra, seremos os primeiros a ficar ao seu
lado e nunca mais tocar no assunto — papai falou.
Após isso, nós oramos juntos e eles pediram para, quando eu tivesse a
confirmação, não esquecer de contar para eles, como se fosse possível não
falar.
— Eles aprovam, com certeza!
— Bom, agora você praticamente já tem a sua resposta. Coloque tudo que
a gente acabou de conversar diante de Deus, vou deixar você a sós e me
conta depois qual a sua decisão.
Sarah depositou um beijo na minha testa e, antes de me deixar sozinha na
sala da casa dela, entregou o caderno com a caneta na minha mão.
Não sei quanto tempo fiquei ali encarando aquelas palavras, não sabia
nem como orar sobre o assunto. Tinha tantos medos, mas ao mesmo tempo
tinha também um sentimento até então desconhecido, parecido com uma
alegria boba e um aperto gostoso no coração. Vendo várias folhas em branco
no caderno, aproveitei uma delas para escrever para alguém muito especial.
“Querido futuro marido,
Acho que te encontrei, mas ao mesmo tempo tenho medo de não ser você.
Fico me questionando se deveria mesmo escrever isso, talvez jogue fora,
porém sei que, quando você me conhecer, também precisa conhecer todas as
minhas camadas e o meu passado. Mas espero muito que realmente seja
você o mesmo cara de quem estou falando…”
Eu não sabia como procurar Gabriel para conversar.
Ele tinha deixado claro que estaria aguardando a minha resposta e não me
pressionaria quanto a ela.
Já tinham passado dois dias desde que tive a certeza dos meus
sentimentos, mas não o vi mais depois disso.
Hoje teria culto de jovens e orava para ele comparecer.
Sentindo-me arrumada demais para o meu normal, entrei na igreja
procurando aqueles cabelos loiros, mas não os encontrei em lugar algum.
— Procurando alguém? — Kim perguntou por trás, fazendo-me levar um
susto.
Nesses últimos dois anos, o grupo de jovens cresceu em peso. Se antes
éramos sete, agora estávamos na faixa de vinte e cinco. A jovem coreana
fazia parte dessa leva.
— Você viu o Gabriel?
— Ele foi lá pra fora, mas está sentado naquele banco. — Indicou uma das
cadeiras.
Quando cheguei perto, reconheci a sua Bíblia toda surrada e cheia de
marcações. Olhei rapidamente em volta e, não o vendo, abri em qualquer
página e só enfiei o bilhete dentro. Quando sentei no meu lugar, meu coração
parecia que ia sair pela boca a qualquer momento.
Estava folheando a minha própria Bíblia em busca de me distrair quando
vi Gabriel entrando, mantive meus olhos para baixo, mas pela visão
periférica acompanhei-o sentando em seu lugar. Segurei a respiração
enquanto ele conversava com Mariana, com o livro no colo, sem nem fazer
ideia do conteúdo ali dentro.
— Boa tarde, patotinha, bora começar?
Iniciando o culto, David pediu para abrirmos em alguma passagem que
mal prestei atenção, estava nervosa, com medo de Gabriel não achar o papel,
mas, ao mesmo tempo, pensando em como ele reagiria ao ler. Não precisei
sofrer muito nessa agonia, porque, quando o rapaz ficou de pé, ele logo se
agachou para pegar algo que caiu no chão e entendi ser o bilhete, pelo fato
de seu olhar ter instantaneamente procurado algo pelo salão e parado ao me
encontrar.
Com o rosto queimando, mantive meu olhar virado para frente, nem
percebendo o sorriso aberto em minha direção.
Sem dúvida foi o culto mais longo da minha vida, eu até me esforcei, mas
minha mente não conseguia se concentrar. Como eu falaria para ele? Pensei
em mil formas de contar, mas nenhuma parecia boa o suficiente.
E se ele tivesse desistido? Talvez tenha se arrependido? Mudado de ideia?
Estava tão distante que Nina precisou me dar um cutucão no braço,
alertando que o pessoal estava saindo.
Eles haviam criado um combinado de, toda primeira sexta-feira do mês,
sair para algum momento de comunhão e o escolhido do dia foi o boliche.
— Vamos?
Eu estava envergonhada só de pensar em olhar para Gabriel, por isso,
quando David ofereceu uma carona, aceitei na hora, mesmo sendo obrigada
a sentir o olhar atento do rapaz em todo o percurso até o carro.
Não era como se eu quisesse evitá-lo, só não sabia como reagir em sua
presença.
Gabriel havia dado um jeito de se sentar na minha frente, obrigando-me a
fixar os olhos em qualquer coisa, menos no seu sorriso debochado. Contudo
constantemente nossos olhares se encontravam e ambos desviavam
rapidamente. Eu já tinha terminado de comer quando ele foi me passar o
guardanapo e junto deixou o bilhete embaixo, mas com um rabisco dele logo
abaixo da minha letra.
“Podemos conversar?
Ass. Marta
Me encontra em cinco minutos lá fora.
Ass. Gabriel”
 
Senti a bile queimar pela garganta ao ler suas palavras, ele pediu licença,
indo primeiro, para tentar disfarçar o fato de ambos sairmos juntos.
Ao final do período estipulado, ao invés de me dirigir para a porta, eu
entrei no banheiro, agradecendo aos céus por estar sozinha.
Conferi mais uma vez minha imagem no espelho, eu me sentia bonita, mas
não o suficiente. Durante aqueles minutos, analisei os detalhes que tanto me
incomodavam, como os olhos sem graça, bem diferentes dos olhos dos
Mendes, meus cabelos escorridos e cheios de frizz, o nariz proeminente e até
o corpo, que, mesmo me considerando magra, era estranho.
Apertei as unhas na palma da mão com força, até sentir aquela dor
incômoda. Sabia que, se ficasse mais tempo ali, desistiria de tudo. Então,
sem pensar duas vezes, arrumei a jaqueta nos ombros e, munida de uma
garrafinha de água, dei a volta no salão, por onde conseguiria sair sem passar
pelas mesas do pessoal da igreja.
Gabriel estava encostado no muro e, ao me ver, ajustou a postura.
— Oi! — sussurrou quando cheguei.
— Oi — respondi sem coragem de olhá-lo.
O Mendes começou a andar rumo à pracinha perto do estabelecimento,
que era a coisa mais fofa, ainda mais com um senhor tocando o último
lançamento do Roupa Nova na viola.
— E então? — ele perguntou após me ajudar a sentar em um dos
banquinhos de madeira.
Eu já era envergonhada por natureza, mas naquele momento não saía nada
da minha boca, simplesmente nada. Tentei diversas vezes murmurar algo,
mas não conseguia abri-la para que isso acontecesse, esqueci todo o discurso
criado após horas. Por isso apenas balancei a cabeça em sinal de positivo,
esperando que ele pegasse a mensagem.
— Isso é um… Sim? — Com um sorriso insinuador, ele gentilmente
pegou minhas mãos.
Com o olhar cravado em nossos dedos unidos, analisei o contraste dos
meus delicados com os dele, mais robustos. Era estranho como um simples
toque, que eu considerava inocente há menos de um mês, ganhou tanto
significado após uma simples confirmação.
— Marta?
— Sim, Gabriel, e-eu aceito casar com você! — consegui por fim falar,
resultando naquele sorriso e nas velhas borboletas no estômago.
— Eu nunca cheguei a essa parte, não sei o que fazer — ele confessou,
desviando seu olhar.
— Bem, eu também não. — Comprimi os lábios, sorrindo ao ver Gabriel
Mendes constrangido. — É a minha primeira vez também nessa parte.
Ainda me direcionando aquele sorriso, ele cruzou nossos dedos, brincando
com eles. Fiquei congelada, admirando a diferença das nossas peles e a
forma como se encaixavam perfeitamente.
— Quero te dar uma coisa, é simples, mas espero que goste.
Ao pegar um pacote no bolso, Gabriel retirou um cordão, que entendi ser
uma pulseira quando ele prendeu gentilmente no meu pulso. Apesar dos
diversos pingentes, como de mapas, globos e livros, ela não deixava de ser
simples e principalmente a minha cara.
— Eu amei — sussurrei, erguendo o pulso até a altura dos olhos, mexendo
nas pecinhas.
— Que bom, se não gostasse, aprenderia a gostar, comprei com todo o
cuidado. — Apesar da pose de soberbo, eu o conhecia bem e era fácil
perceber que estava tirando com a minha cara.
Cruzando as pernas, ainda sem tirar minha mão da dele, apoiei as costas
no banco e virei o rosto para ele.
— Noivos, então, né? — Tentei quebrar o silêncio.
— Noivos. Bom, temos muita gente para avisar e convidar para o nosso
casamento no próximo mês.
Justo nesse momento, eu aproveitei para tomar água e acabei engasgando
com o líquido. Ele, desesperado, me ajudou enquanto eu estava com os
braços erguidos, tentando voltar ao normal.
— Falei algo errado?
— Óbvio, nem louca vou casar mês que vem, pelo amor.
— Quando você quer casar, então, futura Marta Mendes? Por favor, não
fica me enrolando.
— Ei, eu só disse que em novembro não dava — Me defendi.
— Pode ser no próximo mês, então? Dezembro é uma boa data…
— Pelo amor de Deus, Gabriel.
Revirei os olhos, irritada com as provocações dele, seria uma longa e
longa vida de provocações pelo jeito e, lá no meu íntimo, eu estava animada
para ver isso, confesso.
— Não sei se você lembra — falei —, mas tenho família que mora em
uma cidade longe, precisa ser pelo menos depois das férias de janeiro, para
eu avisar e prepará-los, né?
Os minutos seguintes foram sobre entrar em consenso de quando seria o
casamento, dias do mês e da semana, datas importantes em que não poderia
acontecer e quais eram as mais propícias antes da próxima Escola. Apesar de
ter tirado esse semestre sabático para cuidar da família, o rapaz já estava
doido para voltar ao campo; eu também tinha feito um compromisso de dois
anos como obreira, então precisava me preparar com as próximas datas da
turma.
Era estranha a sensação de estar ali ao lado dele, parecia que a qualquer
momento eu acordaria de um sonho, um delicioso e lindo sonho. O cheiro, o
vento e até a textura das nossas peles pareciam algo totalmente novo.
Para mim, aquele dia ficou marcado pelo cheiro da grama recém-cortada
do canteiro, sempre lembraria dele quando sentisse o aroma.
Estávamos em uma conversa sobre nossos chamados, deixando bem claro
qual era o de cada um para não haver discussões mais para a frente quando
resolvi ter a brilhante ideia de olhar o horário.
— Misericórdia!
— O que foi? — Gabriel já se levantou, colocando-me atrás dele, e
precisei levar as mãos à boca para me impedir de gargalhar alto.
— Não sei se você se lembra, Mendes, mas temos alguns amigos lá dentro
e estamos aqui há meia hora.
Quando levantei para ficar ao seu lado, percebi seu coração ainda
acelerado. Achei fofa a forma como ele rapidamente ficou de prontidão para
me proteger, ao menos perigo por negligência eu não passaria.
— Posso orar por nós antes?
Fiquei surpresa com o seu pedido, mas concordei. Gabriel gentilmente me
puxou pela mão, abraçando-me.
Era engraçado pensar que, há quase dois anos, esse abraço acontecia em
outras circunstâncias e foi justo naquele dia que percebi estar apaixonada por
ele. Tanta coisa aconteceu depois disso, inclusive em relação aos meus
sentimentos, mas estar nos braços de Gabriel continuava a mesma sensação,
e multiplicada até.
Deitei em seu peito e ele apoiou o queixo em cima da minha cabeça,
denunciando claramente a nossa diferença de tamanho.
— Pai, eu quero orar pelo meu relacionamento com a Marta. Tantas coisas
aconteceram e creio que, se hoje estamos aqui, foi com a sua bênção e a sua
permissão. Oro para que mantenhamos nossos olhos focados na cruz, que
esse noivado e casamento não sejam fruto para idolatria dos nossos corações.
Oro para nunca esquecermos do nosso propósito, do nosso chamado pessoal
e ministerial. Peço que o Senhor seja o centro e nos dê sabedoria para te
glorificarmos em cada ação. Acima de tudo, agradeço por ter nos abençoado,
principalmente a mim, com essa mulher linda, por ter me presenteado com
mais do que merecia. Em tudo te louvo, em nome de Jesus, amém.
Disfarçadamente, enxuguei uma lágrima que escorreu durante a oração
dele, eu definitivamente estava emocionada e até perdi o controle das
reações do meu corpo. Antes de se afastar, Gabriel deixou um beijo na
minha testa. Por alguns segundos, cogitei se ele queria falar mais alguma
coisa, mas ele apenas se afastou.
Eu, com certeza, ficaria revivendo cada uma daquelas lembranças pelo
resto da vida.
— Posso te levar ou você quer ir antes?
— Eu não sei, o povo pode ver…
— E qual o problema de verem, estou com algum defeito?
Dei um tapa em seu braço, era óbvio que Gabriel estava doido para sair
por aí exibindo o nosso relacionamento aos quatro ventos.
— Homens… — murmurei, deixando-o com a testa franzida.
Antes de irmos, peguei a minha garrafa de água no banco. Ele entrelaçou
nossas mãos e seguimos assim até a porta do boliche. Aquele simples gesto
me deixava toda boba, ainda não tinha caído a ficha.
— Então, vou entrar… — falei, ficando de frente para ele, mas sem a
coragem de me afastar.
— Prefere contar no culto amanhã, então?
Assenti, afastando-me, apesar do desejo de ainda continuar em seus
braços.
O pessoal já tinha ido para a pista de boliche e estava uma disputa feia
entre David e Júlia para ver quem conseguiria o primeiro lugar. Conforme
me aproximei, vi algumas trocas de olhares entre Nina e Mariana; seria
estranho se ninguém desconfiasse do que aconteceu, visto nossos mais de
trinta minutos do lado de fora.
Encostei em um canto, observando a brincadeira, mas com a mente no
momento que havia acabado de passar.
Pelo resto da noite, me obriguei a manter distância de Gabriel, ainda sem
acreditar que poderia chamá-lo de “meu noivo”.
Capítulo Trinta e Três
“Foi melhor deixar a vida nos mostrar
Que o amor não se acaba no tempo
Deixa Deus te ensinar a sonhar
Te provar que somente com amor
Vale a pena esperar.”
(Grupo Versos - Vale a Pena Esperar)

— Cunhadinha!!!
Eu mal tinha aberto os olhos direito quando ouvi o grito de Júlia com ela
jogando-se ao meu lado na cama. Murmurei alguma coisa mal-humorada por
ter sido acordada assim, mas ela ignorou e me abraçou de lado.
— Para — reclamei, empurrando-a.
— Vish, era para você estar feliz, soltando fogos de artifício, e não careta
assim.
Ignorando sua indireta, eu passei a mão no rosto, forçando-me a despertar,
ela não me deixaria voltar aos meus sonhos de qualquer forma.
— Como foi? Me conta tudo! — pediu, batendo palmas.
— Ah, pronto, vou marcar uma reunião com todo mundo e contar no
palanque, pelo amor de Deus, é a única pergunta que vocês têm para fazer?
— Levantei para trocar o pijama.
Desde ontem, o único assunto da minha casa era esse, meus pais não
tiraram o nome de Gabriel da boca por um único segundo. Não é como se eu
não gostasse, entretanto era algo muito novo ainda para mim, não sabia lidar
com a exposição.
— Vish, tinha esquecido como você fica chata quando acorda, vou
precisar avisar o Gabriel, porque, né?, coitado dele, acordando todo dia do
seu lado.
Após pegar um vestido simples, já que, depois dos longos meses de
temperatura abaixo de 10ºC, estava calor, fui para o banheiro me trocar.
Tive muitas crises climáticas desde que voltei de Porto das Rosas. Quando
vim para o Brasil, lá estava calor e cheguei sendo recepcionada pelo
maravilhoso inverno de Curitiba.
Agora aqui estava esquentando, mas, quando voltasse para lá, chegaria
direto na neve.
— Gabriel foi em uma reunião de sei lá o que, mas disse que à noite te
encontraria — a Mendes falou quando voltei para o quarto.
Tentei evitar, mas não consegui impedir o sorriso bobo de surgir em meus
lábios. Eu sempre amei estar com Gabriel, agora, mais do que nunca, queria
a presença dele.
E, obviamente, isso não passou despercebido por Júlia, pois ela deu
pulinhos de alegria.
— Ai, eu estou amando ver vocês dois apaixonadinhos. O Gabriel chegou
ontem sorrindo até para o vento e não queria de forma nenhuma me contar
nada, o jeito foi ameaçar jogar a Bíblia dele na piscina — contou espalhada
na cama enquanto lixava as unhas. — Agora me conta sobre como foi o
pedido do príncipe encantado do cavalo branco, vulgo meu irmão mais
velho.
Coloquei a mão na cintura, fingindo estar brava, mas ela me olhava
ansiosa e cheia de expectativas por uma resposta.
— Tá bom, sim, ele foi romântico, não, não foi do jeito que você sonhava,
não teve joelhos no chão, nem flores nem algo do tipo. Foi exatamente como
eu sonhava. Feliz?
— E quais foram exatamente as palavras dele? Nem me vem com essa de
não lembrar, eu te conheço, dona Marta Carolina, deve ter ficado revivendo
as memórias a noite inteira.
Não mentiu. Após a conversa com mamãe, eu realmente passei horas
olhando para o teto, pensando na nossa história.
Revirei os olhos e fui contando de pouquinho em pouquinho os
acontecimentos, deixando-a cada vez mais ansiosa. Não revelei tudo, nem
meus sentimentos na hora, apenas o básico para a garota se contentar.
Nós ficamos conversando até perto do almoço, chamei-a para comer aqui,
mas ela negou, explicando que a mãe a queria em casa para não ficar sozinha
durante a refeição.

Após Júlia ir embora, o horário do culto parecia não chegar nunca.


Para sair do tédio, e ansiedade, aproveitei o tempo livre para ligar para
Ashley e contar as novidades. Puxando uma cadeira para perto da cômoda,
disquei o número da minha antiga casa, torcendo para ela estar.
— Oi, Almeida! — cumprimentou no famoso porto-rosense.
Pensando no custo extremamente alto por estar ligando para outro país,
tivemos uma conversa introdutória rápida antes de eu ser direta com o que
precisava:
— Ash, você acha que consegue arrumar as coisas aí para eu voltar apenas
em fevereiro? — questionei, mordendo o lábio inferior.
Eu fui louca de simplesmente decidir isso de uma hora para outra, agora
estava jogando nas costas de outra pessoa meus pepinos. A época do Natal e
Ano Novo era uma das mais corridas, já que Porto das Rosas adotava o
calendário escolar britânico e não havia férias nesse período, como no
Brasil.
Além das próprias tradições missionárias de Porto dessas datas, o Castelo
realizava um baile beneficente e todo o país o comemorava, cada um em sua
região.
— Aconteceu alguma coisa? Seus pais estão bem?
— Então, digamos que vou me casar e preciso desse tempo para organizar
tudo aqui!
— VOCÊ O QUÊ?
— Surpresa!
A chamada ficou longos segundos em silêncio absoluto, cheguei até
mesmo a me questionar se a linha havia caído.
— Não me diga que é o Gabriel…
O silêncio dessa vez foi da minha parte, confirmando a informação. Em
seguida precisei afastar o fone por causa do seu grito.
— Meu Deus, por essa eu não esperava, depois me escreve uma carta
contando detalhadamente tudo, ouviu, Almeida?
— Sim, senhora! — Fiz continência, como se ela pudesse ver.
— Agora preciso ir, eu e o Dani vamos sair para jantar hoje, se cuida e me
escreve!
Mal coloquei o telefone no gancho quando minha mãe gritou do quarto
avisando que sairíamos em dez minutos.
Eu estava tensa para o culto, temia a reação das pessoas, suas palavras, os
olhares.
Para minha alegria, nós chegamos atrasados, desse modo não precisaria
encarar ninguém, quem sabe até saísse logo ao terminar. Porém a sorte não
estava ao meu favor, ocorreu um imprevisto com o som e o culto começaria
dez minutos mais tarde.
Tentei passar despercebida, mas Júlia logo me viu e foi saltitante me puxar
para a roda. Meu coração estava acelerado e precisei limpar as mãos na saia
quando vi Gabriel.
Ele abriu um sorriso para mim, mas apenas ficou ao meu lado sem
demonstrar nada além disso, depois iria agradecê-lo pelo cuidado.
Poucos minutos depois, o pastor pediu perdão e anunciou finalmente o
início do culto.
— Você vai se sentar com seus pais? — meu noivo perguntou baixo. —
Ou eu posso ter a honra de adorar ao seu lado?
Assenti com a cabeça para a segunda afirmação, arrancando mais um dos
sorrisos que eu amava. Sentamos nas fileiras do fundo com Júlia ao meu
lado.
Em determinado momento da palavra, a mão de Gabriel buscou a minha, e
eu não consegui resistir a entrelaçar meus dedos. Era uma sensação
maravilhosa estar apaixonada, ainda ficava desacreditada com o quanto Deus
me abençoou.
— E — Nina começou, aproximando-se de nós após o encerramento do
culto, quando Gabriel me ajudou a levantar —, eu ganhei a aposta, beemmm
mais tarde do que imaginávamos, mas ganhei. — A loira fez uma dancinha
comemorando.
— Que aposta? — Eu e Gabriel acabamos perguntando juntos, agradeci
por eu não ser a única a não entender.
— Ô dona Carina, nem vem com essa, porque ninguém apostou o
contrário. — Mariana deu um tapa na nuca da amiga.
E então, apenas então, as peças se encaixaram na minha mente. A
conversa na casa da Sarah, pouco antes do casamento da Nina, sobre a
próxima a casar, os comentários de Carla sobre Gabriel já estar orando por
uma garota, até os olhares questionadores quando nos afastamos.
— E eu presenciei mais um amor nascendo, não vejo a hora de me reunir
com meus sobrinhos, filhos de vocês, para contar as histórias!
— Já eu não vejo a hora de você casar, Mariana, para contar para o seu
marido o quanto você abominava casamento.
— Luísa, não é bem assim, já falei... — ela começou a se defender
— Ei, calma, é brincadeira! — A outra ergueu as mãos, rendendo-se e
fazendo-nos rir.
Eu não havia sido a única transformada por Deus nesses últimos anos, o
tempo de Luísa na casa dos tios em Joinville havia feito a garota
amadurecer, deixando para trás o ar infantil de birra e transformando-se em
uma linda mulher.
Definitivamente jamais imaginei o quanto minha vida mudaria em pouco
tempo, para mim o que estava acontecendo era algo totalmente irracional.
Mas estava amando aquela sensação. Tudo parecia até bom demais para ser
verdade.
Capítulo Trinta e Quatro

Os últimos dois meses foram incríveis, sempre sonhei em planejar meu


casamento, mas nunca tinha pensado como seria gostoso decidir os detalhes.
Apesar do estresse, eu tinha muito apoio de Gabriel nesse momento, que
conseguia me tranquilizar.
Estava amando conhecer meu noivo cada dia mais.
Era meu último dia em Curitiba antes de sair de férias para a minha cidade
natal. No dia seguinte, ainda de madrugada, embarcaríamos no carro rumo a
Londrina para passar os próximos meses.
Como estávamos organizando a cerimônia, ao invés de voltarmos no final
de janeiro, como era o costume, chegaríamos em Curitiba na segunda
semana do mês.
Para aproveitar o dia, tínhamos vindo para a casa dos Mendes, Carla e
mamãe estavam preparando o jantar. E eu e meu noivo estávamos perto da
piscina, conversando sobre os primeiros passos que daríamos após o
casamento.
Passaríamos duas semanas no Brasil finalizando a documentação e
atualizando os vistos antes de voltarmos oficialmente para Porto das Rosas.
— Estava conversando com o Daniel, ele está procurando uma casa para
nós perto da base. Dez quartos tá bom? Ou precisa de mais?
— Pelo amor de Deus, Gabriel, para que você vai usar dez quartos? —
questionei abismada, erguendo a cabeça.
— Oras, para os nossos nove filhos e mais um para nós, e, se tivermos
mais filhos, é só colocarmos os mais novos juntos no mesmo quarto —
explicou, como se estivesse falando sobre a coisa mais sensata e normal do
mundo.
Coloquei a mão no queixo, desacreditada, antes de chamá-lo de louco,
arrancando uma risada alta do rapaz.
— Ah, tá bom, cinco, então? Pensa: cinco criancinhas correndo pela casa e
gritando “mamãe, mamãe, o Gabriel Júnior me bateu!” — Fez voz infantil
enquanto balançava as mãos, imitando um bebê correndo.
— Só para constar, nosso filho não vai se chamar Gabriel Júnior —
pontuei, rindo.
Ficamos alguns minutos discutindo sobre todos os motivos para não dar
nem Gabriel Júnior nem Josué Neto como nome aos meus filhos. Após se
render, ele apenas me puxou, deixando um beijo na minha testa, dizendo que
depois do casamento voltava com o assunto.
— Gabriel? — falei depois de algum tempo em silêncio.
Na minha cabeça, ainda era irreal nós dois estarmos noivos e eu morria de
vergonha de pedir algo, mesmo que já estivéssemos juntos há dois meses.
Mas eu realmente estava com vontade e ele dificilmente me negaria aquilo.
— Oi.
— Um tempo atrás você comentou em uma conversa que tinha uma
biblioteca com livros de Teologia, aí eu queria saber se posso ver… —
Mordi o lábio, sem coragem de olhá-lo.
— Claro, bem, não é exatamente uma biblioteca, mas uma estante no meu
quarto, tem algum problema? — perguntou cauteloso, eu neguei com a
cabeça. — Então, vamos lá.
Ele, segurando em minha mão, me levou até o andar superior.
Mesmo vivendo na casa dos Mendes, eu nunca tinha entrado no quarto
dele, então fiquei receosa ao conhecer o lugar privado do meu noivo.
— Ignora a bagunça, eu estava procurando umas coisas. — O rapaz coçou
o pescoço, desconcertado, enquanto deixava a porta totalmente aberta por
segurança.
E eu realmente ignorei, pois, assim que pisei no lugar, meus olhos foram
atraídos para uma enorme estante, que pegava uma parede inteira e estava
lotada de livros.
— Uau — murmurei, aproximando-me.
Devagar, passei o dedo por diversos títulos, tinham muitos comentários
bíblicos, livros de Teologia Sistemática e outros do cotidiano. Reconheci
alguns nomes mais populares, como Calvino, Spurgeon, Berkhof e Lutero.
— É esse o exemplar de “Coração Negro” que você comentou? — Mesmo
sem permissão, já peguei o livro para folhear.
Era o mesmo livro que Júlia me mostrou há dois anos, mas desta vez
dedicado ao Mendes.
— Aham, entregue nas minhas mãos pela própria rainha de Porto das
Rosas! — Gabou-se, esquecendo de acrescentar que foi antes de ela se casar
com Nicholas e revelar a sua identidade para o mundo.
De qualquer forma, eu ainda me surpreendia com os contatos de Gabriel,
até hoje não acreditava que ele tinha conseguido “Coração em Chamas” para
mim antes mesmo do lançamento.
— Se quiser, pode pegar para você.
— Sério?
— Sim, logo, logo a gente se casa e nossas bibliotecas serão só uma, vou
ter meu livro autografado de volta — explicou, dando de ombros.
Eu revidaria a fala ousada dele quando ouvimos o grito de Carla indicando
que a janta estava pronta.
— Se você quiser algum “emprestado” para ler na viagem, pode pegar. —
Voltou a apontar para a estante.
— É muita opção, depois de comer vejo com mais calma — Abri um
sorriso, agradecendo.
Gabriel me puxou para sairmos, mas meus olhos captaram um certo porta-
retratos na cabeceira dele. Desvinculando-me de sua mão, caminhei até lá,
olhando a foto.
— Eu tinha até esquecido dela — sussurrei, analisando-a.
Era a foto que Mariana tinha tirado no dia da festa da Júlia, nós dois
olhando um para o outro fantasiados de Martinho Lutero e Catarina von
Bora. Fiquei sorrindo, reparando nos pequenos detalhes, e percebi como
estava apaixonada por ele já naquele dia, nossos olhares diziam tudo.
— A Mari me entregou no meio de novembro, depois que revelou todas,
precisei esperar um bom tempo até poder usá-la verdadeiramente —
explicou, pousando as mãos no meu ombro.
— Você colocou aqui logo que chegamos do boliche, não foi?
Gabriel murmurou um “uhum” encostando a cabeça no meu ombro. Ele ia
falar mais alguma coisa, mas foi interrompido por outro grito de Carla
mandando descer logo.
Após o jantar, meu pai e meu irmão foram para casa e as duas mulheres,
para a cozinha, mandando eu e Júlia ficarmos na sala, porque elas queriam
conversar a sós.
Então, eu e Gabriel nos sentamos lado a lado no sofá, não pude evitar
sorrir quando ele foi se inclinando até deitar a cabeça no meu ombro. Como
eu estava com o braço por trás dele, ergui a mão e comecei a acariciar seu
cabelo.
Ficamos um bom tempo assim, em silêncio e apenas aproveitando a
companhia um do outro. Eu estava fechando os olhos quando Gabriel deu
um pulo, assustando-me.
— Espera, preciso contar uma coisa que descobri esta semana!
— O que...?
Eu nem tive tempo de questionar, pois ele rapidamente se levantou,
subindo as escadas. Olhei para Júlia, mas ela apenas deu de ombros,
voltando sua atenção à revista em suas mãos.
Minutos depois, Gabriel voltou carregando um caderno e uma Bíblia.
Nada novo vindo do Mendes.
— Eu estava estudando um pouco sobre Gênesis — ele começou a contar
—, acredita que Noé foi contemporâneo de Abraão?
Nas duas horas seguintes, ele usou toda a sua dedicação para me explicar
como cronologicamente os dois viveram 58 anos ao mesmo tempo e sobre
existir a possibilidade de Sem ter conhecido o próprio Jacó pessoalmente.
— Filho, a Marta vai viajar de madrugada, todo mundo já entendeu a sua
teoria da conspiração bíblica — Carla apareceu na sala com seu robe e os
bobs no cabelo, pronta para dormir.
Minha mãe já tinha ido há um tempo, permitindo que eu ficasse um pouco
mais, já que a próxima vez que eu e Gabriel nos veríamos seria apenas no
final de janeiro.
— Vocês são chatas! — meu noivo reclamou, ajudando-me a levantar.
Após me despedir das duas, Gabriel me acompanhou até minha casa,
propositalmente andamos bem devagar, tentando aproveitar o máximo
possível da companhia um do outro.
Meu coração se apertava só de pensar que passaria tanto tempo longe dele.
— Que Deus abençoe vocês nessa viagem, os guarde e livre de todo
problema na estrada — ele falou quando já não havia mais como alongar o
tempo. — Já peguei seu endereço, assim que possível vou te mandar uma
carta.
— Tá bom.
Fechei meus olhos, aproveitando aqueles últimos segundos em seus braços
antes de partir para Londrina.
— Aguardarei ansiosamente o seu retorno. Se conseguir, me liga avisando
o dia e horário certinhos que vão voltar.
— Tá bom, senhor, mais algum aviso? — Ergui o rosto, olhando-o de
baixo.
— Hum, não esquece que eu te amo, tá bom?
— Bobo — sussurrei escondendo um rosto envergonhado em seu peito.
Após mais algumas brincadeiras e conversas sérias, Gabriel deixou um
último beijo na minha testa antes de se afastar, mandando eu ir dormir. O
rapaz me esperou entrar para ir embora, e eu fiquei da janela do quarto,
observando-o partir.
Brinquei com a pulseira que ele me deu até conseguir pegar no sono, sem
tirar em nenhum momento aquele sorriso bobo e apaixonado dos lábios.

Capítulo Trinta e Cinco


Quando eu lhe pedi pra Deus
Eu não sabia que Ele me surpreenderia
Escolhendo o mais lindo sorriso
Pra alegrar a minha vida
(Mariana Aguiar - Seremos Um)

Os dias na minha terra natal estavam sendo uma loucura.


Minha família não saiu do meu pé um único segundo. Metade tentava me
convencer a desistir de ir para Porto das Rosas e continuar no Brasil,
achavam um absurdo meus pais deixarem a filha tão nova ter morado quase
dois anos em outro país.
A outra parte queria saber tudo sobre Gabriel. A todo momento
perguntavam dele, quando iam conhecê-lo, como ele era, personalidade,
cristianismo e tudo que se pode imaginar. Já meu avô e meus tios
ameaçavam bater nele quando o vissem por ter roubado a menininha deles.
Um dos motivos pelos quais agradeci a Deus por Ele ter me guiado a
morar fora do Brasil antes de ter qualquer compromisso era os meus
familiares, sabia que, se eu fosse apenas após o casamento, eles culpariam o
Mendes até o último fio de cabelo por me convencer a viver em outro país.
Era dia 9 de janeiro, uma sexta-feira. Eu não via a hora de chegar o
domingo, quando voltaríamos para Curitiba.
Naquele momento eu estava deitada no chão com a minha prima, Bruna,
ambas tentando sobreviver ao calor do norte do Paraná em pleno verão. O
vento vindo do pequeno ventilador do quarto era fraco demais para duas
calorentas como nós.
Thelma tinha começado a morar com o namorado, cortando quase
totalmente os laços com a família, e Larissa tinha se mudado para o Rio
Grande do Sul com o marido. Da última vez que vim para cá, há um ano,
Bruna estava cursando Psicologia em São Paulo, por isso não tínhamos nos
encontrado antes.
— Saudades do frio de Porto das Rosas, até com o de Curitiba eu me
contentaria — murmurei, virando a barriga para cima, a fim de gelar as
costas no piso nem tão frio.
— Para de ostentar que você já morou fora do País!
— Se mudar tem suas vantagens! — Dei de ombros, gabando-me.
Nunca imaginaria que o simples fato de os meus pais se mudarem para
Curitiba em busca de melhores condições de vida acarretaria em tanta
mudança na minha vida.
— E não é só uma vantagem, né, dona Marta Carolina, quem diria que
você voltaria noiva?
Não pude impedir meus lábios de se abrirem ao pensar em Gabriel, nós
trocamos algumas cartas nesse meio tempo e eu estava morrendo de
saudades dele, do seu abraço, do seu cheiro, até mesmo do seu estilo direto
em me exortar. Houve uma oportunidade em que consegui conversar ao
telefone com ele, aliviando a falta de sua voz, mas, como o único aparelho
de vovó era na sala, ficou cheio de abutres em volta querendo ouvir a
“Martinha” falando com o noivo.
— Deus me abençoou — falei por fim.
Realmente eu recebi uma bênção grande e nem sabia como agradecê-lO
por ela. Ainda me surpreendia por estar noiva, ainda mais considerando toda
a nossa história, as idas e vindas, as palavras do Senhor.
— Será que, se eu for para Curitiba, Deus me dá um homem piedoso
assim? — Bruna questionou, virando-se de barriga para baixo e apoiando o
queixo na mão. — Sou três aninhos mais velha e não tenho nem previsão de
o meu chegar — resmungou dramatizando.
— Espera em Deus, eu não tinha previsão do meu e de repente ele
apareceu!
— É, é, tenho outra escolha?
Ela, então, pediu para eu contar mais sobre Gabriel e sobre Júlia também,
o que ambos faziam da vida, como os conheci. Eu estava narrando a cena da
festa à fantasia quando mamãe abriu a porta:
— Pelo amor de Deus, Marta, dá uma ajeitada nesse visual e vai abrir o
portão.
— Por…? — questionei sem entender seu surto do momento.
— Porque tem gente esperando lá? Você sabe que hoje seu avô vai fazer
churrasco de despedida, então se apressa.
— Por que você não pede pros meninos? — questionei sem a mínima
vontade de levantar.
— Marta Carolina, agora! — determinou saindo.
Resmungando, contrariada, me forcei a levantar e colocar uma saia por
cima dos shorts. Eram nove da manhã ainda e já tinha gente incomodando.
Apontei com o dedo para Bruna, para ela me acompanhar, o que a fez revirar
os olhos, reclamando por precisar sair da frente do ventilador.
Depois de mais um grito da minha mãe, nós duas fizemos um coque
simples com o cabelo e descemos. Além do calor, o portão era bem longe da
casa principal, então foi um longo trajeto no sol de 90ºC de Londrina até
chegar lá.
Eu brincava, rodando a chave em mãos, sem nem prestar atenção em qual
dos meus mil parentes estava à espera.
— Marta, quem são aqueles? — Bruna questionou confusa. — Algum
primo distante?
Ergui o olhar sem entender; logo ela, que conhecia todo mundo, não sabia
quem era alguém? Mas, na hora em que nossos olhares se encontraram,
estagnei no lugar, chocada demais para conseguir reagir.
Gabriel colocou a mão no bolso, abrindo um sorriso, e Júlia deu um grito
mandando ir logo, porque ela estava derretendo.
Esquecendo totalmente da presença da minha prima, corri até o
portão,abrindo o cadeado toda estabanada por causa do tremor nas mãos.
Logo que me livrei daquilo, me joguei nos braços do meu noivo, sentindo-o
me abraçar de volta com força.
— Você não faz ideia da saudade que senti — ele murmurou no meu
ouvido, ainda sem me soltar.
— Faço, porque eu também senti sua falta — respondi de volta.
— Ti bonitinhos, vomitei, agora posso ter minha melhor amiga de volta,
por favor? — Júlia interrompeu-nos com os braços cruzados.
Com muita relutância, larguei Gabriel e a cumprimentei também. Carla
estava dentro do carro e me deu um aceno, falando que lá dentro me dava
um “oi” direito.
Lembrei-me de Bruna, mas ela já parecia ter entendido quem era o “primo
distante”, porque me lançou um belo sorriso com segundas intenções quando
passei por ela para terminar de abrir a porteira.
Mamãe já estava à espera e foi a primeira a cumprimentar Carla quando
ela saiu, depois a mulher me deu um abraço rápido, sendo puxada por minha
mãe para a cozinha. Agora fazia sentido todo o surto dela.
Estranhei que mais ninguém tivesse saído de casa, principalmente para
nos atormentar, mas fiquei feliz, vendo não ter sido criado alarde sobre a
chegada do “noivo da Martinha”.
Gabriel entrelaçou sua mão à minha e fomos nós quatro — eu, ele, Júlia e
Bruna — para dentro. Precisava apresentá-lo ao vovô, que estava louco para
conhecê-lo.
— Ah, não! — murmurei ao abrir a porta da sala.
Todos os meus parentes do sexo masculino estavam lá: vovô, papai, meus
sete tios — três irmãos do meu pai e quatro da minha mãe —, meu irmão
adolescente, meu tio-avô e até o cão de guarda da fazenda. E, para piorar,
cada um, exceto o animal, segurava um pedaço de madeira encarando meu
noivo.
Capítulo Trinta e Seis

Gabriel apertou minha mão com força, força até demais. Ele estava sério,
com os olhos arregalados estampando o susto ao entrar na casa e se deparar
com aquela cena.
E eu? Eu queria me esconder em qualquer lugar bem longe dali. Abaixei a
cabeça com o rosto, pescoço, corpo, tudo parecendo um pimentão, e
respirava fundo, tentando não entrar em surto por culpa deles. Minha
vontade era bater em cada um com aqueles pedaços de madeira, mas,
obviamente, não fiz isso.
— Então você é o famoso Gabriel Mendes? — vovô questionou, sério,
fazendo meu noivo engolir em seco.
Tentei falar que era brincadeira, mas estava tão abismada com a ousadia
deles que não saiu uma palavra da minha boca. E Gabriel provavelmente
sabia disso, mas também se chocou um pouco.
— Sim, senhor, prazer! — Ele se aproximou, apertando a mão dele.
Seu Rodrigo, exagerado como era, soltou uma gargalhada alta por causa
da tensão de Gabriel.
— Relaxa, rapaz, aqui você é bem-vindo e muito admirado por ter
conquistado essa mocinha aí! — respondeu, abraçando-o e dando tapinhas
nas costas dele.
Gabriel sorriu sem graça e foi obrigado a cumprimentar um por um, e
todos falavam a mesma coisa. Eu fiquei no meu lugar, com as mãos cruzadas
e esperando acabar logo aquilo, envergonhada por causa da atitude infantil
deles.
Júlia, que até então tinha ficado quieta, fazendo-me esquecer da sua
existência, se aproximou do meu ouvido sussurrando: “Já gostei deles”.
Ignorei sua provocação, permanecendo com a cabeça baixa.
Após longos minutos, Gabriel se aproximou, constrangido, explicando que
os homens o chamaram para apresentar a fazenda, perguntando se podia ir.
Bruna e Júlia foram as primeiras a dar a permissão, antes de eu pensar
direito. Com meus protestos, ambas me empurraram escada acima com
minha prima guiando-nos até “meu” quarto.
— Misericórdia, aqui é muito quente! — A loira resmungou já deitando
no chão na frente do ventilador.
Eu admirava a espontaneidade de Júlia, ela mal chegou, não conhecia
Bruna, e já agia como se estivesse no ambiente mais familiar do mundo.
Sentei-me na cama, aproveitando o silêncio para pensar direito. Devido à
euforia da chegada dos Mendes, nem tinha parado para me perguntar o
motivo de eles estarem aqui.
Questionei minha amiga e ela se sentou, cruzando as pernas para explicar.
— Foi mamãe quem teve a ideia. Nós estávamos conversando e Gabriel
falou sobre precisar dar um jeito de conhecer seus parentes antes do
casamento. Aí ela sugeriu que, como passamos o Ano Novo em Assis
Chateaubriand, lá na minha tia, aproveitássemos que era quase caminho e
passássemos aqui para ir embora com vocês no domingo.
— Vocês vão dormir aqui? — Bruna perguntou, mas era a mesma dúvida
que a minha.
— Uhum, sei lá, tia Lisa deve ter visto tudo isso já e não contou para fazer
surpresa para a Marta.
Deitando na cama, ficamos nós três conversando sobre assuntos
aleatórios, achei engraçado como variaram desde literatura, teologia e
chegaram em, mais uma vez, meu relacionamento.
Naquela conversa animada, nos surpreendemos quando tia Paula, mãe da
Bru, veio nos chamar para o almoço. Conforme descia as escadas, senti um
frio na barriga ao pensar em ver Gabriel novamente.
Quando nos encontramos, o rapaz abriu um singelo sorriso, estendendo
gentilmente a mão. Com vergonha da minha família e com medo das
piadinhas, preferi não matar a saudade como realmente desejava. Posicionei-
me ao seu lado e ele pareceu perceber meus temores, pois apenas ficou ali
perto sem forçar nada.
Vovô fez um longo discurso sobre a família e a alegria em dar a netinha
para um rapaz como Gabriel. Apesar de ter ficado encabulada, também senti
felicidade por ver a aprovação da minha família ao meu noivo, sabendo que
isso era mais uma forma de Deus responder às minhas tantas dúvidas.
Aproveitando o momento, Gabriel conseguiu se aproximar e entrelaçar
nossos dedos. Eu apreciava demais aquele pequeno gesto, os inúmeros
sentimentos que ele transbordava em mim, significava muito mais do que
um beijo ou qualquer coisa que o mundo estava começando a considerar
normal.
Como patriarca, vovô fez a oração do almoço, agradecendo ao Senhor por
Seu contínuo cuidado em nossa vida.
— Estou morrendo de fome — Gabriel sussurrou no meu ouvido quando
anunciaram que finalmente poderíamos nos servir.
— Por que não falou? Eu tentaria conseguir algo para vocês comerem —
falei preocupada, sentindo-me uma péssima anfitriã por não ter perguntado
isso.
— Imagina, tava guardando estômago para o almoço mesmo, esse cheiro
de churrasco tá uma delícia — explicou, dando um beijo de supetão na
minha cabeça.
Olhei-o brava, principalmente vendo meus parentes segurando um sorriso,
mas ele deu de ombros, pegando um prato.

— Meu Deus, nunca vi meu pé tão sujo — Júlia resmungou quando tirou
os sapatos para deitar na rede.
Meu avô se apegou extremamente a Gabriel e quis apresentar aos Mendes
os cafezais da fazenda. Eu os acompanhei, fazendo comentários uma vez ou
outra sobre a história da cidade.
Compreendi a animação do meu noivo no dia lá no Barigui, era gostoso
explicar sobre algo da nossa história de que sentíamos orgulho.
Por consequência, nossos pés estavam completamente sujos da terra
vermelha da região.
— Um dos motivos pelos quais amei Curitiba é que é um horror varrer
aqui, imagina passar pano, então?
— Imagino, isso aqui sai do pé? — Júlia dramatizou, tentando limpar com
a mão.
— Depois de uma semana e olha lá — Bruna falou, sentando-se no chão.
— Não é à toa que vocês, curitibanos, apelidaram o povo daqui de pé-
vermelho.
— Como assim? — Gabriel, que estava sentado na cerca, tomando caldo
de cana, perguntou, curioso.
— Diz a lenda… — Bruna começou com uma voz de suspense. —
Brincadeira, mais ou menos. É uma das explicações que ouvi e faz sentido.
Enfim — Cruzou as mãos após uma pausa para se organizar. —, contam que
os caipiras daqui iam para Curitiba com os aviões e tal, mas, como antes era
tudo barro, chegavam lá com as botas cheinhas daquela terra vermelha,
sujando tudo. Aí, o povo da capital falava “Alá os pé-vermelho chegando”,
por causa da cor no piso. E, assim, surgiu o nosso termo patrimônio cultural
pé-vermelho!
— Amei, mas, mudando de assunto, acho tão fofinho o sotaque de vocês!
— Júlia falou, apertando os dedos como se fossem bochechas imaginárias.
— Nós não temos sotaque — Bruna respondeu, séria.
— Têm, sim, eu fico todo gamado quando, nos raros momentos de
discurso da Marta, ela começa a falar e fica aquele sotaque do interior —
Gabriel falou, fazendo-me ficar vermelha com a declaração.
Ele abriu um sorriso de lado para mim, comprovando que seu objetivo era
mesmo me provocar.
— Eu não tenho sotaque — me defendi, ignorando-o.
— Fala "porteira"!
— Porteira?
— Olha aí! — Júlia deu um gritinho, apontando para mim. — O R é todo
puxadinho, porrrrrteira! — imitou.
— Falou a "leite quente dá dor nos dente", né? — Bruna entrou na
discussão, imitando o jeito curitibano de falar com o “e” bem marcado.
— Respeita, porque pelo menos a gente dá o devido respeito ao português
falando as letras exatamente como se escrevem. É leitE quentE e não leiti
quenti — Gabriel debochou, saindo da cerca e sentando-se ao meu lado na
rede. — Mas vocês sabiam que tem um motivo também?
Aproveitando a companhia, encostei levemente a cabeça no seu ombro,
esperando-o explicar.
— Como a Bruna diz, é o que conta a lenda. Curitiba, no início, teve
povos de diferentes nacionalidades, desde portugueses aos italianos,
poloneses, ucranianos, e por aí vai. Por isso os nativos precisaram começar a
falar pausadamente, exatamente como escreve, para serem entendidos,
forçando principalmente o “e” no final das palavras. Então nós honramos a
nossa língua, além de sermos receptivos com os outros povos.
— E se acham também — murmurei apenas para ele, mas, escandaloso do
jeito que era, Gabriel jogou a cabeça para trás, gargalhando alto.
As meninas questionaram o motivo para aquilo, mas ele não explicou,
deixando-as curiosas.
Gabriel começou a afagar a minha mão inconscientemente e, apreciando
aquele carinho do qual eu sentira tanta saudade, continuamos a conversa até
meu avô aparecer para roubar o novo neto preferido novamente.
Meu noivo se levantou e, mesmo com meus resmungos, deu um beijo na
minha testa antes de seguir alegremente o mais velho. Mas eu ficava feliz
com isso, o único neto de vovô era meu irmão e ele não se interessava muito
em ajudá-lo, então acabou sendo natural o vovô se apegar a Gabriel, que
também amava conversar e se sentir útil.
— Ah, pronto, agora vai ficar se metidando com beijinhos na testa,
carinhos, e blá-blá-blá — Bruna debochou quando Gabriel já estava longe.
— Mudando de assunto, Marta, será que a gente consegue levar os dois para
tomar a vitamina da Sergipe amanhã cedo?
— Apoio, lá pertinho também tem o Museu Histórico, Gabriel gostaria de
conhecer.
Júlia e a minha prima tinham se dado bem de primeira, então deixei a Bru
explicando sobre a loja de vitamina e pastel, que, junto ao suco da
rodoviária, eram os patrimônios culturais da cidade.
Aproveitando estar só, deitei na rede, impulsionando um leve balançar ao
empurrar a mão no chão.
Aos poucos, meus olhos ficaram pesados e não percebi quando acabei
cochilando. Meus sonhos foram tomados por um certo rapaz de cabelos
loiros e um sorriso que me encantava, estávamos nós dois caminhando pelos
campos de café quando ouvi uma voz longe chamando por mim.
— Amor, acorda!

Capítulo Trinta e Sete


“Tempos atrás parecia o caminho tão longo
E te encontrar ao andar se mostrava incerto
Me entreguei como um barco ao mar
Transformei o meu ímpar em par
Caminhei sem destino até te encontrar”
(Sergio Saas - Presente de Deus)

Bocejando, abri meus olhos com pesar e aos poucos a visão foi
desembaçando. Gabriel estava ajoelhado ao lado da rede e acariciava meu
rosto com delicadeza. Levada por aquela deliciosa sensação, voltei a tentar
dormir, e esta tentativa foi fracassada com sucesso quando ele me chamou
novamente.
— O que foi? — resmunguei.
— Quero aproveitar um pouco a sós a minha noiva, não posso?
Assenti, sentando para dar espaço a ele, recostei a cabeça em seu peito e
ele passou o braço por trás, abraçando-me. Ficamos algum tempo em um
silêncio gostoso, apenas contemplando a natureza à nossa frente, até eu ter a
brilhante ideia de falar algo.
— Gabriel, posso te fazer uma pergunta? — questionei receosa.
— Lá vem, fala.
Graças a Deus, na posição em que eu estava, não podia ver seu rosto, nem
ele o meu.
— Então — mordi o lábio, pensando em como falar sem demonstrar tanto
a curiosidade —, digamos que talvez eu tenha ouvido falar sobre a época em
que você e a Mari oraram juntos.
Fechei os olhos, esperando a resposta.
Gabriel brincava com as nossas mãos, mas parou no mesmo instante.
— Quem te falou sobre isso?
— É errado eu descobrir? — falei na defensiva já, logo me arrependendo e
acalmando os nervos.
Por mais que a Luísa tivesse falado que nunca deu em nada, um bichinho
chamado ciúmes continuava remoendo aquilo dentro de mim, repeti diversas
vezes que era besteira. Porém, quando menos queria, acabava lembrando
daquilo, querendo entender melhor as nuances daquele quase
relacionamento.
— Não, eu só quero saber quem te contou e o propósito da pessoa — ele
respondeu e também deu para perceber uma irritação da parte dele.
Respirei fundo para me controlar, não queria uma discussão por ciúmes,
ainda mais por algo ocorrido há anos já. Frustrada por ter feito isso, levantei-
me e me preparei para me afastar, achando melhor do que ficar e acabar
falando o que não devia.
— Ei. — Senti Gabriel puxando-me de volta para ele e, vendo ter perdido
a luta, me aconcheguei no seu abraço novamente. — Por mais que eu não
goste desse assunto, é um direito seu saber. E só queria descobrir quem te
contou, pois o único propósito da pessoa era criar contenda.
— Não, isso aconteceu há mais de dois anos e a pessoa falou sem querer,
ela até me explicou que foi devido às insinuações da igreja. Eu que fiquei
remoendo mesmo, desculpa.
Ele me apertou e senti um beijo no topo do meu cabelo, fechei os olhos
apreciando a sensação de ser amada.
— Bom, não sei até onde essa pessoa falou, mas vou te explicar em
resumo a história.
Então ele me contou basicamente a mesma coisa que Luísa e Mari
falaram. Ambos eram jovens, piedosos e já em idade para casar, vendo isso,
os irmãos da igreja começaram a jogar um para cima do outro, fazendo-os
cogitarem a ideia de casamento — até então nem pensada por nenhum dos
dois.
— Foi meu pai quem me fez perceber o erro, sabia? — Neguei com a
cabeça. Ouvi seu suspiro antes de ele continuar, agora com a voz carregada
de emoção. — Ele era minha maior inspiração, então obviamente o procurei
para conversar sobre isso. E ele me explicou que não era porque a Mariana
era uma mulher piedosa que eu deveria me casar com ela. E, amor — eu me
derretia toda vez que o ouvia me chamar assim —, eu realmente só tinha
sentimento de irmão por ela. Não passou de um fogo de duas semanas, além
disso, a forma como conduzimos aquele tempo de oração foi bem errada. A
única pessoa a roubar meu coração foi uma certa morena envergonhada que
derruba café na roupa dos caras — ele falou, gracejando.
Com as bochechas quentes, escondi meu rosto em sua camisa ao relembrar
de quando nos vimos pela primeira vez.
— Obrigada pela sinceridade — murmurei, sem coragem de olhar para
ele, envergonhada por ter ressuscitado a conversa. — E me desculpa por
isso.
— Tudo bem, foi bom relembrar um dos últimos momentos com meu pai.
— Ele ficou em silêncio e, ao olhá-lo, vi uma lágrima solitária escorrendo
pelo seu rosto.
Eu sabia que ele sentia falta do pai; sempre, ao comentar sobre ele,
Gabriel falava com emoção no olhar. Ele já me contou sobre o quanto o
admirava e como foi o seu principal exemplo de ser humano.
— Aliás, ele amaria te conhecer — voltou a falar depois de alguns
segundos, mas agora sorria, olhando distante, provavelmente lembrando do
progenitor.
— Ah, é? — questionei com interesse em ouvir mais.
— Sim, ele sempre orou muito pela minha futura esposa e sempre me
guiava sobre como prosseguir no momento certo. Além disso, vocês dois se
dariam bem, ambos tímidos e envergonhados.
— Você tá de brincadeira? — Olhei em seus olhos, buscando a resposta.
— Você é filho de gente tímida? Não consigo imaginar.
Então Gabriel jogou a cabeça para trás, rindo alto, e eu amava ouvir a
risada dele, considerava um dos melhores sons do mundo.
— Não, ele realmente era mais reservado. Então imagine o desespero em
ter dois filhos sem vergonha nenhuma na cara. Saudades do seu Josué. —
Sua expressão se alterou, ele não chegou a ficar triste, mas o semblante
nostálgico permanecia. — 14 de novembro de 1982, nem parece que já se
passaram cinco anos desde aquele dia… — sussurrou mais para si mesmo do
que para mim.
Abracei-o com força, buscando demonstrar minha presença com ele a todo
instante. De repente, toda a atmosfera mudou, quando senti os dedos de
Gabriel passeando gentilmente por meu rosto.
— Eu já disse que te amo? — ele sussurrou com a voz alterada.
Fechei meus olhos, apreciando o carinho, e meu erro foi abri-los de novo e
encarar o olhar de Gabriel. O frio na barriga veio quando seus dedos
desceram, fazendo todo o contorno do meu rosto e pescoço. Naquele
momento senti um enorme desejo de ser beijada por ele, por segundos todos
os meus pensamentos sumiram.
— Marta!
De repente o grito de Júlia soou de dentro da casa e nos separamos
rapidamente, cada um sentando em uma ponta da rede. Sentia meu rosto
pegando fogo e as batidas do coração em disparada, Gabriel também estava
atordoado, pois não ousou me encarar e puxava os cabelos enquanto
mantinha os cotovelos apoiados no joelho.
— Está tudo bem? Vocês estavam brigando? — minha amiga questionou,
confusa.
Quase falei que preferia que estivéssemos. Seria menos constrangedor e
perigoso.
Pela primeira vez na vida, fiquei contente com a interrupção de Júlia, ao
menos dessa vez foi muito bom ouvir seus gritos estridentes.
— Sua mãe estava te chamando.
Assentindo, levantei e fui para a cozinha, ainda sem coragem de olhar para
Gabriel.
Mamãe queria ajuda para preparar a janta e não hesitei, tentando ocupar ao
máximo a cabeça. Quanto mais se aproximava nosso casamento, mais tensas
ficavam algumas questões, minha própria mãe tinha me alertado dos perigos
de ficarmos a sós, mas eu, pela emoção do momento, não lhe dei ouvidos.
Depois da refeição, Gabriel me chamou para conversar, eu hesitei, um
tanto receosa, por causa da situação de mais cedo. Ele disse que seria rápido
ao ver minha demora.
— Eu quero te pedir perdão mais uma vez.
Abri a boca, surpresa pela atitude dele, não esperava por aquilo, cada dia
admirava mais o caráter de Gabriel e a forma como, apesar da cabeça dura,
quando ele percebia estar errado, não titubeava em nos procurar para se
retratar.
— Se não fosse a minha irmã, eu sei muito bem o que poderia ter
acontecido, sei o quanto deixei minhas emoções tomarem conta e não fui o
cavalheiro que prometi a você, ao seu pai e principalmente a Deus.
Realmente quero começar a evitar essas situações, Marta, faltam poucas
semanas para o casamento, não quero pecar contra você faltando tão pouco
tempo para não precisarmos nos preocupar mais com isso.
Assenti, sem coragem para falar, ainda morrendo de vergonha por tudo
aquilo. Meu noivo, então, pegou minha mão e a segurou, orando por nós e
pedindo para o Espírito Santo nos guiar em pureza por esse tempo.
Já começando a cumprir o acordo, dessa vez ele não me abraçou, apenas
deixou um beijo no dorso da minha mão, o que foi tão significativo quanto.

Eram plenas seis e meia da manhã quando nos acordaram. Sairíamos às


oito apenas, mas minha mãe era neurótica e não queria atrasos para pegar
estrada.
Mesmo não estando acostumada, tomei um banho logo cedo para
despertar um pouco e torcia para não estar tão quente na estrada.
Júlia falava de mim, mas, quando voltei para o quarto, ela ainda estava
deitada, resmungando para levantar. Dando um chute de leve na sua costela,
passei por cima dela para terminar de conferir minha mala.
Desde ontem, minhas coisas já estavam prontas, mas olhei de novo,
confirmando se peguei tudo. De relance, vi a carta que troquei com Gabriel
nesse meio tempo na escrivaninha, rapidamente a guardei na bolsa, aquilo
era importante e imprescindível esquecer.
Eu desci para levar as malas e, na volta, Júlia ainda não tinha levantado.
Bruna, que tinha acordado para se despedir, me olhou com um ar maroto e
logo compreendi, assentindo para dar-lhe permissão.
Com um sorriso travesso, ela encheu um copo de água e começou a pingar
de pouco em pouco na orelha da dorminhoca. A garota primeiro começou a
se coçar e, quando abriu os olhos, minha prima terminou de virar o líquido.
Levei a mão à boca, escondendo a risada ao ver Júlia dar um pulo,
assustada. Com a cara fechada e sem falar nada, ela pegou a roupa na ponta
no colchão — que tinha deixado separada na noite anterior — e foi a passos
duros até o banheiro.
— Será que ela se magoou? — Bru questionou, preocupada.
Ponderei por alguns segundos, mal também por causa da situação, mas dei
de ombros por fim.
— É a Júlia, o máximo que pode acontecer é ela tentar se vingar algum
dia.
Ainda em dúvida, nós duas fomos até a cozinha tomar café para, depois,
eu me despedir dos familiares. Como em três semanas nos reencontraríamos
para o meu casamento, não ficou aquele clima todo cheio de choro e
abraços.
Nem precisei pedir, só ao olhar para minha mãe, quando nos aproximamos
dos carros, ela já me permitiu ir com os Mendes.
— Sabe, maninha — Jonas começou a falar, abraçando-me de lado, com a
voz alta o suficiente para todos ouvirem. — Eu deveria ser profeta!
— Por? — questionei, mas com medo do que sairia da boca daquele guri.
— Bom, eu profetizei que o Gabriel te cortejaria e olha aí, já estão noivos.
Vou usar meus dons e virar casamenteiro, quem será o próximo?
Demorei alguns segundos para entender a referência dele, mas o Mendes
nem precisou, pois fez um toca aqui, agradecendo ao cunhado pelo trabalho.
Revirei os olhos, ignorando a “comemoração” dos dois patetas, estava
abrindo a porta de trás do carro quando fui interrompida pela minha sogra:
— Marta, você vai na frente com o Gabriel.
— Por quê?
— Quero ir com a Ju atrás, acho mais confortável. — Deu de ombros,
empurrando-me para não contestar.
Gabriel segurava a risada e balançou a cabeça, indicando para não a
contrariar, não resolveria.
Mesmo sem concordar, dei a volta para abrir a porta do passageiro, antes
de novamente ser impedida, mas dessa vez era apenas Gabriel querendo
fazer graça, abrindo-a com uma reverência.
— Querida, aproveita, depois do casamento todas essas mordomias
acabam, experiência própria — minha sogra avisou quando estávamos todos
dentro já, levando um “fica quieta” do filho.
Acenando para minha família — e coloca família nisso —, Gabriel
manobrou o carro e pegou a estradinha de terra rumo a Curitiba.
Apenas depois de sairmos da vista deles, consegui relaxar um pouco,
ficava nervosa sendo observada pelos meus parentes procurando qualquer
coisinha para conversar depois. E eu sabia que meu noivado seria o principal
assunto das próximas semanas.
A viagem levaria em torno de seis a sete horas, Gabriel me explicara que
pegaria a Rodovia do Café, pois seria mais rápida e segura, apesar de
precisar cortar por Apucarana ao invés de ir diretamente pela PR-445.
— Mano, ela não tá interessada na história da rodovia — Júlia falou em
determinado momento, dando tapinhas no ombro dele —, deixa esse chato
de galocha [17]aí e vem com a gente.
Como eu realmente não entendia bulhufas [18]sobre estradas e geografia,
aceitei a sugestão. Virando o pescoço para trás, fiquei conversando com ela e
Carla sobre diversos assuntos e, Gabriel sendo Gabriel, não ficou de fora,
dando os pitacos dele mesmo quando o assunto era feminino.
— Estamos chegando? — minha amiga questionou com um bocejo.
— Júlia, nós saímos não tem nem uma hora direito!
— Vou dormir, que ganho mais, então!
Resmungando, ela se ajeitou, deitando no ombro da mãe e adormecendo
segundos depois. A mulher deu risada, mas também recostou-se para
descansar.
Como tinha perdido minhas companhias, virei para frente, analisando meu
noivo dirigindo. Quando ele entrou em uma parte mais tranquila,
sorrateiramente deu um jeito de entrelaçar nossas mãos.
Tentei brigar com ele, porém era impossível não se apaixonar por todo o
carinho e cuidado demonstrado pelo Mendes com aquele simples gesto.
Para não acordar as duas, nós permanecemos em silêncio, mas a todo
momento ele ficava brincando com os nossos dedos e me lançava meios-
sorrisos que diziam muitas coisas, mesmo sem palavras. Eu apenas encostei
a cabeça no banco, aproveitando o carinho.
Nesse tempo, meus pensamentos foram até as cartas guardadas lá em casa.
Qual seria a reação de Gabriel quando as lesse? Diversas situações diferentes
passaram pela minha mente, mas eu sabia que em todas elas ele daria um
jeito de rir da minha cara.
Desde que começamos a namorar, eu não consegui escrever outras, algo
me travava. Tinha medo de citá-lo como noivo e algo acontecer e não ser
ele, mas também de não falar nada e no fim ser ele mesmo.
Aproveitando o silêncio, fechei os olhos, fazendo uma oração silenciosa
para Deus acalmar meu coração, pois eu ficava pensando demais,
arquitetando erros e consequências e, no fim, não conseguia aproveitar o
momento.
— Está tudo bem?
Abri devagar os olhos, vendo Gabriel olhando para mim de esguelha com
uma expressão preocupada no rosto. Balancei a cabeça indicando que sim.
— Por quê?
— Você ficou tensa de repente — explicou —, eu já disse que sou um
bom motorista, não precisa temer. — Fez graça, abrindo um sorriso.
— Bobo! — Dei-lhe um empurrão no braço e meu noivo soltou uma
risada alta, acordando as duas de trás.
Voltei a me recostar no vidro, mas dessa vez já estava bem mais calma.
Agradeci a Deus por ter colocado alguém como Gabriel na minha vida e pela
forma como ele conseguia me fazer relaxar com suas brincadeiras bestas.
— Estamos chegando? — Júlia resmungou, abrindo uma garrafa de água.
Como resposta, o motorista apenas apontou para a placa no caminho,
indicando que não, não estávamos chegando ainda.
Olhando para aquela estrada, não pude me impedir de criar uma analogia,
pensando em como nossa vida era exatamente igual. Os buracos, as curvas
bruscas, os objetos no meio, de vez em quando um acidente ou outro e até
mesmo as bifurcações, quando era necessário escolher um caminho a seguir.
Porém não estávamos sós nesse percurso, o Espírito Santo era as placas, se
eu prestasse atenção, saberia aonde ir e aonde não ir, onde virar e onde parar,
até a velocidade que podia correr. Os acidentes, as quedas, eram causadas
apenas pela desobediência e falta de atenção às sinalizações.
Isso servia tanto para a minha vida pessoal quanto para a que estava
construindo ao lado do meu noivo.

Querido futuro marido,


Hoje é o dia do nosso casamento, eu ainda nem acredito que ele
finalmente chegou! Aproveitei alguns minutos que me
deixaram sozinha para escrever esta carta. Neste momento,
estou vestida de noiva, com o vestido que eu sempre sonhei.
Daqui a algumas horas você vai me ver, espero que me ache
bonita como eu estou me achando.
É estranho pensar quanta coisa aconteceu desde que nos
conhecemos, ainda me lembro daquele dia e da minha vergonha
em ter derrubado o café em você, mas também me lembro do
seu cavalheirismo tentando me ajudar, foi um dos primeiros
atributos que aprendi a admirar em você.
Mas foi apenas após dois anos que você declarou seus
sentimentos. Durante esses longos meses, eu sofri muito, mas
hoje vejo que Deus preparou tudo exatamente como precisava
ser, e como foi importante esse tempo longe.
Nosso noivado também não foi tão longo, mas nesses quatro
meses aprendi mais sobre seus defeitos, te conheci e lembro até
da nossa primeira discussão, naquele estacionamento do
restaurante quando você contou para todo mundo que fui eu que
escrevi o poema no dia do evangelismo (ainda quero te matar
por isso).
Bom, finalizo aqui minha última carta enquanto solteira, as
próximas estarão intituladas como ‘querido atual marido’.
Te amo.
Ass. Sua Martinha (e não, isso não é uma permissão para você
me chamar assim).
Fevereiro de 1988

Capítulo Trinta e Oito


“E você será parte da minha história
Do meu sonho de criança
De usar véu e aliança
E eu serei menina dos seus olhos
Que uma dia, orando só, você pediu a Deus”
(Lu More – À Moda Antiga)

Respirei fundo enquanto segurava aquele envelope, havia chegado a hora


de ele ser aberto.
Deslizei a mão livre pelo corpete branco, era difícil acreditar que aquela
menina do reflexo no espelho era eu, vestida de noiva a poucos minutos de
subir ao altar.
Os dois toques da minha mãe na porta me despertaram para a realidade, eu
havia pedido a ela para chamar Gabriel, precisava falar com ele antes da
cerimônia.
O suor da minha palma denunciava meu nervosismo enquanto via meu
noivo vendado sendo guiado até o centro da sala. Dona Lisa e a minha sogra
saíram após ameaçarem mais uma vez o Mendes para não tirar a venda.
Elas não concordaram muito com o meu pedido para ficarmos a sós, mas
eu não queria mais plateia para aquilo, era algo apenas meu e dele.
— Marta, o que está acontecendo?
Dei um riso baixo com a sua apreensão, ele trocava o peso entre as pernas
e deslizava os dedos nos fios loiros, incrível como suas manias nunca
mudaram.
Vendo-o de terno, admiti para mim mesma o quanto Gabriel era lindo.
Não era nada que eu já não soubesse, mas ficou ainda mais claro naquele
momento.
Não acreditava que em algumas horas chamaria aquele homem de
“marido”.
Sem responder à sua pergunta, abri o envelope, chamando sua atenção
pelo barulho do papel.
— Querido futuro marido — iniciei a leitura daquela carta escrita há
tantos anos —, como você está? Hoje fui no casamento de uma vizinha do
meu avô, foi inevitável não pensar em quando chegaria a minha vez, por isso
resolvi escrever esta carta para ser lida nesse dia, que só acontecerá daqui a
um bom tempo, afinal, tenho quinze anos ainda. É inevitável a ansiedade
para te encontrar, descobrir a cor dos seus olhos ou dos seus cabelos, saber
como é o som da sua risada, seus gostos musicais e até mesmo as manias
chatas. No momento em que você está lendo esta carta, já sei de tudo isso,
mas é engraçado tentar escrever pensando em um futuro tão longe.
Levada pela emoção do momento, nessa hora eu já não continha mais
minhas lágrimas, Júlia me mataria pela maquiagem borrada.
— Não sei como vamos nos encontrar, quem é você ou mesmo o seu
nome. Mas, para hoje, eu oro por nós, para que esse caminho construído
sirva de testemunho aos outros, que Deus use a nossa história para a glória
dEle. Oro para que você se apaixone a cada dia mais por Ele, porque um dos
meus principais pré-requisitos é um homem apaixonado por Jesus e por fazer
a Sua obra. Bom, até daqui a algumas horas, quando nos encontraremos no
altar rumo ao “sim” e finalmente daremos nosso primeiro beijo. — Dei uma
risadinha baixa, nervosa. — Com amor, Marta…
Fiquei alguns segundos em silêncio até perceber a sua mão estendida para
mim. Criei coragem de olhar para cima e vi que não fui a única a chorar, a
barba molhada de Gabriel denunciava suas lágrimas também.
Cruzando nossos dedos, meu noivo encerrou aquele momento com uma
oração por nós dois e pelo nosso casamento, pedindo sabedoria,
discernimento e paciência.
— Te encontro no altar, querida futura esposa — ele sussurrou segundos
antes de Carla entrar, levando-o para fora.

Ainda me recordo um pouco do cheiro do lugar, era um perfume floral que


dominava todo o ambiente. Também me lembro de escutar meu próprio
coração batendo e do suor das minhas mãos durante toda a cerimônia. Mas
as memórias eram em lapse e, ao mesmo tempo, minhas mais preciosas
lembranças.
Cada passo para dentro da igreja parecia como se eu estivesse flutuando.
Quando meus olhos encararam os de Gabriel, tudo parou, não via mais nada,
não conseguia desviar minha atenção dele.
Não percebi quando chegamos ao lugar marcado, nem quando papai me
deu um beijo na testa entregando-me para meu noivo, mas lembro do toque
das nossas mãos quando Gabriel me segurou, dos seus olhos verdes
emocionados encarando-me, a lágrima solitária descendo, seu sorriso
chamando-me de Martinha como forma de provocação.
Naquele momento, me veio a conversa no casamento de Nina:
“Aposta quanto que ela vai chorar?” Gabriel sussurrou quando
anunciaram a entrada da noiva.
“Nada, toda noiva chora no dia do seu casamento” respondi, rindo.
“Ah, é? E você vai chorar no seu?”
“Não duvido muito, é um dia emocionante.”
“Pois é, acho que até eu vou chorar no meu” revelou com uma pitada de
sarcasmo na voz.
“Espero estar viva para ver Gabriel Mendes chorando.”
— Você chorou! — sussurrei pouco antes de pararmos no altar, sem
acreditar que eu realmente havia presenciado isso e ainda era no meu
casamento com ele.
— Você também! — Provocou-me de volta sob o olhar atento do pastor.
Eu estava casando com o amor da minha vida.
Minha mente estava tão enevoada, revivendo todos os momentos que nos
trouxeram até ali, que só fui voltar para a terra quando senti o aperto de
Gabriel na minha mão, alertando o ínicio dos votos.
Graças a Deus ele foi o único a perceber a minha desatenção e seria o
único que tiraria sarro comigo até o fim da vida por causa disso.
— Eu, Gabriel Mendes Neto, tomo você, Marta Carolina Almeida, como
minha legítima esposa, prometo amar-te e respeitar-te na alegria e na
tristeza, na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, por todos os dias da
minha vida, até que a morte nos separe; de acordo com a santa vontade de
Deus e do presente regulamento, me comprometo a você.
Foi inevitável o susto quando a aliança gelada tocou meu dedo anelar,
apenas Gabriel viu, com seu sorriso sorrateiro.
As palavras de Igor foram repetidas automaticamente pelos meus lábios e,
também pegando a aliança, encaixei-a no dedo do meu amado. Nunca me
esqueceria do seu olhar naquele momento.
Eu estava casada.
— Diante de Deus, eu vos declaro marido e mulher. Pode beijar a noiva!
Eu estava definitivamente casada.
Não tive reação quando Gabriel gentilmente segurou minha cintura, seus
olhos percorreram meu rosto, era assustador o carinho que eu sentia
simplesmente através daquele simples gesto, da profundidade daqueles olhos
verdes encarando-me.
Puxando-me, ele abaixou a cabeça, dando um lento beijo na minha testa,
quando eu esperava algo a mais, ele sussurrou no meu ouvido:
— Vou deixar nosso primeiro beijo apenas para nós mesmos!
Sorri, envergonhada, abraçando-o, mas não consegui evitar a risada com
os gritos de frustração dos convidados. Principalmente Dave e o lamúrio
soltado por Igor no microfone.
Eu estava casada.
— Olha aqui, senhor Gabriel Mendes, eu não acredito que esperei anos
para ver o primeiro beijo do meu amigo e ele faz um descaso desses! —
David chegou após o fim da cerimônia apontando o dedo para a cara do
Gabriel.
— Amor, por favor, se comporta! — Nina deu um tapa no ombro dele e
abaixou “gentilmente” sua mão. — Desculpa por… isso. O casamento foi
lindo, ain, meus pombinhos estão casados, iti.
Abaixei a cabeça e imediatamente senti o aperto da mão do meu esposo na
minha cintura.
— Fica tranquila, Ni, já estou acostumado com esse aí.
O resto da festa se passou naquele clima de parabenizações, também
conheci alguns parentes da família de Gabriel e um dos tios dele veio dizer
que já sabia de tudo desde a festa à fantasia no aniversário de Júlia.
Falando nela, minha amiga estava radiante de felicidade, parecia mais
feliz no casamento do irmão do que quando fosse o dela própria. Mamãe era
outra toda sorrisos.
— Você está linda, minha esposa! — Gabriel sussurrou chegando por trás
e fazendo-me levar um susto. — Nunca vou me acostumar a te chamar
assim.
— Bobo!
A segunda parte do casamento, a festa, também passou voando, nem
percebi ter chegado ao fim, quando restava apenas nosso círculo íntimo de
amigos e nossas famílias.
— Vocês dois — Mariana gritou sinalizando para nós —, zarpem daqui,
não vão tocar em uma peça para arrumar o salão.
Eu tentei protestar, porém nem ela nem ninguém quis saber. Gabriel
também não parecia nem um pouco disposto a ajudar.
Antes de me permitir entrar no carro, meu marido — era assustador pensar
nisso — teve a brilhante ideia de colocar uma venda nos meus olhos.
— É uma surpresa, você não pode ver o caminho — explicou, ajudando-
me a encaixar a saia do vestido dentro do veículo, pois eu mesma não
enxergava nada. — Vingança por mais cedo…

— Gabriel, eu não gosto de ficar curiosa!


Faziam exatas duas horas que saímos da igreja para a tão temida lua de
mel. Cada minuto foi torturante, mas ele me acalmava, acariciando minha
mão. De repente senti o ritmo do carro diminuindo, ele tinha entrado em
uma cidade, pelo tanto de curvas, e alguns minutos mais tarde o barulho de
muitas águas se manifestou.
— Onde estamos? — questionei, já aflita.
Ele não respondeu nada, apenas parou o carro. Ouvi a porta dele sendo
aberta e, poucos minutos depois, a minha. Estava preparada para tirar a
venda, mas o arrepio com os dedos de Gabriel tocando na minha perna me
paralisou. Ele tirou meus saltos e foi impossível não dar um gritinho quando
ele me pegou no colo de surpresa.
Protestei, e não adiantou nada. Depois de uma pequena caminhada, avisou
que estava me descendo.
— Terra?
A sensação nos meus pés era como se eu tivesse pisando na terra pura,
sentia os grãos grudando na minha pele, mas ao mesmo tempo era úmido,
como se fosse terra molhada. Ele também não respondeu, apenas sussurrou
“Feliz presente de casamento” e tirou minha venda.
Seria impossível descrever meus sentimentos naquele momento ou a
sensação de ver aquele enorme aglomerado de águas na minha frente.
Virei, sem entender, e ele logo explicou:
— Você disse uma vez que nunca conheceu o mar e sonhava em ver, então
quis te dar isso como presente. Sua primeira boa lembrança na beira da
praia.
Precisei me esforçar para me recordar daquele momento, era assustador
que ele lembrasse de uma frase tão pequena e sem importância dita há meses
em Porto das Rosas, nem estávamos juntos na época.
Abracei-o sem me importar com discrição, ele finalmente era meu marido.
Trocamos algumas poucas conversas sobre a beleza das águas banhadas pela
lua cheia.
— Sabe, mas tenho uma visão muito mais bela do que o mar e a lua para
admirar neste momento.
Paralisei quando ele lentamente afastou um fio de cabelo do meu rosto e
me olhou por longos segundos. Fechando meus olhos, senti Gabriel
aproximando-se para dar nosso primeiro beijo.
E apenas no momento em que nossos lábios se tocaram foi que eu percebi
que eu casei com o meu primeiro amor. Mesmo com todos os contratempos e
equívocos, eu casei com o único homem que amei em toda a minha vida.
Epílogo
“Hoje é real aquele sonho meu
Hoje sou feliz e Te agradeço, Deus
Por ter encontrado alguém que me faz bem
E pelo Teu cuidado que nos mantêm
Valeu a pena cada oração que fiz
No Teu amor divino, sou eterno aprendiz
Agora finalizo a minha oração
Mais uma vez, obrigado
Por cuidar do meu coração”
(Ariane - Oração de Amor)

— Catarina, Benjamin, parem de brigar! — Marta gritou, mas sabia ser


em vão, não iriam ouvi-la.
Os irmãos, com apenas dois anos de diferença, discutiam dia e noite. E o
motivo do momento era a menina ter mexido nos papéis do garoto, que, para
provocar, desmembrou a boneca dela.
— Amor, cheguei! — Gabriel procurou sua esposa e a encontrou em
prantos no escritório. — O que aconteceu? — ele questionou, passando seus
braços ao redor dela e puxando-a ao seu encontro, tentando acalmá-la.
— A Catarina e o Benjamin não param de discutir, eu consegui colocar os
gêmeos para dormir só agora e esses dois vão acordá-los de novo. Essas
crianças vão me deixar louca! — Ela suspirou, ainda encostada ao peito de
seu marido.
— E o Luiz?
— O único sentado quietinho brincando com as peças de montar. — Ela
deu um riso baixo.
— Sinto que ele vai ser quietinho igual à mãe — falou, rindo, enquanto
pensava no filho do meio. — Já volto! — Ele lhe deu um beijo rápido e saiu
porta afora.
Alguns minutos depois, como em um milagre, a casa silenciou, não era
possível escutar um único som das bocas dos pequeninos.
— O que você fez? — Marta riu ao ver Gabriel voltar e trancar a porta,
garantindo que as crianças ficariam do lado de fora.
— Segredos paternos, mas não vão incomodar.
— Gabriel…
— Eles conseguiram — ele murmurou, abraçando-a por trás, e encostou a
cabeça em seu pescoço.
— Eles quem? — Marta questionou totalmente alheia ao acontecimento.
— O David e a Nina, acabei de voltar da casa dele.
A mulher repentinamente se virou para ver o marido; pelo semblante, ela
entendeu não ser uma brincadeira e realmente os amigos conseguiram a
adoção.
Mesmo antes da descoberta da esterilidade de Carina, os Hernandes já
estavam na fila de adoção, chegaram a até mesmo voltar a morar em Curitiba
para facilitar esse processo das papeladas. E a resposta positiva chegou no
mesmo momento que os Mendes decidiram passar alguns anos no Brasil até
os filhos mais novos alcançarem pelo menos os dois anos.
— Ai, meu Deus, que bênção, como a Nina está?
— Acho até difícil de descrever, ela chorava sem parar. Aliás, o Dave
perguntou se podem vir com os dois amanhã, para poder aproximar o Joshua
e a Raabe dos meninos, e eu deixei, espero que você não fique brava. — O
marido colocou a mão no bolso, esperando a resposta, ele não imaginou
encontrar Marta naquele estado quando chegasse em casa, então teve medo
de ela negar.
— É óbvio que não tem problemas, eu não vejo a hora de abraçar a Nina.
Gabriel, sorrindo, envolveu novamente sua esposa em seus braços e, nisso,
viu os papéis atrás dela.
— O que você está fazendo? — questionou, olhando a mesa.
— Terminei a carta do Davi e da Hada — ela falou, orgulhosa, pegando os
dois envelopes já lacrados, mostrando-os.
— Você e suas cartas.
Então, o casal foi levado para doze anos atrás, quando, assim que
chegaram da Lua de Mel, Marta entregou a Gabriel o baú de cartas escritas
por ela para ele desde a adolescência.
— Não sei como você teve coragem de ler aquilo. — Ela escondeu o rosto
em mãos, envergonhando-se de suas palavras infantis.
— Você acha que eu perderia a oportunidade de conhecer a Martinha
adolescente? Foram quantas mesmo? Cento e dez?
— Cento e cinco — ela corrigiu —, cento e cinco cartas de pura vergonha.
— Mas eu amei a partir da 95, quando você começou a se apaixonar por
esta lindeza aqui.
— Os anos passam e você continua convencido! — Ela lhe deu um beijo
rápido. — E eu não estava me apaixonando por você, só estava te
mencionando, já que apareceu na minha vida.
Ele deu de ombros, como se não fosse uma explicação convincente o
suficiente.
— Você já pensou quando vai entregar para eles? — Gabriel voltou ao
assunto dos filhos.
— Então, eu estava pensando em conversar com algum advogado, alguém
que cuida de testamentos, algo assim, sabe? E queria que entregasse quando
eu morresse. — Ela mordeu o lábio, esperando a resposta do marido.
— Uma boa forma de se despedir, pelo jeito vou precisar escrever umas
para não perder o posto de pai favorito — gracejou, arrancando uma risada
dela. — Eu já disse que você é a mulher mais linda do mundo? —
perguntou, mudando totalmente o assunto.
Marta revirou os olhos, mas logo voltou a se aconchegar nos braços de
Gabriel, sentindo o carinho que tanto ansiava.
Não foi uma vida fácil de casados, nem um pouco, ambos eram pecadores,
discutiram diversas vezes por motivos bobos.
Mas Deus era o alicerce daquela aliança, sempre o centro de suas vidas.
E, de uma simples oração de amor de ambas as partes, deu-se origem a
uma linda família, em que todos foram levados a colocar Cristo como centro
de suas vidas.

Fim!
Agradecimentos
Enfim terminamos, nem sei como descrever o que estou sentindo neste
momento.
São quase 4 anos com o Gabriel e a Marta na cabeça e pouco mais de 3
desde que comecei a realmente escrever a primeira versão.
"Uma Oração de Amor" foi construído por muitas mãos, não apenas as
minhas, que escreveram. E, para alguém detalhista e jovem emocionada
como sou, vai ser impossível não citar todas as pessoas que fizeram parte
disso tudo — ou ao menos tentar (quando digo muitas são muitas mesmo
kkkk)
Acima de tudo, quero agradecer a Deus, aquEle que me acompanhou em
cada processo de escrita deste livro, desde aquele sonho jamais saído do
papel até a última vírgula. Foi durante a escrita deste livro que Ele trabalhou
muitas coisas dentro de mim, então posso dizer que também sou uma Marta
por aí.
Depois, aos meus pais, por sempre acreditarem em mim, me incentivarem
e investirem nos meus sonhos. Este livro não teria saído sem o
empurrãozinho de vocês
Ao projeto Revelando Autoras: Maina, Aline e Dulci. Meninas, muito
obrigada por terem pegado na minha mão e me guiado na escrita, com
certeza eu jamais teria conseguido estruturar tudo isso. E principalmente à
Aline, que betou o começo de UOA, Line, obrigada por acreditar, puxar
minha orelha e me empurrar, você faz parte disto tudo.
À Thays, você sabe como foi importante neste processo. Você foi a
primeira a me ouvir falar e, literalmente, se não fosse você, os Mendes nunca
teriam vindo ao mundo. Obrigada por ter aguentado cada surto, ter me
incentivado, aconselhado e betado a primeira versão. Agradeço a Deus pela
sua vida!
À Lau! Muito obrigada por ter aceitado, do nada, betar o livro, por cada
conselho sincero, elogios e incentivo. Nem consigo imaginar o que seria da
história se não fosse a sua ajuda (na real consigo, sim, e seria péssimo kkkk).
Obrigada, Ana Luiza e Lavínia, por terem betado toda a história, me
aconselhado sobre detalhes que eu deveria mudar e por cada surto com os
comentários, foram muito importantes para continuar.
Ao Closet, amo vocês, meninas, obrigada por terem suportado meus
momentos surtada, pelos puxões de orelhas, pelas lágrimas, elogios e
alegrias. 
À Vivi, quase certeza que você nunca vai ler isto, mas, se ler, vai entender
bem o porquê deste agradecimento. Obrigada por ter me escutado e
aconselhado nos momentos que eu mais estava perdida sobre o que fazer da
vida, obrigada por ter sido um exemplo de discipuladora. Apesar de nunca
ter atuado diretamente no livro, você foi mais do que importante na minha
construção (cof, cof, Marta), amo sua vida!
À Bruna, amiga, não tenho palavras para dizer o quão grata sou pela sua
amizade. Agradeço a Deus pelo momento que tive a ideia repentina de te
enviar o livro para betar (eu amo a aleatoriedade daquele dia) e por todo o
seu apoio em cada momento, pela sinceridade nas opiniões e incentivo nos
momentos que eu queria simplesmente desistir de tudo.
À Wildymara, obrigada pela sua betagem na primeira parte do livro e pela
sua sinceridade. Foram seus comentários que me enfiaram em uma crise de
identidade por longos meses e tornaram este livro ainda melhor.
À Débora. Muito obrigada por aceitar o desafio da revisão e ir muito além
das minhas expectativas, pelo seu carinho e sua dedicação com a Marta e
com o Gabriel. Este livro só está como está graças a suas mãos habilidosas.
Às leitoras do Wattpad: vocês são incríveis! Obrigada por abraçarem
“Uma Oração de Amor” mesmo com seus 1000 defeitos, votarem,
comentarem e me incentivarem. Espero não ter tirado nenhuma cena favorita
de ninguém kkkk.
Ao Clube dos Mendes, amo vocês, gurias. Obrigada por todo o apoio.
Temos muitos outros nomes que trabalharam indiretamente neste livro,
mas seria impossível citar todos. Obrigada a cada um que me incentivou na
escrita, mesmo que de forma indireta.
E, por fim, a você que está lendo neste momento (se chegou até aqui, rs):
obrigada por ter dedicado seu tempo e dinheiro para conhecer mais da Marta
e do Gabriel.
Minha oração é para que este livro possa tocar de alguma forma a vida de
cada um que leu, que vocês tenham sempre Cristo como centro dos seus
corações e nunca se esqueçam de que Ele deve ser nosso maior Amor.
 

 
[1] Termo equivalente a “menino, rapaz”.
[2] Walkman® é uma marca popular de uma série de tocadores ou leitores de áudio portáteis
pertencente à Sony. O termo Walkman também é utilizado para se referir a aparelhos portáteis
similares de reprodução de áudio estéreo de outros fabricantes.
[3] Termo equivalente a “menina”
[4] Termo muito comum em Curitiba e região, equivalente a “menino”
[5] Termo dos anos 80 equivalente ao nosso “ficar” atual.
[6] Esse poema foi escrito por Abigail Hillary exclusivamente para o livro.
[7] Uma patota é uma turma de amigos, equivalente ao “galera” de hoje em dia.
 
[8] Salgadinho feito de milho
[9] Jogo típico paranaense, onde, em resumo, se usa dois tacos para rebater a bola. Quando o
participante larga eles no chão, significa que desistiu de jogar.
[10] Sinônimo de mentira. Alguém que dá um “dolangue” está inventando histórias.
[11] O termo significa que alguém está dizendo algo sem sentido algum.
[12] Refrigerante típico da região leste do Paraná
[13] Termo usado para uma comida com aparência estranha.
[14]
Escatologia é o estudo dos acontecimentos do fim dos tempos descritos na Bíblia. A palavra
escatologia significa "estudo das últimas coisas". O fim dos tempos é um tema que surge em muitos
livros da Bíblia e a escatologia procura organizar e interpretar essa informação.
[15] Ficar de bode é o mesmo que estar de mau humor.
[16]
WILSON, Douglas. Sua Filha em Casamento. 2. ed. [S. l.]: Editora Clire, 2019. 126 p.

[17] Significa uma pessoa muito chata, insuportável. Essa expressão surgiu por causa das
galochas de borracha, que as pessoas colocavam por cima dos sapatos em dias de chuva para não sujá-
los. A gíria surgiu em referência às pessoas que entravam na casa dos outros sem tirar essas galochas,
sujando tudo no caminho.
[18]
Significa o mesmo que nada, coisa nenhuma.
About The Author
Lyta Racielly
 

Fã número 1 de clichês românticos, Lyta Racielly é uma jovem paranaense


da geração Z.

Apaixonada por livros, desde a infância é uma leitora nata e na adolescência


começou a escrever as histórias que gostaria de ler, mas nunca encontrou.

Atualmente está cursando o bacharelado em Teologia, além de trabalhar com


design editorial.
Books By This Author
Um Amor Arranjado (romance de época)
 
Grace Salun estava feliz com sua vida. Ainda que as exigências de seu título
de princesa por vezes a chateassem, se satisfazia com a amizade dos irmãos
e o serviço ao seu povo.

Martin Halley se viu viúvo cedo demais. Com o título de rei de Porto das
Rosas sobre seus ombros, a necessidade de casar novamente não podia mais
ser adiada e um recomeço se impõe a ele.

Grace não quer casar. Martin precisa fazer isso. Uma aliança entre os reinos
é selada e assim os caminhos dos dois se unem em um casamento arranjado.

Entre brigas, mal-entendidos, traumas do passado e uma intriga política, esse


casal precisará superar as diferenças para conviver em harmonia.

E talvez só um milagre de Natal salvará o relacionamento dos dois!

Agnus Dei
 
Uma noite especial, duas vidas e uma canção que ressoa no mais profundo
da alma.

Hosannah Eloham Shamayyim é uma jovem que nasceu em Yaacov e


sempre soube que um dia seria chamada para a sua missão no Além-Reino.
Quando a hora chegou, Hosannah viveu um momento muito além do que
jamais sonhou, só não imaginava como aquele grande dia ficaria marcado na
história de sua família.

Já Eloah nunca conheceu a alegria, tendo crescido no Além-Reino, jamais se


interessou pelo Rei ou por seus feitos, tudo que ansiava era apenas calar as
vozes do seu interior. Ela só não esperava que, ao tentar tirar sua vida, o
próprio Cordeiro enviaria alguém para mostrar a verdadeira luz e a paz que
excede todo o entendimento.

Mas não pense que a história é sobre elas, na verdade é sobre alguém muito
mais importante: o Cordeiro do Rei, que tira o pecado do Além-Reino.

Só me resta Confiar
 
Casar era o sonho de Elisabeth. A moça estava com quase tudo certo, ao
menos o básico do básico ela já tinha: o noivo!

Era uma linda história de amor, resultado da convivência em uma base


missionária onde os dois serviam. Um verdadeiro conto de fadas.

Porém, nem tudo eram flores. Como missionários, eles tinham uma
“pequena” dificuldade na área financeira para o casamento, e uma grande
cartela de amigos para convidar.

Em meio a romance, renúncias, golpes financeiros, viagens caras para outros


países e espírito natalino, a única coisa que restará é confiar na boa, perfeita
e agradável vontade de Deus.

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