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Capítulo III

Estabelecimento da Filiação
com procriação medicamente assistida (PMA)

DIVISÃO I - Generalidades

1006. Neste capítulo, apenas se dará conta das especialidades legais


que a assistência médica à procriação acrescenta às regras comuns sobre
estabelecimentoda filiação;não se fará —longe disto —uma exposição
completa sobre Procriação Medicamente Assistida, que seria despropositada.

1006-A. As especialidades resultantes da utilização da PMA são poucas


em número, massão intensas.
O fundamento principal dos desvios à regras gerais resultam da
capacidadetécnica, em PMA, de doar gametas femininos e masculinos, e
de doar embriões. Mas nem sempre que isto acontece se afastam as regras
ié *.-gerais.A seguir enunciam-se os tipos de casos relevantes.
Na grande maioria, os casais procuram um auxílio médico relativamente
modesto:apenas querem vencer a dificuldade de fecundação entre o
àq in•OVócito
da mulher e o gameta masculino do outro membro do casal. Obtido
-este resultado, a mulher vai gerar o embrião formado, vai ter o parto, e a
-maternidade sempre lhe seria atribuída pelas regras gerais (art. 1796.9,
11.?1),tal como a paternidade seria atribuída ao homem pela presunção de
' paternidade do marido ou pelo reconhecimento (art. 1796. 2, n.9 2).

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Noutros casos, o membro masculino do casal é infértil e, por isso, a 1007. A LPMA usa o verbo "determinação" da filiação, em vez de
mulher é inseminada com esperma de um dador. Continua a atribuir-se •$estabelecimento" da filiação,possivelmentepara diferenciar o regime
a paternidade ao homem do casal, e apenas não se segue a lógica que que o código civil consagra. Além disto, na versão original, usava
sustenta a presunção da paternidade do marido —a probabilidade de ele . a expressão "determinação da paternidade", e na versão de 2016 usa a
ser o progenitor. j, expressão "determinação da parentalidade" porque introduziu a hipótese
Em casos menos frequentes, e mais recentes, a mulher precisa de kit',de estabelecimento da maternidade (dupla maternidade); e deixou de falar,
beneficiar de um ovócito doado. Nestas hipóteses, se a mulher gerar a criança -pela mesma razão, da presunção de paternidade prevista no art. 1826.2.
e tiver o parto, a mesma lei geral continua a atribuir-lhe a maternidade; e a
lei específica da PMA afirma que a dadora de ovócitos não poderá assumir
a maternidade (arts. 10.0, n.9 2, e 27.% LPMA). Por sua vez, se o homem do DIVISÃO II - Princípios fundamentais do
casal tiver contribuído com o gameta masculino será o pai jurídico, como Estabelecimento da Filiação
sempre.
Em hipóteses também minoritárias, a mulher do casal gera um embrião SECÇÃO I - Princípios constitucionais
doado. Nem ela nem o membro masculino do casal contribuem com material
genético; a parentalidade será estabelecida pelas regras combinadas relativas 1008. Valem aqui os princípios constitucionais atrás expostos.
à maternidade e à paternidade com gametas doados, referidas nos dois casos O princípio da não discriminação —para além do sentido geral que
anteriores. do art. 36.%n.2 4, CRep —tem um sentido específico quando se
Ainda mais excecional, regista-se a hipótese de gestação de substituição, - refere ao estabelecimento da filiação com PMA. Agora, não se trata apenas de
em que uma mulher assegura a gestação em favor de um casal. O art. 8.2da afastar a discriminação entre filhos nascidos no casamento e filhos nascidos
LPMA regulava esta matéria, em Portugal, até que o ac. do TC n.Q225/2018, fora do casamento, mas especificamentede afastar a discriminaçãoque
de 24 de abril, declarou a sua inconstitucionalidade,por várias razões.A possa resultar do modo de nascimento com assistência à procriação, quer
Assembleia da República voltou a aprovar normas semelhantes e o TC voltou dentro quer fora do matrimónio. A LPMA, alterada em 20 de junho de 2016,
a declarar a inconstitucionalidade, no ac. n.@465/2019,de 18 de Outubro, a discriminação "baseada no facto de se ter nascido em resultado
pelo que foi reposta a proibição da gestação de substituição que constava da utilização de técnicas de PMA" (art. 3.2, n.2 2); e pode dizer-se que esta
do art. 8.9 da lei anterior a 2016 (cfr. o art. 282.%CRep). norma é um simples corolário do princípio constitucional da igualdade
Desde 2016, também é possível o acesso de uma mulher que não se (art. 13.%CRep) e uma concretização da norma constitucional que garante
apresenta dentro de um casal e que, portanto, tem de receber um gameta proteção "contra quaisquer formas de discriminação" (art. 26.2, n.2 1, CRep)
masculino doado —cfr. o art. 20.% n.Q3, LPMA. onde, portanto, aquele art. 3.2, n.2 2, baseia a sua natureza de princípio
Deve, por último acrescentar-se que, ao lado de um procedimento de constitucional.
PMA relativamente a uma beneficiária, pode ser acrescentada uma outra
mulher que manifesta a vontade de também ser considerada como mãe —cfr.
SECÇÃO II Princípios de ordem pública do direito da filiação
o art. 20.% n.9 1, LPMA.
A disciplina destas especialidades consta da Lei n.2 32/2006, de 26 de
julho, modificada pelas Leis n.Q59/2007, de 4 de setembro (Responsabilidade S I.e -- Princípio da verdade biológica
penal das pessoas colectivas e equiparadas), n.2 17/2016, de 20 de junho
(alarga o âmbito dos beneficiários da PMA) e n.9 25/2016, de 22 de agostO 1009. No âmbito do estabelecimento da filiação com PMA, o princípio da
(gestação de substituição) —doravante LPMA. _yerdade biológica continua a ser aplicado em grande medida. Na verdade,

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a maior parte das intervenções ocorre dentro de um casa1270, isto é, sem a Nestas exceções —em que não há coincidência entre a verdade jurídica
intervenção de gâmetas de um dador, e deste modo os pais jurídicos vêm a e a verdade biológica —a lei da PMA permitiu que a paternidade ou a
coincidir com os pais biológicos. maternidade jurídicas assentassemna vontade de desenvolver um projeto
E ainda quando a mulher do casal gera um embrião que não teve a sua contri- Itparental (cfr., acima, os n. gs 781, 791 e 826).
buição genética (um seu óvulo), a gestação e o parto definem a sua
maternidade S 3.2 —Princípio da taxatividade dos meios para o Estabelecimento da
Por outras palavras, a utilização de técnicas de PMA dentro do casal Filiação
é quase irrelevante do ponto de vista jurídico. Mesmo que o casal tenha
precisado de intervenções próprias da medicina da reprodução —mesmo 1011. O princípio da taxatividade dos meios para o estabelecimento da
que a mulher tenha usado um ovócito doado, as regras jurídicasdo filiação significa —também aqui —que os vínculos de filiação se estabelecem
estabelecimento da filiação pouco se alteram, com a condição de a mulher apenas através dos modos previstos imperativamente na lei, com exclusão
do casal ter feito a gestação e o parto. quaisquer acordos privados através dos quais se pretenda constituir
Finalmente —sem um casal —desde a entrada em vigor do novo enquadra- vínculos diferentes ou com fundamentos diferentes. Sendo assim, este
mento legal, em 2016, as mulheres sós que recorram a técnicas de PMA princípio serviria para rejeitar os efeitos jurídicos de um acordo de gestação
e sejam capazes de fazer a gestação serão as mães biológicas e também as de substituição, quando o acordo que se situasse fora dos casos de gestação
mães jurídicas. substituição eventualmente admitidos pela lei, ou totalmente proibidos
pela lei. O princípio também serve para fundamentar a nulidade, por
S 2.Q—Princípio da relevância da vontade '3if exemplo, de um acordo entre um homem que quer ser pai jurídico e um
casal que se dispõe a gerar a criança.
1010. Porém, na PMA, reconhecem-se casos em que não pode dizer-se
que prevalece a verdade biológica.
Em primeiro lugar, sempre que se recorra a gâmetas masculinos de fora DIVISÃO III - Estabelecimento da maternidade
do casal, o estabelecimento da filiação jurídica atribui o estatuto de pai a
uma pessoa que não foi pai biológico, registando-se desvios ao princípio do SECÇÃO I - Generalidades
respeito pela verdade biológica, tal como ele costuma ser entendido: será o
marido ou aquele que vive em união de facto com a mulher que será o pai 1012. Um dos grandes objetivos das alterações recentes da Lei de 2006
jurídico, embora não tenha sido o progenitor. Este caso é bastante antigo, (Lei n.g 25/2016) foi o de permitir o acessoàs técnicas de PMA por todas
no quadro da PMA. , as mulheres que pretendem ser mães sem a colaboração de um homem,
Em segundo lugar, desde 2016, a mulher que estiver casada ou viva em pelos meios comuns. A norma fundamental é a do art. 4.%n.2 3, LPMA, que
união de facto com a beneficiária das técnicas de PMA poderá assumir o permite a utilização das técnicas "por todas as mulheres independentemente
estatuto de mãe sem ter sido progenitora (art. 20.9, n.Q1, LPMA). do diagnóstico de infertilidade".
Por fim, haveria também desvio do critério habitual nos casos de gestação A admissão de certos casos de gestação de substituição foi o segundo
de substituição, porque a mulher que viria a assumir o estatuto de mãe não grande objetivo daquela alteração legal.
teria sido a gestante (art. 8.9, n.2 7, LPMA, declarado inconstituciona1 271). Note-se que, ao contrário do acesso livre de todas as mulheres às técnicas
de PMA, mesmo por motivos de simples conveniência (art. 4.2, n.Q3,
http://
270 CNPMA, Atividade desenvolvida pelos Centros de PMA em 2015, p. 7, acessível em LPMA), a validade da gestação de substituição estaria limitada a situações
de necessidade clínica, nos termos do art. 8.9, n.2 2, LPMA (entretanto
www.cnpma.org.pt/Docs/RELATORIO_ATIVIDADE_PMA201S.pdf
pela lei ante-
271Tendo sido repristinada a proibição da gestação de substituição imposta U' declarada inconstitucional —cfr., adiante, os n. Qs 1019 e segs.).
rior a 2016 (art. 8.9),
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SECÇÃO II - Maternidade baseada na "verdade biológica" que seja cônjuge ou viva em união de facto com a mãe biológica pode registar
uma maternidade fundada no consentimento para a utilização das técnicas
SUBSECÇÃO I - "Determinação da maternidade" de PMA dentro do par, e na vontade de assumir também um estatuto legal
de mãe (art. 20.2,n.0 1). Mais do que assumir responsabilidades parentais
1014. O estabelecimento da maternidade segue, em princípio, as regras , sobre o filho biológico de outra mulher, ela assume o estatuto jurídico
gerais. A utilização das técnicas de procriação assistida não afasta a norma de mãe. Sendo assim, a regra de que a mãe é a mulher que tem o parto
de que a mãe é a mulher que tem o parto (art. 1796.%n.9 1). Na verdade, não deixa de se aplicar quanto a uma das mulheres; mas a disposição legal
se forem usadas técnicas de inseminação ou de fertilização in vitro —venha referida permite acrescentar uma segunda mãe, cujo estatuto resulta da
o sémen de onde vier —a mulher que tem o parto é a mãe jurídica;e se sua vontade de participar na PMA e de assumir um papel igual ao da mãe
também for usado um óvulo de uma dadora, a mulher que gerar o embrião biológica.
será a mãe jurídica.
Como se vê, impõe-se o respeito da "verdade biológica" na versão de
S 1.2 —A expressão da vontade
"verdade gestacional" (cfr. acima, o n.e 791-A).
1016. A vontade de assumir a parentalidade exprime-se através de um
documento escrito que a lei define como habitualmente, quando antecipa
SUBSECÇÃO II - Impugnação da maternidade
a prática de um ato médico: um "consentimento informado"
O conteúdo dos deveres de informação —genericamente previsto no
Quando a maternidade resultou da utilização de técnicas de PMA, todo
art. 14.%n. Q2, LPMA —deve ser descriminado pelo Conselho Nacional
o processo de procriação é acompanhado, sabe-se que o casal forneceu os
para a Procriação Medicamente Assistida (CNPMA)272para cada tipo de
gametas, e não haverá dúvidas possíveis de que, a seguir, a mulher gerou e
intervenção (art. 14.%n.2 3, LPMA).
teve o parto, pelo que não é verosímil que alguém proponha uma ação de
A declaração escrita de consentimento é apresentada ao médico
impugnação da maternidade.
.responsável (art. 14.%n.Q1, LPMA).
E se, porventura, a mulher do casal recebeu ovócitos doados, nem por
O consentimento é livremente revogável por qualquer dos beneficiários
isso é verosímil que alguém impugne a maternidade. Por um lado, porque
até ao início dos procedimentos (art. 14.2, n.2 4, LPMA).
ela fez a gestação do embrião obtido e teve o parto (cfr. o art. 1796.%
n.2 1); por outro lado, a dadora é expressamente afastada do estatuto
1017. A lei não regula a possibilidade de o nome do filho ser composto
de mãe (cfr, os arts. 27.Qe 21.9 LPMA). O caso pode ser diferente se a por apelidos que pertençam às duas mães. Na verdade, o código civil
utilização de ovócitos alheios resultou de erro e configura uma violação das
pressupõe a escolha de apelidos do pai elou da mãe (1875.2), e ainda do
legesartis. marido da mãe que não seja o pai do filho (1876.2); o código do registo
Civilacrescenta a hipótese de a filiação não ficar estabelecida e prevê que o
declarante do nascimento [103. 2, n.2 2,Dl, ou o conservador (art. 108. 2, n.2 1),
SECÇÃO III - Maternidade baseada na vontade
escolham os apelidos a atribuir ao registando.
O Conselho Consultivo do Instituto dos Registos e do Notariado
SUBSECÇÃO I - Dupla maternidade (art. 20. g, n.0 1) já admitiu "uma interpretação atualista do art.
que viu este problema
à
1015. A lei n.9 17/2016, de 20 de junho, que alterou a LPMA, permite
mulher que teve o parto registar a maternidade biológica normal, e a mulher Vejam-se os documentos em http://www.cnpma.org.pt/cnpma_documentacao.aspx

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1876,9, no sentido que o menor poderá usar os apelidos do cônjuge da mãe que teria de vencer as normas que tendem a afastar a "adoção consensual"
independentemente do sexo"273 ou intuitupersonae,isto é, que tendem a sujeitar o processo ao encontro
impessoal entre a lista nacional de candidatos e a lista nacional de adotandos.
S 2$ —O registo da vontade de assumir a parentalidade resultante de
1020. Masjá então se discutiam vários problemas importantes que eram
PMA
regulados no art. 8.0 dessa Lei n.9 25/2016.
1018. Sendo a filiaçãoum ato obrigatoriamente sujeito a registo civil podia acontecer que a mulher que gerasse e tivesse o parto não quisesse
[art. l. g, n.9 1, b)], o estabelecimento jurídico da parentalidade tem de entregar a criança à beneficiária, para assumir ela própria o estatuto de mãe.
constar do assento de nascimento; e o conservador tem de estar habilitado Poderia dizer-se que as partes celebraram o acordo que preveia a entrega;
com a demonstração dos factos que são levados a registo. Segundo as regras que o CNPMA supervisionara o processo e homologara o contrato; e que
gerais, quanto ao nascimento e à maternidade, deve-lhe ser apresentadaa a atitude da gestante negaria as obrigações que livremente assumiu. Em
declaração que ateste o parto e o nome da parturiente (art. 102.0, n. 9s 5 e conformidade com isto, a Lei afirmava que a criança nascida "é tida como
6 CRegCiv). O que importa, neste momento, é saber como se habilita o filha dos respetivos beneficiários" (art. 8.%n.2 7, LPMA, n.2 25/2016), e
conservador a fazer o registo da parentalidade que não corresponde às esta regra clara implicaria que a mulher que pretendeu inicialmente o filho
práticas habituais, mas antes resulta de intervençõesde PMA.O texto do fosse a mãe jurídica; sendo assim,a mulher que teve o parto teria o dever
art. 20.%n.9 2, LPMA,parece bastar-se com a presença da mãe que terá jurídico de entregar a criança.
consentido no recurso à PMA pela mulher que teve o parto; parece que Mas esta solução parecia discutível. Na verdade, a Lei da PMA (n. 225/2016)
aquela presença dispensa a exibição do "documento comprovativo de que reconheceuà gestante de substituiçãoum direito de arrependimento
foi prestado o consentimento nos termos do art. 14.9" Julgo, porém, que bastante limitado: a revogação do acordo só era permitida "até ao início
o cumprimento da regulação minuciosa dos pressupostos obrigatórios do dos processos terapêuticos" (art. 8.%n.g 8, e art. 14.2, n. es 4 e 5, LPMA).
consentimento só poderia ser verificadopela exibição do documento, em A este propósito, o acórdão n.2225/2018, do Tribunal Constitucional,
qualquer caso. veio a deliberar: "Declarar a inconstitucionalidade, com força obrigatória
geral, da norma do n.2 8 do artigo 8.? [...] em conjugação com o n.2 5 do
art. 14.0 na parte em que não admite a revogação do consentimento
SUBSECÇÃO II - Gestação de substituição 'ãda gestante de substituição até à entrega da criança aos beneficiários, por
violação do seu direito ao desenvolvimento da personalidade [...1"274
1019. Nos casos em que a prática chegou a estar autorizada pela Lei " Maistarde, em julho de 2019, a Assembleiada República aprovou um
n.925/2016, a maternidade jurídica caberia à mulher que não pôde gerar e novo Decreto em que persistiu no regime que foi julgado inconstitucional. O
que beneficiaria do serviço de gestação gratuito proporcionado por outra Presidente da República, chamado a promulgar o diploma, optou por enviá-lo
mulher, afastando as regras gerais. Na verdade, se fossem aplicadas as regras ara o Tribunal Constitucional, para efeitos de fiscalização preventiva. O
gerais, a maternidade caberia à mulher que tem o parto (art. 1796.9, n.2 1); e TC voltou a declarar a inconstitucionalidade do regime, pelo acórdão
a mulher que queria ser a mãe jurídica do filho só poderia pretender atingir 465/2019, de 18 de setembr0 27S
.
este objetivo através de uma adoção, por acordo com a gestante, sendo certo
Acórdãon.9225/2018,de 24 de abril, proc. n.2 95/17, acessível em http://www.tribunal
273Parecer no Processo n.9 73/2016, p. 7/10 e 10/10, em http://www.irn.mj.pt/lRN/sections/ Constitucional.pt/tc/acordaos/2018022S.html
Acórdão n.9 465/2019, de 18 de setembro, proc. n.2 829/2019, acessível em https://www.
Vribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190465.html

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Nestas condições, valeu o art. 279.0CRep que obriga ao veto presidencial menos conservadoras quanto às possíveis consequências da celebração de
e à devolução do diploma integral à Assembleia, para alteração ou eventual 'i' um acordo ilícit0276.
confirmação. Em face destas objeções importantes, a Assembleia da República aprovou,
julho de 2019, o Decreto n.2 383/XIII em que revogou a previsão da
1021. Podia acontecer que a beneficiária não quisesse receber a , nulidade dos negócios jurídicos realizados em violação das normas da Lei
criança, rejeitando afinal o estatuto de mãe que inicialmentepretendeu, da PMA n.225/2016, tentando assim acomodar algumas críticas do Tribunal
por exemplo, porque a criança enfermava de doenças ou malfor- Constitucional.
mações.
Em último termo, valeria a norma que considera a criança "filha dos 1023. Acrescente-se que o Decreto n.2383/XIII aditou a necessidade de
beneficiários" (art. 8.9, n.2 7, LPMA, n. 2 25/2016), "sempre" [cfr. o contrato- novas cláusulas do contrato (novo art. 8.2. n.9 IS), e deu maior dignidade
-tipo, "considerandos", al.])] que, portanto, não poderiam deixar de a aceitar formal a vários direitos e deveres da gestante de substituição, trazendo
como tal. A mulher ou o casal que esperava a criança não poderia deixar de a para a lei disposições que já constavam do contrato elaborado pelo CNPMA
aceitar porque teria de correr os riscos que todos os casais correm, incluindo (novos arts. 13.9-A e 13.2-B) —tudo clarificando a tarefa de supervisão
o risco de receberem uma criança com pouca saúde. pelo órgão regulador.

1022. Devia ponderar-se o caso de se apresentar ao registo civil 1024. Porém, em face do referido acórdão n.2 465/2019, de 18 de
um estabelecimento de filiação baseado num contrato de gestação de setembro, todo o Decreto da Assembleia n.2 383/XIII teve de ser vetado e
substituição não permitido pela Lei n.2 25/2016. devolvido ao órgão que o aprovou, onde ainda se encontra.
O art. 8.%n.2 12, dessa Lei, era claro no sentido de que os acordos Portanto, a indefinição produzida pelo acórdão n.2 225/2018 quanto a
de gestação de substituição que não cumprissem as regras previstas alguns aspetos importantes do regime da gestação de substituição continua.
eram nulos. • «Indefinição" não será a palavra certa, porque, tecnicamente, foi reposta
Se fosse assim, e na falta de qualquer regra legal específica,a solução a proibição que vigorava no art. 8.2 da Lei da PMA original, de 2006 (cfr.
técnica tradicional mandaria aplicar a regra geral e considerar que a o art. 282.2 CRep); então, vale mais dizer que a proibição contém uma
mãe é a mulher que tem o parto (art. 1796.0, n.2 1). Esta solução parecia, definição suficiente, embora tenha feito retroceder as expetativas daqueles
aliás, sublinhada pela força do princípio da taxatividade dos meios para que aprovaram a Lei n.e 25/2016.
o estabelecimento da filiação:o estatuto de pai ou de mãe só pode ser
atribuído nos termos das normas próprias e imperativas, e não por qualquer Bibliografia especifica
OLIVEIRA,Guilherme de, Gestação de substituição em Portugal, in «Gestación sub-
consideração de oportunidade ou de conveniência. E se, porventura, a rogada. Principales cuestiones civiles, penales, registrales y médicas. Su evolución y
solução obtida pela aplicação da regra geral se mostrasse contrária aos consideración (1988-2019)», Madrid, Dykinson, 2019, p. 805-823; PEDRO,Rute Teixeira,
interesses da criança, deviam intervir os meios gerais da proteção das O estabelecimentodafiliação de criança nascida com recurso a contratos degestação de
substituição
de 24 de abril, in «Temas
crianças e jovens, como em qualquer outro caso. reflexõesà luz do Acordão do Tribunal Constitucional n. 2225/2018,
Mas, por um lado, o Tribunal Constitucional também declarou a de Direito e Bioética»,vol. l, Braga,Escola de Direito/Universidade do Minho, 2018,
inconstitucionalidade daquela norma, tanto porque os fundamentos da
p. 197-225.

nulidade não eram claros nem igualmente relevantes, como porque a


nulidade poderia ser declarada muito tempo depois de ser ter constituído 276Cfr. o meu GestaçãodesubstituiçãoemPortugal,in «Gestación sub-rogada. Principales
do direito
um vínculo familiar, tudo com violação da segurança jurídica e CUestiones civiles, penales, registrales y médicas. Su evolución y consideración (1988-2019)»,
manifestaram opiniões Madrid, Dykinson, 2019, p. 805-823.
à identidade pessoal do filho. Por outro lado, já se
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DIVISÃO IV - Estabelecimento da paternidade S 1.9—A expressão da vontade (remissão)

SECÇÃO I - Mãe casada ou em união de facto 1027. Para a expressão da vontade de assumir o estatuto de pai, valem
as observações feitas quanto à maternidade, no n. 2 1016, com as devidas
SU BSECCÃO I - Regras gerais do estabelecimento da paternidade adaptações.

1024-A Quando o casal contribui com os seus gâmetas, o resultado que


se obtem é o mesmo que se obteria com a aplicação das regras gerais sobre o S 2.2—O registo da vontade de assumir a parentalidade resultante de
estabelecimento da paternidade. A verdade é que a procriação é medicamente PMA (remissão)
assistida —e isto garante a origem dos gâmetas e a identidade de quem os
fornece, de tal maneira que se pode dizer que há uma prova direta da verdade 1028. Quanto ao registo da vontade de assumir o estatuto de pai, valem
biológica (genética e gestacional). Ou seja, não é verdadeiramente necessária as observações feitas quanto à maternidade, no n.2 1018, com as devidas
uma presunção de paternidade, ou um reconhecimento voluntário, quando daptações.
se tem a certeza sobre a identidade do pai; nem é possívelimpugnara
paternidade, salvo nos casos excecionaisde "consentimentodesviado" 1029. Quanto à paternidade, acrescente-se que o conservador tem em
(cfr. art. 20.%n.9 4). Por outro lado, a maternidade também fica esclarecida seu poder a certidão de casamento que lhe indica quem é o marido; e quanto
muito antes do parto e da indicação da mãe; tal como não é imaginável uma à paternidade do homem que vive em união de facto com a mãe, a presença
impugnação da maternidade, salvo casos excecionais de erro na utilização deste permite inscrever o seu nome no assento de nascimento, a título de
reconhecimento voluntário (art. 120.e CRegCiv).
dos gametas femininos.

S 3.2 —Impugnação da paternidade


SUBSECÇÃO II - "Determinação da paternidade" baseada na vontade

1030. Sempre que se utilizarem as técnicas de PMA dentro do casal, é


1025. O estabelecimento da paternidade não resulta de uma presunção
dificilconceber que o marido ou o unido de facto venha mais tarde impugnar
de paternidade do marido (art.Q1826.?),nem segue os outros modos
—salvose os termos do consentimento prestado tenham sido radicalmente
(perfilhação, averiguação oficiosa, reconhecimento judicial). A "determi-
desviados (cfr. art. 20.%n.9 4). E o homem não pode pretender mostrar
nação da parentalidade", na expressãoda lei, obtém-se atravésdo
que não é o progenitor —salvo se a intervenção médica tiver trocado os
conhecimento da identidade da pessoa que está casadaou que viveem união
gâmetas dele pelos de um terceiro, o que nos reconduziria para um caso de
defacto com a beneficiária, e que consentiuna utilização das técnicas em
intervenção de um dador, ainda que contrária às legesartis, ou ilícita.
conjunto com a beneficiária (art. 20.9, n. 9 1, LPMA). A norma não fala
expressamente em "paternidade", mas em "parentalidade",porque vale
1031. A impugnação da paternidade está prevista para os casos em
também para estabelecer a maternidade da mulher que está casada ou vive
h que se utilizam técnicas de PMA com dador de sémen. Nestes casos, por
em união de facto com a beneficiária e consentiu também na utilização das
definição, o marido não será o pai biológico, e sabe disso; seria tecnicamente
técnicas de PMA,originando assim uma dupla maternidade.
demasiado simples vir a demonstrar que não é o progenitor, numa ação de
1026. As normas sobre determinação da paternidade, relativas à pugnação. O direito português não reconheceu o direito de impugnar aos
g iCÔnjugesque celebraram um acordo sobre a utilização de um dador. O art.
inseminação "artificial", devem ser aplicadas à fertilização in vitro (art. 27•
LPMA); como a outras técnicas (art. 47. 9 LPMA). 839.9, n.2 3, exclui o direito de impugnar, nessa hipótese, ao cônjuge que

533
532
rpt,

interveio nesse acordo; e esta exclusão do direito de impugnar por quem


interveio no acordo foi estendida, (desde a versão inicial da lei, em 2006), através do recurso a essas técnicas é havida juridicamente como filha do marido
a quem vive em união de facto (art. 20.% n.e 4, LPMA) ou membro da união de facto que haja consentido no seu emprego (n.2 1 do art.
Pode dizer-se que esta preclusão do direito de impugnar constitui, afinal, 20.0 da Lei n.Q32/2006).
III —Tendo a autora recorrido à procriação medicamente assistida enquanto
uma manifestação da ideia do abuso de direito.
ainda estava casada com o recorrido e sem procurar obter o consentimento
deste (contrariando a regra da biparentalidade constante do art. 6. 2, n.2 1, da Lei
1032. As restrições mencionadas não valem, porém, relativamente ao 32/2006) e tendo este, após a reconciliação do casal, acompanhado a gravidez,
filho, que mantém o direito de impugnar nos termos gerais; na verdade, as -o nascimento e os primeiros meses de vida da criança, a registado como filha
restrições são claramente expressas e recaem apenas sobre o cônjuge que -e a tratado como tal, é de concluir que, apesar de não ter sido prestado um
consentiu na inseminação (art. 1839. e, n.2 3), ou a pessoa que viva em união consentimento nos termos expostos em II, houve uma real e efectiva adesão
de facto com a beneficiáriae que tenha intervindo no acordo (art. 20.2 dó recorrido à decisão da recorrente e a correspondente aceitação por parte
desta, sendo, pois, realmente inaceitável que se pretenda pôr termo ao vínculo
n.2 4, LPMA). entretanto criado entre aquele e a criança.
IV —Perante o quadro descrito em III, é abusiva a invocação da falta do
1033. O direito de impugnar só pode ser exercido quando o marido z,consentimento prévio para cessar o vínculo paternal de filiação.
ou o homem que vive em união de facto com a beneficiárianão deu o V —O registo da criança como filha do recorrido não está eivado de falsidade
consentimento para a utilização das técnicas de PMA .com sémen de dador). (é, ao invés, consonante com as presunções constantes do n.2 1 do art. 20.9 da
E também pode haver impugnação quando ele deu o seu consentimento Lei n.g 32/2006 e do art. 1826* do CC) e, por si só, não afecta o direito daquela
a conhecer a sua identidade genética e a sua historicidade pessoal.
para a utilização de técnicas de PMA em certo ato e certas condições, mas a
mulher beneficiou das intervenções em procedimento diferente daquele Pinto de Almeida
que fora consentido. STJ
11/06/2018

2790/16.OT8VFXL1.S1
Procriação medicamente assistida Fónte: dgsi
Consentimento informado
Estabelecimento da filiação
Abuso do direito S 4.2—Uso de PMApost mortetn
Cônjuge
Direito à identidade pessoal
1034. No caso de nascer um filho por utilização de técnicas de PMAna
Registo civil
Falsidade
mulher, depois da morte do marido ou do homem com quem ela vivia em
união de facto, com sémen deste, o respeito pela verdade biológica mandaria
que aquele homem fosse considerado o pai jurídico. Mas a lei distingue
II —O consentimento do beneficiário da procriação heteróloga 1 e n.Q2 do entre a prática de PMA com utilização degâmetas e a prática com implantação
autora
art. 14.2 da Lei n.2 32/2006, de 26-07, na redacção vigente à data em que a dqembriões.
que não contribuiu
recorreu a essa técnica de procriação medicamente assistida)
O direito português proibiu sempre a prática da inseminação post
para
para o processo com as suas células reprodutoras é condição indispensável mortem, pelo desconforto de fazer nascer uma criança que não haveria de
criança nascida
a constituição do vínculo da filiação quanto àquele, já que a um pai (art. 22.%n.2 1 e 2, e 26.%LPMA). Porém, depois da reforma de

534
2016, que admitiu sem reservas o acesso de mulheres que não vivem em SECÇÃO II - Mãe só
casal, a proibição perdeu o sentido que tinha. ou
No caso da implantação post mortem de embriões, a morte sobrevem 1036. No caso de uma mulher que não viva em casal hétero
resulta do parto,
quando já há um embrião formado e a implantação tem o mérito de lhe homossexual recorrer às técnicas de PMA, a maternidade
de uma paternidade para
permitir desenvolver-se. Isto é muito importante para quem não aceita bem é levada ao registo civil mas, em face da ausência
tem sentido que o conservador
a existência de embriões excedentários, e a sua destruição. A lei portuguesa registar, e ao contrário da norma geral, não
paternidade (art. 20.%n.23, LPMA).
aceita a prática (art. 22. 9, n.9 3, LPMA). promova uma averiguação oficiosa da
foi obtida com PMA, apenas
Neste último caso, a determinação da parentalidade segue as regras De facto, exibida a prova de que a filiação
estatuto jurídico de pai (art. 10.2,
previstas no n.9 20.@ existirá um dador anónimo, que não terá o
n.0 2, e art. 21.% LPMA).
1035. A lei prevê que, apesar da proibição, tenha sido praticada
uma inseminação post morteme, neste caso, determina que o falecido seja
Bibliografiaespecífica
considerado o pai jurídico (art. 23.%n. 9 1, LPMA). O que, note-se, esvazia de, Novas manifestações da vontade no casamento
enaparentalidade, «Lex
OLIVEIRA,Guilherme
de efeitos a proibição legal. Mas —há que reconhecer —também seria Familiae», ano 17, n.2 34, 2020, p. 5-24; ID.,
Critériosjurídicos daparentalidade, in «Textos de
estranho que se deixasse o filho sem pai jurídico quando é tão fácil saber Imprensa da Universidade, 2016,
Direito da Família para F. M. Pereira Coelho», Coimbra,
que o falecido marido ou unido de facto é o progenitor e não há outro conceçãojurídica daparentalidade? Breves
271-306; PEDRO,Rute Teixeira, Uma revoluçãona
medicamente assistida, in «Luísa Neto e Rute
homem para desempenhar a função de pai. Será este mais um caso em que a reflexõessobre o novo regimejurídico da procriação
medicamente assistida», Facudade de
proteção do interesse do filho é antecipado para o momento do nascimento? "SÁ, TeixeiraPedro, inv. resp., Debatendo a procriação
(Cfr. acima, o n.9 792-A). Direito/UP, CIJE, 2017, p. 149-167.

1035-A. Diferentemente, quando, à data da inseminação, a mulher está Bibliografiagenérica


Petrony, 2019; PEREIRA,Maria
casada ou vive em união de facto com outro homem, o pai jurídico será este OLIVEIRA,Guilherme de, Estabelecimentodafiliaçao, Lisboa,
Lisboa, AAFDL, 2019; PINHEIRO,Jorge
outro homem, e os intervenientes no acordo de inseminaçãonão podem Margarida Silva, Direito da Família, 3.} ed. rev. e act.,
Gestlegal, 2020.
impugnar a paternidade assim determinada (art. 23.%n.9 2, LPMA e art. 'h, Duarte, O direito dafamília contemporâneo, 7.' ed., Coimbra,

1839.%n.93). Neste caso, por um lado, verifica-se que a inseminação proibida


continua a produzir efeitos —o estabelecimento de uma paternidade; por outro
lado, o homem em causa dá um consentimento para a inseminação com sémen
que pertencia ao "falecido" e que, para mais, tinha manifestado alimentar
um projeto parental próprio; por fim, o caso mostra outro exemplo de uma
paternidade que se desvia do padrão "biologista" (cfr., acima, o n.Q789).
1035-B. Nos últimos tempos, desencadeou-se uma avaliaçãopública
e parlamentar sobre a matéria que passou pela apresentação de vários
projetos de lei, pela aprovação do Decreto n. 9 128/XIV, e pelo veto recente
do Presidente da República que determinou o reenvio do Decreto para a
277
Assembleia da República, onde se encontra para previsíveis alterações

277No momento em que se encerra a preparação desta 2.a edição do Manual, ainda não são
conhecidos os desenvolvimentos do processo legislativo que há de seguir-se.
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