Você está na página 1de 228

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO

CENTRO DE ARTES E COMUNICAÇÃO


DEPARTAMENTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

ERASMO DA SILVA FERREIRA

A VOZ DO TESTEMUNHO: Memória, História e Acontecimento no Relatório


Final da Comissão Nacional da Verdade

Recife
2020
ERASMO DA SILVA FERREIRA

A VOZ DO TESTEMUNHO: Memória, História e Acontecimento no Relatório


Final da Comissão Nacional da Verdade

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Letras.

Área de concentração: Linguística

Orientadora: Profª. Drª. Fabiele


Stockmans De Nardi

Recife
2020
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223

F383v Ferreira, Erasmo da Silva


A voz do testemunho: Memória, História e Acontecimento no Relatório
Final da Comissão Nacional da Verdade / Erasmo da Silva Ferreira. –
Recife, 2020.
227f.: il.

Orientadora: Fabiele Stockmans De Nardi.


Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. Centro de
Artes e Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2020.

Inclui referências.

1. Análise do Discurso. 2. Comissão Nacional da Verdade. 3. Memória.


4. História. 5. Ditadura Militar. I. De Nardi, Fabiele Stockmans (Orientadora).
II. Título.

410 CDD (22. ed.) UFPE (CAC 2020-68)


ERASMO DA SILVA FERREIRA

A VOZ DO TESTEMUNHO: Memória, História e Acontecimento no Relatório


Final da Comissão Nacional da Verdade

Tese apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Letras da Universidade
Federal de Pernambuco, como requisito
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Letras.

Aprovada em: 10/03/2020.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Profª. Drª. Fabiele Stockmans De Nardi (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco

____________________________________________________
Profª. Drª. Evandra Grigoletto (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco

_______________________________________________________
Profª. Drª. Andréia da Silva Daltoé (Examinadora Externa)
Universidade do Sul de Santa Catarina

_____________________________________________________
Profª. Drª. Dirce Jaeger (Examinadora Externa)
Universidade de Pernambuco

_______________________________________________________
Profª. Drª. Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco
À memória de todos que lutaram contra a Ditadura Militar Brasileira.
AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida e por todas as coisas.


À Fabiele Stockmans De Nardi (Fabi!), orientadora-amiga, por toda
confiança, respeito, carinho e atenção comigo e com este trabalho. Por não desistir
deste trabalho em um momento tão difícil no Brasil (e no mundo!). Fabi, obrigado
pela companhia desde o mestrado e que levarei para sempre! Quando eu crescer,
quero ser igual a você: uma profissional muito competente naquilo que faz, que
preza pela empatia e tem a enorme capacidade de se colocar no lugar do outro,
sempre disposta a ajudar, independentemente da situação, com um largo sorriso no
rosto. Gratidão por sempre segurar minha mão com firmeza, mas sem perder a
doçura no olhar. Obrigado por tudo! Por tudo mesmo! Principalmente, agradeço por
tudo aquilo que você me ensinou (e me ensina) nas aulas, nas orientações, nos
almoços regados de afeto, e na vida!
À Evandra Grigoletto, por toda contribuição a este trabalho, por todo o
aprendizado nas aulas e nas qualificações e, sobretudo, pela amizade e pelo
carinho. Evandra, você é a fonte de inspiração do muito que acredito e luto no
mundo. Muito obrigado por tudo!
À Andréia da Silva Daltoé (UNISUL), que me acompanhou no
desenvolvimento deste trabalho desde o projeto. Andréia, não há palavra que possa
descrever a sua contribuição a este trabalho. Gratidão por me ensinar tanta coisa e,
principalmente, pela confiança e pelo incentivo carinhoso que guardarei para sempre
na memória: “Siga firme, Erasmo!”
À Dirce Jaeger (UPE), pelo prazer da amizade e da companhia nos caminhos
da AD. Dirce, você é parte essencial deste trabalho. Sem você ele também não
seria possível. Obrigado pelo carinho, pela confiança e pelo apoio incondicional.
À Nadia Azevedo (UNICAP), por toda a contribuição substancial a este
trabalho. Obrigado pelo carinho e disponibilidade!
À Profa. Núbia Bezerra (NEAD/UPE), por todo carinho, atenção e companhia
na EaD. Gratidão pela confiança e pela disponibilidade de sempre.
Aos professores do PPGL/UFPE, por todo o aprendizado e a amizade:
Virgínia Leal, Medianeira Souza (Medi!), Marcelo Sibaldo, Kazue Saito, Cristina
Sampaio, Nelly Carvalho, Dóris Arruda.
Aos amigos do PPGL/UFPE, Jozaías Santos (Joza!), Claudyvanne Santos e
Adriel Pergentino, pela amizade, pelo trabalho brilhante e humano frente à
Secretaria do PPGL.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisas em Análise do Discurso
(GEPAD/UPE), pelo prazer da companhia e dos momentos de interlocução.
Aos meus queridos pais, dona Maria cabelão e seu Chico, porque são a
melhor parte de mim. Gratidão e amor para sempre...
Um agradecimento especial à Carla Lima Richter (IFPB), pelo presente da
amizade tão especial que o mestrado me concedeu. Carlota, você é um ser humano
iluminado! Gratidão pela contribuição a este trabalho e, sobretudo, pelas palavras de
apoio: “Tese da maior relevância, sobretudo nos dias atuais com esse Bozo no
poder”.
Às amigas da UPE (e da vida!): Josefa Monteiro (Zefinha), Tilde, Mary Celli,
Jaqueline Buzzo (Jacky!), Elane Oliveira e Leandra Medeiros, por tornarem a
caminhada da vida mais suave, feliz e doce. Muito obrigado, meninas!
Aos colegas da Escola Miguel Arraes de Alencar, com quem aprendo um
pouco a cada dia e, principalmente, à Fábia Freitas, pelo presente da amizade
desde a infância.
À Secretaria de Educação de Garanhuns (SEDUC), principalmente à
Ângela Veloso e à Vilma Dantas, por toda a torcida e apoio.
Aos meus alunos, porque são a extensão do muito que acredito e luto no
mundo.
À UFPE, espaço acadêmico de excelência, pela acolhida e por ser uma
extensão do meu lar no mundo.
Enfim, a todos os que fazem parte da minha vida, de uma forma ou de
outra, muito obrigado!
Mineirinho

É, suponho que é em mim, como um dos representantes de


nós, que devo procurar por que está doendo a morte [...] Fatos
irredutíveis, mas revolta irredutível também, a violenta
compaixão da revolta.
Sentir-se dividido na própria perplexidade diante de não poder
esquecer [...]
Por quê?
No entanto a primeira lei, a que protege corpo e vida
insubstituíveis, é a de que não matarás.
Ela é a minha maior garantia: assim não me matam, porque eu
não quero morrer, e assim não me deixam matar, porque ter
matado será a escuridão para mim.
Esta é a lei.
Mas há alguma coisa que,
se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de
segurança,
no terceiro me deixa alerta,
no quarto desassossegada,
o quinto e o sexto me cobrem de vergonha,
o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror,
no nono e no décimo minha boca está trêmula,
no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus,
no décimo segundo chamo meu irmão.
O décimo terceiro tiro me assassina – porque eu sou o outro.
Porque eu quero ser o outro.
Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por
precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo.
Nós, os sonsos essenciais. (LISPECTOR, 2016, [1964], p. 386-
387, grifos do autor).
RESUMO

Esta tese se propõe investigar o funcionamento do testemunho no batimento


com a história, a memória e a ideologia. Para isso, filiamo-nos ao dispositivo teórico-
metodológico da Análise do Discurso de orientação materialista (AD), instaurada por
Michel Pêcheux (1969), e sua interface com a Linguística, a Filosofia e a
Psicanálise. Assim, buscamos compreender como se dá, discursivamente, o jogo
que se produz entre a memória (dever de memória) e o esquecimento (direito ao
esquecimento) que o testemunho produz. Para o empreendimento de nosso
trabalho, focamos especificamente na análise de testemunhos colhidos pela
Comissão Nacional da Verdade (CNV) e presentes publicamente no Relatório Final
entregue à sociedade brasileira (BRASIL, 2014). Aqui, portanto, ouvimos algumas
vozes que se entrelaçam na memória da violência da Ditadura Militar. É a voz do
testemunho que conta (e denuncia), através do jogo de memórias, a história da
tortura. A partir da análise vertical de corpus (ORLANDI, 2012), chegamos à
conclusão de que o jogo entre a lembrança e o esquecimento é uma regularidade
que estrutura o funcionamento do testemunho a partir de mecanismos dêitico-
discursivos e da (não) denominação entre as formas materiais “EU”, “NÓS”, “ELES”
e o “OUTRO”. Diante disso, observamos que o testemunho possibilita o
funcionamento de mecanismos subjetivos de (des)identificação dos sujeitos com a
memória da tortura e, ao mesmo tempo, produz efeitos de resistência diante daquilo
que consideramos como uma espécie de esquecimento político-ideológico que o
Aparelho Ideológico de Estado (ALTHUSSER, 1974) então vigente busca lançar –
por meio de diferentes formas de apagamento – sobre a memória do nosso
passado. Em suma, a partir dessa conclusão, pudemos propor que o Relatório Final
da CNV começa a desestabilizar uma rede de memória que se construiu
historicamente sobre a Ditadura Militar Brasileira e, consequentemente, caracteriza-
se como um acontecimento discursivo a ler (PÊCHEUX, 2012 [1983], INDURSKY,
2015 & MARIANI, 2016) ao produzir – através da voz do testemunho – uma
discursividade outra, sobre aquele acontecimento histórico, que se (re)atualiza por
meio do funcionamento do interdiscurso.

Palavras-chave: Análise do Discurso. Comissão Nacional da Verdade. Memória.


História. Ditadura Militar.
RESUMEN

Esta tesis se propone investigar el funcionamiento del testimonio junto con la


historia, la memoria y la ideología. Para eso, nos unimos al dispositivo teórico-
metodológico del Análisis del Discurso de orientación materialista (AD) establecido
por Michel Pêcheux (1969) y su interfaz con la Lingüística, la Filosofía y el
Psicoanálisis. Por lo tanto, buscamos comprender cómo se da, en el discurso, el
juego que se lleva a cabo entre la memoria (deber de la memoria) y el olvido
(derecho a ser olvidado) que produce el testimonio. Para la realización de nuestro
trabajo, nos centramos específicamente en el análisis de los testimonios recopilados
por la Comisión Nacional de la Verdad (CNV) y presentados públicamente en el
Informe Final entregado a la sociedad brasileña (BRASIL, 2014). Aquí, por lo tanto,
escuchamos algunas voces que se entrelazan en la memoria de la violencia de la
Dictadura Militar. Es la voz del testimonio que cuenta (y denuncia), a través del juego
de los recuerdos, la historia de la tortura. Del análisis vertical del corpus (ORLANDI,
2012), llegamos a la conclusión de que el juego entre el recuerdo y el olvido es una
regularidad que estructura el funcionamiento del testimonio mediante mecanismos
deitico-discursivos y la (no)denominación entre las formas materiales “YO”,
“NOSOTROS”, “ELLOS” y el “OTRO”. Luego, observamos que el testimonio permite
el funcionamiento de mecanismos subjetivos de (des)identificación de los sujetos
con la memoria de la tortura y, a la vez, produce efectos de resistencia frente a lo
que consideramos como una especie de olvido político-ideológico que el vigente
Aparato Ideológico de Estado (ALTHUSSER, 1974) busca lanzar, a través de
diferentes formas de borrado, sobre la memoria de nuestro pasado. En resumen, y a
partir de esta conclusión, se propone que el Informe Final de la CNV empieza a
desestabilizar una red de memoria que históricamente se construyó sobre la
Dictadura Militar Brasileña y, en consecuencia, se caracteriza como un
acontecimiento discursivo para ser leído (PÊCHEUX, 2012 [1983], INDURSKY, 2015
y MARIANI, 2016) al producir, mediante la voz del testimonio, otra discursividad
sobre aquel evento histórico, que se (re)actualiza a través del funcionamiento del
interdiscurso.

Palabras clave: Análisis del Discurso. Comisión Nacional de la Verdad. Memoria.


Historia. Dictadura Militar.
ABSTRACT

This doctoral thesis aims to investigate the functioning of the testimony in


conjunction with history, memory and ideology. The research was embedded in the
theoretical-methodological device of Discourse Analysis of materialistic orientation
(DA), established by Michel Pêcheux (1969), and its interface with Linguistics,
Philosophy and Psychoanalysis. Thus, we seek to understand how the game that
occurs between memory (duty of memory) and forgetfulness (right to be forgetful)
that the testimony produces occurs discursively. In order to do so, we focused
specifically on the analysis of testimonies collected by the National Truth Commission
(CNV) and publicly present in the Final Report delivered to Brazilian society (BRASIL,
2014). Here, therefore, we hear some voices that intertwine with the memory of the
violence of the Military Dictatorship. It is the voice of the testimony that tells (and
denounces), through the game of memories, the story of torture. From the vertical
analysis of the corpus (ORLANDI, 2012), we came to the conclusion that the game
between remembering and forgetting is a regularity that structures the functioning of
the testimony from deictic-discursive mechanisms and the (non) denomination
between the material forms “I”, “WE”, “THEM” and “OTHER”. Therefore, we observe
that the testimony enables the subjective mechanisms of one‟s (de)identification to
function with the memory of torture and, at the same time, produces effects of
resistance in face of what we consider as a kind of political-ideological oblivion that
the current ideological State Apparatus (ALTHUSSER, 1974) seeks to launch –
through different forms of erasure – on the memory of our past. In short, based on
that, we were able to propose that the CNV Final Report begins to destabilize a
memory network that was historically constructed on the Brazilian Military
Dictatorship and, consequently, is characterized as a discursive event to be read
(PÊCHEUX, 2012 [1983], INDURSKY, 2015 & MARIANI, 2016) when producing –
through the voice of testimony – another discursiveness about that historical event,
which is (re) updated through the functioning of interdiscourse.

Keywords: Discourse Analysis. National Truth Commission. Memory. History.


Military Dictatorship.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Vladimir Herzog.........................................................................................23


Figura 2 – Recorte do Correio da Manhã...................................................................29
Figura 3 – Relação inter/intradiscursiva.....................................................................74
Figura 4 – Esquema memória individual e memória coletiva.....................................80
Figura 5 – Esquema do vínculo identitário da memória.............................................87
Figura 6 – Esquema relação memória-esquecimento..............................................107
Figura 7 – Esquema do “dever de memória”............................................................117
Figura 8 – Esquema de “Reparação” de vítimas da Ditadura..................................118
Figura 9 – Esquema das relações imaginárias entre sujeitos..................................151
Figura 10 – Nó borromeano.....................................................................................193
Figura 11 – Tríade da Ditadura................................................................................208
LISTA DE SIGLAS

AD Análise do Discurso pêcheuxtiana


AI‟s Atos Institucionais
AIE Aparelho Ideológico de Estado
ARE Aparelho Repressivo de Estado
CADH Comissão Americana de Direitos Humanos
DOI Destacamento de Operação Interna
DUDH Declaração Universal dos Direitos Humanos
CIA Central Intelligence Agency
CIDH Corte Interamericana de Direitos Humanos
CODI Centro de Operação de Defesa Interna
CNBB Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
CNV Comissão Nacional da Verdade
FD Formação Discursiva
FI Formação Ideológica
OAB Ordem dos Advogados do Brasil
OEA Organização dos Estados Americanos
SDs Sequências Discursivas
SDR Sequência Discursiva de Referência
SNI Serviço Nacional de Informação
PNDH Programa Nacional de Direitos Humanos
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.................................................................................................14
2 ENTRE O GOLPE CIVIL-MILITAR E O ADVENTO DA COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE.............................................................................24
2.1 ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA......................................................................24
2.2 O DIA QUE DUROU 21 ANOS........................................................................28
2.3 A BUSCA PELA VERDADE: A INSTAURAÇÃO DA CNV..............................40
2.4 DOS MEMBROS DA CNV...............................................................................55
2.5 SOBRE O RELATÓRIO FINAL DA CNV.........................................................58
3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS.........................................................................63
3.1 SUJEITO, IDEOLOGIA, FORMAÇÃO DISCURSIVA E RESISTÊNCIA..........63
3.2 A MEMÓRIA DISCURSIVA E O TRABALHO DO ACONTECIMENTO...........71
3.3 A MEMÓRIA PARA MAURICE HALBWACHS................................................78
3.4 O (ENTRE)LUGAR DE/DA MEMÓRIA............................................................86
3.5 MEMÓRIA, RASTRO, SILÊNCIO E ESQUECIMENTO..................................99
3.6 SOBRE O DEVER DE MEMÓRIA.................................................................115
4 O TESTEMUNHO E A VOZ (IM)POSSÍVEL.................................................122
4.1 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO CORPUS..........................................134
4.1.1 O jogo de identificação entre “EU” e “NÓS”..................................................135
4.1.2 Movimento de desidenticação: “EU” e “NÓS” versus “ELES”.......................149
4.1.3 O direito ao esquecimento e o dever de memória: eu quero esquecer.........157
4.1.4 O jogo com o “OUTRO” através da (não) denominação...............................168
4.1.5 Os limites da representação no testemunho.................................................184
5 OS EFEITOS DE UM PONTO FINAL...........................................................211
REFERÊNCIAS.............................................................................................219
14

1 INTRODUÇÃO
Eu vou contar história(s)

Não quero lhe falar meu grande amor


Das coisas que aprendi nos discos
Quero lhe contar como eu vivi
E tudo que aconteceu comigo [...]. Belchior

Foram intermináveis dias de Sodoma. Me pisaram, cuspiram, me


despedaçaram em mil cacos. Me violentaram nos meus cantos mais íntimos. Foi um
tempo sem sorrisos. Um tempo de esgares, de gritos sufocados, um grito no escuro.
Esta é uma das vozes que compõem o corpus desta tese e que se confunde com
tantas outras vozes com quem mantém uma relação parafrástica. Ela não é mais
uma voz sem nome, mas a voz urgente de Maria Auxiliadora Lara Barcellos, que
enquanto vítima da Ditadura Militar no Brasil, se tornou parte de uma rede de
memória tecida a partir do testemunho. Aqui, ela também não é mais uma voz
inaudível. É um grito que fura a política do silêncio (ORLANDI, 1992) que trabalhou
para impedir a inscrição de uma memória outra sobre o Regime Militar durante
cinquenta anos (1964-2014). Uma memória para nunca esquecer. Memórias da dor
que lançam o sujeito no efeito da repetibilidade de um evento traumático. Memórias
do cárcere. Memórias de um período onde a vida passou a ser banalizada e o verbo
torturar passou a constituir uma inexorável política de Estado.

É por tudo isso que esta tese se instaura como mais um espaço1 em que se
dá corpo e voz, por assim dizer, ao testemunho/testemunha que se inscreve no
Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014). Assim, este trabalho se
institui, no limite dos objetivos de nossa investigação, como lugar de escuta e
análise de vozes que permaneceram silenciadas por muito tempo e que podem
ocupar, de certa maneira, um espaço de voz, um lugar de um dizer (outro) possível
através do trabalho da CNV e do gesto de testemunhar.

1
Aqui gostaria de fazer referência a quatro importantes documentários que recuperam com maestria
as condições de produção da memória da Ditadura Militar no Brasil: QUE BOM TE VER VIVA (1989)
e A MEMÓRIA QUE ME CONTAM (2013), ambos dirigidos por Lúcia Murat. TORRE DAS
DONZELAS (2018), dirigido por Susanna Lira e 15 FILHOS (1996), dirigido por Maria Oliveira e Marta
Nehring.
15

Pois bem. É dessa posição de escuta que peço licença acadêmica para,
neste momento da tese, ousar enunciar eu e assumir o risco que ocupar tal lugar
possa me proporcionar, inclusive o de não conseguir escapar do estilhaçar de um eu
que joga com um nós, do imbricamento entre o individual e o social (coletivo) que se
dá através do processo de interpelação e identificação com uma memória e com
uma história, conforme se verá ao longo do trabalho aqui apresentado.

Antes de voltar a essas questões, entretanto, gostaria de traçar, brevemente,


o percurso que realizei para chegar até aqui e que, de certa forma, despertou em
mim o interesse pelo objeto desta tese. Nesse sentido, invoco a reflexão que realizei
quando da conclusão do mestrado, porque foi a partir dela que passei a mergulhar
na memória da Ditadura Militar no Brasil. Naquela ocasião, tive a oportunidade de
pensar sobre o funcionamento do discurso político-militar, as condições de produção
que determinaram o modo de dizer dos militares, a representação do outro e a
política de silenciamento que se instaurou no país através de uma Formação
Discursiva que permaneceu (permanece?) dominante, por mais de vinte anos,
subjugando o povo sob o comando político-institucional de um Aparelho Repressivo
e Ideológico de Estado (ALTHUSSER, 1974): o Exército. Nesse momento, percebi
que ainda tinha (e tem) muito a ser escutado e dito sobre a memória da Ditadura
Militar e seus efeitos de sentido. Na época, eu me perguntava, entre outros
questionamentos: como um regime de exceção pode se sustentar e se legitimar por
tanto tempo na história do Brasil? E a resposta me fez pensar como se instituía o
jogo político-ideológico no discurso militar e suas consequências.

Em vias de conclusão do mestrado, deparei-me com a entrega do robusto e


circunstanciado Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV)
à sociedade brasileira, denunciando as graves violações dos direitos humanos
praticadas por agentes do Estado durante o Regime Militar (BRASIL, 2014) e vi,
mais uma vez, a reverberação da memória da Ditadura produzindo diferentes efeitos
de sentido (sentidos que se inscrevem no medo, no desejo de esquecimento e no
dever de memória, na vontade de justiça, de verdade, de denúncia e da não-
repetição) no âmbito jurídico, político e social. Passei por um período de maturação
das ideias e, ao ter acesso ao trabalho da CNV, fui capturado novamente pela
memória da Ditadura e pelo muito que ainda há aí por se dizer e, principalmente,
pela necessidade de um dizer outro sobre aquela memória, ou seja, de instituir-se
16

um lugar dialético de fala e escuta através de um dizer que se ancora na tríade que
dá – de acordo com a postura teórica que me interpela – sustentação a todo
processo discursivo, incluído aí o testemunho: a (re)constituição, a (re)atualização e
a circulação de tal objeto-memória na esfera social. Dei de encontro, portanto, com
questionamentos para o projeto da tese que, de lá para cá, nas andanças entre
bancas, (re)leituras e rodas de conversa, sofreram algumas reconfigurações.

Não houve outra saída. Tive que me debruçar – a partir do Relatório Final da
CNV – sobre a relevância social, a emergência histórica de um dizer outro sobre a
violência da Ditadura Militar que se materializa discursivamente no âmbito do
testemunho. Cheguei, por conseguinte, ao objetivo central deste trabalho:
compreender, à luz do arcabouço teórico-metodológico da Análise do Discurso de
viés materialista (PÊCHEUX, 1969 e outros), o jogo entre a memória e o
esquecimento que se organiza através das formas materiais [“EU”, “NÓS”, “ELES” e
o “OUTRO”] que se inscrevem no testemunho recuperado pela CNV. Além disso,
interesso-me por pensar como o sujeito do testemunho constrói mecanismos de
subjetivação e resistência (na tensão entre a identificação e a desidentificação com
certos saberes que se inscrevem na Formação Discursiva da Ditadura Militar e na
Formação Discursiva da resistência) com a memória que se instaura por meio da
violência do passado e, com isso, produz o seu assujeitamento.

Portanto, este trabalho se constitui – além de um espaço que recupera, em


certo limite, a fala dos quartéis e as outras vozes (INDURSKY, 20132 [1997]) – como
lugar que faz, na medida do possível, a escuta de tais vozes. Aqui, essas vozes são
nomeadas: são homens e mulheres que compartilham socialmente de várias
memórias: da tortura, da morte, do silêncio opressor, da resistência; eis os tecidos
que determinam a memória e o esquecimento no âmbito do testemunho. São
sujeitos que enunciam de duas formações discursivas que textualizam o conflito
entre posições-sujeito ocupadas e projetadas no testemunho (pai/mãe,
homem/mulher, militante/militar, professor/militante etc.) que, neste caso, se
antagonizam e determinam o modo como os sujeitos se dividem no batimento entre
o dever de memória, o direito à memória, o direito ao esquecimento (DALTOÉ,
2014), a busca pela verdade, a reconciliação com o passado e a vontade de justiça.

2
Usamos os parênteses para indicar o ano da obra consultada e os colchetes para sinalizar o ano da
obra original.
17

Conforme se pode observar, de saída, ao tomar o testemunho como objeto de


análise-escuta, precisei compreender, teoricamente, a constituição-concepção da
memória a partir de certos lugares de identificação que me conduziram ao campo da
Filosofia (HALBWACHS, 2003 [1950] e outros), da Antropologia (CANDAU, 2005),
da História (LE GOFF, 2013 [1988]) e da Psicanálise (FREUD, 1996 [1920]) e como
tais áreas do saber contribuem para o modo de se pensar a memória e o
testemunho no âmbito da Análise do Discurso (doravante AD). Diante disso, a
dimensão de memória que mobilizo na tese não poderia ser outra senão a
interdisciplinar, a constitutivamente exterior ao sujeito. Tal empreendimento é
relevante porque é a partir daí que parto da hipótese de que o Relatório Final da
CNV representa um Lugar de Memória – nos termos de Nora (1993 [1984]) – e se
constitui como acontecimento discursivo – como nos ensinou Pêcheux (2012 [1983])
– porque ao dar voz ao testemunho, conforme veremos nas análises, inicia o
processo de desestabilização e atualização da memória da Ditadura Militar e,
consequentemente, estabelece a instituição de um espaço de constituição e
circulação de uma memória outra que começa a romper com a anterior.

Diante disso, passo a compreender que o testemunho instaura um lugar de


identificação, através dos jogos da memória, com a resistência e a contradição e,
consequentemente, mobiliza diferentes posições-sujeito no jogo do/com o sentido.
Aliás, o que é, com efeito, a prática testemunhal se não um espaço de vozes que
estão na disputa pela verdade, pela memória, pela justiça e pelo esquecimento? Foi
assim que decidi pensar o testemunho presente no Relatório Final da CNV, através
de uma visada discursiva, porque só agora, de certa forma, o testemunho das
vítimas da Ditadura Militar se instaura como linguagem, como um objeto simbólico.

Assim, entendo que o Relatório Final da CNV, ao instituir um lugar de fala


para o sujeito através do testemunho, choca-se e rompe com uma rede de memória
e, com isso, produz um dizer que agora é possível significar de outro modo por meio
de rupturas e reconfigurações, assim como mostrou Pêcheux (2012 [1983], p. 17) ao
analisar o grito de vitória on a gagné (ganhamos) no contexto político francês. E é
partindo desse pressuposto teórico que realizo as seguintes indagações: como se
dá, no funcionamento discursivo do testemunho, o jogo entre a lembrança e o
esquecimento através das relações subjetivas que se constituem entre as formas
materiais “EU”, “NÓS”, “ELES” e o “OUTRO”? Como é possível, no âmago do
18

testemunho, a constituição de um sujeito que opera na tensão do batimento entre o


direito à memória e a necessidade de esquecimento? Como o testemunho tensiona,
através da memória, do silenciamento e do esquecimento, o jogo de projeções
imaginárias? Como a falta3, que marca a presença de uma coisa ausente4
constitutivamente, se inscreve no testemunho? Como a Formação Discursiva da
resistência regula o modo de dizer do sujeito que se inscreve nos testemunhos aqui
recortados e (re)produz a (des)identificação e/ou a contraidentificação com
determinadas posições? Diante disso, busco compreender o embate entre a
lembrança e o esquecimento e o jogo entre a necessidade de um dizer e a
resistência à inscrição no testemunho. Penso que o testemunho é um lugar
significativo e privilegiado para pensar esses questionamentos no imbricamento
teórico-analítico.

Aqui, preciso percorrer o caminho da opacidade e das evidências de sentido


que se inscrevem na materialidade linguística para compreender os efeitos
metafóricos, os sentidos que se inscrevem a partir de pontos de deriva que minam o
testemunho, o jogo entre o mesmo e o diferente (paráfrase e polissemia), a relação
entre constituição e formulação, os discursos transversos que operam na voz do
testemunho. Para isso, mobilizo centralmente o jogo dêitico-discursivo (que estou
considerando aqui como as formas materiais da memória que se inscrevem
testemunho) como ponto chave na formulação de sentidos que irrompem na relação
entre “EU”, “ELES”, “NÓS” e o “OUTRO”, no âmbito do testemunho. Tais marcas
linguísticas, conforme se verá na análise, me ajudam a pensar sobre o processo de
subjetivação, as relações imaginárias que atravessam o testemunho e os efeitos da
interpelação ideológica através do jogo da (não) denominação na construção
material do testemunho.

Defendo, ao longo do trabalho, que é justamente o processo discursivo que


se institui em torno do jogo entre o “EU” e um NÓS” que põe em funcionamento no
testemunho memórias que estão numa relação de interdependência. Por seu turno,
o jogo entre “EU” – “NÓS” e “ELES” traz à tona memórias que são postas numa
relação de embate e resistência. Considero, assim, que na luta por espaço entre
“EU” – “NÓS” e “ELES”, há a presença de um “OUTRO” que é interpelado

3
Seguindo aqui a tese de Lacan (1974), Milner (1978), Gadet & Pêcheux (2004).
4
A partir de Ricoeur (2007).
19

ideologicamente para identificar-se e significar com certos saberes e posições


discursivas através dos efeitos de uma Formação Discursiva que é constituída por
seu avesso. Com isso, o modo de constituição do testemunho – através de suas
condições de produção e da memória discursiva – permite-me compreender que,
conforme leio em Pêcheux (1997 [1975]), aquilo que é diferente dele (o diferente, o
seu outro) está presente e também dá as cartas no jogo do testemunho.

A opacização da superfície linguística ainda me impulsiona a pensar que os


furos que atravessam o testemunho, através do cruzamento do eixo da constituição
com o eixo da formulação, colocam à prova os espaços logicamente estabilizados
(PÊCHEUX, 2012 [1983]) que ordenam o domínio e as fronteiras da sintaxe. Sobre
este ponto, endosso a questão de uma falta constitutiva que marca o limite da
dizibilidade de uma memória que não pode ser acessada plenamente, que é da
ordem do irrepresentável, do impossível, daquilo que escapa a qualquer forma de
representação simbólica. Além disso, penso o processo verbal como o sintoma
linguístico-discursivo de um sujeito que tem o seu presente marcado por uma
memória social viva e latente, que se sustenta e se legitima a partir do outro
(HALBWACHS, 2003 [1950]). Para compreender isso, precisei ler o testemunho
prestando atenção nas pistas, no “funcionamento do político na língua” (DALTOÉ,
2016a, p. 33), nos furos da pontuação e da sintaxe que se inscrevem numa cadeia
de repetibilidade.

Um ponto relevante que trago também para a reflexão teórico-analítica é a


relação entre memória, esquecimento e trauma na constituição singular do
testemunho. Tal entrada se justifica porque os testemunhos apresentados recortam,
conforme dito anteriormente, memórias de uma violência extrema sofrida pelo sujeito
no âmbito da tortura nos porões da Ditadura Militar. Essa incursão segue, também
na esteira da Psicanálise, o pensamento de Freud (1969 [1915]), já que trago à baila
a questão do trauma enquanto mecanismo que lança o sujeito no efeito da
compulsão pela repetição de uma lembrança do passado que imobiliza o sujeito que
rememora no presente.

Diante do que apresentei até aqui, penso que é preciso reforçar a relevância
do lugar teórico a que me filio para realizar este trabalho: a AD. É desse lugar que
enuncio e discuto, a partir de diferentes vozes que se identificam, de alguma
maneira, com esta mesma posição teórica, o Relatório Final da CNV como
20

dispositivo que recupera, em certo limite, a memória da Ditadura Militar na sociedade


ou, nos termos do Courtine, é preciso conceber que “a memória irrompe na
atualidade do acontecimento” (COURTINE, 2009 [1981], p. 103). Ao assumir tal
posição, considero que o testemunho é uma questão cara para a AD, à medida que
constitui o ponto nodal onde as questões relacionadas ao sentido, ao sujeito, à
ideologia e à historicidade estão numa relação transversa. É a AD que me faz
compreender a contradição5 como força motriz inerente à história, à luta de classes,
às disputas pela memória e ao modo de produção de uma sociedade que se assenta
sobre uma Formação Social capitalista. Assim, o gesto de análise que se apresenta
aqui não se volta para resolver o problema da contradição que, a meu ver, atravessa
o próprio testemunho, mas marcar, na medida do possível, os pontos que instauram
a emergência do antagonismo que o constitui: a falta e o excesso, o individual e o
coletivo/social, a lembrança e o esquecimento, a identificação e a desidentificação
por agência da interpelação, a unidade e a dispersão, o dizer/não-dizer/silenciar ou,
como dirá Pêcheux (1990 [1982], p. 17), “falar quando se exige silêncio [...] mudar,
desviar, alterar o sentido das palavras e das frases; [...] deslocar as regras na
sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as palavras [...]”.

E é neste ponto que a AD me autoriza a pensar o testemunho aqui como um


mecanismo de resistência e, sobretudo, como um instrumento que traz à tona uma
“memória subterrânea” (POLLAK, 1989) que foi conduzida historicamente e
politicamente à subalternidade, que foi manipulada da maneira mais vil, e que ainda
hoje sofre o processo de apagamento dos rastros (ROBIN, 2016) e silenciamento
político-ideológico. Estamos diante de uma memória social que foi forjada para que o
outro fosse falado e significado de uma determinada maneira e não de outra.
Portanto, esta tese se junta, no limite da investigação, aos trabalhos que fazem da
minoria um porta-voz, que assumem uma tomada de posição-sujeito e que se
inscrevem numa política de regaste da memória e, consequentemente, na luta
contra as políticas do esquecimento da memória (INDURSKY, 2015).

Em suma, no batimento contraditório entre descrição e interpretação


(PÊCHEUX, 2012 [1983]), o trabalho com o corpus foi organizado,

5
A noção de contradição, na perspectiva teórica que assumimos neste trabalho, é de base
constitutiva da história, do sujeito, da ideologia, da luta de classes, do discurso e da língua. Portanto,
não tomamos a contradição como um mecanismo negativo, mas como o motor das práticas sócio-
históricas.
21

metodologicamente, da seguinte forma: as sequências discursivas (SDs) foram


recortadas dos testemunhos presentes no Relatório Final da CNV (BRASIL, 2014)
enquanto campo discursivo de referência. O corpus empírico (quadro analítico mais
amplo), que submetemos às análises, está organizado, pois, de maneira documental
por meio do Volume I (Tomo I). O arquivo é constituído, principalmente, por
depoimentos de testemunhas que foram torturadas durante a Ditadura e ouvidas
pela CNV. Daí a justificativa para o recorte de tal volume.

Diante disso, busco, por meio da análise vertical de corpus (ORLANDI, 2012),
observar certas regularidades na organização discursiva do testemunho (corpus
discursivo restrito) que me possibilita também pensar, sobretudo, a questão do
testemunho, da memória e do acontecimento através do dispositivo teórico-analítico.
Para a AD, o trabalho de recortar o corpus já é em si uma etapa relevante do
processo analítico e um gesto de leitura porque “o objeto discursivo não é dado, ele
supõe um trabalho do analista e para se chegar a ele é preciso, numa primeira etapa
de análise, converter a superfície linguística [...] em um objeto teórico” (ORLANDI,
2012, p. 66). Para deixar o corpus em ponto de análise, todas as sequências
discursivas (SDs) foram recortadas ipsis litteris do Relatório Final da Comissão
Nacional da Verdade (CNV, 2014) e, por esta razão, mantive as marcas da oralidade
e da informalidade que organizam os testemunhos. Os blocos de análise e das
sequências discursivas não seguem, rigorosamente, a mesma ordem em que os
testemunhos aparecem no Relatório Final da CNV, uma vez que se buscou observar
certas regularidades através da repetibilidade de marcas linguístico-discursivas.
Neste caso, a teoria e a análise foram diluídas ao longo do caminho da tese.

Do ponto de vista metodológico, a tese está organizada basicamente em


cinco partes, da seguinte forma: na primeira, a introdução, apresento a justificativa e
as questões centrais que me fizeram mobilizar o trabalho. A segunda, de título geral
Entre o golpe civil-militar e a instauração da Comissão Nacional da Verdade,
apresento o caso emblemático do Vladimir Herzog (Vlado), as condições de
produção que instauraram o Golpe de 1964 e, consequentemente, a Ditadura Militar,
além de pontuar o advento da Comissão Nacional da Verdade e a relevância social
e histórica do Relatório Final. Na terceira parte, por seu turno, cujo título é
Fundamentos Teóricos, penso sobre a noção de sujeito, formação discursiva e
resistência a partir da Análise do Discurso, bem como proponho pensar sobre os
22

contornos da memória e sua relevância na relação que se estabelece entre a história


e o testemunho. Na quarta parte da tese, por sua vez, de título O testemunho e a
voz (im)possível, problematizo teoricamente e analiticamente como o testemunho,
através de suas formas, constitui a relação entre a memória e o esquecimento por
meio de diferentes modos de organização que instauram um “EU” no jogo de
identificação com a luta de um “NÓS”, produzindo, por extensão, uma
desidentificação com “ELES”; além disso, passo a refletir sobre o processo de
interpelação ideológica que posiciona o “OUTRO” numa determinada rede de
significação da memória e trago à baila também o testemunho enquanto
acontecimento discursivo. Na quinta parte, por fim, apresento os efeitos de um ponto
final na tentativa de produzir também um efeito de fechamento da tese.
23

Quando perdemos a capacidade de nos indignarmos


com as atrocidades praticadas contra outros, perdemos
também o direito de nos considerarmos seres humanos
civilizados.
Vladimir Herzog (Vlado).

Figura 1 – Vladimir Herzog

Foto: Sivaldo Leung (1975). Disponível em: google imagens


24

2 ENTRE O GOLPE CIVIL-MILITAR E O ADVENTO DA COMISSÃO


NACIONAL DA VERDADE
Se uma ditadura se apresentasse com a violência que
lhe é própria, ela não se sustentaria. Mas o não se
apresentar com a sua própria violência não significa que
ela a esteja ocultando em qualquer lugar obscuro. Não.
Ao contrário, o que a ditadura faz é justamente dizer-se
cotidianamente como algo natural, familiar, sem
constituir um período de exceção. É essa normalidade a
sua maior violência. Sua violência simbólica. Sem altos
nem baixos. No seu efeito de senso comum, de discurso
social aceitável, e fato de opinião pública, não de
alteração da vida comum.
Eni Orlandi (2013).

2.1 ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA

Gostaríamos de iniciar nossa reflexão, neste primeiro capítulo, a partir de


duas frentes de leitura: a primeira, sobre a imagem; e, a segunda, sobre as
epígrafes.

A imagem, num primeiro plano, representa – simbólico-historicamente – a


memória da tortura e de toda truculência da Ditadura Militar no Brasil, mas também é
um embuste. Na fotografia, vemos Vladimir Herzog (o Vlado) – jornalista, professor e
dramaturgo –, que se tornou um dos símbolos principais na luta contra o Regime
Militar. Engajado nas lutas e causas sociais, foi membro ativo do movimento social
que batalhou até a morte pela restauração e manutenção da democracia no Brasil,
bem como pela preservação dos valores sociais, das liberdades individuais e
coletivas diante do Golpe de Estado deflagrado pelos militares em 1964. Pagou um
alto preço, com a própria vida, assim como tantos outros nomes anônimos e vozes
emudecidas que foram varridas das páginas da história oficial pelo esquecimento.

Em 24 de outubro de 1975, época em que Vlado era diretor de jornalismo da


TV Cultura, os agentes estatais do II Exército (São Paulo) o convocaram para
prestar depoimento sobre as possíveis ligações “subversivas” que mantinha com o
Partido Comunista Brasileiro (PCB/1922). No dia seguinte, Herzog atendeu ao
pedido do Comando Militar, dirigindo-se pessoalmente ao órgão da polícia militar
para um interrogatório sobre as suas atividades consideradas “terroristas” e ilegais
25

pelos militares. O depoimento foi realizado – conforme era praxe acontecer – numa
demorada sessão de tortura com choques elétricos, situação confirmada por outros
jornalistas, como Rodolfo Konder e Duque Estrada, que também estavam presos na
antessala aguardando o interrogatório e, portanto, presenciaram a ocorrência da
violência contra Vlado (BRASIL, 2014). Segundo o depoimento dos colegas, os
gritos de dor de Vlado eram inimagináveis.

No dia seguinte, 25 de outubro, Vlado, conforme imagem acima, foi


oficialmente encontrado, de joelhos, enforcado com o cinto de sua própria roupa. No
atestado de óbito, a tentativa de apagar quaisquer vestígios que incriminassem as
forças de exceção: a causa da morte tinha sido o suicídio. Com efeito, embora a
consequência dada como “oficial” para a morte de Vlado – divulgada amplamente
pelos órgãos de repressão da época e a mídia pró-Golpe –, tenha sido suicídio por
enforcamento, há amplo conhecimento na sociedade brasileira, hoje, de que o óbito,
na verdade, resultou de um intenso processo de tortura que o conduziu à morte,
recaindo, por sua vez, a suspeita, sobre os agentes do Destacamento de Operação
Interna (DOI) e do Centro de Operação de Defesa Interna (CODI), que teriam forjado
a cena colocando o corpo na posição encontrada, conforme lemos no Relatório Final
da Comissão Nacional da Verdade:

Vladimir Herzog foi inicialmente estrangulado, provavelmente com a


cinta citada pelo perito criminal, e, em ato contínuo, foi montado um
sistema de forca, onde uma das extremidades foi fixada a grade
metálica de proteção da janela e, a outra, envolvida ao redor do
pescoço de Vladimir Herzog, por meio de uma laçada móvel. Após, o
corpo foi colocado em suspensão incompleta de forma a simular um
enforcamento. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) entende não
existir mais qualquer dúvida acerca das circunstâncias da morte de
Vladimir Herzog, detido ilegalmente, torturado e assassinado por
agentes do Estado nas dependências do DOI-CODI do II Exército,
em São Paulo, em outubro de 1975 (BRASIL, 2014, p. 1796).

Conforme a citação acima, podemos observar que o parecer da CNV foi


bastante relevante para elucidar – a exemplo do que aconteceu também com
centenas de pessoas – a história de Vlado frente à Ditadura Militar e contribui, de
certa maneira, com a revelação de uma outra versão sobre o caso, embora muitas
pessoas ainda permaneçam anônimas diante do desaparecimento forçado.
26

Na época, era prática corrente o governo militar divulgar, através do Serviço


Nacional de Informação6 (SNI), que as vítimas de suas torturas e assassinatos
tinham se “suicidado”, ou tinham “tragicamente” morrido nas fugas por
atropelamento. Em outubro de 1978, por meio de uma sentença histórica, buscando
a responsabilização do Estado Brasileiro pela morte de Herzog, na efervescência da
“Era de Chumbo”, o juiz Federal Márcio Moraes pediu a abertura de inquérito e a
devida apuração acerca da autoria e das condições reais da morte de Vlado. No
entanto, à época, os militares impediram que a investigação fosse realizada,
utilizando, mais uma vez, o laudo médico forjado para defender a tese do suicídio; o
caso, por sua vez, foi novamente lançado no esquecimento e seguiu para o
arquivamento. E permaneceu lá por um bom tempo... Felizmente, a memória
também reverbera no arquivo, lutando contra as forças políticas do esquecimento.

Pois bem, durante mais de três décadas, esta memória foi silenciada,
permaneceu subvertida e saturada pela censura dos militares, produzindo o efeito
de sentido aí cristalizado, impedindo que sentidos outros pudessem se inscrever, até
que a instalação da Comissão Nacional da Verdade brasileira fosse efetivada.

Finalmente, em atendimento ao pedido de investigação da viúva Clarice


Herzog e familiares, essa memória voltou do arquivo para assombrar as corporações
militares, agora através do juiz Márcio Martins Bonilha Filho, da 2ª Vara de Registros
Públicos do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), que condenou
veementemente todas as ações dos militares – durante o Regime Militar e
determinou a retificação imediata do atestado de óbito de Vlado, para constar que a
causa da morte tinha sido decorrente de lesões por maus-tratos, anulando-se,
consequentemente, o atestado que configurava morte por asfixia mecânica. Na
sentença, o juiz invocou a legitimidade da CNV e a Lei que a instituiu para revogar o
atestado de óbito, elaborado à época pela junta médica militar, e condenar as ações
dos agentes estatais envolvidos naquele acontecimento histórico. A CNV, por meio
do seu Relatório Final, concluiu e realizou a seguinte recomendação:

Diante das investigações realizadas, conclui-se que Vladimir Herzog


morreu em decorrência de ação perpetrada por agentes do Estado
brasileiro, em contexto de sistemáticas violações de direitos
humanos promovidas pela ditadura militar implantada no país a partir

6
Era uma célula de espionagem da Ditadura Militar criada pelo General Golbery do Couto e Silva,
então ministro da Casa Civil do presidente Ernesto Geisel. Além da subversão das informações,
as notas divulgadas, pela agência, não indicavam a autoria ou a fonte das mesmas.
27

de abril de 1964, restando desconstruída a versão de suicídio


divulgada à época dos fatos. As inciativas da CNV, tanto em entregar
à família a certidão de óbito retificada, quanto em concluir análise
pericial que evidencia o homicídio de Vladimir Herzog, foram passos
concretos na luta pela elucidação dos graves direitos humanos
ocorridos durante a ditadura militar. Recomenda-se a continuidade
das investigações sobre as circunstâncias do caso para a
identificação e responsabilização dos demais agentes envolvidos.
(BRASIL, 2014, p. 1799).

As epígrafes, por sua vez, também retratam bem de perto e corroboram a


violência que se instaura numa Ditadura Militar. A crueldade de um movimento de
exceção que não se sustentaria sem um jogo de representações imaginárias e o
simulacro de um discurso democrático que o institui como discurso socialmente
aceitável. Daí a retórica da “Revolução Democrática”, utilizada constantemente pelos
militares para justificar o Golpe e a Ditadura Militar que conduziram o Brasil a um
período de forte repressão política, cerceamento da liberdade de expressão, tortura,
assassinato e desaparecimento forçado (BRASIL, 2014).

E foi isso o que aconteceu. Sem tirar nem pôr: perdeu-se a humanidade frente
à barbárie. A tortura se tornou uma política de Estado. A vida passou a ser
banalizada. A Ditadura Militar nos animalizou e, assim como os judeus são herdeiros
da memória da Shoah7, nós também somos herdeiros de um genocídio, de uma
memória que não pode ser dobrada frente ao esquecimento político que tem
insistido em recair sobre ela.

Dito isso, neste capítulo, nos propomos a refletir de maneira panorâmica


sobre as condições de produção para a instauração da Ditadura Militar desde o
Golpe-Civil Miliar (1964) até a instalação da Comissão Nacional da Verdade no
Brasil (2011). Para isso, dialogamos com alguns pensadores e historiadores que
produziram e/ou que continuam produzindo trabalhos a partir de questionamentos
sobre a memória e a arquitetônica do Regime Miliar. Portanto, torna-se uma parte
relevante do nosso trabalho porque ela nos proporciona compreender – sobretudo a
partir da Análise do Discurso – a conjuntura política, social, cultural, histórica e
ideológica que modelou a memória social na esteira da História. Pretendemos, com
isso, trazer à luz algumas questões relevantes por entendermos que elas
fundamentam, de algum modo, a nossa proposta de análise.
7
Shoah é um vocábulo da língua iídiche usado para definir o holocausto judeu. Significa, de modo
geral, “calamidade”.
28

2.2 O DIA QUE DUROU 21 ANOS8

“Tudo caiu como um castelo de cartas”. Com este enunciado histórico e a


imagem que ele produz, Leonel Brizola9 descreveu o Golpe de Estado que estava
em curso, no Brasil, naquela noite de outono de 31 de março de 1964. O discurso de
João Goulart (Jango), na noite anterior, defendendo as Reformas de Base foi a gota
d‟água para a implementação do Golpe que já estava em curso desde a sua posse,
em 1961.

No dia seguinte, o Exército acordou “contrarrevolucionário”. O Presidente do


Senado, Auro de Moura Andrade, na calada da noite, declarou a vacância do cargo
de Presidente da República, mesmo com Jango ainda no país. Por sua vez, para dar
ares de legalidade ao Golpe, o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri
Mazzilli, também na surdina da noite, assumiu a Presidência da República
interinamente. De Brasília, Jango emitiu comunicado denunciando os golpistas,
tentando, assim, resistir ao Golpe, mas não obteve sucesso. Assustado com a força
dos acontecimentos, não restou alternativa a Jango a não ser partir para o exílio,
saindo de Porto Alegre/RS para o Uruguai.

Na sequência, Jango é deposto do cargo de Presidente do Brasil por meio de


um golpe muito bem orquestrado pelos militares e setores da sociedade civil. Assim,
sorrateiramente, os golpistas chegaram à Presidência da República e passaram a
forjar uma memória seletiva sobre a história oficial do Brasil. Com isso, o sinal verde
estava aberto para a instalação da Ditadura Militar no país. Representando a
sociedade civil, as “Marchas da Família com Deus pela Liberdade” entoavam o
discurso que afirmava que o “povo” brasileiro convocava as Forças Armadas para
“salvaguardar o país do comunismo”, estabelecendo, com isso, a Doutrina de
Segurança Nacional, para justificar a “legalidade” da intervenção militar no país.

Diante disso, foi instituído o autodenominado “Comando Supremo da


Revolução”, responsável por conduzir a repressão contra os militantes de esquerda

8
Tomo por empréstimo aqui o título de um documentário importante sobre a participação dos Estados
Unidos no Golpe de 1964. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ajnWz4d1P4
9
O célebre enunciado foi dito por Brizola no documentário “O velho – A História de Luiz Carlos
Prestes” (1997), dirigido por Toni Venturi.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1u02uqMK6Ek&t=4707s
29

e adeptos do governo deposto. Em virtude do forte apoio ao Golpe, inclusive dos


Estados Unidos (EUA), o movimento militar brasileiro ganhou espaço, força política,
diplomática e financeira para sustentar as suas ações. A imprensa, por sua vez,
levantou-se fortemente contra Jango por meio de uma tomada de posição que
marcou a memória do Golpe: nas primeiras horas do dia primeiro de abril de 1964, a
manchete que estampava as páginas de diversos jornais de grande circulação no
país, como, por exemplo, Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo e o editorial
do Correio da Manhã era: “FORA, JANGO!”.

Figura 2 – Recorte do Correio da Manhã

Fonte: Acervo online da Biblioteca Nacional.

Assim procedendo, a imprensa paulista, erguendo-se como porta-voz do


povo, abraçou a instalação de um regime autoritário e ilegítimo através de um
simulacro de democracia e legalidade. Por seu turno, o Supremo Tribunal Federal
(STF) permaneceu em silêncio perante a crise política no país, assumindo,
consequentemente, uma postura favorável ao Golpe e contribuindo para o
aprofundamento da instabilidade jurídica no país. Ademais, o apoio das lideranças
políticas, no âmbito do Poder Legislativo, e a negligência do Poder Judiciário,
acabaram, de certa forma, por consumar o Golpe. Através dos movimentos da
memória e da história, muitos acreditavam, inclusive Jango, que o Golpe de 1964
repetia, a seu modo, o que ocorrera com Getúlio Vargas em 1945 que, por sua vez,
30

foi repetido, para muitos estudiosos – também a seu modo – em 2016 contra a
Presidenta Dilma Rousseff.

Jango, temendo a instauração de uma Guerra Civil, inclusive com a


participação ativa de organismos internacionais, preferiu sair de cena. Atualmente,
os historiadores admitem que o recuo de Jango foi fundamental para não envolver a
sociedade brasileira numa guerra política, muito embora ele tenha sido criticado
duramente naquele momento histórico por não ter resistido ao Golpe. De todo modo,
Jango sabia que, diante de um conflito dessa natureza, toda a sociedade padece,
porém o golpe de maior força sempre recai sobre a parcela mais pobre da
sociedade, as minorias, bem como sobre os trabalhadores. O motim estava pronto.
O fato é que as grandes massas que formavam a sociedade civil marcharam
incansavelmente a favor do Golpe. Não muito diferente das que marcharam em
2016; a personificação do medo, no entanto, era praticamente a mesma: medo da
ruptura de tradições consagradas, medo da descentralização do saber e do poder,
medo dos trabalhadores e das minorias etc.

No campo político da direita estava a maioria dos partidos políticos, as


lideranças empresariais e tradicionais organizações da sociedade civil, como, por
exemplo, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB). No grupo político da esquerda, por sua vez, estavam as
entidades sindicais dos trabalhadores urbanos e rurais, alguns partidos políticos (a
minoria) e os movimentos sociais de esquerda que apoiavam as propostas da
Reforma de Base de Jango.

Muitos dos apoiadores do Golpe, no entanto, desejavam uma intervenção


rápida e cirúrgica, mas os militares tinham chegado realmente para ficar de vez no
poder, e ficaram por mais de vinte anos, através de eleições indiretas e um
Congresso Nacional ameaçado. Não existiam mais os três poderes republicanos: o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário, e sim a Marinha, o Exército e a Aeronáutica.
Com isso, os militares ocuparam estrategicamente postos em todo o país, tanto nos
órgãos de segurança quanto em segmentos estatais. A censura e a tortura
tornaram-se políticas de Estado pelo exercício arbitrário dos militares. A partir de
então, o Brasil foi conduzido por cinco presidentes militares:

 Ditadura General Castelo Branco: 1964-1967;


31

 Ditadura General Costa e Silva: 1967-1969;


 Ditadura General Médici: 1969-1974;
 Ditadura General Geisel: 1974-1979;
 Ditadura General João Figueiredo: 1979-1985.

Hoje, mais de cinquenta anos se passaram após os acontecimentos que


conduziram o Brasil a vivenciar uma Ditadura Militar e os efeitos de sentido que se
preservam sobre ela têm recebido cotidianamente uma arquitetura simples, quase
de esquecimento, e aquilo que as páginas da história oficial costuma atribuir ao
Regime Militar (de “contrarrevolução”) não tem nenhuma sustentação perante a sua
devastação. As marcas e as cicatrizes desse período minam a memória e
permanecem até hoje na sociedade através das relações sociais e políticas. Em
nome da democracia, da ordem e da paz, o termo Ditadura Militar sofreu
deslocamentos de sentido desde sua instauração, em 1964. Diante disso, o período
de exceção vivido no Brasil tem sido alvo de investigações sobre o passado e o
presente de uma trajetória de nossa história que devemos lutar para não esquecer e,
sobretudo, permitir que siga em frente a história de repressão e violação dos Direitos
Humanos, iniciadas com a Ditadura Militar, causa primeira deste trabalho ao invocar,
discursivamente, o testemunho como espaço de lembrança, de resistência e de
produção de outros sentidos sobre aquele evento.

O Golpe Civil-Militar10 de 1964 inicia, portanto, um novo capítulo na História


do país, a partir da qual começa-se a escrever uma parte da história que perduraria
mais de duas décadas (1964-1985) e ficaria marcada pelo forte embate ideológico
entre as forças políticas e sociais da nação. Na conjuntura internacional, o fantasma
ideológico da Guerra Fria “assustava” os militares com seus desdobramentos de
subversão, desordem e caos. Os militares usaram, então, a retórica anticomunista
(MARIANI, 1996) para justificar suas intervenções e empenharam-se na árdua
missão de salvar a “democracia” da chamada “ameaça” de esquerda. Os generais

10
Segundo Gaspari (2002), denomina-se um Golpe Civil-Militar porque os militares tiveram o apoio
de setores conservadores da sociedade civil que idealizaram o Pré-Golpe e o Golpe, além de setores
da imprensa e da Igreja Católica (inclusive do Presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, no Pré-
Golpe, e Lyndon Johnson, no Golpe, que não viam com bons olhos a simpatia de Jango pela
esquerda). O documentário O Dia que Durou 21 Anos, citado anteriormente, traz revelações
contundentes acerca da influência norte-americana no Golpe Civil-Militar brasileiro. Sobre isso ver
também: http://memoriasdaditadura.org.br/
32

temiam, assim, que o populismo e o comunismo, configurados como um perigo para


a sociedade, pudessem corromper a “ordem” e contaminar o Brasil.

Sob a égide desta retórica, a repressão aos opositores ganhou força, e se


impôs uma severa e intolerante política de silenciamento, através da censura, sobre
a sociedade brasileira. Os meios de comunicação e expressão contrários ao Regime
Militar – como, por exemplo, jornais, revistas, livros, peças teatrais, filmes, músicas e
várias outras formas de criação cultural e expressão do pensamento artístico –,
foram categoricamente censurados. A perseguição contra políticos, professores e
escritores em geral era constante. Quando não eram presos, torturados e mortos,
eram exilados do país através do desaparecimento forçado (BRASIL, 2014). Durante
a vigência do regime autoritário, quase todos os direitos estudantis, políticos e as
organizações governamentais e civis foram dissolvidos, e todas as formas de
manifestação e as reivindicações salariais por meio de greves e qualquer outra
forma de expressão popular contra o Regime Militar e a ordem estabelecida pelo
governo foram fortemente proibidas.

Em nossa perspectiva teórica, bem como na discussão empreendida por


Orlandi (1992), defendemos que sujeito e sentido se instauram no/pelo discurso e,
por isso, através do funcionamento da censura, impede-se a circulação de
determinados sentidos e, por conseguinte, impede-se que os sujeitos ocupem certos
lugares e assumam determinadas posições discursivas. Para os militares, portanto,
os obstáculos deveriam ser removidos e os alvos precisavam ser definitivamente
eliminados. Assim, na região que recobre a censura, proíbe-se a circulação de
certos efeitos de sentido. Nesse caso, a censura pode ser compreendida como um
mecanismo de controle do Estado que impossibilita a inscrição do sujeito em certas
Formações Discursivas11 (FD‟s).

No jogo político-discursivo, conforme podemos observar, há sempre a


possibilidade de resistência por meio de FD‟s antagônicas que ocupam o mesmo
campo de forças. Por isso, com o advento do regime ditatorial, tivemos aqueles que
não foram indiferentes às injustiças perpetradas pelos militares e que lutaram por
uma ação política mais justa e democrática, formulando, para tanto, fortes frentes de
resistência contra o Regime Militar.

11
Trataremos desta questão teórica na terceira parte deste trabalho.
33

A frente de resistência à Ditadura Militar, por excelência, era representada


com veemência por estudantes, acadêmicos e intelectuais, através, por exemplo, da
Música Popular Brasileira (MPB), com ênfase na produção musical de Chico
Buarque, bem como por meio do movimento artístico-cultural Tropicalismo, liderado
por Caetano Veloso e Gilberto Gil, além do discurso da Vanguarda Poética
Concretista, com destaque para o poeta Ferreira Gullar. Representando o silêncio
dos oprimidos, denominado o Discurso da Resistência por Orlandi (1992), esses
grupos utilizavam a ambiguidade da língua(gem) na luta contra a opressão, ou seja,
a palavra configurava-se, para os artistas, como arma de combate contra a
opressão, traduzindo-se por meio de um sentido de reivindicação: podemos dizer o
“mesmo” para significar “outro” [o diferente] sentido. Daí o argumento de que
“censura e resistência trabalham a mesma região de sentidos” (ORLANDI, 1992,
p.115).

No auge da repressão, da tortura e da censura, uma parte da resistência não


teve alternativa a não ser buscar exílio em outros países e pagar um preço alto
através do silêncio e do isolamento ideologicamente arquitetados. Os grupos
contrários que insistiram em ficar no Brasil, segundo o Relatório Final da CNV
(BRASIL, 2014), foram torturados e mortos através das atrocidades da Ditadura
Militar. Conforme já dito, o Regime Militar foi fortemente marcado pelo autoritarismo
e pela censura aos meios de comunicação na luta contra a liberdade de expressão.
Para utilizar os termos de Gaspari (2002), importante estudioso do período militar
brasileiro, estava declarada a Ditadura Escancarada: um intenso processo de “caça
aos comunistas” desencadeou-se Brasil afora.

No contexto político-social da Ditadura Militar, foram instaurados


12
deliberadamente vários Atos Institucionais (AI‟s) como estratégias utilizadas pelos
militares para legitimarem as várias ações políticas que eram consideradas

12
Recebeu o nome de Ato Institucional uma série de normas arbitrárias editadas à época do regime
de exceção instalado pelos militares no Brasil, em 1964, que tinham por objetivo fazer prevalecer o
controle dos militares frente às instituições legais do país, procurando dar uma aparência de
legalidade aos atos arbitrários realizados em nome da chamada Revolução. Além de seus conteúdos
arbitrários, os AIs eram aprovados sem qualquer consulta popular ou legislativa. Foram editados ao
todo 17 Atos Institucionais no curto período entre 1964 e 1969, regulamentados por 104 atos
complementares. Os responsáveis por suas edições eram os comandantes, chefes da Junta Militar
do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (o autodenominado Comando Supremo da Revolução), ou
o próprio Presidente da República, com respaldo dado pelo Conselho de Segurança Nacional. Para
mais informações ver: http://memoriasdaditadura.org.br/
34

arbitrárias perante a própria Constituição Federal em vigência. O decreto13 que


instaurou o AI-nº 5, promulgado em 1968 pelo então Presidente Costa e Silva, foi o
golpe de força mais forte em toda a história do Regime Militar.

Em resumo, o AI-5 concentrava nas mãos do governo poderes absolutos por


tempo indeterminado. Dessa forma, apoiados em prerrogativas constitucionais, os
militares não deixaram outra possibilidade de escolha para o povo brasileiro a não
ser um mergulho profundo no mar do silêncio imposto pela repressão política. A
partir de então, com a chancela do AI-Nº 5, o Presidente-Militar poderia deliberar,
sem nenhuma interferência, sobre as seguintes ações:

1) Dissolver a Câmara de Deputados e o Senado Federal;

2) Cassar majoritariamente mandatos de parlamentares em todos os níveis;

3) Exonerar, aposentar compulsoriamente e cassar os direitos políticos e civis


de qualquer cidadão;

4) Suspender o habeas corpus de presos políticos;

5) Decretar o Estado de Sítio e confiscar bens;

6) Perseguir e punir todos aqueles que se manifestassem, pelas vias da


legalidade ou não, contra o governo; e, por fim:

7) Proibir expressamente o Poder Judiciário de apreciar a legalidade das


decisões baseadas no Ato Institucional, entre outras.

Assim, ancorados “legalmente” no AI-5, os militares fecharam o cerco contra


a resistência política, fortalecendo, com isso, o seu regime repressivo através da
consolidação da censura e de outras estratégias de violência contra os opositores e
os Direitos Humanos. Dessa maneira, o governo assumia publicamente uma postura
radical no que concerne à prática da violência como um instrumento para coibir
maciçamente a resistência. A implantação do AI-5 foi considerada o segundo golpe
dentro do Golpe (1964). Nesse sentido, D‟Araújo descreve que:

[...] jamais, em qualquer época, a instituição militar esteve tão


diretamente envolvida com as atividades de repressão política. Mais
do que isso, as Forças Armadas, naquele espaço de tempo,

13
Ver o AI-5 na íntegra em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm
35

detiveram, soberanos o monopólio da coerção político-ideológica


(D‟ARAÚJO, 1995, p. 10).

Diante disso, à medida que o autoritarismo e a repressão ganhavam força e


se acentuavam, uma onda de protestos também ganhava força e espalhava-se do
norte ao sul, do leste ao oeste do país, mobilizada por universitários e secundaristas
ligados ao movimento estudantil, por setores da Igreja e da sociedade civil contrários
ao Regime Militar. Um dos maiores movimentos organizados pela resistência contra
o regime político-militar foi a chamada “Passeata dos Cem Mil”. No dia 26 de junho
de 1968, no Rio de Janeiro, a militância política organizou a maior manifestação da
história da Ditadura Militar e foi às ruas para ecoar um forte grito de protesto contra o
autoritarismo militar.

O AI-5 provocou, assim, uma transformação visível na ordem do discurso


político-militar e, consequentemente, também instaurou uma ruptura na ordem do
discurso da resistência, em seu modo de constituição e circulação na sociedade. As
manifestações, consideradas subversivas pelos militares, desencadearam um forte
processo reivindicatório que, também na compreensão dos generais, desembocava
numa espécie de contestação da ordem constitucional e do próprio AI-5. Os grupos
“subversivos” tinham como uma de suas principais bandeiras a liberdade de
expressão, a preservação de direitos fundamentais, bem como a consolidação da
democracia no país.

Mas houve um momento em que a repressão ficou “em segundo plano”.


Com a chegada do chamado “Milagre Econômico” (1969-1973), a estratégia militar
se pautava na insistência em falar no repentino crescimento econômico vivido pelo
país e, através de uma política de “apaziguamento”, exaltava o ideal de “Brasil
Grande”, que nada mais era do que uma tentativa do governo militar de mascarar a
grande desigualdade que assolava o país no que concerne à distribuição de renda
perante a sociedade. O “Milagre Econômico” estava resguardado sob a seguinte
tríade: arrocho salarial, aumento da dívida externa, forte repressão política.

Nessa perspectiva, o “Milagre Econômico”, como já era de se esperar,


contemplava apenas uma pequena parcela da sociedade, ou seja, aquela que era
economicamente privilegiada, e só servia para aumentar a distância do abismo que
36

separava ricos e pobres, deixando em suas margens a maioria da sociedade


brasileira. Com isso, passou-se a caracterizar o “Milagre Econômico” como o
terceiro golpe dentro do Golpe (1964).

Dessa maneira, a forte opressão e o autoritarismo da polícia militar eram


utilizados para justificar e assegurar a continuidade do desenvolvimento do “Milagre
Econômico” cujo lema era: “Pra Frente Brasil!”, além do slogan estampado nos
jornais, revistas e outdoors erguidos pelo governo do General Médici (1969-1974):
“Brasil, ame-o ou deixe-o”. Com a vigência do AI-5, os brasileiros passaram a ser
vigiados e monitorados em toda a sua rotina diária. A censura intensificou-se. Sobre
este complexo sistema de vigilância, Skidmore sustenta a seguinte descrição:

Escuta telefônica, violação de correspondência e denúncias por


informantes tornaram-se lugar-comum. As aulas nas universidades
eram controladas e uma onda de expurgos atingiu os principais
docentes – especialmente em São Paulo, onde um futuro presidente
brasileiro, Fernando Henrique Cardoso, foi aposentado
compulsoriamente. Numerosos outros docentes foram atingidos,
perdendo seus direitos políticos por dez anos. As forças de
segurança puseram na mira especialmente clérigos e estudantes da
oposição – entre os quais as doutrinas da teologia da libertação eram
ainda influentes (SKIDMORE, 2003, p. 232).

Perante a perseguição, o argumento utilizado pelos militares para justificar


as intervenções e, consequentemente, o rompimento da ordem constitucional,
pautava-se sempre no discurso da obrigação ou do dever de defender a “segurança
nacional” – supostamente ameaçada pelos movimentos subversivos de esquerda –
dos denominados “inimigos da revolução”, e que deveriam, portanto, ser controlados
a qualquer custo em nome da “ordem” e do “progresso” do Brasil.

Conforme observamos anteriormente, os militares não utilizaram apenas


práticas coercitivas para exercer a hegemonia do poder das Forças Armadas, mas
contaram com o apoio de grande parte da mídia da época, que era financiada pela
Ditadura Militar, ou seja, houve um enorme investimento em propagandas
veiculadas pela mídia para transmitir, perante a sociedade, um simulacro de
democracia e de ordem por meio de um jogo de imagens ideologicamente
arquitetado a favor do Regime Militar e do ideal de “Brasil grande”.

Buscava-se, assim, frente à opinião pública, a construção de uma atmosfera


democrática, igualitária e inclusiva, de paz e esperança, enquanto os opositores
37

eram silenciados e coibidos em suas práticas de incentivo à liberdade de expressão.


Por essa razão, em todo o desdobramento da Ditadura Militar, percebemos, por
parte do governo, um estímulo constante voltado para o conformismo e à
passividade perante a realidade social e econômica que envolvia os cidadãos.

Nessa discussão, é relevante retomar Althusser, quando defende a tese


acerca dos Aparelhos Ideológicos e Repressores do Estado (AIE-ARE):

O papel do Aparelho repressivo de Estado consiste essencialmente,


enquanto aparelho repressivo, em assegurar pela força (física ou
não) as condições políticas da reprodução das relações de produção
que são em última análise relações de exploração. Não só o
aparelho de Estado contribui largamente para se reproduzir a ele
próprio [...] mas também e, sobretudo, o aparelho de Estado
assegura pela repressão (da mais brutal força física às simples
ordens e interditos administrativos, à censura aberta ou tácita, etc.),
as condições políticas do exercício dos Aparelhos Ideológicos de
Estado (ALTHUSSER, 1974, p. 55-56, grifos do autor).

Diante disso, guiados pelos argumentos elencados por Althusser (1974),


compreendemos que a forte acentuação da repressão política e da barbárie
representam as características mais marcantes de um sistema político de exceção
na busca pelo poder e dominação. Assim, numa força de ação conjunta, o ARE (o
Exército) e os AIE‟s (a mídia, a Igreja etc.) trabalhavam para sustentar e legitimar as
ações dos militares no âmbito da sociedade. O aparelho ideológico repressivo do
Regime Militar era, assim, responsável por resguardar a hegemonia da ideologia
dominante sob a égide da violência e contava, para esta finalidade, com a atuação
efetiva dos Destacamentos de Operações de Informação (DOIs) e os Centros de
Operações de Defesa Interna (CODIs). Suas sedes eram localizadas no Rio de
Janeiro e em São Paulo, com outras células difundidas pelo país. Sobre a criação
dos DOIs, Gaspari endossa que:

Seria muita ingenuidade acreditar que os generais [..] criaram os


DOIs [...] sem terem percebido que a sigla se confundia com a
terceira pessoa do singular do presente do indicativo do verbo doer.
Por mais de dez anos essas três letras foram símbolo da truculência,
criminalidade e anarquia do regime militar (GASPARI, 2002, p. 178).

Um dos objetivos centrais dos agentes que comandavam a “Casa da Vovó”14


era combater a luta armada no Brasil, bem como os chamados “inimigos ideológicos”

14
O DOI-CODI também era denominado ironicamente, pelos militares, de “A Casa da Vovó”. Esse
também é o título do livro escrito por Marcelo Godoy (2014).
38

do Regime Militar, além de ser responsável por buscar, apreender, torturar e


interrogar suspeitos. Para os militares, a repressão, enquanto prática de violência,
era necessária para manterem-se intocáveis os pilares que sustentavam a
sociedade – representada pela elite dominante – e nenhum general economizou
esforços para pô-la em prática.

A respeito das torturas cometidas nesses órgãos dos quartéis, Skidmore


lembra que os militares:

[...] interrogavam todos os suspeitos da guerrilha com os métodos


que eram normais para criminosos comuns, mas não praticados com
a elite. Um deles era o pau-de-arara, em que a vítima era pendurada
nua numa vara horizontal e submetida a espancamento e choques
elétricos. Um outro consistia em submergir a vítima em água suja e
disparar uma arma bem sobre sua cabeça quando o corpo vinha à
tona. Para casos particularmente difíceis, isto é, quando a confissão
ou a prova incriminadora não estava próxima, a eletricidade era
aplicada nos órgãos genitais, ouvidos e outros orifícios do corpo.
(SKIDMORE, 2003, p. 246.)

Veremos, a seguir, que a voz de Skidmore produz eco no discurso da CNV


(e do próprio testemunho) quando esta trata das práticas de violência durante a
tortura. Tais órgãos repressores, arquitetonicamente instaurados pela lógica da
violência repressiva do Regime Militar, foram responsáveis pelo maior número de
presos políticos desaparecidos e serviam como cativeiro, câmara de interrogatório,
tortura e execução. Quando questionados pelos métodos severos e brutais nos
interrogatórios, os generais que faziam parte do Comando Militar (os mandantes)
negavam categoricamente os excessos cometidos por parte dos militares
(torturadores), inclusive ainda continuaram a sustentar este discurso quando foram
ouvidos pela CNV:

Em atendimento à solicitação da CNV, os comandantes das três


forças instauraram no final de março de 2014 as sindicâncias
requeridas. Em 17 de junho de 2014 [...] foram encaminhados à CNV
pelo Ministério da Defesa os relatórios das três sindicâncias, nos
quais, de forma homogênea, se concluiu não ter havido nenhum
desvio de finalidade quanto ao uso daquelas instalações. No
relatório do Exército, asseverou-se que „não foram encontrados, no
acervo pesquisado, registros formais que permitam comprovar ou
mesmo caracterizar o uso das instalações dessas organizações
militares para fins diferentes dos que lhes tenham prescritos em lei‟.
Já no relatório da Marinha, a conclusão se deu na forma seguinte:
„[...] como podemos verificar no tópico „USO DA ILHA DAS FLORES
PELA MARINHA‟, o uso das mesmas instalações não se constituiu,
39

de modo algum, em desvio de finalidade, tendo em vista que, ao ser


criado pelo aviso ministerial no 3.907 de 26 de dezembro de 1968, o
destacamento especial da ilha das Flores recebeu como missão
principal o acautelamento de presos, sendo esta, portanto, a sua
principal finalidade. Por fim, em seu relatório, a Aeronáutica
concluiu que „[...] a análise histórica dos fatos documentados
descreve a efetiva realização de diversas missões pelas unidades
aéreas sediadas na Base Aérea do Galeão, servindo de
demonstração de estrita obediência às determinações legalmente
expressas, sem qualquer referência a uso diverso do regularmente
destinado‟” (BRASIL, 2014, p. 65, grifos nossos).

Durante todo período do Regime Militar (1964-1985), oitenta por cento (80%)
dos casos de desaparecimento constatados ocorreram só no governo Médici15,
momento em que o aparato militar chegou ao auge da crueldade humana. Os
movimentos sociais foram fortemente reprimidos, seus líderes foram presos,
torturados, assassinados ou expulsos do país. Os sindicatos foram invadidos,
fechados, e as intervenções militares trataram de obliterar os focos de resistência à
Ditadura Militar.

A imagem de “tranquilidade” política e econômica era sustentada pela


vigência do AI-5, utilizado, conforme dissemos no início, para eliminar e silenciar
“legalmente” os opositores por meio da repressão e da censura. Tudo isso
externava, ainda que implicitamente, a face ideológica autoritária dos militares: um
projeto excludente no que concerne à economia e extremamente autoritário no
âmbito da política que relegava e conduzia à subalternidade e à clandestinidade os
brasileiros que foram condenados e sentenciados, sem direito à voz, desde o início,
quando o castelo de cartas desmoronou.

Após essa breve retomada histórica das condições de produção da Ditadura


Miliar, na sequência, vamos lançar um olhar sobre a instauração da CNV e o
Relatório Final. Tal empreendimento é relevante porque nos ajuda a compreender a
necessidade social, histórica e política de instalação da CNV no Brasil.

15
Em trabalho que realizamos em 2015, propusemos especificamente analisar a constituição e o
funcionamento político-ideológico do discurso de Médici (1969-1974) através do jogo de imagens na
representação do outro.
40

2.3 A BUSCA PELA VERDADE: A INSTAURAÇÃO DA CNV

Antes de tudo, precisamos compreender a necessidade histórica e política de


instauração de uma CNV no Brasil. Por definição, uma CNV representa um arranjo
institucional para enfrentar o legado de violência de um país, por meio da coleta do
testemunho dos sobreviventes que foram submetidos à tortura, dos familiares e seus
algozes, bem como da seleção de informações sobre os locais e a cultura material
que confirmem a repressão ou a sua resistência (BRASIL, 2014). Convoca-se,
assim, por força de Lei, uma CNV para analisar se há impunidade, além de se
verificar se houve violação dos Direitos Humanos, por parte do Estado, conduzindo a
crime de responsabilidade. Tal organismo oficial realiza um trabalho
temporariamente para investigar, através de perícia técnica especializada, arquivos
e documentos desconhecidos sobre as diversas formas de violência praticadas no
passado, além de convocar e ouvir testemunhas que vivenciaram ou presenciaram a
violação dos Direitos Humanos por parte de agentes do Estado.

O debate acerca da instauração de uma CNV, no Brasil, iniciou com o projeto


que foi apresentado textualmente na 3ª edição do Plano Nacional dos Direitos
Humanos16 (PNDH/3), realizada em dezembro de 2009. A partir de então, as
questões relacionadas à CNV têm promovido um forte debate no âmbito
especializado do Direito, bem como nos grupos de interesse formados por familiares
de mortos, desaparecidos, ex-presos políticos e vítimas de tortura durante o Regime
Militar, sobretudo entre aqueles que defendem os Direitos Humanos, além de
provocar discussões nas instituições que representam os militares.

16
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNHD) do Governo Federal foi criado com base no
inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal/88, pelo Decreto n.º 1.904 de 13 de maio de 1996.
Apresenta o diagnóstico da situação dos direitos humanos no País e, ao mesmo tempo, instaura
medidas para a sua defesa e promoção. Defende a filosofia de um programa plurianual elaborado por
setores da Sociedade Civil, movimentos sociais e entidades de classe, que propõem diretrizes e
metas a serem implementadas por meio de políticas públicas voltadas à consolidação dos direitos
humanos no Brasil. Já se consolidaram três versões do PNDH: o PNDH-1 e o PNDH-2 foram
publicados durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, e o último, o PNDH-3, foi
idealizado no governo do Presidente Lula. O programa não tem uma execução imediata. Para que as
propostas debatidas e sugeridos pelo PNDH possam entrar em vigor, é necessária a aprovação
prévia pelo Congresso Nacional. Consulte o PNDH/3 na íntegra aqui: http://dhnet.org.br/pndh/ ou
aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm
41

Com isso, o discurso sobre a CNV e seus temas passou a ressoar produzindo
diferentes efeitos na ordem do dia. O objetivo centralizador de instituir a CNV,
encontrado também explicitamente no corpo do Relatório Final da CNV (BRASIL,
2014), está expresso no texto do PNDH/3, que traz como fundamento o Eixo
Orientador VI, com o título “Direito à Memória e à Verdade”. O Eixo Norteador
apresenta essencialmente três diretrizes: a primeira, preconiza o “reconhecimento
da memória e da verdade como Direito Humano e dever do Estado”; a segunda, por
seu turno, reza sobre a “preservação da memória e a construção pública da
verdade”; a terceira, por fim, concebe a “modernização da legislação relacionada
com a promoção do direito à memória, fortalecendo a democracia” no país (BRASIL,
2010, p. 176). Dessa maneira, o PNDH/3 determinou que:

Eixo Orientador VI: Direito à Memória e à Verdade. A


investigação do passado é fundamental para a construção da
cidadania. Estudar o passado, resgatar sua verdade e trazer à tona
seus acontecimentos caracterizam forma de transmissão de
experiência histórica, que é essencial para a constituição da memória
individual e coletiva. [...] A história que não é transmitida de geração
a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o
esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência
coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a
memória e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua
própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações
totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de
erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio,
como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano
brasileiro. [...] Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da
verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado.
Objetivo Estratégico I: Promover a apuração e o esclarecimento
público das violações de Direitos Humanos praticadas no
contexto da repressão política ocorrida no Brasil no período
fixado pelo art. 8o do ADCT da Constituição, a fim de efetivar o
direito à memória e à verdade histórica e promover a
reconciliação nacional. Ação Programática: a) Designar grupo de
trabalho composto por representantes da Casa Civil, do Ministério da
Justiça, do Ministério da Defesa e da Secretaria Especial dos Direitos
Humanos da Presidência da República, para elaborar, até abril de
2010, projeto de lei que institua Comissão Nacional da Verdade,
composta de forma plural e suprapartidária, com mandato e prazo
definidos, para examinar as violações de Direitos Humanos
praticadas no contexto da repressão política no período mencionado
[...] (BRASIL, 2009, s/p, grifos do Decreto).

Diante disso, o PNDH/3 passa a ser o mais polêmico da história, uma vez que
já defende a instalação da CNV e, consequentemente, a investigação dos crimes de
42

lesa-humanidade praticados durante o Regime Militar. Por isso, de acordo com


Vannuchi (2013), um segmento do governo estava:

[...] deslanchando e multiplicando iniciativas que buscavam atingir


como meta a instalação de uma Comissão Nacional da Verdade,
enquanto outra área, muito mais antiga e de enorme contingente,
seguia resistindo a promover uma serena virada de página mediante
admissão de todos os erros desse passado recente (VANNUCHI,
2013, p. 357).

Assim procedendo, a memória da Ditadura Militar atingiu com força o Brasil e


as reações por parte da sociedade civil, setores da iniciativa privada, da imprensa,
representantes da Igreja Católica e, sobretudo, dos agentes públicos das três Forças
Armadas foram imediatas. Por exemplo, o Nelson Jobim, Ministro da Defesa,
prontamente elaborou uma carta de demissão para entregar ao então Presidente da
República, Luiz Inácio Lula da Silva. Por sua vez, os comandantes das três Forças
Armadas, alegando “solidariedade”, ameaçaram fazer o mesmo que o Ministro da
Defesa.

Perante a pressão, o Presidente Lula realizou mudanças no texto do PNDH/3,


instituindo um novo decreto. No novo decreto, por sua vez, a responsabilização pela
prática de crimes contra os Direitos Humanos realizada por agentes estatais durante
a Ditadura Militar, que, anteriormente, era criminal e civil, passou a ser apenas civil,
corroborando, assim, muitos aspectos ainda da Lei de Anistia (1979). Também se
ampliou o período de investigação, que, inicialmente, contemplava o período
compreendido entre 1964-1985, passando, na nova redação, a compreender o
período de 1946-1985, entre outras alterações. Com isso, o projeto passou de bem
específico para bastante amplo no que concerne à linha temporal de investigação
por parte dos membros da CNV.

A ampliação do período de investigação contribui, consequentemente, para


aumentar a distância do abismo que separa a ocorrência dos fatos do passado e as
apurações da CNV no presente. Esse aspecto é positivo à medida que possibilita
uma maior e mais ampla compreensão do contexto político-social, econômico e
jurídico que levaram à instauração da Ditadura Militar no Brasil, bem como à adoção
de medidas que contribuíram para a violação sistemática dos Direitos Humanos e,
por conseguinte, configuraram instrumentos de atuação do Estado através da
repressão e da tortura. Diante disso, a CNV teve a possibilidade de ser muito mais
43

efetiva no sentido de elaboração das recomendações que visam à política da não


repetição e o aprimoramento das instituições do Estado, já que apresenta uma
compreensão ampla dos acontecimentos históricos. Por outro lado, a ampliação do
tempo de investigação comprometeu, em certo limite, o acesso a um grupo bem
maior de testemunhas e a documentos que foram forjados ou destruídos por
agentes do Estado ao longo da história.

Pois bem, conforme podemos observar, o surgimento de uma CNV não se


deve “à graça do céu” e muito menos é fruto de um desejo unicamente individual. No
caso da brasileira, a reflexão em torno da instituição da CNV se intensificou após o
Brasil ter sido condenado no Caso Araguaia (“caso Gomes Lund e outros versus
Brasil”) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH/2010), da
Organização dos Estados Americanos (OEA), “[...] por não haver localizado o corpo
dos guerrilheiros tombados no Araguaia, nem punido os militares responsáveis pelas
execuções e desaparecimentos” (PAIVA & POMAR, 2011, p. 114).

Dito de outra forma, a Corte entendeu que o Estado brasileiro violou o direito
à proteção judicial, consagrado através da Comissão Americana de Direitos
Humanos17 (CADH), por não ter investigado, julgado e punido os responsáveis
pelas graves violações de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund. A sentença
apresenta sanções no âmbito dos Três Poderes da República do Brasil, além do
Ministério Público Federal.

Em sua decisão histórica, a CIDH reconheceu a relevância da instalação de


uma CNV no Brasil, todavia enfatizou, com veemência, que esse esforço por si só
não é suficiente para estabelecer a verdade histórica e garantir que a justiça seja
feita. Nesse sentido, a Corte defendeu que a instauração de uma CNV:
[...] se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos,
para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer
a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma
Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da
estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a
construção e preservação da memória histórica, o esclarecimento de

17
Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 22
de novembro de 1969 (em vigência desde 18 de julho de 1978). O artigo 8.1 da Convenção
Americana de Direitos Humanos assevera que qualquer “[...] pessoa tem direito a ser ouvida, com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido anteriormente por lei, [...] para que se determinem seus direitos ou obrigações
de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
44

fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e


políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade. Por
isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional
da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade
com critérios de independência, idoneidade e transparência na
seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e
atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu
mandato. A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que as
atividades e informações que, eventualmente, recolha essa
Comissão, não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a
verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades
individuais, através dos processos judiciais penais (CIDH, 2010, s/p).

Perante a sentença proferida pela Corte Internacional, restou ao Brasil instalar


a CNV, abrir seus arquivos e dar voz ao testemunho para apurar, na medida do
possível, as graves violações dos Direitos Humanos e seus respectivos mandatários
e praticantes durante a Ditadura Militar, muito embora ainda não se tenha
conseguido levar ao tribunal aqueles que, direta ou indiretamente, se beneficiaram
com a Ditadura Militar. Por parte daqueles que defendem a memória (do “perigo
comunista”) construída durante a Ditadura Militar e atualizada ao longo dos anos,
ecoam os discursos de que a concretização dos trabalhos da CNV não passou de
uma revanche, o termo adequado mesmo talvez seria “vingança”, por parte daqueles
que lutaram contra a “Revolução” de 1964.

A instalação da CNV se caracteriza, sobremaneira, por seu caráter tardio,


separado por aproximadamente trinta anos do final da Ditadura Militar (1985), bem
como por cerca de quarenta anos dos principais acontecimentos que a CNV
precisou averiguar. Essa problemática nos revela pelo menos duas chaves de
leitura: a primeira aponta para uma transformação, que insiste em não acontecer, de
um processo que ainda está em curso e, portanto, permanece inacabado após
tantos anos; a segunda, tão complexa quanto a primeira, exige que os diálogos e
duelos contemporâneos sejam entendidos a partir de condições de produção sócio-
históricas cada vez mais amplas. A CNV, em suma, organiza-se em torno da égide
de quatro finalidades centrais: a) promover o direito à memória; b) busca efetivar a
verdade histórica; c) propõe a promoção da reconciliação nacional; d) e recomenda,
através de relatório circunstanciado, as devidas reformas nas instituições estatais,
principalmente naquelas ligadas à segurança pública (BRASIL, 2012).
45

Diante disso, em maio de 2012, a presidenta Dilma Rousseff nomeou os


membros da CNV em obediência ao disposto na Lei 12.528 de 18 de novembro de
2011. A Lei preconiza, por sua vez, que compete à CNV, entre outras questões:

Identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e


as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos
humanos [...] suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos
estatais e na sociedade (BRASIL, 2011, Art. 3º, inciso III, s/p.).

Dessa maneira, a CNV desenvolveu as atividades de apuração em parceria


com várias entidades de proteção aos direitos fundamentais em todo o Brasil,
principalmente com a OAB, cujo trabalho de cooperação foi relevante para a
recuperação, em certo limite, da verdade histórica do período marcado pelo
autoritarismo do Estado brasileiro. Conforme podemos observar, o trabalho dos
membros da Comissão não foi isolado e ela ainda contribuiu com a ampliação das
redes de cooperação para ter acesso a documentos, arquivos e testemunhas, à
proporção que buscou apoiar à instalação de Comitês e Comissões Estaduais da
Verdade (CEV) em vários estados da federação.

É relevante elucidar, conforme visto anteriormente, que o desenvolvimento do


trabalho não foi tão tranquilo. A CNV enfrentou muita resistência no desenvolvimento
de suas investigações, tanto por parte das corporações militares quanto da mídia
conservadora. Nessa perspectiva, durante a realização das atividades da CNV
(BRASIL, 2014), não tivemos um só debate acerca do sentido social e histórico de
seu trabalho, mas posicionamentos, interesses políticos e julgamentos contraditórios
que tinham por finalidade, por assim dizer, obscurecer as investigações em
andamento, interferir nas recomendações do Relatório Final da CNV e, sobretudo,
(re)modelar determinada memória social e histórica instaurada sobre/com a Ditadura
Militar no Brasil.

Pois bem, a instituição de uma CNV é concebida também como importante


mecanismo que contribui, de certo modo, para o início da Justiça de Transição entre
um regime de exceção e outro que lhe é sucessor, este último inspirado em
princípios e valores democráticos. Nesse sentido, a Justiça de Transição é
entendida como um conjunto de experiências, procedimentos e mecanismos –
judiciais e políticos – utilizados pelo Estado e sociedade para se redimirem com o
legado de violência, quando da passagem de um período de graves violações dos
46

Direitos Humanos, como, por exemplo, a Ditadura Militar, para outro que se respalda
em valores democráticos e de respeito aos direitos essenciais da dignidade humana.
O Estado Democrático de Direito é, em última instância, responsável pela
preservação e tutela dos Direitos Humanos, constituindo-se, portanto, crime contra a
humanidade a sua negligência ou omissão e suas respectivas consequências para a
sociedade. Dado o exposto, a Justiça de Transição se caracteriza, sobretudo, pela
mudança de um cenário político de conflito para um contexto de paz entre a
sociedade civil e o Estado.

Para tanto, assegurar o direito à memória e à verdade sobre os


acontecimentos da Ditadura militar é essencial para promover a chamada Justiça
Transicional e a Justiça de Reparação no Brasil. Em relação ao Modus Operandi da
CNV, de modo geral, ele se caracteriza por meio de seu caráter consultivo,
exploratório, bem como explicativo na busca pela verdade histórica, mas sem efeito
jurisdicional. Todavia, os trabalhos da CNV podem e devem conduzir a justiça
brasileira à autorreflexão para que processos criminais possam ser instaurados
visando à responsabilização daqueles que cometeram crimes contra a humanidade
na Ditadura Militar (BRASIL, 2014). Nessa perspectiva, embora não se revista de
função persecutória ou jurisdicional (BRASIL, 2011), o Relatório Final da CNV pode
ser utilizado como norte para que o Poder Judiciário possa julgar e punir os
responsáveis, uma vez que traz em seu corpo a relação nominal de pessoas
envolvidas direta ou indiretamente com a autoria dos crimes.

O processo de reconciliação nacional (BRASIL, 2012), por sua vez, é


bastante complexo. Nesse sentido, ele aponta, entre outras questões, para o
restabelecimento de vínculos entre aqueles que tiveram os Direitos Humanos
violados durante o Regime Militar (as vítimas que ainda permanecem vivas ou
familiares), a sociedade de forma geral e o Estado brasileiro. Este é um ponto
também complicado porque o povo foi oprimido pelo próprio Estado, que, em tese,
deveria justamente fazer o contrário: proteger as garantias e direitos fundamentais
do seu povo. Portanto, o Estado precisaria fazer uma reflexão ética para que o povo
pudesse voltar a acreditar nele enquanto seu guardião. O objetivo basilar da CNV é,
em última instância, buscar concretizar, na medida possível, a Justiça de Transição
no Brasil e tal objetivo aponta para uma reconciliação imperativa do Estado com a
sociedade (BRASIL, 2012). Nessa perspectiva, representa um esforço de recuperar
47

a memória daqueles que foram atingidos pelos processos de violação dos Direitos
Humanos conforme veremos na análise do testemunho enquanto corpus deste
trabalho.

Assim procedendo, deseja-se que a apuração da verdade histórica e, com a


entrega do Relatório Final da CNV, o povo possa voltar a estabelecer um vínculo de
confiança com o Estado e suas instituições a partir da obrigatoriedade deste último
de estabelecer o bem comum por meio da não violação de direitos fundamentais e a
promoção da cultura da paz. Para que isso possa ocorrer, não é necessário apenas
a revelação daquilo que aconteceu no passado, mas a promoção da justiça e o
reconhecimento oficial do Estado pelos crimes que cometeu durante o regime de
exceção e, sobretudo, um trabalho de revisão de suas instituições que apresentarem
um comportamento incompatível com os valores de um Estado Democrático de
Direito e com a salvaguarda dos Direitos Humanos no país.

O propósito final de uma CNV é, por conseguinte, a elaboração de um


relatório que torne público tais casos de violação da integridade humana, seja de
natureza física e/ou psicológica, bem como tem a incumbência de elaborar
propostas e recomendações a fim de que possam fortalecer a segurança pública e
proteger os direitos democráticos para que a repetição destas violações jamais
ocorram novamente no país (BRASIL, 2012). Ao mesmo tempo, apesar dos registros
históricos contribuírem para compreensão do funcionamento do aparato militar e, em
alguns casos, para localização dos desaparecidos, é importante endossar que nem
todos os documentos sigilosos do período da Ditadura Militar no Brasil
correspondem à verdade, uma vez que havia a prática de produção de provas e
documentos falsos, por parte dos agentes da repressão, para conduzir os opositores
à tortura e até à morte. Esse foi mais um trabalho que a CNV teve que realizar:
separar documentos forjados de documentos que correspondiam à realidade dos
fatos.

Esse processo de sistematização é importante se se almeja chegar à


reconciliação do Estado com a sociedade brasileira e para que se possa recuperar,
por assim dizer, a verdade sobre os acontecimentos da Ditadura Militar que
marcaram a história brasileira. Não obstante, é preciso ressaltar que apenas trazer à
luz os eventos do passado não é suficiente para se construir essa reconciliação
nacional, mas fundamental para que se possa lutar para que a devida justiça seja
48

feita (BRASIL, 2014). Esse é, aliás, o anseio dos familiares, presos e exiliados
políticos durante a Ditadura Militar no Brasil. Diante disso, o sentido de justiça é um
tema que merece muita reflexão. Aliás, inicialmente, foi concebido que seria
instalada, no Brasil, uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça (CNVJ),
entretanto, por meio de pressão política, conforme apresentamos anteriormente, o
termo “Justiça” acabou por ser excluído do lema e dos trabalhos da Comissão.
Nessa direção, Paiva & Pomar (2011, p. 113) descreveram o que aconteceu da
seguinte maneira: “[...] o governo modificou diversos tópicos importantes do PNDH-
3, inclusive os referentes à Comissão, que de imediato perdeu, no nome, a palavra
„Justiça‟”. Com esta exclusão, a CNV passou a produzir, de certo modo, o efeito da
expectativa no que se refere à “justiça”.

Ao discursar sobre o mal-estar gerado com a exclusão do termo “Justiça”, a


Presidente da “Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos
Brasileiros” argumentou, conforme lemos em Amado (2010, p. 67), que “[...]
entendemos que o país não precisa só conhecer a sua história. Também é preciso
que seja feita justiça”. Apesar de ainda existir um forte sentimento de injustiça,
consideramos que o trabalho da CNV foi pertinente porque possibilitou o
levantamento de, pelo menos, cinco pontos que se coadunam e que descrevemos a
seguir:

1. Publicizou os processos em que o Estado violou, por meio de seus agentes e


instituições, os direitos fundamentais de cidadãos comprometidos com as
lutas sociais e o estabelecimento da ordem democrática, bem como atestou
que o Estado não assegurou a liberdade de expressão num determinado
período da história do Brasil;
2. Lançou luz, em certo limite, sobre o autoritarismo e as violações cometidas
por parte do Estado brasileiro à época da Ditadura Militar;
3. Contribuiu, em certo sentido, para que a violação de Direitos Humanos e
garantias constitucionais fundamentais, individuais e/ou coletivas, não volte a
se repetir no âmbito da sociedade brasileira;
4. Ajudou a desconstruir, também de certa maneira, a memória que foi instituída
historicamente e ideologicamente por meio da Ditadura Militar;
5. Deu voz – por meio dos testemunhos registrados – àqueles que foram
silenciados de todas as formas possíveis durante o Regime Militar.
49

No Brasil, a promulgação da Lei de Anistia (1979) é um exemplo de um


instrumento legal que garante, ainda hoje, a imunidade de militares e agentes do
Estado envolvidos com a violação dos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar,
representando, ao mesmo tempo, um entrave para que a Justiça de Transição se
efetive no Brasil. Nesse diapasão, a questão brasileira se torna ainda mais grave,
conforme observado anteriormente, quando lembramos, por exemplo, que, em 2010,
vinte e cinco anos após o término da Ditadura Militar – portanto pressupondo que
vivíamos numa democracia – o Supremo Tribunal Federal (STF) teve a oportunidade
de realizar a revisão da Lei de Anistia e a maioria da Corte Suprema votou pela
legalidade e permanência dos termos da Lei de 1979. A insistência do não
rompimento do sigilo sobre o que de fato aconteceu nos porões da Ditadura Militar
fere, até hoje, o direito do povo de conhecer a sua própria história e viola,
sobremaneira, o direito à verdade, à memória e à justiça, causas primeiras da CNV.

Com isso, os crimes e demais violências cometidas em nosso passado


autoritário foram lançados no esquecimento com a não condenação dos seus atores.
A memória cruel da Ditadura Militar permaneceu restrita às vítimas e aos familiares
de mortos e desaparecidos políticos que lutaram, juntamente com grupos ligados
aos Direitos Humanos, para trazer à luz essa memória do passado e conquistar a
tão sonhada justiça. Entretanto, esse cenário começou, ainda que parcialmente, a
mudar com a instauração da CNV.

Neste ponto, nos deparamos com um problema grave: já que o comando de


transição para a democracia se faz por aqueles que defenderam o período de
exceção, há uma preocupação no sentido de proteger as ações cometidas naquele
regime totalitário, impedindo, muitas vezes, que sejam investigadas a fundo e
punidas através da edição de leis que garantirão a impunidade dos crimes
praticados contra a humanidade ou, dito de outra forma, contra todos aqueles que
apresentaram posicionamento político-ideológico contrário ao Regime Militar.

A Lei de Anistia (1979), portanto, é um mecanismo que impede o Brasil de


seguir em frente na apuração, julgamento e condenação daqueles que estiveram
envolvidos com crimes contra a humanidade durante a Ditadura Militar, ou seja,
caracteriza-se – nos termos de Robin (2016) – como uma forma de esquecimento-
apagamento político-ideológico sobre a memória. Enquanto não houver uma revisão
ou mesmo a revogação da Lei da Anistia, a tão sonhada Justiça de Transição não se
50

efetivará no Brasil e a força do esquecimento será cada vez mais imperativa sobre a
memória social que se produz sobre aquele acontecimento histórico. Diante disso, a
autora considera que:

Os esquecimentos sistemáticos em forma de perdões ou de anistias


são uma outra maneira de realizar o apagamento do passado das
sociedades [...] O passado “nulo e não ocorrido” é, então, o que as
leis da anistia procuram fazer, a fim de acelerar o processo de
reconciliação nacional, evitar novas guerras civis, garantir a
continuidade do Estado [...] O passado não é apagado pela anistia;
ele simplesmente está fora de alcance dos mortais comuns e não
tem mais existência oficial: a anistia inibe a ação pública, os
procedimentos em curso são interrompidos, a condenação não
consta mais nos registros criminais (ROBIN, 2016, p. 82-83).
De todo modo, com a entrega do Relatório Final da CNV18, há a possibilidade
de que a investigação, além de desconstruir o simulacro da imagem das Forças
Armadas, principalmente através do testemunho, possa ultrapassar os seus limites e
objetivos iniciais e promover o estabelecimento de medidas de responsabilização
penal, o que exigiria outra compreensão da Lei da Anistia (1979) ou mesmo sua
revisão, por exemplo, pois ela inviabiliza, por assim dizer, a responsabilização
criminal daqueles que cometeram crimes contra os Direitos Humanos no período da
Ditadura Militar, além de impedir o julgamento penal de agentes do Estado enquanto
autores de torturas, homicídios, sequestros, desaparecimentos forçados, entre
outros crimes conexos cometidos contra a humanidade naquele acontecimento
histórico (BRASIL, 2014).

Assim, a revogação de prerrogativas que asseguram aos agentes públicos


certa imunidade no que concerne à responsabilização de crimes cometidos no nosso
passado recente, como, por exemplo, o foro privilegiado, apontaria para os anseios

18
Nessa direção, entendemos que o trabalho de investigação não termina com a entrega do Relatório
Final da CNV. Até porque, em maio de 2018, mais uma vez, o Brasil foi obrigado a lembrar de seu
passado e a acertar as contas com ele quando a memória da Ditadura Militar voltou a produzir efeito
de sentido sobre aquele acontecimento histórico entre nós. Tal memória veio à tona a partir de um
memorando da Central Intelligence Agency (CIA/EUA), de que o então General Presidente Geisel
(1974-1979) tinha não só conhecimento da tortura, no âmbito dos quartéis, enquanto prática militar,
mas também deu apoio à execução sumária de todos os opositores ao Regime Militar. O memorando
é do ex-diretor da CIA, Willian Egan Colby, enviado ao secretário de Estado dos EUA, Henry
Kissinger, com data de 11 de abril de 1974 e está no rol dos milhares de documentos que tratam da
relação dos Estados Unidos com a América do Sul entre 1969-1976. Os arquivos foram mantidos em
regime de confidencialidade por mais de quatro décadas e apenas em dezembro de 2015 puderam
ser consultados publicamente. Parte do memorando ainda é sigiloso. Para saber mais:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/politica/1526053261_197839.html
51

dos movimentos de familiares e, de forma mais ampla, por parte de todos aqueles
que levantam a bandeira em defesa dos Direitos Humanos e da democracia no país.

Nesse sentido, apesar de tardiamente instaurada, a CNV surge como um


importante instrumento no processo de retomada – na medida do possível – de uma
agenda democrática no Brasil ao garantir às vítimas da Ditadura Militar, bem como a
seus familiares, a apuração, esclarecimento e a publicidade das graves violações
dos Direitos Humanos praticadas pelo Estado de exceção. Assim sendo, a CNV
representa – em certo limite – a continuidade de medidas transicionais que foram
empreendidas pelo Estado brasileiro desde 1985, com o objetivo de cumprir com as
obrigações de um Estado Democrático de Direito, restituído após um longo período
ditatorial.

A instauração de um Estado Democrático de Direito, por seu turno, não pode


comungar com um regime de exceção, à medida que este último fere princípios
democráticos e constitucionais, além de suspender direitos universais, tornando-se,
consequentemente, um problema grave para a nação. Com isso, a contribuição
social e histórica que a CNV desempenha no Brasil é fundamental porque
estabelece – em certa medida – a reconciliação do Estado brasileiro com a
sociedade, buscando, ao mesmo tempo, constituir uma memória social que traga a
verdade sobre a violência para todas as pessoas que tiveram os Direitos Humanos
violados à época do Regime Ditatorial, além de apresentar às gerações que não
vivenciaram aquele período de exceção, o conhecimento de sua história para que
lutem contra o esquecimento e a repetição.

Portanto, trazer à baila a verdade histórica sobre a Ditadura Militar é um


compromisso que o Estado precisa assumir veementemente perante a sociedade,
uma vez que as torturas, as prisões, as mortes, os desaparecimentos forçados
(BRASIL, 2014), a destruição de arquivos e provas, bem como o cerceamento da
liberdade de expressão foram praticadas nas/pelas instituições do próprio Estado e
com a sua chancela. Assim sendo, a CNV dedicou-se a reconstruir a verdade
histórica na tentativa de reconhecimento das identidades e das pessoas que
participaram ativamente dos movimentos de contestação e sofreram consequências
severas por ousarem realizar qualquer tipo de crítica ou oposição ao Regime Militar
em vigência no país.
52

Com o devido retorno à democracia, o Estado brasileiro e a sociedade


empreendem forças para desvelar os acontecimentos do período ditatorial, com o
objetivo de reparar – o mínimo que seja – o sofrimento das vítimas e seus parentes,
buscar a reconstituição da memória coletiva e, sobretudo, a responsabilização dos
perpetradores e a reformulação das instituições do Estado na busca pela
manutenção da estabilidade democrática no Brasil (BRASIL, 2014). A reconstrução
da história, a reconciliação no âmbito nacional, bem como a recomendação de
providências devem servir – como endossa Weichert (2013) – para a constituição de
uma reflexão contínua sobre o papel da sociedade e dos órgãos do Estado num
esforço conjunto na busca pela manutenção da democracia e o respeito aos Direitos
Humanos.

Assim, torna-se imperativo que, juntamente com a CNV, todos entes públicos
que, direta e/ou indiretamente, envolveram-se com a repressão e violação de
direitos e garantias fundamentais assumam uma postura crítica e analisem seu
passado a fim de constituírem estratégias para prevenir a repetição e a participação
ativa ou passiva de agentes públicos, inclusive da sociedade civil, num regime de
exceção. Saliente-se, ainda, que as recomendações realizadas pela CNV, em seu
Relatório Final, no que concerne à reforma das instituições do Estado, são tão
relevantes quanto à busca pela verdade, pela memória e contribuem, sobremaneira,
para a efetivação da Justiça de Transição no Brasil. Compreendemos, assim, que
embora as recomendações realizadas pela CNV sejam de extrema importância, a
decisão final de implementá-las compete exclusivamente ao desejo político do
Estado brasileiro.

Consideramos, diante disso, que uma maneira de pressionar o Estado para


que as recomendações de fato sejam efetivadas é a divulgação irrestrita, através de
campanhas temáticas nas diferentes mídias sociais, do Relatório Final da CNV, para
todos os setores da sociedade, a fim de que – na esperança de que conhecendo o
que foi a Ditadura Militar –, possam se sensibilizar, se conscientizar, sair do estado
de amnésia ideológica e lutar por ações de implementação das recomendações
feitas no Relatório por parte do Estado brasileiro. Esperamos, nesta perspectiva, que
este trabalho possa – de certo modo e dentro dos limites de nossa investigação –
contribuir para a divulgação do Relatório Final da CNV através, sobretudo, do
testemunho. Esse é um aspecto muito significativo porque:
53

Especialmente em processos de transição democrática, o acesso à


informação converte-se em uma ferramenta essencial para a
elucidação das atrocidades do passado e, consequentemente, em
uma condição necessária para a obtenção da verdade, a reparação
das vítimas, a recuperação da memória histórica e a reconstrução do
Estado democrático (BRASIL, 2014, p. 39).
Não podemos aceitar que o Estado, enquanto guardião maior do povo,
torture, assassine e viole Direitos Humanos através de seus entes e por qualquer
justificativa que seja, muito embora reconheçamos, infelizmente, que isso ainda
aconteça. Não necessariamente como na Ditadura Militar, mas por meio de múltiplas
violências que ainda assolam a sociedade (as minorias), inclusive com o
cerceamento dos Direitos Humanos.

Com isso, o discurso da CNV propõe romper com o modus operandi da


Ditadura que se caracteriza – a exemplo de qualquer Ditadura que se institucionaliza
– por três movimentos ideológicos, chancelados pela suposta luta pela verdade e
defesa da democracia, e que apontam para a configuração de três instâncias de
violência: em primeira instância, pela violência que lhe é própria, enquanto Ditadura,
sob o efeito do que é legítimo e aparentemente natural; em segunda instância, pelo
jogo da mentira que responsabiliza o outro por meio de um simulacro de conspiração
e atentado contra a ordem; a terceira, tão cruel quanto as outras, manifesta-se
quando a sociedade se sente e, de fato, é imobilizada perante aqueles que
justamente deveriam defendê-la, deixando-a refém do próprio Estado que mutila as
pessoas por meio da violência, do autoritarismo e do abuso de poder.

Hoje, afirma-se rotineiramente que se vive numa democracia, mas não


esqueçamos que os ditadores também estavam empenhados numa
“Contrarrevolução Democrática” em 1964. Infelizmente, o que há é a sobreposição
da imagem de “inimigos da sociedade”, através de um trabalho da história e da
ideologia, que não recai mais apenas sobre o “comunista”, mas sobre aqueles que
são diariamente invisibilizados pelo Estado e pela grande mídia, como, por exemplo,
os negros, os índios, os homossexuais, as mulheres, o povo relegado à favela,
vivendo à margem da sociedade em condições subumanas, enfim as minorias.
Atualmente, caro leitor, o inimigo é outro, a “técnica subversiva” também, mas a
violência que se pratica contra aqueles é apenas aparentemente diferente da
produzida na Ditadura Militar porque se reveste – a seu modo – dos requintes de
crueldade de um suposto Estado Democrático de Direito.
54

Daí podemos nos questionar: mas o que se entende, de modo geral, por
Direitos Humanos? O discurso sobre os Direitos Humanos 19 é recorrente na ordem
do dia. Na maioria das vezes, simplificamos a sua definição por enquadrá-los numa
lista de direitos que todos possuímos pelo simples fato de sermos alçados à
condição humana. Por isso, de maneira geral, os Direitos Humanos estão
relacionados a vários instrumentos de normatização – Leis, Normas Constitucionais,
Acordos Internacionais, etc. –, que lhes atribuem um rótulo, por assim dizer,
especial, e estão no rol de direitos e garantias fundamentais, “considerando que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo” (DUDH, 1948, p. 2). A violação dos Direitos Humanos é, infelizmente, uma
prática constante num regime político de exceção (mas não só nele!).

Perante esse cenário, entende-se que os Direitos Humanos não podem ser
concebidos sem sua vinculação ao efetivo exercício da cidadania e o pleno gozo dos
direitos políticos por parte de todos os membros da sociedade. Isso só é possível
quando compreendemos a seguinte relação: por um viés, os Direitos Humanos
determinam o modo como o poder político, por exemplo, deve ser exercido por seus
detentores na esfera social; por outro, esses mesmos direitos são institucionalizados
e interpretados em razão do próprio exercício democrático do poder por parte de
cidadãos, que são livres e que se consideram como iguais perante a sociedade e a
Lei. Entretanto, não foi isso o que aconteceu durante o Regime Militar no Brasil,
mesmo com a vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).

E por que ainda hoje há a violação dos Direitos Humanos? Porque o Estado
ainda não passou, em certo sentido, o seu passado a limpo e não realizou a tarefa
de casa proposta pela CNV: reformar as instituições estatais, rever a Lei de Anistia
(1979) que ainda permite a interdição da verdade sobre o Regime Militar e,
consequentemente, a proteção dos culpados por meio de uma absolvição histórica
sem julgamento algum. Enquanto isso, as vítimas e familiares de vítimas da Ditadura
Militar esperam por uma absolvição que insiste em não chegar. A luta continua...

19
O site da Anistia Internacional promove um relevante debate sobre os Direitos Humanos e realiza
periodicamente diferentes campanhas de preservação e luta pelos Direitos Humanos.
https://anistia.org.br
55

2.4 DOS MEMBROS DA CNV

Conforme dito anteriormente, uma CNV é de caráter temporário e de


excepcional interesse público. A nomeação de seus membros deve considerar
aspectos, como, por exemplo, a integridade moral e intelectual. É vedada a
participação de vítimas e perpetradores de atos criminosos contra a humanidade,
bem como de qualquer pessoa com vinculação político-partidária como membros da
Comissão. Tal aspecto é relevante porque a Comissão deve se revestir, o máximo
possível, de imparcialidade e autonomia.

Considerando isso, a Presidenta Dilma Rousseff nomeou, em maio de 2012,


sete membros para a composição inicial da CNV, a saber: Claudio Lemos Fonteles,
ex-procurador geral da República; Gilson Langaro Dipp, ministro do Superior
Tribunal de Justiça; José Carlos Dias, advogado, defensor de presos políticos e ex-
ministro da Justiça; José Paulo Cavalcanti Filho, advogado e ex-ministro da Justiça;
Maria Rita Kehl, psicanalista e jornalista; Paulo Sérgio Pinheiro, professor titular de
ciência política da Universidade de São Paulo (USP) e Rosa Maria Cardoso da
Cunha, advogada criminal e defensora de presos políticos (BRASIL, 2014, p. 49-50).

O documento que instituiu a CNV estabeleceu que a regra para coordenação


da CNV seria por mandato trimestral. Nesse sentido, inicialmente, a coordenação da
Comissão ficou a cargo do jurista Gilson Dipp, em setembro de 2012; sucedido por
Claudio Fonteles, que, em 2013, renunciou ao cargo por discrepâncias entres os
membros da Comissão para a divulgação dos dados encontradas pela CNV durante
o desenvolvimento da investigação. Nessa perspectiva, enquanto Claudio Fonteles e
Rosa Maria Cardoso da Cunha eram favoráveis à divulgação imediata do que fosse
encontrado na apuração dos casos, Paulo Sérgio Pinheiro e Maria Rita Kehl
discordavam e defendiam que a divulgação só deveria ocorrer de forma completa, o
que se faria, portanto, com a entrega final do Relatório, em 10/12/2014.

No vai e vem da “dança das cadeiras”, Fonteles renuncia, assumindo a


Coordenação, na sequência, Paulo Sérgio Pinheiro, que, por sua vez, foi sucedido
por Rosa Maria Cardoso da Cunha. Na sequência, Pedro Bohomoletz de Abreu
Dallari passa a integrar a Comissão, assumindo a coordenação, logo após Rosa
Maria Cardoso, sendo este responsável pela entrega do Relatório Final (2014). É
56

pertinente endossar que todos os participantes da CNV, de certa maneira, já


estiveram envolvidos com a luta pela preservação dos Direitos Humanos. Ademais,
a CNV realizou várias parcerias sociais que contribuíram com o seu trabalho, como,
por exemplo, a OAB e diversas Universidades que tiveram vários de seus servidores
presos durante a Ditadura Militar, bem como os órgãos e movimentos que lutam a
favor dos Direitos Humanos no Brasil, inclusive com organismos de cooperação
internacional.

Em dezembro de 2012, a CNV foi subdivida em grupos de trabalho com os


membros que faziam parte do Colegiado. O grupo era organizado em regime de
colaboração e composto por assessores, consultores e pesquisadores, a fim de
possibilitar a descentralização das investigações e promover a autonomia da
pesquisa. Neste período, foram organizados treze grupos de trabalho com
respectivos eixos temáticos para contemplar as especificidades de cada grupo social
atingido pelo Regime Militar.

Embora as reuniões da CNV fossem desprovidas de qualquer poder jurídico


(a CNV não tinha jurisprudência para legislar sobre os acontecimentos da Ditadura
Militar) e, consequentemente, não pudesse por conta própria dar consequências
judiciais aos crimes que conseguisse apurar, a relevância da CNV se institui
justamente pela possibilidade de quebra do silêncio que durou vários anos, uma vez
que muitas pessoas, familiares de presos políticos ou as próprias vítimas,
colocaram-se à disposição para falar, nas sessões de depoimento, mostrando – com
esse gesto – que o testemunho ainda é um dos mais valiosos recursos para que a
sociedade possa compreender, em certo limite, a verdade histórica sobre o Regime
Militar e avançar nas investigações.

Nessa perspectiva, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade é composto


por um tecido de diferentes vozes sociais e propõe passar a limpo mais de quarenta
anos de nossa história. Conforme dito anteriormente, no dia 10 de dezembro de
2014, a CNV chega ao final de suas atividades e entrega à Presidenta da República
e à sociedade brasileira seu Relatório Final, contendo a descrição do trabalho
realizado, a apresentação dos fatos examinados, as conclusões e as respectivas
recomendações.
57

Com a entrega do Relatório Final, a CNV apresenta à sociedade um exame


das graves violações dos Direitos Humanos ocorridas de 1946 a 1985 e, ao mesmo
tempo, efetiva, em certo sentido, o direito à memória e à verdade histórica, além de
promover – no limite da investigação porque é necessário também que se faça
justiça – a reconciliação nacional (BRASIL, 2014). A CNV surge, dessa forma, como
órgão deliberativo superior ao convocar diferentes setores da sociedade civil, militar
e da esfera política para contribuírem de maneira efetiva com o trabalho de
investigação e apuração dos eventos ocorridos durante a Ditadura Militar.

Durante o período de sua atuação, a CNV se dedicou à busca e à pesquisa


de documentos, ouviu vários testemunhos, realizou diligências e perícias técnicas
em locais de repressão, participou de audiências públicas por todo o território
brasileiro, dialogando, na medida do possível, com toda a sociedade. Chancelada
pela Lei que a instituiu, a CNV tinha como objetivo geral: a busca pela verdade sobre
a Ditadura Militar, o resgate da memória histórica e a promoção da reconciliação no
âmbito nacional. No plano dos objetivos específicos, a CNV elencou para a
apuração da verdade: elucidar os fatos e as circunstâncias das graves violações de
Direitos Humanos através de torturas, execuções sumárias, desaparecimentos
forçados e ocultação de cadáveres (BRASIL, 2014). Diante disso, a CNV se
empenhou para responsabilizar o Estado pelas violações de Direitos Humanos
ocorridas nas suas instituições e os agendes públicos ligados àquelas práticas
criminosas.
58

2.5 SOBRE O RELATÓRIO FINAL DA CNV

Vejamos, de maneira geral, como se ordena o documento: o Relatório está


dividido basicamente em três volumes (Tomos). No primeiro, o relatório apresenta a
descrição das atividades da CNV, a legalidade de sua instauração, bem como a
justificativa para suas ações. Na sequência, apontam-se as estruturas, as cadeias
de comando, os métodos e a dinâmica das graves violações dos Direitos Humanos,
culminando com a apresentação de testemunhos, as conclusões e recomendações.

O segundo Tomo, por sua vez, incorpora textos que endossam as graves
violações e dão voz aos diferentes segmentos sociais: militares, militantes políticos,
trabalhadores rurais e urbanos, povos negros e indígenas, representantes de igrejas
cristãs, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT‟s),
além de professores, estudantes universitários e nomes ligados à Arte e à Cultura.
Neste mesmo volume, encontramos outras vozes: textos que abordam a resistência
à Ditadura Militar, bem como a constatação da participação ativa de civis no Golpe
de 1964 e no Regime Militar que se sucedeu, especialmente do corpo empresarial.

Por fim, o terceiro Tomo, considerado o mais significativo pela CNV, traz a
relação nominal e uma breve biografia de mortos, desaparecidos e presos políticos
no contexto da Ditadura Militar. Assim, nesta parte, a CNV descreve a história de
434 mortos e desaparecidos políticos, a partir dos testemunhos e informações que
foram examinados nos Tomos anteriores. Essa parte representa, por assim dizer,
uma espécie de monumento por meio do qual se pretende preservar a memória
daqueles que estiveram lá como testemunhas da história.

O Relatório reforça que o trabalho ali contido não representa o fim da


investigação dessas questões pela sociedade brasileira. A CNV 20 foi caudatária do
trabalho que já vinha sendo realizado há muito tempo pela Comissão Especial Sobre
Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) e pela Comissão de Anistia do Ministério
da Justiça, pelas comissões estaduais de reparação (BRASIL, 2014), por diferentes
entidades da sociedade civil, por sobreviventes e por familiares de mortos e
desaparecidos.

20
O portal memórias da ditadura endossa que o trabalho da CNV não acabou:
http://memoriasdaditadura.org.br/
E o próprio portal da CNV na web: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
59

No desenvolvimento de suas atividades, a CNV contou ainda com a


contribuição de órgãos públicos nacionais e organismos internacionais, de Estados
estrangeiros e de Comissões da Verdade Estaduais, municipais e setoriais, que,
com a instauração da CNV, passaram a ser instaladas por todo o país. Sendo assim,
caberá a tais Comissões, assim como à Universidade e a outros entes da sociedade
e do Estado, continuarem a aprofundar as investigações (BRASIL, 2014).

O Relatório propõe, ainda, a criação de um órgão público permanente para


prosseguimento das ações e recomendações da CNV. Tal órgão deve ser visto
como um mecanismo de apoio ao trabalho que ainda será realizado. É certo, por
exemplo, que o rol de vítimas do terceiro volume não é definitivo e que as
investigações seguintes certamente acarretarão a identificação de número ainda
maior de mortos e desaparecidos, principalmente entre as populações camponesa e
indígena (BRASIL, 2014).

Portanto, mesmo que adequadamente consagrada, uma verdade (entendida


aqui apenas como um efeito daquilo que se considera “verdade”) não promove por si
só o resgate da memória social se esta não é revelada, compartilhada e tensionada
com o presente. Essa constatação conduziu a CNV a elaborar um Relatório que
propõe especial atenção à efetivação do direito à memória, constituída também
como uma de suas finalidades legais (BRASIL, 2014). Em suma, o Relatório Final
produzido permitiu à CNV (e permite à sociedade) compreender que as graves
violações dos Direitos Humanos ocorridas durante o período investigado, sobretudo
nos 21 anos da Ditadura Militar, foram resultado de uma ação generalizada e
sistemática do Estado, configurando crimes contra a humanidade (BRASIL, 2014).

A propósito das torturas (físicas e psicológicas), a CNV apurou e descreveu


minuciosamente, a partir dos testemunhos de vítimas e familiares, além de
pesquisas realizadas no Arquivo Nacional, os métodos e técnicas utilizados pelos
militares durante as sessões de tortura. A seguir, apresentamos, resumidamente, as
principais modalidades utilizadas na tortura física que, de modo geral, eram
realizadas conjuntamente:

Choque elétrico na Cadeira do Dragão: era uma cadeira pesada,


na qual a vítima era presa para o recebimento de choques elétricos,
com uma trava empurrando para trás as suas pernas, e na qual suas
60

pernas batiam com os espasmos decorrentes das descargas


elétricas;
Palmatória: é a utilização de uma haste de madeira, com
perfurações na extremidade, que é arredondada. É usada de
preferência na região do omoplata, na planta dos pés e palma das
mãos, nádegas etc., causando o rompimento de capilares
sanguíneos e ocasionando derrames e inchaço, que impedem a
vítima de caminhar e de segurar qualquer coisa;
Formas de afogamento: usadas sobre os presos políticos e
variavam conforme o órgão repressivo que as empregasse;
Telefone: era a técnica de aplicação de pancada com as mãos em
concha nos dois ouvidos ao mesmo tempo;
Sessão de caratê ou corredor polonês: o preso era agredido em
meio a uma roda de torturadores, com socos, pontapés, golpes de
caratê, bem como instrumentos: „pedaços de pau, ripas de madeira,
cassetetes, mangueiras de borracha, vergalho de boi ou tiras de
pneu‟;
Utilização de produtos químicos: também se dava com frequência.
Tratava-se do uso de qualquer tipo de produto químico contra o
torturado, seja para fazer falar, por alteração da consciência, seja
para provocar dor, para assim obterem a informação desejada.
Alguns exemplos: como jogar ácido no corpo ou aplicar álcool no
corpo ferido, ligando-se, na sequência, o ventilador;
Injeção de éter: é a aplicação de injeções subcutâneas de éter, e
que provoca dores lancinantes. Normalmente, esse método de
tortura ocasiona necrosamento dos tecidos atingidos, cuja extensão
depende da área alcançada;
Sufocamento: dava-se com a obstrução da respiração e produção
de sensação de asfixia, tapando-se a boca e o nariz do preso com
materiais como pano ou algodão, o que também impede o preso de
gritar. O torturado sentia tonturas e podia desmaiar;
Enforcamento: nele o preso tinha o seu pescoço apertado com uma
corda ou tira de pano, sentindo sensação de asfixia e sendo por
vezes levado ao desmaio;
Crucificação: embora conhecido por tal nome, na verdade esse
método consiste em pendurar a vítima pelas mãos ou pés
amarrados, em ganchos presos no teto ou na escada, deixando-a
pendurada e aplicando-lhe choques elétricos, palmatória e as outras
torturas usuais;
Furar poço de petróleo: o torturado é obrigado a colocar a ponta de
um dedo da mão no chão e correr em círculos, sem mexer o dedo,
até cair exausto. Isto ocorre sob pancadas, pontapés e todo o tipo de
violência.
A geladeira: [técnica de origem britânica] o preso é confinado em
uma cela de aproximadamente 1,5 m × 1,5 m de altura baixa, de
forma a impedir que se fique de pé. A porta interna é de metal e as
paredes são forradas com placas isolantes. Não há orifício por onde
penetre luz ou som externos. Um sistema de refrigeração alterna
61

temperaturas baixas com temperaturas altas fornecidas por um outro,


de aquecimento. A cela fica totalmente escura na maior parte do
tempo. No teto, acendem-se, às vezes, em ritmo rápido e
intermitente, pequenas luzes coloridas, ao mesmo tempo que um
alto-falante instalado dentro da cela emite sons de gritos, buzinas e
outros, em altíssimo volume. A vítima, despida, permanece aí por
períodos que variam de horas até dias, muitas vezes sem qualquer
alimentação ou água;
Pau de arara: foi um dos métodos mais utilizados e conhecidos,
sendo largamente adotado. Nessa modalidade, o preso ficava
suspenso por um travessão, de madeira ou metal, com os braços e
pés atados. Nesta posição, outros métodos de tortura eram
aplicados, como afogamento, palmatória, sevícias sexuais, choques
elétricos, entre outros;
Utilização de animais: também se verificou na prática da tortura.
Presos políticos foram expostos aos mais variados tipos de animais,
como cachorros, ratos, jacarés, cobras, baratas, que eram lançados
contra o torturado ou mesmo introduzidos em alguma parte do seu
corpo;
Coroa de cristo: consistia na colocação de uma fita de aço em torno
do crânio, com uma tarraxa permitindo que fosse apertada;
Churrasquinho: era a tortura que consistia em atear fogo em partes
do corpo do preso previamente embebidas em álcool;
Diversas outras formas de tortura eram praticadas, isoladas ou em
conjunto, como queimar com cigarros alguma região do corpo,
arrancar com alicate pelos do corpo, (nomeadamente os pubianos)
dentes e/ou unhas, obrigar o torturado com sede a beber salmoura,
introduzir bucha de palha de aço no ânus e nelas aplicar descargas
elétricas, amarrar pênis para não urinar e fio de náilon entre os
testículos e os dedos dos pés e obrigar a vítima a caminhar, e a mais
comum de todas, o espancamento (BRASIL, 2014, p. 366-375, grifos
nossos).
Conforme podemos observar, a truculência dos militares, durante a Ditadura,
foi ilimitada. O efeito simbólico de naturalidade é um dos mecanismos mais
repressores e cruéis apresentado pelo movimento militar para se constituir e
sustentar-se. Tal efeito nos ajuda a compreender que a vida foi reduzida a nada, que
o ser humano é capaz das maiores atrocidades em sua busca pelo poder e o
domínio sobre o outro. A violência institucionalizou-se. As marcas deixadas por meio
da exposição às diferentes formas de violência extrema permanecem visíveis até
hoje na memória, na história e nos corpos dilacerados pela tortura. São feridas
abertas que não cicatrizarão jamais. São vidas que jamais serão recuperadas
plenamente. São vozes que clamam a mais de cinquenta anos por um único alento:
justiça.
62

Após essa reflexão inicial, no próximo capítulo vamos trabalhar teoricamente


com algumas categorias caras para a Análise do Discurso e, igualmente, para as
análises propostas neste trabalho.
63

3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS

3.1 SUJEITO, IDEOLOGIA, FORMAÇÃO DISCURSIVA E RESISTÊNCIA

Para compreender o funcionamento do corpus deste trabalho, precisamos


analisar como se constitui teoricamente o sujeito no âmbito da AD. Nesse sentido, a
tese que envolve a reflexão sobre o sujeito na AD advém do Materialismo Histórico –
através da leitura que Althusser faz da obra de Marx –, e do terreno da Psicanálise,
por meio da leitura que Lacan realiza de Freud. Daí a constituição de um sujeito
assujeitado pela ideologia e pelo inconsciente, ou seja, consideramos que o sujeito é
duplamente interpelado (duplamente assujeitado), à medida que é capturado, ao
mesmo tempo, pela ideologia e pelo inconsciente. Nessa perspectiva, Pêcheux
reconfigura a noção de sujeito na AD a partir de uma crítica ao sujeito cartesiano,
idealista e psicológico, passando a trabalhar com o sujeito descentrado, que se
constitui por meio de uma ilusão referencial, o que leva também Paul Henry a
sustentar que “o sujeito é sempre, e ao mesmo tempo, sujeito da ideologia e sujeito
do inconsciente e isso tem a ver com o fato de nossos corpos serem atravessados
pela linguagem antes de qualquer cogitação” (HENRY, 1992, p. 188-189). Por isso,
o sujeito não tem o controle sobre o seu modo de dizer, mas pensa, quando enuncia
um discurso, sob o efeito de uma ilusão constitutiva, ser a fonte do sentido que se
“agarra” ao discurso.

Portanto, bem longe de ser um indivíduo ou um sujeito empírico, o sujeito


para a AD se instaura justamente pela possibilidade de ocupar uma determinada
posição social e a partir dela significar algo discursivamente, ou seja, concebemos o
sujeito como aquele que ocupa uma posição ou assume um lugar determinado na
estrutura social. Para a AD, o indivíduo pode vir a ser sujeito se for interpelado antes
de qualquer cogitação pela ideologia, ou seja, se for recrutado para ser sujeito pela
ideologia, causa do efeito ideológico elementar (ALTHUSSER, 1974) e, nos termos
da Psicanálise, da hiância, daquele que não existe, mas que está sempre prestes a
existir.
64

É ainda perante a reformulação do conceito de Formação Discursiva 21


(doravante FD), realizada por Pêcheux (1997 [1975]), que somos autorizados a
empreender que a inscrição do sujeito em dada FD o assujeita ideologicamente, ou
seja, todo sujeito é determinado por uma FD dominante que o governa sob a égide
dos elementos que organizam o interdiscurso. Vejamos, então, como Pêcheux
mobilizou a FD, a partir da arqueologia, e a conjugou através das relações de
produção, reprodução, subordinação e transformação dos meios de produção que
impulsionam a luta de classes pelo poder na sociedade. É em Semântica e Discurso
que Pêcheux nos apresenta categoricamente a definição de FD:

Chamaremos, então, formação discursiva aquilo que, numa formação


ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada numa
conjuntura dada, determinada pelo estado da luta de classes,
determina o que pode e deve ser dito [...]. Toda formação discursiva
dissimula, pela transparência do sentido que nela se constitui, sua
dependência com respeito ao “todo complexo com o dominante” das
formações discursivas intricado no complexo das formações
ideológicas [...]. Diremos, nessas condições, que o próprio de toda
formação discursiva é dissimular, na transparência do sentido que
nela se forma, a objetividade material contraditória do interdiscurso,
que determina essa formação discursiva como tal, objetividade
material essa que reside no fato de que “algo fala” (ça parle) sempre
“antes em outro lugar e independente”, isto é, sob a dominação do
complexo das formações ideológicas. (PÊCHEUX, (1997 [1975], p.
160 - 162), grifos do autor).

Conforme podemos atestar, Pêcheux sustenta que o fundamento de uma FD


reside no fato de que toda FD está intrinsecamente determinada e governada por
leis sócio-ideológicas que determinam uma posição-sujeito numa conjuntura sócio-
histórica. Assim sendo, a FD é compreendida como sendo de natureza instável,
heterogênea e lacunar, e não como espaço fechado, homogêneo, uma vez que a FD
mantém relação (de embate ou aliança) com outras FDs que vêm de outros lugares.
Com isso, dependendo da forma de inscrição em uma FD, uma materialidade
linguística “X” pode produzir efeito de sentido diferente quando inscrita em “Y”, e
vice-versa. Portanto, ao afirmar que o propósito de toda FD é a “dissimulação”,

21
O termo, tomado de empréstimo da arqueologia foucaultiana, L‟Archéologie du Savoir (1989 [1969]
– A Arqueologia do saber), passou por uma reformulação para que pudesse compor um dos pilares
teórico-epistemológicos da AD. Por isso, tal noção representa, em certo limite, o ponto de contato e,
ao mesmo tempo, o ponto de diferença entre o pensamento de Michel Pêcheux e o de Michel
Foucault.
65

Pêcheux nos ensina que toda FD produz um efeito de transparência tanto para o
sujeito quanto para o sentido. Essa reflexão nos direciona para um duplo processo
de ilusão constitutiva: o primeiro, para o sujeito que se considera a fonte de seu
dizer quando na realidade tal origem é subjacente a uma FD; o segundo, por sua
vez, estabelece-se porque a constituição de todo sentido é determinada por meio de
um processo histórico, de modo que, ao dizermos algo, apagam-se outros efeitos de
significação.

Dessa forma, a mesma palavra ou expressão pode apresentar significados


diferentes de acordo com a FD que a determina. O contrário também pode ocorrer,
ou seja, palavras ou expressões literalmente diferentes, inscritas sob uma mesma
FD, podem apresentar sentidos idênticos ou, nos termos de Pêcheux, o primado do
outro sobre o mesmo.

Courtine, por seu turno, defende que o domínio de saber de uma FD:

[...] funciona como um princípio de aceitabilidade discursiva para um


conjunto de formulações (“determina o que pode e deve ser dito”),
assim como um princípio de exclusão (determina “o que não
pode/não deve ser dito”). Ele realiza, assim, o fechamento de uma
FD, delimitando seu interior (o conjunto dos elementos do saber) de
seu exterior (o conjunto dos elementos que não pertencem ao saber
da FD); esse fechamento, entretanto, é fundamentalmente instável:
não consiste num limite traçado, de uma vez por todas, mas se
inscreve entre diversas FD como uma fronteira que se desloca, em
razão dos jogos da luta ideológica, nas transformações da conjuntura
histórica de uma dada formação social. (COURTINE, 2009, p. 99-
100, grifos do autor).

Em outros termos, o domínio de saber de dada FD condiciona o fechamento


instável das FDs, isto é, restringindo o que lhe é interno e externo, sem, todavia,
realizar um fechamento permanente. Nesse sentido, a FD pode ser entendida, em
última instância, como responsável pelo imbricamento de vários discursos em um só,
organizado por cadeia. Esses discursos são amarrados por meio de um verdadeiro
nó e costurados numa complexa teia ideológica. Em nosso olhar analítico sobre o
testemunho, percebemos justamente a presença significativa da heterogeneidade da
FD, sua relação de aliança e antagonismo, bem como os deslocamentos de
posições-sujeito realizados através da força de uma FD dominante. Em relação às
várias posições-sujeito que o sujeito do discurso pode ocupar, Courtine reflete que:
66

Concebemos, portanto, uma posição de sujeito como uma relação


determinada que se estabelece em uma formulação entre um sujeito
enunciador e o sujeito do saber de dada FD. Essa relação é uma
relação de identificação cujas modalidades variam, produzindo
diferentes efeitos-sujeito no discurso. A descrição das diferentes
posições de sujeito no interior de uma FD e dos efeitos que estão
ligados a ela é o domínio de descrição da forma-sujeito (COURTINE
(2009, p. 88).

Sustenta-se, assim, que o sujeito é fruto de uma representação e, de fato,


ocupa um lugar na materialidade discursiva. Aqui, acrescentaríamos que o sujeito
passa por um triplo processo de clivagem: primeiramente, por sua sujeição à
língua(gem); em segundo lugar, por sua inscrição num espaço ideológico (condição
para o assujeitamento); por fim, através de uma dimensão subjetiva (efeito do
inconsciente que conduz o sujeito ao esquecimento, à ilusão referencial).

Pois bem, a forma-sujeito, segundo Althusser, é a forma de existência


histórica de qualquer indivíduo, agente das práticas sociais, ou seja, todo indivíduo
socialmente constituído só pode ser agente de uma prática pela instituição de uma
forma-sujeito. Nesse sentido, o autor assevera que:

Que os indivíduos humanos, ou seja, sociais, são ativos na história –


como agentes das diferentes práticas sociais do processo histórico
de produção e reprodução – é um fato. Mas, considerados como
agentes, os indivíduos humanos não são sujeitos “livres” e
“constituintes” no sentido filosófico desses termos. Eles atuam em e
sob as determinações das formas de existência histórica das
relações sociais de produção e reprodução [...] Mas é preciso ir mais
longe. Esses agentes não podem ser agentes a não ser que sejam
sujeitos [...] Todo indivíduo humano, isto é, social, só pode ser
agente de uma prática se se revestir da forma de sujeito. A “forma-
sujeito”, de fato, é a forma de existência histórica de qualquer
indivíduo, agente das práticas sociais [...] (ALTHUSSER, 1978, p. 67-
68, grifos do autor).

Assim, a interpelação ideológica pode ocorrer por meio de diferentes


processos de subjetivação da forma-sujeito, a saber: a) por meio de uma
interpelação que ocorre sem recusa – causa primeira do bom sujeito (modalidade de
identificação) –; b) por meio de uma interpelação que se instaura pela recusa da
identificação – condição do mau sujeito (modalidade da contraidentificação) –, e, por
fim, c) por meio de uma interpelação que trabalharia “às avessas” sobre si mesma –
causa daquele que estamos denominando de sujeito da resistência (desidentificação
radical) presente também no testemunho. A desidentificação exerce um golpe de
67

força tão forte sobre o sujeito que não há mais espaço para que ele permaneça
inscrito na mesma FD. Aqui, de acordo com Pêcheux (1997 [1975], p. 217-218), o
sujeito também não fica livre, mas migra para outra FD.

É a partir do que precede que o autor elabora a tese dos esquecimentos na


AD. Segundo Pêcheux (1997 [1975]), o esquecimento n° 1 define-se como um
mecanismo ideológico-inconsciente, em que o sujeito acredita ser a origem do
sentido de seu discurso: ilusão referencial a partir do momento em que o sujeito se
identifica plenamente com a FD em que se inscreve e o governa. O esquecimento n°
2, por sua vez, constitui-se através de um fenômeno pré-consciente (uma
representação imaginária necessária para a constituição da identidade do sujeito) e
refere-se ao processo de seleção – por parte do sujeito – de certas sequências
discursivas em detrimento de outras, privilegiando certas formulações discursivas e
apagando outras no fio do discurso, porém a possibilidade de escolha já é em si um
efeito da ilusão que captura o sujeito. A tese do duplo esquecimento evidencia a
preocupação de Pêcheux de introduzir, através de seu modelo de teorização, o
atravessamento da ideologia com o inconsciente.

Aqui, a compreensão que se tem a respeito da ideologia é aquela que a


assume a partir de sua natureza material: uma ideologia que se inscreve na prática
discursiva de sujeitos que são, ao mesmo tempo, interpelados por ela. Nesse
sentido, a ideologia não tem relação com a ocultação da verdade, com o engodo, a
ilusão, a falsa consciência, bem como não caracteriza e não se produz, como
defenderá Pêcheux, através da forma geral de um Zeitgeist (PÊCHEUX, 1997
[1975]).

Sendo assim, a ideologia é o resultado de um conjunto de práticas sociais


concretas historicamente determinadas por condições de produção específicas e se
sustenta através das relações de desigualdade, contradição e subordinação que
caracterizam uma Formação Social historicamente dada. Em outras palavras, a
ideologia deve ser compreendida por meio da relação imaginária que se materializa
em práticas sociais, reproduzindo as relações de produção, contradição e
subordinação, incluída a dimensão da transformação (PÊCHEUX, 1997 [1975]). É
relevante endossar que é justamente a noção de transformação dos meios materiais
de produção que rompe com a tese negativa em relação à ideologia e,
68

consequentemente, faz com que exista a quebra, em certo limite, da roda marxista
de reprodução-subordinação-desigualdade.

A busca por transformações, em sua dimensão política, ergue-se como


possibilidade para aqueles que se encontram em relação de dominação na
sociedade capitalista e, consequentemente, esta busca só tem existência porque se
mantém uma relação de contradição e luta contra uma ideologia dominante. Esta é,
por assim dizer, a grande revolução marxista: a instituição de um universo, como
concluirá Pêcheux (1997 [1975]), que não cessa de dividir-se em dois, que se
antagoniza, mas que se complementa para a instituição do princípio fundador da luta
de classes e organização do modo de produção social. Por esta razão, na
compreensão de Paul Henry, são saberes da classe dominada “[...] necessários
prática e concretamente para a classe dominada, única suscetível de usá-los numa
transformação prática no antagonismo de classes e na transformação das condições
materiais de existência de massas” (HENRY, 1992, p. 134).

Portanto, a questão do sujeito encontra-se relacionada ao seu processo de


identificação com a FD que o subjetiva e, consequentemente, com a posição-sujeito
dominante correspondente (determinados por uma formação ideológica que os
sustenta), na qual o sujeito e o sentido são constituídos. Daí defender-se – na AD e
neste trabalho –, que a mudança de posição-sujeito implica, por tabela, mudança de
efeitos de sentido e produz pontos de resistência em relação à língua, ao sujeito, à
ideologia.

Pois bem, é em Só há causa daquilo que falha (1997 [1978]) que Pêcheux –
pensando criticamente sobre o “bate-boca teórico e político no âmbito da „Tríplice
Aliança‟ (Althusser, Lacan e Saussure)” –, nos ensina bem sobre a noção de
resistência. Partindo de uma reflexão que visa à retificação, o autor defende que:

Se, na história da humanidade, a revolta é contemporânea à


extorsão do sobre-trabalho é porque a luta de classes é o motor
dessa história. E se, em outro plano, a revolta é contemporânea à
linguagem, é porque sua própria possibilidade se sustenta na
existência de uma divisão do sujeito, inscrita no simbólico. A
especificidade dessas duas “descobertas” impede de fundi-las sob
qualquer teoria que seja, mesmo sob uma teoria da revolta. Mas a
constatação do preço pago por esse impedimento obriga a admitir
que elas têm, politicamente, algo a ver uma com a outra. Há, talvez,
no estudo histórico das práticas repressivas ideológicas um fio
interessante a seguir, para que se comece, enfim, a compreender o
69

processo de resistência-revolta-revolução da luta ideológica e política


de classes [...]” (PÊCHEUX, 1997 [1978], p. 279-280).
Dessa maneira, pensada a partir do arcabouço da luta de classes, que
sustenta que todo mecanismo de produção social (capitalista) se estabelece na
relação de desigualdade e subordinação, a resistência só pode ser compreendida,
discursivamente, no batimento constitutivo que se dá entre a contradição – real da
história – e a transformação que lhe são inerentes. Assim, por meio de uma visada
discursiva, a resistência deve ser compreendida como um fenômeno de/que luta por
deslocamentos e transformações (dos sujeitos e dos sentidos), no âmbito de dada
Formação Social, que, por sua vez, estabelece o jogo entre a falta e o excesso, a
presença e a ausência, a retomada e o apagamento, o realizável e o irrealizável, o
dominante e o dominado etc. É justamente aí, neste limiar, no não-um, no
deslocamento entre um lugar e outro, que a resistência encontra o seu lugar
simbólico de significação. Nessa direção, a resistência aqui (discursivamente) não é
concebida como um ato consciente do sujeito (que estaria foracluído da ideologia),
mas como um processo que se dá no imbricamento do histórico com o simbólico e,
sendo assim, o próprio sujeito já carregaria em si um traço de resistência (a
resistência se materializa nele) no jogo de (des)identificação (interpelação
ideológica, assujeitamento) com dada FD.

Na sequência, em Delimitações, inversões, deslocamentos (1990 [1982]),


Pêcheux propõe – pensando nos movimentos revolucionários e os discursos que
eles sustentam – que seriam:

As resistências: não entender ou entender errado; não “escutar” as


ordens; não repetir as litanias ou repeti-las de modo errôneo, falar
quando se exige silêncio, falar sua língua como uma língua
estrangeira que se domina mal; mudar, desviar, alterar o sentido das
palavras e das frases; tomar os enunciados ao pé da letra; deslocar
as regras na sintaxe e desestruturar o léxico jogando com as
palavras... (PÊCHEUX, 1990 [1982], p. 17).
Diante disso, podemos sustentar que a resistência é – na relação
língua/discurso e sujeito/ideologia – da ordem da desestabilização dos pontos de
deriva, da falta, da falha, do equívoco, do impossível que resiste à representação.
Daí o autor defender a tese de que “não há ritual sem falhas”.

É também Orlandi (2012a & 2017) que – a partir da reflexão sobre a tese da
interpelação ideológica althusseriana – propõe justamente que o assujeitamento
70

pode configurar uma relação de resistência, ou seja, a partir da relação entre a


interpelação do indivíduo em sujeito e o efeito da individuação que o próprio Estado
produz sobre o sujeito, à medida que determina que o sujeito é, ao mesmo tempo,
instituído de direitos e deveres, logo que se instaura na ilusão de que é “livre”, mas
também é, no sentido jurídico mesmo do termo, responsável: “direito tem quem
direito anda”.

Por isso, quando analisou o discurso dos “meninos do tráfico” (“os Falcões”),
Orlandi defendeu que os sujeitos “[...] se individuam pela falta, na falha do Estado
(ORLANDI, 2012a, p. 229). Dessa forma, quando o Estado falha em seu papel de,
no nosso caso, salvaguardar os Direitos Humanos face à Ditadura, produz-se o
mecanismo de individuação do sujeito e este é deixado à margem da sociedade.
Assim, ao considerarmos que o Estado falhou nas condições de produção da
Ditadura Militar, defendemos que aí se produz a resistência através de outras formas
subjetivas de (des)identificação na luta pela memória, causa primeira do Relatório
Final da CNV e o testemunho invocado por ele.

Conforme veremos nas análises, consideramos que o Relatório Final da CNV


– enquanto espaço de voz para o testemunho –, representa um gesto de resistência
política à dominação (a uma ideologia dominante sobre a violência [memória] da
Ditadura) e ao silenciamento, uma vez que – como bem nos ensinou Pêcheux (1997
[1978], p. 281) – “não existe dominação sem resistência”. O que nos leva a defender
que todas as relações de poder, no âmbito da sociedade (do discurso), instauram,
consequentemente e constitutivamente, diferentes formas de luta e de resistência. É
neste ponto que a memória entra no jogo, pois ela representa – do ponto de vista do
funcionamento político-ideológico – um lugar que materializa as disputas pelo poder
através do passado, e, nesta arena, determina também, por meio das relações de
força, aquilo que deve ser lembrado e deve ser esquecido, produzindo, com isso,
espaços de resistência.

Dito isso, vejamos como a reflexão sobre a memória social produz


ressonância na discussão sobre a memória discursiva.
71

3.2 A MEMÓRIA DISCURSIVA E O TRABALHO DO ACONTECIMENTO

É a partir da noção de memória social e de uma leitura atenta da arqueologia


foucaultiana que Courtine se dá a tarefa de pensar acerca do efeito da memória
sobre a materialidade discursiva. Diante disso, a noção de memória discursiva é,
portanto, forjada por Courtine (2009 [1981) para integrar o quadro teórico da Análise
do Discurso e, ao instaurar tal noção, integra a memória ao estudo da materialidade
linguístico-discursiva. Dessa forma, a memória discursiva se institui através da
esfera social e se inscreve, por sua vez, nas práticas dos sujeitos. Nessa direção,
ela representa um lugar de armazenamento, bem como de constante retomada e
reconfiguração de discursos outros.

Pois bem, o papel da memória discursiva pode ser compreendido – a partir de


Courtine (2009 [1981], p. 110-114) – através do imbricamento de três redes de
formulação: a) o domínio de memória, b) o domínio de atualidade, e c) o domínio de
antecipação. Para o autor, o analista do discurso deve levar em consideração, no
tratamento dado ao corpus durante a análise, estas três dimensões. Vejamos como
o autor define tais dimensões.

No primeiro caso, teríamos “um conjunto de sequências discursivas que pré-


existem à sdr”, uma vez que o domínio de memória é da instância interdiscursiva
(eixo da verticalidade) e, por isso mesmo, vai além das fronteiras de uma dada FD,
apontando para algo sempre antes do discurso. Dessa forma, é o domínio de
memória que permite o batimento entre a repetição e a regularização de
determinados efeitos de sentido no intradiscurso (eixo da horizontalidade) por meio
dos “efeitos de lembranças, de redefinição, de transformação, mas também efeitos
de esquecimento, de ruptura, de denegação do já dito” (COURTINE, 2009 [1981],
p.112).

A segunda dimensão, por sua vez, determinaria a coexistência de diferentes


sequências discursivas (SDs) com relação à SDR (sequência discursiva de
referência) “em uma conjuntura histórica determinada [...] resultante do
desenvolvimento processual dos efeitos de memória que a irrupção do
acontecimento [...] reatualiza” (COURTINE, 2009, p. 112-113). Assim, a memória se
reatualiza na atualidade do acontecimento.
72

Por fim, o domínio de antecipação diz respeito ao que será (re)atualizado em


uma formulação futura, pois, de acordo com Courtine (2009, p. 113), “se existe um
sempre-já do discurso, pode-se acrescentar que se terá aí um sempre-ainda”. Neste
ponto, a modalidade de antecipação não se fecha em algo apenas do passado (no
já-dito), mas aponta para um eterno devir da memória discursiva (o vir a ser do
discurso) que se reatualiza com a irrupção do acontecimento, ou seja, o domínio de
antecipação joga o discurso para frente (futuro), para o sempre-ainda.

Perante esse cenário, é importante compreender que o domínio de saber de


uma memória discursiva, assim como de uma memória social, não é imune ao
esquecimento político; pelo contrário, ela se constitui sempre a partir de um já-dito
que constantemente a ressignifica através do jogo existente entre a memória e a
atualidade do acontecimento. Assim, toda memória é, em sua constituição,
polimórfica, e isso implica considerar que a ela está sempre sujeita à mudança, à
transformação, frente ao choque do acontecimento que pode, portanto,
(re)configurá-la, mas sem jamais apagar completamente os rastros deixados por sua
presença necessária.

Dito isso, agora podemos entender que a relação que a FD mantém com a
prática discursiva que lhe é correspondente perpassa a observação de um duplo
funcionamento: o cruzamento do interdiscurso com o intradiscurso. A primeira noção
é forjada por Pêcheux para representar, conforme citado anteriormente, o espaço
onde estão dispersas as FDs em relação de aliança ou confronto, intricadas no todo
complexo com dominante das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 162).
É por meio do funcionamento e, consequentemente, da organização do interdiscurso
que percebemos a relação de dominância em relação a outras FDs no momento da
instauração de um discurso. O interdiscurso, assim concebido, sobrepõe-se às
designações de mero já-dito, subentendido, implícito e intertextualidade. Para
Maldidier, por sua vez, o interdiscurso recobre um espaço diferente daquele
atribuído ao “já-dito”. Segundo a autora:

[...] não é nem a designação banal dos discursos que existiram antes
nem a ideia de algo comum a todos os discursos. Em uma linguagem
estritamente althusseriana, ele é “o todo complexo com dominante”
das formações discursivas, intricado no complexo das formações
ideológicas, e “submetido à lei de desigualdade – contradição –
subordinação”. Em outros termos, o interdiscurso designa o espaço
discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações
73

discursivas em função de relações de dominação, subordinação,


contradição (MALDIDIER, 2003, p. 51, grifos da autora).

Dito de outro modo, é ao interdiscurso que os analistas do discurso recorrem


para compreender determinados efeitos de sentido em dados discursos que circulam
na sociedade e as formações ideológicas e discursivas a que os sujeitos estão
filiados. Assim, é através do interdiscurso que podemos compreender o
funcionamento da memória discursiva e social em uma dada produção discursiva.
Courtine, em sua tese, também refletiu sobre a natureza do interdiscurso na AD:

Com efeito, o interdiscurso é o lugar no qual se constituem, para um


sujeito falante, produzindo uma sequência discursiva dominada por
uma FD determinada, os objetos de que esse sujeito enunciador se
apropria para deles fazer objetos de seu discurso, assim como as
articulações entre esses objetos, pelos quais o sujeito enunciador vai
dar uma coerência à sua declaração [...] (COURTINE, 2009, p. 74).

A partir do que precede, percebemos que o interdiscurso regula o


deslocamento das fronteiras das FDs. Já o intradiscurso, por sua vez, é definido
por Pêcheux (1997 [1975]) como o “fio do discurso”. Ou seja, representa a instância
material, concreta do discurso (o que se está enunciando agora) em relação ao
interdiscurso (aquilo que já foi enunciado antes...). Assim, para o autor, o
intradiscurso:

Consiste no funcionamento do discurso com relação a si mesmo (o


que eu digo agora, com relação ao que eu disse antes, e ao que eu
direi depois; portanto, o conjunto de “co-referência” que garantem
aquilo que se pode chamar de “fio discursivo”, enquanto discurso de
um sujeito). (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 166, grifos do autor)

Portanto, para sustentar a análise de qualquer discurso, precisamos


considerar a articulação necessária entre o interdiscurso e o intradiscurso para que
possamos, a partir de então, delinear os seus respectivos efeitos de sentido, seus
furos, suas contradições, o efeito da repetibilidade do mesmo (a paráfrase) e o efeito
da diferença (da polissemia). Diante disso, Courtine (2009) concebe a articulação do
interdiscurso com o intradiscurso através do cruzamento de dois eixos: a) o eixo da
constituição (vertical) e b) o eixo da formulação (horizontal). Assim, todo discurso se
organiza por associação e por cadeia e não podemos concebê-lo fora desta relação.
Aliás, a concepção de cadeia parece-nos ser interessante para representar a
interface entre o interdiscurso e o intradiscurso:
74

Figura 3 – Relação inter/intradiscursiva

Eixo da constituição * Formação Social

* Formações Ideológicas

* Memória Discursiva

* Pré-construídos

* Formações Discursivas

Eixo da formulação
(Testemunho)

Fonte: Daltoé (2011, p. 146). Adaptado.

Analisando o gráfico acima, podemos afirmar, de maneira bastante


esquemática, que: o interdiscurso (cadeia da constituição) representa a instância
onde se encontram as FDs determinadas pelas Formações Ideológicas que, por sua
vez, organizam dada conjuntura, isto é, uma Formação Social. Dito de outra
maneira, toda Formação Social é organizada por meio de diferentes Formações
Ideológicas e estas, por sua vez, determinam as várias FDs que, por conseguinte,
instauram os discursos e seus respectivos efeitos de sentido. Neste espaço, ainda,
encontram-se outros elementos também de natureza interdiscursiva, como, por
exemplo, a memória discursiva. Dessa maneira, o interdiscurso representa um
domínio de saber anterior ao intradiscurso, ou seja, antecede a constituição de todo
e qualquer discurso, mas o primeiro só tem existência a partir da relação que se
sustenta com sua exterioridade intradiscursiva.

Por isso, nos dizeres de Courtine, somente somos autorizados a falar de


discurso a partir do:

[...] término da articulação do plano do interdiscurso e daquele do


intradiscurso; toda caracterização em termos de funcionamento ou
de efeitos discursivos envolve assim uma relação do enunciado com
a formulação, da dimensão vertical e estratificada onde se elabora o
saber de uma FD com a dimensão horizontal em que os elementos
desse saber se linearizam tornando-se objetos de enunciação.
(COURTINE, 2009, p. 102, grifos do autor).
75

Sendo assim, é no movimento do inter/intradiscursivo (domínio de saber de


todo já-dito e de todos os sentidos) e no funcionamento da memória que se pode
conceber o discurso e as relações parafrásticas das sequências discursivas que se
instituem ao longo do dizer. Diante disso, o discurso é entendido, por Pêcheux
(2012a [1983]), como objeto complexo que perpassa a relação inter/intradiscursiva,
estrutura e acontecimento, constituído por pontos da exterioridade (da língua e do
sujeito). Daí a compreensão do discurso enquanto um processo ou, como nos dirá
Pêcheux (2010 [1969]), um efeito de sentido entre interlocutores porque “o que
funciona nos processos discursivos é uma série de formações imaginárias que
designam o lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que eles
se fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (PÊCHEUX, 2010 [1969], p. 81).

Na reflexão epistemológica proposta em “O Discurso: Estrutura ou


Acontecimento”, Pêcheux (2012a [1983]) passa a compreender que o sentido se
(re)produz na história a partir de uma díade: do acontecimento que irrompe na
estrutura; da concepção de interpretação que é sempre da ordem do simbólico, da
historicidade e da ideologia. Sendo assim, é a partir do que precede que podemos
pensar que os efeitos de sentido são consequências dos deslocamentos de
diferentes FDs no âmbito interdiscursivo, bem como de posições-sujeito que são
ocupadas numa dada FD.

Sobre este ponto, Pêcheux sustenta que:

Tocamos aqui um dos pontos de encontro com a questão da


memória como estruturação de materialidade discursiva complexa,
estendida em uma dialética da repetição e da regularização: a
memória discursiva seria aquilo que, face a um texto que surge como
acontecimento a ler, vem restabelecer “os implícitos” (quer dizer,
mais tecnicamente, os pré-construídos, elementos citados e
relatados, discursos-transversos, etc.) de que sua leitura necessita: a
condição do legível em relação ao próprio legível (PÊCHEUX, 2015
[1983], p. 45-46, grifos nossos).
Dito de outra forma, o discurso se torna, assim, um campo de possibilidades
para o trabalho da memória, uma vez que podemos observar, na superfície
discursiva, as pistas que marcam o trajeto da memória através dos efeitos da
repetibilidade, da paráfrase, da polissemia, da metaforização e dos pontos de deriva
que constituem os enunciados. Dessa forma, organizada em torno da repetição, a
memória configura uma rede de sentidos que pode atravessar diferentes formações
76

discursivas e, consequentemente, os discursos produzidos a partir daquela rede de


memória. A memória, assim, também assume uma forma lacunar e heterogênea que
determinaria – por assim dizer –, aquilo que deve ser lembrado e aquilo que deve
ser esquecido.

Tal empreendimento nos lança na reflexão sobre a memória e o


acontecimento. Nesse sentido, o acontecimento discursivo pode ser entendido como
uma correlação entre um fato histórico (acontecimento histórico) e a forma como ele
foi compreendido e circulou na sociedade, como ele se atualiza – no nosso caso
produzindo outros efeitos de sentido sobre a Ditadura Militar por meio da CNV – e
rompe com certos saberes presentes no âmbito da memória social. Um
acontecimento discursivo se instaura, assim, à medida que se produzem
determinados sentidos e, ao mesmo tempo, se estabelecem rupturas numa rede de
memória, possibilitando, com esse movimento, a reconfiguração de sentidos já
estabilizados ou cristalizados e, consequentemente, o estabelecimento de novos
espaços para a significação de uma memória outra. Vejamos, detalhadamente,
como esse processo ocorre.

A ruptura, como lemos em Pêcheux (2012a [1983]), é da ordem do choque,


da irrupção, ou seja, é necessário que um dizer se choque com outro modo de dizer
para se promover a desestabilização de uma memória e, consequentemente, o
surgimento de um acontecimento discursivo. A força do encontro de uma memória
com a atualidade de um acontecimento é tão forte que essa relação promove, por
sua vez, o estabelecimento de uma nova posição-sujeito que passa agora a
reconfigurar a enunciação discursiva de um sujeito inscrito em uma outra FD, logo
em outro espaço de memória. Com efeito, é somente através de um acontecimento
discursivo, instaurado por meio de uma intervenção histórica e, consequentemente,
desestabilização de uma memória discursiva, que se pode conceber uma nova
forma-sujeito e, outrossim, uma nova FD que rompe totalmente com um domínio de
memória e os saberes da FD nos quais o sujeito do discurso estava anteriormente
filiado.

Pêcheux (2015 [1983]) propõe, assim, que existe um jogo entre duas forças
pela disputa de uma memória acarretado por meio do irrompimento do
acontecimento: o primeiro, lutaria por estabelecer a regularização e a estabilização
da memória; o segundo, por seu turno, lutaria para quebrar a roda da
77

homogeneidade através de uma espécie de desestabilização que provocaria,


consequentemente, o rompimento dos fios de uma rede de memória. Nos termos do
autor:

Haveria assim sempre um jogo de forças na memória, sob o choque


do acontecimento: um jogo de força que visa manter uma
regularização pré-existente com os implícitos que ela veicula,
confortá-la como “boa forma”, estabilização parafrástica negociando
a integração do acontecimento, até absorvê-lo e eventualmente
dissolvê-lo; mas também, ao contrário, o jogo de força de uma
“desregulação” que vem perturbar a rede dos “implícitos”
(PÊCHEUX, 2015 [1983], p. 47).
Pêcheux elucida, portanto, que há algo que falha no processo de inscrição do
acontecimento no interior da memória através de um jogo paradoxal e, ao mesmo
tempo, constituído por meio de dois mecanismos: “o acontecimento que escapa à
inscrição, que não chega a se inscrever; o acontecimento que é absorvido na
memória, como se não tivesse ocorrido” (PÊCHEUX, 2015 [1983], p. 44). Assim, no
batimento entre história e memória, de acordo com a orientação de Pêcheux, há um
funcionamento ideológico que lança a memória num espaço de contradição, do não-
um, da fragmentação, do silêncio. Diante disso, um jogo político-ideológico pode
trabalhar, no nível do discurso, para que uma memória resista à inscrição no
acontecimento e vice-versa, barrando, assim, a instauração de determinados efeitos
de sentido.

Compreendemos, assim, que a CNV, através do testemunho presente no


Relatório Final, “desestabilizou uma memória” cristalizada sobre a Ditadura,
provocando um “furo na memória discursiva”, o que, por sua vez, provocou um
deslizamento de sentido para a Ditadura Militar, dadas as condições de produção
históricas e a situação política do país. Com isso, produziu-se uma nova
discursividade com outros efeitos metafóricos sobre aquele evento histórico à
medida que o discurso da CNV dá voz, através do testemunho, a algumas pessoas
que tiveram o seu direito de dizer cerceado durante o Regime Militar. Estamos,
portanto, perante um novo observatório que, de certo modo, propõe retirar do
esquecimento o acontecimento histórico, da indiferença (ACHARD, 2015) e
estabelecer a ressignificação de uma memória.

Assim, para que haja um acontecimento discursivo, em última instância, é


necessário que entre em cena um complexo processo de significação por meio das
78

redes de memória que se articulam na arena do interdiscurso e suas diferentes


(re)configurações: embates, deslocamentos, negações, alianças, contradições,
rupturas e silenciamentos presentes no nível do dizer da CNV sobre a Ditadura
Militar. Voltaremos a tratar dessa questão através do movimento de análise do
corpus. Antes disso, na próxima seção, propomos pensar a memória a partir de
alguns lugares teóricos que produzem eco na discussão que se tem enfrentado
sobre a memória e o testemunho no âmbito da AD.

3.3 A MEMÓRIA PARA MAURICE HALBWACHS

Interessa-nos, neste momento, compreender a constituição da memória e do


testemunho através da relação história, ideologia e esquecimento, ou seja,
compreender discursivamente como esses processos se imbricam na constituição e
no funcionamento da memória social (e discursiva) quando de sua inscrição na
produção do testemunho proveniente de vozes que foram recuperadas pela CNV
(2014). Nesta seção, portanto, damo-nos a tarefa de refletir acerca da constituição
da memória, do testemunho e suas aporias e, para isso, nosso percurso teórico-
metodológico perpassa a compreensão da memória no âmbito das Ciências
Humanas e Sociais, sobretudo como ela tem sido pensada no âmbito da História, da
Filosofia, da Sociologia e, especialmente, como o diálogo com estes lugares tem
fomentado a discussão teórica e analítica no interior da Análise do Discurso
instaurada por Michel Pêcheux na França (1969).

Logo, para realizar esta incursão, partiremos, inicialmente, da proposta


apresentada por Halbwachs, ligando-a a outras reflexões que surgiram a partir dele,
como, por exemplo, a perspectiva defendida por Ricoeur, Pierre Nora, Michael
Pollak, entre outros autores contemporâneos. Assim, a partir destes autores,
buscamos compreender a relação entre a história e a memória sempre apontando,
de alguma forma, para o corpus deste trabalho: o testemunho presente no Relatório
Final da Comissão Nacional da Verdade.
79

O trabalho de Maurice Halbwachs22 é uma referência bastante significativa


quando o que está em jogo é a memória. Nesse sentido, o autor defende uma tese
que nos é muito cara à medida que compreende que a linguagem representa um
lugar privilegiado para analisar o enquadramento social da memória. Por isso, a
linguagem está no centro da constituição dos processos de instituição e
representação da memória. É neste ponto que tal reflexão produz ressonância no
âmbito da Análise do Discurso, uma vez que defendemos que a memória apresenta
uma “exterioridade constitutiva” (ORLANDI, 2017, p. 102).

Diante disso, pensar a memória nessa perspectiva do enquadramento social


(quadro social) implica tomá-la não como uma entidade psicológica, mas como um
conjunto de representações sociais que toma forma pelo funcionamento ou pelo uso
que se faz dela na sociedade. E essa questão carrega, por sua vez, uma implicação
bastante séria, porque a memória do passado depende das condições sócio-
políticas do presente daqueles que se lembram. Dito de outra maneira, a relação
que nós estabelecemos com o nosso passado, através da memória, é ligada ao
nosso presente. Por isso, aquilo que nós fazemos com o passado no presente é, do
ponto de vista político, muito relevante para a sociedade. Logo, tal funcionamento
determina nossa própria relação com a memória à medida que uma lembrança é
empreendida através das lutas políticas e ideológicas que legitimam ou
desautorizam a constituição e a circulação de uma memória por meio do discurso.

Halbwachs, na obra A Memória Coletiva (2003 [1950]), sustenta que a


memória é fruto de uma história vivida por um determinado grupo de pessoas e
constituída por meio de apropriações que se estabelecem a partir da vivência deste
grupo. Dessa forma, para o autor, as lembranças são sempre compartilhadas;
ninguém pode, sozinho, se lembrar de nada, e cada consciência individual se
instaura como ponto de vista do coletivo. Dito de outro modo, Halbwachs, rompendo
com o caráter psicologizante da memória defendido por Bergson, propõe, em sua
tese, que a memória é uma entidade coletiva, que precisa ser compreendida a partir

22
Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês de grande envergadura intelectual.
Discípulo de Émile Durkheim, Marx e Bergson, consagrou-se no campo da intelectualidade por seus
trabalhos sobre a memória coletiva. Entre suas principais obras estão: Les Cadres Sociaux de la
Mémoire [Os Quadros Sociais da Memória] (1925), Les Causes du Suícide [As Causas do Suicídio]
(1930), Morphologie Sociale [Morfologia Social] (1938), La Mémoire Collective [A Memória
Coletiva] (1950), entre outras.
80

da tradição de diferentes grupos sociais que se organizam em torno dela. Por isso,
de acordo com o autor, a memória individual, por sua vez, só tem existência e
legitimidade a partir do momento em que o sujeito pertence a um grupo e,
consequentemente, é reconhecido como membro deste por seus representantes.

Neste ponto, compreendemos que a memória surge como um importante


elemento no processo de constituição da prática testemunhal, uma vez que os
sentidos e representações atribuídos – através do grupo – são incorporados pelos
membros em determinado momento histórico ou circunstância vivenciada e cuja
essência estaria, no caso desta pesquisa, na reconstrução das memórias do grupo
que foi alvo da tortura na Ditadura Militar.

Diante disso, Halbwachs compreende a memória coletiva como um constructo


social ou, por assim dizer, um vínculo social que une os membros de um grupo
através da memória. Com isso, o filósofo problematiza a noção de memória a partir
da divisão entre memória individual e memória coletiva. De acordo com ele, as
lembranças individuais servem como produto para constituição da memória coletiva
por meio de uma rede de relações estabelecidas a partir de um determinado
acontecimento. Essa relação pode ser representada a partir do seguinte esquema:

Figura 4 – Esquema memória individual e memória coletiva

MEMÓRIA
INDIVIDUAL

MEMÓRIA MEMÓRIA MEMÓRIA


INDIVIDUAL
COLETIVA INDIVIDUAL

MEMÓRIA
INDIVIDUAL

Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.


81

Halbwachs defende, assim, que é impossível conceber a memória sem


levarmos em consideração os diferentes contextos sociais nos quais ela se inscreve.
Esta tese é compreensível a partir do momento em que consideramos que vivemos
numa organização social e as lembranças vivenciadas por um sujeito são evocadas,
no momento da rememoração de um acontecimento, também pela presença de
outros sujeitos, mesmo que eles não tenham participado daquele acontecimento
diretamente, mas toda lembrança sempre está impregnada de uma memória
coletiva, ou seja, das lembranças dos outros que já experienciaram aquele
acontecimento no passado ou que já se lembraram dele, de alguma forma, em dada
circunstância, semelhante àquele que se lembra.

Diante disso, toda memória precisa ser compartilhada através dos laços que
unem os sujeitos em determinado grupo social. Essa troca permite que ela receba
novos sentidos, produzindo, com isso, novas reconfigurações sociais na vida do
próprio sujeito. Para Halbwachs (2003 [1950]), a memória coletiva e a memória
individual se confundem. Mas isso não significa que sejamos “donos da memória”.
Mesmo que uma memória se apresente sob o rótulo do que é individual, ela só se
instaura e se legitima na presença do outro.

Sendo assim, para o autor, é comum que exista uma relação metonímica
entre a memória coletiva e individual porque “para que a memória dos outros venha
assim a reforçar e completar a nossa [...] é preciso que as lembranças desses
grupos não deixem de ter uma relação com os acontecimentos que constituem meu
passado” (HALBWACHS, 2003 [1950], p. 98). O Relatório Final da CNV, por seu
turno, ajuda-nos a pensar, por assim dizer, que uma memória individual sempre joga
com uma memória construída coletivamente. Com a análise do corpus que
propomos, podemos encontrar as pistas dessa relação apontada pelo autor.

Aqui, dois pontos são relevantes: o primeiro aponta para o fato de sempre nos
lembramos dos acontecimentos ou das coisas inicialmente a partir da primeira
pessoa, logo o ponto de partida de uma lembrança é sempre um “EU” que se
singulariza e que constrói a “identidade do sujeito”, isto é, quando o sujeito lembra
de algum acontecimento, inevitavelmente lembra de si mesmo antes de qualquer
cogitação, tornando-se, com isso, autorreferência para a lembrança: “as lembranças
são minhas!”. Entretanto, tais lembranças só existem porque este “eu me lembro” é
antes de tudo social, é histórico, e foi lançado inicialmente num grupo social para
82

compor os quadros sociais da memória (HALBWACHS, 1925), e que mais tarde,


conforme já dissemos, Althusser (1974) os denominará de Aparelhos Ideológicos de
Estado: a família, a escola, a igreja, o partido político, o movimento social, a nação
etc.

O segundo ponto, por sua vez, diz respeito ao vínculo que o sujeito
estabelece com o passado que é, por assim dizer, de mão dupla: o que faz com que
o sujeito possa transitar entre o passado mais remoto e invoque, por exemplo, uma
memória da infância para o presente, ou seja, aquilo que ele viveu se torna uma
extensão do que ele é no presente e, através de uma espécie de continuidade,
moldará também o seu futuro na sociedade. No nosso caso, ao considerarmos o
testemunho discursivamente, as reminiscências podem ser de diferentes ordens,
entretanto, a memória que se recupera a partir do Relatório Final da CNV parte
sempre de um ponto comum: a tortura. Ou seja, o testemunho mobiliza sujeitos
marcados pela dor que materializa uma mesma memória, produzindo, com isso, um
mecanismo de identificação.

Nessa direção, compreendemos que a participação coletiva, ainda que


indireta, é necessária para que uma memória possa ser recuperada ou mesmo
preservada em determinado grupo. Assim, nos termos do autor:

[...] o grupo nacional de que faço parte foi teatro de certo número de
acontecimentos a respeito dos quais digo que me lembro, mas
que só conheci através de jornais ou pelo testemunho dos que
neles estiveram envolvidos diretamente. Esses fatos ocupam um
lugar na memória da nação – mas eu mesmo não os assisti. Quando
os evoco, sou obrigado a me remeter inteiramente à memória dos
outros, e esta não entra aqui para completar ou reforçar a minha,
mas é a única fonte do que posso repetir sobre a questão. No
pensamento nacional, esses acontecimentos deixaram um traço
profundo, não apenas porque as instituições foram modificadas por
eles, mas porque sua tradição subsiste muito viva nessa ou naquela
região do grupo, partido político, província, classe profissional ou
mesmo nessa ou naquela família, entre certas pessoas que
conheceram pessoas que o testemunharam (HALBWACHS, 2003
[1950], p. 72-73, grifos nossos).
Dito de outra forma, embora cada sujeito possa assumir uma memória
individual, tal memória está ligada diretamente a outras memórias que reverberam e
circulam na sociedade, influenciando, portanto, aquilo de que nos lembramos. Sendo
assim, a memória individual é dependente da memória coletiva porque esta última
apresenta e carrega o traço da sociabilidade que a legitima enquanto tal. Com a
83

afirmação acima, o autor sustenta algumas observações importantes: o primeiro


ponto diz respeito ao processo de partilha de uma memória que se apresenta
coletivamente, mesmo que alguém não tenha tomado consciência de determinado
acontecimento histórico nacional – no nosso caso a Ditadura Militar –, tal memória
tende a ser invocada a partir do outro; em segundo lugar, os fatos históricos deixam
traços profundos, ou seja, uma memória que permanece latente na sociedade e que
poderá sempre reaparecer, por meio do discurso do outro, sobre aquele evento.

Conforme observamos acima, o pensador insiste que as memórias são


construções dos diferentes grupos sociais que um indivíduo participa, logo são eles
que determinam o que deve ser lembrado e os lugares onde essa memória será
preservada. Dessa forma, a duração de uma memória dependerá exclusivamente da
existência de um dado grupo social. Diante disso, percebemos que, embora
bastante complexa, a memória, ao mesmo tempo que é lacunar, ela é organizada,
ou seja, as imagens mnêmicas não são tomadas aleatoriamente, há uma ordem
própria na/da memória, uma vez que sempre existe um elo entre a lembrança de um
sujeito e a dos outros, e a reconfiguração da imagem de um acontecimento do
passado parte sempre de dados ou pontos de contato numa rede de memórias, isto
é, deve haver um sentimento de pertença, de identificação, de afinidade e de
continuidade de relações entre um determinado sujeito e o grupo social em que se
insere, fazendo com que as lembranças sejam (re)construídas e a memória seja
alçada à condição de coletiva.

A questão aqui, conforme Halbwachs, é que a memória individual precisa da


memória coletiva para completá-la. Assim, para o autor, se houver um
distanciamento entre um sujeito e o grupo, rompe-se, consequentemente, o elo de
identificação comum que os unia através da memória. O grande achado de
Halbwachs, por assim dizer, é justamente o fato de uma memória apresentar a sua
base de sustentação a partir da memória dos outros, na relação de alteridade. De
certa forma, consideramos que a relação existente entre a memória individual e a
memória coletiva aponta para outra aporia: a relação complexa entre a lembrança e
o esquecimento conforme veremos ainda neste capítulo.

Com isso, Halbwachs, seguindo a linha de raciocínio de Bergson acerca da


imagem que uma memória pode evocar, concorda que a memória preserva o
passado tal como foi para o sujeito, embora haja a impossibilidade do tudo lembrar.
84

As imagens mnêmicas, por seu turno, permanecem no inconsciente como fruto de


uma memória que é coletiva e, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, resultado de
uma experiência que é singular. Conforme podemos observar, tudo isso gira em
torno de um complexo jogo de imagens. Vejamos como ele se dá: primeiramente,
acreditamos que, por sermos os mantenedores de tais imagens, temos controle
sobre a memória (ilusão); em segundo lugar, não obstante, ao tentarem dar forma,
de alguma maneira, ao nosso passado, estas imagens – que retornam a própria
memória através da reminiscência – misturam-se e se completam através das
imagens e das lembranças que pertencem a um grupo social.

Vejamos a questão da memória sobre a Ditadura Militar. Quando uma pessoa


afirma que se lembra da violência praticada nos porões da Ditadura Militar, é porque
essa lembrança provém da memória de um grupo social que vivenciou e/ou sofreu
os efeitos nefastos daquele acontecimento histórico, ou seja, a memória individual
se retroalimenta da memória coletiva e vice-versa. Neste caso, já que o sujeito não
presenciou a Ditadura Militar que ocorreu no passado e ela pertence à memória
nacional, para lembrá-la precisa recorrer às memórias de outros sujeitos que
vivenciaram e se constituem, por assim dizer, como lugares de preservação e
manutenção daquela memória.

Com efeito, a ideia central na obra do autor se fundamenta na memória como


fruto de uma construção social e isso implica reconhecer, de acordo com o filósofo,
que o sujeito não existe isoladamente, mas se constitui nas diferentes relações
sociais que estabelece e compartilha com o outro e, por seu turno, a memória entra
nesse jogo, isto é, a relação com o outro inscreve as memórias individuais na
memória coletiva, representando, dessa forma, a ação do próprio sujeito sobre a
história. As lembranças, por sua vez, têm existência e se materializam à medida que
participam de um processo discursivo e, ao mesmo tempo, confrontam-se com as
memórias de quem participou do mesmo acontecimento. O exercício da lembrança
implica, portanto, a reconfiguração de imagens e acontecimentos do passado no
âmbito no presente.

De acordo com Halbwachs, esse mecanismo pode evidenciar a presença de


memórias concorrentes ou memórias antagônicas que estão em conflito. Com isso,
os respectivos acontecimentos vividos coletivamente acabam por perpetuar uma
memória. Ora, podemos não ter a lembrança de determinado acontecimento que
85

paira num passado distante, todavia as testemunhas sempre estarão aí. Nesse
sentido, a memória ganha cada vez mais força – através do testemunho –, quando é
evocada não apenas por uma voz singular, mas por diferentes vozes sociais que
compartilharam do mesmo acontecimento histórico através da memória. Sobre esta
relação o pensador propõe que:

Estamos em tal harmonia com os que nos circundam que vibramos


em uníssono e já não sabemos onde está o ponto de partida das
vibrações, se em nós ou nos outros. Quantas vezes expressamos,
com uma convicção que parece muito pessoal, reflexões tiradas de
um jornal, de um livro ou de uma conversa! Elas correspondem tão
bem à nossa maneira de ver, que nos surpreenderíamos ao
descobrir quem é seu autor e constatar que não são nossa mesmo
assim, muitas vezes a dosagem de nossas opiniões, a complexidade
dos nossos sentimentos e gostos é apenas a expressão dos acasos
que nos puseram em contato com grupos diversos ou opostos, e
nossa parte em cada modo de ver é determinada pela intensidade
desigual das influências que eles exerceram em separado sobre nós
[...] É assim que em geral a maioria das influências sociais a que
obedecemos permanece desapercebida por nós (HALBWACHS,
2003 [1950], p. 64-65).
Tal relação de um sujeito com um dado grupo e a constituição da memória
coletiva é muito interessante. Vejamos um exemplo para ilustrar a força da memória
no processo de identificação: um certo tipo de sujeito daltônico não consegue nem
reconhecer nem fazer a distinção entre a cor verde e a vermelha, no entanto aceita
piamente a existência destas cores simplesmente porque nós a enxergamos e,
portanto, as reconhecemos socialmente enquanto tais. Sendo assim, entendemos
que esse é um reconhecimento social que se dá e se legitima a partir do outro. Ora,
o mesmo processo acontece com a memória, de modo que a absorvemos e a
reconhecemos a partir do outro.

Na proposta que se defende neste trabalho, a memória que instaura o


testemunho viabiliza, para nós, a (re)constituição de acontecimentos que envolvem o
sujeito da/na tortura capturado por uma constante luta ética que tem como arena o
jogo entre a lembrança e o esquecimento. Para dar consequência ao testemunho
como o lugar que materializa essas memórias, pensaremos, na sequência, na
concepção instaurada por Candau (2005), Le Goff (2013 [1988]), Nora (1993 [1984])
e Pollak (1989 & 1992).
86

Assim, pensar sobre a memória coletiva estabelecendo uma relação com a


concepção de Lugar de Memória23 torna-se pertinente porque o autor propõe uma
leitura crítica no que concerne a certos lugares de memória consagrados pela
história e que não conseguem representar uma memória viva. Neste ponto, os
autores se aproximam da concepção de memória coletiva, trabalhada por
Halbwachs, à medida que sustentam que a memória tem existência social.

3.4 O (ENTRE)LUGAR DE/DA MEMÓRIA

No tear da memória se entrelaçam os fios do passado e do presente, e isso


possibilita a compreensão dos acontecimentos da história, além de fornecer a
construção de uma reflexão prospectiva acerca do futuro. Dessa maneira, desde
Platão, passando por Santo Agostinho, chegando até Freud, o homem tem se
interessado por compreender a estrutura e o funcionamento da memória, no âmbito
da sociedade, através de sua inscrição no discurso.

Conforme observado anteriormente, a memória nos conduz a uma espécie de


sentimento de pertencimento a um grupo social e, por isso mesmo, uma memória
que estabelece uma relação com o passado sempre pode unir os sujeitos através de
um vínculo identitário. Tal vínculo, no nosso caso, contribui peremptoriamente para
que possamos compreender, por exemplo, o Relatório Final da CNV como um Lugar
de Memória no âmbito do desenvolvimento desta pesquisa por meio da
estratificação, saturação ou cristalização de diferentes memórias que se coadunam
e se sedimentam num mesmo lugar: o testemunho.

Entendemos, assim, que a narrativa memorial24, por meio do testemunho,


reforça a relação de identidade à medida que invoca sujeitos com o sentimento de

23
Pierre Nora toma por empréstimo a noção de Lugar de Memória da obra A Arte da Memória de
Frances A. Yates (1966).
24
A narrativa memorial, que se dá através do testemunho, é entendida aqui a partir do termo
“narratividade” apresentado por Orlandi: “[...] a narratividade como a maneira pela qual uma memória
se diz em processos identitários, apoiados em modos de individuação do sujeito,
afirmando/vinculando (seu “pertencimento”) sua existência a espaços de interpretação determinados,
consoantes a específicas práticas discursivas. Isto afirma a narratividade como parte do dizer, seja
qual for, e não como um „gênero‟ (narração). Ou seja, o que estou afirmando é que a narratividade,
ligada, como a ligo, ao funcionamento da memória, é parte do funcionamento do discurso”
(ORLANDI, 2017, p. 106-107).
87

pertença a um grupo que vivenciou, na própria pele, a experiência com a tortura


durante a Ditadura Militar brasileira. O vínculo identitário que se estabelece entre
sujeitos que experienciaram das mesmas memórias é resultado, segundo Nora
(1993 [1984]), da relação que se mantém por meio do esquema a seguir:

Figura 5 – Esquema do vínculo identitário da memória

FUNCIONAL

SIMBÓLICO MATERIAL

Fonte: Elaboração do autor a partir de Nora (1993 [1984]).

Sobre este eixo tridimensional Nora assevera que:

É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese,


pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua
transmissão; mas simbólico por definição visto que se caracteriza por
um acontecimento ou uma experiência vivida por um pequeno
número ou uma maioria que deles não participou (NORA, 1993
[1984], p. 22).
Todo Lugar de Memória é resultado, portanto, do amalgamento destas três
dimensões e condiciona um sentido que é comum para todos os sujeitos com o
mesmo sentimento de pertencimento a determinado grupo social. Assim, para o
autor, a relação complexa existente entre memória e história estabelece as bases e
os respectivos efeitos de sentido que se instauram a partir da instituição de
determinado Lugar de Memória. Este, por sua vez, não surge do nada e nem
corresponde a qualquer lugar, mas a um lugar que é legitimado pela sociedade. De
modo mais específico:

Os lugares de memória são, antes de tudo, os restos. A forma


extrema em que subsiste uma consciência comemorativa em uma
história que a reclama, uma vez que ela a ignora. É a desritualização
do nosso mundo que faz aparecer a noção. Ela secreta, traça,
estabelece, constrói, decreta, sustenta pelo artifício e pela vontade
uma coletividade fundamentalmente conduzida em sua
88

transformação e sua renovação. Valorizando, com isso, o novo sobre


o antigo, o jovem sobre o velho, o futuro sobre o passado. Museus,
arquivos, cemitérios e coleções, festas, aniversários, tratados,
processos verbais, monumentos, santuários, associações são os
objetivos testemunhais de uma outra era, as ilusões de eternidades
(NORA, 1993 [1984], p. 12-13).

Nora (1993 [1984]) elucida, ainda, que o Lugar de Memória é concebido


porque há um trabalho da história que reclama, por assim dizer, a memória, uma
espécie de desejo de memória ou – para usar os seus termos – uma espécie de
“vontade de memória” na luta incessante contra o esquecimento. O lugar, assim, não
se caracteriza como um espaço de saturação, mas, sobretudo, como espaço onde
há um trabalho constante da memória. Nessa perspectiva, o autor explica:

Porque, se é verdade que a razão fundamental de ser um lugar de


memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento,
fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial
[...] prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é
isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem
de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus
significados e no silvado imprevisível de suas ramificações (NORA,
1993 [1984], p. 22).
Diante disso, o descompasso existente entre a sociedade contemporânea e o
seu passado instaura o que o autor denomina de “não-memória” por meio da
“aceleração da história”. Daí, segundo o autor, a necessidade de se instituírem, cada
vez mais, os Lugares de Memória na tentativa de driblar o esquecimento ou a
amnésia que poderia envolver a sociedade e, consequentemente, as suas tradições,
a sua história. Logo, não existe sociedade sem memória, eis o perigo que espreita
“os donos da memória”, e eis o motivo pelo qual o estabelecimento dos Lugares de
Memória é tão caro. A necessidade que o homem tem de lembrar é, por assim dizer,
a quintessência da memória e o objeto de desejo de uma sociedade e, portanto,
representa uma dimensão política, o lugar de disputa política pela memória.

Por sua vez, essa espécie de “desmemória” é caracterizada por Nora (1993
[1984], p. 18) como um mecanismo de “atomização de uma memória geral em
memória privada”, bem como através de um processo psicologizante “integral da
memória contemporânea” que teria o papel fundamental de fazer com que o sujeito
possa “relembrar e reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade”.
Nesse sentido, o autor apresenta uma crítica ferrenha àqueles que, inebriados pela
89

pós-modernidade e a globalização, por exemplo, consideram a memória como algo


obsoleto, rastros de um passado longínquo e há muito desaparecido.

O rompimento com tradições passadas de geração em geração, bem como o


esvaziamento do sentimento de pertencimento a um grupo social, acaba por
aumentar a distância do abismo que separa o presente do passado e, outrossim, o
desaparecimento das sociedades-memória. Esta é uma problemática do mundo
moderno. Por isso, na modernidade, ou melhor, na vida do homem moderno, a
memória passou a ser percebida como algo essencialmente individual (numa
espécie de “privatização” da memória), estabelecendo, com isso, uma ruptura com
as memórias que poderiam manter uma relação com o passado e,
consequentemente, estabelecer um vínculo identitário efetivo entre os membros de
um grupo social. Surge, deste ponto, a noção de Memória Distância – defende o
autor.

Tal concepção concebe o passado, entende o autor, não como algo distante
(temporalmente), porém como algo que pode sempre nos (re)conduzir a um tempo
presente. Este ponto é bastante emblemático porque precisamos ser sensíveis à
distinção – não raro problemática – entre história e memória, ou melhor, entre a
memória e aqueles que escrevem a história – enquanto ciência – por meio de um
esforço historiográfico que, na maioria das vezes, fragmenta e cristaliza uma
memória por meio da aceleração da história no contexto do tempo presente.

Nesse sentido, a obra de Halbwachs também faz eco no pensamento de Nora


quando nos ensina a principal diferença entre a memória e a história. Para o autor,
enquanto a história se propõe a demarcar bem a fronteira que divide o passado do
presente; a memória, por sua vez, inscreve-se nos grupos sociais, acompanhando
as transformações e as reconfigurações de tais grupos. Dito de outra forma,
enquanto a história é estática, em seu desejo de fixar as coisas, a memória é
movimento, é dinâmica, é viva.
Joël Candau25, por seu turno, apresenta uma reflexão interessante sobre a
memória, a história e a construção de vínculos identitários entre os sujeitos na
sociedade. A partir de Halbwachs, o autor problematiza a relação entre história e

25
Joël Candau é antropólogo e professor-pesquisador da Université de Nice Sophia Antipolis. Tem
uma robusta produção intelectual voltada para as questões da memória e da identidade social.
90

memória por meio de um viés antropológico. Assim, em sua Antropologia da


Memória, o autor assevera que se a história:
[...] visa a esclarecer da melhor maneira possível o passado, a
memória busca antes instaurá-lo, instauração imanente à
memorização em ato. A história procura revelar as formas do
passado, a memória as modela, um pouco como o faz a tradição. A
primeira tem a preocupação de organizar, a segunda é atravessada
pela desordem da paixão, das emoções e dos afetos. A história pode
vir a legitimar, mas a memória é fundadora. Lá onde a história se
esforça para colocar o passado à distância, a memória procura se
fundir a ele (CANDAU, 2005, p. 60).

Diante disso, concordamos com Candau (2005) quando sustenta que a


memória é fundadora porque é uma construção social que modela os
acontecimentos do presente através do passado. O poder fundador da memória
atravessa, à sua maneira, todas as construções discursivas que circulam na
sociedade, inclusive os mecanismos de identificação do sujeito, suas relações, bem
como determina as suas posições. Por esta razão, de acordo com o autor, a
memória é viva e organiza, por meio de um processo bem elaborado, os valores do
passado e do presente na sociedade. Com isso, a memória é capaz de evocar
imagens e discursos que operam entre o já vivido e o contemporâneo e, ao mesmo
tempo, é impulsionada a lançar um olhar para/sobre o futuro.
No trabalho de Le Goff (2013 [1988]), importante historiador francês, a relação
entre memória e história também é tratada com maestria à medida que o autor
descreve as principais diferenças entre as duas e, ao mesmo tempo, a singularidade
que as une. Nesse sentido, para o pensador:

Ainda sobre este assunto, devemos distinguir: o objeto da história é


bem este sentido difuso do passado, que reconhece nas produções
do imaginário uma das principais expressões da realidade histórica,
nomeadamente de sua maneira de reagir perante seu passado. [...]
O mesmo acontece com a memória. Tal como o passado não é a
história, mas o seu objeto, também a memória não é a história,
mas um de seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de
elaboração histórica. (LE GOFF, 2013 [1988], p. 51, grifos nossos).

Diante disso, concordamos com o autor quando defende a tese de que a


memória social é prontamente anterior à história embora tais processos mantenham
entre si um forte laço, inclusive através de um campo de forças desiguais
(contraditórias). Portanto, é por meio da relação entre história e memória que
retiramos tudo aquilo que necessitamos para compreender a vida do homem no
âmbito da sociedade. A memória, por seu turno, tem o poder de subjetivar a própria
91

história e barrar os anacronismos que geralmente são convocados pelo cientificismo


da história – a história dos historiadores –, na busca pela especialização e
disciplinarização que marca a pós-modernidade. Daí ouvirmos falar em história da
democracia, história dos mitos, história das ideologias, história moderna, história
geral, história do Brasil, história da literatura, história das ideias linguísticas, história
das mentalidades, história da arte etc.

É justamente sobre este ponto que Le Goff chama especialmente a atenção,


uma vez que se passou a compreender, quase que exclusivamente, os
acontecimentos ou os fenômenos históricos por meio das representações culturais e
configurações sociais que constroem a identidade da própria história, ou seja, uma
espécie de historicidade da própria história. Este é, por conseguinte, um trabalho
social da memória sobre a história e este mecanismo de funcionamento ou de efeito
que subjaz à memória não pode ser subvertido. O autor propõe ainda que os
esquecimentos e os silêncios que se instauram através da história podem sempre
deslindar mecanismos de manipulação da memória social por meio da luta de
classes, de grupos e de sujeitos que dominaram e dominam as sociedades (LE
GOFF, 2013 [1988]), o que nos direciona, mais uma vez, para uma compreensão
também política da memória que é basilar neste trabalho.

Perante este cenário, a memória tem o poder de (re)inscrever os


acontecimentos na história, os quais, por sua vez, podem se atualizar por meio
desse jogo entre a memória e a história. Por isso, em relação à tarefa a que nos
propomos fazer, a memória tem um papel centralizador, pois é ela que determina os
caminhos que o testemunho pode seguir. Isso implica que não podemos investigar o
funcionamento do testemunho sem fazer referência à memória e à história.

A escritura historiográfica se constitui, assim, como um ponto onde História e


Memória podem se confundir, mas a força da narrativa memorial acaba por rechaçar
o efeito de homogeneização de uma sobre a outra. O ponto nodal dessa questão é
que sempre podemos nos deparar com uma memória de interesses políticos e
ideológicos. E se há uma memória interessada é porque ela também é um lugar de
disputa através das relações de poder, que preserva aquilo que convém e/ou
subverte aquilo que incomoda um grupo social através da manipulação, e que nos
obriga a recuperar a memória por meio dos vestígios deixados na esteira da história,
a memória dos restos, a memória dos rastros, as memórias em ruínas, causas
92

primeiras do testemunho que se inscreve neste trabalho. Esta relação é fortemente


mostrada quando Nora traz à tona a memória judaica sobre o holocausto. No
exemplo apresentado pelo autor, compreendemos que uma narrativa aparentemente
individual pode promover uma relação de pertencimento entre os sujeitos que foram
vítimas do nazismo e, consequentemente, compartilham uma memória de
identificação através de aspectos étnicos. Por isso, o autor insiste que:

Memória, história: longe de serem sinônimos, nós tomamos


consciência de que tudo opõe uma à outra. A memória é a vida,
sempre tomada pelos grupos vivos e, por isso, ela é uma evolução
permanente, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento,
inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as
utilizações e manipulações, suscetível de longas latências e de
revitalizações repentinas [...] A memória emerge de um grupo que ela
une, o que quer dizer, como o fez Halbwachs, que existe a mesma
quantidade de memória e de grupos; que ela é, por natureza, múltipla
e multiplicada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao
contrário, pertence a todos e a ninguém, o que dá a ela uma vocação
ao universal. A memória se enraíza no concreto, no espaço, no
gesto, na imagem e no objeto. A história só se liga às continuidades
temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um
absoluto e a história só conhece o relativo (NORA, 1993 [1984], p. 9).

Conforme observamos, na incursão de Nora, há uma certa contradição na


relação memória-história que nos lança diante de duas chaves de leitura:
primeiramente, por se defender que a história sempre se vincula a uma tradição,
que, em tempos de modernidade ou de pós-modernidade, tem sido interrogada na
busca pela construção e manutenção, cada vez mais acelerada, de identidades
individuais, isto é, no sentido de que, para fazermos a nossa própria história, se
torna imperativo diferenciá-la da dos demais sujeitos da sociedade; em segundo
lugar, porque a história sempre se pretendeu objetiva e, consequentemente, não
subjetiva em relação aos acontecimentos históricos, ou seja, há uma preocupação
de demarcar que um determinado fato histórico sempre tem, no sentido temporal
mesmo do termo, um início e um fim. Com isso, produz-se o efeito de sobreposição
da história em relação à memória quando na realidade esse processo relacional
deve ser entendido – tal como o estamos considerando neste trabalho – por meio de
um mecanismo de sobredeterminação.

Ora, a partir do campo teórico a que nos filiamos, se considerarmos esta


questão por este viés fortemente objetivo, deixaremos de considerar, por
conseguinte, os rastros, os vestígios que a memória deixa na própria história e que a
93

história, por sua vez, imprime na ordem da memória. Dito de outra forma,
deixaríamos de considerar que a história atualiza a memória ao mesmo tempo em
que é por ela (re)atualizada. Tal atualização ocorre, por sua vez, constantemente
através daqueles que conduzem a sociedade, no sentido político do termo, bem
como por aqueles que integram os grupos sociais por meio de suas experiências
individuais. Ao considerarmos isso, portanto, entendemos que a memória também
está, como massa de manobra simbólica, sujeita à censura e ao silenciamento.

Voltemos novamente à problemática dos “Lugares de Memória”. Para isso,


invocamos o testemunho no Relatório Final da CNV: quando afirmamos que as
cinzas da memória da Ditadura Militar reverberam no presente é porque, ao
instaurar uma outra narrativa sobre aquele acontecimento histórico, este discurso
outro, agora possível dadas as suas condições de produção sócio-históricas,
transforma-se num Lugar de Memória entendido aqui no sentido político, simbólico
e, portanto, ideológico deste domínio de memória. Assim, concordamos que tal
passado não é o lugar do nada, do vazio, mas que “um esforço de lembrança
poderia ressuscitá-lo [...] tornando-se, ele próprio, a sua maneira, um passado
reconduzido, atualizado, conjurado enquanto presente por essa solda e por essa
ancoragem” (NORA, 1993 [1984], p. 19).

Neste ponto, encontramos, a partir do autor, uma ressalva importante em


relação aos Lugares de Memória: eles não podem ser vistos unicamente como um
repositório de memórias institucionais, como, por exemplo, os museus. Por isso,
Nora os caracteriza como uma espécie de memória-arquivo, cujo funcionamento
depende de um trabalho de análise de memórias que estão difusas para a
reconstrução de sentido através do todo. Assim, o pensador instaura também uma
crítica em relação aos Lugares de Memória justamente porque a condução de tais
espaços a esta condição se levanta em virtude desse rompimento – em função da
“aceleração da história” – com a tradição que se considera também como “guardiã
da memória” e, consequentemente, dos valores culturais de uma sociedade. A
concepção de arquivo, por sua vez, – tomada como referência para a abordagem do
corpus deste trabalho –traz em sua definição a perspectiva que compreende a
memória materializada, institucionalizada e, ao mesmo tempo, simbolicamente
construída, nos termos de Nora (1993 [1984]).
94

Pois bem, podemos considerar que os arquivos se tornam, em certo sentido,


lugares para salvaguardar a memória de um povo porque senão “a história depressa
os varreria” (NORA, 1993 [1984], p. 13). Sendo assim, o arquivo é produzido em
função dos diferentes interesses que os aparelhos ideológicos, os meios políticos e
sociais fazem da memória, sendo estes os verdadeiros “senhores” da memória e do
esquecimento. Conforme veremos nas análises do corpus, quando trabalhamos com
um arquivo da natureza do Relatório Final da CNV, é quase inevitável que quase
sempre partamos – nos limites do testemunho aqui concebido e do próprio Relatório
–, de um lado pessoal, ou melhor, individual para um levantamento de questões que
são, ao mesmo tempo, de ordem social. Assim, quando a testemunha é invocada,
há, basicamente, a representação de determinados acontecimentos que têm por
base a memória. Tais acontecimentos pessoais/sociais entrelaçam-se e entram em
confronto no ato de lembrar e de dizer. Nessa perspectiva, lembrar e dizer uma
memória nos remetem a uma luta entre a recordação de um dado passado e o
momento presente que configura o seu modo de dizer.

Entretanto, a memória-arquivo é de muita relevância quando é acionada,


trazida à luz, e, sobretudo, quando os vestígios de memória são confrontados com
outros Lugares de Memória. Concebido discursivamente, o arquivo pode ser tão
opaco quanto a memória. Nesta direção, ele não é um espaço de saturação e
estabilização da memória, mas um lugar sujeito à desestabilização perante o
funcionamento de um dado acontecimento na atualidade. Diante disso, o arquivo da
CNV se caracteriza, em nossa leitura, por ser esse lugar que busca preservar a
memória. Mas não de qualquer forma: essa relação toma corpo por meio da própria
organização discursiva que nos apresenta um discurso sobre o nosso passado ou
um “discurso de memória” por meio do qual o passado é invocado para se ancorar
num discurso contemporâneo, isto é, um discurso para o presente como forma de
assegurar a rememoração, a reminiscência, a lembrança.

Antes de partirmos para o próximo ponto, vejamos a contribuição que Pollak 26


(1989 & 1992) fornece acerca das questões que envolvem a memória. Nesse

26
Michael Pollak (1948-1992) foi um importante sociólogo e pesquisador do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS). Orientando de Pierre Bourdieu, suas pesquisas se voltam para as
relações entre política e ciências sociais, além de apresentar uma relevante reflexão teórica sobre o
95

sentido, o autor propõe uma reflexão interessante sobre a memória à medida que
ressalta a existência de uma “memória subterrânea” como a contraparte de uma
“memória oficial”. Essa memória outra apontaria, em nossa leitura, para o
funcionamento ideológico das relações de poder na sociedade que legitimam e
institucionalizam uma memória através da relação dominador/dominado. Diante
disso, a “memória subterrânea” seria, por assim dizer, a memória das minorias
sociais e, por isso mesmo, um alvo fácil para o esquecimento à medida que a
“memória nacional” a exclui ou subverte essa presença outra no seu próprio interior
o que, de acordo com o autor, colocaria a memória numa espécie de disputa. Dessa
forma, neste trabalho, assumimos que:

Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das


minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias
subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e
dominadas, se opõem à “memória oficial”, no caso a memória
nacional [...] ela acentua o caráter destruidor, uniformizador e
opressor da memória coletiva nacional (POLLAK, 1989, p. 4).

Concordamos com esta tese quando pensamos o corpus deste trabalho


porque o trabalho da CNV representa a possibilidade de dizer uma memória outra
por parte daqueles que foram silenciados durante a Ditadura. Mas, conforme já
dissemos, a vontade de dizer por si só não é suficiente para possibilitar a
reconstituição da história e a “reconciliação nacional” através da justiça. É preciso
que exista um interlocutor possível para este ato de dizer ou, nos termos de Pollak
(1989), alguém que escute estas vozes e que acolha (legitime), sobretudo
institucionalmente, este outro gesto de dizer a memória da Ditadura Militar. O autor
concebe, assim, a memória como instrumento de luta que define uma narrativa de
muitas e diferentes vozes orquestradas pela memória oficial. A memória, neste caso,
apresenta um caráter que é claramente político, causa primeira deste trabalho.

Para Pollak, ainda, a memória também é múltipla e heterogênea, bem como


constituída de esperas e silêncios. Nessa perspectiva, a reflexão em torno das
significações do silêncio é muito pertinente para a presente pesquisa à medida que o
autor compreende o silêncio não como puro esquecimento, mas como estratégia de
preservação da memória e, para isso, apresenta-nos também o exemplo dos

problema da identidade social em experiência-limite, como, por exemplo, um estudo realizado sobre
as mulheres sobreviventes dos campos de concentração.
96

sobreviventes dos campos de concentração que, após a libertação, retornaram à


Alemanha.

O exemplo de Pollak sobre a memória dos judeus é emblemático e se


instaura como referência que produz eco, de certa forma, no que concerne à
memória da Ditadura Militar no Brasil e nos possibilita refletir que o silêncio pode
adquirir razões bastante complexas em períodos de exceção e cerceamento da
liberdade. Da mesma forma, permite-nos questionar se há, de fato, um desejo de
memória, ou se a luta pela reconstrução da democracia no Brasil, durante os anos
de abertura, acabou obliterando tal desejo de memória.

Essa é uma discussão cara quando o que está em jogo é o testemunho


porque o silêncio, no entendimento que nos apresenta o pensador, é constituído,
muitas vezes, pela angústia de não se encontrar um interlocutor que seja capaz de
ouvir ou mesmo pela incapacidade de dizer, por medo de punição por aquilo que se
diz, ou ainda por contrapor-se a uma voz dominante. Com isso, o autor delimita a
fronteira entre o indizível e o dizível, marcando o que é da ordem do confessável e
do inconfessável. Ao nosso olhar, o trabalho da CNV possibilitou, em certo limite, o
encontro de duas questões: tanto a instituição de um lugar de fala para um sujeito
que foi silenciado quanto a possibilidade de instaurar-se um outro dizer sobre a
memória da Ditadura Militar.

Em sua obra, ainda, o autor parte da premissa de que os ditos e os não-ditos


são imprescindíveis para a construção de uma memória, seja ela coletiva ou
individual. Além disso, o autor ressalta a relevância das marcas significativas que
uma pessoa – no caso da memória individual –, ou um grupo ou uma nação – neste
caso da memória social – vai deixando em suas experiências vividas e que se
tornam pontos de referência para qualquer pesquisa histórica. Essas “pistas” ou
rastros, muitas vezes esquecidos ou silenciados através da força da ideologia,
podem nos revelar efeitos metafóricos diferentes do que se convencionou considerar
como registro da história oficial.

Para Pollak, portanto, a memória também apresenta um caráter social,


destacando-a não apenas como produtora de sentidos, mas, sobretudo, como
acontecimento-ação. Diante disso, trabalhar com a categoria “memórias em disputa”'
97

e sua relação com uma espécie de “trabalho de enquadramento da memória” nos


ajudará a entender o jogo de memórias no testemunho.
A memória, então, poderá ser entendida aqui como constituída por um sujeito,
face ao seu testemunho/depoimento, mas que trabalha com as reminiscências de
um passado que reverberam na memória da coletividade, no momento presente; ou
ainda, com a capacidade de preservar socialmente acontecimentos ou informações
referentes a fatos vividos no passado. É interessante pensar nessa relação porque
ela se coaduna – em nosso gesto de leitura – com a dialética da memória e da
identidade, ou seja, no universo das relações interdiscursivas, das relações
imaginárias e das trocas simbólicas, memória e identidade estão, por assim dizer,
amalgamadas.

Em suma, gostaríamos de insistir que, ao mesmo tempo em que a memória


modela o testemunho, esta é também por ele modelada. Essa relação se estabelece
justamente porque, conforme já dissemos, sempre olhamos para o passado a partir
de quem nós somos hoje, no tempo presente, e isso determinaria, nos termos da
memória, o que deve ser lembrado e/ou esquecido pela sociedade ou por um grupo.
A organização e o “armazenamento” da memória/lembrança, por sua vez, articula-se
com o desejo da CNV (2014) de denunciar à sociedade brasileira aqueles aos quais
se atribui maior responsabilidade pelos crimes cometidos contra os Direitos
Humanos, quer tenham sido praticados pelo Estado – através das Forças Armadas –
, quer por demais agentes públicos que, ao forjarem uma “memória oficial” sobre os
comunistas, por exemplo, conduziram as vítimas da Ditadura Militar ao silêncio, à
opressão e ao desaparecimento forçado (BRASIL, 2014).

Assim, a passagem do tempo não se configura como espaço para o


esquecimento, mas como o lugar em que o político entra em cena para promover o
resgate e a preservação da memória. Para recuperar essa memória, a CNV joga
discursivamente com algumas vozes daqueles que sentiram bem de perto os efeitos
de mais de 20 anos de subjugação, sofrimento e silêncio. Dessa forma, veremos que
o testemunho elabora um jogo discursivo que busca evidenciar a voz do outro e
resgatar esse outro do lugar que lhe foi imposto pela Ditadura Militar: o da minoria.
Para entender esse processo, é preciso ler o que foi apagado e, de certa forma,
silenciado, ou seja, tudo aquilo que foi deixado à margem, nos contornos do silêncio,
sob a égide da história. Nessa direção, a CNV busca despertar outras memórias e
98

resgatar outros esquecimentos, de modo que seja possível dar voz a outras versões
da história através das testemunhas daquele acontecimento histórico.

Diante disso, conforme nos ensina a AD, no jogo das negociações


discursivas, há sempre algo que se marca e se apaga por meio do funcionamento da
ideologia, e o testemunho não escapa a esse processamento. Percebemos esse
furo da ideologia por meio da invocação do próprio lema da CNV: “busca da
memória e da verdade”. Esse tripé representa, em certa medida, uma espécie de
autoafirmação sobre a qual se assenta uma sociedade democrática. É sob essa
égide também que se instauram as “coisas-a-saber” (PÊCHEUX, 2012a, p. 37) que
invocamos, de certo modo, em nossas análises.

Diante de tudo que expusemos até aqui, entendemos que uma sociedade que
não tem memória não tem sustentação. Portanto, memória e esquecimento são
tecidos da história da humanidade. Dessa forma, o testemunho presente no
Relatório Final da CNV nos une por meio de uma mesma memória social, tal como
pensada por Halbwachs (2003 [1950]). Nessa perspectiva, o empreendimento
sustentado pela CNV opera com efeitos de sentido estabelecidos pela relação da
memória com a história e, sobretudo, com o efeito político desta relação.

Os monumentos à memória – conforme lemos em Nora – são importantes


contra as forças do esquecimento porque eles escrevem, ainda que, por meio de
rastros e vestígios, a nossa história. No caso da Ditadura Militar, vários monumentos
foram erguidos à memória dos militares. Há uma luta política e jurídica para que os
lugares destinados à memória de torturadores possam ser, de alguma forma,
obliterados. Um exemplo que podemos citar é o caso da Avenida Castelo Branco,
em Porto Alegre/RS, que passou por um processo simbólico de renomeação e hoje
é denominada de Avenida da Legalidade e da Democracia, após aprovação de
projeto de Lei pela Câmara de Vereadores em 2014. Entretanto, em 2018, um
recurso foi apresentado ao Tribunal de Justiça/RS, defendendo a ilegalidade da
aprovação do projeto de Lei. O caso segue para julgamento e ainda cabe recurso da
decisão. Temos aí uma disputa político-jurídica pela preservação de uma memória, e
esquecimento de outra.

Assim sendo, o Relatório da CNV representa, com efeito, esse lugar de/da
memória. O modo de (re)construção da memória representa uma espécie de luta
99

contra as forças do esquecimento que vai da dor à esperança, da repressão à


resistência, do silenciamento ao grito preso na garganta. A CNV nos possibilita hoje
encontrar tudo isso aqui: uma memória que não podemos esquecer. A recuperação
dessa memória do passado nos ajuda, por assim dizer, a corrigir o presente e
idealizar um futuro melhor.

Então, com que joga essa memória no modo de dizer do testemunho? O


discurso da CNV também evidencia formas de compreendê-la. Assim, a
denominação de memória, empreendida pela CNV e assumida neste trabalho,
aponta-nos para duas direções que se coadunam: por um lado, o processo
legitimação da memória através de uma política de resgate da própria memória; por
outro lado, tal legitimação só é possível porque há, de forma peremptória, um
trabalho de natureza social, histórica e ideológica sobre a própria memória. Desse
modo, para compreender esses efeitos de sentido no testemunho, colocamo-nos:

[...] na encruzilhada de um duplo jogo da memória: o da memória


institucional que estabiliza, cristaliza, e, ao mesmo tempo, o da
memória constituída pelo esquecimento que é o que torna possível o
diferente, a ruptura, o outro (ORLANDI, 2012, p. 10).

É sobre os diferentes contornos desse duplo jogo da memória que tratamos


na seção a seguir.

3.5 MEMÓRIA, RASTRO, SILÊNCIO E ESQUECIMENTO

Na antiguidade clássica, Platão27 passou a pensar a memória a partir da


metáfora da “tábua de cera”, do rastro, da impressão. Nesse sentido, para o filósofo,
a qualidade ou a fidedignidade das imagens mnêmicas depende tanto da qualidade
da cera – se esta é muito fluida ou muito rígida – quanto da força da impressão. Se a
cera é boa, mas a força da impressão é fraca, o rastro ou a marca não se torna
muito visível; por outro lado, se a cera é rígida e o rastro é forte demais, a cera se
rompe. Daí a qualidade do rastro deixado pela memória depender desta relação. E
podemos nos questionar: o que determinaria a qualidade da cera [história] e a forma

27
PLATÃO. Teeteto. In: Diálogos de Platão. 3. ed. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade
Federal do Pará, 2001.
100

de impressão na tábua [memória]? A partir do que apresentamos até aqui, podemos


compreender – por meio de uma perspectiva discursiva – que um trabalho político-
ideológico através da história sempre pode interferir na constituição [manipulação]
de uma memória, de seus rastros ou mesmo intervir nos próprios rastros por meio do
apagamento [esquecimento] de uma dada lembrança. Pois bem, é a partir da
metáfora platônica do bloco de cera que Ricoeur28 considera que:

Ora, a confiabilidade da lembrança procede do enigma constitutivo


de toda a problemática da memória, a saber, a dialética da ausência
e da presença no âmago da representação do passado, ao que se
acrescenta o sentimento de distância próprio à lembrança [...] toda
nossa problemática do rastro, da Antiguidade aos nossos dias, é
herdeira dessa noção antiga de impressão, a qual, longe de resolver
o enigma da presença da ausência que agrava a problemática da
representação do passado, acrescenta-lhe seu enigma próprio
(RICOEUR, 2007, p. 425).

Daí podermos fazer a seguinte interrogação: o que garante a fidelidade de


uma imagem mnêmica em relação ao acontecimento que ela recupera? Ora, talvez
possamos considerar que entre o ato de lembrar e a lembrança propriamente dita há
também uma espécie de contradição porque nós somos afetados por lembranças e
imagens mnêmicas que não podemos controlar. É desta reflexão que surge a
máxima para lembrar é preciso esquecer. Dessa forma, essa questão acaba, por
assim dizer, a gerar uma grande suspeita em relação à memória e àquilo de que nós
nos lembramos porque – nos termos da fenomenologia da memória proposta por
Ricoeur a partir de Platão – encontramos, conforme veremos na análise do corpus
deste trabalho, a presença de uma ausência que constantemente atravessa o
testemunho.

A luta contra o esquecimento é também a luta para manter a identidade de


um grupo ou de uma sociedade. No caso da Ditadura Militar, coube às testemunhas
das atrocidades praticadas por meio daquele acontecimento histórico impedir, em

28
Paul Ricoeur (1913-2005) foi um pensador francês herdeiro da fenomenologia de Husserl e
Heidegger. O filósofo estabeleceu um forte vínculo entre a fenomenologia e a análise da linguagem
por meio da teoria da metáfora, do mito e do modelo científico, além de deixar uma robusta
contribuição no que concerne aos estudos sobre a memória e o esquecimento. Entre suas principais
obras estão: Histoire et vérité [História e Verdade] (1955), La métaphore vive [A Metáfora Viva]
(1975), Temps et récit [os três volumes de “Tempo e Narrativa”] (1983, 1984 e 1985), La mémoire,
l'histoire, l'oubli [A Memória, a História, o Esquecimento] (2000), entre outras.
101

certo limite, um trabalho mais efetivo do esquecimento sobre aquele evento.


Pensemos no impacto que a relação entre lembrança e esquecimento pode produzir
na vida de um sujeito: ora, nessa perspectiva, o efeito mais devastador do
esquecimento se institui justamente porque ele [o esquecimento] pode comprometer
as diferentes relações sociais do sujeito, afetando, com isso, a memória que
constitui a sua própria identidade, seus valores, suas convicções, seus vínculos
sociais e culturais, enfim, suas raízes enquanto sujeito. É um esquecimento
insuportável porque, apagando-se um vínculo identitário, apaga-se,
consequentemente, uma parte da nossa própria história e nos lança no anonimato.

Diante disso, conforme nos ensina Ricoeur (2007), a memória se caracteriza


por sua representação do passado como uma presença contínua, mas que é
suscetível de ser esquecida, muito embora deixe uma marca que atrapalha, por
assim dizer, o trabalho completo do esquecimento. Assim, a lembrança (o rastro)
existe porque igualmente existe um trabalho necessário do esquecimento (a
ausência) para que uma memória ou a rememoração se faça presente. Dito de outra
maneira, lembrar e esquecer marcam, portanto, a possibilidade de existência da
própria memória, logo do próprio sujeito, dos próprios efeitos de sentido que se
produzem na discursividade.

O esquecimento é, em certa medida, concebido sobretudo como uma ameaça


para o trabalho da memória que instaura uma narrativa a fim de elucidar os
acontecimentos passados. Portanto, as questões que propomos trazer à luz
direcionam para uma reflexão de um passado que a história legitimou e, muitas
vezes, envolveu politicamente no esquecimento. É o trabalho com a falta e o
esquecimento, na análise do corpus deste trabalho, que faz com que o dever de
memória possa entrar em cena: a luta para não se esquecer o autoritarismo de uma
história criminosa. No jogo político que se dá entre lembrar e esquecer, há a
tentativa de apagamento de rastros da memória porque:

Tratando-se do esquecimento definitivo, atribuível a um apagamento


dos rastros, ele é vivido como uma ameaça: é contra esse tipo de
esquecimento que fazemos trabalhar a memória, a fim de retardar
seu curso, e até mesmo imobilizá-lo (RICOEUR, 2007, p. 435).
Com isso, o efeito corrosivo de tal esquecimento (político-ideológico) almeja
apagar os vestígios desse passado (memória) indesejado através de um trabalho da
história e da ideologia: se o presente não espelha uma memória do passado que
102

serve aos interesses políticos de um grupo dominante e a sua verdade, essa


lembrança tenderá a ser apagada ou deturpada, causa primeira das relações de
poder na sociedade.

O Relatório da CNV aparece, assim, como contestador desse processo e


mais que isso: com os depoimentos colhidos pela Comissão, as outras vozes,
testemunhas da história, são convocadas para dizer esta memória outra.
Acreditamos que esta é a relevância histórica e social do trabalho da CNV porque
possibilita também preservar essa memória e, sobretudo, fazê-la reverberar mais e
mais na busca de que ela possa, de alguma forma, contribuir para a construção da
consciência histórica daqueles que não viveram a Ditadura.

Esse é um ponto crucial – a nosso ver – porque ao discursivizar aquilo que foi
vivenciado no passado, o testemunho nos aponta as pistas para realizar um trabalho
com a memória e seus respectivos efeitos de sentido, quando submetidos à
materialidade linguística, à medida que instaura um processo que aponta o caminho
daquilo que foi vivido e concebido ao longo da história da Ditadura Militar e que
continua a provocar ecos através de um constante efeito déjà vu. Por isso, o
testemunho é, numa primeira chave de leitura, uma reconfiguração da memória que
ocorre por meio da narrativa para se reivindicar justiça fazendo um apelo à memória
e à verdade. A prática testemunhal, assim, surge como fonte e efeito de evidência
de que a “verdade” passou por uma crise em determinado período da história e a
testemunha é convocada para descrever o que aconteceu, viveu, viu e ouviu para
que se estabeleça, na medida do possível, a verdade sobre os acontecimentos da
história. Diante disso, a testemunha assume um compromisso e, ao mesmo tempo,
uma responsabilidade ética, por assim dizer, com a “verdade” daquilo que aconteceu
e, consequentemente, inscreve a memória social numa luta política. Essa verdade,
conforme veremos, tenderá sempre a uma reconfiguração através do trabalho da
ideologia.

Pensando no batimento entre a memória e o esquecimento, Nietzsche (2009


[1887]) propõe uma reflexão relevante. Para ele, o esquecimento é como uma força
que tem a capacidade de nos libertar de imagens traumáticas guardadas na
memória. Nessa perspectiva, entende o filósofo, o esquecimento se constitui como
uma força ativa, que possibilita sempre algo novo, o devir; e caberia à memória, por
sua vez, o trabalho de preservação dos acontecimentos. Neste caso, o
103

esquecimento, a seu modo, poderia contribuir para que os ódios e os ressentimentos


do passado – num certo limite – sejam amenizados. Assim, essa espécie de
esquecimento desejável estaria presente na vida como algo que constitui a própria
condição humana. Para compreender tal processo, Nietzsche parte da reflexão
acerca da moral, ou seja, uma moral que utilizaria a força da memória para não
permitir que o homem esqueça daquilo que foi vivenciado um dia, para que se
lembre sempre dos princípios que devem nortear sua conduta ética na sociedade.

Este é um ponto problemático porque a memória seria concebida também


como aquela que sempre está ali para apontar uma culpa, isto é, que estaria
presente para nos lembrar que nós não podemos nos desviar de nossa conduta
moral. Por isso, Nietzsche se levanta a favor do esquecimento como um bálsamo
para a memória, como aquilo que aliviaria um sofrimento, e que reestabelece a
ordem psíquica, a saúde – para usar os seus termos. Por outro lado, a memória e o
esquecimento são tratados do ponto de vista político quando o pensador defende
que tanto a memória quanto o esquecimento constituem-se como forças motrizes da
vontade de poder que constitui o ser humano. Diante disso, a partir da Genealogia
da Moral (2009 [1887]), Nietzsche adianta que a relação do esquecimento com a
memória passa a ser mais um espaço da luta do homem pelo poder, no sentido
político desta luta. Daí o autor trazer à baila a questão do grupo social como
condição para a existência do homem na sociedade.

Pois bem, o esquecimento, neste caso, abriria a possibilidade de uma “nova


vida”, uma absolvição histórica e jurídica para a vítima da tortura ou, em outra chave
de leitura, uma outra tortura: quando imaginamos, por exemplo, alguém que busca
pelo esquecimento de uma lembrança, sem jamais conseguir esquecê-la e, com
isso, precisar conviver com a persistência de uma memória que insiste em
assombrar. Outro ponto, por sua vez, também da instância da lembrança, residiria
sobre o testemunho da memória para que a dor não possa mais recobri-la, para que
aquele sofrimento não ocorra novamente. Nessa relação de forças entre a
lembrança e o esquecimento este último poderia vencer? A resposta ainda é não. E
precisamos nos acertar com essa memória.

O esquecimento, dessa maneira, pode ser entendido – por um lado –, como


uma força que ameaça a própria história através das diferentes configurações do
apagamento (apagamento aqui entendido como um processo político-ideológico
104

sobre a memória); e, por outro, como um mecanismo que permite a existência de


qualquer representação simbólica da memória. Assim, memória e esquecimento –
diria Nietzsche – para além de serem vistos apenas como pares opostos e pelo
ângulo do confronto, constituem-se numa relação dialética de interdependência.
Conforme podemos observar, essa relação paradoxal também permeia a reflexão de
Ricoeur à medida que o autor sustenta que “o esquecimento pode estar tão
estreitamente confundido com a memória, que pode ser considerado como uma de
suas condições” (RICOEUR, 2007, p. 435). Nessa perspectiva, o esquecimento
representaria – tanto para Nietzsche quanto para Ricoeur – um furo sobre a
memória que pode transformá-la e, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, constituir a
memória social.

Para Nietzsche – assim também como para Halbwachs – o homem só se


torna um ser social porque está integrado a um grupo. Tal sentimento de integração
só é possível, de acordo com Nietzsche ainda, porque há por trás dele um trabalho
da memória, um desejo de memória ou, para usar os termos do filósofo, a imposição
da memória da vontade sobre o esquecimento. A memória da vontade, por seu
turno, determina e se confunde com as organizações sociais e políticas. Diante
disso, embora compreenda o esquecimento como algo inerentemente necessário
para a memória, Nietzsche reconhece que a memória da vontade é uma condição
também requerida para a preservação da vida do homem no âmbito da instituição
sócio-política.

Nietzsche, ainda, defende a existência de uma espécie de excedente de


memória, ou seja, a ideia de uma memória excessiva que nos direcionaria para duas
questões que se abrem sobre a memória: a do esquecimento e a do ressentimento.
Neste ponto, poderíamos compreender tal afirmação como a sedimentação
opressiva de registros de experiências traumatizantes, como, por exemplo, aquelas
vividas pelas vítimas de tortura por parte do Aparelho Militar à época da Ditadura, os
judeus perante a Shoah etc. Assim, diante do ressentimento, a capacidade do
esquecimento ou a atividade do esquecer ficaria comprometida – foracluída da
memória – através das fissuras traumáticas que obrigaria, por assim dizer, o sujeito
a viver num eterno loop temporal de uma mesma memória. Com efeito, também na
compreensão de Nietzsche (2009 [1887], p. 43), o esquecimento é a possibilidade
105

do presente e a esperança do futuro, ou seja, é o “guardião da porta” que nos


permitiria os acessos à chave da felicidade.

Em nosso trabalho, o esquecimento também assume um sentido político, uma


vez que pode ser manipulado para atender a um interesse ideológico de um
determinado grupo social. E é esta forma de esquecimento que o testemunho ajuda
a combater: um esforço político-ideológico que visa apagar a história, dobrar a
memória e os vestígios deixados pela Ditadura Militar. Por este viés, estamos
considerando e designando, para este trabalho, uma dupla-forma do esquecimento:
em primeiro lugar, um esquecimento constitutivo, aquele que é considerado a
essência, o devir da própria memória, um apagamento necessário para que exista a
possibilidade de inscrição da/na própria memória, para que ela possa sempre-já
dizer-se memória, ou, nos termos de Milner, “[...] se existe o esquecimento, então há
outra coisa além do fantasma da memória: tem havido um real, como acontecimento
singular e contingente, o qual faz signo ao sujeito na forma do esquecimento”
(MILNER, 2017 [1987], p. 84); e, em segundo lugar, um esquecimento político-
ideológico que se institui por meio das relações de poder e disputas pela memória
na sociedade brasileira. Este seria, por assim dizer, um esquecimento “intencional”
que teria por objetivo apagar os vestígios que estão à deriva ou em suspensão de
uma memória que, por seu turno, ameaça a existência de outra ou mesmo que
busca subverter uma memória para torná-la oficial, legítima, através da manipulação
desta por parte dos aparelhos ideológicos institucionais que regem o Estado
brasileiro.

Por isso, o campo epistemológico da Psicanálise é fecundo para o trabalho


com o testemunho e tem sido invocado para investigar a constituição de memórias
do trauma, ou seja, memória marcadas por violências que causam dor e sofrimento,
uma vez que, através do testemunho, trabalha-se com a lembrança como uma ferida
permanente sedimentada na memória individual e social. Nesse sentido, a
experiência do luto é, de acordo com os fundamentos freudianos, imprescindível
porque ele representa a possibilidade simbólica de assimilação do evento
traumatizante. Este é um ponto que levaremos para a abertura da análise do corpus.

Ao testemunhar, o processo de assimilação ocorre por meio da seguinte


relação dialética: em primeiro lugar, pela corporificação dessa memória por meio do
discurso, do poder dizer e simbolizar, em certo limite, essa memória através da
106

linguagem, de presentificá-la, ainda que parcial e lacunarmente; em segundo lugar,


pela abertura da possibilidade de escutar o outro, o “fala que eu te escuto”. Assim,
como a falta atravessa e é constitutiva da língua, o testemunho também é relevante
pela presença desse Real, ou seja, por aquilo que lhe falta e que lhe constitui, o seu
avesso: o inconfessável, o todo que não se pode testemunhar ou, ainda, o
intestemunhável, o inenarrável que joga com a foraclusão. Com efeito, conforme
veremos, há pontos do impossível no testemunho. Nem tudo se pode dizer. É neste
ponto que nos ancoramos teoricamente em Milner quando compreende que:

“Não se diz tudo” pode ser entendido em diversos sentidos.


Primeiramente, trata-se da proposição que dá forma ao real [...] Mas
que não se diga tudo é também aquilo que designa um outro real [...]
as palavras estão sempre em falta com alguma coisa – ou, ainda: há
impossível de dizer [...] o que é lugar de impossível é lugar de uma
proibição (MILNER, 2012 [1978], p. 69, grifos do autor).
Nessa perspectiva, mesmo sob o signo de uma ausência, pensar na falha do
ritual do testemunho, principalmente quando se narram memórias do trauma, implica
pensar na existência simbólica desse algo a mais que falta e que nos conduz a
compreender que “aquilo que ainda poderia sobrar, permanecer desse terrível
acontecimento, algo como [...] uma lacuna essencial que funda a língua do
testemunho em oposição às classificações exaustivas do arquivo” (GAGNEBIN,
2006, p. 52). O testemunho, visto por este prisma, inscreve-se num processo de
subjetivação ou, dito de outra forma, representa a possibilidade de o sujeito que
enuncia subjetivar-se através das relações que se estabelecem com o outro, com
quem o escuta, e com aqueles que participaram do mesmo evento traumático. Tal
subjetivação só é possível por meio da abertura de um espaço que possibilita, de
certo modo, a discursivização da memória.

O trabalho com o testemunho, assim, envolve um mecanismo bastante


complexo que precisa levar em consideração, além de uma relação dialética, as
condições de produção que determinam os efeitos de sentido sobre uma dada
memória. Afetada por uma falha, por um equívoco constitutivo, ou melhor, por um
esquecimento constitutivo, a memória esbarra no seu anverso: o impossível do tudo
poder lembrar que fura o discurso marcada pela violência. Sobre este ponto,
Gagnebin argumenta que:

Essa narrativa foi feita, está sendo feita, mas, como o ressaltam
todos os sobreviventes [...] ela nunca consegue realmente dizer a
107

experiência inenarrável do horror [...] Nesse sentido, uma ampliação


do conceito de testemunha se torna necessária; a testemunha não
seria somente aquele que viu com os próprios olhos [...]
Testemunha também seria aquele que não vai embora, que
consegue ouvir a narração insuportável do outro e que aceita que
suas palavras revezem a história do outro: não por culpabilidade ou
por compaixão, mas porque somente a transmissão simbólica,
assumida apesar e por causa do sofrimento indizível, somente essa
retomada reflexiva do passado pode nos ajudar a não repeti-lo
infinitamente, mas a ousar esboçar uma outra história, a inventar o
presente (GAGNEBIN, 2004, p. 90-91, grifos nossos).
Com efeito, a relação de alteridade é essencial na reconfiguração e
preservação de uma memória através do testemunho. Com o advento da CNV,
surge também a presença desse outro, “que não foi embora”, que é capaz de ouvir
uma narrativa que se constrói na esteira de um passado de interdição, de violência e
sofrimento. E mais que isso, convoca-se também a sociedade para ser ouvinte
dessa história insuportável, a fim de que possa se produzir uma outra memória e,
consequentemente, uma outra história por meio do testemunho. É para esta direção
que o testemunho aponta neste trabalho.

Assim, o jogo de vai e vem da memória e do esquecimento, na esteira da


história, poderia ser representado esquematicamente a partir da ilustração a seguir:

Figura 6 – Esquema relação memória-esquecimento

MEMÓRIA

ESQUECIMENTO

MEMÓRIA

Fonte: Elaboração do autor do trabalho.

Com essa ilustração, podemos entender que a relação Memória X


Esquecimento ocorre por meio de uma dupla resistência: por um lado, a memória,
que luta contra o esquecimento; por outro lado, o esquecimento, que luta contra a
possibilidade de ser de uma memória plena. Com efeito, memória e esquecimento
108

precisam ser considerados, conforme ilustrado acima, através da relação constitutiva


que os entrelaça: um continuum. A quem restaria, portanto, resolver o problema
dessa tensão? Poderíamos dizer, talvez, à história? Mas a história não é “confiável”.
E a balança da justiça da história sempre tenderá a ir mais para um lado do que para
o outro dependendo das condições de produção que lhes são impostas e o tão
sonhado ponto de equilíbrio da balança acaba por se estilhaçar na contradição que é
inerente à própria história.

Na tensa relação existente entre a memória e o esquecimento consideramos


– a partir da perspectiva teórica que nós abraçamos – que há um trabalho da
ideologia que recobre tal processo e se materializa por meio do discurso. Nessa via,
Courtine (1999), através de uma análise da anedota apresentada por Milan Kundera
no romance o Livro do Riso e do Esquecimento (1987), defendeu que o trabalho de
apagamento de uma memória é bastante complexo. Vejamos a anedota:

Em fevereiro de 1948, o dirigente comunista Klement Gottwald


postou-se na sacada de um palácio barroco de Praga para discursar
longamente para centenas de milhares de cidadãos concentrados na
praça da Cidade Velha. Foi um grande marco na história da Boêmia.
Um momento fatídico que ocorre uma ou duas vezes por milênio.
Gottwald estava cercado por seus camaradas, e a seu lado, bem
perto, encontrava-se Clementis. Nevava, fazia frio e Gottwald estava
com a cabeça descoberta. Clementis, cheio de solicitude, tirou seu
gorro de pele e colocou-o na cabeça de Gottwald. O departamento
de propaganda reproduziu centenas de milhares de exemplares da
fotografia da sacada de onde Gottwald, com o gorro de pele e
cercado por seus camaradas, falou ao povo. Foi nessa sacada que
começou a história da Boêmia comunista. Todas as crianças
conheciam essa fotografia por a terem visto em cartazes, em
manuais ou nos museus. Quatro anos mais tarde, Clementis foi
acusado de traição e enforcado. O departamento de propaganda
imediatamente fez com que ele desaparecesse da História e, claro,
de todas as fotografias. Desde então Gottwald está sozinho na
sacada. No lugar em que estava Clementis não há mais nada a não
ser a parede vazia do palácio. De Clementis, só restou o gorro de
pele na cabeça de Gottwald (KUNDERA, 1987, p. 1).

Diante disso, mesmo que uma memória tente ser anulada, sabemos que o
Chapéu de Clémentis permaneceu sempre lá e esse é um ponto interessante,
apresentado por Courtine, para pensar sobre a dimensão da memória e do
esquecimento. O gesto simbólico de Clémentis – conforme nos apresenta o autor –
para com Gottwald, naquele fevereiro de 1948, em Praga, ficaria para sempre na
constituição de uma memória. Por mais que se tenha tentado apagar – através de
109

um esquecimento político-ideológico – a lembrança de Clémentis da história, ela


continuou lá através da imagem do chapéu sobre a cabeça de Gottwald.

Para nós, esse acontecimento aciona aspectos que ecoam fortemente nas
reflexões sobre o discurso e a memória: através da relação entre a lembrança e o
esquecimento, o apagamento e a recuperação, a reapropriação e a ressignificação
do que foi apagado, a constituição histórica da memória e a sua, por assim dizer,
administração institucional por aqueles que se dizem “guardiões da memória”. Nesse
sentido, a mídia pode ter apagado a imagem de Clémentis das fotografias, mas a
memória-imagem perpetuaria a atitude dele nas páginas da história para sempre. No
exame da memória, através dos acontecimentos históricos, assim como o processo
de apagamento ou a busca pelo desaparecimento de Clémentis das páginas da
história, há algo que sempre deixa uma lacuna, um espaço vazio que, mesmo assim,
insiste em preservar o que aconteceu ali, resistindo ao esquecimento.

Sobre este ponto, também é pertinente a reflexão proposta por Robin (2016),
principalmente no que concerne à cor do esquecimento abordada pela autora ou os
contornos e as formas que o esquecimento pode assumir em sua relação com a
história e a memória, além da questão do testemunho, da testemunha e do arquivo.
Segundo a autora, “o verdadeiro esquecimento talvez não seja o vazio, mas o fato
de imediatamente colocar uma coisa no lugar de outra, em um lugar já habitado, de
um antigo monumento, de um antigo texto, de um antigo nome” (ROBIN, 2016, p.
93). É esse o trabalho do esquecimento que se propõe coletivo sobre a memória de
Clémentis. Uma ação política que pretendeu apagar completamente a memória
daquele gesto que marcou a história de um acontecimento singular.

Nesse sentido, ao trabalhar a relevância do passado para explicar muito do


que acontece no tempo presente, a pesquisadora é categórica ao defender que:

O passado não é livre. Nenhuma sociedade o deixa à mercê da


própria sorte. Ele é regido, gerido, preservado, explicado, contado,
comemorado ou odiado. Quer seja celebrado ou ocultado,
permanece uma questão fundamental do presente. Por esse
passado, normalmente distante, mais ou menos imaginário, estamos
prontos para lutar [...] (ROBIN, 2016, p. 31).
Diante disso, o testemunho se transforma numa marca viva de um
acontecimento à medida que se torna um fenômeno relevante na reconstituição dos
passos da história para compreender a presença de um passado que “não é livre”
110

dos efeitos de manipulação da memória, além de nos possibilitar ouvir as diferentes


vozes que se inscrevem – no corpus deste trabalho –, numa dupla memória: a da
tortura e a do silenciamento através do apagamento e do desaparecimento forçado.
Assim, o apagamento de rastros revela a estrutura e o funcionamento ideológico de
um discurso autoritário, sobretudo porque representa também um apagamento
simbólico do acontecimento, inclusive através da não-nomeação ou do anonimato.
Assim procedendo, o esquecimento ou a ação de esquecer algo não significa um
estado de indiferença, mas isso já se constitui em si como uma política de memória
para a manutenção ou tomada do poder na sociedade.

Em suma, as lições da Psicanálise nos mostram que tudo aquilo que é


recalcado ou, por assim dizer, que se visa excluir do efeito simbólico sempre retorna
pelas mãos do Real. Assim, o apagamento nunca é pleno e o ausente que sempre
se faz presente pode retornar por meio do efeito de repetibilidade. Por outro viés, o
efeito mais devastador do apagamento talvez seja o de naturalizar uma violência,
tornando-a comum, aproximando-a de um fato corriqueiro, banal. Por isso,
concordamos também com Kehl quando defende que “não há reação mais nefasta
diante de um trauma social do que a política do silêncio e do esquecimento, que
empurra para fora dos limites da simbolização as piores passagens da história de
uma sociedade” (KEHL, 2010, p. 133).

É a partir de tal compreensão, e é sempre bom lembrar, que Seligmann-Silva


tem defendido que:

[...] é justamente esse discurso decantado dos estudos sobre a


memória que é o mais apto a perceber os pontos de encontro (e as
diferenças) do (discurso sobre o) testemunho [...] Ele permite pensar
o teor testemunhal como uma tal escritura fragmentada, ruinosa, que
porta tanto a recordação quanto o esquecimento (SELIGMANN-
SILVA, 2003, p. 37).

Essa reflexão nos direciona, uma vez mais, para o testemunho que é – em
certo limite –, libertador. Ele é capaz de fazer o sujeito reviver, de certa maneira, a
violência que condicionou o trauma, mas agora segue um caminho diverso daquele
palmilhado na experiência da tortura. Por isso, o estado de silêncio, ou de silenciar-
se, não implica esquecimento, mas constitui uma rede de significações através de
pontos do silêncio na narração: as pausas, as hesitações, as reticências, a recusa, a
confirmação etc. Sendo assim, o silêncio se inscreve no âmbito do próprio discurso,
111

não apenas na estrutura, mas em toda a sua configuração, inclusive naquilo que
escapa à própria estrutura por meio do trabalho simbólico, da falta, do Real.

Antes de fechar este capítulo, gostaríamos de pontuar justamente a questão


do silêncio a partir de uma visada discursiva. Nessa perspectiva, a presença do
silêncio pode ser analisada por diferentes ângulos, principalmente quando o discurso
opera na (re)constituição de uma memória de um passado de violência. Neste caso,
os testemunhos significam além do que é possível se manifestar por meio de
palavras ou imagens, e é imperativa a tarefa de interpretação dos silêncios. Assim,
mesmo quando não se verbaliza, produz-se um efeito de sentido sobre o
testemunho através do silêncio, da pausa, do gesto. Por outro lado, testemunhar –
portanto romper com o silêncio –, para alguém que foi exposto à extrema violência,
pode representar a possibilidade de existência, ou melhor, de sobrevivência e luta
pela verdade e pela justiça. O testemunho, assim, instaura a possibilidade de se
narrar o que não foi possível ser narrado no passado em virtude da interdição.
Desse modo,

Falando de história e de política, não há como não considerar o fato


de que a memória é feita de esquecimentos, de silêncios. De
sentidos não ditos, de sentidos a não dizer, de silêncios e de
silenciamentos. Os sentidos se constroem com limites. Mas há
também limites construídos com sentidos. E quando penso maio de
68, o que vem à frente da cena – política e histórica – é o
silenciamento, são os sentidos que impõem limites. A tortura, a
censura, a agressão da ditadura à sociedade, à cidadania
(ORLANDI, 2015 [1998], p. 53).
O sentido do silêncio escapa à representação da palavra e mesmo da
memória, mas ainda assim é constitutivo do discurso, é matéria significante que se
inscreve na falta, nas sobras, nos rastros ou nos fragmentos da memória, no resto
mesmo. Dito isso, estamos considerando, a partir de Orlandi (1992), dois processos
pontuais para o funcionamento do silêncio: primeiramente, uma dimensão fundadora
(o silêncio fundador), isto é, própria de todo objeto simbólico que produz significação
por meio do não-dito (para dizer é preciso não dizer); em segundo lugar, por sua
vez, uma política de silenciamento (o silêncio local) da memória através de práticas
sociais regradas por aparelhos ideológicos que instituem as relações de poder na
sociedade. Voltaremos a este ponto a seguir.

Ao considerarmos este processo, portanto, estamos defendendo que há um


Real sempre em jogo aqui e que é impossível de ser representado ou simbolizado,
112

mas que está em constante dispersão e ecoa fora da língua da imanência, por
exemplo, e que se materializa no testemunho que analisamos neste trabalho. No
estudo proposto por Orlandi (1992) encontramos diferentes teses sobre a natureza e
as formas do silêncio: o silêncio não fala. O silêncio não pode ser ouvido. O silêncio
não se confunde com o implícito nem com as marcas da pressuposição. O silêncio
simplesmente é. O universo do implícito pode ser recuperado linguisticamente por
sua inteligibilidade, mas o silêncio, ao contrário, trabalha na instância da ausência,
da exclusão, do apagamento. Sobre este ponto, a autora esclarece que:

O conceito de silêncio, em nossa perspectiva, recobre uma região


teoricamente diferente da do implícito. O implícito é o não-dito que se
define em relação ao dizer. O silêncio, ao contrário, não é o não-dito
que sustenta o dizer mas é aquilo que é apagado, colocado de lado,
excluído (ORLANDI, 1992, p. 106).
Nessa perspectiva, trabalhar com o silêncio como algo que constitui o
discurso, sob o viés da AD, implica colocarmo-nos – conforme Orlandi – no hiato
entre o dizível e o indizível, isto é, diante de um espaço onde as palavras faltam por
determinações políticas e ideológicas. Entre o não-dito e o dito, por seu turno, existe
o espaço entre a palavra e aquilo que não foi discursivizado, mas que aparece na
forma do sempre-já-aí, significando de maneira fundadora numa espécie de
continuum. O silêncio representa, assim, uma categoria diferente da do implícito no
movimento dos sentidos: enquanto o implícito está preso ao universo da língua, o
silêncio, por seu turno, organiza o discurso provocando o deslizamento de sentidos,
marcando os pontos de deriva. Assim, diante de uma visão discursiva do silêncio,
somos interpelados a considerar que:

[...] o silêncio significa, ele não fala. A matéria significativa do silêncio


é diferente daquela da linguagem verbal, e remeter o silêncio à
linguagem verbal é modificar sua matéria significante, o que não é
indiferente ao processo significativo (ORLANDI, 1998, p. 39, grifos da
autora).
Diante disso, em nossa perspectiva, não reduzimos o silêncio ao implícito,
mas como uma categoria que é constitutiva e apresenta uma significação singular,
ou seja, o silêncio é independente em relação ao dizível para significar e ser
compreendido através de um gesto de interpretação. Entretanto, não podemos
deixar também de observar que o silêncio se instaura a partir da tomada da palavra
pelo sujeito, daquilo que pode ser enunciável em dadas condições de produção.
Assim, o sentido se constitui através da linguagem e também do silêncio, bem como
113

através do funcionamento político do silêncio: o silenciamento, a censura. Por isso,


compreendemos que, em todo funcionamento discursivo, existe a presença de
discursos outros silenciados e que, ao mesmo tempo, constituem um dado discurso.
Logo, não há sentido sem silêncio e, da mesma maneira, sem o silenciamento: para
dizer é preciso não-dizer ou dizer de outro modo por causa da força da coerção ou
da interdição, causa primeira da Ditadura Militar.

Para a AD, o sentido e o silêncio não são transparentes e podem ser


analisados pelo viés do discurso, da história e da memória. Por isso, evitamos uma
visão empirista do silêncio que nos deixa tentados a reduzi-lo à ausência de
palavras. Partindo dessa posição teórica, estabelecemos, então, uma dupla-forma
política do silêncio: o silêncio constitutivo e o silêncio local:

A primeira nos indica que todo processo de significação traz uma


relação necessária ao silêncio; a segunda diz que - como o sentido é
sempre produzido de um lugar, a partir de uma posição do sujeito –
ao dizer, ele estará, necessariamente, não dizendo “outros sentidos”.
Isso produz um recorte necessário no sentido. Dizer e silenciar
andam juntos. Há, pois uma declinação política da significação no
silenciamento como forma não de calar, mas de fazer dizer “uma”
coisa, para não deixar dizer “outras”. Ou seja, o silêncio recorta o
dizer. Esta é uma dimensão política (ORLANDI, 1992, p. 54, grifos da
autora).
Por outro lado, o silêncio fundador torna-se por primazia o princípio de toda
significação que atravessa também a política do silenciamento, ou seja, dizer
implica, necessariamente, não dizer, e vice-versa. Isso significa também que há um
entrelaçamento entre o silêncio constitutivo e o silêncio local na produção de sentido
do/no discurso. Diante disso, torna-se imperativo defender que a memória que é
envolvida por um silenciamento – tal como analisou Orlandi a partir dos
acontecimentos históricos de Maio/68 – ocorre através de um funcionamento
político-ideológico do silêncio. A censura marca, conforme a autora, um silêncio
local, ou seja, que entendemos poder ser localizável nos acontecimentos da/através
história. Assim,

A censura tal como a definimos é a interdição da inscrição do sujeito


em formações discursivas determinadas, isto é, proíbem-se certos
sentidos porque se impede o sujeito de ocupar certos lugares, certas
posições. Se se considera que o dizível define-se pelo conjunto de
formações discursivas em suas relações, a censura intervém a cada
vez que se impede o sujeito de circular em certas regiões
determinadas pelas suas diferentes posições. Como a identidade é
114

um movimento, afeta-se assim esse movimento. Desse modo,


impede-se que o sujeito, na relação com o dizível, se identifique com
certas regiões do dizer [...] (ORLANDI, 1992, p. 107).

A censura, desse modo, funciona em todo discurso porque existe um silêncio


que opera através da imposição de Formações Discursivas, que, por conseguinte,
exclui o sujeito e sua voz, obrigando-o a ficar no espaço do “nonsense”.
Compreendemos, seguindo bem de perto Orlandi, que este é um silêncio perante o
qual nos assujeitamos sem possibilidade de escolha alguma. Dito de outra maneira,
a censura funciona – em nossa perspectiva – como sintoma de silenciamento-
apagamento da memória e dos sentidos indesejáveis e, por esta razão, não podem
circular livremente na sociedade.

Assim, a busca pelo silenciamento da memória representou um processo


constante na prática dos militares, de modo que se impôs uma ideologia dominante
que amordaçava a forma-sujeito histórica de esquerda. Entretanto, tal memória
reverbera, ainda hoje, provocando novos deslocamentos nos sentidos e produzindo
novas subjetividades sobre a Ditadura Militar através dos silêncios que envolveram
aquela memória – proibida, subterrânea, clandestina, “subversiva” –, mas que
constituem discursos outros a partir das lembranças que constituem o testemunho.

E, ainda hoje, frente às formas de silenciamento, à repressão e à censura nos


resta a resistência. Durante a Ditadura Militar, aquilo que foi silenciado e,
consequentemente, não significado, desloca-se, para ressignificar-se, de certo
modo, através do testemunho. Na sessão de tortura, por exemplo, existiam formas
de violência – através do silêncio – que forçavam o sujeito a falar e, ao mesmo
tempo, silenciavam o sujeito, não deixando outra possibilidade a não ser
permanecer em silêncio, sem ousar falar de certa posição, de certos sentidos, não
pelo fato de serem silenciáveis, mas por determinações ideológicas.

Diante disso, e pensando novamente no testemunho enquanto corpus deste


trabalho –, o sentido se instaura no silenciamento de maneira fundadora dada à
necessidade de dizer (significar) aquilo que não foi possível (permitido) dizer na
conjuntura da tortura, da violência. Portanto, tal forma de silêncio mantém uma
relação direta com as condições de produção políticas e históricas à medida que tal
conjuntura institucionaliza a permissão do (não) dizer. É a arena que se institui pela
tomada da palavra no campo do discurso e, desse modo, no vai-e-vem do dizer-
115

silenciar e silenciar-dizer o discurso traz consigo as marcas de sentidos que foram


silenciados. No campo da AD, portanto, o analista do discurso precisa compreender
o funcionamento do silêncio a partir de métodos de observação do fio discursivo
através de marcas, de pistas, de rastros. Na sessão de testemunho, entra em cena o
silêncio como forma de resistência à censura e à repressão. Nessa direção, a
testemunha pode silenciar o que não quer dizer através do preenchimento deste
espaço com outro dizer no/pelo silêncio.

O silêncio é – em nossa visão – uma presença significante, que pode servir à


opressão e à violência contra os sujeitos no âmbito da sociedade. É este o olhar
que, inicialmente, desejamos ter despertado no leitor deste trabalho com esta
incursão.

3.6 SOBRE O DEVER DE MEMÓRIA

Gostaríamos de refletir ainda sobre o jogo que se instaura sobre a questão do


dever de memória como uma função política, uma vez que esse é um ponto nodal
no desenvolvimento de nossas análises. Diante disso, o dever de memória é, por
definição (RICOEUR, 2007), uma instância política e jurídica contra os efeitos
devastadores do esquecimento (político-ideológico tal como estamos considerando o
esquecimento neste trabalho) na sociedade e, no caso da Ditadura Militar no Brasil,
apresenta-se como uma forma de reparação, por parte do Estado, da violência que
acometeu a sociedade naquele regime de exceção. O direito à memória e o dever
de memória são processos que se complementam ao darmos voz – neste caso em
certo limite através do testemunho – àqueles que foram vítimas de tortura por
agentes chancelados pelo Estado brasileiro. O dever de memória, logo de lembrar,
inscreve-se numa espécie de busca alucinante pelo passado. Nesta busca, o
esquecimento permanece como o inimigo que está sempre à espreita e que precisa
a todo custo ser destruído porque ameaça constantemente a memória que, por sua
vez, “luta contra o esquecimento” (RICOEUR, 2007, p. 424).

O dever de memória, assim, instaura-se para impedir a ação – em certo limite


–, dos efeitos do esquecimento sobre uma memória e torna-se, com isso, uma
obrigação moral com aqueles que são/foram mergulhados nas águas do
esquecimento. Sobre este ponto, Gagnebin fornece uma reflexão relevante:
116

Aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo,
aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado
que mesmo a memória de sua existência não subsiste – aqueles que
desapareceram por tão completo que ninguém lembra de seu nome
[...] o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição,
oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal
consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao
passado e aos mortos, mesmo – principalmente – quando não
conhecemos nem seu nome nem seu sentido. (GAGNEBIN, 2004, p.
88-89).
Nessa perspectiva, somente a tarefa política [e ética] sobre a memória
poderia retirar, na medida do possível, do anonimato e do esquecimento as pessoas
que foram cruelmente assassinadas durante a Ditadura Militar. Ao lado do trabalho
do testemunho, que promove a passagem da repetição dos acontecimentos à sua
rememoração, o dever de memória se impõe – conforme veremos nas análises do
corpus – como um compromisso ético-moral imperativo na busca por justiça. Assim,
para Ricoeur (2007), é a justiça que se busca quando se investiga uma memória em
relação ao que aconteceu no passado, isto é, busca-se destituir a memória que foi
historicamente e ideologicamente manipulada e, para isso, convoca-se o dever de
memória. Diante disso, o autor reforça que “o dever de memória é o dever de fazer
justiça, pela lembrança, a um outro que não o si” (RICOEUR, 2007, p. 101).
Portanto, é o dever que nos impõe uma dívida perante as vítimas que sofreram
violações dos Direitos Humanos durante aquele acontecimento histórico e que, por
sua vez, revira a memória social no batimento por justiça.

Por conseguinte, buscar lançar no esquecimento uma memória, conforme


propõe, em certo sentido, a Lei de Anistia 29 (1979) – porque se pode entender, em
parte, que a Anistia foi concebida para “criminoso”30 e ainda hoje projete aqueles

29
Etimologicamente do grego: amnestía = “esquecimento”.
30
Esse foi o argumento usado pelo capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, “o Sérgio Macaco”,
em entrevista concedida à revista Veja (26/06/1985). Sérgio ficou conhecido como o “homem que
disse não à Ditadura Militar”. Na ocasião ele afirmou que: “Anistia é para quem cometeu crimes, e eu
não cometi crime algum”. Sérgio se negou a cumprir, em 12 de junho de 1968, a ordem de seu
comandante, o brigadeiro João Paulo Burnier, para explodir o Gasômetro no Rio de Janeiro, que, por
sua vez, seria atribuído aos “comunistas”. O atentado era o “plano para livrar o Brasil da “ameaça
comunista” e desqualificar de uma vez por todas a oposição que, para setores militares, tentava
mergulhar o país no caos e na desordem. Para que tudo funcionasse, a atuação do oficial e de sua
esquadra era fundamental. Os planos do chefe, porém, foram frustrados pelo capitão, que se recusou
a colocá-los em prática, proibindo o emprego de seus homens no ato que, se concretizado, seria a
maior tragédia da história brasileira. Ele também informou o caso a outras autoridades. Burnier,
porém, sempre negou as denúncias”. Sérgio foi cassado pelo AI-5. Disponível em:
https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/capitao-sergio-macaco-se-nega-explodir-gasometro-no-
rio-evita-caca-oposicao-21984331 e também aqui:
http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04928.pdf.
117

envolvidos com a prática de tortura e execução no âmbito da Ditadura Militar–,


constitui-se uma medida arbitrária através de um instrumento político-jurídico que
teria por objetivo pacificar a sociedade a partir da suspensão das ações judiciais e,
consequentemente, da não condenação dos agentes do Estado que estiveram
envolvidos com a violação dos Direitos Humanos. Assim, quando se apaga uma
memória, apaga-se, igualmente, os “crimes suscetíveis de proteger o futuro das
faltas do passado” (RICOUER, 2007, p. 462).

Perante a reflexão proposta por Ricoeur, entendemos que o dever de


memória mantém uma forte relação, conforme textualizado anteriormente, com
aquilo que propõe a própria CNV (BRASIL, 2014): estabelecer a verdade histórica
sobre o Regime Militar, promover o direito à verdade, garantir o direito à memória,
sensibilizar o Estado a fim de que possa reformar, com urgência, o seu corpo
institucional, conscientizar o Estado e a sociedade da relevância da instituição de
políticas de reparação material e simbólica – na medida do possível –, para atender
às vítimas da Ditadura Militar, promover a cultura da paz e da democracia visando à
não-repetição das atrocidades do passado, além de proporcionar – ainda que
parcialmente –, a reconciliação com o passado. O dever de memória perpassa,
portanto, a sustentação da seguinte configuração:

Figura 7 – Esquema do “dever de memória”

DIREITO À
JUSTIÇA

DIREITO À DEVER DE DIREITO À


VERDADE REPARAÇÃO
MEMÓRIA

DIREITO À
MEMÓRIA

Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Dado o exposto, refletir acerca do direito à justiça, como um instrumento


internacionalmente consagrado, implica pensar nas ações que possam também
assegurar o direito à punição dos perpetradores de crimes contra os Direitos
118

Humanos durante a Ditadura Militar. Assim, conduzir os perpetradores ao tribunal se


torna o primeiro passo para o estabelecimento do dever de memória e, ao mesmo
tempo, o ponto mais problemático – principalmente por razões políticas que
interferem na organização e no funcionamento do Aparelho Ideológico de Estado
Jurídico –, para viabilizar o acerto de contas com um passado marcado pela
violência e a prática de crimes contra a humanidade pelo Estado brasileiro.

O direito à reparação, por seu turno, caracteriza-se pela reparação das


vítimas pelos danos provocados pelo Estado. As reparações podem ser de
diferentes instâncias e constituem – nos termos do Direito –, uma obrigação pela
práxis de qualquer ato criminoso. Assim sendo, o desejo de reparação apontaria
para a eliminação – naquilo que for possível –, das causas e consequências que
resultaram naquelas práticas criminosas. As reparações representam, assim, ações
fundamentais no sentido de promover a justiça, visto que dizem respeito à restituição
– em certo limite –, dos Direitos Humanos violados por parte do Estado de exceção
a que a sociedade brasileira esteve submetida.

As reparações podem ser aplicadas individualmente e/ou coletivamente e se


instauram, dependendo da natureza da reparação e da gravidade da violação, das
seguintes formas: materiais, pessoais, psicológicas e simbólicas. Tais processos
estão relacionados, no âmbito do Direito, à garantia da não-repetição da violação
dos Direitos Humanos e garantias fundamentais (BRASIL, 2014), além de estarem
associados, de acordo com a CNV, às dimensões apresentadas a seguir:

Figura 8 – Esquema de “Reparação” de vítimas da Ditadura

RESTITUIÇÃO SATISFAÇÃO

JUSTIÇA DE REPARAÇÃO

REABILITAÇÃO NÃO-REPETIÇÃO

Fonte: Elaboração do autor a partir das recomendações CNV (BRASIL, 2014, p. 26).
Adaptado.
Todos esses processos constituem os pilares para a efetivação da justiça e
podem se coadunar na busca pela efetivação da reparação das vítimas. Embora
119

cada processo apresente uma caracterização singular, eles devem, na prática,


funcionar conjuntamente, ou melhor, associativamente. De modo geral, a CNV
(BRASIL, 2014, p. 26) explica que a restituição diz respeito às medidas que tenham
como princípio o restabelecimento pessoal e material das vítimas. Isso significa que
o sujeito precisa ser conduzido, de acordo com a CNV, ao estado ou condição
anterior que ocupava quando das violências praticadas pelo Estado contra ele.
Conforme se pode observar, esse é o ponto mais nevrálgico (e impossível) da
Justiça de Reparação.

Assim, as medidas propostas podem contemplar desde a restauração dos


Direitos Humanos, como, por exemplo, a seguridade da liberdade de expressão, da
igualdade, além da restituição dos direitos políticos cassados indevidamente e a
devolução de bens confiscados por parte dos agentes estatais durante a Ditadura
Militar. No âmbito da compensação, a preocupação maior seria, além de questões
estritamente materiais, com aquelas que visem à compensação e à retratação moral
pública das vítimas. A reabilitação, por sua vez, concerne às medidas que
possibilitem o atendimento médico-psicológico das vítimas que ainda permanecem
vivas.

A satisfação e a garantia da não-repetição também fazem parte do rol de


recomendações da CNV e se caracterizam, entre outros aspectos, pelo fim das
violações dos Direitos Humanos, a realização de diligências para apurar o que
aconteceu, julgamento e cumprimento de sentenças judiciais que restabeleçam a
dignidade humana e a reputação moral das vítimas, reforma das instituições do
Estado, a busca e identificação dos restos mortais de desaparecidos, revelação
pública da verdade e a aplicação de sanções penais e administrativas cabíveis
contra os agentes dos crimes contra a humanidade naquele período de exceção
(BRASIL, 2014, p. 30).

É importante ressaltar que tais medidas formam o núcleo de ações em prol da


verdade, da memória e da justiça tanto para as vítimas quanto para a sociedade. As
reparações simbólicas consistem, além dos pedidos de desculpas oficiais, na
tomada de consciência da culpa por parte do Estado brasileiro, na mudança de
nome dos espaços públicos, que, inclusive, já vem ocorrendo em alguns lugares do
país conforme atesta Indursky (2015), na criação de datas comemorativas, na
120

construção de museus e monumentos dedicados à memória das vítimas da Ditadura


Militar.

O dever de memória tem ainda uma ligação com o direito à verdade. Sendo
assim, ao denunciar as graves violações dos Direitos Humanos praticadas pelo
Estado brasileiro no passado, a CNV permite que a sociedade brasileira possa lutar
por um futuro mais justo, humano e igualitário. O direito à verdade, portanto, ergue-
se como um direito inalienável que assiste às vítimas de qualquer forma de violência
praticada no período da Ditadura Militar, extensivo a seus familiares e a toda
sociedade civil.

Portanto, promover a verdade histórica sobre a Ditadura Militar implica um


reconhecimento oficial (que ainda não houve), por parte do Estado brasileiro, de um
passado de repressão e violência que ainda hoje é negado, além de estabelecer a
integração das vítimas nas páginas da história oficial e da memória social como
aqueles que lutaram pelo estabelecimento de um Estado Democrático de Direito.
Diante disso, compreendemos que o direito à memória ainda tem sido negligenciado
quando o assunto é a Ditadura Militar à medida que se nega ao povo, por questões
de ordem política e ideológica, o direito a ter acesso à sua própria história. Assim, a
recuperação da memória do Regime Militar pela CNV e, ao mesmo tempo, o
rompimento do véu que foi lançado sobre aquela memória implica a defesa de uma
política da não-repetição daqueles fatos ou – nos termos de Indursky (2015, p. 11) –,
uma política de resgate da memória que se contraponha a uma política de
esquecimento da memória, ou seja, uma política que se institui a partir da lembrança
da crueldade sobre a qual se ergueu o corpo social brasileiro do presente.

Assim sendo, podemos definir, discursivamente, a política de memória por


meio de dois modos de funcionamento distintos: o primeiro, voltada para a
preservação da justiça e da verdade; o segundo, por sua vez, diz respeito a um
processo de interpretação e apropriação da história através do passado, na busca
pela construção de um futuro sob a égide da memória social que, por sua vez,
representa a pedra fundamental na instituição de diferentes identidades sociais,
incluída aí a política, que luta pela constituição e/ou preservação das relações de
poder na sociedade.
121

Nessa direção, a memória social é convocada para trazer à luz a violência


vivenciada e, a partir da rememoração, ser ligada ao fio condutor da história na
busca pela compreensão do período de exceção que subjugou (subjuga?) o país por
tanto tempo. O dever de memória não tem, em última instância, o objetivo frio de
possibilitar que o povo reviva, através do outro, os momentos de tortura e horror
perpetrados pelos militares; muito pelo contrário, o dever de memória se funde com
o dever do Estado brasileiro de obliterar as tentativas de repetição do ocorrido no
presente. É justamente sobre a necessidade de um dever de memória e, ao mesmo
tempo, um direito ao esquecimento que trazemos a análise a seguir. Tal
empreendimento perpassa uma relação conflituosa entre o desejo de esquecer e a
instauração de um discurso/posição-sujeito que se inscreve numa FD imbuída de um
compromisso ético-político [instanciação ética do testemunho] contra o
esquecimento da memória da Ditadura militar, uma vez que defendemos que “o
esquecimento funciona como um apagamento da memória” (INDURSKY, 2013
[1997], p. 64) – causa daquilo que estamos considerando aqui como sendo uma
espécie de esquecimento político-ideológico sobre uma memória.
122

4 O TESTEMUNHO E A VOZ (IM)POSSÍVEL

O que você disser, não diga duas vezes.


Encontrando seu pensamento em outra pessoa: negue-
o.
[...] Quem não estava presente, quem nada falou
Como poderão apanhá-lo?
Apague os rastros!
Cuide, quando pensar em morrer
Para que não haja sepultura revelando onde jaz
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
E o ano de sua morte a lhe entregar
Mais uma vez:
Apague os rastros! Bertolt Brecht

A epígrafe, logo acima, desperta uma reflexão pertinente em torno da


memória e do testemunho. Trata-se de pensar sobre a memória e o apagamento
dos vestígios de sua presença: as testemunhas e o grupo social a que pertencem.
Defendemos, neste trabalho, que esta é uma relação que se instaura por meio de
um trabalho político-ideológico sobre a memória e que se materializa, de certo
modo, no testemunho.

Pois bem, este é o momento da tese que propomos pensar sobre o


testemunho e aquilo que estamos considerando aqui como sendo as suas formas de
subjetivação. Para iniciar tal reflexão, a proposta é apresentar a origem do termo
testemunho e seu modo de (res)significação através da história. Diante disso,
podemos observar que o Século XX possibilitou o desenvolvimento de uma vasta
literatura sobre o testemunho e o trauma. Nesse contexto, o testemunho foi
fortemente invocado para ressignificar a memória que se instituiu através das cinzas
das duas Grandes Guerras Mundiais e suas implicações históricas, sociais e
políticas: a catástrofe, a violência, a Shoah, a banalidade do mal (ARENDT, 1999), a
descrença na própria humanidade, a crise de valores, como a verdade e a justiça.

A preocupação que se lança sobre o testemunho, enquanto objeto de análise,


tem fomentado o desenvolvimento teórico-metodológico de pesquisas no âmbito de
diversas áreas das Ciências Humanas e Sociais, como, por exemplo, a História, a
Sociologia, a Filosofia, o Direito, a Literatura, a Psicologia, a Antropologia e as Artes
em geral. Ressalvadas as especificidades que o testemunho assume em cada
123

campo do saber, geralmente o estudo do testemunho sempre tem sido realizado


pela interface de tais áreas. No rol desta discussão, incluímos aí a Análise do
Discurso para empreender, a seu modo, a reflexão em torno da prática testemunhal
enquanto uma construção discursiva que joga com a memória, o sentido, o sujeito, o
Real e o esquecimento. Vejamos, primeiramente, a origem do termo testemunho.

Etimologicamente, o termo testemunho/testemunha – testis/superstes – é um


nome latino que pode significar, a priori, aquele que ocupa a posição de um terceiro
perante um dado acontecimento, bem como pode ser entendido como aquele que
viveu efetivamente o acontecimento na própria pele. Benveniste descreveu a
diferença entre os termos:

[...] testis é aquele que assiste como um “terceiro” (terstis) a um caso


em que dois personagens estão envolvidos; [...] Mas superstes
descreve a “testemunha” seja como aquele “que subsiste além de”,
testemunha ao mesmo tempo sobrevivente, seja como aquele “que
se mantém no fato”, que está aí presente (BENVENISTE, 1995b, p.
278).

A partir das considerações de Benveniste, o testemunho (a testemunha)


surge, neste trabalho, ao mesmo tempo como testis e superstes através do jogo
entre “EU” – “NÓS” e, sobretudo, como uma voz que se ergue para reivindicar a
justiça e possibilitar que a memória seja vista por outro prisma, a fim de resistir à
hegemonia de discursos na sociedade brasileira. De todo modo, a voz que se
inscreve através do testemunho é a de um sujeito que se caracteriza como testis e
superstes, ou seja, aquele que é arrolado como testemunha [ocular] sobrevivente de
uma experiência-limite e que a mantém viva no presente. E o que resta para nós?
Sermos, na medida do possível, testemunha da testemunha. É sobre este ponto que
também discorre Duvignaud ao prefaciar A memória coletiva:

[...] o “eu” e sua duração se localizam no ponto de encontro de duas


séries diferentes e às vezes divergentes: a que se liga aos aspectos
vivos e materiais da lembrança, a que reconstrói o que é apenas
passado. O que seria desse “eu”, se não fizesse parte de uma
“comunidade afetiva” de um “meio efervescente” – do qual tenta se
livrar no momento em que “se lembra”? (DUVIGNAUD, 2003 [1950],
p. 12).

A reflexão em torno do testemunho recebe também um tratamento essencial


no desenvolvimento do pensamento hermenêutico de Ricoeur (2007 [2000]). A
relação que se estabelece, na obra do autor, entre a narrativa memorial (o
124

testemunho em si) e o sujeito que se lembra e narra as suas memórias (a


testemunha) afeta diretamente a reflexão hermenêutica na busca por uma verdade
através da epistemologia da História. Assim, o testemunho, a memória, o
esquecimento e o modo como esses fenômenos se coadunam, na produção de
sentido, desempenha um papel sine qua non na reflexão filosófica proposta pelo
autor.

Com efeito, Ricoeur também foi um leitor atento da obra de Maurice


Halbwachs, Bergson e Husserl. Por meio da relação dialética entre passado e
presente, o autor parte do pensamento platônico e aristotélico para defender que a
memória é uma “representação presente de uma coisa ausente” (RICOEUR, 2007
[2000], p. 27). É com base em Freud que o pensador estabelece três níveis ou
formas de investigação da memória: 1) o da “memória impedida”, que se estabelece
no contexto da terapia psicológica e trataria da resistência à lembrança do trauma
manifestado pelo inconsciente através de uma espécie de “compulsão à repetição”.
Neste caso, o trabalho de rememoração aliado ao trabalho de luto, conduzido pelo
psicanalista, levaria à reconciliação com os fatos vividos no passado; 2) o da
“memória manipulada”, por sua vez, caracterizar-se-ia pela institucionalização da
memória no âmbito das relações de poder na sociedade, na qual versões de
memória são construídas, e esquecimentos, manipulados; 3) o da “memória
obrigada”, por fim, situa-se no campo ético-político, associado ao dever de memória
(RICOEUR, 2007 [2000], p. 71-79). Estes dois últimos pontos são de maior
relevância para este trabalho. Nessa perspectiva, entra em cena um trabalho
coercitivo, uma espécie de “tirania da memória” com seus usos e formas de abuso.
O autor ainda denomina um “esquecimento de reserva” que se dirige ao
reconhecimento do que está latente na lembrança à espera de recordação e
representação nos limites da reversibilidade.

Esse é um aspecto interessante quando se analisa o testemunho porque


podemos observar que as memórias são ratificadas, por assim dizer, à luz das
lembranças dos outros que, por seu turno, recuperam um passado que não é de um
sujeito sozinho. O testemunho, assim, pode nos revelar aspectos que constituem o
espaço social e coletivo por meio de uma apropriação subjetiva e individual.

Não obstante, Ricoeur concorda com Halbwachs no seguinte ponto:


125

[...] embora a memória coletiva extraia sua força e duração do fato de


que um conjunto de homens lhe serve de suporte, são indivíduos que
se lembram enquanto membros do grupo. Agrada-nos dizer que cada
memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva,
que esse ponto de vista muda segundo o lugar que nele ocupo e
que, por sua vez, esse lugar muda segundo as relações que
mantenho com outros meios. (RICOEUR, 2007, p. 133-134).

A compreensão acima se institui e se legitima por meio de uma ação


valorativa da memória em relação ao passado. Assim, Ricoeur concorda que o lugar
da memória não é no passado, mas no presente, através das disputas ideológicas e
lutas políticas do presente, ou seja, toda relação que se estabelece com o passado
se dá por intermédio do presente modelado pela memória. Diante disso, o presente
existe em função do passado que o constitui. Entretanto, tal processo acaba por
estabelecer um problema paradoxal do jogo da memória: a dificuldade de se
estabelecer a verdade dos acontecimentos históricos – através desse vínculo com o
passado –, visto que uma memória, conforme observamos anteriormente, pode ser
afetada por meio das diferentes formas que o esquecimento pode assumir, inclusive
político-ideológicas. Dessa forma, qualquer tentativa de se estabelecer uma verdade
– sobretudo uma verdade que se propõe histórica – não passa de uma ilusão do
sujeito movido pelo desejo de justiça, de completude.

De todo modo, essa relação corresponde, de acordo com o autor, a um


problema: ora, se esse processo interfere, direta ou indiretamente, na constituição
de uma memória é justamente porque se precisa considerar, no sentido jurídico do
termo, aspectos morais e éticos do testemunho, como, por exemplo, o compromisso
com uma verdade – testemunha-se uma verdade que sempre pode nos escapar –,
ou mesmo com a má-fé da testemunha, ou ainda com a preocupação de uma
interpretação errada daquilo que se diz durante o testemunho. Essa problemática é
observada na relação entre o testemunho e a retórica jurídica: enquanto o primeiro
se inscreve num espaço lacunar e subjetivo, isto é, uma prática de subjetivação; o
segundo, por seu turno, conjuga-se num espaço objetivo e da razão. Daí
encontrarmos, nas práticas jurídicas nos tribunais, sempre uma testemunha
juramentada que se compromete com “a verdade e nada mais que a verdade” sob
pena das sanções legais perante as falsas declarações que caracterizam a prática
de perjúrio.
126

No nosso caso, o testemunho firma um compromisso com uma verdade


histórica (busca uma outra versão para a história), bem como possibilita a
(re)construção e a ressignificação de memórias, sentidos e silêncios – nos limites da
representação –, além da interpretação das condições de produção sociais,
históricas e político-ideológicas que financiaram a Ditadura Militar e,
consequentemente, a violência no âmbito do aparelho militar. O testemunho ganha,
assim, um forte sentido político porque os acontecimentos do passado são postos à
prova e, igualmente, a memória forjada sobre a violência nos porões da Ditadura
Militar. Por isso, quando refletiu sobre a violência nos campos de concentração
nazista, Agamben, importante filósofo italiano contemporâneo, compreendeu que o
testemunho das vítimas “[...] continha como sua arte essencial uma lacuna, ou seja,
que os sobreviventes davam testemunho de algo que não podia ser testemunhado
[...] comentar seu testemunho significou necessariamente interrogar aquela lacuna –
ou, mais ainda, tentar escutá-la” (AGAMBEN, 2008, p. 21). É diante dessa lacuna
que o testemunho nos coloca neste trabalho, ou seja, diante de um algo a mais (uma
eterna sobra) que é impossível de ser capturado pelo discurso do sujeito. Dizer
dessa dor, aqui, é uma tentativa de materialização de uma falta constitutiva, de
preenchimento de um lugar vazio deixado na história e na memória do sujeito que se
lembra do passado de violência.

Dito de outro modo, a tentativa de construção discursiva desse entrelugar


estabelece uma mescla entre o passado e o presente da enunciação, o que
aconteceu e não deveria ter acontecido, o dizível e o indizível, a subjetividade e a
objetividade, a memória individual e a social. Com isso, o testemunho se configura, a
seu modo, como um lugar de fala singular, um espaço de denúncia das atrocidades
praticadas na Ditadura Militar e, sobretudo, como instância da busca por uma
verdade e pelo desejo de justiça.

Além disso, diante do testemunho, enfatizamos que o sujeito tem a


passibilidade de constituir, através da narrativa, um discurso outro, uma outra
subjetividade sobre a memória que foi forjada pela Ditadura Militar, tornando-se,
portanto, um trabalho relevante para a nossa sociedade. Dessa forma, o testemunho
– nos termos deste trabalho – permite a transformação tanto da vítima de tortura
quanto do Estado brasileiro, e este último tem a tarefa ética, hoje, de escutar as
127

testemunhas e buscar a reparação, na medida do possível, daqueles que foram


subjugados pelos agentes estatais à época da Ditadura Militar.

Concebido dessa maneira, o testemunho se torna um fenômeno complexo


que, além de constituir as subjetividades das vítimas que recordam através de um
trabalho com a memória, é elaborado, discursivamente, por meio de vestígios, de
rastros, da diferença e da contiguidade, de fragmentos de memória, de contradições,
de silêncios, de rupturas, inclusive do jogo político através da disputa entre
memórias contra o esquecimento na sociedade brasileira. Afinal, como interroga
Ricoeur: “como falar do esquecimento senão sob o signo da lembrança do
esquecimento, tal como o autorizam e caucionam o retorno e o reconhecimento da
„coisa‟ esquecida?” (RICOEUR, 2007, p. 48).

Perante os objetivos traçados nesta tese, consideramos relevante analisar


não apenas o que é dito, mas o modo de dizer através do testemunho, ou seja,
investigar também as estratégias discursivas presentes na narrativa testemunhal,
problematizando-as na esteira do passado e do presente na luta pela (re)construção
da memória que, por sua vez, torna-se um lugar forjado por meio de uma disputa
política. O testemunho se torna, portanto, a arena de confronto, interesses e luta
entre os sujeitos e suas diversas narrativas sobre a memória do passado. As
condições de produção do testemunho também precisam ser consideradas, uma vez
que as transformações nos cenários político-sociais interferem não apenas na
percepção do passado, mas também nas alterações das formas de luta contra ou a
favor do esquecimento.

No caso do testemunho, no âmbito do Relatório Final da CNV, a preocupação


maior gira em torno de reconstruir a história a partir das subjetividades reveladas por
meio do testemunho. Entendemos, assim, que o testemunho possibilita novas
versões da história oficial sobre o Regime Militar no Brasil, colocando em cena, por
um viés, questões não representadas nos discursos dominantes ou hegemônicos na
sociedade brasileira, como, por exemplo, as relações familiares no contexto da
Ditadura Militar; e, por outro, instaurando problemáticas para os estudos dos
processos sociais que marcaram o período de exceção no Brasil.

Por isso, a ancoragem do testemunho se dá sempre no presente do sujeito


que se lembra para que se possa (re)elaborar, em certo limite, a memória do
128

passado. Assim como para Primo Levi (1988 [1947]), a possibilidade de testemunhar
se agarra a uma necessidade urgente, a uma memória-dever que envolve o sujeito
paradoxalmente no desejo de libertação através do esquecimento e a ética da
responsabilidade com o outro – que não pode mais dizer dessa memória e marca
uma ausência constante no testemunho – a partir da consciência de si. É justamente
esse não-lugar, a potência desse espaço vazio que o sujeito porta-voz do
testemunho não pode preencher, que funda a língua e deixa a falta
permanentemente à deriva. E é porque esta falta é estruturante que consideramos
aqui que:

[...] as testemunhas fundam a língua como o que resta, o que


sobrevive em ato à possibilidade – ou à impossibilidade de falar. A
respeito de que tal língua dá testemunho? Porventura de algo – fato
ou evento, memória ou esperança, alegria ou agonia – que poderia
ser registrado no corpus do já-dito? Ou da enunciação, que atesta no
arquivo a irredutibilidade do dizer ao dito? Não é nem de uma nem
de outra coisa. Não enunciável, não arquivável é a língua na qual o
autor consegue dar testemunho da sua incapacidade de falar
(AGAMBEN, 2008, p. 160-161, grifo do autor).

Nessa perspectiva, o testemunho se constitui por meio de lacunas, pois se


caracteriza sempre por uma ausência, pelas sobras, pelo resto que resiste à
simbolização. Assim, as lembranças permanecem sedimentadas na memória, que,
por sua vez, resistem ao tempo e sempre poderão ser acionadas, revisitadas e, por
isso mesmo, o testemunho é uma forma de reviver uma experiência em outras
condições de produção. Nos termos do autor, o testemunho é “uma potência que
adquire realidade mediante uma impotência de dizer, é uma impossibilidade que
adquire existência mediante uma possibilidade de falar” (AGAMBEN, 2008, p. 147).
E tal “impotência de dizer” mergulha o sujeito do testemunho numa falta que não
pode ser preenchida.

Com o advento da Ditadura Militar, conforme dito no início da tese, as


relações de poder se acirraram na sociedade; nesse sentido, as lutas se instauraram
na busca pela dominação de um grupo sobre o outro e a manutenção de uma
memória hegemônica. Como a resistência também se ergueu contra a violência e o
autoritarismo, buscou-se obliterar a base de sustentação que constituía a identidade
do próprio grupo, ou seja, aquilo que estava sob a égide da memória coletiva. Assim,
subverteu-se a memória: por um lado, construiu-se uma memória de subversão para
um grupo; por outro, instituiu-se a memória em defesa da ordem. A memória
129

invocada por meio do testemunho, neste trabalho, se choca com a memória forjada
pela Ditadura Militar ao desvelar os crimes praticados contra a humanidade nos
quartéis e, ao mesmo tempo, rompe com as supostas verdades sedimentadas na
memória social.

O testemunho das vítimas da Ditadura Militar representa o principal relato do


que ocorreu nas inúmeras sessões de tortura. Esse discurso produz, atualmente,
uma memória-outra sobre aquele acontecimento histórico e que é revisitado todas
as vezes que a violência e o cerceamento da liberdade de expressão, por exemplo,
tornam-se uma prática na vida cotidiana e voltam a assombrar o presente.
Felizmente, a tentativa de negar esse passado tem sido rechaçada pelo testemunho
presente no Relatório Final da CNV. Nesse sentido, ainda nos termos de Ricoeur:

O testemunho nos leva, de um salto, das condições formais ao


conteúdo das “coisas do passado” (praeterita), das condições de
possibilidade ao processo efetivo da operação historiográfica. Com o
testemunho inaugura-se um processo epistemológico que parte da
memória declarada, passa pelo arquivo e pelos documentos e
termina na prova documental (RICOEUR, 2007 [2000], p. 170, grifo
do autor).
Diante disso, para compreender como o testemunho representa, na esteira do
discurso e da história, essa prova documental, da qual nos fala o autor, torna-se
necessário mobilizar a ideologia e, sobretudo, considerar que o arquivo e a memória
produzem efeitos de sentido diferentes no discurso da CNV, causa primeira do
Relatório Final. Dessa forma, o testemunho reveste-se de vital importância porque
representa – em certa medida –, uma forma de reconciliação com o passado
conforme problematizamos anteriormente. Assim, através da prática testemunhal, a
vítima (mas também a sociedade) encontra, por assim dizer, uma maneira de seguir
em frente. Por isso, a prática testemunhal representa, talvez, uma das melhores
maneiras de trazer à luz os acontecimentos históricos que, por diferentes razões,
não puderam ser observados por todas as pessoas da sociedade. Ao testemunhar, o
sujeito elabora, através da ativação de lembranças, uma narrativa composta por
fragmentos da realidade, todavia potencializa, sobretudo, as memórias e os
discursos que foram silenciados e que são agora possíveis de dizer. Esta é uma
questão relevante e que organiza o funcionamento do testemunho na análise do
corpus do nosso trabalho.
130

O testemunho, assim, permite a queda de muros e a construção de pontes,


ou melhor, é um gesto que possibilita a abertura de uma via de mão dupla e, por
isso, é um ato singular que só pode se realizar diante da presença do outro, diante
da escuta do outro. É por esta razão que a práxis testemunhal instaura uma questão
ética do dever com uma verdade, com a justiça, com a lembrança e, a seu modo,
com o esquecimento. Dessa maneira, o testemunho institui-se, simbolicamente,
como um lugar de fala possível – que denuncia o mal-estar do sujeito frente à
violência – e, ao mesmo tempo, como um espaço que é, constitutivamente,
atravessado pelo Real que resiste a qualquer forma de representação da memória e
do evento traumático.

Nessa direção, Bethania Mariani (2016, p. 52) apresenta um relato


interessante sobre este ponto. A autora afirma que, por meio de uma leitura rápida,
compartilhou o seguinte enunciado, do estilo autoajuda, que circulou na rede social
Facebook: “Deixe para trás tudo o que não te leva pra frente”. Na sequência, a
autora passou a refletir, com maior profundidade, sobre a questão, a partir dos
comentários dos colegas da rede e então se questionou: “o que seria esse deixar
para trás? Deixar pra trás tudo? Tudo? Ou seja, todo um saber memoriável?” Pois
bem. Esse “deixar para trás” tem, em nosso gesto leitura, uma implicação que é
tanto política quanto ideológica, uma vez que joga com uma espécie de
esquecimento que estaria na base de uma memória “proibida” e do apagamento dos
rastros.

Na reflexão proposta por Mariani (2016), ainda, encontramos a tese que


considera o testemunho como um acontecimento na estrutura. De fato, partindo dos
pressupostos da Psicanálise e também das memórias de Primo Levi (1988 [1947]), a
autora considera que há algo que é impossível de inscrever-se no testemunho, mas
que ao mesmo tempo o atravessa. Concordando com autora, o testemunho aqui se
instaura justamente dada a necessidade de o sujeito falar, de colocar-se na posição-
sujeito enunciador – mesmo que algo escape à inscrição, conforme observamos na
análise do corpus a seguir – e, principalmente, diante de acontecimentos históricos
traumáticos que atingem a memória. Por isso, “[...] o testemunho é da ordem do
memoriável, esse é um dos seus aspectos. Dar um testemunho aponta para um falar
urgente, para o não esquecer e para um não deixar os outros esquecerem”
(MARIANI, 2016, p. 50-51). É sobre a impossibilidade de dizer, através do ato de
131

testemunhar, que vamos tratar no bloco de análise a seguir. Para tanto, estamos
considerando “esse algo a mais” como efeitos do Real sobre as formas de
organização linguístico-discursiva do testemunho. É a falta que resiste à
simbolização e ao imaginário, mas que remete ao limite da representação quando
fura/atravessa a língua constitutivamente por meio da falha, do equívoco, mesmo
que ela (a língua) seja incapaz de roçar o Real, os efeitos deste sobre aquela
caracterizam a organização discursiva do testemunho.

Diante de tudo que abordamos até aqui, consideramos que o Relatório Final
da CNV representa – através da voz do testemunho – uma forma de registrar os
acontecimentos históricos da Ditadura Militar, de recontar e ressignificar a história e
a memória. E essa tarefa a memória nos ensina bem: o passado nunca se cala.
Mesmo perante o silêncio, para o bem ou para o mal, o passado, por assim dizer,
sempre volta para nos fazer lembrar dele. Diante disso, entendemos que o gesto de
testemunhar é sempre político e urgente. O testemunho também não é – assim
como o sentido, o sujeito e o discurso –, imune à incompletude e estabelece
fronteiras que são sempre fluidas na instituição de uma possível verdade.
Entretanto, ele possibilita a retomada de algo que está resguardado no passado,
potencializando, assim, a presença de um acontecimento histórico no presente do
sujeito.

Voltemos a essa questão ainda a partir de Agamben (2008). Na reflexão


empreendida pelo autor, a história de Primo Levi (1988 [1947]) é invocada para
justificar a relevância do testemunho na construção de uma memória na esteira do
acontecimento histórico que envolveu o extermínio dos judeus. Segundo o autor,
Primo Levi carrega em si a difícil memória de sobrevivência ao Campo de
Concentração nazista. Com isso, o testemunho ergue-se como uma possibilidade de
seguir em frente, de exorcizar uma memória traumática, através do testemunho.
Mesmo atravessado pela incompletude que constitui o testemunho e,
consequentemente, pela impossibilidade de narrar completamente a experiência
vivida naquele acontecimento, discursivizar essa memória representa, segundo o
autor, uma forma de libertação de uma culpa permanente que se agarra ao próprio
peso da sobrevivência, da condição humana que se exauriu. Neste ponto, o
massacre dos judeus produz, por assim dizer, eco nos testemunhos que
apresentamos nesse trabalho.
132

Para Levi (É isto um homem?), no Campo de Concentração, a luta não era


pela vida, mas contra o processo de desumanização, ou seja, pela própria
humanidade que havia se perdido tanto para as vítimas quanto para os algozes.
Diante disso, aceitar que um ser humano era capaz de praticar tamanha crueldade
tornava-se, talvez, a verdade mais difícil de se enfrentar. Nas palavras do próprio
Levi:

Poderíamos, então, perguntar-nos se vale mesmo a pena, se


convém que de tal situação humana reste alguma memória. A essa
pergunta, tenho a convicção de poder responder que sim. Estamos
convencidos de que nenhuma experiência humana é vazia de
conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de que se podem
extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse
mundo particular que estamos descrevendo (LEVI, 1988 [1947], p.
88).

Assim sendo, jogar luz sobre essa memória, através do testemunho, não é
uma escolha, mas uma necessidade de sobrevivência, ainda hoje, de tudo aquilo
que aconteceu em Auschwitz. Diante disso, longe de se considerar apenas a
superfície sobre a qual se instaura o testemunho, é importante considerar o modo
como as testemunhas organizam seu discurso por meio da (re)construção ou
(re)contação de uma memória sobre o passado. Neste processo, passado e
presente se misturam fazendo com que as próprias memórias possam sofrer
fraturas, apresentar fissuras pelas quais podemos perceber, por exemplo, um
trabalho político-ideológico sobre as memórias. Por isso, antes de mais nada,
defendemos que o testemunho é uma questão do/para o discurso. No depoimento,
forma assumida pelo testemunho no Relatório Final da CNV, o modo de dizer da
testemunha assume, conforme mostraremos na análise do corpus, uma postura
irregular que opera no plano de um duplo jogo da memória envolvendo um “EU” e
um “NÓS” por meio de uma consciência de/sobre si (a busca de si) através de uma
análise do “EU”.

Além disso, na construção discursiva do testemunho – enquanto instrumento


de manifestação da memória –, devemos considerar a relevância da presença de
outro fenômeno: o ausente, que, para nós, a partir de Daltoé (2016a, p. 36), “é
constituído pela dispersão dos sentidos que se deixam aprisionar e dos que
escapam, bem como de palavras que vão continuar reclamando sentidos”. Este é
um ponto significativo principalmente porque trabalhamos com memórias da dor, do
133

trauma, que a maioria luta para esquecer e não pode, ou melhor, não consegue.
Nessa direção, talvez, estas sejam as questões mais difíceis de se enfrentar, na
sessão de testemunho, por quem passou pela tortura: o medo da recordação, o
envolvimento, mais uma vez, com o fantasma da tortura e, sobretudo, a
incompreensão ou a não aceitação dos motivos que geraram a tortura e que
permanecem, até hoje, marcadas no corpo e na alma, inclusive dos descendentes.
Pensemos, por exemplo, em alguém que é obrigado a se olhar todos os dias no
espelho e se deparar com a tortura através das marcas da violência em seu corpo,
por meio dessa memória-corpo...

A vítima da tortura, portanto, vê-se envolvida num conflito ético-moral, como


defenderá a Psicanálise, com a própria existência e o Real por causa da vivência
do/com trauma que condicionaria um sintoma eterno da não aceitação daquilo que
aconteceu e o próprio medo da repetição traumática. De todo modo, o testemunho,
mesmo sendo caracterizado como subjetivo, conforme já defendemos, abre-nos a
possibilidade de duas mudanças: a do sujeito, enquanto vítima da violência; e a do
Estado, pelo reconhecimento da tortura no passado e, na medida do possível, a sua
reparação. Por isso, para nós, o testemunho, como relato de memória de vítimas de
tortura, busca por uma justiça histórica. Essa busca se faz por meio da inscrição do
sujeito num espaço de violência e de uma dor que insiste em ser o contorno de uma
memória ou de uma memória que teima em ser o contorno de uma dor inominável.
Juntamente com a vontade de dizer, talvez o termo mais apropriado fosse gritar em
alto e bom som, há o desejo de tentar esquecer e, com isso, esbarramos na relação
paradoxal entre a memória e o esquecimento.

Nesse ponto, observamos pelo menos duas questões que se coadunam: a


primeira, da ordem do querer dizer, do querer recordar, apontaria para o desejo de
justiça, de reparação; a segunda, da esfera da dor, do trauma, da violência, do não
dizer (do silêncio), lutaria para lançar esta memória no esquecimento numa espécie
de fuga da memória. O testemunho nos abre, assim, a possibilidade de observar
mais ou menos os contornos visíveis da memória e, sobretudo, o modo como ela
tem sido significada no Relatório da CNV produz efeitos e deslizamentos de sentido
sobre/para a memória e a Ditadura Militar na sociedade brasileira.

Diante disso, a prática testemunhal reveste-se de relevância por denunciar o


que aconteceu naquele acontecimento histórico, trazendo à luz a crueldade daquele
134

movimento, além de se configurar, em certa medida, como espaço para


reivindicação de justiça, bem como por uma política da não repetição. A denúncia é,
portanto, um ponto central no testemunho, na busca pela efetivação da justiça que
possibilita, ao mesmo tempo, a circulação de um discurso que foi por tanto tempo
silenciado e que não pode mais permanecer inaudível tanto socialmente quanto
historicamente.

Após essa reflexão sobre a memória e o testemunho, trazemos o primeiro


gesto de recorte e análise do corpus.

4.1 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO CORPUS

Pois bem, após essa incursão passaremos agora às análises dos recortes
das sequências discursivas (SDs) recortadas dos testemunhos presentes no
Relatório Final da CNV31 (BRASIL, 2014). Diante disso, buscamos, por meio da
análise vertical de corpus (ORLANDI, 2012), observar as regularidades na
organização discursiva do testemunho e os efeitos de sentido que se instauram a
partir daquilo que estamos considerando aqui como as formas do testemunho “EU”,
“NÓS”, “ELES” e “OUTRO”. O tratamento dado ao corpus segue uma organização
que aponta para a descrição, a interpretação e a verticalização dos fenômenos
analisados a partir de 26 SDs distribuídas em cinco blocos de análise a partir deste
capítulo. Conforme dissemos no início, as sequências discursivas não seguem,
rigorosamente, a mesma ordem em que os testemunhos aparecem no Relatório
Final da CNV. Em cada testemunho (SD), há uma nota recortada do arquivo da CNV
com informações sobre a testemunha.

No primeiro bloco de análise – o jogo de identificação entre “EU” e “NÓS” –,


mobilizamos os mecanismos de identificação através da memória entre as marcas
linguístico-discursivas (as formas do testemunho) “EU” e “NÓS”; no segundo bloco –
movimento de desidentificação: “EU” e “NÓS” versus “ELES” –, observamos como o
movimento dêitico-discursivo produz a desidentificação com “ELES” por meio de um
jogo de memória; no terceiro bloco – o direito ao esquecimento e o dever de

31
Especificamente, recortamos os testemunhos do Tomo I (Volume I do Relatório Final da CNV).
135

memória: eu quero esquecer... –, analisamos o conflito entre posições-sujeito


distintas que aponta para a luta contra o esquecimento político-ideológico e, ao
mesmo tempo, a necessidade de esquecimento da tortura do passado; o quarto
bloco, por sua vez – o jogo com o “OUTRO” através da (não) denominação –, traz à
baila o jogo de memória que se produz para o “OUTRO” (o comunista, a polícia) no
batimento entre a FD militar e a FD da resistência; no quinto bloco, por fim – os
limites da representação no testemunho –, trabalhamos com a inscrição da falta, do
equívoco, da falta estruturante, do Real que fura o testemunho e caracteriza o
impossível de ser simbolizado e representado no testemunho.

4.1.1 O jogo de identificação entre “EU” e “NÓS”

Trazemos, inicialmente, as sequências discursivas (SD‟s) a seguir porque


elas nos permitem pensar o testemunho através do funcionamento das pessoas
discursivas que marcam, a partir de um gesto de interpretação, um efeito de
repetibilidade de traços de subjetivação/identificação/interpelação no fio do
testemunho. Tal ordenamento nos dá a pista para entender que o testemunho
trabalha com um processo híbrido de subjetivação, “dessubjetivação” (processo
entendido aqui como efeito de identificação com o outro e apagamento da
subjetividade do sujeito enunciador) e instaura um sujeito do discurso (porta-voz)
que busca pela legitimação do seu modo de dizer a memória através do jogo
discursivo entre “EU” e “NÓS”.

Além disso, observamos, a partir dessas formas materiais, como o


funcionamento discursivo da negação produz o jogo da “verdade” e da “mentira”, nas
condições de produção do cárcere, e tensiona no testemunho a relação entre a
memória (o direito de lembrar, a impossibilidade de esquecer) e o esquecimento (o
direito ao esquecimento, o desejo de esquecimento, o esquecimento político-
ideológico). Neste bloco, especificamente, pensamos como as formas do
testemunho [“EU, “NÓS”] mobilizam o jogo entre a memória, o esquecimento, o luto
e os efeitos de sentido que se produzem a partir desse batimento. Passemos, então,
às análises dos primeiros recortes:
136

 TESTEMUNHA-132
 SD-1: “Quando eu ia a um velório, eu sempre sentia aquilo lá dentro:
„Poxa, meu sogro não teve o direito dos filhos velarem, noras, sobrinhos,
netos etc. Morreu lá, ninguém sabe como [...] Eu já acostumei sem ele, só
que nunca acostumei com a maneira como ele morreu. E para vir, como
Manoel falou, se forem realmente os restos mortais dele para trazer para
cá, para mim é uma vitória. Para mim é uma maravilha. Nós vamos ficar
devendo a vocês, que se interessaram por isso, muitas coisas. Ou muita
coisa, uma coisa grande, grandiosa. Sei que vocês estão fazendo o
trabalho de vocês, mas para nós é uma honra, para nós é uma honra. [...]
Se esses ossos chegarem, se esse corpo chegar, e a gente colocar ali
dentro para colocar uma placa assim – eu quero que bote uma bem
grande, com letras bem legíveis, bem visíveis: „Aqui jaz Epaminondas e
dona Avelina‟. Eu vou botar lá uma coisa bonita, vou estudar o que eu
vou pôr lá. É alegria” (BRASIL, 2014, p. 48, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2
 SD-2: “Dilma Rousseff: Eu me lembro de chegar na Operação
Bandeirante, presa, no início de 1970. Era aquele negócio meio terreno
baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da Operação
Bandeirante e começaram a gritar: „Mata!‟ „Tira a roupa‟, „Terrorista‟, „Filha
da puta‟, „Deve ter matado gente‟. E lembro também perfeitamente que
me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha
uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome
verdadeiro. Ela disse: „Xi, você está ferrada‟. Foi o meu primeiro contato
com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para
apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou
lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai
formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro [...] depois
da palmatória, eu fui pro pau de arara. As marcas da tortura sou eu. Fazem
parte de mim” (BRASIL, 2014, p. 130 e 387, grifos nossos).

O batimento entre o “EU” e o “NÓS” construído nas sequências acima produz


um efeito de deslizamento de sentido entre o público e o privado (confundindo o
particular com o coletivo), porque é no espaço de instanciação do coletivo que o
sujeito se torna porta-voz33 do testemunho [ao enunciar “EU”] e encontra, neste
caso, a legitimação para enunciar em nome do “NÓS”. Ou seja, essa legitimação se

32
Joana Pereira Rocha, nora de Epaminondas Gomes de Oliveira, em depoimento prestado à
Comissão Nacional da Verdade em 21 de outubro de 2013, na audiência pública que assinalou a
entrega dos restos mortais à família. Epaminondas Gomes de Oliveira foi um grande líder comunitário
e desapareceu em agosto de 1971.
33
Seguindo aqui o que defende Indursky (2013 [1997]).
137

dá através do reconhecimento de um “NÓS” que se materializa para significar a


partir do gesto de dizer de um “EU” que, por seu turno, dá consequência a uma ação
política [o dever de testemunhar, o dever de lembrar]. Além disso, a relação de
constituição intersubjetiva que se estabelece através da reversibilidade entre “EU” e
“NÓS” vai além de uma marca meramente enunciativa, visto se tratar de um
mecanismo próprio da forma de inscrição dos sujeitos no testemunho. Entendemos
que se trata de um processo de simetria e contiguidade (não-oposição) que
caracteriza o espaço de constituição de um outro que tem, como força motriz, uma
memória compartilhada (aquela que é minha, porque “EU” vivi, presenciei, ouvi; mas
que é de todos que, como “EU”, também viveram, mas talvez não estejam aqui para
testemunhar). Esse jogo de memória é aqui responsável por instituir o “EU” como
porta-voz justamente porque o discurso do “EU” produz e encontra eco no discurso
do “NÓS” (vítimas da tortura) e, portanto, está autorizado a falar de/por “TODOS”.

Pois bem, é a partir das SDs acima que pontuamos, no eixo da formulação
discursiva do testemunho, a ocorrência dessa regularidade de subjetivação, ou seja,
o funcionamento de um fenômeno de identificação que se dá através da memória da
tortura e que promove o imbricamento de duas pessoas discursivas: um “EU” em um
“NÓS” (“EU” = posição-sujeito individual e “NÓS = instanciação do social, do grupo
social com que o “EU” se identifica e compartilha a memória do mesmo
acontecimento) que acarreta uma relação com “TODOS”. Há, assim, um jogo de
espelhos entre o eu e o outro e, neste processo, ambos se (re)conhecem naquela
memória, dependem um do outro, se recriam e (re)constroem aqui um dizer outro
sobre a violência na Ditadura Militar. Nessa direção, defendemos que tal relação
instaura uma espécie de:

[...] efeito de unidade em torno de uma causa, de identificação com o


outro (ou com a sua luta) com quem o sujeito se solidariza, de quem
se aproxima, a quem se iguala no desejo ou na dor [...] produz gritos
coletivos a que os sujeitos são chamados a se unir (DE NARDI &
GRIGOLETTO, 2017, p. 1).
É, pois, o próprio testemunho que escapa ao campo do individual e produz
ressonância na memória social, que, por sua vez, é o cimento da historicidade em
que se inscreve o “NÓS” e que, por conseguinte, é exterior ao “EU” que, neste caso,
constitui e atravessa o “NÓS”. Dito de outra forma, o testemunho que aqui se
instaura se caracteriza por incorporar a memória do outro ao seu próprio dizer, de tal
138

modo que se sustenta uma relação ética com o outro, ou seja, uma responsabilidade
social com este outro. Ao se afirmar como “EU”, na cena testemunhal, o sujeito
produz e identifica-se (consciente e/ou inconscientemente) com uma causa que só
tem razão de ser em função da alteridade, da relação entre um “EU” e o “NÓS” que
subjaz ao testemunho, e que só tem existência diante do funcionamento do político
que atravessa constitutivamente a língua: “Sei que vocês estão fazendo o trabalho
de vocês, mas para nós é uma honra, para nós é uma honra” (SD-1).

Em A natureza dos pronomes, Benveniste (1995a [1956]) problematiza o


funcionamento discursivo dos pronomes (eu – tu – ele) através da Teoria da
Enunciação e, a partir de tal empreendimento, desloca a discussão do âmbito
exclusivamente formalista para o viés da subjetividade na linguagem. Aqui, a partir
do autor, consideramos que o jogo que se estabelece entre as formas do
testemunho marca a singularidade subjetiva do dizer de um sujeito que tem a
mesma memória como ponto nodal, e, por isso, produz nos recortes em análise o
efeito de inclusão entre “EU” e “NÓS”. Daí compreendermos um duplo
funcionamento que se coaduna em relação à voz que enuncia no testemunho e que
produz o deslizamento do lugar ocupado por ela: ora o lugar de uma voz que
assume uma autoria individual (“EU já acostumei sem ele...”), ora o lugar de uma
voz que assume autoria coletiva por meio da identificação (“NÓS vamos ficar
devendo a vocês...”) e, neste caso, “a presença do „eu‟ é constitutiva de „nós‟”
(BENVENISTE, 1995a [1956], p. 256). Dito de outra forma, entendemos que é a
partir de tal funcionamento discursivo que o testemunho se marca subjetivamente
por um “EU” projetando e inscrevendo um “NÓS”, para estabelecer uma relação de
identidade ou de reconhecimento que se dá através de uma mesma memória, do
desejo de justiça, da busca por verdade.

Além disso, ao enunciar “EU”, o sujeito que se inscreve no testemunho se


apresenta, nesse caso, afetado pelo esquecimento, de modo que o “EU” assume
uma posição imaginária em que o sujeito se apresenta, ilusoriamente, como fonte do
seu dizer (como efeito do sujeito adâmico que se dá como origem do dizer e que
esquece de que os sentidos se constituem na história), realizando, assim, um
apagamento das determinações sócio-históricas que o interpelam enquanto sujeito.
As pistas que marcam no testemunho o lugar “de origem” do dizer se constituem de
elementos linguísticos que tornam possível a visualização ou a materialização de tal
139

lugar, como, por exemplo, os pronomes pessoais [a forma do testemunho “EU”] em


primeira pessoa aí marcados e os verbos flexionados também em primeira pessoa
do singular: (“Quando eu ia a um velório, eu sempre sentia aquilo lá dentro [...]”).

Aqui, precisamos opacizar ainda mais a relação que se estabelece porque


entendemos que a materialidade não pode significar na evidência do sentido e, para
isso, vamos invocar a tese da interpelação. Nesse sentido, o mecanismo de
interpelação ideológica – como nos ensinou Althusser (1974) – produz,
inevitavelmente, um recobrimento, um reconhecimento enquanto tal, logo trabalha
no sentido de uma identificação. É justamente diante de tal funcionamento que se
opera a relação entre “EU” e “NÓS”, que os situa em um lugar “X” de
identificação/significação que lhes (aos sujeitos representados pelas formas do
testemunho) é imposto por meio de um dispositivo de interpelação. O testemunho,
neste caso, põe em funcionamento uma subjetividade que se constrói sempre no
batimento de um desejo que, embora seja enunciado por um “EU” que se
responsabiliza pelo dizer, o faz a partir de um lugar social em que esse “EU” se
identifica como objeto de uma violência que é coletiva, que atinge um coletivo do
qual esse eu é porta-voz. O jogo entre o “EU” e o “NÓS” põe em funcionamento a
configuração de diferentes relações imaginárias que, consequentemente,
estabelecem as diferentes posições-sujeito (“NÓS” = militantes, “EU” = pai, mãe,
filho, esposa etc.) que se inscrevem na FD do testemunho – caracterizada pela luta
e resistência à Ditadura Militar – e a partir das quais é possível dizer “EU” e “NÓS”.

Diante disso, estamos entendendo aqui que tal processo de representação


imaginária afeta a constituição do sujeito no momento de sua produção discursiva
através de um duplo efeito ideológico. Assim, no jogo com a posição-sujeito no
discurso do “EU” (“Eu já acostumei sem ele”) temos a força do Esquecimento n° 1
sobre o sujeito e o modo como se organiza o seu discurso [condição necessária
para enunciar, parafrasticamente, Eu sou! Eu estive lá! Eu sou testemunha! Eu sou
vítima!]; no jogo com o “NÓS”, por sua vez, temos um deslizamento de posição-
sujeito (X & Y) no discurso (“Nós vamos ficar devendo a vocês [...] mas para nós é
uma honra, para nós é uma honra”) diante do funcionamento da ilusão que produz,
por assim dizer, um efeito de convocação do outro para sustentar o discurso deste,
uma vez que, na relação constitutiva entre o “EU” e o “NÓS”, é a memória social que
é invocada para assegurar, por assim dizer, a legitimação do dizer que aí se
140

inscreve. Observe-se, ainda, que o funcionamento do verbo “ficar”, por sua vez,
estabelece um efeito de sentido que aponta para a fixação permanente da dívida
perante a CNV, ou seja, dizer “ficar” (estar, permanecer, continuar) implica a
instituição de um sujeito [“NÓS”] que se institui num espaço da memória do dever.

Na SD-1, marca-se, ainda, a presença de uma falta que pode ser preenchida,
de certa maneira, porque se “fez justiça”. O desaparecimento forçado e a ocultação
de cadáver deixam um lugar vazio que passa a ser idealizado pelos familiares e, ao
mesmo tempo, os lança no sofrimento diante da impossibilidade de preencher tal
espaço. Para os familiares, a vida passa a ser intolerável porque eles convivem com
uma eterna falta simbólica que gera, por assim dizer, a impossibilidade de dar
sentido a essa falta. É justamente este espaço “vazio” que produz a resistência e,
consequentemente, atrapalha o trabalho do esquecimento sobre a lembrança. Aqui,
a falta denuncia, o silenciado significa. Neste caso, a morte do ente querido fica
sempre à deriva pela falta de um corpo simbolizante, de um ritual de luto que não
aconteceu e que possibilita a atualização constante do trauma e,
consequentemente, a entrada do sujeito no campo do Real. Com o advento do
acontecimento discursivo que se dá através do Relatório Final da CNV, só agora se
abre uma possibilidade para o “NÓS”: a de “subjetivação de uma perda” (BALDINI,
2018, p. 27).

Assim, o testemunho instaura a possibilidade de dizer o impossível (ainda que


nem tudo possa inscrever-se), de reelaborar e discursivizar uma memória na
tentativa de que o indizível seja capturado pelo simbólico e possa significar algo
através de uma representação que possa dar sentido à vida. Portanto, o testemunho
aqui invocado se instaura paradoxalmente entre a necessidade de representação de
uma memória – de dizer e de ser desta lembrança – e a sua própria impossibilidade
de total inscrição. Trataremos desta questão com maior profundidade ainda neste
capítulo.

Mesmo lançado em um passado que se recusa a ir embora, o ato de dizer


pode conduzir o sujeito, de certa maneira, a (re)viver um outro estado (assumir uma
posição-sujeito) anterior à situação de perda, ou seja, a sair do sofrimento gerado
através do evento traumático, causa primeira da justiça de reparação. Diante da
chegada dos restos mortais do ente querido, abre-se a possibilidade de preencher,
141

de certa maneira, aquele espaço deixado vazio, ou seja, “a ausência da coisa


lembrada” agora assume uma “presença na forma de representação” (RICOEUR,
2007 [2000], p. 72) simbólica e possibilita só agora a ruptura do caráter perene da
morte que se estabeleceu perante o desaparecimento forçado – por ação dos
agentes do Estado – daquele ente querido.

Para nós, o desaparecimento forçado denunciado no testemunho caracteriza-


se, portanto, como um mecanismo político de esquecimento e silenciamento da
memória – análogo ao que se tentou fazer com a memória de Clémentis – e de
apagamento dos vestígios da vida e mesmo da morte daqueles que eram contrários
ao Regime Militar. Entretanto, conforme podemos observar na voz do testemunho
acima, toda forma de apagamento deixa, de alguma forma, um rastro mínimo que
seja da memória (na sociedade e, principalmente, no registro mnêmico dos
sobreviventes), de modo que o desaparecimento forçado (o exílio, o assassinato, a
ocultação de cadáver se caracterizam como mecanismos de apagamento de rastros
em função do esquecimento político-ideológico) se institui na ilusão de que os
crimes praticados pelos militares, nos porões da Ditadura Militar, jamais seriam
revelados e jazeriam para sempre protegidos na escuridão.

Neste caso, conforme podemos observar, a estratégia utilizada para promover


o apagamento de rastros é hedionda porque se busca – através da interdição do
dizer – produzir o esquecimento social, político, histórico e ideológico de uma
lembrança, de uma causa, de uma luta. Como cada forma de violência/tortura
imprime um rastro diferente sobre o sujeito (a “tábua de cera”), o esquecimento
também pode assumir contornos e nuances diferentes. De todo modo, podemos
considerar, a partir do que precede, que o apagamento de rastros afeta diretamente
a preservação da memória através da manipulação e, consequentemente, as
marcas deixadas por aquele acontecimento histórico.

Aqui, a prática de ocultação de cadáver, em última instância, assume a forma


do apagamento (tentativa de esquecimento) de um rastro de memória que poderia,
por assim dizer, denunciar a tortura e a execução sumária praticadas naquele
acontecimento histórico. Esta era, aliás, uma ação comum por parte dos militares
nas condições de produção da Ditadura Militar, fazendo, por assim dizer, com que a
falta ainda hoje gere a lembrança e se sobreponha sobre o esquecimento. Tal jogo
142

não se dá de qualquer maneira, mas se dá justamente pela presença constitutiva de


tal falta, por uma ausência que foi imposta (“Eu já acostumei sem ele, só que
nunca acostumei com a maneira como ele morreu”). O fato de não se conformar
(se revoltar) com a forma como se deu a morte de Epaminodas nos porões da
Ditadura Militar instaura o ponto que atrapalha, por assim dizer, o trabalho do
esquecimento político sobre aquela memória. Daí configurar-se, no testemunho,
uma luta da memória contra o esquecimento e, sobretudo, “[...] significa o
esquecimento como um vestígio da censura que ainda preside o dizer [...]”
(DALTOÉ, 2016a, p. 49) do sujeito no presente, ou seja, o testemunho dá forma à
censura que se lançou sobre o modo de dizer dos opositores à Ditadura Militar.

Além disso, através deste jogo, percebemos uma espécie de medo do


esquecimento (um esquecimento insuportável) porque aí não se instituiu – nos
termos de Nora – um “Lugar de Memória” (através da lápide, do jazigo que
representa e corporifica a memória) para preservar a existência simbólica da
lembrança daquele ente querido: (“[...] colocar uma placa assim – eu quero que
bote uma bem grande, com letras bem legíveis, bem visíveis: „Aqui jaz
Epaminondas e dona Avelina‟”). Eis aí, novamente, a relação complexa entre a
memória e o esquecimento: por um lado, o desejo da lembrança, a possibilidade de
dar um destino digno à memória de um ente querido; por outro lado, o desejo
também do esquecimento perante um trauma34 no contexto de violência, o
esquecimento que Nietzsche35 (2009 [1887]) defende como necessário porque é
uma questão de “saúde” para o sujeito, ou o esquecimento almejado por Primo
Levi36 (1988 [1947]) como a possibilidade também do sujeito seguir em frente, de ser
capturado por um devir e assim virar a página de uma história de dor e sofrimento
através da catarse. O túmulo representa, assim, o último lugar simbólico onde
aqueles que foram mortos pelos militares podem, somente agora, descansar, e este
direito – que foi negado aos mortos que lutaram contra a Ditadura Militar –, erige

34
O termo trauma é forjado no campo da Psicanálise e “designa a sequela produzida por um evento
desorganizador das defesas psíquicas. Os sobreviventes de grandes catástrofes naturais, assim
como as vítimas de formas extremas de violência, não conseguem superar o terror dessas
experiências porque elas não se enquadram nas estruturas simbólicas que permitem a elaboração
psíquica. Assim, as marcas do sofrimento traumático tendem a se atualizar durante a vida dessas
vítimas e são transmitidas inconscientemente a seus descendentes. O trauma só pode ser
compreendido e descrito a partir do modo como a violação e a violência são incorporadas,
reproduzidas e vivenciadas” (BRASIL, 2014, p, 426-427).
35
Genealogia da moral: uma polêmica.
36
É isto um homem?
143

como um dever moral que precisa ser assegurado pelos sobreviventes. Seguir em
frente, aqui, assume uma posição condicional: só é possível diante da significação,
em certo limite, da verdade, causa primeira da CNV.

Por seu turno, na sequência, encontramos a pista que nos aponta para um
desejo de “esquecimento” por parte do “NÓS” – “EU” ou por um direito “ao
esquecimento” que só é possível agora pelo (re)estabelecimento do ritual do luto: o
velório, o sepultamento, diante do trabalho da CNV que possibilitou a localização e o
reconhecimento dos restos mortais de Epaminodas: (“[...] se forem realmente os
restos mortais dele para trazer para cá, para mim é uma vitória. Para mim é
uma maravilha”). Essa pista, ainda, retoma outro princípio fundador da CNV e que,
em nosso gesto de leitura, aponta para outro mecanismo que é invocado para o
rompimento, em certa medida, com a memória da dor: o desejo de justiça.

Assim sendo, a própria organização discursiva do testemunho marca a voz de


um sujeito que joga – em nosso gesto de interpretação – com um duplo jogo de
subjetivação do sujeito: a desidentificação e a identificação. Primeiramente, porque
podemos entender a presença de um mau sujeito que rechaça as circunstâncias que
conduziram o outro à morte, causa primeira dos saberes da FD autoritária sobre a
qual se inscreveu o Regime Militar –; em segundo lugar, porque agora o sujeito se
depara com uma outra possibilidade de subjetivação através do bom sujeito perante
o ato de testemunhar, pela presença de um efeito de verdade, pelo desejo de
justiça, do luto, do “esquecimento”, como causas daquilo que estamos considerando
como saberes próprios de uma FD jurídica (que determina aqui um discurso na
busca por “justiça” e por “verdade”) sobre a qual se inscreve a CNV.

A SD-2, por sua vez, marca discursivamente a práticas de tortura física –


(“depois da palmatória, eu fui pro pau de arara”) –, psicológica – (“Foi o meu
primeiro contato com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar,
esperar para apanhar”) –, simbólica – (“„Tira a roupa‟, „Terrorista‟, „Filha da
puta‟”), a que eram submetidas as vítimas dos torturadores no âmbito da Ditatura
Militar brasileira, principalmente quando as vítimas eram mulheres. Mas vamos além
disso. O primeiro ponto que queremos destacar, neste recorte, é novamente a
organização do sujeito do discurso que aí se configura. Nesse sentido, entendemos
que temos aqui a modalidade de subjetivação que institui, de certo modo, o discurso
do mau sujeito, ou seja, o lugar daquele que questiona os saberes da FD autoritária
144

em que se inscreve a Ditadura Militar: (“Eu dei meu nome verdadeiro”). Neste
caso, consideramos que dizer o nome verdadeiro ao outro (“menina grávida”) implica
assumir a própria identidade e, ao mesmo, assumir os riscos de colocar-se – através
da desidentificação – contra um discurso outro: o da coerção, da violência, da
interdição e do silenciamento enquanto saberes que caracterizam a FD na qual os
militares estavam filiados: (“[...] Xi, você está ferrada”). Mais que isso: dizer o nome
verdadeiro – na Ditadura Militar – se caracteriza, na espera da tortura, como um ato
de coragem, uma tomada de posição, logo de resistência de um sujeito que se
levanta contra a imposição de uma ideologia dominante.

Assim, ao dizer o verdadeiro nome, o sujeito produz um efeito de sentido (de


afrontamento que marca uma posição-sujeito de resistência) que se antagoniza com
outro efeito de sentido esperado (posição-sujeito de submissão) e, fazendo isso,
marca, em seu discurso, uma posição contrária àquela que o Regime Militar, por
força da imposição, queria que os interrogados assumissem: de “terrorista”, de
“inimigo” da nação, de delator. O nome representa, assim como o “EU” que assume
a autoria do seu testemunho, um traço de memória [Lugar de Memória que organiza
o modo de dizer do/sobre o sujeito] e de constituição da identidade do sujeito.
Portanto, dizer o nome implica, acima de tudo, impregnar a “tábua de cera” com um
rastro profundo de memória que é capaz, por assim dizer, de resistir ao
esquecimento através da tomada de posição do sujeito que assume para si a
identidade através do “EU”).

Como no “tribunal” de exceção (à espera da tortura) o sujeito não pode se


impor, a violência é inevitável até que o sujeito enuncie os “sentidos proibidos” (que
se inscrevem numa FD contrária à dos militares) e fale aquilo que seus algozes
querem ouvir. Aliás, este é outro ponto que se coloca em funcionamento aqui: o
silenciamento através da negação discursiva (INDURSKY, 2013 [1997]) como marca
da heterogeneidade do testemunho. Expliquemo-nos melhor por meio de um
movimento parafrástico que é possibilitado pela presença constitutiva de um ponto
de deriva37 que acarreta a transferência de efeito de sentido no interior do
enunciado. Funciona assim:

37
Para Pêcheux “[...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de torna-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro [...] Todo enunciado,
toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-
145

“Eu dei meu nome verdadeiro”

“Eu [NÃO] dei meu nome verdadeiro”


Esquema 1. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Conforme podemos observar, por meio de operações sintático-semânticas no


eixo do enunciado, o ponto de deriva produz um efeito metafórico diferente no fio do
discurso que, por sua vez, é silenciado porque entendemos aí a configuração de um
sujeito que tem seu modo de dizer afetado pelo esquecimento, bem como apresenta
uma forma-sujeito inscrita numa FD da resistência (causa do primeiro enunciado)
que pode promover uma desidenticação (mau sujeito) com os saberes da FD militar
(causa do segundo enunciado). Na primeira organização, por meio do apagamento
do elemento de negação, verificamos o deslizamento de sentido no testemunho que
aponta, portanto, para outro discurso (sentido) que traz consequências para o sujeito
nas condições de produção da Ditadura Militar porque, neste caso, o sujeito assume
a responsabilidade pelo seu ato de dizer por meio do “EU”.

Com efeito, no jogo entre afirmar/negar reverbera um sentido outro intricado


no testemunho do sujeito e, sobretudo, o funcionamento discursivo da negação
demarca aquilo que não pode ser dito, que não pode ser formulável por
determinações históricas e ideológicas. A negação discursiva, assim, determina as
fronteiras entre os discursos que são contrários ideologicamente, ou seja, que se
instauram pelo choque de FDs antagônicas e, por isso, produzem efeitos de sentido
diferentes dependendo do deslizamento da posição-sujeito que possibilita ao sujeito
ora enunciar de uma FD ora enunciar de outra.

Diante disso, observamos no testemunho a presença de dois discursos que,


do ponto de vista da constituição e do modo como se colocam em funcionamento,
são opostos porque estão filiados a duas FDs distintas na disputa pelo sentido: a FD
dos militares (marcada pela intolerância) e a FD do testemunho (marcada pela
resistência). As relações sustentadas por FDs antagônicas pressupõem uma lógica
que perpassa a contradição – constitutiva – que se inscreve numa diferença que se
produz justamente por meio da equivalência. No caso dos enunciados que

sintaticamente determinada) de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar a interpretação”


(PÊCHEUX, 2012a [1983], p. 53).
146

organizam o testemunho, afirmação e negação são faces constitutivas de um


mesmo processo porque para se “dizer o nome” (afirmar) é necessário que se
reconheça antes a presença latente da negação (negar o nome ou dizer outra coisa
no lugar dele) como o avesso do mecanismo de afirmação. Aqui, o ponto de deriva
põe em movimento a relação complexa entre a “verdade” e a “mentira” que entrava
em cena na sessão de interrogatório e tortura.

O jogo da verdade é, pelo viés ideológico, sempre muito perigoso. Como não
se pode escapar do efeito ideológico, há sempre a possibilidade de que sentidos
diferentes (e antagônicos) se materializem na denominação do que seja “a verdade”.
Para pensar sobre isso, algumas questões se impõem: se um sujeito colocado em
“A” julga ser detentor da verdade, o que restaria para o sujeito colocado em “B” já
que não existe meia verdade e nem meia mentira? Quais critérios poderíamos
utilizar para deliberar sobre quem, de fato, estaria com a verdade em dadas
condições de produção? Como descobriríamos os “traidores” da verdade? E
carecemos decidir. Em tempos de “pós-verdade” no cenário político atual, torna-se
imperativo que a busca pela “instituição” e preservação da verdade seja
intensificada, sobretudo quando se trata de uma verdade histórica. Nossa decisão,
por sua vez, estará sempre filiada a um complexo jogo de formações ideológicas
que marcam a nossa posição-sujeito e, consequentemente, as nossas
decisões/escolhas discursivas que podem ser de diferentes instâncias sociais:
jurídicas, éticas, morais, políticas, profissionais, pessoais etc.

Não importa. Seja qual for a nossa decisão, algo sempre vai nos escapar. E
esse escapável é sempre da ordem do impossível. Portanto, o nosso
reconhecimento de qualquer indício de “verdade” ou “mentira” é sempre e apenas
uma possiblidade de tal “verdade” ou de tal “mentira” no fio do discurso sob o efeito
da ilusão daquele que lhe é porta-voz. Esta constatação, portanto, poderia colocar
tanto “A” quanto “B” numa posição arriscada, isto é, sob suspeita. Entendemos,
assim, que decidir sobre “verdade” e “mentira” implica uma questão discursiva, logo
uma posição político-ideológica sobre aquilo que o sujeito diz. A verdade, em suma,
é aqui entendida como um efeito que se (re)produz discursivamente. Portanto, neste
caso, podemos compreender a verdade como um lugar, ou melhor, como uma
posição que se constrói e se preenche por dado sujeito.
147

Assim, podemos entender que, ao optar pela “verdade”, sentidos silenciados


ou apagados podem surgir a partir de nossas escolhas, o que nos sugere – em
nossa leitura – que o testemunho em análise é constituído e atravessado
simultaneamente pela opacidade e pelo equívoco e, ao fazer trabalhar o equívoco,
percebemos que a voz do testemunho aponta para um algo a mais. Dizemos, assim,
que o testemunho pode se constituir por meio de um duplo efeito ideológico:
primeiro, através de um efeito de transparência porque o sujeito tem a ilusão de que
está determinando o que é, com efeito, a “verdade” para desconstruir a “mentira”
perante à sociedade; em segundo lugar, opaco porque também pode nos direcionar
para outros sentidos, logo para outras “verdades”: o jogo da “mentira” engendrado
pelos militares nas condições de produção da Ditadura Militar.

De todo modo, a busca pela verdade ou o desejo de verdade aponta para as


relações de poder na sociedade. Neste sentido, a reflexão proposta por Foucault é
relevante quando assevera que:

Ora, essa vontade de verdade como os outros sistemas de exclusão,


apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo
reforçada e reconduzida por toda uma espessura de práticas [...]
Enfim, creio que essa vontade de verdade assim apoiada sobre um
suporte e uma distribuição institucional, tende a exercer sobre os
outros discursos [...] uma espécie de pressão e como que um poder
de coerção [...] como se para nós a vontade de verdade e suas
peripécias fossem mascaradas pela própria verdade em seu
desenrolar necessário [...] E a razão disso é, talvez, esta: [...] aquele
que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade
de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que
está em jogo, senão o desejo de poder? [...] E ignoramos, em
contrapartida, a vontade de verdade, como prodígios maquinaria
destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa
história, procuram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la
em questão contra a verdade, lá justamente onde a verdade assume
a tarefa de justificar a interdição [...] (FOUCAULT, 2012 [1971], p. 16-
20).

Assim procedendo, compreendemos que, se há o intuito de se jogar com a


“verdade”, é porque, na doutrina da Ditadura Militar então vigente, jogava-se um jogo
de mentiras que, por sua vez, subvertia a “verdade” no cenário político do Brasil. Por
outro lado, já que com a autodenominação de “Contrarrevolução Democrática”, a
partir de 1964, os militares pretendiam instalar a “verdadeira” democracia no Brasil
há, no testemunho, outro movimento ideológico que nos leva a entender que, de
certa maneira, na democracia não pode haver espaço para a mentira e, portanto,
148

deve-se jogar, na medida do possível, sempre com a verdade. Neste caso, ao


invocar a verdade, o sujeito do testemunho busca desmascarar a mentira que
ocupou por vários anos as páginas da nossa história.

Diante disso, Democracia e Ditadura [“verdade” e “mentira”] só podem ocupar


e significar no mesmo espaço discursivo através do trabalho da ideologia, uma vez
que a contradição pode ser materializada pela heterogeneidade da ideologia. O
deslocamento de efeito de sentido só é possível da posição social que o sujeito
ocupa [a testemunha] e, consequentemente, da instituição de um modo de dizer que
agora é, de certo modo, legitimado pelo Estado através da CNV. Por isso, um efeito
de sentido para “verdade” pode se definir do lugar do Direito, logo do discurso
jurídico que legitima a testemunha para enunciar deste lugar social. Nesse processo
de legitimação, encontramos diversas formas de apagamento do outro (dos sujeitos
e dos sentidos) e isso porque, por mais paradoxal que possa parecer, todo discurso
se constitui a partir de outro que se nega ideologicamente. É justamente nesse
ponto, concordando com Pêcheux (1990 [1982], p. 17), que se provoca uma
“rachadura no ritual”.

Daí entendermos o porquê de – muito tempo depois e em outras condições


de produção – a Presidenta Dilma Rousseff38 afirmar que se orgulhava de “ter
mentido” durante as sessões de tortura: “Na democracia se fala a verdade. Diante
da tortura quem tem coragem, dignidade, fala a mentira”. Na conjuntura social do
Regime Militar a prática “da mentira”, durante o interrogatório e a tortura, produz,
pelo menos, dois efeitos de sentido diferentes se jogarmos com as condições de
produção e que conduziam ao mesmo fim: em primeiro lugar, porque dizer “a
verdade” lá poderia significar a morte tanto do próprio interrogado quanto de outras
pessoas contrárias à “Revolução” dos militares, inclusive de parentes e amigos; em
segundo lugar, porque não há como mensurar a “verdade” e a “mentira” numa
sessão de tortura e podemos nos questionar: quais os critérios que os militares
utilizavam para entender em um depoimento as marcas opacas da “verdade” ou da
“mentira”?

E uma possível resposta nos direciona apenas para um espaço: a crueldade


de um regime totalitário que se sustenta através da arbitrariedade. A mentira que –

38
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tiyezo1fLRs
149

em dadas condições sociais e históricas de produção – pode ser considerada como


algo condenável, transforma-se em símbolo de resistência, logo de coragem perante
a tortura e a violência. Diante disso, compreendemos também o porquê de Dilma
Rousseff afirmar que, na democracia, deve-se sempre jogar com “a verdade”, mas
diante da tortura quem tem coragem e dignidade joga com “a mentira”, logo com a
negação de uma “verdade”. Daí o estranhamento e a inaceitabilidade, num cenário
de democracia, de um enunciado como este porque, sem levarmos em consideração
as condições de produção e a filiação deste enunciado a uma rede de memórias, a
posição ética do sujeito que o enuncia pode ser questionada na sociedade, o que
nos sugere que a FD em que se inscreve a “verdade” é diferente da FD em que se
inscreve a “mentira”. Dito ainda melhor, cada FD apresenta o seu respectivo efeito
de sentido para “mentira” e outro para “verdade”, uma vez que os movimentos da
ordem do mau sujeito são recorrentes em toda prática discursiva.

Pois bem, para avançarmos no movimento de análise, vejamos as próximas


SDs que agora jogam com uma relação subjetiva de desidentificação do “EU” –
“NÓS” com a forma do testemunho “ELES”.

4.1.2 Movimento de desidenticação: “EU” e “NÓS” versus “ELES”

Neste segundo gesto de análise, observamos o funcionamento da


desidentificação do sujeito enunciador em relação à forma do testemunho “ELES”.
Tal mecanismo de subjetivação ocorre porque “EU” e “NÓS” não se inscrevem na
mesma FD a que “ELES” pertencem. Além disso, tomamos este bloco como
referência para pontuar o modo como a voz do testemunho organiza o processo
verbal ao enunciar. Vejamos:

 TESTEMUNHA-339
 SD-3: “Começaram a me bater. Eles me colocaram no pau de arara. Eles
me amarraram. Eles me deram batidas. Deram choque. Eles começaram

39
Depoimento de Karen Keilt. Karen vivia nos Estados Unidos desde a década de 1970. Em visita
ao Brasil foi levada a força com o marido para o Departamento Estadual de Investigações Criminais
de São Paulo (DEIC-SP), em 19 de maio de 1976. Ambos só foram libertados no início de julho, após
o pagamento de um “resgate” de 400 mil dólares.
150

dando choque no peito. No mamilo. [...] Eu desmaiei. [...] Eu comecei a


sangrar. Da boca. Sangrava de tudo quanto era... da vagina, sangrava.
Nariz, boca... E eu estava muito, muito mal [...]” (BRASIL, 2014, p. 405,
grifos nossos).

 TESTEMUNHA-440
 SD-4: “[...] A maioria deles ia ao Lar Santana nas missas e conhecia a
irmã Maurina. Então eles ficavam assim. Ele agarrava ela, mas à
tardezinha, à noite, quando todo mundo tinha ido embora, entendeu? Ele
ia na cela e tirava ela. E aí, uns meninos que estavam de plantão, um
olhava pro outro, é agora mesmo. Eles entravam na cela, abriam a porta”
(BRASIL, 2014, p. 406, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-541
 SD-5: “Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque... quer dizer pior,
era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas [...]
existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na
vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo, então... eram as coisas
que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla
porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram,
obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da
militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura” (BRASIL,
2014, p. 407, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-642
 SD-6: “Então, eles entraram. Dois homens chegaram, eles não deram
ordem de prisão para o meu pai [...] Eles estavam à paisana. Não
estavam vestidos de farda. E a gente achou esquisito a forma como
aqueles homens estavam sendo conduzidos algemados. Papai levantou,
nós levantamos [...] A gente procurou informação. Aí foi quando a gente
veio saber que o que estava acontecendo porque todas aquelas pessoas,
saber que eram amigas do seu Epaminondas, foram presas porque foram
consideradas como comunistas. E ele passou cinco dias. Sem saber
notícia, porque ficou incomunicável [...]” (BRASIL, 2014, p. 381-383, grifos
nossos).

40
Depoimento de Áurea Moretti Pires à CNV. Ela relembra que ficou presa com a Irmã Maurina
(diretora do orfanato Lar Santana em Ribeirão Preto/SP) e que presenciou a violência sexual
praticada contra a religiosa.
41
Márcia Bassetto Paes relata, em depoimento prestado a CNV, as torturas que sofreu quando foi
presa com Celso Giovanetti Brambilla pelo Deops/SP, em 28 de abril de 1977.
42
Depoimento de Maria de Jesus Sousa Santos, que, em 22 de outubro de 2013, contou como foi o
padecimento da família de Antônio Alves Rodrigues − preso sem ser militante, apenas porque era
amigo íntimo de Epaminondas Gomes de Oliveira.
151

Pensando nos processos de subjetivação, Pêcheux (2010 [1969]) estabelece


que o jogo de projeções imaginárias mobiliza as relações que os sujeitos constituem
uns com os outros e parte, inicialmente, da posição ocupada pelo sujeito enunciador
de um discurso em relação à posição que o outro ocupa na esfera social. Portanto,
tal representação imaginária (partindo do ponto de vista do sujeito enunciador)
exige, pelo menos, dois sujeitos: o primeiro, que ocuparia uma posição “A”; e, um
segundo, que ocuparia uma posição “B”. O autor nos apresenta essa relação em sua
Análise Automática do Discurso a partir do esquema que reproduzimos a seguir:

Figura 9 – Esquema das relações imaginárias entre sujeitos

Fonte: Michel Pêcheux (2010 [1969], p. 82).


Conforme podemos observar no quadro acima, na primeira coluna vertical,
temos a designação imaginária para o sujeito colocado em “A” e “B”; na coluna
central, temos a significação da expressão ou o efeito metafórico correspondente às
posições-sujeito colocadas anteriormente; e, na última coluna, temos o processo
(imaginário) de interrogação e, ao mesmo tempo, de antecipação de uma “resposta”
para o sujeito colocado na posição que lhe corresponde. Na sequência, Pêcheux
introduz, neste jogo de relações, um outro subconjunto denominado de “R”, que, por
sua vez, também determinaria os processos discursivos. Adaptando e analisando
esquematicamente o quadro completo teríamos:

 I-A [A] = a imagem que o sujeito enunciador faz de si mesmo;

 I-A [B] = a imagem que o sujeito enunciador faz do outro;


152

 I-A [R] = a imagem que o sujeito enunciador faz do objeto discursivo;

 I-B [B] = a imagem que o outro faz de si mesmo;

 I-B [A] = a imagem que o outro faz do sujeito enunciador;

 I-B [R] = a imagem que o outro faz do objeto discursivo.

Esquema 2. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa a partir de Pêcheux (2010 [1969], p. 82).

No caso dos testemunhos acima, há um jogo de projeções imaginárias que


estabelece um forte mecanismo de desidentificação com “ELES” e que podemos
organizar, a partir do que propõe Pêcheux, por meio do quadro a seguir:

Lugar de identificação 1: “EU” que me vejo imaginariamente como “ELES”;


(Casos em que o sujeito não resiste à tortura e entrega o outro aos torturadores).
Lugar de desidentificação 2: “EU” que sou imaginariamente contra “ELES”;
Lugar de (des)identificação 2: “EU” que integro imaginariamente o “NÓS” contra
“ELES”;
Lugar de (des)identificação 3: “EU” que me reconheço imaginariamente como
“NÓS”, contudo sou percebido imaginariamente como “ELES”;
Lugar de contraidentificação 4: “NÓS” que somos concebidos imaginariamente
contra “ELES”.
Esquema 3. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Na SD‟s acima, portanto, podemos observar marcadamente o mecanismo de


desidentificação através do apagamento do referente:

 “Eles me colocaram no pau de arara. Eles me amarraram. Eles me


deram batidas”. SD-3.
 “E aí, uns meninos que estavam de plantão, um olhava pro outro, é
agora mesmo”. SD-4.
 Eles usaram, obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto
vínculo, além da militância, que seria um vínculo afetivo também, para
tortura”. SD-5.
153

 “Então, eles entraram. Dois homens chegaram, eles não deram ordem
de prisão para o meu pai [...] Eles estavam à paisana”. SD-6.

Em todos os casos acima, temos o jogo da não-pessoa discursiva [“ELES”]


que aponta para o processo político-ideológico de indeterminação discursiva dos
“militares”, que, por sua vez, “corresponde ao referente lexicalmente não-
especificado” (INDURSKY, 2013 [1997], p. 67). Dessa forma, pensado
discursivamente – porque consideramos que o pronome anafórico aqui não faz
remissão só a um elemento lexical posto antes na superfície textual, mas a um saber
que se inscreve antes de qualquer cogitação na memória discursiva – o
processamento dêitico trabalha, ao mesmo tempo, com uma dupla forma de relação
com o outro: a) há um efeito de sentido que se instaura pelo apagamento político-
ideológico do outro [sujeito-militar]; b) há um efeito de sentido que se produz pela
determinação (apropriação) político-ideológica do outro [discurso]. A construção
discursiva de um referente aqui faz trabalhar, pois, três instâncias: 1ª) a do
assujeitamento (do sujeito que se coloca em “A” e do sujeito que é colocado em “B”);
2ª) a inscrição de “A” & “B” em determinada FD; 3ª) o jogo que se produz através
das formações imaginárias que são postas em agência no testemunho.

Dito de outra forma, o movimento dêitico-discursivo (INDURSKY, 2013


[1997]) sugere a emergência de uma memória que não se recupera completamente,
que é silenciada por questões ideológicas e que constitui uma certa ruptura em
relação ao outro no testemunho, ou seja, jogando-o para fora da FD em que se
inscreve o sujeito do testemunho. Neste jogo de memória, há, ao mesmo tempo,
retomada e apagamento. Assim procedendo, o testemunho produz um efeito de
sentido que se estabelece através de um jogo de forças antagônicas entre o “EU” (a
voz do sujeito que se inscreve no testemunho), “ELES” (os militares e toda a
truculência do Regime Militar) e o “OUTRO” (os militantes [“comunistas”] contrários à
Ditadura Militar e alvos da tortura).

Tal funcionamento – no entendimento autorizado por nossa perspectiva


teórica –, não se dá apenas por um mero processo de organização da língua
(anáfora, catáfora, índice de indeterminação etc.), mas, sobretudo, através de um
mecanismo ideológico que aponta, discursivamente, para o apagamento e,
consequentemente, para a negação do outro, daquele que o sujeito precisa manter a
154

distância e, dessa maneira, assume uma posição-sujeito que se exclui do grupo a


que “ELES” pertence. Assim, o efeito de (des)identificação se produz, nos dizeres
analisados, através da negação que afeta a constituição da identidade do “EU”
(sujeito) e o seu modo de dizer o outro que se marca pela “ausência do que qualifica
especificamente o „eu‟” (BENVENISTE, 1995 [1956], p. 253), causa primeira da não-
pessoa discursiva “ELES”. Portanto, a utilização do termo “ELES”, enquanto forma
material do testemunho, sugere que aí se inscreve um sistema de valor ideológico
que se instaura justamente pela não nomeação do outro (militares) no âmbito da FD
da resistência que governa o testemunho.

Além disso, a não nomeação deste outro, que é recuperado pela memória
discursiva, apresenta-nos o indício de que o sujeito que se inscreve no testemunho
tem um comportamento singular uma vez que, ao discursivizar a memória da
Ditadura, busca romper com o discurso [a memória institucional] já estabilizado pelos
militares enquanto representantes de um Aparelho Repressivo e Ideológico do
Estado, justamente porque, diante da tortura que produz o trauma, há um
recalcamento deste outro. Voltaremos a tratar desta questão quando analisarmos os
efeitos da (não) denominação em relação ao “OUTRO”.

Diante desse jogo, o testemunho nos autoriza a sustentar, juntamente com


Cazarin (2004, p. 196), que o “EU” aqui “não enuncia do mesmo lugar” ou posição
discursiva que “ELES”, gerando, por assim dizer, um conflito de identificação com
“ELES”. Tal processo de subjetivação é decorrente, a partir de nosso gesto de
leitura, de uma marca singular do testemunho, ou seja, de sujeitos que estiveram
diretamente (ou indiretamente, no caso dos familiares e amigos) envolvidos –
enquanto vítimas – na/com a prática de tortura no âmbito da Ditadura Militar. É
justamente esse vínculo identitário, através da memória, que mobiliza o processo de
desidentificação com “ELES”. Não podemos deixar de pontuar que o fenômeno de
identificação e/ou desidentificação com uma FD é determinado pela ideologia e,
portanto, é ela também que orienta as relações que se estabelecem entre os sujeitos
– representados aqui pelas formas do testemunho – e os lugares sociais ocupados
por eles.

Além disso, o jogo entre as formas do testemunho põe em funcionamento


uma memória que se assenta sobre a memória do outro, conforme nos ensinou
155

Halbwachs, ou seja, a memória coletiva se legitima porque é sempre compartilhada


a partir da memória do outro: (“[...] A maioria deles ia ao Lar Santana nas missas e
conhecia a irmã Maurina” – SD-4). Assim, é neste ponto que o testemunho constrói
uma memória coletiva porque permite o estabelecimento de uma relação de
identidade do sujeito com outro através do testemunho. Ao invocar a cena de
violência a que a irmã Maurina era submetida, o sujeito denuncia, a partir de um
vínculo identitário com a memória do outro, a violência sexual a que todas as
mulheres eram submetidas na tortura, ou seja, institui-se aí um sujeito que ocupa a
posição de testemunha do outro. Além disso, a nomeação do outro – irmã Maurina –
traz uma outra implicação significativa no testemunho: a necessidade de retirar do
anonimato aqueles que, durante tantos anos, foram obrigados a ocupar o espaço
onde jaz o silenciamento.

Assim, o sujeito narra e recupera a memória do outro que, ao mesmo tempo,


o constitui e, com esse movimento, o sujeito assume a voz do outro [a condição de
porta-voz] que não pode falar por alguma razão. Neste caso, ainda, podemos
compreender que o testemunho possibilita a instituição de um sujeito que pode
ocupar três posições-sujeito: a) a posição-sujeito daquele que é testemunha-alvo da
prática de violência; b) a posição sujeito daquele que é testemunha-partícipe da
violência que recai sobre o outro; c) a posição-sujeito daquele que é testemunha da
herança de tortura que é legada a outras gerações.

Na SD-5, a voz do testemunho denuncia que o tratamento dado às mulheres


era diferente daquele dispensado aos homens: (“Na questão da mulher, a coisa
ficava pior porque... [...] existia uma intenção da humilhação enquanto mulher.
Então, o choque na vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo [...]”).
Neste caso, a diferença na tortura da mulher não é apenas por uma questão
biológica, mas pela posição social que a mulher ocupava (ocupa?) na sociedade.
Daí a mulher ser o alvo de uma tripla violência: enquanto ser humano [violência
física], enquanto ser mulher [violência simbólica], além da violência psicológica. Em
cada testemunho, a desigualdade entre homens e mulheres, vítimas da tortura, é
posta à prova porque invoca a diferença entre os papéis sociais que são a eles
atribuídos historicamente. Observando cada testemunho, é possível perceber que
ainda existe a presença do medo ao falar sobre a tortura e, consequentemente, na
recuperação da memória da violência. O testemunho, assim, é constituído por uma
156

voz entrecortada, fragmentada, mesmo diante das condições de produção que


permitem agora a formulação de um dizer outro para o Regime Militar.

Vamos tomar a SD-6 ainda como referência para pontuar um aspecto verbal
relevante para a construção discursiva do testemunho. Nesse sentido, o verbo
flexionado no pretérito imperfeito do indicativo – “[...] Eles estavam à paisana. Não
estavam vestidos de farda. E a gente achou esquisito a forma como aqueles
homens estavam sendo conduzidos algemados” – lança o sujeito do discurso que
se inscreve no testemunho em um evento do passado que não foi concluído. O
efeito de sentido que o imperfeito produz é justamente o de paralisar temporalmente
o sujeito dentro de uma experiência-limite que não tem fim. Neste caso, o sujeito que
se lembra narra quadro a quadro o momento vivido como algo que é contínuo, ou
seja, que está em curso, inacabado. Assim, a questão temporal determina, em
nossa leitura, a lembrança de um sujeito que, de certa maneira, se perdeu. Em toda
a narrativa memorial, observamos que há uma constante nuance entre o passado e
o presente que se materializa no eixo da formulação e, neste caso, a flexão verbal
se configura como uma pista contundente que aponta para um jogo de memória que
se inscreve entre o passado e o presente do “EU”, ou seja, no testemunho o
passado se instaura como causa daquilo que o sujeito é no presente.

A flutuação temporal pode ocorrer porque o sujeito ainda está preso à


extrema violência que sofreu no passado e que, consequentemente, produziu um
trauma. Daí a voz oscilar, no testemunho, entre passado e presente, ou seja, o
envolvimento com a tortura que ocorreu no passado, mas que ainda é sentida no
presente, sobretudo, quando se faz referência às sequelas. Estamos, assim, diante
de um jogo de espelhos onde passado e presente se fundem na busca pela
alteridade, pela mudança, pela transformação de uma memória, ainda que isso não
seja completamente possível. No vai e vem entre o passado e o presente é
justamente o aspecto temporal do testemunho que estabelece uma interface entre o
já vivido e o lembrado. Ao realizar tal alternância temporal no testemunho, o sujeito
marca, na discursividade, a presença de uma memória indelével que está latente na
vida do sujeito e produz ressonância em seu corpo, em seu presente, como uma
memória petrificada. E mais que isso, a fusão temporal, através dos processos
verbais, pode nos sugerir que o sujeito sofre por uma dupla condição:
157

primeiramente, por estar preso a um passado de violência e dor; em segundo lugar,


porque luta contra o passado na tentativa de libertar-se dele.

A relação de apagamento (e recuperação) do outro pode ser compreendida


através do cruzamento do eixo da formulação com o eixo da constituição, a saber: o
mecanismo de apagamento se dá, no eixo da formulação, através de formas verbais
que organizam o testemunho no pretérito mais-que-perfeito – (“Então, eles entraram
[...]”) – e no pretérito imperfeito do modo indicativo – (“Eles estavam à paisana”) –,
uma vez que representam as marcas linguísticas que apontam para o
distanciamento do sujeito enunciador do outro [“ELES”] (indeterminação ideológica
do referente); por sua vez, o processo [dêitico-discursivo] de recuperação do outro
se dá, no eixo da constituição, pelo acionamento de saberes que se inscrevem na
FD da Ditadura Militar e que capturam o sujeito-outro [“ELES”] por meio de um
processo de identificação deste com a FD que o determina.

4.1.3 O direito ao esquecimento e o dever de memória: eu quero esquecer

As SD‟s a seguir são tomadas como referência para pensarmos sobre o dever
de memória no testemunho. Conforme temos defendido ao longo do trabalho, tal
empreendimento lança o sujeito no jogo de contradição entre a necessidade de
esquecer e a obrigação moral de não esquecer. Vejamos:

 TESTEMUNHA-743
 SD-7: “Somos também sobreviventes da repressão. Perdura em nós a
memória e estamos eticamente obrigados a defendê-la, a nos
reencontrar com ela, ainda que seja doloroso. Tive a possibilidade de
sobreviver. Levo comigo a obrigação de não esquecer” (BRASIL, 2014, p.
220, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-844
 SD-8: “Eu quero esquecer. Mas eu te pergunto: qual é o profissional, na
psicologia, que vai apagar essas marcas? Não tem. Não tem [...] Olha,

43
Fala de Universindo Rodriguez Díaz, historiador e sobrevivente do sequestro em Porto Alegre
pela Operação Condor, aliança política criada entre os regimes ditatoriais do Brasil, Argentina, Chile,
Paraguai e Uruguai.
44
Testemunho de Cristina Moraes Almeida, presa pela primeira vez aos 19 anos, em 1969. Durante
as sessões de tortura, sofreu mutilações na região do tórax e nos seios e teve a perna estraçalhada
por uma furadeira (BRASIL, 2014, p. 424).
158

tacharem como torturador é um elogio. Assassino em série, sem sombra


de dúvida. Eu vou igual a uma desesperada. [...] Eu quero sair deste
capítulo. Porque eu estou vivendo como se fosse ontem” (BRASIL,
2014, p. 424).

 TESTEMUNHA-945
 SD-9: “Nao teve um dia que eu não me lembrasse do período em que
eu estive presa, não da tortura propriamente, mas de detalhes, de
acontecimentos. [...] Eu acho que a sequela maior é o medo de que
aconteça algo. E não é porque tem filhos e netos. É por você mesmo [...]
Acho que esse é o maior” (BRASIL, 2014, p. 424, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1046
 SD-10: “Ao longo dos meus dez anos de exílio, um sonho
acompanhou-me de tempos em tempos, intermitente. Repetia-se
sempre igual, com pequenas variantes. [...] Mais terrível que o
pesadelo era o levantar-se com ele, na dúvida, naquelas frações de
segundo entreabertas entre a noite e o amanhecer, sem saber se fora
apenas sonho mesmo ou despertar de uma realidade cloroformizada pela
vida [...]” (BRASIL, 2014, p. 425, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1147
 SD-11: “Ontem eu custei um pouco pra reconhecer o prédio. Foi
necessário que a gente localizasse uma coluna, que está meio
disfarçada, no meio de paredes. Só que quando nós achamos essa
coluna, que ficava junto às salas de tortura, eu reconheci o prédio.
Junto a essa coluna ficava um banco encostado. Como eram duas as
salas de tortura, e nós éramos três, eles colocavam um em cada sala, pra
tomar sessões de choque; uma das salas tinha o pau de arara, pra
pendurar no pau de arara, e o outro ficava sentado, era bem do lado,
quem sentasse nessa cadeira ouvia os que estavam sendo torturados.
Era uma maneira que eles utilizavam para que aquele que estivesse
esperando se autotorturasse [...]. No momento em que eu fui colocado
nesse banco, sempre algemado para trás, pensei: „Como é que eu posso
me livrar dessa situação? Como é que eu posso amenizar isso?‟. Então
encostei nessa coluna e disse: „Bom, é sua obrigação revolucionária,
obrigação moral de dormir‟. Aí eu dormi. [...] Porque, enquanto eu dormia,
podia sonhar [...]” (BRASIL, 2014, p. 278, grifos nossos).

A SD-7 representa o modo de organização do testemunho em torno do


compromisso ético com a memória: (“Tive a possibilidade de sobreviver [...]” e

45
Depoimento de Robêni Batista da Costa, presa em três ocasiões distintas, entre 1968 e 1973,
também não consegue esquecer.
46
Depoimento do jornalista Flávio Tavares, preso, torturado e banido do país, foi assombrado
durante uma década por um pesadelo recorrente.
47
Antonio Roberto Espinosa, depoimento a CNV, em 24 de janeiro de 2014. Arquivo CNV:
00092.000570/2014-21.
159

“Perdura em nós a memória [...]”). Diferentemente de outras configurações que o


sujeito do testemunho pode assumir, aqui se materializa uma outra posição
discursiva, ou seja, não mais a posição que institucionaliza o modo de dizer do
sujeito inscrito na FD do Aparelho Militar, mas um “NÓS” que produz um efeito de
sentido que se inscreve numa dimensão mais ampla do que a anterior: “NÓS”
[vítimas] = “SOCIEDADE”. E, portanto, todos “NÓS” temos a obrigação moral de
não-esquecer e, sobretudo, de romper com a invisibilidade que o esquecimento
produz sobre a memória. O compromisso ético com as vítimas da tortura atinge toda
a construção imaginária sobre a Ditadura Militar, logo perpassa de maneira relevante
toda a constituição do nosso corpo social. Aqui, (“Levo comigo a obrigação de não
esquecer”) representa uma prática (um gesto) política contra o esquecimento, ou
seja, eu não posso esquecer porque os outros [nós] precisam lembrar.

Diante disso, cada SD nos permite viabilizar a discussão que se sustenta


através do embate entre memória e esquecimento no testemunho. Expliquemos
melhor: enquanto em algumas SDs, por exemplo, nós temos o funcionamento de um
desejo de esquecimento necessário diante de um trauma, de uma violência extrema,
de uma falta simbólica, neste bloco nós temos justamente o contrário: o desejo de
uma espécie de sobreposição da lembrança sobre a força do esquecimento. Diante
da uma violência coletiva, ter sobrevivido implica um compromisso (social e político)
com aqueles que perderam suas vidas na tortura e, ao mesmo tempo, lança o
sujeito numa crise existencial: por que eu sobrevivi e os outros não? A culpa dos
sobreviventes (SELIGMANN-SILVA, 2003) gera aqui a impossibilidade de deixar para
trás a tortura e conduz o sujeito a uma espécie de compulsão pela repetição do
passado – que é recortado sob a forma de uma memória que não o abandona
jamais – e a inscrição numa posição-sujeito de resistência à Ditadura Militar.

Nesse sentido, o esquecimento que aqui se configura distancia-se daquele


sustentado por Nietzsche48 (2009 [1887]) e Primo Levi49 (1988 [1947]), ou seja, temos
aqui instituída um sujeito (que se produz pelo intermédio de um vínculo ideológico-
ético) que luta pela preservação de uma memória (“Perdura em nós a memória
[...]”) e, sobretudo, pelo funcionamento ético-político do dever de memória: “[...]
estamos eticamente obrigados a defendê-la [...]”). Estamos, assim, diante de uma

48
Genealogia da moral: uma polêmica.
49
É isto um homem?
160

organização político-ideológica que se instaura por meio de um desejo de


preservação da memória e rechaçamento do esquecimento, isto é, o compromisso
com a memória produz um efeito de recalque do esquecimento, posiciona o sujeito
no testemunho e o lança na busca pela justiça. É, portanto, o dever de memória
(compromisso ético da/com a memória minha e do outro) que se inscreve numa luta
histórico-política e perpassa a vontade de justiça, a vontade de verdade e,
consequentemente, a oportunidade de estabelecer-se uma outra versão sobre a
história da Ditadura Militar no Brasil. Daí compreendermos, neste recorte, uma
espécie de funcionamento jurídico para o testemunho, à medida que sobre ele erige
uma voz que participou de um evento e tem a necessidade moral de prestar contas,
na medida do possível, daquele acontecimento do passado.

Com efeito, o compromisso ético-cívico com a memória que aí se sustenta é


da instância do dever, da obrigação de um sujeito que é interpelado enquanto
sujeito-cidadão através de uma ideologia jurídica, de uma dívida que ele (o sujeito)
carrega por ter sobrevivido à repressão (“Levo comigo a obrigação de não
esquecer”), à violência, à tortura, daí o fato de que é preciso (re)encontrar esta
memória, lutar para que ela não seja esquecida e, sobretudo, subvertida e
manipulada politicamente por sujeitos que se inscrevem numa ideologia dominante.
Portanto, o encontro com esta lembrança é inevitável e mais que isso: é necessário
lutar contra as políticas de esquecimento da memória e defender as políticas de
resgate da memória (INDURSKY, 2015), que, neste caso, assume a forma do
testemunho na busca por fazer memória frente à tortura praticada nos porões da
Ditadura Militar.

Diante disso, podemos sustentar que o sujeito que aí se inscreve, assume


uma posição de resistência e luta contra o esquecimento, ou seja, é fundamental
convocar a memória desse acontecimento histórico (a Ditadura Militar) justamente
porque ele (o sujeito) se significa agora como aquele que sobreviveu diante da
tortura. Sendo assim, faz-se uma crítica ao esquecimento e ao próprio apagamento
ou negacionismo da história. Diante do compromisso ético com a memória (“a
obrigação de não esquecer”), o testemunho aqui faz eco na tese defendida por
Ricoeur porque: “Dizer „você se lembra‟, também significa dizer „você não
esquecerá‟” jamais (RICOEUR, 2007 [2000], p. 100).
161

Nessa perspectiva, o jogo entre lembrar e [não] esquecer sugere uma


reflexão contundente. Ora, o ato de lembrar e a obrigação (dever) de não esquecer
produzem efeitos de sentido diferentes: no primeiro caso, o efeito da lembrança
pode assumir uma postura que é mais ou menos involuntária ou, em outros termos,
um esforço para preservar algo na memória de maneira mais passiva, uma vez que,
conforme dissemos anteriormente, as imagens mnêmicas capturam o sujeito a todo
momento sem que este tenha o domínio sobre elas; o segundo, por sua vez,
reveste-se de uma atitude política frente à memória porque se reconhece que a
memória pode ser manipulada por interesses político-ideológicos. Neste segundo
efeito, há uma relação que opera entre a lembrança e o esquecimento (político-
ideológico), de modo que se instaura um jogo de poder e luta através da memória,
sobretudo porque os acontecimentos do passado, neste caso, inscrevem-se na
violência, no Estado de exceção e na tortura. Trazendo tal relação para uma
esquematização, temos que:

LEMBRAR NÃO ESQUECER

Efeito Involuntário Efeito Voluntário

Preservar a memória Luta ético-política para preservação da


involuntariamente memória

Esquema 4. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Assim sendo, ainda que marcado pela dor e pelo sofrimento, o desejo é de
reencontro com uma memória, e não de esquecimento como ocorre – de certa
maneira – em Primo Levi e Nietzsche. Conforme temos defendido neste trabalho, a
luta, aí empreendida, é contra uma forma de esquecimento que é engendrada por
fatores políticos e ideológicos, contrapondo-se, dessa maneira, a um esquecimento
que consideramos como constitutivo na configuração de uma rede de memórias e
162

como uma condição necessária para que qualquer dizer seja possível. Além de levar
consigo a obrigação ética de “não esquecer”, o sujeito aí configurado sabe que
sozinho é incapaz de defender essa memória e, por isso, propõe uma convocação
de todos para que também não esqueçam, mesmo aqueles que, por alguma razão,
não participaram daquele acontecimento: a memória social os recruta para defendê-
la frente ao agenciamento do esquecimento. Dessa forma, a mudança na forma de
discursivizar a pessoa aponta o indício de que o testemunho instaura, neste caso,
uma memória (um sujeito) que se compromete com a responsabilidade ética do
lembrar, um sujeito que é movido pelo dever (posição-sujeito da obrigação).

Nas SD-8 – ao contrário da anterior em que se luta contra o esquecimento


produzindo uma política de resistência da memória – encontramos o desejo de
esquecimento que se aproxima daquele empreendido por Primo Levi e Nietzsche, ou
seja, um esquecimento como fuga do passado e que se instaura como possibilidade
para o sujeito seguir em frente, virar a página de uma história de tortura e coerção,
um “esquecimento feliz” que abre, em certa medida, a possibilidade de reconciliação
do sujeito com o seu passado: (“Eu quero sair deste capítulo. Porque eu estou
vivendo como se fosse ontem” – SD-8). Aqui, portanto, o esquecimento (o
esquecer) é necessário para um ir além, para que se possa partir para outra história;
neste caso, a lembrança (o lembrar) é necessária para que não haja repetição desse
passado. Por isso, ainda que o sujeito entenda o ato de lembrar como um “sacrifício”
necessário, ou um compromisso com a memória coletiva, o seu desejo é esquecer e
isso pode nos sugerir que o testemunho também se caracteriza como uma tentativa,
um esforço de “lembrar para esquecer”.

De todo modo, tal desejo de funcionamento do esquecimento aponta para


aquilo que defende Milner, ou seja, “[...] que o esquecimento supõe necessariamente
que aquilo que é esquecido não se perde” (MILNER, 2017 [1987], p. 86-87). É
justamente essa reflexão que nos ajuda a responder algumas questões da tese:
como se dá, no funcionamento discursivo das formas do testemunho [“EU” e “NÓS”],
o jogo entre a memória (aquilo que deve ser lembrado) e o esquecimento (aquilo
que deve ser esquecido)? Como é possível, no âmago do testemunho, a
constituição de um sujeito que opera na tensão do batimento entre o direito à
memória e a necessidade de esquecimento? Com que joga o conflito entre o dever
de memória e o direito ao esquecimento?
163

Pois bem, defendemos que tal empreendimento só é possível porque o


testemunho apresenta, neste caso, duas posições-sujeito contraditórias entre si:
uma posição-sujeito que se inscreve no desejo de esquecimento – uma espécie de
dever de esquecimento ou, nos termos de Daltoé (2014), um direito ao
esquecimento – e uma posição-sujeito que se inscreve na tarefa ética do não
esquecer (da lembrança). Dito de outro modo, estamos considerando que o
testemunho aqui analisado instaura – contraditoriamente e constitutivamente – uma
dupla posição-sujeito no âmbito da FD da resistência, ou seja, uma posição-sujeito
que é interpelada por meio do direito de [esquecer] e uma posição-sujeito que é
interpelada pelo dever de [lembrar]. Dessa forma, o sujeito do testemunho é
mobilizado por um duplo desejo ou, por assim dizer, um sujeito que serve a dois
senhores: por um lado, o desejo de esquecimento [esquecer para (sobre)viver], de
um olhar que se quer prospectivo, voltado para o devir; por outro lado, a
responsabilidade ética com a memória [lembrar para resistir], o dever de memória, a
busca por justiça e a vontade de memória que se afirmam na luta pela não-repetição
do passado. De todo modo, aqui reforçamos que o jogo entre a lembrança e o
esquecimento corrobora a hipótese de que existe um processo de identificação
subjetiva através de posições-sujeito distintas, embora vinculadas, no interior da FD
da resistência. É justamente aqui, na tensão do dever entre lembrar/esquecer –
através da forma-sujeito jurídica (jurídica porque se inscreve no direito à e,
consequentemente, no dever de) – que se produz também uma dupla-forma de
resistência ao assujeitamento: ora o sujeito resiste porque precisa lembrar, ora o
sujeito resiste porque precisa esquecer.

Neste ponto, conforme podemos observar, o testemunho põe em emergência


o funcionamento de dois imaginários – contraditórios e complementares – que
dividem tanto o sujeito quanto o sentido: o imaginário do direito ao esquecimento do
passado e o imaginário do direito ético-moral com a lembrança da Ditadura Militar. É
diante desse movimento de duplo atravessamento que o testemunho encontra o seu
lugar no batimento entre o direito e o dever. Portanto, estamos diante de um sujeito
que, por um lado, torna-se por excelência uma testemunha das consequências da
tortura e sabe que o trabalho da memória contribui para o estabelecimento, em certo
limite, da verdade histórica, à medida que fornece aqui uma outra versão para os
fatos do passado e, consequentemente, contribui para fazer história (causa daquilo
164

que estamos considerando como uma forma de resistência 1); por outro lado, este
mesmo sujeito demonstra o desejo e a necessidade do esquecimento para que a
vida possa ser retomada sem que a dor de um passado de violência seja
reatualizada (causa daquilo que estamos considerando como uma forma de
resistência 2). Assim, ao mesmo tempo em que há a denúncia, há também o desejo
de esquecimento. Portanto, dependendo das condições de produção, defendemos
que o ato de lembrar e a necessidade de esquecer podem se caracterizar como
formas de resistência no testemunho.

Diante disso, podemos observar que o testemunho lança o sujeito em um


impasse ou numa aporia entre a lembrança e o esquecimento: ao mesmo tempo em
que se tem o desejo de lembrar, de modo a se evitar repetições porque o passado
não assimilado sempre está sujeito à repetição, de prestar homenagens aos que
igualmente foram vítimas do mesmo processo de violência e de legar a sua própria
experiência de tortura à sociedade, há um desejo de esquecer o sofrimento. A
contradição que se estabelece entre a necessidade de denunciar a tortura e a
vontade [impossibilidade] de esquecer os momentos difíceis pelos quais o sujeito
passou dá ao testemunho uma característica singular na produção de sentido sobre
a Ditadura Militar. Assim, ao mesmo tempo em que busca expor a violência e a
tortura (quem “vai apagar essas marcas?” – SD-8), a voz do testemunho procura
também explicações para as atitudes desumanas dos militares (“Eu vou igual a
uma desesperada” – SD-8).

Considerando, a partir de nossa perspectiva teórica, que todo dizer implica o


não-dizer (logo o esquecer), entendemos que, diante da possibilidade do dizer
presente neste testemunho, há, consequentemente, a presença de um
esquecimento constitutivo explícito – pela necessidade de esquecer – que se
entrelaça ao funcionamento político do esquecimento, causa primeira do
compromisso ético que o sujeito assume para não esquecer. De todo modo,
percebemos que se produz aí uma tensão entre a memória e o esquecimento
porque o desejo de esquecimento implica, necessariamente, a relação entre o dizer
e o não dizer, “[...] entre a vontade de verdade de uns e a vontade de esquecimento
de outros” (DALTOÉ, 2016a, p. 33).
165

É importante reforçar que essa forma de esquecimento (assim como qualquer


outra) não tem o poder de apagar definitivamente o passado (a memória), mas
permite, em certo limite, a instituição de uma memória sem ressentimento, logo que
não conduziria o sujeito à compulsão pela repetição da tortura no presente. Quando
isso não acontece, estamos constantemente diante de um passado (uma lembrança)
que não passa, e que pode se transformar em neurose justamente porque fixa o
sujeito nos acontecimentos do passado e gera o efeito da repetibilidade de uma
eterna lembrança cristalizada no presente, que, por sua vez, imobiliza o sujeito
(produz resistência) para que ele não possa olhar para o horizonte logo a sua frente:
(“Nao teve um dia que eu não me lembrasse do período em que eu estive
presa, [...]” – SD-9).

Conforme podemos observar, o testemunho produz a presentificação de uma


memória traumática, um excesso de memória que, como já dissemos, lança o sujeito
na compulsão pela repetição de um passado que não consegue se libertar, de uma
lembrança eterna que insiste no presente através de um hoje que é sempre um
ontem. Tal excesso de lembrança é a porta de entrada para o ressentimento, para
uma mágoa que não se esquece, para fixação do sujeito no evento que provocou o
trauma. Neste caso, o fato de não haver um esquecimento necessário para o sujeito
faz com que a memória produza o ressentimento, que, por sua vez, retroalimenta um
desejo de justiça [“vingança” para as corporações militares] que é sempre adiado e,
por meio de um círculo vicioso, mergulha o sujeito no efeito da repetibilidade do
passado.

Sendo assim, o tempo dessa lembrança não é do passado, mas do presente,


do aqui, do agora, é do instante já. Nos termos de Ricoeur, “[...] essa aquisição está
incorporada à vivência presente, não marcada, não declarada como passado [...]”
(RICOUER, 2007 [2000], p. 43). Esquematicamente, o sujeito que se inscreve no
testemunho ocupa um espaço que faz uma fronteira constante entre o passado e o
presente:

SUJEITO

PASSADO PRESENTE
166

Esquema 5. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Diante da tortura, abre-se uma fissura na ordem da memória que atinge a


identidade do sujeito e se estilhaça na própria memória social. Daí a afirmação que
se dá através da Psicanálise de que o trauma gera a neurose, ou seja, o sintoma de
uma espécie de fixação em um evento do passado que pode ser observado pelo
funcionamento do inconsciente: (“Ao longo dos meus dez anos de exílio, um
sonho acompanhou-me de tempos em tempos, intermitente. Repetia-se
sempre igual, com pequenas variantes” – SD-10). Ora, como esquecer uma
lembrança que se impregnou no próprio corpo? Como apagar as marcas da
violência? Para o sujeito que se inscreve no testemunho, lutar contra essa memória
talvez seja mais difícil do que suportar, de certa forma, a própria tortura. O fato é que
não há possibilidade de apagamento desta memória porque ela está latente aqui no
presente, ou seja, ela constitui o sujeito, é parte dele, mina sua história individual,
que, por sua vez, entrelaça-se na história oficial do tempo presente. Aqui, o retorno
dessa memória do passado que irrompe no presente caracteriza, no âmbito do
testemunho, o sintoma de uma dor que ainda dói e que continua a produzir eco na
vida do sujeito que se lembra. É uma dor que se coloca numa rede de memória e
que, através do gesto de testemunhar, dá consequência à discursividade produzindo
um efeito de resistência ao esquecimento e, consequentemente, de apelo à
denúncia como instrumento de acesso, em certo limite, à verdade e à justiça.
Portanto, o desejo de esquecimento, em última instância, pode apontar para uma
outra direção: o desejo de que se faça justiça, o dever de justiça, o direito à justiça e
o direito à verdade que, em certo limite, começa agora a ser delineado através do
testemunho no Relatório Final da CNV.

Aqui, o testemunho nos faz entender – da pior maneira possível – que a


história de nossa geração se inscreve na tortura e na violência de toda ordem.
Diferentemente das doces madeleines que conduziram Proust50 à epifania de uma
memória involuntária que se constitui pela fuga ao esquecimento e recupera os
momentos da infância (saudosa e feliz), a lembrança que aqui se evoca não é em
nada doce; ao contrário, é bem amarga porque se construiu na tortura, na
impunidade, na desumanidade, embora também seja uma reminiscência involuntária
porque o sujeito não tem controle sobre ela. De todo modo, em Proust, a memória

50
Marcel Proust: À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido, 1987 [1913-1927]).
167

involuntária é tecida pela felicidade; na memória aqui concebida, por sua vez, a
lembrança é involuntária em virtude do trauma, da violência. Assim, estamos diante
de memórias em ruínas, de fragmentos, lembranças quebradas, rastros, vestígios e
lacunas que constroem o evento do passado por meio do gesto de testemunhar.

Diante do testemunho, compreendemos que a Ditadura Militar nos lançou


num genocídio, num “assassinato em série”, nos deixou de joelhos... e as marcas da
violência não estão apenas nos corpos dilacerados daqueles que foram torturados
pelos militares: elas também estão em “NÓS”, fazem parte de nossa memória e de
nossa história. Daí o grito desesperado por socorro de um “EU” que somente agora,
de certa maneira, pode ser ouvido. Estamos diante de uma voz que espera até hoje
por justiça, que luta por um esquecimento que nunca chegará. Que espera por uma
absolvição de um sentimento de culpa [mea-culpa] que envolve a própria
sobrevivência do sujeito e, finalmente, que deseja a libertação do passado: (“Eu
quero sair deste capítulo” – SD-8).

A SD-11, por sua vez, também produz um jogo de memória e esquecimento:


(“Ontem eu custei um pouco pra reconhecer o prédio. Foi necessário que a
gente localizasse uma coluna, que está meio disfarçada, no meio de paredes.
Só que quando nós achamos essa coluna, que ficava junto às salas de tortura,
eu reconheci o prédio”). Nesse ponto, queremos dar consequência a uma outra
forma de trabalho do esquecimento sobre a memória e que pode ser aí configurada:
o esquecimento por meio do apagamento de rastros ou de vestígios de uma
memória (ROBIN, 2016). Nessa direção, consideramos que o testemunho denuncia
o funcionamento de tal esquecimento enquanto mecanismo político que põe em
movimento uma ideologia dominante do aparelho militar. Esta foi, conforme
podemos perceber nos testemunhos, uma prática comum realizada pelos militares
durante o Regime Militar e mesmo após ele. Entretanto, mesmo diante da tentativa
de apagamento (esquecimento), o sujeito encontra algo material (simbólico) que o
faz lembrar – assim como La toque de Clémentis –; ele anda pelo lugar mas não o
reconhece, porque eram guiados para não reconhecer, mas algo fica, o faz lembrar,
a coluna denuncia, um resquício de memória que desencadeia toda a lembrança no
plano do dizer.

Embora a execução e a tortura tenham sido planejadas de modo que não


houvesse vestígios do que aconteceu, algumas testemunhas sobreviveram. É neste
168

ponto que o testemunho se configura, em nossa leitura, como o rastro forte de uma
memória que ainda reverbera em nós, apesar de existir, em contrapartida, um forte
trabalho político para o silenciamento da memória através da destruição de arquivos
e monumentos. Pois bem, a voz do testemunho acima fornece uma pista
contundente para entendermos o efeito do esquecimento através do apagamento de
rastros. O efeito de tal apagamento – que objetiva emudecer o sujeito e produzir um
esquecimento sobre a memória da tortura e da violência –, aponta-nos para a
seguinte implicação de sentido: o não reconhecimento – logo a não
responsabilização – das práticas e dos lugares onde ocorriam os crimes contra as
pessoas que eram contrárias ao modus operandi da Ditadura Militar.

Além disso, reforçamos que os testemunhos acima recuperam uma voz que
se inscreve numa posição de denúncia que instaura efeitos de sentido que
desestabilizam a memória da Ditadura à medida que o sujeito afirma que é/foi vítima
de uma tripla forma de violência: a primeira configura-se pela tortura física, simbólica
e psicológica que sofreu na própria pele por parte de seus algozes; a segunda
violência assume a forma do esquecimento, ou seja, pela consciência de que a
tortura que ocorreu nos porões da Ditadura Militar é alvo constante do esquecimento
político-ideológico no âmbito da sociedade, seja por parte dos agressores, seja por
parte de setores da sociedade que ainda defendem a postura dos militares a partir
de 1964; a terceira violência é fruto da Lei de Anistia (1979) que se erige como um
instrumento político-jurídico institucional que protege – através do simulacro de
perdão – os agentes públicos envolvidos com a violação dos Direitos Humanos
naquele período histórico, contribuindo, dessa maneira, para o desenvolvimento de
uma política de esquecimento da memória (INDURSKY, 2015).

4.1.4 O jogo com o “OUTRO” através da (não) denominação

Na Análise do Discurso a questão da opacidade da língua(gem) é


centralizadora. Esta compreensão perpassa a tese de que os sentidos se instauram
na (contradição da) história, produzindo, com isso, o efeito de ilusão de
transparência da língua e do próprio sujeito que falha, que não pode caminhar
169

sozinho. Aqui, portanto, propõe-se um deslocamento necessário em relação à


autonomia do objeto da Linguística, uma crítica aos efeitos de evidência e
homogeneidade do sentido. Daí Pêcheux (1997 [1975]) buscar, no âmbito dos
processos semânticos, as contradições que se circunscrevem no objeto da
Linguística porque, conforme Maldidier, “[...] a semântica é o ponto nodal em que se
condensam as contradições que frequentam a linguística [...] o ponto em que a
linguística tem a ver com a filosofia e a ciência das formações sociais, na maior parte
das vezes sem reconhecê-lo” (MALDIDIER, 2003, p. 45). E não poderia ser de outro
modo: fruto da reflexão marxista – em sua orientação filosófica – toda produção
discursiva se instaura através da instância da história, da luta de classes em sua
relação com a língua onde a ideologia se ancora para materializar-se.

Dessa forma, é na contradição da história que se inscreve todo processo


material que tem a luta de classes como princípio balizador. É pelo viés da ideologia,
por sua vez, que se dá o recobrimento concreto, primado prático e material de todas
as representações sociais que organizam uma Formação Social. Logo, resta-nos
investigar o discurso como algo que está, de fato, sempre em curso, em movimento;
embora possa apresentar certas regularidades, tais regularidades se estilhaçam à
medida que tocam o simbólico e se deparam com o Real. A partir do que precede,
neste bloco de análise, propomos pensar os processos de subjetivação através da
(não) denominação51 do “OUTRO” enquanto uma forma do testemunho. Neste
bloco, ainda, além do testemunho das vítimas da violência, trazemos também a voz
de dois militares que apresentaram depoimento à CNV, a fim de que possamos
observar como a memória sobre o “OUTRO” foi construída na Ditadura Militar e
ainda continua, de certa forma, produzindo eco na memória do presente. Para
compreender tal funcionamento, defendemos que o testemunho joga com um
movimento dêitico-discursivo de apagamento e, ao mesmo tempo, de recuperação
do “OUTRO por meio da denominação:

51
Estamos considerando aqui a denominação, a partir de Mariani, “enquanto um modo de
construção discursiva dos „referentes‟, que tem como característica a capacidade de condensar em
um substantivo, ou em um conjunto parafrástico de sintagmas nominais e expressões, „os pontos de
estabilização dos processos‟ resultantes das relações de força entre formações discursivas em
concorrência num mesmo campo” (MARIANI, 1996, p. 120).
170

 TESTEMUNHA MILITAR52:
 SD-12A: “Comissão Nacional da Verdade: Por que os agentes do Estado
usavam codinomes?
Pedro Ivo Moézia de Lima: Ah, isso nós aprendemos com os terroristas.
Comissão Nacional da Verdade: Se o senhor puder me explicar...
Pedro Ivo Moézia de Lima: Então, é por isso.
Comissão Nacional da Verdade: Mas por quê?
Pedro Ivo Moézia de Lima: Para ninguém saber quem eu sou. O meu
nome verdadeiro eu escondo, não digo para ninguém. Ninguém. Nós
aprendemos... [...]. Eles usavam codinomes, o codinome era para evitar
que fossem identificados [...]” (BRASIL, 2014, p. 145, grifos nossos).

 SD-12B: “[...] Quando fui transferido para São Paulo no início dos anos
70, os terroristas já haviam assaltado mais de 300 bancos e carros
fortes [...] Estávamos lutando pela democracia e estávamos lutando
contra o comunismo [...] Ela (Dilma Rousseff) integrou quatro grupos
terroristas que teriam como objetivo final a implantação de uma
ditadura do proletariado, o comunismo” (BRASIL, 2014, p. 780).

 TESTEMUNHA-1353
 SD-13: “Deixar meus filhos na mão daqueles animais, daqueles bichos.
Ah, nem bicho faz aquilo. Aquilo são uns monstros. Jogaram meus filhos
naquele Juizado de Menor. [...] As próprias empregadas, que cuidavam lá
daquele Juizado de Menor, falavam que meus filhos eram filhos de
terrorista [...] Esse daqui [Adilson] foi levado não sei quantas vezes pela
polícia, surravam ele, socavam meu filho, com nove anos. A polícia! A
polícia de Atibaia surrava meu filho [...]” (BRASIL, 2014, p. 410, grifos
nossos).

Aqui, o mecanismo de funcionamento aponta para a seguinte relação: “EU” =


“NÓS” ≠ “DELES” + o “OUTRO” ≠ “DELES” = “NÓS”. Nesse contexto, entra em cena
o fenômeno da (não) denominação, ou seja, a disputa por sentidos no testemunho
perpassa o jogo de interpelação ideológica que promove o deslocamento de
posições-sujeito entre as formas materiais “comunista” e “polícia” [“militar”],
consideradas aqui como o “OUTRO”.

Vejamos, primeiramente, o efeito da (não) denominação através do


funcionamento da materialidade “terrorista” [“OUTRO”] aí encontrada. Para

52
Depoimento do coronel reformado Pedro Ivo Moézia e do coronel reformado Carlos Alberto
Brilhante Ustra. Disponíveis, respectivamente, em: https://www.youtube.com/watch?v=APK43QRtn8A
& https://www.youtube.com/watch?v=pWsv4EndpfY
53
Testemunho de Damaris Lucena. Em 1970, após o assassinato de seu marido e sua prisão pela
Oban, Damaris Lucena viu seus filhos Adilson, Denise e Ângela Telma ficarem sob a guarda do
Estado.
171

compreender tal funcionamento, vamos utilizar, novamente, o procedimento


metodológico da deriva (e do jogo de paráfrase) que nos permite realizar a
reescrituração do enunciado. O efeito da (não) denominação é um efeito simbólico e
ideológico sobre o outro, por meio de um trabalho da memória social e discursiva.
Tal funcionamento, em nosso entendimento, expõe a língua a sua falta, ao seu Real
e, por conseguinte, ao funcionamento do interdiscurso porque, para nós, a
designação materializa sempre a existência de uma memória outra e põe em
agência a projeção imaginária do comunismo/comunista (MARIANI, 1996) que se
produziu, maciçamente, para promover e sustentar a retórica da Ditadura Militar. O
jogo de efeito de sentido que se instaura pelo deslizamento de sentido entre
“terrorista” – enquanto forma material-simbólica – para “comunista”, ou seja, pelo
efeito discursivo dessa denominação quando de sua submissão à opacidade da
língua pode ser descrito da seguinte maneira [SD-12A e B]:

“[...] Ah, isso nós aprendemos com os terroristas [...] Eles usavam codinomes
[...]”

Comunistas Comunistas
“[...] Os terroristas já haviam assaltado mais de 300 bancos [...]”

Comunistas
“[...] Ela integrou quatro grupos terroristas [...]”
172

Comunistas
Esquema 6. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Conforme podemos observar no testemunho acima, a (não) denominação é


um procedimento discursivo constante no modo de dizer dos militares. A substituição
de um termo por outro não é aleatória, mas um processo ideológico de
silenciamento do “OUTRO” (a ideologia comunista estava lá, mas não se podia falar
dela a partir da FD militar caracterizada pelo totalitarismo, pela repressão e pela
violência, então, falava-se dela de uma outra forma colocando o comunista em outro
lugar) e, sobretudo, de criminalização do “OUTRO” porque o lança, através de um
simulacro de ameaça e violência, numa FD que se inscreve na subversão.
Capturado pelo efeito da interpelação ideológica, o sujeito que aí se inscreve é, pois,
novamente constituído pelo esquecimento à medida que ele [o sujeito] recorta
saberes (que estão em relação de paráfrase) da FD que o governa para produzir um
dizer sobre o “OUTRO” e, portanto, a utilização de uma denominação por outra
compreende, em nossa leitura, um mecanismo ideológico.

Ora, partindo do pressuposto de que a denominação faz parte da construção


discursiva do referente (MARIANI, 1996), (re)nomear consiste justamente em
ressignificá-lo e, ao mesmo tempo e no mesmo lugar, em redirecionar,
ideologicamente, o seu sentido para uma certa região “X”, uma certa memória “X”. E,
nesse movimento, o sujeito enunciador instaura um modo de dizer o “OUTRO”
através de um processo de desidentificação, aliás, sua identificação é significada
pela contraposição ao “OUTRO”; ou seja, por aquilo que o sujeito não é em relação
ao que o “OUTRO” é. É a partir desta reflexão que Pêcheux propõe as formas
linguístico-discursivas do discurso-outro:

discurso de um outro, colocado em cena pelo sujeito, ou discurso do


sujeito se colocando em cena como um outro [...] – mas também e
sobretudo a insistência de um “além” interdiscursivo que vem, aquém
de todo autocontrole funcional do “ego-eu”, enunciador estratégico
que coloca em cena “sua” sequência, estruturar esta encenação (nos
pontos de identidade nos quais o “ego-eu” se instala) ao mesmo
tempo em que a desestabiliza (nos pontos de deriva em que o
sujeito passa no outro, onde o controle estratégico de seu discurso
lhe escapa (PÊCHEUX, 2010 [1983], p. 313, grifos do autor).
173

Dessa forma, a (não) denominação estabelece uma relação ideológica com o


“OUTRO” à medida que produz uma imagem para o “OUTRO” que, por sua vez,
passa a ser descrito enquanto criminoso, reduzido à condição de “terrorista”,
determinando, com isso, a posição que ele deve ocupar no âmbito da sociedade,
que, por extensão, apaga os efeitos de sentido positivos associados ao
comunista/comunismo. Portanto, a ação de (não) denominar, considerada
discursivamente, inscreve-se no simbólico e representa um dispositivo de
determinação ideológica que instaura um espaço de subjetivação onde o “OUTRO” é
significado como inimigo. Dito de outra forma, o gesto de (não) denominação produz
um efeito no qual o “OUTRO” é dito e, ao mesmo tempo, constitui-se como um
processo de singularização, que, por sua vez, impõe a entrada deste “OUTRO” no
espaço do simbólico, que, por conseguinte, inscreve o sujeito numa FD que
determina a violência.

Defendemos, assim, que o termo “terrorista” está funcionando


ideologicamente [por paráfrase] no lugar de “comunista”, como algo ruim, logo
negativo. Temos aí, uma alusão a uma FD (comunista) que significa a partir do
outro, ou seja, uma FD autoritária que ordena o discurso dos militares. O embate
entre tais FDs configura, por um lado, o discurso dos “contrarrevolucionários” (“a
esquerda comunista”); por outro lado, “a direita revolucionária”. Com efeito, o
fenômeno da denominação (“terrorista”) aciona uma representação imaginária que
lança o comunista no mesmo lugar de uma memória “subversiva” (ameaça, medo) e
a partir daí passa a significá-la. Pois bem, com esse gesto, o testemunho traz à baila
um conflito entre duas posições-sujeito: a posição-sujeito militar (ocupada) e a
posição-sujeito comunista (projetada).

É esta reflexão que mobiliza outra questão que lançamos na tese: como o
testemunho tensiona, através da memória, o jogo de projeções imaginárias? Nesse
jogo político-ideológico com a memória, todos aqueles que se diziam contrários aos
militares eram deslocados para a posição de “comunista” [“OUTRO”] – significado
enquanto “terrorista” – logo pertencentes ao mesmo domínio de memória de uma
suposta FD comunista. Com isso, impõe-se que os sentidos sigam uma rota
ideológica “X” através do discurso sobre54 o “ser comunista” e, através da

54
Para Mariani os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso
de („discurso origem‟), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
174

denominação e não- denominação, reduz o comunista à categoria de “inimigo” da


nação. Conforme podemos analisar, este é um jogo de associação e apropriação, ou
seja, apropria-se [e silencia-se] do “OUTRO” – para constituir um modo de dizer “Y”
sobre o “OUTRO” – para significá-lo, através de um jogo de representação
imaginária, no espaço discursivo de referência dêitica para a violência (o comunista
não fala, ele é falado por). Assim, ao rechaçar sentidos outros para o “ser
comunista”, o sujeito identifica-se (bom sujeito) com a FD militar por meio dos pré-
construídos que lhes são inerentes: o autoritarismo e a dissimulação. Este jogo nos
permite compreender que existe aqui um:

[...] “outro” que é projeção, do sujeito, daquilo que, nele, causa seu
mal-estar. Este outro, também se produz como metáfora (uma coisa
por outra), e, neste sentido, vem [...] carregado de historicidade.
Historicidade aqui compreendida como parte do processo de deriva
(deslizamento, efeito metafórico) que é parte da relação com a
alteridade. Ao se constituir, pela metáfora, o sujeito cindido
exterioriza o estranho em si pela transferência que coloca, neste
outro, o que o divide, o que ele odeia (ORLANDI, 2017, p. 100).

Diante disso, consideramos que a denominação aí invocada tenta driblar


certos efeitos de sentido que reverberam no termo “comunista” e tal efeito só é
possível porque existe também aí um silenciamento de sentidos que não permite a
discursivização da forma “comunista”, mas o percebemos através do silenciamento e
do acionamento do interdiscurso. Em suma, constrói-se, imaginariamente
[ideologicamente], uma posição discursiva para o “OUTRO” e esse jogo corresponde
a uma tentativa de homogeneização, cristalização dos sentidos e da memória ao se
deslocar o comunista para o lugar do criminoso, logo do fora da lei.

Assim, ao apresentar uma justificativa para o uso do codinome, produz-se um


deslizamento de sentido – através de um efeito de memória – entre “terrorista” e
“comunista”, que pode ser observado por meio do jogo entre paráfrase (o mesmo
sobre o outro que se marca no dizer como algo que sempre se mantém), polissemia
(a diferença sobre o mesmo através do equívoco que promove a ruptura no
processo de significação) e a metáfora (transferência de sentido). Portanto, o gesto
de denominar já carrega em si um recorte de memória que instaura um determinado

representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimento, já


que o falar sobre transita na co-relação entre o narrarIdescrever um acontecimento singular,
estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecido peio interlocutor. (MARIANI,
1996, p. 64, grifos da autora).
175

efeito de sentido – neste caso através de uma denominação negativa – para o


“OUTRO”, para o sujeito, para o “ser comunista”. Observamos, a partir dos
testemunhos da SD-12A/B, o funcionamento discursivo de uma espécie de
apagamento de um lugar de identificação e que joga para fora da FD militar a
responsabilização pela prática de violência e tortura durante a Ditadura.

A elipse, também pensada aqui discursivamente, marca o ponto de inscrição


da língua na falta, no equívoco. Além disso, tal falta só pode ser compreendida
quando colocamos em funcionamento a memória, ou seja, através de retomadas da
memória do dizer (interdiscursiva) e das condições de produção que determinam
esse modo de dizer, conforme podemos perceber a partir do recorte a seguir:

Da posição-sujeito Militar [SD-12A]


(O codinome para o militante)
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados [Ø]”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como comunistas”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como criminosos”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como os fora da lei”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como subversivos”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como inimigos da
contrarrevolução”.
Esquema 7. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Da posição-sujeito vítima da Ditadura: por paráfrases [SD-12A]


(O codinome para o militar)
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados [Ø]”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como torturadores”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como assassinos”.
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como agentes do
Estado”.
176

“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como militares”.
Esquema 8. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Conforme podemos observar, a ausência, marcada na materialidade pelo jogo


da elipse, possibilita a presença de algo que não pode ser formulável no testemunho
e a que só podemos ter acesso por meio do funcionamento da memória, porque “a
falta que funciona na elipse [...] faz intervir algo que se encontra além, alhures, ou
talvez inscrito de maneira específica na língua [...]” (HAROCHE, 2016 [1980], p.
244). Dito de outra forma, ao realizar o recorte de tal denominação do eixo da
constituição discursiva (interdiscursivo), o sujeito, inconscientemente e
ideologicamente, também recorta (silencia e apaga) os saberes de uma memória,
que, por sua vez, inscreve-se no eixo da formulação discursiva (intradiscursivo). É
este funcionamento, determinado também pelas condições de produção do discurso,
que permite que o sentido sempre possa ser outro e que a memória reverbere da
poeira dos arquivos da história. Portanto, consideramos que a denominação que aí
se inscreve recorta uma memória porque determina que o “OUTRO” seja significado
de determinada maneira, e não de outra.

Dessa maneira, a denominação nos permite compreender – a partir da


inscrição de uma memória – aquilo que foi silenciado e apagado de uma memória
outra. É a presença, conforme lemos em Ricoeur (2007 [2000]), que se marca na
ausência constitutiva à proporção que o rastro sempre conduz à lembrança de algo
que está ausente. A denominação, portanto, recobre o espaço da historicidade
(enquanto prática política que mobiliza as relações sociais) e da constituição do
simbólico através da memória. Atribuir o rótulo de “terrorista” ao “comunista” não é,
portanto, uma ação aleatória, mas um processo que determina e impõe, pelo viés
ideológico, a qual região de sentido o “OUTRO” passa a ter sua memória
(re)significada. Daí podermos depreender – concordando com Mariani (1996) – que
o jogo da denominação traz à baila a relação de força entre FDs concorrentes dentro
do mesmo espaço discursivo.

Além do silenciamento e do apagamento que aí se encontram, podemos


perceber o funcionamento de, pelo menos, dois efeitos de sentido que se produzem
– na relação língua, ideologia e memória – pela substituição de uma denominação
por outra e que conduz o comunista a uma dupla forma de violência: em primeiro
lugar, por deslocar o comunista para o terreno que recobre a violência; a segunda,
177

porque constrói uma representação (política e simbólica) negativa para o comunista


que afeta diretamente a sua identidade, deslocando-a do campo político-partidário
para o espaço-referência da criminalidade (MARIANI, 1996). Tal processo institui um
jogo de memórias através daquele (militar) que se institui como porta-voz do
discurso sobre: subverte-se a memória do comunista e (re)constrói-se uma memória
outra para o mesmo através de uma rede de pré-construídos que são recortados do
eixo da constituição discursiva e a reinscrevem em outra rede de filiação.

É importante reforçar a diferença em relação às condições de produção em


que operam o termo “terrorista”. Nesse sentido, ora o termo é invocado na própria
sessão de interrogatório (tortura), ou seja, nas condições de produção imediatas da
Ditadura Militar – conforme podemos observar pela forma como a memória modela o
testemunho do sujeito que se lembra – ora o testemunho se inscreve em outras
condições de produção, isto é, cinquenta anos após a instauração do Regime Militar
no Brasil (o testemunho [SD-12A] foi dado pelo então coronel reformado Pedro Ivo
Moézia de Lima, em 09/09/2014, por ter chefiado os interrogatórios no DOI-CODI/SP
entre 1970 e 1972).

Esse jogo de condições de produção nos permite compreender o seguinte:


mesmo diante das diferenças em relação às condições de produção – de 1964 e de
2014 – o funcionamento ideológico permanece praticamente o mesmo, ou seja, o
termo “comunista” ainda continua, hoje, significando 55 “terrorista”. Tal processo nos
sugere que a retórica anticomunista que sustentou a Ditadura Militar e mobilizou o
trabalho dos militares de incutir o ódio, o terror e a violência em relação aos
comunistas produziu um efeito de cristalização de tal sentido, no âmbito da memória
social e discursiva, que reverbera até hoje através de um regime de repetibilidade e
que lança o “OUTRO” numa determinada rede de memória: a do estrangeiro invasor
que se faz presente como corpo estranho no âmbito da Formação Social.

Assim, compreendemos que a memória sempre trabalha sobre a (não)


denominação e produz o efeito do mesmo sobre o outro para assegurar certa
projeção imaginária que sustenta o efeito de homogeneidade no testemunho. Por

55
Esse sentido ainda permanece tão cristalizado no âmbito da memória social que a Comissão de
Anistia, do então governo, denominou os “requerentes de pedidos de indenização de terroristas”.
Ver em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/10/anistiando-terrorista-e-decisao-
com-base-em-infancia-militar-as-decisoes.htm
178

isso, no jogo de memória, o próprio de toda denominação é apagar sentidos,


instaurar outros, o que nos leva a concluir que, mais uma vez, substituir uma
denominação por outra implica uma forma de neutralização ou indeterminação do
“OUTRO” na trama discursiva para que ele possa ocupar, ideologicamente, um outro
espaço de memória, inscrevendo-o em outra FD e colocando-o em outra posição-
sujeito. Portanto, o lugar que aí se instaura é marcado discursivamente para que o
“OUTRO”, ao mesmo tempo em que é silenciado, seja falado como criminoso e o
efeito de sentido que se produz segue uma rota ideológica para anonimizar o
“OUTRO” em sua essência, em sua “verdade”.

Conforme já dito, estamos diante de um processo de apropriação e


desapropriação porque, discursivamente, só existe uma voz que aí se constitui em
função do “OUTRO” e, por isso, o funcionamento da denominação mantém aqui uma
regularidade de ressonância, de repetibilidade que estabiliza um modo de dizer
sobre o outro. Em que pese a inscrição de saberes em FDs antagônicas, a
denominação constitui e reforça uma memória outra no fio discursivo. Tal
mecanismo discursivo, que se constrói ideologicamente, politicamente, socialmente
e historicamente, marginaliza e condena o outro sem possibilidade de escolha. A
denominação é, em suma, uma forma de interpelação que produz para o “OUTRO” o
efeito de evidência que o determina – no sentido mesmo culpabilizante do termo
porque é o olhar, ou melhor, é a posição discursiva do “NÓS” que instaura o efeito
de determinação sobre o “OUTRO” – enquanto criminoso.

Além disso, este recorte nos possibilita compreender que a CNV também deu
voz a outra versão da história através do testemunho de alguns militares, ou seja,
não ouviu apenas vítimas da Ditadura Militar, mas também alguns dos agentes
estatais que estavam no comando das ações de violação dos Direitos Humanos no
âmbito dos quartéis. Por isso, fizemos questão de trazer o testemunho da SD13-A/B
– em que “ELES” falam e não são falados por – para, de certa forma, fazer uma
contraposição em relação aos demais. Esse é um fato importante porque ele nos
ajuda a entender o segundo funcionamento daquilo que estamos considerando aqui
como um fenômeno de subjetivação entre o “EU” e o “NÓS”, ou seja, que produz
dois movimentos de identificação que podem caracterizar um sujeito: a
179

individuação56 e a institucionalização do sujeito; entretanto, tal processo ocorre de


maneira diferente do anterior (“EU” & “NÓS” = vítimas). Neste caso, a oscilação
subjetiva entre “EU” e “NÓS” ocorre, sobretudo, por meio de um processo de
institucionalização que se inscreve a partir do “NÓS” ou, nos termos de Indursky
(2013, p. 86), assinala a voz de um sujeito “investido no papel institucional [...]”.
Longe de representar uma identificação genérica, a inscrição do “NÓS” traz à baila
um grupo bem específico de sujeitos à medida que o testemunho posiciona o sujeito
numa FD contrária à ideologia que determina o discurso do Regime Militar. Vejamos
como isso ocorre a partir do seguinte:

SD-12A: “Para ninguém saber quem eu sou”

 Processo de subjetivação do sujeito (1º mecanismo de


identificação que se dá por meio de um processo simbólico em
que o “EU” se estilhaça na subjetividade.)

“Nós aprendemos... [...]”

 Processo de subjetivação por meio da institucionalização do


sujeito (“NÓS” = Aparelho Repressivo Militar/Forças Armadas
[2º mecanismo de identificação])
Esquema 9. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

A partir do que precede, entendemos que a troca de posição enunciativa entre


“EU” e “NÓS” ocorre por meio de um processamento ideológico em relação à FD em
que o sujeito se inscreve, promovendo, com isso, o deslocamento de sentidos a
partir de tal filiação: o “EU” que marca um lugar de subjetividade e que busca se
proteger da responsabilização por seu dizer e suas ações (o uso do codinome
[estratégia discursiva para apagar o efeito da autoria] também vai nessa direção de
sentido: “o codinome era para evitar que fossem identificados”) invocando a
instituição social que ele representa. É o intervalo entre o consciente e o
inconsciente (esquecimento 1 e 2) que permite que o sujeito possa realizar a troca

56
Orlandi (2012a & 2017).
180

de posições e inscrever-se em FDs distintas. Esse processo, conforme defendemos


anteriormente, acontece por meio de um jogo de projeções imaginárias a partir das
posições sociais que os sujeitos podem ocupar na Formação Social e,
consequentemente, materializa no testemunho a “[...] ilusão de que temos pleno
domínio sobre a memória, do mesmo modo o esquecimento seria uma possibilidade
com a qual se pode negociar” (DALTOÉ, 2016a, p. 46).

Pois bem, esse fenômeno pode trazer a seguinte implicação ideológica: um


processo de apropriação (do “EU” com o “OUTRO”) através da identificação que
conduz o sujeito a assumir que fala por si e, por outro lado, uma espécie de
desapropriação subjetiva (diluição do traço de individualidade/subjetividade) quando
o sujeito se estilhaça no “NÓS” (Instituição Militar). Assim, pensado do ponto de vista
do funcionamento discursivo, ou seja, pela natureza simbólica e, sobretudo, política
da forma material “NÓS”, podemos defender que este jogo de identificação e
projeção imaginária produz uma forma de assujeitamento no testemunho.

Vários recortes juntam-se a outros na construção de um simulacro de


violência para o comunista, ou seja, uma espécie de simetria semântica entre
comunismo/violência. Tal imagem de violência que se constrói sobre o “OUTRO” se
ancora, sobremaneira, através do funcionamento da ideologia: ora, quais os critérios
que os militares utilizavam para considerar uma pessoa como comunista? O trabalho
da memória sobre a história pode, novamente, ajudar-nos a compreender tal
processamento, à medida que todos aqueles que se diziam contrários à intervenção
militar passaram a significar (mecanismo ideológico de identificação com/para o
“OUTRO”) do espaço de violência, subversão e criminalidade que foi arquitetado
pelos militares para significar a imagem do comunista. Com isso, inscreve na
memória, em relação aos comunistas e suas práticas, um sentido de ilicitude (toda
prática dita comunista passa a significar, então, prática criminosa), logo todo aquele
que fosse identificado com tal prática deveria ser punido. Assim sendo, institui-se
uma forma de ler o comunismo como aquele que representa uma ameaça, um
perigo.

Diante de tal funcionamento, entendemos que os sentidos são deslocados,


ressignificados, diluindo e cristalizando na memória um certo tipo de saber sobre o
“OUTRO”, dando nome, sobrenome e endereço a este outro e fazendo com que ele
181

seja interpelado como X e, portanto, ocupe esta posição-sujeito. Assim, podemos


sustentar que existe aí um jogo político-ideológico que opera na desestabilização e,
ao mesmo tempo, estabilização de sentidos, pois, se por um lado, as palavras são
ressignificadas; por outro, esse processo também estabiliza esses sentidos outros à
medida que a memória se atualiza quando irrompe no eixo da formulação discursiva
(intradiscursiva) e repercute enquanto “verdade” o que se organiza no plano do
dizer. Dessa maneira, o jogo de representação e denominação vai estabilizando os
pré-construídos que, por sua vez, provoca o efeito de homogeneidade e o efeito de
evidência – evidência aqui entendida também enquanto efeito ideológico – no modo
de significação do “OUTRO”.

Vejamos, agora a partir da SD-13, como se dá o jogo de memória por meio da


materialidade “polícia” ou da denominação “polícia” que agora passa a ocupar a
posição de “OUTRO”: (“Esse daqui [Adilson] foi levado não sei quantas vezes
pela polícia, surravam ele, socavam meu filho, com nove anos. A polícia!”).
Constrói-se, aí, um efeito de indignação e não aceitação que se marca pela
exclamação diante da violência: “A polícia!”. Embora possamos compreender aí o
funcionamento do silenciamento através de “[...] determinações sócio-históricas,
ideológicas e de condições de produção [...]” (DALTOÉ, 2016a, p. 42), a
perplexidade se sustenta pelo deslocamento de sentido – o que lança novamente o
testemunho no eixo significativo/constitutivo da paráfrase e da polissemia – que se
realiza para a “polícia” a partir de saberes antagônicos à FD (militar) dominante, ou
seja, pela subversão de sentido quando substituímos uma designação por outra, no
eixo da formulação, através das seguintes famílias parafrásticas:

“A polícia de Atibaia surrava meu filho”

“Os militares de Atibaia surravam meu filho”

“Os torturadores de Atibaia surravam meu filho”

“Os criminosos de Atibaia surravam meu filho”

Esquema 10. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.


182

Conforme podemos observar, a cadeia parafrástica instaura um percurso de


diferentes efeitos de sentido à medida que o trabalho da memória produz ruptura
naquilo que é logicamente estabilizado no testemunho e determina os deslizamentos
de sentido para “polícia”. Assim, quando o sujeito realiza tal denominação, projeta-se
uma imagem negativa para a polícia [assim como os militares fizeram com o
“comunista”], uma vez que ela passa a ser falada socialmente do lugar do criminoso.

Diante disso, pondo em emergência o funcionamento da memória e do pré-


construído, além das condições de produção da tortura, no âmbito da Ditadura
Militar, os deslizamentos de sentido apontam, diante do processo discursivo acima,
para a criminalização da polícia, uma vez que se lança a “polícia” numa região de
sentido outro, singularizando-a. Daí a não aceitação ou o “estranhamento” da
violência que recai sobre a denominação “polícia”, uma vez que, no imaginário
social, espera-se um comportamento diferente para a “polícia”: a proteção da vida, e
não a imposição do medo.

A organização discursiva do testemunho acima é um exemplo do modo como,


para não dizer que a polícia matou e torturou deliberadamente com a legitimação do
Estado, formula-se um dizer atravessado de silêncios. E quanto mais silêncios se
instalam, mais efeitos de sentido se instauram, ficam à deriva. Com efeito, há uma
ambiguidade de significação para a materialidade “polícia” e o próprio jogo de
projeção imaginária em torno dela (da “polícia”) (re)produz um campo de forças
antagônicas (desiguais), e, dessa maneira, todo aquele que fosse contrário aos
termos do Regime Militar era representado como “comunista” (“bandido”) a ser
perseguido pela polícia e, por conseguinte, lançado no espaço daquele que não
deveria ser protegido por ela.

Portanto, a opacidade da materialidade “polícia” põe em jogo o batimento


entre o mesmo e o diferente. Neste caso, porque recorta saberes de uma outra
memória, ou seja, não a memória da “segurança” que simbolicamente é atribuída à
polícia, mas de uma memória que a significa pela violência do gesto de “surrar”. É
este o efeito de sentido que toma corpo através das formas do testemunho e que se
inscreve numa rede memória contrária à FD da resistência (esta última marcada pela
luta contra a violência da Ditadura Militar) a partir da qual o “EU” (Damaris) enuncia.
Assim, ao formular discursivamente que “A polícia de Atibaia surrava meu filho” o
183

testemunho instaura para a “polícia” um lugar de identificação/recobrimento que se


erige sob a égide da arbitrariedade do aparato policial com a chancela do próprio
Estado.

Pois bem, o trabalho da memória confere à polícia outros contornos porque


esse dizer outro se inscreve em outra FD (da violência chancelada pelo Estado),
diferente daquela [FD] que concebe a polícia como mecanismo de proteção contra a
violência. No jogo de imagens que aí pode se sustentar podemos observar, pelo
menos, que três formações imaginárias são postas em movimento através do
testemunho: a) a imagem construída da violência para a corporação militar na
esteira da Ditadura Militar; b) a imagem construída para aquele (a polícia) que
deveria proteger a população, assegurar e zelar por sua integridade física, moral e
social; c) a da tortura como uma política de Estado, a do crime contra os Direitos
Humanos como algo recorrente, o assassinato de vítimas na sessão de
interrogatório e a tortura como algo extremamente banal.

Podemos observar, portanto, que o testemunho recupera novamente um


discurso-outro, o que nos permite pensar aqui no jogo entre duas posições-sujeito,
inscritas em FDs antagônicas, que podem ser assim concebidas: 1ª posição-
sujeito: “a polícia militar é responsável pela tortura”; 2ª posição-sujeito: “a polícia
militar deveria proteger as pessoas da tortura”. Diante disso, pelas pistas dadas pelo
testemunho, podemos entender que a primeira posição-sujeito corresponde ao
sujeito representado, em primeira instância, por um Aparelho Repressivo do Estado
(o Exército) nas condições de produção da Ditadura e, por sua vez, a segunda
posição-sujeito corresponde ao sujeito, por assim dizer, representado por um
Aparelho Ideológico do Estado (a polícia) nas condições de produção da
democracia.

O processo de (não) denominação, renomeação, substituição e metaforização


acarreta também – conforme vimos em relação aos comunistas – a ressignificação
do sentido através do silêncio à medida que, ao tomar um significante pelo outro,
podemos perceber que sentidos outros são inscritos no fio do discurso. Tal processo
instaura um jogo de memória que apaga e silencia sentidos “indesejáveis” e que
afeta, portanto, a relação de identificação daquilo que pode ser denominado e, por
extensão, renomeado. Daí podermos entender, com efeito, que o termo “polícia”
184

estabelece o seguinte efeito de sentido: a criminalização da polícia na conjuntura


política da Ditadura militar quando vincula a imagem da “polícia” ao submundo do
crime. Neste caso, relacionar a denominação “polícia” com a “tortura”, por exemplo,
implica intervir nos sentidos que estão saturados historicamente na memória social
para a “polícia”, ou seja, significando-a de outro modo.

Em suma, denominar “polícia”, nessas condições de produção, implica


conceber os agentes do Estado como uma organização criminosa e, ao mesmo
tempo e no mesmo lugar, denunciar a sua impunidade. O efeito que se produz no
enunciado: “A polícia! A polícia de Atibaia surrava meu filho [...]” é o de reforçar e
especificar a violência praticada pela polícia (pelos militares [“ELES”]) enquanto
crime e, por sua vez, ao usar o significante “polícia” ao invés de “criminoso”,
denuncia-se a impunidade da própria “polícia”. Portanto, diante do funcionamento de
uma denominação, o processo de significação de “polícia” se desdobra em
diferentes formas, conferindo, dentro do jogo político-ideológico, a instauração de
posições discursivas distintas, à medida que sentidos diferentes que operam no
testemunho são (re)inscritos e (re)atualizados numa rede de memórias. Sendo
assim, podemos entender que a voz do testemunho denuncia a “polícia” e põe à
prova um pré-construído: a polícia, enquanto representante do Estado, deveria
proteger as pessoas no âmbito da sociedade, e não as torturar. Por isso, partindo da
premissa de que o pré-construído dá forma a memória (social e discursiva),
podemos formular o seguinte: se pensarmos na “polícia” nas condições de produção
atuais (que inclusive ainda continua sendo “militar”), podemos perceber, em alguns
casos, a presença dessa memória outra (do crime, da violência) funcionando a partir
desse já-dito sobre a “polícia” na Ditadura Militar.

Passemos, agora, ao próximo movimento de análise.

4.1.5 Os limites da representação no testemunho

A noção de Real se instaura no campo da psicanálise lacaniana e se desloca


para o campo da Linguística – a partir de Milner (2012 [1978]) – para compreender o
funcionamento da língua(gem) para além das fronteiras estabelecidas pela
imanência da língua. Assim, Milner defende a tese de que há o impossível que
185

escapa inevitavelmente à língua (a alíngua), ou seja, de que o todo nunca pode ser
capturado, pois há algo que sempre escapa à representação simbólica. É a partir
desta reflexão que – no quadro teórico da AD – Gadet & Pêcheux (2004 [1981])
estabelecem uma dupla-forma do Real: o da língua, através da hiância, do equívoco,
da falta estruturante, aquilo em que a língua tropeça, o lapso; e o da história, que
implica reconhecer que a contradição também atravessa constitutivamente o sujeito,
a ideologia, o discurso, o sentido.

Diante disso, nesta sequência de análise, refletimos sobre a impossibilidade


de completude, sobre a resistência à inscrição no testemunho por meio de uma falta
constitutiva que marca e potencializa o limite do dizer de um sujeito através das
pausas, da hesitação, das reticências e do silêncio. Tal empreendimento nos permite
pensar o testemunho também como o lugar de inscrição do impossível e, ao mesmo
tempo, como o espaço de um sujeito que busca por verdade e luta por justiça, mas
se depara com o Real (PÊCHEUX, 2012a [1983]). Além disso, neste momento da
análise, também pontuamos a questão do acontecimento discursivo no jogo entre
atualidade e memória como causa do/para o testemunho no Relatório Final da CNV.
Vejamos:

 TESTEMUNHA-1457
 SD-14: “[...] Ele chegou. Nós, todo mundo chorando, ele ficou muito...
Mas ele não contava para nós [...] quando ele chegou a gente percebeu
que ele vinha mancando de uma perna. E a gente perguntava para ele:
„Papai, te machucaram?‟ „Não, não, não.‟ „O que foi que houve?‟ [...] Daí,
então, eu não fiquei sendo a mesma pessoa como nenhum dos nossos
irmãos ficaram sendo a mesma pessoa. Porque a gente tinha que viver
com aquela história bem ali. Sem ter com quem dividir. Sem ter a quem
pedir apoio, sem ter com quem desabafar. Ao longo da nossa vida, a
gente olhava para ele e a gente via aquela cena. Parecia que
estávamos revivendo [...] A gente imagina o que ele sofreu. E a gente
não esquece. [...]. E nós fomos prisioneiros dessa história de saber e não
poder contar para ninguém” (BRASIL, 2014, p. 381-383, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1558

57
Segunda parte do depoimento de Maria de Jesus Sousa Santos, que, em 22 de outubro de 2013,
contou como foi o padecimento da família de Antônio Alves Rodrigues − preso sem ser militante,
apenas porque era amigo íntimo de Epaminondas Gomes de Oliveira.
58
Em depoimento a CNV, Maria Aparecida Costa relata torturas que sofreu na Oban, entre
dezembro de 1969 e janeiro de 1970. Arquivo CNV, 00092.002323/2013-89.
186

 SD-15: “O simples fato, eu acho, de você estar no meio de homens, só


homens. Só homens que têm sobre você um olhar, como eu diria? É o
olhar que te... Pelo fato de você ser mulher, também você percebe que
há talvez, às vezes, uma raiva muito maior, eu não sei se é pela questão
de achar „por que uma mulher está fazendo isso?” (BRASIL, 2014, p. 404,
grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1659
 SD-16: “Torturas terríveis mesmo, principalmente o choque elétrico, que é
a pior coisa que existe. Tudo era mais suportável, mas o choque
elétrico... E vou falar uma coisa que me ocorreu muitos anos depois, que
é o sadismo dos torturadores. [...] eles pegavam as partes mais
sensíveis do corpo, que são as partes mais erógenas, mais sensíveis às
relações amorosas, mais nervosas. Que são o pênis, os lábios, as partes
mais sensíveis. É uma tragédia [...] são também as partes que os
algozes, os torturadores...” (BRASIL. 2014, p. 403, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1760
 SD-17: “[...] pensa bem, você está dentro de um banheiro e você ouve os
gritos de horror, porque os gritos de tortura nao são gritos... [...]”
(BRASIL. 2014, p. 419, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-1861
 SD-18: “Eu comecei a pensar nos meus alunos, eu sabia que eu tinha
muitos alunos envolvidos em movimentos socialistas, sindicalistas. [...]
tudo isso na minha cabeça foi dando um pânico tão grande, um medo de
falar um nome de um aluno, o medo foi tão grande, foi uma coisa
assim.... tão inumana, que eu tenho a impressão que com aquele pavor,
aquela coisa toda, que eu só pensava nos alunos, que eles iam me
torturar, e que eu não ia falar o nome de um aluno, eu não podia falar um
nome, eu não queria falar um nome, eu não ia falar um nome, essa coisa
foi tão apavorante [...]” (BRASIL, 2014, 413, grifos nossos).

Na SD-14, produz-se um jogo de memória que gira em torno da negação


diante do questionamento da família sobre os acontecimentos na sessão de
interrogatório e tortura e sugere, de certa forma, a preocupação que se tinha de
59
Depoimento de José Carlos Zanetti, preso em maio de 1971, em Feira de Santana (BA), e
submetido a torturas no forte do Barbalho, em Salvador.
60
Depoimento de Ieda Akselrud de Seixas.
61
Testemunho da professora Helena Pignatari Werner. Ela também estava grávida de três meses
quando foi mantida presa por uma semana em um depósito de material sanitário improvisado para
servir como cela, no quartel de Quitaúna, Osasco.
187

proteger os familiares da subjugação e da violência dos militares conforme recorte a


seguir: (“E a gente perguntava para ele: „Papai, te machucaram?‟ „Não, não,
não‟”). O silêncio, aí encontrado, também recobre este espaço de proteção, de
cuidado com os familiares que poderiam ser vítimas da truculência da Ditadura
Militar. Silenciar, neste sentido, assume um efeito também de resistência do sujeito
contra a arbitrariedade daquele acontecimento. Daí o efeito de um duplo silêncio: do
pai que silenciou, para protegê-los, e que portanto nunca pôde ou nunca foi capaz
de dizer o que viveu aos próprios filhos, o silêncio imposto, pelas condições de
produção, pelo medo, pela falta de um Estado disposto a escutar.

O desejo de justiça também trabalha, neste recorte, contra as forças do


esquecimento através da relação entre as formas do testemunho. O ato de lembrar,
mais uma vez, instaura-se como uma forma de resistência, logo como um desejo de
justiça que ainda não chegou: (“Então, aquilo ali foi uma injustiça muito grande.
Ele sofreu sem poder pedir socorro, sem poder declarar o que estava
acontecendo”). Sobre a posição que o sujeito pode ou não assumir em seu
discurso, o testemunho possibilita ao sujeito – mesmo diante do efeito de uma
justiça que é sempre adiada –a oportunidade de ocupar outro lugar de fala e,
principalmente, enunciar deste outro lugar social que agora é acessível ao sujeito:
(“E nós fomos prisioneiros dessa história de saber e não poder contar para
ninguém. Não poder desabafar”).

Do ponto de vista da estrutura, observamos, no eixo da formulação do


testemunho, a ocorrência de uma marca subjetiva através da presença das
reticências:

 SD-14: “Nós, todo mundo chorando, ele ficou muito...”


 SD-15: “É o olhar que te...”
 SD-16: “Tudo era mais suportável, mas o choque elétrico...”
 SD-17: “os gritos de tortura nao são gritos...”
 SD-18: “[...] tudo isso na minha cabeça foi dando um pânico tão
grande, um medo de falar um nome de um aluno, o medo foi tão
grande, foi uma coisa assim....”
Cada pausa nos apresenta – através do tropeço do sujeito na sintaxe – a
pista para algo a mais que é impossível de inscrever-se no testemunho (seu Real
188

porque possibilita que algo aqui fique de fora do campo do simbólico, seja
irrepresentável porque há aí a falta do significante), que impede o sujeito de acessar
o simbólico. Logo, estamos diante de algo que não pode ser simbolizado diante de
um trauma, da tortura que produz uma quebra na lembrança e lança o sujeito no
espaço Ø enquanto representação de uma ausência. A testemunha aqui se coloca,
pois, diante de uma dificuldade paradoxal: ela narra justamente o inenarrável, aquilo
que escapa a toda forma de representação e constitui-se dos restos, das sobras,
daquilo que é recalcado do registro do simbólico e do imaginário, da hiância
estrutural que afeta a instância do simbólico e do imaginário.

Diante deste funcionamento, concordamos com Daltoé (2016a, p. 164)


quando observou que “as pausas marcadas pelas reticências [...] são pistas do quão
difícil é voltar à história do passado e ressignificá-la no presente, do quão difícil é
trazer a experiência de tortura para o plano do simbólico”. Com isso, a tese que
sustenta que a linguagem é transparente é posta à prova, além de simbolizar que o
passado exerce um forte impacto sobre o sujeito que se lembra dele (do passado)
no presente. Além disso, tal marca subjetiva funciona como sintoma do equívoco no
campo da enunciação e, por sua vez, da falta que irrompe no domínio da sintaxe (da
língua). Nesse sentido, a palavra falta (faz falhar o ritual da sintaxe) ao recuperar o
que aconteceu e põe em xeque o limite da representação simbólica e da própria
dizibilidade no testemunho.

Logo, é a partir desse ponto que respondemos a outra questão importante na


tese: como a falta, que marca a presença de uma coisa ausente constitutivamente,
se inscreve no testemunho? Defendemos que a voz do testemunho, nessa
perspectiva, se caracteriza pela fragmentação justamente porque é impossível de se
dizer o todo sobre esta memória, isto é, a formulação discursiva do testemunho
coloca em funcionamento uma falta, aquilo que é da ordem do irrepresentável, mas
que, no batimento entre a falta e o excesso, representa um gesto simbólico que
materializa a tortura e lança o testemunho na ambivalência que instaura um lugar de
fala (discursivo) sempre à disposição do efeito metafórico-metonímico, da falta e do
equívoco que, por sua vez, abre a possibilidade para o jogo que se dá entre o
funcionamento (imbricamento) da repetição do mesmo (paráfrase) e a produção da
diferença (polissemia).
189

Longe de representar uma mera “interrupção” do pensamento, tal quebra no


fio do testemunho o caracteriza como não linear (heterogêneo), lacunar, à medida
que o funcionamento da memória – o trabalho da memória – impede que o passado
seja apresentado e representado, neste caso, de forma contínua. E mais do que
isso, as reticências sinalizam – enquanto um fenômeno discursivo – um espaço que
permite a realização de um jogo entre um dizer que se assenta sobre um não-dizer,
um silêncio, a incompletude, e um dizer outro que irrompe na relação do mesmo
com o diferente. Partindo dessa premissa, podemos defender que, no testemunho,
algo sempre fica em suspensão, à deriva, e, consequentemente, abre a
possibilidade de um dizer outro que está presente, mas que não permite se
inscrever. Daí percebemos a fronteira que se instaura entre o silêncio e o Real no
testemunho, ou seja, um silêncio fundador que significa por si só diante da presença
daquele que resiste à simbolização.

Tal funcionamento representa o ponto em que o sujeito é incapaz de seguir


em frente, seu encontro com o impossível de simbolização diante da tortura, diante
de um sofrimento que se transformou em lembrança e que encontra no silêncio uma
maneira de significação, uma significação outra que escapa à própria representação.
A tortura produz, assim, o estilhaçar da memória de um eu que jamais poderá ser
reencontrado, instaura um sujeito com a vida nas mãos e sem saber viver, que não
consegue enxergar nenhuma luz no “fim do túnel”, pois foi lançado no fundo do poço
e não conseguiu mais retornar de lá.

Na SD-18, há um duplo funcionamento que aponta, ao mesmo tempo, para a


negação-silêncio, e a não nominalização diante da iminência da tortura: (“[...] aquela
coisa toda, que eu só pensava nos alunos, que eles iam me torturar, e que eu não ia
falar o nome de um aluno, eu não podia falar um nome, eu não queria falar um
nome, eu não ia falar um nome, essa coisa foi tão apavorante”). Primeiramente,
observamos que a nominalização falta ao tentar se referir à sessão de tortura: “foi
uma coisa assim....” “aquela coisa toda”, “essa coisa”, daí o efeito de “coisificar” algo
que é inimaginável, que não pode ser representado por nenhuma palavra que exista.
Em segundo lugar, por uma adesão ao silêncio que se sustenta pela repetição de
um mantra que se organiza em torno da negação para não falar: “eu não ia falar o
nome de um aluno, eu não podia falar um nome, eu não queria falar um nome, eu
não ia falar um nome”. Aqui, a repetição da negação, por metáfora, textualiza e
190

possibilita o espaço de subjetivação da resistência à violência que poderia recair


sobre o outro (os alunos). Portanto, estamos diante de uma forma de manifestação
do silêncio, do silenciar, como prática de resistência – tudo o que se deseja na
tortura é pode resistir e esse gesto de resistir se dá através do silenciar, do não
dizer, do não falar.

Diante disso, destacamos a persistência de uma memória justamente porque


há aí a presença de uma falta que se inscreve através do silêncio, da negação. É
por isso que a lembrança do trauma não é igual a outras formas de rememoração ou
reminiscência, porque o processo de lembrar não remete o sujeito apenas a um
acontecimento do passado, mas cristalizada a tortura no presente. Aqui, ainda, o
sujeito se afirma por meio da reincidência do processo de negação e se inscreve –
através do ato de testemunhar – numa FD de resistência, que, por seu turno,
materializa no testemunho o confronto entre duas posições-sujeito: a posição-sujeito
“do ser professor” (projetada) versus a posição-sujeito “do ser militante” (ocupada).
Neste caso, ainda, quando se exige que o sujeito fale a “palavra proibida” (o nome
do aluno), ele fala de outra forma ao optar aqui pelo silêncio. Conforme dito
anteriormente, essa reflexão aponta também para o conflito ético que envolvia o
sujeito na sessão de tortura; devo falar ou omitir a “verdade”? Em todo caso, a
consequência para a vítima era sempre terrível porque antes de tudo existia uma
espécie de prazer (um fetiche masoquista) na tortura e no sofrimento do outro, uma
vontade de matar mesmo.

As SD‟s a seguir, por sua vez, confirmam este encontro do sujeito com o
impossível e denunciam a herança da tortura:

 TESTEMUNHA-1962
 SD-19: “Depois que eu saí, eu fiquei fechada, encerrada. Não queria
saber de nada e nem de ninguém [...] Eu tinha perdido a linguagem
verbal. Fiquei fechada, fechada. Minha vida foi ali um ponto – parágrafo,
até eu ver como eu iria começar minha vida, eu não sabia mais [...].
Acabam com a sua vida e aí você tem que ver como é que você vai
refazer o seu eu, para você ver que vida você quer ter, para onde você
vai. Então, a primeira coisa foi que acabou tudo até recomeçar outra vez,
mas nunca mais do [mesmo] jeito. A violência acaba com o ser

62
O trauma representa uma forma de sofrimento continuado que, no limite, leva ao emudecimento.
Depoimento de Roseli Lacreta, presa e submetida a tortura em instalações da Aeronáutica, no Rio
de Janeiro, em 1971.
191

humano. [...] A violência, ela impede, ela [...] interdita o movimento de


crescer, então você regride, você fica todo encapsulado” (BRASIL. 2014,
p. 427, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2063
 SD-20: “[...] eu fiquei com muito trauma, por muito tempo, muito, muito,
muito tempo. Eu não consigo lembrar... Outra coisa é o pavor que eu
tinha das pessoas, pavor de pessoa de farda, tinha medo de pessoas
fardadas, tinha pavor. E eu tinha fobia social, não conseguia ficar junto
com as pessoas” (BRASIL, 2014, p. 428, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2164
 SD-21: “Você não esquece. Essa condição que te limita nas relações
com as pessoas, porque você tem um constante medo de perder, medo
de ser traída, medo de trair. É uma constante isso. São sensações
horríveis que você vive com elas, não perde, não tem jeito [...] É uma
coisa quase que impossível. [...] Eu fui filha [...] de dois perseguidos [...]
Então viver a fragilidade do núcleo familiar, a fragilidade e a
precariedade desse núcleo familiar que pode ser desfeito a qualquer
momento, então ele não tem uma base sólida e profunda. Você não
consegue construir isso. A outra coisa é que você transmite depois
para os próprios filhos. Eu transmiti para minha filha,
involuntariamente, uma mesma condição de precariedade [...] Eu
repeti com minha filha exatamente aquilo que aconteceu comigo”
(BRASIL, 2014, p. 428, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2265
 SD-22: “Os dois filhos são sequelados [...]. A Kátia acha que eu não
devia ter tido filhos [...]. Eu nunca conversei com eles sobre isso [...]
Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de tudo, né? Sente tudo,
né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? [...] Ela esteve
internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso
dizer que umas 15 vezes ela tentou o suicídio. E sempre na minha frente”
(BRASIL. 2014, p. 429, grifos nossos).

Conforme podemos observar, a tortura destrói o sujeito em muitos aspectos.


Neste recorte [SD-19], a voz do testemunho denuncia uma forma de violência que se

63
Depoimento de Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Ele relatou o impacto de ter sido preso com
a mãe, Jovelina, e levado para a Oban, onde já estava seu pai. O menino tinha apenas um ano e três
meses e foi uma das quatro crianças banidas com outros 40 presos políticos enviados para a Argélia,
em junho de 1970.
64
Depoimento de Denise Peres Crispim. Ela estava grávida de seis meses quando foi levada presa,
em 23 de julho de 1970, para a Oban, em São Paulo.
65
Depoimento de Eva Teresa Skazufka, capturada em junho de 1970 pela Oban, em São Paulo.
Durante um mês, Eva e seu filho Fernando, de um ano, eram obrigados a comparecer ao DOPS.
Com apenas 30 dias de vida, sua filha Kátia também acompanhava a família.
192

instaura justamente pelo/no silêncio como sintoma do trauma: (“Eu tinha perdido a
linguagem verbal”). Ora, perder a linguagem verbal implica, neste caso, a
impossibilidade de tomar a palavra, a enunciação e, consequentemente, proíbe-se
que o sujeito possa acessar o espaço do simbólico, logo impede-se que ele (o
sujeito) possa significar[-se] através da linguagem. O silêncio aí instaurado configura
mais uma marca/efeito da violência sobre o sujeito. Pois bem, o testemunho nos
lança novamente na reflexão em torno do simbólico e do Real. Neste caso,
comungamos com Mariani quando defende que os testemunhos:

[...] que relatam processos de extrema violência contra a própria


condição humana, situações em que se perde o direito ao uso da
língua, em que a fala é totalmente impossibilitada e em que os
referenciais de vida cotidiana, do ordinário de sentidos, em um
mundo semanticamente estabilizado, são apagados, encontra-se o
que estamos chamando de dessubjetivação. Não se trata, apenas,
de uma ausência de significação para si ou sobre si mesmo, em
função do desmantelamento de uma memória em que o sujeito se
ancorava para suportar seus dias. Trata-se, também, da insistência
em uma única significação (interpretação) mortífera que advém do
Outro, que interpela o prisioneiro como um nada e o joga nesse
nada, em que nada do humano, mesmo ações rotineiras, como o
barbear-se, faz algum sentido (MARIANI, 2016, p. 51).

Com esse gesto, o sujeito fica fora da linguagem e, consequentemente, é


obrigado a ficar fora do simbólico porque é na/pela apropriação da linguagem que se
é sujeito. Nessa perspectiva, o simbólico ganha uma relevância primordial porque é
somente através dele que surge a possibilidade de se tentar preencher os vazios e
as faltas que se inscrevem no testemunho. Neste caso, o ato de testemunhar (de
dizer) funciona como uma tentativa de o sujeito captar o Real para que se possa
acrescentar algo à falta que promove furos no testemunho. Aqui, corroboramos com
a tese lacaniana de que “[...] o Real é o que é estritamente impensável” (LACAN,
1974, p. 3). Neste caso, haveria um rompimento do nó borromeano (R.S.I.), uma vez
que a experiência-limite, através da tortura, desloca o sujeito para o campo do não-
lugar. Nos termos de Lacan (1974-1975) teríamos:
193

Figura 10 – Nó borromeano

Lacan: R.S.I (1974-1975). Adaptado pelo autor da pesquisa.

Conforme podemos observar, diante do trauma, o Real esburaca o simbólico


e o imaginário não permitindo o fechamento destes dois elos da corrente, de modo
que, com a quebra do nó borromeano, o “EU” (sujeito) do testemunho é capturado
apenas pelo elo da cadeia do Real, ficando, dessa forma, foracluído dos espaços
que organizam o simbólico e o imaginário devido a não representação destes
lugares (vale dizer de uma sobreposição do Real sobre os outros registros), mas que
se recuperam pela imagem mnêmica que deixa a impressão ou rastro no corpo
frente à violência da tortura sofrida: “As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de
mim” (ROUSSEFF, 2014, p. 387).

Estamos, assim, no espaço do inatingível que não pode ser acessado e nem
verbalizado. Portanto, o testemunho se instaura aqui como espaço de possibilidade
de inscrição do simbólico em meio ao impossível que se dá através da falta e é
exatamente essa incompletude, esse não-todo que luta por simbolizar aquilo que,
194

por essência, escapa ou resiste à simbolização, ou seja, a tentativa de simbolização


do Real. Dito de outra forma, a voz do testemunho realiza “[...] um apelo ao
imaginário e ao simbólico para dar conta de uma abertura traumática no real”
(BALDINI, 2018, p. 32).

O silêncio do sujeito sobre os fatos que aconteceram no passado também é


um sintoma da violência e que se instaura na tortura como uma forma de proteger
ou poupar os filhos dos efeitos do sofrimento, embora isso seja impossível. A
negação do passado aos filhos se configura, portanto, como uma forma de proteção,
de cuidado com o outro, e marca o sintoma do medo. Com efeito, a tortura emudece
o sujeito, realiza o apagamento do “EU” e, conforme dissemos anteriormente,
impossibilita o mecanismo de simbolização porque se oblitera o lugar de constituição
do sujeito por excelência – a linguagem –, faz com que ele se aproxime do Real
através de uma experiência-limite e seja despido de toda a dignidade humana.
Portanto, diante da herança da tortura, o que resta é a cisão do sujeito que foi
foracluído da linguagem, um esvaziamento, um estranhamento do próprio corpo que
foi dilacerado pela violência e que ainda preserva em si as marcas da agressão. É
algo inenarrável e inominável, não tem forma, não tem contornos, não tem borda,
não tem rosto, não tem voz, não faz jus ao significante, mas, mesmo assim, tem
existência e nos abre a possibilidade de (re)pensar o irrepresentável e de buscar,
através dos furos e lacunas, atribuir-lhe ressignificações no testemunho.

O trauma vivido durante a tortura, no contexto da Ditadura Militar, provoca


uma espécie de ruptura na memória, ou seja, a presença do trauma faz com que
algo resista à representação da memória. Neste caso, a vítima se sente
impossibilitada de fazer qualquer representação desta memória através da palavra,
ficando, igualmente, impedida de seguir em frente e optando pelo silêncio.
Entretanto, conforme nos lembram Courtine e Haroche: “o homem de palavras é um
homem do silêncio [...] para certos textos o silêncio é antes de tudo [...] uma
necessidade política” (COURTINE & HAROCHE, 2016, p. 186) e,
consequentemente, um lugar de resistência. Diante do testemunho, também se diz a
partir do silêncio, uma vez que este último representa – em nosso gesto de
interpretação – uma das várias posições que o sujeito pode ocupar para enunciar o
seu discurso, principalmente porque estamos perante o discurso de uma vítima da
195

tortura, ou seja, que foi diretamente afetada pela violência e a repressão da Ditadura
Militar no Brasil.

A possibilidade de poder ocupar outra posição-sujeito, nas condições de


produção do presente, implica necessariamente inserir-se no sentido que foi
proibido, conforme dissemos anteriormente, e aí poder (re)significar a memória
também pelo silêncio. É justamente aí, no limiar do dizer e do silenciar, que o sujeito
marca – por meio dos furos da memória – a possibilidade de estar na linguagem e,
por conseguinte, no espaço do simbólico, na instância do sentido. Aqui, então, o
silêncio é invocado como uma “resposta” do sujeito frente à coerção e à violência
que obrigaram o sujeito a falar nas sessões de tortura, ou seja, o sujeito silencia
porque dele exige-se que fale. Diante disso, o silêncio aí configura um gesto de
resistência do sujeito (e da língua) frente à violência dos torturadores.

Portanto, há, no testemunho, um silenciamento de resistência necessário que


entendemos como constitutivo para que se estabeleça uma posição-sujeito, ou seja,
o lugar e o seu modo de dizer (im)possível. Assim, no testemunho, há um impossível
de tudo se dizer porque o silenciamento também ocupa o espaço do impossível,
onde algo é sempre apagado ou nunca diz ou se diz de outra maneira (o primado do
outro sobre o mesmo) por meio de determinações históricas e ideológicas que
marcam, assim, na ordem do discurso e da memória, os deslocamentos de
posições-sujeito, o jogo das denominações, das representações imaginárias e,
consequentemente, à deriva dos sentidos que organizam o testemunho.

Nessa perspectiva, o testemunho surge como uma forma de tentar simbolizar


e significar uma memória, e que somente agora é possível de ser narrada através da
rememoração que reconstrói um espaço de voz e permite que o sujeito assuma tal
posição. Portanto, ao se inscrever aqui na posição de testemunha, o sujeito avança
na direção da simbolização, ainda que pelo viés da fragmentação de fios mnêmicos,
na tentativa de elaboração de um esquecimento apaziguador. Neste ponto, mais
uma vez, o testemunho instaura a possibilidade de inscrição de um lugar
irrepresentável, mas que atravessa a escrita do testemunho ou, para utilizar os
termos de Lacan, estamos diante de uma “escritura que suporta um Real [...] esse
Real se basta para deixar aberto esse traço de escrita, esse traço que está escrito,
que suporta a idéia do Real” (LACAN, 1974, p. 9).
196

Diante disso, o sintoma do trauma instaura uma certa ambiguidade (de


ruptura e continuidade) no discurso à medida que o testemunho se realiza por um
sujeito que é dotado de linguagem, mas, diante do encontro com o Real, ocorre uma
ruptura na ordem da linguagem verbal. Daí o testemunho se caracterizar, no eixo da
formulação, pela digressão, pelo lapso. Mais que isso: o gesto de poder dizer (a
tomada de posição de testemunha), só agora possível, também produz efeitos de
resistência no testemunho, discursiviza a resistência, e a partir dela o sujeito
significa. Aqui, através da resistência, o sujeito ousa assumir este lugar, ousa falar
de e sobre, ousa se revoltar. Portanto, defendemos que o sentido de resistência, que
se inscreve no testemunho, está ligado à possibilidade de discursivizar a memória
da Ditadura Militar.

Na SD-19, ainda, encontramos a pista que nos leva a compreender que o


trabalho de memória aí inscrito está ligado à mutilação do sujeito: (“A violência
acaba com o ser humano. [...] A violência, ela impede, ela [...] interdita o
movimento de crescer, então você regride, você fica todo encapsulado”). Com
isso, ao trazer a tortura para o tempo presente, o sujeito nos mostra que ainda não
conseguiu se libertar das lembranças do passado de violência e que sofre com os
impactos da tortura. Estamos, assim, diante de um sintoma do trauma que toma
forma no trabalho da memória: o sujeito fragmentado, assujeitado, ao mesmo tempo,
ao passado e ao presente, sem perspectiva de futuro, preso num eterno presente de
violência e a única forma de virar a página seja, talvez, encontrada na tentativa de
esquecimento através do exercício da rememoração, no desejo de justiça e na
esperança da não repetição como garantia, na medida do possível, da sobrevivência
do sujeito.

Ao interditar o “movimento de crescer”, a violência conduz o sujeito a uma


subvida e ao não reconhecimento deste outro que se constituiu na tortura. Com isso,
através de duas projeções imaginárias, entendemos que aí ocorre um choque entre
um “EU” que se foi (que foi apagado de si porque a própria memória instaura o
esquecimento e o silenciamento) e um “OUTRO-EU” (o avesso do “EU”, um
“antissujeito”) fragmentado que se desdobra no presente, mas que o sujeito não o
reconhece enquanto parte si. A metáfora do espelho, aliás, pode representar bem tal
relação imaginária, pois estamos diante de um sujeito que não mantém nenhum
vínculo identitário com a imagem que é projetada no espelho por causa da fratura
197

provocada pela violência. Nessa direção de sentidos, o “OUTRO” torna possível –


através do funcionamento da memória – a presença de uma ausência constitutiva
porque o sujeito não se reconhece mais diante do espelho e o reflexo que aí se
inscreve é do unheimlich [“estranho”] que habita o sujeito [L‟étranger en moi] no
presente.

A autoafirmação do trauma acompanha a SD-20: (“[...] eu fiquei com muito


trauma [...] Outra coisa é o pavor que eu tinha das pessoas, pavor de pessoa
de farda, tinha medo de pessoas fardadas [...]”). Na SD-21 e SD-22,
encontramos, de maneira mais incisiva, as marcas da violência e a herança da
tortura: (“Então viver a fragilidade do núcleo familiar [...] você transmite depois
para os próprios filhos. Eu transmiti para minha filha, involuntariamente, uma
mesma condição de precariedade [...] Eu repeti com minha filha exatamente
aquilo que aconteceu comigo”). O testemunho nos deixa diante da violência
contra a vida e dos corpos mutilados, das feridas abertas e das sequelas profundas
que jamais poderão ser apagadas. Além disso, a SD-21 nos apresenta a pista para
formular que o sujeito que aí se inscreve está encapsulado [fechado entre quatro
paredes com uma lembrança] também por um excesso de memória e a falta do
esquecimento: (“Você não esquece”).

Na SD-22, Eva testemunha que a tortura que sofreu, nos porões da Ditadura
Militar, provocou sequelas em seus dois filhos: (“Os dois filhos são sequelados
[...] Eu nunca conversei com eles sobre isso [...] o bebê sabe de tudo, né?
Sente tudo, né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? Ela esteve
internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso dizer
que umas 15 vezes ela tentou o suicídio. E sempre na minha frente [...]”). Aqui,
as sequelas são entendidas como marcas (rastros) que impedem o trabalho do
esquecimento sobre a lembrança da tortura e que instaura, por assim dizer, um
esquecimento inatingível. Além disso, ao afirmar que (“Os dois filhos são
sequelados [...]”), o testemunho produz um efeito de sentido que joga com a
responsabilização daquele que provocou as sequelas através da tortura e, além
disso, confirma que a experiência com a violência no passado continua produzindo
efeitos devastadores no presente do sujeito que se lembra daquele acontecimento.
198

Por isso, na SD-22, temos a presença da marca, do rastro, da herança que


passa de geração para geração (da memória e da história que se repetem nos
filhos), ou seja, sugere que a violência sofrida por Eva na tortura atingiu, por
extensão de um efeito dominó, os dois filhos, que, por sua vez, tornaram-se
descendentes da memória da Ditadura Militar. Com esse gesto, encontramos
também a pista que aponta, neste discurso, para um confronto entre a posição-
sujeito mãe e a posição-sujeito de resistência à Ditadura. Além disso, temos aí mais
uma configuração de um sujeito que se lembra a partir do outro, que se torna
testemunha do outro através da transferência que se dá no próprio ato de
testemunhar, ou seja, que precisa da relação de alteridade [eu/outro] para que este
se reconheça enquanto sujeito. Ao se lembrar – a partir dos filhos – da violência a
que foi submetida nos porões da Ditadura Militar, Eva morre um pouco e sempre a
cada dia através de uma memória compartilhada (RICOEUR, 2007 [2000]). Aqui, é
justamente a lembrança dos outros que conduz o sujeito do testemunho à
consciência de um “EU”.

A separação entre pais e filhos (que já se caracteriza como uma forma de


tortura), a tortura de crianças e de mulheres que estavam gestantes, os bebês que
nunca puderam nascer, as vozes que jamais poderão ser ouvidas, tudo isso
contribuiu, conforme podemos observar, para uma ruptura do núcleo familiar ou
mesmo para a inadaptação ao ambiente familiar após o trauma, de modo que a
tortura provoca uma forma de violência que acompanha o sujeito por toda a vida
quando produz a quebra dos laços sociais. A tortura da mãe, neste caso, reverbera
e faz eco na vida dos filhos para sempre.

Conforme podemos observar, o sujeito que aí se inscreve apresenta a marca


que nos entrega a pista de que ele sofre, ainda hoje e para sempre, os efeitos da
interpelação do que ocorreu na tortura, isto é, cujos efeitos da violência ainda são
sentidos no presente pelo sujeito que rememora: (“São sensações horríveis que
você vive com elas, não perde, não tem jeito [...]”). Os efeitos do prolongamento
do sofrimento da tortura ao longo da vida – que passou de mãe para filha – são
pontuados no seguinte enunciado: (“Ela esteve internada várias vezes, a Kátia,
em clínica. Por quê? Porque eu posso dizer que umas 15 vezes ela tentou o
suicídio”). Daí encontrarmos, talvez, a característica mais marcante do testemunho
aqui analisado: o efeito de transmissibilidade de uma memória que apenas agora
199

pode ser publicizada, tornada pública. E mais que isso: quando o sujeito se lembra
daquilo que aconteceu no passado da Ditadura Militar, ele se lembra de sua própria
presença naquele acontecimento histórico, de sua condição que foi anulada na
sessão de tortura e que se confunde com a memória dos judeus e de tantas outras
minorias que sobreviveram aos campos da morte e que voltaram, de certa maneira,
à vida.
Cabe aqui, ainda, observar os efeitos de sentido diante da presença da
interrogação na SD-22: (“[...] Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de
tudo, né? Sente tudo, né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? [...]
Ela esteve internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê?”).

Na perspectiva teórica que estamos adotando neste trabalho, a pontuação


constitui um espaço de interpretação quando esta se inscreve no eixo da
formulação. Sendo assim, a interrogação, pensada discursivamente, introduz um
outro que não chega a se inscrever. Diferentemente das interrogativas
convencionais que abrem o caminho para um discurso outro, o funcionamento do
jogo de interrogações que opera no testemunho não é de um sujeito que espera
uma resposta, uma vez que ele [o sujeito] interpela (convoca) um outro para ocupar
uma posição que é de escuta, de um silêncio. Neste caso, a autointerrogação marca
no discurso uma falta que não pode ser preenchida, pois não há resposta que possa
justificar, neste caso, a submissão do sujeito à tortura.

Dito de outra forma, apesar da presença de um sinal de interrogação


marcando o enunciado, nós nos deparamos com uma pergunta que não pede
resposta, que produz um efeito de indignação frente à tortura. Tal funcionamento
não se caracteriza como uma “pergunta retórica”, mas como uma indagação que
impossibilita a inscrição de qualquer resposta que se liga à tortura e,
consequentemente, instaura o silêncio para ocupar [significar] o lugar da resposta. E
o que resta diante dessa pergunta insuportável? Uma resposta muda, o Real.

Diante disso, Eva representa, assim como as outras vozes aqui presentes, um
símbolo de resistência, um monumento à esperança, à memória, à justiça e à
verdade. Por esta razão, estamos diante de uma voz que incomodava (e que
incomoda ainda hoje para nos lembrar de não esquecer) por ser contrária à proposta
dos militares e, por esta razão, foi submetida à clandestinidade. Portanto, o
testemunho representa – assim como todas as outras vozes silenciadas durante a
200

Ditadura Militar e que aqui não conseguimos recuperar – um sujeito sobre o qual não
se produziu memória, ou melhor, sobre o qual se construiu uma memória outra
através das políticas de esquecimento e de manipulação da memória.

Hoje, no limite de nossa investigação e do próprio Relatório Final da CNV,


estas vozes e estas memórias começam a ser reinscritas na memória social. A voz
do testemunho denuncia, portanto, a arbitrariedade de um período de exceção e se
caracteriza, em última instância, como uma forma de não esquecer, isto é, de
resistência ao esquecimento que pode ser lançado sobre um passado que não
pertence apenas a um indivíduo. Dessa forma, o testemunho de Eva – assim como
todos os outros apresentados aqui neste trabalho – dá corpo a uma dor/luta plural e
instaura uma posição-sujeito que reclama por justiça. A violência aí representa –
com toda a potência que o significante violência possa capturar – o sintoma que
materializa o momento de falta do Estado perante aqueles que deveria proteger.

Por fim, vejamos também o jogo do acontecimento discursivo (memória e


atualidade) a partir das sequências a seguir:

 TESTEMUNHA-2366
 SD-23: “Toda nossa tortura era feita [com] as mulheres nuas [...] levando
choques pelo corpo todo. Inclusive na vagina, no ânus, nos mamilos, nos
ouvidos. E os meus filhos me viram dessa forma. Eu urinada, com fezes.
Enfim, o meu filho chegou para mim e disse: „Mãe, por que você ficou azul
e o pai ficou verde?‟. O pai estava saindo do estado de coma e eu
estava azul de tanto... Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no
corpo” (BRASIL, 2014, p. 410, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2467
 SD-24: “Estava grávida, já entrando no quinto mês de gravidez. Só que as
minhas funções físicas nao faziam perceber e a minha infanti...,
ingenui..., imaturidade para a situação também não. Eu fui torturada
grávida. [...] Essa situação, eu só consegui elaborar agora. Essa é a
primeira vez que eu estou contando, abrindo, colocando isso” (BRASIL,
2014, p. 412, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2568
 SD-25: “Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante
é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a
mulher é vadia, a palavra mesmo era „puta‟, „menina decente, olha para a

66
Maria Amélia de Almeida Teles teve os filhos raptados depois de ser presa com o marido, César,
em dezembro de 1972.
67
Testemunho de Márcia Bassetto Paes, presa cerca de 4 meses, no DOPS/SP, também perdeu o
bebe que esperava.
68
Izabel Fávero, depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013. Arquivo CNV, 00092.000088/2014-91.
201

sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação
os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta‟, enfim, eu não me
lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto
[...] eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza
que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque
eles tinham nojo de mim [...] eu lembro que eu tinha muita, muita, muita
dor no pescoço, quando a gente sofre choque, a gente joga a cabeça pra
trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais onde doía, mas enfim”
(BRASIL, 2014, p. 400, grifos nossos).

 TESTEMUNHA-2669
 SD-26: “„Por que uma moça está fazendo isso?‟ E é uma forma, talvez,
muito de querer te desqualificar de todas as maneiras. Inclusive, o mínimo
que você ouve é que você é uma „vaca‟. São as boas-vindas [...] E isso foi
crescendo e eu acho que você se sente exposto e você é exposto, você
enfim, se encontra diante deles de uma dupla maneira: você está
inteiramente nas mãos enquanto ser humano e na tua condição feminina
você está nu, você está à mercê, não é? Disso tudo. [...] Como os
homens também foram, mas talvez, por ser uma mulher, eu acho que isso
tem um peso terrível. Pela tua formação, pela formação social, ideológica”
(BRASIL, 2014, p. 404, grifos nossos).

Pensando a memória aí configurada, ou seja, numa perspectiva social,


histórica e, portanto, discursiva, direcionamo-nos aqui para o acontecimento
discursivo70, sobretudo pelo que propõe Pêcheux (2012a [1983]), Indursky (2015),
Mariani (2016) e Orlandi (2017), uma vez que ele instaura um espaço de
subjetivação do sujeito (e da memória) sob a batuta de um dizer outro sobre a
Ditadura Militar a partir do conflito entre diferentes posições-sujeito. É em meio a
esse funcionamento discursivo da memória – de retomada e ruptura – que
consideramos que a CNV, através de seu Relatório Final, invoca o testemunho para
perturbar uma ordem de memórias até então vigente sobre a tortura na Ditadura
Militar (o sentido pré-construído é atualizado face à memória discursiva nas
condições de produção do testemunho), ou melhor, instaura-se um processo

69
Em depoimento a CNV, Maria Aparecida Costa relata torturas que sofreu na Oban, entre
dezembro de 1969 e janeiro de 1970. Arquivo CNV, 00092.002323/2013-89.
70
Concordamos com Zoppi-Fontana quando propõe, também a partir de Pêcheux (2012a [1983]), que
“o acontecimento discursivo produz efeito de retorno (de deslocamento e desregularização) não só
sobre a memória discursiva e as materialidades discursivas que a configuram, mas também sobre os
próprios processos históricos e sociais dos quais o discurso participa como prática, agindo
eficazmente na reprodução/transformação das relações sociais” (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 182,
grifos nossos).
202

discursivo em torno da tortura, que, por sua vez, produz imagens distintas daquelas
sustentadas pela memória institucional do Regime Militar no Brasil.

Esse processo envolve – a nosso ver – a constituição de uma memória que


produz um efeito de sentido específico através do testemunho presente no trabalho
da CNV: o acontecimento discursivo que começa a se inscrever justamente “no
ponto de encontro de uma atualidade e uma memória” (PÊCHEUX, 2012a [1983], p.
17). Neste caso, a memória se produz pela possibilidade de dizer o que antes foi
interditado: um dizer outro sobre a violência, a tortura e uma nova forma de significar
tais processos no âmbito do modo de dizer a Ditadura Militar. Com efeito, o
acontecimento discursivo possibilita, ao mesmo tempo, uma espécie de continuidade
(pela possibilidade de invocar tal memória) e descontinuidade (pela possibilidade de
ruptura com tal memória) no interior da produção da memória. O testemunho, assim,
é concebido aqui enquanto fundador de uma discursividade outra e,
consequentemente, da produção de uma memória outra sobre a Ditadura Militar
brasileira que, somente nas condições de produção atuais, pode ser discursivizada
pelo sujeito. Daí também pode dizer livremente que os militares agiam através da
violência e da repressão: “[...] os agentes do Estado, os repressores [...]”. Assim, o
testemunho assume uma relevância capital porque, neste caso, dá voz a um sujeito
oprimido que foi – durante tanto tempo – invisibilizado através de uma ideologia
dominante, de um discurso autoritário-dominante.

E este funcionamento confirma a nossa hipótese inicial que concebe a voz do


testemunho como marca singular de um acontecimento discursivo – através do
Relatório Final da CNV – porque recupera um já-dito que, nas condições de
produção de agora, começa a ter o seu domínio de saber reatualizado e nos
apresenta uma nova possibilidade de significação ao romper com os saberes da FD
“autoritária” em que se inscreve a Ditadura Militar. Aqui, portanto, estamos
considerando que tal funcionamento possibilita dois movimentos do sujeito inscrito
no testemunho: a desidenticação com os saberes daquela FD e a identificação com
os saberes da FD da resistência que produz o testemunho que agora é possível
enunciar.

Defendemos, portanto, que o trabalho da CNV promove deslocamentos de


sentidos e instaura um novo modo de discursivizar a Ditadura Militar através da
203

atualização de uma memória, ou seja, institui-se aí uma nova ordem do dizer ou, por
assim dizer, uma nova ordem do discurso que dá condições para que
saberes/dizeres outros sobre a violência que ocorria nos porões da Ditadura fiquem
à deriva e somente nas condições de produção de agora podem significar de outra
maneira. Com isso, instaura-se um novo regime de discursividades e,
consequentemente, uma nova rede de saberes sobre as ações dos militares, bem
como se estabelece uma nova maneira de produção da memória a partir de um
saber já-dito (um percurso que já se inscreveu discursivamente antes e em outro
lugar) sobre a Ditadura que se choca com o presente através da atualização, em
certa medida, desta memória.

Diante disso, o testemunho produz efeitos de sentido que só podem ser


discursivizados agora, ou seja, só são percebidos pela irrupção de uma memória
diante da atualidade do acontecimento discursivo que se instaura com a CNV. O
acontecimento que aí se inscreve – em nossa leitura – possibilita a construção de
todo um saber outro sobre a Ditadura Militar, ou seja, permite que se produza uma
outra “verdade” sobre aquele acontecimento histórico. Logo, o dado “novo” aqui não
está no acontecimento histórico em si (a Ditadura Miliar), mas na (re)configuração de
uma outra rede de memórias que agora é possível começar a se estabelecer. Daí
entendermos que a CNV propicia aos sobreviventes o espaço (a posição-sujeito
antes impossível) para testemunhar, permitindo, assim, uma outra formar de dar
“rosto” e forma à Ditadura Militar, de dar voz a uma fotografia muda, instituindo um
lugar de resistência porque:

[...] passa-se a um acontecimento constituído por um gesto de


resistência que ecoa na história produzindo outro sentido, outra
posição-sujeito, outra prática social, que produz um furo, na falha da
ideologia, na memória discursiva que se estrutura pelo esquecimento
(ORLANDI, 2017, p. 109-110, grifos da autora).
Portanto, o sujeito que se inscreve no testemunho não é mais o sujeito das
condições de produção da Ditadura Militar, ou seja, um sujeito que sempre foi falado
pelo discurso oficial e que se inscreve, por seu turno, no Aparelho Repressivo do
Estado, mas o sujeito da resistência, daquele que ocupa uma outra posição e se
institui como porta-voz de um dizer outro sobre o Regime Militar no Brasil.

É a voz urgente da SD-23 – e de todas as outras – que agora sai do


anonimato e, mesmo quando ela falta, quando ela não consegue se inscrever no
204

gesto simbólico de testemunhar, produz a resistência. Daí a pergunta do filho que


fica sem resposta, que silencia o sujeito diante das condições de produção da tortura
e faz, por alguns instantes, o mundo desaparecer através do encontro com a falta,
com o silêncio que, neste caso, também lança, por assim dizer, o sujeito no Real:
(“„Mãe, por que você ficou azul e o pai ficou verde?‟”). O silêncio que aí se
inscreve, ainda, produz um efeito de resistência à violência e à tortura que poderiam
recair sobre os filhos. A proteção dos filhos se constrói, em última instância, por esta
ausência do dizer, por esta incompletude. A atualização de sentidos para a Ditadura
Militar, violência, repressão e tortura resulta da circulação de outros sentidos – agora
possíveis dadas as condições de produção de significação – para tais formas
materiais que se circunscrevem no âmbito do testemunho. É neste acontecimento,
portanto, que se dá a atualização da memória, que, por sua vez, pressupõe o
imbricamento de outras relações com a própria memória, com discursos outros. Dito
de outra forma, defendemos que aí a memória da Ditadura Militar começa a ser
atualizada à medida que a voz do testemunho produz, a partir de sua posição-
sujeito, uma outra discursividade sobre aquele acontecimento histórico e isso só é
possível, de certo modo, porque esse dizer outro se atrela àquela memória e os
sentidos que estão aí cristalizados na memória são atualizados pelo/no testemunho.

Na SD-24, a quebra na formulação de determinadas palavras: “infantilidade”,


“ingenuidade”, sugere o quanto é doloroso recuperar as memórias da tortura e, ao
mesmo tempo, marca o limite da dizibilidade por meio da palavra no testemunho.
Neste caso, a conexão entre o eixo da constituição e o eixo da formulação se rompe,
de modo que o sujeito é capturado pelo espaço da não representação e morre no
meio da palavra que falta simbolicamente. Além disso, ao assumir a forma nominal
do gerúndio, o verbo traz à tona o efeito de uma memória que está em curso e,
portanto, aponta-nos que o sujeito está mergulhado em um processo não acabado,
aliás, a marca do gerúndio é um sintoma do sujeito que ainda está imerso no evento
da tortura.

Na SD-25, gostaríamos de pontuar outro aspecto relevante: os efeitos da


violência, através da tortura, que ainda são intensificados por meio da repetição do
advérbio de intensidade “muito”: (“[...] lembro que eu tinha muita, muita, muita
dor no pescoço [...]”). Tal repetição sugere algo que não pode ser mensurado, uma
dor sem nome que não pode ser representada e nem simbolizada, algo que pode
205

ser insuportável e inimaginável. Daí o efeito de multiplicar os efeitos da dor por três.
Além disso, o testemunho faz trabalhar, de certa forma, uma espécie de
esquecimento porque é impossível recuperar plenamente uma memória: (“[...] eu
não me lembro bem se no terceiro [...]”). Com esse gesto, a voz do sujeito que aí
enuncia marca uma falta, ou melhor, produz o dizer de uma falta que se inscreve na
ordem da memória, e deixa transparecer a sua forma lacunar, ou seja, por mais que
ele tente se lembrar dos eventos da tortura, há algo que escapa à rememoração e
que, por conseguinte, permanece no silêncio da memória, na impossibilidade de
dizer e de esquecer.

Na sequência [SD-26], o testemunho materializa uma dupla forma de


assujeitamento para a mulher nas condições de produção da tortura: (“[...] de uma
dupla maneira: você está inteiramente nas mãos enquanto ser humano e na
tua condição feminina [...]”). Essa dupla maneira sugere que a mulher é vítima de
uma dupla forma de violência: a primeira, porque a humanidade se perde, na tortura,
para os sujeitos envolvidos no processo (torturador e vítima); a segunda, por sua
vez, diz respeito à condição de ser mulher (“feminina”) que intensifica
simbolicamente o processo de violência porque a mulher não se equipara aos seus
algozes: os homens, os militares, os torturadores.

A voz do testemunho ainda entra em embate através de uma contradição, isto


é, faz trabalhar o sentido através da contradição que se marca no discurso por meio
de um deslocamento de posição-sujeito:

“„[...] menina decente [...]‟” “„[...] tu é uma vadia [...]‟”


Esquema 11. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Diante desta configuração, percebemos que “ser decente” instaura um saber


que se inscreve numa FD que está em conformidade com os padrões da moral, da
ética, da dignidade, da correção, do decoro, enquanto valores caros à sociedade;
em contrapartida, “ser uma vadia” implica sustentar uma imagem daquele que é
amoral, ou seja, o oposto das qualidades que são desejadas e priorizadas na
sociedade; logo, invocam-se saberes de uma FD contrária a tais valores. Por outro
lado, se pensarmos na emergência do acontecimento discursivo na atualidade
histórica, podemos depreender um sentido outro para a denominação “vadia”, ou
seja, uma outra forma de subjetivar tal designação em outras condições de
206

produção, ou seja, “ser vadia” pode metaforizar sentido para “liberdade”, para “ser
livre”, para “ser o que eu quiser”, o que apontaria para uma FD “feminista” que se
inscreve – entre outros lugares – na bandeira da “Marcha das Vadias” que luta pelo
empoderamento feminino e protesta contra a violência sexual, o machismo, a
misoginia, o feminicídio e a desigualdade social entre homens e mulheres na
sociedade, por exemplo. Com esse gesto, há um deslocamento do termo “vadia” de
um cenário negativo para um cenário positivo, logo de resistência e reinvindicação à
medida que a emancipação da mulher começa a partir do momento em que a
sociedade passa a vê-la para além do papel sagrado preestabelecido e que a
coloca, exclusivamente, na posição de mãe, esposa, guardiã do lar e educadora dos
filhos.

Diante disso, ao acionarmos a memória através do eixo da constituição,


percebemos um jogo entre saberes que se inscrevem em FDs distintas, que, por sua
vez, nos apresenta os efeitos de sentido divergentes que se instauram por meio do
funcionamento da ideologia e da imagem que se construiu historicamente para a
mulher na sociedade: ora, é inconcebível, pelo viés de uma ideologia que se
sustenta como dominante, que a mulher seja “indecente” (“vadia”). Na sessão de
tortura, invocar para a mulher tais designações implica, portanto, produzir uma
violência simbólica sobre/para ela.

Daí a indignação (e o conflito entre posições-sujeito) que se apresenta na


sequência: (“[...] porque ser mulher e militante é um karma, a gente além de ser
torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era
„puta‟ [...]” – SD-26). Diante disso, percebemos que também aí se inscreve um
antagonismo entre posições-sujeito: a posição-sujeito mulher e a posição-sujeito
militante (“„Por que uma moça está fazendo isso?‟” – SD-26). Ao afirmar que
“[...] ser mulher e militante é um karma [...]”, a voz do testemunho põe em
funcionamento que, na tortura, existe uma relação entre causa e consequência,
ação e reação, que se produz diante do significante “karma”, como se a mulher
estivesse sempre predestinada à condição que aí se produz por ser mulher-militante
na Ditadura Militar. Vejamos os efeitos de sentido que se configuram, neste caso, a
partir do esquema a seguir:
207

Efeito do “Karma”

Causa ou Ação Consequência ou Reação

Posição-Sujeito Mulher Posição-Sujeito Militante

“Ser Mulher” “Ser vadia”

“Ser Militante” “Ser puta”

Esquema 12. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.

Conforme podemos observar, as formas do testemunho que aí se instituem


recuperam, através da lembrança, as condições de produção da tortura a que as
mulheres eram submetidas e, ao mesmo tempo, apresentam-nos as pistas para
podermos afirmar que a relação (machista?) entre “EU” (mulher) e “ELES” (homens,
militares), até na tortura, constitui-se por meio da memória que acompanha a
imagem da mulher historicamente: a submissão e a servidão, que, por seu turno,
contrapõe-se (irrompe na atualidade do acontecimento?) ao discurso do
empoderamento feminino que está hoje em jogo na ordem do dia. Os efeitos de
208

uma sociedade patriarcal produzem eco no testemunho da mulher no âmbito da


violência e traz à tona o seu papel de subserviência.

Aqui, os testemunhos também recuperam, através da memória, a tríade que


deu sustentação à Ditadura Militar por mais de vinte anos:

Figura 11 – Tríade da Ditadura

Desaparecimen
to
Forçado

Silenciament
Tortura
o

Fonte: Elaboração do autor da pesquisa

Cada testemunho vai denunciando, por meio do jogo de memória entre as


formas do testemunho “EU”, “NÓS”, “ELES” e o “OUTRO”, a tortura praticada pelos
militares durante a Ditadura Militar. Além da separação dos filhos de suas mães e
demais parentes, os militares ainda ameaçavam torturar as crianças na presença
das mães. Ao confirmar a prática de tortura realizada nos “campos da morte”, o
testemunho coloca em xeque a própria Declaração Universal dos Direitos Humanos
quando reza que:

Artigo III – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à


segurança pessoal. Artigo IV – Ninguém será mantido em escravidão
ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em
todas as suas formas. Artigo V – Ninguém será submetido à tortura
nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo
VI – Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares,
reconhecido como pessoa perante a lei [...] Artigo IX – Ninguém será
arbitrariamente preso, detido ou exilado (DUDH, 1948, p. 6-7).

Com a violação dos Direitos Humanos no Regime Militar, as consequências


da tortura para a vida das pessoas que sobreviveram à violência são inimagináveis.
Nesse sentido, a partir de cada testemunho, observamos a presença de uma voz
que denuncia a herança que aquele acontecimento histórico nos legou.
209

Em suma – considerando os efeitos da incompletude e, consequentemente, o


limite da dizibilidade –, é desta maneira que lemos a memória nestas análises: a
memória [subterrânea, marginalizada] do passado se estilhaça na memória [oficial]
do presente, que, por sua vez, se atualiza através do acontecimento discursivo e,
com isso, possibilita que a voz sem nome (a voz do silenciado) saia do anonimato,
seja restituída, e possa se inscrever em outra rede de memória, em outras
discursividades sobre a Ditadura Militar no Brasil. A relação história, memória,
acontecimento e testemunho instaura um trabalho com o político na produção de um
discurso-outro que se instaura como uma voz urgente que testemunha para lutar
contra o esquecimento, contra a violência arquitetada e praticada pelo Estado e seus
agentes. Defendemos, assim, que a CNV promove uma reconstituição desses
rastros, possibilitando uma compreensão singular do nosso passado histórico na luta
contra o esquecimento de uma memória “subterrânea”.

Logo, tal empreendimento coloca o sujeito que aí se inscreve numa posição


de resistência e o interpela a produzir um contradiscurso que é, por natureza, o
avesso da memória oficial que trabalha, cada vez mais, para minorizar o outro. É
diante de tal processamento discursivo que o Relatório Final da CNV funciona,
assim, como um acontecimento que promove a (re)formulação e a circulação de
outros dizeres constituídos numa FD outra e cujos saberes que aí se inscrevem
articulam-se para atualizar outros sentidos, outras “verdades”, outras memórias
sobre a Ditadura Militar que se institucionalizam historicamente e socialmente.

Ao possibilitar, em certo limite, a elaboração discursiva da experiência


traumática, a voz do testemunho produz – nas condições de produção da atualidade
que abrigam o acontecimento e, consequentemente, o lugar de memória que ele
instaura – um efeito de reivindicação que se inscreve na instância do dever de
memória, da justiça e da verdade: enquanto nos lembrarmos da crueldade e das
atrocidades da Ditadura militar, poderemos lutar para que ela nunca mais aconteça
(efeito déjà vu). A lembrança, neste caso, caracteriza-se como uma forma de resistir
à tentação da repetição daquele evento e, conforme já dissemos ao longo do
trabalho, como um compromisso ético com aqueles que lutaram contra a repressão
do movimento militar e foram vítimas de toda forma de tortura e do silenciamento.

Portanto, ao refletirmos sobre os testemunhos aqui apresentados, pelo viés


da AD, chegamos ao seguinte entendimento: este trabalho se une, de certa forma, à
210

resistência. Caracteriza-se, no limite da investigação, como espaço de resistência. É


um tributo à memória da resistência. É um apelo à justiça e à verdade para que
aqueles envolvidos com a tortura e a violação dos Direitos Humanos durante a
Ditadura Militar não se escondam mais nas sombras da Lei de Anistia (1979), que
não possam mais se regozijar com a impunidade de seus atos, com a “falta de
memória” do povo brasileiro e com o esquecimento que insiste em ser lançado sobre
aquele acontecimento sombrio de nossa história.

Por tudo isso, nós não esqueceremos jamais. Esta dor é nossa e, por mais
que tentemos, ela não pode ser mensurada. O fato é que o Regime Militar também
deixou marcas profundas na “tábua de cera” e o sofrimento daquele acontecimento
segue produzindo metástase na sociedade através do reflexo dos rostos, das vidas
que estão à deriva, dos rastros e dos restos de um passado-presente que
representa e (des)territorializa os efeitos de sentido que se inscrevem no
testemunho sobre aquela memória.
211

5 OS EFEITOS DE UM PONTO FINAL

A ilusão de que o esquecimento é suficiente, para


eliminar do cenário histórico determinados períodos,
sempre foi desmascarada. [...] a história não pode ser
sepultada como indigente, sob nome falso. Assim como
eles fizeram com os mortos enterrados em Perus [...]
para que eles desaparecessem. Para que não restasse
memória. Para que não pudéssemos sequer sepultá-lo.
Os desaparecidos do Araguaia, que estão enterrados no
cemitério de Xambioá, nas selvas, na serra da
Andorinha, quiçá onde eles foram sepultados para que
permanecessem no esquecimento da história desse
país (BRASIL, 2014, p. 432, grifos nossos).

Os efeitos de um ponto final... Nada mais que isso. É difícil concluir um


trabalho que se inscreve na AD: o lugar do não-um que interroga os universos
logicamente estabilizados, que nos tira a certeza e a evidência face à incompletude,
à ilusão (constitutiva) e à falta (estruturante). Então, qual é o próprio de uma
conclusão? Aqui, apenas um gesto. Um esforço último para atribuir significação por
meio de uma interpretação discursiva. Uma tentativa de contornar o impossível de
tudo poder dizer sobre qualquer objeto simbólico – como o testemunho – que se
inscreve à revelia, na resistência.

É justamente pensando sobre os efeitos de um ponto final que gostaria,


inicialmente, de fechar a minha reflexão como iniciei a tese: dando voz a uma
testemunha a partir da epígrafe acima. Ela é a voz urgente de Iara Xavier Pereira,
viúva de Arnaldo Cardoso Rocha e irmã de Alex Xavier Pereira e Iuri Xavier Pereira,
todos assassinados pelos órgãos da repressão durante a Ditadura Civil-Militar
brasileira e vítimas da prática de ocultação de cadáver. Portanto, ela é parte de um
“NÓS”. No jogo entre a transparência e a opacidade, há aí uma voz de denúncia: a
tentativa de um trabalho do esquecimento forçado (político-ideológico) que os
militares buscaram lançar sobre a memória. O testemunho fala por si só e dá uma
resposta imperativa ao passado: o esquecimento é uma ilusão, ninguém pode
escapar do julgamento da história, a memória que é gravada na “tábua de cera” não
pode ser completamente apagada, “a história não pode ser sepultada como
indigente”, cobra uma resposta sobre o passado e, de uma forma ou de outra, a
“verdade” sempre vem à tona, as vidas interrompidas e os corpos mutilados
permanecem à deriva, são rastros de memória, são as testemunhas daquele
212

acontecimento. Não há escapatória: a lembrança sempre perturba a ordem do


esquecimento.

Pois bem, realizar um trabalho desta natureza não foi uma tarefa fácil. Logo, o
caminho palmilhado para chegar até aqui foi, no mínimo, desafiador: pela forma
como fui tocado por cada testemunho aqui apresentado, por tantas outras vozes
silenciadas que não puderam ser recuperadas pela CNV (e muito menos aqui) e,
sobretudo, por perceber que ainda persiste na sociedade, da pior maneira possível,
uma memória manipulada sobre a Ditadura Militar. E mais que isso, foi difícil porque
pude compreender – num período que se diz democrático – que os Direitos
Humanos ainda continuam a ser violados, que as pessoas ainda continuam a
padecer nas mãos do próprio Estado; que lutar por espaços de voz voltou a ser
discursivizado como “terrorismo”, “subversão” e “balbúrdia”; que os ativistas dos
Direitos Humanos voltaram a ser presos – Lula –, exilados – Debora Diniz, Jean
Wyllys, Márcia Tiburi – e assassinados – Marielle Franco –; que o Regime Militar,
os torturadores (discursivizados como “heróis nacionais”) e o AI-5 voltaram a ser
exaltados na ordem do dia. Por tudo isso, este trabalho só poderia encontrar, de
certa forma, um lugar de interpelação e identificação: a resistência.

Portanto, para mim, o mais importante, além de ter chegado até aqui, foi não
desistir, continuar a lutar, seguir acreditando que tudo isso ainda pode mudar,
mesmo diante das adversidades. É por ter esperança, pois é com e por ela que luto
quando tudo parece estar perdido. Eis aí a razão de ser desta tese. Assim, agarro-
me aqui a esperança e ao desejo de que estas páginas possam fazer barulho e
chegar, de alguma maneira, até àqueles que, hoje ou amanhã, pedem nas ruas uma
intervenção militar, seja por desconhecimento da história, seja por acreditarem numa
memória que aí se saturou, seja por força política no jogo das relações de poder na
sociedade, seja pelo capricho de uma ideologia dominante, seja por tudo isso junto e
misturado.

Enfim, para dar consequência ao ritual acadêmico – mesmo sabendo que ele
também pode ser atravessado pela falha e pela incompletude – gostaria de retomar
e insistir nas questões que pontuei na introdução do trabalho:

1. Como se dá, no funcionamento discursivo do testemunho, o jogo entre a


lembrança e o esquecimento através das relações subjetivas que se
constituem entre as formas materiais “EU”, “NÓS”, “ELES” e o “OUTRO”?
213

2. Como é possível, no âmago do testemunho, a constituição de um sujeito


que opera na tensão do batimento entre o direito à memória e a
necessidade de esquecimento?
3. Como o testemunho tensiona, através da memória, do silenciamento e do
esquecimento, o jogo de projeções imaginárias?
4. Como a falta, que marca a presença de uma coisa ausente
constitutivamente, se inscreve no testemunho?
5. Como a Formação Discursiva da resistência regula o modo de dizer do
sujeito que se inscreve nos testemunhos aqui recortados e (re)produz a
(des)identificação e/ou a contraidentificação com determinadas posições?

Ao trabalhar, nas análises, para responder a essas questões, pude concluir


que o testemunho põe em movimento a tensão entre duas posições-sujeito que
produzem uma dupla-forma de esquecimento: por um lado, a voz do testemunho
materializa o desejo de esquecimento (um esquecimento aqui entendido no modelo
nietzschiano para que se possa seguir em frente), ou seja, a necessidade de que a
dor da violência, da tortura, da perda do ente querido e dos amigos seja, de certa
forma, amenizada através do direito ao esquecimento e do preenchimento de um
espaço simbólico deixado vazio; por outro lado, há o desejo da lembrança, do direito
à memória, à verdade e à justiça, ou seja, do dever de memória que envolve o
sujeito no compromisso ético-político consigo mesmo (e com o passado) através do
outro e contra o esquecimento (o esquecimento aqui entendido como político-
ideológico que manipula a memória para legitimar certas relações de poder na
sociedade). É justamente neste ponto de tensão (nesta dupla-forma do
esquecimento) que se produz a resistência e o mecanismo de identificação do
sujeito através das formas materiais “EU” e “NÓS” e, consequentemente, a
desidenticação subjetiva com “ELES” frente à tortura. Dito de outra forma, é porque
o sujeito é afetado pelo efeito simultâneo desse duplo-dever (lembrar e esquecer),
que o testemunho instaura as modalidades de subjetivação e (des)identificação da
forma-sujeito histórica e, por sua vez, produz também formas de resistência.
Observamos, assim, que no testemunho existe sempre algo que escapa e algo que
se mantém: aquilo que é da ordem do escapável (Esquecimento nº 1) é o que põe
em movimento um sujeito afetado pelo inconsciente; por outro lado, o rastro daquilo
que insiste em se inscrever (Esquecimento nº 2) representa o efeito de um sujeito do
214

desejo e da ilusão referencial que o interpela pela força de uma ideologia (uma FD)
dominante.

Daí o efeito da contradição (constitutiva) que se materializa por meio de um


duplo-desejo: esquecer para seguir em frente, lembrar para que nunca mais
aconteça. Portanto, é no batimento binário entre a memória e o esquecimento que o
testemunho simboliza a presença de uma falta, de um Real que resiste à
representação, mas que irrompe, fura, atravessa, costura, ou seja, materializa a
presença de uma ausência constitutiva como marca singular da prática testemunhal,
de um gesto discursivo que se inscreve à revelia da história e da memória “oficial”:
são os restos e os rastros de uma memória subterrânea que se juntam na luta contra
o esquecimento e buscam por uma justiça que ainda insiste em faltar e, nesta falta,
contribui para o processo de individuação do sujeito pelo Estado. Conforme
pudemos observar em cada gesto de análise, é justamente na impossibilidade de
ser que o testemunho é. É porque ele é impossível que se torna urgente. Ora, da
forma como o entendemos ao longo do trabalho, ele significa neste espaço lacunar
dos pontos de deriva, nos pontos de silêncio, de silenciamento, de apagamento, de
ruptura, de resistência e de (re)apropriação. Aqui, o jogo de sentido que se dá entre
a ausência (falta) e o testemunho não é de oposição, mas de constitutividade. Em
outras palavras, defendemos que é o trabalho da memória, do esquecimento, da
resistência e a inscrição do político na língua que produz o impossível do/no
testemunho e instaura um sujeito que, mesmo lançado no tempo presente, conjuga
o verbo e a vida no pretérito.

Além disso, o testemunho, também, só tem razão de ser em virtude da força


do acontecimento discursivo (INDURSKY, 2015) que se inscreve na história e insiste
em perturbar, ainda que timidamente, uma rede de memória sobre a qual se
constituiu a FD da Ditadura Militar. É justamente a desestabilização desta memória
“oficial” que permite a materialização de um espaço de voz, de uma fala outrora
proibida, de uma posição-sujeito testemunha que pode ser ocupada por alguns que
tiveram o seu dizer interditado e, consequentemente, agora podem produzir um
discurso outro, uma memória outra, ressignificar sentidos outros sobre aquele
acontecimento histórico. Por isso, defendemos que é o trabalho do acontecimento
discursivo que permite a existência de um sujeito (uma FD) que agora tem voz e não
é mais um mero objeto de discurso do outro, modelado pela ideologia dominante do
215

Aparelho Repressivo Militar que produziu (e produz) efeitos de sentido outros sob o
simulacro de verdade. Chegar a essa compreensão só foi possível porque
enfrentamos, no percurso do terceiro capítulo da tese, à reflexão proposta sobre a
memória na esteira da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia e as
ressonâncias que estes campos do saber produzem no âmbito da AD. Daí por que
não consideramos, aqui, a memória psicológica, mas aquela que é constituída e
pensada – discursivamente, historicamente e socialmente – como exterior ao sujeito,
que reverbera antes, alhures e independentemente de qualquer cogitação. A
memória que se caracteriza por um movimento pendular que reenvia o saber tanto
ao passado quanto ao presente. Portanto, dissemos que é a memória que
estabelece as disputas políticas pelo poder (e de abuso do poder) na sociedade, que
produz os lugares de (des)identificação dos sujeitos com determinados saberes e os
mecanismos de interpelação, assujeitamento, silenciamento e resistência. É
justamente este funcionamento do político na/da memória que determina aquilo que
deve ser lembrado e aquilo que deve ser esquecido na sociedade.

Diante do funcionamento dêitico-discursivo das formas do testemunho “NÓS”,


“ELES” e “OUTRO”, pude compreender que há aí um jogo político de projeções
imaginárias que determina – por meio de mecanismos de (des)identificação
subjetiva – a relação do sujeito do testemunho com a memória. Neste ponto, para
além de compreender que tais formas organizam apenas certos aspectos da
enunciação, é possível concluir, discursivamente, que entre “ELES” (os militares),
“NÓS” (os militantes de esquerda) e o “OUTRO” (os “comunistas” ou os militantes de
esquerda colocados nesta posição) há um trabalho de interpelação ideológica para
que o “OUTRO” ocupe uma determinada posição-sujeito e signifique a partir de uma
determinada rede de memória através da (não) denominação. Neste jogo político-
ideológico, o “NÓS” e o “OUTRO” são discursivizados e significados a partir do
mesmo lugar de identificação. Diante disso, o testemunho permitiu a materialização
dessa memória outra que é invocada para que aqueles que se diziam contrários à
Ditadura Militar fossem significados do lugar de memória do “crime”, da “subversão”,
do “terrorismo”, da “ameaça”. Aqui, como vimos, este “OUTRO” não tem voz, é
silenciado, é apagado, e sua memória (do ser “comunista”) é lançada para fora da
FD “comunista” e ligada à FD da “violência” através do dizer dos militares. Diante
disso, defendemos que a (não) denominação coloca – por meio de um jogo político-
216

ideológico com a memória – o “OUTRO” numa posição que ele não merece estar.
Por esta razão, o não dizer o “OUTRO” perpassa um dizer (outro) sobre ele. Com
isso, produz-se imaginariamente e ideologicamente uma violência para e sobre o
“OUTRO”, a fim de dar sustentação, legitimidade e legalidade às ações arbitrárias
praticadas por “ELES”, estabelecendo, com isso, estratégias e condições para
assegurar a continuidade do Regime Militar no Brasil.

Ao lado dessas questões centrais, a organização discursiva do testemunho –


através das formas materiais “EU”, “NÓS”, “ELES” e o “OUTRO” – permitiu-nos
ainda pensar, analiticamente, sobre o tratamento dado a homens e mulheres
envolvidos na prática da tortura e, principalmente, sobre o jogo de posições-sujeito
ocupadas e projetadas no testemunho: mãe/militante, mãe/professora, pai/militante,
militante/comunista, mulher/freira e o deslocamento da posição-sujeito vítima para a
posição-sujeito denúncia. Diante disso, a análise do corpus nos apontou – através
da sobreposição de diferentes vozes sociais e as posições-sujeito ocupadas (e
projetadas) por elas nas condições de produção de interrogatório e tortura – as
marcas da heterogeneidade através dos pontos de deriva que atravessam o
testemunho: os efeitos de sentido sobre a “polícia”, o “terrorista” e o “comunista”,
que ganham corpo na relação entre o eixo da constituição (interdiscursivo), o eixo da
formulação (intradiscursivo), o jogo da paráfrase que aponta para um dizer outro que
se inscreve antes na memória discursiva. Assim, o testemunho vai tecendo o seu
modo de dizer na trama do entrelugar: entre a regularidade e a desestabilização, o
“EU” e o “NÓS”, o dado e o novo, o mesmo sobre o diferente.

Pois bem, é por isso que nos juntamos na defesa desse dizer outro sobre a
truculência da Ditadura Militar e, dessa forma, sustentamos que não se pode mais
negligenciar esta história e, sobretudo, não podemos mais dar as costas para este
passado. Concordando com a CNV (BRASIL, 2014), não podemos negar às
gerações futuras o conhecimento da verdade histórica, mesmo diante dos limites de
qualquer reflexão e investigação. Por isso, chamamos a atenção para o fato de que
este esforço, por conseguinte, propõe que se fortaleça, no país, a construção ou a
consolidação de uma política da não repetição e, para isso, a história e a memória
da Ditadura Militar precisam ser, na medida do possível, (re)conhecidas e
compartilhadas por todos. Não podemos mais ludibriar esta memória. Preservar esta
memória – a memória subterrânea que a história dita oficial não conta – frente à
217

força do esquecimento político-ideológico suscita, também, uma outra inquietude: a


da resistência da memória sobre o esquecimento.

Em suma, muitos foram os que lutaram e morreram sem conhecer o trabalho


realizado pela Comissão Nacional da Verdade (BRASIL, 2014), mas nós sabemos,
hoje, com o Relatório Final, de alguns daqueles que foram silenciados pelo Regime
Militar. Conhecemos também alguns daqueles que foram responsáveis, direta ou
indiretamente, pela ordem e/ou pela prática de tortura no âmbito dos quartéis.
Esperamos, agora, que o Estado assuma, na medida do possível, a
responsabilidade pelos crimes cometidos no passado por seus agentes e os
conduza ao tribunal. Diante deste novo cenário, com as denúncias e as
recomendações da CNV, abre-se a possibilidade de que o Supremo Tribunal
Federal (STF) possa, por exemplo, rever a Lei de Anistia (1979). Com efeito,
acreditamos que as memórias reveladas no Relatório Final podem, inclusive, fazer
com que a Suprema Corte do país possa reconsiderar o resultado da votação de
2010 quando a maioria defendeu a constitucionalidade da Lei de Anistia. Naquele
momento, a ação tinha sido impetrada pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

Conforme temos defendido neste trabalho, a reflexão sobre este passado


recente da história nacional não se encerra com o Relatório Final da CNV. Há ainda
muito a ser problematizado e revelado sobre a memória da Ditadura Militar. É por
isso que não podemos esquecer jamais. É também por isso que este trabalho pode,
nos limites desta investigação, contribuir, de certa forma, com a publicidade do
Relatório Final da CNV e discursivizar a memória daquele acontecimento histórico
através do testemunho. Não há um ponto final. A história da Ditadura Militar, escrita
por linhas tortas, precisa ser passada a limpo, precisa ser conhecida por meio de
suas diferentes versões. Só há uma maneira de virar a página dessa história:
conhecendo a própria história. É por esta razão que insisto, ao longo do primeiro
capítulo da tese, na relevância de se conhecer as condições de produção que
instauraram o Golpe-Civil Militar de 1964 e a Ditadura Militar no Brasil.

A própria divulgação do memorando da Central Intelligence Agency


(CIA/EUA), em maio de 2018, quase quatro anos após a entrega do Relatório Final
da CNV (2014), é prova testemunhal de que há muita coisa-a-saber, coisa-a-fazer e
coisa-a-ser ainda esclarecida sobre o passado da Ditadura Militar. Segundo o
documento, havia uma política pública de extermínio de seres humanos por parte do
218

Estado brasileiro através das Forças Armadas. O texto deixa explícito que o
Presidente Geisel delibera com a maior naturalidade sobre as ações de execução
dos opositores ao Regime Militar, inclusive se daria continuidade às ações
empreendidas por seu antecessor – o General Médici –, ou se aperfeiçoaria as
táticas de tortura e execução do ex-presidente que já eram, diga-se de passagem,
de uma crueldade terrível.

Portanto, a tese sustentada, por muitos militares, de que a tortura não ocorria
nos porões da Ditadura caiu por terra de vez, principalmente porque a cadeia de
comando partia do próprio Presidente da República, num verdadeiro “efeito dominó”.
Para garantir a concentração do poder nas mãos dos militares, de acordo com o
documento, Geisel escolheu o seu sucessor, o General João Figueiredo,
estabelecendo os mecanismos para garantir a permanência do Regime Ditatorial no
Brasil.

Deseja-se, assim, que a Lei de Anistia volte à pauta da Corte após as novas
revelações sobre o passado da Ditadura Militar para que se possa rever o perdão
concedido aos militares e a outros agentes do Estado que praticaram tortura ou
outros crimes comuns contra a humanidade naquele fatídico movimento. O Relatório
Final da CNV, por sua vez, ficará como legado de nossa história; uma triste história,
e como monumento à memória das vítimas, a fim de que nunca possam ser
esquecidas, e aquele evento nunca mais se repita. Hoje, a memória eterniza os
homens e mulheres que saem do anonimato como exemplos de uma tomada de
consciência, de posição-sujeito de resistência e símbolos da luta de um segmento
social que não aceitou o cárcere e lutou em nome do ideal de liberdade, justiça e
igualdade. São memórias de um passado marcado pela dor de uma violência física e
simbólica que impregnou a nossa história e, mesmo que muitos insistam em
esquecê-la, silenciá-la ou apagá-la, ela permanecerá sempre lá, indelével, latente,
reclamando sentidos e denunciando um passado de repressão que se camufla até
hoje e ainda sangra na memória social de nossa nação.

Finalmente, já que o discurso não é nunca uma rua de mão única, de sentido
único, que este trabalho possa, de alguma forma, produzir rasura naquela memória
e se juntar, na medida do possível, a outras formas de resistir e de (res)significar
aquela memória no social, produzindo, assim, outros espaços de memória. E que o
exercício de memória, o não esquecer, torne-se também a memória dos outros...
219

REFERÊNCIAS

ACHARD, P. [et al]. Papel da Memória. Tradução e introdução de J. H. Nunes. 4.


ed. Campinas, Pontes, 2015.

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos do estado. Trad. J. J. Moura


Ramos. Lisboa, Presença/Martins Fontes, 1974. Título original, 1970.
ALTHUSSER, L. Posições I. Trad. Carlos Nelson Coutinho [et al]. Rio de Janeiro:
Graal, 1978.

ALTHUSSER, L. Sobre a Reprodução. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.

ALTHUSSER, L. Por Marx. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2015. Título original
1965.
AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo
Sacer III). Trad. Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008.

AMADO, J. Democracia precária enfraquece Comissão Nacional da Verdade.


Revista Adusp, São Paulo, n. 47, p. 66-69, Jun. 2010.

ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém: um relato da banalidade do mal. Trad. José


Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

BALDINI, Lauro. Luto, Discurso, História. In: GRIGOLETTO, E; DE NARDI, F. S;


SOBRINHO, H. F. (Orgs.) Imaginário, sujeito, representações. Recife: Ed. UFPE,
2018, pp. 27-34.

BARONAS, R. L. (Org.) Análise do discurso: apontamentos para uma história da


noção‐conceito de Formação Discursiva. São Carlos: Pedro & João Editores, 2007.

BARONAS, R. L. (Org.) Homenagem a Michel Pêcheux: 25 anos de uma presença.


Campinas, SP: Mercado de Letras, 2008.

BENVENISTE, É. A natureza dos pronomes. In: Problemas de Linguística Geral I.


4. ed. Campinas, SP: Pontes, 1995a, pp. 277-283. Título original, 1956.

BENVENISTE, É. O vocabulário das instituições indo-europeias. Trad. Denise


Bottmann. Campinas: Editora da UNICAMP, 1995b.
BRESCIANI, S. & NAXARA, M. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma
questão sensível. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004.

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Comissão Especial sobre


Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à Memória e à Verdade: Comissão
Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília: Secretaria Especial dos
Direitos Humanos, 2007.
220

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos. Direito à Memória e à


Verdade: história de meninos e meninas marcados pela ditadura. Brasília:
Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2009.

BRASIL. Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República.


Programa Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República. Brasília:
SDH/PR, 2010.

BRASIL. Lei 12.528, de 18 de novembro. Cria a Comissão Nacional da Verdade no


âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Diário Oficial da União,
n.12528-0, 18 nov. 2011.

BRASIL. A Comissão da Verdade no Brasil: Por quê, o que é, o que temos de


fazer? Texto: Maurice Politi. Org. Núcleo de Preservação da Memória Política, São
Paulo, 2012.
BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório / Comissão Nacional da
Verdade; v. 1. – Brasília: CNV, 2014. 976 p.

CANDAU, J. Antropologia da Memória. Trad. Miriam Lopes. Lisboa: Instituto


Piaget, 2005.

CANDAU, J. Memória e Identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. São Paulo:


Contexto, 2014.

CAZARIN, E. A. Identificação e representação política: uma análise do discurso


de Lula (1978–1998). Tese de Doutorado em Estudos da Linguagem/Teorias do
Texto e do Discurso, UFRGS, 2004.

Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Caso Gomes Lund e


outros (Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil. Exceções preliminares, mérito,
reparações e custos. Sentença de 24 de nov., série C, n. 219.

COSTA, G. C. Sentidos de milícia: entre a lei e o crime. Editora da Unicamp, 2014.


COURTINE, Jean-Jacques. Mémoire et discours. Sédiments. Montréal, 1986, pp.
97-117.
CONEIN, B. (Org.) Materialidades discursivas. Campinas: Editora da Unicamp,
2016. Título original, 1980.
COURTINE, J. J. O chapéu de Clementis: observações sobre a memória e o
esquecimento na enunciação do discurso político. Trad. M. R. Rodrigues. In:
INDURSKY, F.; FERREIRA, M. C. L (Orgs.). Os múltiplos territórios da Análise de
Discurso. Porto Alegre, RS: Sagra Luzzatto, 1999.

COURTINE, J. J. & HAROCHE, C. História do rosto: exprimir e calar emoções (do


século 16 ao começo do século 19). Trad. Marcus Penchel. Petrópolis, RJ: Vozes,
2016.
221

COURTINE, J. J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado


aos cristãos. São Carlos: EDUFSCAR, 2009.

COURTINE, J. J. Metamorfoses do Discurso Político: derivas da fala pública.


Trad. Nilton Milanez e Carlos Piovezani. São Carlos: Claraluz, 2006.

COURTINE, J. J. Discurso, História e Arqueologia. In: MILANEZ, N. & GASPAR, N.


R. (Orgs.) A (des)ordem do Discurso. São Paulo: Contexto, 2010.

CORACINI, M. J. R. F. Silêncio, Interdito, Real do Discurso: A questão de


estranhamentos em migrantes no estado de São Paulo. In: INDURSKY, Freda;
FERREIRA, M. Cristina Leandro, MITTMANN, Solange. (Orgs.) Memória e História
na/da Análise do Discurso. Campinas, SP: Mercado de Letras, 2011.

DALTOÉ, A. S. O relatório da Comissão Estadual da Verdade de SC: o papel da


memória e as formas do esquecimento. In: ORLANDI, E. P.; CHIARETTI, Paula;
RODRIGUES, Eduardo A. (Orgs.). Linguagem, tecnologia e espaço social.
Campinas: RG; Pouso Alegre: Ed. da UNIVÁS, 2016a.
DALTOÉ, A. S. A Comissão Nacional da Verdade e o silêncio do Araguaia: que se
apresente o corpo. In: FLORES, Giovanna G. Benedetto; NECKEL, Nádia Régia
Maffi; GALLO, Solange L. (Org.). Análise de discurso em rede: cultura e mídia.
Campinas, SP: Pontes Editores, 2016b, v. 2, p. 93-115.
DALTOÉ, A. S. A comissão nacional da verdade e suas ressonâncias nos
documentários Verdade 12.528 e Em busca da verdade. Linguagem em (Dis)curso
– LemD, Tubarão, SC, v. 16, n. 1, p. 153-167, jan./abr. 2016b.
DALTOÉ, A. S. O direito de ser esquecido, o direito de ser lembrado: memória,
esquecimento e o funcionamento da metáfora. Línguas e instrumentos
linguísticos – Nº 33 – jan./jun. 2014.
DALTOÉ, A. S. As metáforas de Lula: A deriva dos sentidos na língua política.
Tese de doutorado, UFRGS, 2011.

D‟ARAÚJO, M. Célia; SOARES, Gláucio A. Dillon; CASTRO, Celso. Os Anos de


Chumbo: a memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará,
1995.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das
Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em:
http://www.onu.org.br/img/2014/09/DUDH.pdf. Acesso em: 05 set. 2018.

DE NARDI, Fabiele Stockmans. Entre a lembrança e o esquecimento: os trabalhos


da memória na relação da língua com discurso. Revista Organon, v. 17, n. 35, Porto
Alegre: Instituto de Letras/UFRGS, 2003.

DE NARDI, Fabiele Stockmans. Identidade, Memória e os Modos de Subjetivação.


In: INDURSKY, Freda; FERREIRA, M. Cristina Leandro. (Orgs.) Michel Pêcheux e
Análise do Discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
222

DE NARDI, F. S.; GRIGOLETTO, E. Entre o apagamento e o esquecimento:


trajetórias de memória do enunciado “somos todos petroleiros”. In: Seminário de
Análise do Discurso, VIII, 2017, Recife. Anais eletrônicos... Recife: UFPE, 2017.
Disponível em:
http://anaisdosead.com.br/8SEAD/SIMPOSIOS/SIMPOSIO%20I_EGrigoletto%20e%
20FDeNardi.pdf
FELMAN, S. Educação e crise ou as vicissitudes do ensinar. In: NESTROVSKI, A. &
SELIGMANN-SILVA, M. (Org.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Editora
Escuta, 2000. p. 13-71.

FREUD, S. Fixação em traumas – o inconsciente. Edição standard brasileira das


obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII). Rio de Janeiro: Imago
Editora, 1976. Título original, 1916-1917.

FREUD, S. Além do princípio do prazer. Edição standard brasileira das obras


psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. XVIII, p. 13-75). Rio de Janeiro:
Imago, 1996. Título original, 1920.

FREUD, S. Luto e Melancolia. Edição standard brasileira das obras psicológicas


completas de Sigmund Freud (Vol. XIV). Rio de Janeiro: Imago, 1969. Título original,
1915.

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro, Forense-universitária,


1986. Título original, 1969.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad. L. F. de A. Sampaio. 5. ed. São


Paulo: Loyola, 2012. Título original, 1971.

GADET, F. & PÊCHEUX, M. A Língua Inatingível: O discurso na história da


linguística. Campinas, SP: Unicamp, 2004. Título original, 1981.

GADET, F. & HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma
introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2010. Título
original, 1969.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo: Editora 34,
2006.

GAGNEBIN, Jeanne, Marie. Memória, História, Testemunho. In: BRESCIANI, S. &


NAXARA, M. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível.
Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, pp. 83-92.

GASPARI, E. A Ditadura Escancarada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

GUILHAUMOU, J. & MALDIDIER, D. Efeitos do Arquivo: A Análise do Discurso no


lado da História. In: ORLANDI, Eni (Org.). Gestos de Leitura. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 1997, pp. 163-183.
223

GRIGOLETTO, Evandra. (Org.); MITTMANN, S. (Org.); CAZARIN, E. A. (Org.)


Práticas discursivas e identitárias: sujeito e língua. Porto Alegre: Nova Prova,
2008.

HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2003. Título
original, 1950.
HAROCHE, C. A elipse (falta necessária) e a incisa (acréscimo contingente): o
estatuto da determinação na gramática e sua relação com a subjetividade. In:
CONEIN, B. (Org.) Materialidades discursivas. Campinas: Editora da Unicamp,
2016, pp. 237-246. Título original, 1980.
HENRY, Paul. A ferramenta imperfeita: língua, sujeito e discurso. Trad. Maria
Fausto P. de Castro. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 1992.
HENRY, Paul. Os fundamentos teóricos da “análise automática do discurso” de
Michel Pêcheux (1969) In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs.). Por uma análise
automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. 4. ed.
Campinas, SP: Unicamp, 2010. Título original 1969.
HERBERT, T. (PÊCHEUX, M.) Observações para uma teoria geral das ideologias.
Trad. Carolina M. R. Zuccolillo, Eni P. Orlandi e José H. Nunes. Revista Rua, 1.
Campinas, SP: Nudecri/Unicamp, 1995, pp. 63-89. Título original, 1967.
HOUAISS, A.; & VILLAR, M. S. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2001.
INDURSKY, F. Políticas do Esquecimento X Políticas de Resgate da Memória. In:
FLORES, G. G. B.; NECKEL, N. R. M.; GALLO, S. M. L. (Orgs.). Análise de
Discurso em Rede: Cultura e Mídia. V. 1. Campinas, SP: Pontes Editores, 2015, pp.
11-27.
INDURSKY, F. A fala dos quartéis e as outras vozes. Campinas: SP: Ed. da
Unicamp, 1997.
INDURSKY, F. As outras vozes e as feridas ainda abertas. In: INDURSKY, F. A fala
dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2013.
INDURSKY, Freda; FERREIRA, M. Cristina Leandro. (Orgs.) Michel Pêcheux e
Análise do Discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, 2007.
INDURSKY, Freda; FERREIRA, M. Cristina Leandro, MITTMANN, Solange. (Orgs.)
Memória e História na/da Análise do Discurso. Campinas, SP: Mercado de
Letras, 2011.
KEHL, Maria Rita. Tortura e sintoma social. In: TELES, E.; SAFATLE, V. (Orgs.) O
que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010, pp. 123-132.

KUNDERA, Milan. O Livro do Riso e do Esquecimento. Trad. Teresa Bulhões


Carvalho da Fonseca. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

LACAN, J. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud. 2. ed. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Título original, 1953-1954.
224

LACAN, J. (1974-75) O Seminário, livro 22: R.S.I. Inédito.


LAGAZZY, Suzy. O desafio de dizer não. Campinas, SP: Pontes, 1988.
LAGAZZY, Suzy & ORLANDI, E. (Orgs.) Introdução às ciências da linguagem:
Discurso e Textualidade. 2. ed. Campinas, SP: Pontes, Editores, 2010.
LEANDRO FERREIRA, M. C. Da ambiguidade ao equívoco: a resistência da
língua nos limites da sintaxe e do discurso. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2000.
LE GOFF, J. História e Memória. 7 ed. Trad. Bernardo Leitão. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013.

LEITE, N. V. A. Psicanálise e Análise do Discurso: o acontecimento na estrutura.


Rio de Janeiro: Ed. Campo Matêmico, 1994.

LEVI, P. É isto um homem? Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. Título
original, 1947.
LISPECTOR, Clarice. Todos os contos. Organização de Benjamin Moser. Rio de
Janeiro: Rocco, 2016.
MALDIDIER, Denise. A inquietação do discurso – (re) ler Michel Pêcheux hoje.
Campinas: Pontes, 2003.

MALDIDIER, Denise. Elementos para uma história da Análise do Discurso na


França. In: ORLANDI, Eni (Org.). Gestos de Leitura. Campinas, SP: Ed. Da
Unicamp, 1997.

MARIANI, B. S. C. O Comunismo Imaginário: práticas discursivas da imprensa


sobre o PCB (1922 – 1989). Tese de Doutorado, UNICAMP, 1996.

MARIANI, B. Testemunho: um acontecimento na estrutura. Revista do Programa


de Pós-Graduação em Letras da Universidade de Passo Fundo - v. 12 - n. 1 - pp.
48-63 - jan./jun. 2016.

MILNER, J. C. O material do esquecimento. In: YERUSHALMI, Yosef Hayim [et al].


Usos do Esquecimento. Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 2017, pp. 81-97. Título
original, 1987.

MILNER, J. C. O amor da língua. Trad. Paulo Sérgio de Souza Júnior. Campinas,


SP: Editora da Unicamp, 2012. Título original, 1978.

NESTROVSKI, A. & SELIGMANN-SILVA, M. (Orgs.). Catástrofe e Representação.


São Paulo: Editora Escuta, 2000.

NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. Paulo César de


Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Título original, 1887.

NORA, Pierre. “Entre memória e história: a problemática dos lugares”. In: Revista do
Programa de Estudos Pós-graduados em História do Departamento de História da
225

PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). São Paulo, n.10, pp. 7-28,
dez. 1993. Título original, 1984.
OLIVEIRA, G. A. Discursos sobre o eu na composição autoral dos vlogs. Tese
Doutorado em Linguística, UNICAMP, 2015.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos.


Campinas: Ed. da Unicamp, 1992.

ORLANDI, Eni Puccinelli. A Linguagem e seu Funcionamento: as formas do


discurso. 5. ed. SP: Campinas: Pontes, 2009.
ORLANDI, Eni Puccinelli. (Org.) Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp,
1997.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Interpretação: Autoria, leitura e efeitos do trabalho


simbólico. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Maio de 1968: Os Silêncios da Memória. In: ACHARD, P.


[et al]. Papel da Memória. Trad. e introdução de J. H. Nunes. 4 ed. Campinas,
Pontes, 2015. Título original, 1998.
ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos.
Campinas: Pontes, 2001.

ORLANDI, Eni Puccinelli. A Leitura e os leitores. 2. ed. SP: Pontes, 2003.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso Fundador: A formação do país e a construção


da identidade nacional. 3. ed. SP: Campinas: Pontes, 2003.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à Vista: discurso do confronto: velho e novo mundo.
2. ed. SP: Campinas: Editora da Unicamp, 2008.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2008.

ORLANDI, Eni Puccinelli. A Linguagem e seu Funcionamento: as formas do


discurso. 5. ed. SP: Campinas: Pontes, 2009.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Discurso em Análise: Sujeito, Sentido, Ideologia. 2. ed.


SP: Campinas: Pontes, 2012a.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise do Discurso: princípios & procedimentos. 10. ed.
São Paulo: Pontes, 2012b.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Eu, Tu, Ele: Discurso e real da história. 2. ed. Campinas,
SP: Pontes, 2017.
PAIVA, Valério; POMAR, Pedro Estevan da Rocha. Se a ditadura acabou, onde está
a democracia? Comissão da verdade sem autonomia atesta pacto entre governo e
militares. Revista ADUSP, São Paulo, n. 47, pp. 112-117, out. 2011.
226

PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. 3. ed.


Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997. Título original, 1975.

PÊCHEUX, Michel. Só há causa daquilo que falha ou o inverno político francês: o


início de uma retificação. In: PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica
à afirmação do óbvio. 3. ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, pp. 269-
281. Título original, 1978.

PÊCHEUX, Michel. “Delimitações, inversões, deslocamentos”. Cadernos de


estudos linguísticos, n. 19. Campinas, jul.- dez. pp. 7-24, 1990. Título original,
1982.
PÊCHEUX, M. O Mecanismo do (des)conhecimento ideológico. In: ZIZEK, S. Um
mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 144-153.
PÊCHEUX, M. Ler o arquivo hoje. In: ORLANDI, Eni Puccinelli. (Org.) Gestos de
leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1997. Título original, 1982.

PÊCHEUX, Michel. & FUCHS, C. A propósito da análise do discurso: atualizações e


perspectivas. In: GADET, F. & HAK, T. (Orgs). Por uma análise automática do
discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. Ed. da Unicamp, 2010, pp.
159-249. Título original, 1975.

PÊCHEUX, Michel. Sobre os Contextos Epistemológicos da Análise do


Discurso. In: Escritos, nº. 4, Campinas: EDUNICAMP, 1999, pp. 7-16.

PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. Eni Orlandi. 6.


ed. Campinas: Pontes, 2012a. Título original, 1983.

PÊCHEUX, Michel Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: Análise de discurso:


Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni. P. Orlandi. Trad. Brasileira Eni Orlandi.
3. ed. Campinas: Pontes, 2012b, pp. 141-150. Título original, 1981.
PÊCHEUX, M. Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Textos escolhidos por Eni
Orlandi. 3. ed. Campinas: Pontes, 2012c.

PÊCHEUX, Michel. A análise de discurso: três épocas. In: GADET, F. & HAK, T.
(Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de
Michel Pêcheux. 4. ed. Campinas, SP: Unicamp, 2010. Título original, 1983.

PÊCHEUX, Michel. O Estranho Espelho da Análise do Discurso. In: COURTINE, J.


J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos.
São Carlos: EDUFSCAR, 2009.

PÊCHEUX, Michel. (2013) Ousar pensar e ousar se revoltar: Ideologia, marxismo,


luta de classes. Décalages: Vol. 1: Iss. 4.
PÊCHEUX, M. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre [et al]. Papel da memória. 4.
ed. Trad. José Horta Nunes. Campinas, SP: Pontes, 2015. Título original, 1983.
227

PERLATTO, F. Variações do mesmo tema sem sair do tom: imprensa, Comissão


Nacional da Verdade e a Lei da Anistia. Tempo e Argumento, Florianópolis, v. 11,
n. 27, p. 78 - 100, maio/ago. 2019.

PIOVEZANI, Carlos; SARGENTINI, Vanice. (Orgs.) Legados de Michel Pêcheux:


inéditos em análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
POLLAK, M. Memória, Esquecimento, Silêncio. Trad. Dora Rocha Flaksman.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, pp. 3-15.

POLLAK, M. Memória e identidade social. Rio de Janeiro: Estudos Históricos, v. 5,


n. 10, 1992, pp. 200-212.

SCHONS, C. R. “Adoráveis” revolucionários: Produção e Circulação de Práticas


Político-Discursivas no Brasil da Primeira República. Tese de Doutorado, UFRGS,
2006.

SKIDMORE, Thomas. Uma História do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.
SANTOS, R. L. M. “Você matou meu filho” e outros gritos: um estudo das formas
da denúncia. Tese de Doutorado em Linguística, Unicamp, 2018.

RICOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas, SP: Editora


da Unicamp, 2007. Título original, 2000.
ROBIN, R. A Memória Saturada. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.
SELIGMANN-SILVA, M. A história como trauma. In: NESTROVSKI, A. &
SELIGMANN-SILVA, M. (Orgs.). Catástrofe e Representação. São Paulo: Editora
Escuta, 2000. p. 73-98.
SELIGMANN-SILVA, M. Adorno. São Paulo: Publifolha, 2003.
SELIGMANN-SILVA, M. O local do testemunho. Tempo e Argumento, Florianópolis,
v. 2, n. 1, p. 3 – 20, jan. / jun. 2010.

VANNUCHI, Paulo. Direitos Humanos e o fim do esquecimento. In: SADER, Emir


(Org.). Lula e Dilma: 10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil. São Paulo:
Boitempo; Rio de Janeiro: FLACSO, 2013. pp. 337-359.

WEICHERT, Marlon Alberto. A Comissão Nacional da Verdade. In: SILVA FILHO,


José Carlos Moreira da; TORELLY, Marcelo Dalmás; ABRAO, Paulo (Orgs.). Justiça
de Transição nas Américas – olhares interdisciplinares, fundamentos e padrões de
efetivação. Belo Horizonte: Forum, 2013.
YERUSHALMI, Yosef Hayim [et al]. Usos do Esquecimento. Campinas, SP: Ed. da
Unicamp, 2017, pp. 81-97. Título original, 1987.

ZIZEK, S. Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999.


ZOPPI-FONTANA, Mónica. Acontecimento, arquivo, memória: às margens da lei. In:
Revista Leitura (Número temático: Discurso: história, sujeito e ideologia), nº 30, pp.
175-205, 2002.

Você também pode gostar