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TESE Erasmo Da Silva Ferreira
TESE Erasmo Da Silva Ferreira
Recife
2020
ERASMO DA SILVA FERREIRA
Recife
2020
Catalogação na fonte
Bibliotecária Jéssica Pereira de Oliveira, CRB-4/2223
Inclui referências.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________
Profª. Drª. Fabiele Stockmans De Nardi (Orientadora)
Universidade Federal de Pernambuco
____________________________________________________
Profª. Drª. Evandra Grigoletto (Examinadora Interna)
Universidade Federal de Pernambuco
_______________________________________________________
Profª. Drª. Andréia da Silva Daltoé (Examinadora Externa)
Universidade do Sul de Santa Catarina
_____________________________________________________
Profª. Drª. Dirce Jaeger (Examinadora Externa)
Universidade de Pernambuco
_______________________________________________________
Profª. Drª. Nadia Pereira da Silva Gonçalves de Azevedo (Examinadora Externa)
Universidade Católica de Pernambuco
À memória de todos que lutaram contra a Ditadura Militar Brasileira.
AGRADECIMENTOS
1 INTRODUÇÃO.................................................................................................14
2 ENTRE O GOLPE CIVIL-MILITAR E O ADVENTO DA COMISSÃO
NACIONAL DA VERDADE.............................................................................24
2.1 ERA UMA VEZ UMA HISTÓRIA......................................................................24
2.2 O DIA QUE DUROU 21 ANOS........................................................................28
2.3 A BUSCA PELA VERDADE: A INSTAURAÇÃO DA CNV..............................40
2.4 DOS MEMBROS DA CNV...............................................................................55
2.5 SOBRE O RELATÓRIO FINAL DA CNV.........................................................58
3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS.........................................................................63
3.1 SUJEITO, IDEOLOGIA, FORMAÇÃO DISCURSIVA E RESISTÊNCIA..........63
3.2 A MEMÓRIA DISCURSIVA E O TRABALHO DO ACONTECIMENTO...........71
3.3 A MEMÓRIA PARA MAURICE HALBWACHS................................................78
3.4 O (ENTRE)LUGAR DE/DA MEMÓRIA............................................................86
3.5 MEMÓRIA, RASTRO, SILÊNCIO E ESQUECIMENTO..................................99
3.6 SOBRE O DEVER DE MEMÓRIA.................................................................115
4 O TESTEMUNHO E A VOZ (IM)POSSÍVEL.................................................122
4.1 PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE DO CORPUS..........................................134
4.1.1 O jogo de identificação entre “EU” e “NÓS”..................................................135
4.1.2 Movimento de desidenticação: “EU” e “NÓS” versus “ELES”.......................149
4.1.3 O direito ao esquecimento e o dever de memória: eu quero esquecer.........157
4.1.4 O jogo com o “OUTRO” através da (não) denominação...............................168
4.1.5 Os limites da representação no testemunho.................................................184
5 OS EFEITOS DE UM PONTO FINAL...........................................................211
REFERÊNCIAS.............................................................................................219
14
1 INTRODUÇÃO
Eu vou contar história(s)
É por tudo isso que esta tese se instaura como mais um espaço1 em que se
dá corpo e voz, por assim dizer, ao testemunho/testemunha que se inscreve no
Relatório Final da Comissão Nacional da Verdade (2014). Assim, este trabalho se
institui, no limite dos objetivos de nossa investigação, como lugar de escuta e
análise de vozes que permaneceram silenciadas por muito tempo e que podem
ocupar, de certa maneira, um espaço de voz, um lugar de um dizer (outro) possível
através do trabalho da CNV e do gesto de testemunhar.
1
Aqui gostaria de fazer referência a quatro importantes documentários que recuperam com maestria
as condições de produção da memória da Ditadura Militar no Brasil: QUE BOM TE VER VIVA (1989)
e A MEMÓRIA QUE ME CONTAM (2013), ambos dirigidos por Lúcia Murat. TORRE DAS
DONZELAS (2018), dirigido por Susanna Lira e 15 FILHOS (1996), dirigido por Maria Oliveira e Marta
Nehring.
15
Pois bem. É dessa posição de escuta que peço licença acadêmica para,
neste momento da tese, ousar enunciar eu e assumir o risco que ocupar tal lugar
possa me proporcionar, inclusive o de não conseguir escapar do estilhaçar de um eu
que joga com um nós, do imbricamento entre o individual e o social (coletivo) que se
dá através do processo de interpelação e identificação com uma memória e com
uma história, conforme se verá ao longo do trabalho aqui apresentado.
um lugar dialético de fala e escuta através de um dizer que se ancora na tríade que
dá – de acordo com a postura teórica que me interpela – sustentação a todo
processo discursivo, incluído aí o testemunho: a (re)constituição, a (re)atualização e
a circulação de tal objeto-memória na esfera social. Dei de encontro, portanto, com
questionamentos para o projeto da tese que, de lá para cá, nas andanças entre
bancas, (re)leituras e rodas de conversa, sofreram algumas reconfigurações.
Não houve outra saída. Tive que me debruçar – a partir do Relatório Final da
CNV – sobre a relevância social, a emergência histórica de um dizer outro sobre a
violência da Ditadura Militar que se materializa discursivamente no âmbito do
testemunho. Cheguei, por conseguinte, ao objetivo central deste trabalho:
compreender, à luz do arcabouço teórico-metodológico da Análise do Discurso de
viés materialista (PÊCHEUX, 1969 e outros), o jogo entre a memória e o
esquecimento que se organiza através das formas materiais [“EU”, “NÓS”, “ELES” e
o “OUTRO”] que se inscrevem no testemunho recuperado pela CNV. Além disso,
interesso-me por pensar como o sujeito do testemunho constrói mecanismos de
subjetivação e resistência (na tensão entre a identificação e a desidentificação com
certos saberes que se inscrevem na Formação Discursiva da Ditadura Militar e na
Formação Discursiva da resistência) com a memória que se instaura por meio da
violência do passado e, com isso, produz o seu assujeitamento.
2
Usamos os parênteses para indicar o ano da obra consultada e os colchetes para sinalizar o ano da
obra original.
17
3
Seguindo aqui a tese de Lacan (1974), Milner (1978), Gadet & Pêcheux (2004).
4
A partir de Ricoeur (2007).
19
Diante do que apresentei até aqui, penso que é preciso reforçar a relevância
do lugar teórico a que me filio para realizar este trabalho: a AD. É desse lugar que
enuncio e discuto, a partir de diferentes vozes que se identificam, de alguma
maneira, com esta mesma posição teórica, o Relatório Final da CNV como
20
5
A noção de contradição, na perspectiva teórica que assumimos neste trabalho, é de base
constitutiva da história, do sujeito, da ideologia, da luta de classes, do discurso e da língua. Portanto,
não tomamos a contradição como um mecanismo negativo, mas como o motor das práticas sócio-
históricas.
21
Diante disso, busco, por meio da análise vertical de corpus (ORLANDI, 2012),
observar certas regularidades na organização discursiva do testemunho (corpus
discursivo restrito) que me possibilita também pensar, sobretudo, a questão do
testemunho, da memória e do acontecimento através do dispositivo teórico-analítico.
Para a AD, o trabalho de recortar o corpus já é em si uma etapa relevante do
processo analítico e um gesto de leitura porque “o objeto discursivo não é dado, ele
supõe um trabalho do analista e para se chegar a ele é preciso, numa primeira etapa
de análise, converter a superfície linguística [...] em um objeto teórico” (ORLANDI,
2012, p. 66). Para deixar o corpus em ponto de análise, todas as sequências
discursivas (SDs) foram recortadas ipsis litteris do Relatório Final da Comissão
Nacional da Verdade (CNV, 2014) e, por esta razão, mantive as marcas da oralidade
e da informalidade que organizam os testemunhos. Os blocos de análise e das
sequências discursivas não seguem, rigorosamente, a mesma ordem em que os
testemunhos aparecem no Relatório Final da CNV, uma vez que se buscou observar
certas regularidades através da repetibilidade de marcas linguístico-discursivas.
Neste caso, a teoria e a análise foram diluídas ao longo do caminho da tese.
pelos militares. O depoimento foi realizado – conforme era praxe acontecer – numa
demorada sessão de tortura com choques elétricos, situação confirmada por outros
jornalistas, como Rodolfo Konder e Duque Estrada, que também estavam presos na
antessala aguardando o interrogatório e, portanto, presenciaram a ocorrência da
violência contra Vlado (BRASIL, 2014). Segundo o depoimento dos colegas, os
gritos de dor de Vlado eram inimagináveis.
Pois bem, durante mais de três décadas, esta memória foi silenciada,
permaneceu subvertida e saturada pela censura dos militares, produzindo o efeito
de sentido aí cristalizado, impedindo que sentidos outros pudessem se inscrever, até
que a instalação da Comissão Nacional da Verdade brasileira fosse efetivada.
6
Era uma célula de espionagem da Ditadura Militar criada pelo General Golbery do Couto e Silva,
então ministro da Casa Civil do presidente Ernesto Geisel. Além da subversão das informações,
as notas divulgadas, pela agência, não indicavam a autoria ou a fonte das mesmas.
27
E foi isso o que aconteceu. Sem tirar nem pôr: perdeu-se a humanidade frente
à barbárie. A tortura se tornou uma política de Estado. A vida passou a ser
banalizada. A Ditadura Militar nos animalizou e, assim como os judeus são herdeiros
da memória da Shoah7, nós também somos herdeiros de um genocídio, de uma
memória que não pode ser dobrada frente ao esquecimento político que tem
insistido em recair sobre ela.
8
Tomo por empréstimo aqui o título de um documentário importante sobre a participação dos Estados
Unidos no Golpe de 1964. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=4ajnWz4d1P4
9
O célebre enunciado foi dito por Brizola no documentário “O velho – A História de Luiz Carlos
Prestes” (1997), dirigido por Toni Venturi.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1u02uqMK6Ek&t=4707s
29
foi repetido, para muitos estudiosos – também a seu modo – em 2016 contra a
Presidenta Dilma Rousseff.
10
Segundo Gaspari (2002), denomina-se um Golpe Civil-Militar porque os militares tiveram o apoio
de setores conservadores da sociedade civil que idealizaram o Pré-Golpe e o Golpe, além de setores
da imprensa e da Igreja Católica (inclusive do Presidente dos Estados Unidos, John Kennedy, no Pré-
Golpe, e Lyndon Johnson, no Golpe, que não viam com bons olhos a simpatia de Jango pela
esquerda). O documentário O Dia que Durou 21 Anos, citado anteriormente, traz revelações
contundentes acerca da influência norte-americana no Golpe Civil-Militar brasileiro. Sobre isso ver
também: http://memoriasdaditadura.org.br/
32
11
Trataremos desta questão teórica na terceira parte deste trabalho.
33
12
Recebeu o nome de Ato Institucional uma série de normas arbitrárias editadas à época do regime
de exceção instalado pelos militares no Brasil, em 1964, que tinham por objetivo fazer prevalecer o
controle dos militares frente às instituições legais do país, procurando dar uma aparência de
legalidade aos atos arbitrários realizados em nome da chamada Revolução. Além de seus conteúdos
arbitrários, os AIs eram aprovados sem qualquer consulta popular ou legislativa. Foram editados ao
todo 17 Atos Institucionais no curto período entre 1964 e 1969, regulamentados por 104 atos
complementares. Os responsáveis por suas edições eram os comandantes, chefes da Junta Militar
do Exército, da Marinha e da Aeronáutica (o autodenominado Comando Supremo da Revolução), ou
o próprio Presidente da República, com respaldo dado pelo Conselho de Segurança Nacional. Para
mais informações ver: http://memoriasdaditadura.org.br/
34
13
Ver o AI-5 na íntegra em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/AIT/ait-05-68.htm
35
14
O DOI-CODI também era denominado ironicamente, pelos militares, de “A Casa da Vovó”. Esse
também é o título do livro escrito por Marcelo Godoy (2014).
38
Durante todo período do Regime Militar (1964-1985), oitenta por cento (80%)
dos casos de desaparecimento constatados ocorreram só no governo Médici15,
momento em que o aparato militar chegou ao auge da crueldade humana. Os
movimentos sociais foram fortemente reprimidos, seus líderes foram presos,
torturados, assassinados ou expulsos do país. Os sindicatos foram invadidos,
fechados, e as intervenções militares trataram de obliterar os focos de resistência à
Ditadura Militar.
15
Em trabalho que realizamos em 2015, propusemos especificamente analisar a constituição e o
funcionamento político-ideológico do discurso de Médici (1969-1974) através do jogo de imagens na
representação do outro.
40
16
O Programa Nacional de Direitos Humanos (PNHD) do Governo Federal foi criado com base no
inciso IV do artigo 84 da Constituição Federal/88, pelo Decreto n.º 1.904 de 13 de maio de 1996.
Apresenta o diagnóstico da situação dos direitos humanos no País e, ao mesmo tempo, instaura
medidas para a sua defesa e promoção. Defende a filosofia de um programa plurianual elaborado por
setores da Sociedade Civil, movimentos sociais e entidades de classe, que propõem diretrizes e
metas a serem implementadas por meio de políticas públicas voltadas à consolidação dos direitos
humanos no Brasil. Já se consolidaram três versões do PNDH: o PNDH-1 e o PNDH-2 foram
publicados durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, e o último, o PNDH-3, foi
idealizado no governo do Presidente Lula. O programa não tem uma execução imediata. Para que as
propostas debatidas e sugeridos pelo PNDH possam entrar em vigor, é necessária a aprovação
prévia pelo Congresso Nacional. Consulte o PNDH/3 na íntegra aqui: http://dhnet.org.br/pndh/ ou
aqui: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Decreto/D7037.htm
41
Com isso, o discurso sobre a CNV e seus temas passou a ressoar produzindo
diferentes efeitos na ordem do dia. O objetivo centralizador de instituir a CNV,
encontrado também explicitamente no corpo do Relatório Final da CNV (BRASIL,
2014), está expresso no texto do PNDH/3, que traz como fundamento o Eixo
Orientador VI, com o título “Direito à Memória e à Verdade”. O Eixo Norteador
apresenta essencialmente três diretrizes: a primeira, preconiza o “reconhecimento
da memória e da verdade como Direito Humano e dever do Estado”; a segunda, por
seu turno, reza sobre a “preservação da memória e a construção pública da
verdade”; a terceira, por fim, concebe a “modernização da legislação relacionada
com a promoção do direito à memória, fortalecendo a democracia” no país (BRASIL,
2010, p. 176). Dessa maneira, o PNDH/3 determinou que:
Diante disso, o PNDH/3 passa a ser o mais polêmico da história, uma vez que
já defende a instalação da CNV e, consequentemente, a investigação dos crimes de
42
Dito de outra forma, a Corte entendeu que o Estado brasileiro violou o direito
à proteção judicial, consagrado através da Comissão Americana de Direitos
Humanos17 (CADH), por não ter investigado, julgado e punido os responsáveis
pelas graves violações de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund. A sentença
apresenta sanções no âmbito dos Três Poderes da República do Brasil, além do
Ministério Público Federal.
17
Convenção Americana de Direitos Humanos, Pacto de San José da Costa Rica, assinado em 22
de novembro de 1969 (em vigência desde 18 de julho de 1978). O artigo 8.1 da Convenção
Americana de Direitos Humanos assevera que qualquer “[...] pessoa tem direito a ser ouvida, com as
devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e
imparcial, estabelecido anteriormente por lei, [...] para que se determinem seus direitos ou obrigações
de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza”.
44
Direitos Humanos, como, por exemplo, a Ditadura Militar, para outro que se respalda
em valores democráticos e de respeito aos direitos essenciais da dignidade humana.
O Estado Democrático de Direito é, em última instância, responsável pela
preservação e tutela dos Direitos Humanos, constituindo-se, portanto, crime contra a
humanidade a sua negligência ou omissão e suas respectivas consequências para a
sociedade. Dado o exposto, a Justiça de Transição se caracteriza, sobretudo, pela
mudança de um cenário político de conflito para um contexto de paz entre a
sociedade civil e o Estado.
a memória daqueles que foram atingidos pelos processos de violação dos Direitos
Humanos conforme veremos na análise do testemunho enquanto corpus deste
trabalho.
feita (BRASIL, 2014). Esse é, aliás, o anseio dos familiares, presos e exiliados
políticos durante a Ditadura Militar no Brasil. Diante disso, o sentido de justiça é um
tema que merece muita reflexão. Aliás, inicialmente, foi concebido que seria
instalada, no Brasil, uma Comissão Nacional da Verdade e Justiça (CNVJ),
entretanto, por meio de pressão política, conforme apresentamos anteriormente, o
termo “Justiça” acabou por ser excluído do lema e dos trabalhos da Comissão.
Nessa direção, Paiva & Pomar (2011, p. 113) descreveram o que aconteceu da
seguinte maneira: “[...] o governo modificou diversos tópicos importantes do PNDH-
3, inclusive os referentes à Comissão, que de imediato perdeu, no nome, a palavra
„Justiça‟”. Com esta exclusão, a CNV passou a produzir, de certo modo, o efeito da
expectativa no que se refere à “justiça”.
efetivará no Brasil e a força do esquecimento será cada vez mais imperativa sobre a
memória social que se produz sobre aquele acontecimento histórico. Diante disso, a
autora considera que:
18
Nessa direção, entendemos que o trabalho de investigação não termina com a entrega do Relatório
Final da CNV. Até porque, em maio de 2018, mais uma vez, o Brasil foi obrigado a lembrar de seu
passado e a acertar as contas com ele quando a memória da Ditadura Militar voltou a produzir efeito
de sentido sobre aquele acontecimento histórico entre nós. Tal memória veio à tona a partir de um
memorando da Central Intelligence Agency (CIA/EUA), de que o então General Presidente Geisel
(1974-1979) tinha não só conhecimento da tortura, no âmbito dos quartéis, enquanto prática militar,
mas também deu apoio à execução sumária de todos os opositores ao Regime Militar. O memorando
é do ex-diretor da CIA, Willian Egan Colby, enviado ao secretário de Estado dos EUA, Henry
Kissinger, com data de 11 de abril de 1974 e está no rol dos milhares de documentos que tratam da
relação dos Estados Unidos com a América do Sul entre 1969-1976. Os arquivos foram mantidos em
regime de confidencialidade por mais de quatro décadas e apenas em dezembro de 2015 puderam
ser consultados publicamente. Parte do memorando ainda é sigiloso. Para saber mais:
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/politica/1526053261_197839.html
51
dos movimentos de familiares e, de forma mais ampla, por parte de todos aqueles
que levantam a bandeira em defesa dos Direitos Humanos e da democracia no país.
Assim, torna-se imperativo que, juntamente com a CNV, todos entes públicos
que, direta e/ou indiretamente, envolveram-se com a repressão e violação de
direitos e garantias fundamentais assumam uma postura crítica e analisem seu
passado a fim de constituírem estratégias para prevenir a repetição e a participação
ativa ou passiva de agentes públicos, inclusive da sociedade civil, num regime de
exceção. Saliente-se, ainda, que as recomendações realizadas pela CNV, em seu
Relatório Final, no que concerne à reforma das instituições do Estado, são tão
relevantes quanto à busca pela verdade, pela memória e contribuem, sobremaneira,
para a efetivação da Justiça de Transição no Brasil. Compreendemos, assim, que
embora as recomendações realizadas pela CNV sejam de extrema importância, a
decisão final de implementá-las compete exclusivamente ao desejo político do
Estado brasileiro.
Daí podemos nos questionar: mas o que se entende, de modo geral, por
Direitos Humanos? O discurso sobre os Direitos Humanos 19 é recorrente na ordem
do dia. Na maioria das vezes, simplificamos a sua definição por enquadrá-los numa
lista de direitos que todos possuímos pelo simples fato de sermos alçados à
condição humana. Por isso, de maneira geral, os Direitos Humanos estão
relacionados a vários instrumentos de normatização – Leis, Normas Constitucionais,
Acordos Internacionais, etc. –, que lhes atribuem um rótulo, por assim dizer,
especial, e estão no rol de direitos e garantias fundamentais, “considerando que o
reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de
seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz
no mundo” (DUDH, 1948, p. 2). A violação dos Direitos Humanos é, infelizmente, uma
prática constante num regime político de exceção (mas não só nele!).
Perante esse cenário, entende-se que os Direitos Humanos não podem ser
concebidos sem sua vinculação ao efetivo exercício da cidadania e o pleno gozo dos
direitos políticos por parte de todos os membros da sociedade. Isso só é possível
quando compreendemos a seguinte relação: por um viés, os Direitos Humanos
determinam o modo como o poder político, por exemplo, deve ser exercido por seus
detentores na esfera social; por outro, esses mesmos direitos são institucionalizados
e interpretados em razão do próprio exercício democrático do poder por parte de
cidadãos, que são livres e que se consideram como iguais perante a sociedade e a
Lei. Entretanto, não foi isso o que aconteceu durante o Regime Militar no Brasil,
mesmo com a vigência da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948).
E por que ainda hoje há a violação dos Direitos Humanos? Porque o Estado
ainda não passou, em certo sentido, o seu passado a limpo e não realizou a tarefa
de casa proposta pela CNV: reformar as instituições estatais, rever a Lei de Anistia
(1979) que ainda permite a interdição da verdade sobre o Regime Militar e,
consequentemente, a proteção dos culpados por meio de uma absolvição histórica
sem julgamento algum. Enquanto isso, as vítimas e familiares de vítimas da Ditadura
Militar esperam por uma absolvição que insiste em não chegar. A luta continua...
19
O site da Anistia Internacional promove um relevante debate sobre os Direitos Humanos e realiza
periodicamente diferentes campanhas de preservação e luta pelos Direitos Humanos.
https://anistia.org.br
55
O segundo Tomo, por sua vez, incorpora textos que endossam as graves
violações e dão voz aos diferentes segmentos sociais: militares, militantes políticos,
trabalhadores rurais e urbanos, povos negros e indígenas, representantes de igrejas
cristãs, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT‟s),
além de professores, estudantes universitários e nomes ligados à Arte e à Cultura.
Neste mesmo volume, encontramos outras vozes: textos que abordam a resistência
à Ditadura Militar, bem como a constatação da participação ativa de civis no Golpe
de 1964 e no Regime Militar que se sucedeu, especialmente do corpo empresarial.
Por fim, o terceiro Tomo, considerado o mais significativo pela CNV, traz a
relação nominal e uma breve biografia de mortos, desaparecidos e presos políticos
no contexto da Ditadura Militar. Assim, nesta parte, a CNV descreve a história de
434 mortos e desaparecidos políticos, a partir dos testemunhos e informações que
foram examinados nos Tomos anteriores. Essa parte representa, por assim dizer,
uma espécie de monumento por meio do qual se pretende preservar a memória
daqueles que estiveram lá como testemunhas da história.
20
O portal memórias da ditadura endossa que o trabalho da CNV não acabou:
http://memoriasdaditadura.org.br/
E o próprio portal da CNV na web: http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/
59
3 FUNDAMENTOS TEÓRICOS
21
O termo, tomado de empréstimo da arqueologia foucaultiana, L‟Archéologie du Savoir (1989 [1969]
– A Arqueologia do saber), passou por uma reformulação para que pudesse compor um dos pilares
teórico-epistemológicos da AD. Por isso, tal noção representa, em certo limite, o ponto de contato e,
ao mesmo tempo, o ponto de diferença entre o pensamento de Michel Pêcheux e o de Michel
Foucault.
65
Pêcheux nos ensina que toda FD produz um efeito de transparência tanto para o
sujeito quanto para o sentido. Essa reflexão nos direciona para um duplo processo
de ilusão constitutiva: o primeiro, para o sujeito que se considera a fonte de seu
dizer quando na realidade tal origem é subjacente a uma FD; o segundo, por sua
vez, estabelece-se porque a constituição de todo sentido é determinada por meio de
um processo histórico, de modo que, ao dizermos algo, apagam-se outros efeitos de
significação.
Courtine, por seu turno, defende que o domínio de saber de uma FD:
força tão forte sobre o sujeito que não há mais espaço para que ele permaneça
inscrito na mesma FD. Aqui, de acordo com Pêcheux (1997 [1975], p. 217-218), o
sujeito também não fica livre, mas migra para outra FD.
consequentemente, faz com que exista a quebra, em certo limite, da roda marxista
de reprodução-subordinação-desigualdade.
Pois bem, é em Só há causa daquilo que falha (1997 [1978]) que Pêcheux –
pensando criticamente sobre o “bate-boca teórico e político no âmbito da „Tríplice
Aliança‟ (Althusser, Lacan e Saussure)” –, nos ensina bem sobre a noção de
resistência. Partindo de uma reflexão que visa à retificação, o autor defende que:
É também Orlandi (2012a & 2017) que – a partir da reflexão sobre a tese da
interpelação ideológica althusseriana – propõe justamente que o assujeitamento
70
Por isso, quando analisou o discurso dos “meninos do tráfico” (“os Falcões”),
Orlandi defendeu que os sujeitos “[...] se individuam pela falta, na falha do Estado
(ORLANDI, 2012a, p. 229). Dessa forma, quando o Estado falha em seu papel de,
no nosso caso, salvaguardar os Direitos Humanos face à Ditadura, produz-se o
mecanismo de individuação do sujeito e este é deixado à margem da sociedade.
Assim, ao considerarmos que o Estado falhou nas condições de produção da
Ditadura Militar, defendemos que aí se produz a resistência através de outras formas
subjetivas de (des)identificação na luta pela memória, causa primeira do Relatório
Final da CNV e o testemunho invocado por ele.
Dito isso, agora podemos entender que a relação que a FD mantém com a
prática discursiva que lhe é correspondente perpassa a observação de um duplo
funcionamento: o cruzamento do interdiscurso com o intradiscurso. A primeira noção
é forjada por Pêcheux para representar, conforme citado anteriormente, o espaço
onde estão dispersas as FDs em relação de aliança ou confronto, intricadas no todo
complexo com dominante das formações ideológicas (PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 162).
É por meio do funcionamento e, consequentemente, da organização do interdiscurso
que percebemos a relação de dominância em relação a outras FDs no momento da
instauração de um discurso. O interdiscurso, assim concebido, sobrepõe-se às
designações de mero já-dito, subentendido, implícito e intertextualidade. Para
Maldidier, por sua vez, o interdiscurso recobre um espaço diferente daquele
atribuído ao “já-dito”. Segundo a autora:
[...] não é nem a designação banal dos discursos que existiram antes
nem a ideia de algo comum a todos os discursos. Em uma linguagem
estritamente althusseriana, ele é “o todo complexo com dominante”
das formações discursivas, intricado no complexo das formações
ideológicas, e “submetido à lei de desigualdade – contradição –
subordinação”. Em outros termos, o interdiscurso designa o espaço
discursivo e ideológico no qual se desdobram as formações
73
* Formações Ideológicas
* Memória Discursiva
* Pré-construídos
* Formações Discursivas
Eixo da formulação
(Testemunho)
Pêcheux (2015 [1983]) propõe, assim, que existe um jogo entre duas forças
pela disputa de uma memória acarretado por meio do irrompimento do
acontecimento: o primeiro, lutaria por estabelecer a regularização e a estabilização
da memória; o segundo, por seu turno, lutaria para quebrar a roda da
77
22
Maurice Halbwachs (1877-1945) foi um sociólogo francês de grande envergadura intelectual.
Discípulo de Émile Durkheim, Marx e Bergson, consagrou-se no campo da intelectualidade por seus
trabalhos sobre a memória coletiva. Entre suas principais obras estão: Les Cadres Sociaux de la
Mémoire [Os Quadros Sociais da Memória] (1925), Les Causes du Suícide [As Causas do Suicídio]
(1930), Morphologie Sociale [Morfologia Social] (1938), La Mémoire Collective [A Memória
Coletiva] (1950), entre outras.
80
da tradição de diferentes grupos sociais que se organizam em torno dela. Por isso,
de acordo com o autor, a memória individual, por sua vez, só tem existência e
legitimidade a partir do momento em que o sujeito pertence a um grupo e,
consequentemente, é reconhecido como membro deste por seus representantes.
MEMÓRIA
INDIVIDUAL
MEMÓRIA
INDIVIDUAL
Diante disso, toda memória precisa ser compartilhada através dos laços que
unem os sujeitos em determinado grupo social. Essa troca permite que ela receba
novos sentidos, produzindo, com isso, novas reconfigurações sociais na vida do
próprio sujeito. Para Halbwachs (2003 [1950]), a memória coletiva e a memória
individual se confundem. Mas isso não significa que sejamos “donos da memória”.
Mesmo que uma memória se apresente sob o rótulo do que é individual, ela só se
instaura e se legitima na presença do outro.
Sendo assim, para o autor, é comum que exista uma relação metonímica
entre a memória coletiva e individual porque “para que a memória dos outros venha
assim a reforçar e completar a nossa [...] é preciso que as lembranças desses
grupos não deixem de ter uma relação com os acontecimentos que constituem meu
passado” (HALBWACHS, 2003 [1950], p. 98). O Relatório Final da CNV, por seu
turno, ajuda-nos a pensar, por assim dizer, que uma memória individual sempre joga
com uma memória construída coletivamente. Com a análise do corpus que
propomos, podemos encontrar as pistas dessa relação apontada pelo autor.
Aqui, dois pontos são relevantes: o primeiro aponta para o fato de sempre nos
lembramos dos acontecimentos ou das coisas inicialmente a partir da primeira
pessoa, logo o ponto de partida de uma lembrança é sempre um “EU” que se
singulariza e que constrói a “identidade do sujeito”, isto é, quando o sujeito lembra
de algum acontecimento, inevitavelmente lembra de si mesmo antes de qualquer
cogitação, tornando-se, com isso, autorreferência para a lembrança: “as lembranças
são minhas!”. Entretanto, tais lembranças só existem porque este “eu me lembro” é
antes de tudo social, é histórico, e foi lançado inicialmente num grupo social para
82
O segundo ponto, por sua vez, diz respeito ao vínculo que o sujeito
estabelece com o passado que é, por assim dizer, de mão dupla: o que faz com que
o sujeito possa transitar entre o passado mais remoto e invoque, por exemplo, uma
memória da infância para o presente, ou seja, aquilo que ele viveu se torna uma
extensão do que ele é no presente e, através de uma espécie de continuidade,
moldará também o seu futuro na sociedade. No nosso caso, ao considerarmos o
testemunho discursivamente, as reminiscências podem ser de diferentes ordens,
entretanto, a memória que se recupera a partir do Relatório Final da CNV parte
sempre de um ponto comum: a tortura. Ou seja, o testemunho mobiliza sujeitos
marcados pela dor que materializa uma mesma memória, produzindo, com isso, um
mecanismo de identificação.
[...] o grupo nacional de que faço parte foi teatro de certo número de
acontecimentos a respeito dos quais digo que me lembro, mas
que só conheci através de jornais ou pelo testemunho dos que
neles estiveram envolvidos diretamente. Esses fatos ocupam um
lugar na memória da nação – mas eu mesmo não os assisti. Quando
os evoco, sou obrigado a me remeter inteiramente à memória dos
outros, e esta não entra aqui para completar ou reforçar a minha,
mas é a única fonte do que posso repetir sobre a questão. No
pensamento nacional, esses acontecimentos deixaram um traço
profundo, não apenas porque as instituições foram modificadas por
eles, mas porque sua tradição subsiste muito viva nessa ou naquela
região do grupo, partido político, província, classe profissional ou
mesmo nessa ou naquela família, entre certas pessoas que
conheceram pessoas que o testemunharam (HALBWACHS, 2003
[1950], p. 72-73, grifos nossos).
Dito de outra forma, embora cada sujeito possa assumir uma memória
individual, tal memória está ligada diretamente a outras memórias que reverberam e
circulam na sociedade, influenciando, portanto, aquilo de que nos lembramos. Sendo
assim, a memória individual é dependente da memória coletiva porque esta última
apresenta e carrega o traço da sociabilidade que a legitima enquanto tal. Com a
83
paira num passado distante, todavia as testemunhas sempre estarão aí. Nesse
sentido, a memória ganha cada vez mais força – através do testemunho –, quando é
evocada não apenas por uma voz singular, mas por diferentes vozes sociais que
compartilharam do mesmo acontecimento histórico através da memória. Sobre esta
relação o pensador propõe que:
23
Pierre Nora toma por empréstimo a noção de Lugar de Memória da obra A Arte da Memória de
Frances A. Yates (1966).
24
A narrativa memorial, que se dá através do testemunho, é entendida aqui a partir do termo
“narratividade” apresentado por Orlandi: “[...] a narratividade como a maneira pela qual uma memória
se diz em processos identitários, apoiados em modos de individuação do sujeito,
afirmando/vinculando (seu “pertencimento”) sua existência a espaços de interpretação determinados,
consoantes a específicas práticas discursivas. Isto afirma a narratividade como parte do dizer, seja
qual for, e não como um „gênero‟ (narração). Ou seja, o que estou afirmando é que a narratividade,
ligada, como a ligo, ao funcionamento da memória, é parte do funcionamento do discurso”
(ORLANDI, 2017, p. 106-107).
87
FUNCIONAL
SIMBÓLICO MATERIAL
Por sua vez, essa espécie de “desmemória” é caracterizada por Nora (1993
[1984], p. 18) como um mecanismo de “atomização de uma memória geral em
memória privada”, bem como através de um processo psicologizante “integral da
memória contemporânea” que teria o papel fundamental de fazer com que o sujeito
possa “relembrar e reencontrar o pertencimento, princípio e segredo da identidade”.
Nesse sentido, o autor apresenta uma crítica ferrenha àqueles que, inebriados pela
89
Tal concepção concebe o passado, entende o autor, não como algo distante
(temporalmente), porém como algo que pode sempre nos (re)conduzir a um tempo
presente. Este ponto é bastante emblemático porque precisamos ser sensíveis à
distinção – não raro problemática – entre história e memória, ou melhor, entre a
memória e aqueles que escrevem a história – enquanto ciência – por meio de um
esforço historiográfico que, na maioria das vezes, fragmenta e cristaliza uma
memória por meio da aceleração da história no contexto do tempo presente.
25
Joël Candau é antropólogo e professor-pesquisador da Université de Nice Sophia Antipolis. Tem
uma robusta produção intelectual voltada para as questões da memória e da identidade social.
90
história, por sua vez, imprime na ordem da memória. Dito de outra forma,
deixaríamos de considerar que a história atualiza a memória ao mesmo tempo em
que é por ela (re)atualizada. Tal atualização ocorre, por sua vez, constantemente
através daqueles que conduzem a sociedade, no sentido político do termo, bem
como por aqueles que integram os grupos sociais por meio de suas experiências
individuais. Ao considerarmos isso, portanto, entendemos que a memória também
está, como massa de manobra simbólica, sujeita à censura e ao silenciamento.
26
Michael Pollak (1948-1992) foi um importante sociólogo e pesquisador do Centre National de la
Recherche Scientifique (CNRS). Orientando de Pierre Bourdieu, suas pesquisas se voltam para as
relações entre política e ciências sociais, além de apresentar uma relevante reflexão teórica sobre o
95
sentido, o autor propõe uma reflexão interessante sobre a memória à medida que
ressalta a existência de uma “memória subterrânea” como a contraparte de uma
“memória oficial”. Essa memória outra apontaria, em nossa leitura, para o
funcionamento ideológico das relações de poder na sociedade que legitimam e
institucionalizam uma memória através da relação dominador/dominado. Diante
disso, a “memória subterrânea” seria, por assim dizer, a memória das minorias
sociais e, por isso mesmo, um alvo fácil para o esquecimento à medida que a
“memória nacional” a exclui ou subverte essa presença outra no seu próprio interior
o que, de acordo com o autor, colocaria a memória numa espécie de disputa. Dessa
forma, neste trabalho, assumimos que:
problema da identidade social em experiência-limite, como, por exemplo, um estudo realizado sobre
as mulheres sobreviventes dos campos de concentração.
96
resgatar outros esquecimentos, de modo que seja possível dar voz a outras versões
da história através das testemunhas daquele acontecimento histórico.
Diante de tudo que expusemos até aqui, entendemos que uma sociedade que
não tem memória não tem sustentação. Portanto, memória e esquecimento são
tecidos da história da humanidade. Dessa forma, o testemunho presente no
Relatório Final da CNV nos une por meio de uma mesma memória social, tal como
pensada por Halbwachs (2003 [1950]). Nessa perspectiva, o empreendimento
sustentado pela CNV opera com efeitos de sentido estabelecidos pela relação da
memória com a história e, sobretudo, com o efeito político desta relação.
Assim sendo, o Relatório da CNV representa, com efeito, esse lugar de/da
memória. O modo de (re)construção da memória representa uma espécie de luta
99
27
PLATÃO. Teeteto. In: Diálogos de Platão. 3. ed. Trad. Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade
Federal do Pará, 2001.
100
28
Paul Ricoeur (1913-2005) foi um pensador francês herdeiro da fenomenologia de Husserl e
Heidegger. O filósofo estabeleceu um forte vínculo entre a fenomenologia e a análise da linguagem
por meio da teoria da metáfora, do mito e do modelo científico, além de deixar uma robusta
contribuição no que concerne aos estudos sobre a memória e o esquecimento. Entre suas principais
obras estão: Histoire et vérité [História e Verdade] (1955), La métaphore vive [A Metáfora Viva]
(1975), Temps et récit [os três volumes de “Tempo e Narrativa”] (1983, 1984 e 1985), La mémoire,
l'histoire, l'oubli [A Memória, a História, o Esquecimento] (2000), entre outras.
101
Esse é um ponto crucial – a nosso ver – porque ao discursivizar aquilo que foi
vivenciado no passado, o testemunho nos aponta as pistas para realizar um trabalho
com a memória e seus respectivos efeitos de sentido, quando submetidos à
materialidade linguística, à medida que instaura um processo que aponta o caminho
daquilo que foi vivido e concebido ao longo da história da Ditadura Militar e que
continua a provocar ecos através de um constante efeito déjà vu. Por isso, o
testemunho é, numa primeira chave de leitura, uma reconfiguração da memória que
ocorre por meio da narrativa para se reivindicar justiça fazendo um apelo à memória
e à verdade. A prática testemunhal, assim, surge como fonte e efeito de evidência
de que a “verdade” passou por uma crise em determinado período da história e a
testemunha é convocada para descrever o que aconteceu, viveu, viu e ouviu para
que se estabeleça, na medida do possível, a verdade sobre os acontecimentos da
história. Diante disso, a testemunha assume um compromisso e, ao mesmo tempo,
uma responsabilidade ética, por assim dizer, com a “verdade” daquilo que aconteceu
e, consequentemente, inscreve a memória social numa luta política. Essa verdade,
conforme veremos, tenderá sempre a uma reconfiguração através do trabalho da
ideologia.
Essa narrativa foi feita, está sendo feita, mas, como o ressaltam
todos os sobreviventes [...] ela nunca consegue realmente dizer a
107
MEMÓRIA
ESQUECIMENTO
MEMÓRIA
Diante disso, mesmo que uma memória tente ser anulada, sabemos que o
Chapéu de Clémentis permaneceu sempre lá e esse é um ponto interessante,
apresentado por Courtine, para pensar sobre a dimensão da memória e do
esquecimento. O gesto simbólico de Clémentis – conforme nos apresenta o autor –
para com Gottwald, naquele fevereiro de 1948, em Praga, ficaria para sempre na
constituição de uma memória. Por mais que se tenha tentado apagar – através de
109
Para nós, esse acontecimento aciona aspectos que ecoam fortemente nas
reflexões sobre o discurso e a memória: através da relação entre a lembrança e o
esquecimento, o apagamento e a recuperação, a reapropriação e a ressignificação
do que foi apagado, a constituição histórica da memória e a sua, por assim dizer,
administração institucional por aqueles que se dizem “guardiões da memória”. Nesse
sentido, a mídia pode ter apagado a imagem de Clémentis das fotografias, mas a
memória-imagem perpetuaria a atitude dele nas páginas da história para sempre. No
exame da memória, através dos acontecimentos históricos, assim como o processo
de apagamento ou a busca pelo desaparecimento de Clémentis das páginas da
história, há algo que sempre deixa uma lacuna, um espaço vazio que, mesmo assim,
insiste em preservar o que aconteceu ali, resistindo ao esquecimento.
Sobre este ponto, também é pertinente a reflexão proposta por Robin (2016),
principalmente no que concerne à cor do esquecimento abordada pela autora ou os
contornos e as formas que o esquecimento pode assumir em sua relação com a
história e a memória, além da questão do testemunho, da testemunha e do arquivo.
Segundo a autora, “o verdadeiro esquecimento talvez não seja o vazio, mas o fato
de imediatamente colocar uma coisa no lugar de outra, em um lugar já habitado, de
um antigo monumento, de um antigo texto, de um antigo nome” (ROBIN, 2016, p.
93). É esse o trabalho do esquecimento que se propõe coletivo sobre a memória de
Clémentis. Uma ação política que pretendeu apagar completamente a memória
daquele gesto que marcou a história de um acontecimento singular.
Essa reflexão nos direciona, uma vez mais, para o testemunho que é – em
certo limite –, libertador. Ele é capaz de fazer o sujeito reviver, de certa maneira, a
violência que condicionou o trauma, mas agora segue um caminho diverso daquele
palmilhado na experiência da tortura. Por isso, o estado de silêncio, ou de silenciar-
se, não implica esquecimento, mas constitui uma rede de significações através de
pontos do silêncio na narração: as pausas, as hesitações, as reticências, a recusa, a
confirmação etc. Sendo assim, o silêncio se inscreve no âmbito do próprio discurso,
111
não apenas na estrutura, mas em toda a sua configuração, inclusive naquilo que
escapa à própria estrutura por meio do trabalho simbólico, da falta, do Real.
mas que está em constante dispersão e ecoa fora da língua da imanência, por
exemplo, e que se materializa no testemunho que analisamos neste trabalho. No
estudo proposto por Orlandi (1992) encontramos diferentes teses sobre a natureza e
as formas do silêncio: o silêncio não fala. O silêncio não pode ser ouvido. O silêncio
não se confunde com o implícito nem com as marcas da pressuposição. O silêncio
simplesmente é. O universo do implícito pode ser recuperado linguisticamente por
sua inteligibilidade, mas o silêncio, ao contrário, trabalha na instância da ausência,
da exclusão, do apagamento. Sobre este ponto, a autora esclarece que:
Aquilo que não tem nome, aqueles que não têm nome, o anônimo,
aquilo que não deixa nenhum rastro, aquilo que foi tão bem apagado
que mesmo a memória de sua existência não subsiste – aqueles que
desapareceram por tão completo que ninguém lembra de seu nome
[...] o narrador e o historiador deveriam transmitir o que a tradição,
oficial ou dominante, justamente não recorda. Essa tarefa paradoxal
consiste, então, na transmissão do inenarrável, numa fidelidade ao
passado e aos mortos, mesmo – principalmente – quando não
conhecemos nem seu nome nem seu sentido. (GAGNEBIN, 2004, p.
88-89).
Nessa perspectiva, somente a tarefa política [e ética] sobre a memória
poderia retirar, na medida do possível, do anonimato e do esquecimento as pessoas
que foram cruelmente assassinadas durante a Ditadura Militar. Ao lado do trabalho
do testemunho, que promove a passagem da repetição dos acontecimentos à sua
rememoração, o dever de memória se impõe – conforme veremos nas análises do
corpus – como um compromisso ético-moral imperativo na busca por justiça. Assim,
para Ricoeur (2007), é a justiça que se busca quando se investiga uma memória em
relação ao que aconteceu no passado, isto é, busca-se destituir a memória que foi
historicamente e ideologicamente manipulada e, para isso, convoca-se o dever de
memória. Diante disso, o autor reforça que “o dever de memória é o dever de fazer
justiça, pela lembrança, a um outro que não o si” (RICOEUR, 2007, p. 101).
Portanto, é o dever que nos impõe uma dívida perante as vítimas que sofreram
violações dos Direitos Humanos durante aquele acontecimento histórico e que, por
sua vez, revira a memória social no batimento por justiça.
29
Etimologicamente do grego: amnestía = “esquecimento”.
30
Esse foi o argumento usado pelo capitão Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, “o Sérgio Macaco”,
em entrevista concedida à revista Veja (26/06/1985). Sérgio ficou conhecido como o “homem que
disse não à Ditadura Militar”. Na ocasião ele afirmou que: “Anistia é para quem cometeu crimes, e eu
não cometi crime algum”. Sérgio se negou a cumprir, em 12 de junho de 1968, a ordem de seu
comandante, o brigadeiro João Paulo Burnier, para explodir o Gasômetro no Rio de Janeiro, que, por
sua vez, seria atribuído aos “comunistas”. O atentado era o “plano para livrar o Brasil da “ameaça
comunista” e desqualificar de uma vez por todas a oposição que, para setores militares, tentava
mergulhar o país no caos e na desordem. Para que tudo funcionasse, a atuação do oficial e de sua
esquadra era fundamental. Os planos do chefe, porém, foram frustrados pelo capitão, que se recusou
a colocá-los em prática, proibindo o emprego de seus homens no ato que, se concretizado, seria a
maior tragédia da história brasileira. Ele também informou o caso a outras autoridades. Burnier,
porém, sempre negou as denúncias”. Sérgio foi cassado pelo AI-5. Disponível em:
https://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/capitao-sergio-macaco-se-nega-explodir-gasometro-no-
rio-evita-caca-oposicao-21984331 e também aqui:
http://www.arqanalagoa.ufscar.br/pdf/recortes/R04928.pdf.
117
DIREITO À
JUSTIÇA
DIREITO À
MEMÓRIA
RESTITUIÇÃO SATISFAÇÃO
JUSTIÇA DE REPARAÇÃO
REABILITAÇÃO NÃO-REPETIÇÃO
Fonte: Elaboração do autor a partir das recomendações CNV (BRASIL, 2014, p. 26).
Adaptado.
Todos esses processos constituem os pilares para a efetivação da justiça e
podem se coadunar na busca pela efetivação da reparação das vítimas. Embora
119
O dever de memória tem ainda uma ligação com o direito à verdade. Sendo
assim, ao denunciar as graves violações dos Direitos Humanos praticadas pelo
Estado brasileiro no passado, a CNV permite que a sociedade brasileira possa lutar
por um futuro mais justo, humano e igualitário. O direito à verdade, portanto, ergue-
se como um direito inalienável que assiste às vítimas de qualquer forma de violência
praticada no período da Ditadura Militar, extensivo a seus familiares e a toda
sociedade civil.
passado. Assim como para Primo Levi (1988 [1947]), a possibilidade de testemunhar
se agarra a uma necessidade urgente, a uma memória-dever que envolve o sujeito
paradoxalmente no desejo de libertação através do esquecimento e a ética da
responsabilidade com o outro – que não pode mais dizer dessa memória e marca
uma ausência constante no testemunho – a partir da consciência de si. É justamente
esse não-lugar, a potência desse espaço vazio que o sujeito porta-voz do
testemunho não pode preencher, que funda a língua e deixa a falta
permanentemente à deriva. E é porque esta falta é estruturante que consideramos
aqui que:
invocada por meio do testemunho, neste trabalho, se choca com a memória forjada
pela Ditadura Militar ao desvelar os crimes praticados contra a humanidade nos
quartéis e, ao mesmo tempo, rompe com as supostas verdades sedimentadas na
memória social.
testemunhar, que vamos tratar no bloco de análise a seguir. Para tanto, estamos
considerando “esse algo a mais” como efeitos do Real sobre as formas de
organização linguístico-discursiva do testemunho. É a falta que resiste à
simbolização e ao imaginário, mas que remete ao limite da representação quando
fura/atravessa a língua constitutivamente por meio da falha, do equívoco, mesmo
que ela (a língua) seja incapaz de roçar o Real, os efeitos deste sobre aquela
caracterizam a organização discursiva do testemunho.
Diante de tudo que abordamos até aqui, consideramos que o Relatório Final
da CNV representa – através da voz do testemunho – uma forma de registrar os
acontecimentos históricos da Ditadura Militar, de recontar e ressignificar a história e
a memória. E essa tarefa a memória nos ensina bem: o passado nunca se cala.
Mesmo perante o silêncio, para o bem ou para o mal, o passado, por assim dizer,
sempre volta para nos fazer lembrar dele. Diante disso, entendemos que o gesto de
testemunhar é sempre político e urgente. O testemunho também não é – assim
como o sentido, o sujeito e o discurso –, imune à incompletude e estabelece
fronteiras que são sempre fluidas na instituição de uma possível verdade.
Entretanto, ele possibilita a retomada de algo que está resguardado no passado,
potencializando, assim, a presença de um acontecimento histórico no presente do
sujeito.
Assim sendo, jogar luz sobre essa memória, através do testemunho, não é
uma escolha, mas uma necessidade de sobrevivência, ainda hoje, de tudo aquilo
que aconteceu em Auschwitz. Diante disso, longe de se considerar apenas a
superfície sobre a qual se instaura o testemunho, é importante considerar o modo
como as testemunhas organizam seu discurso por meio da (re)construção ou
(re)contação de uma memória sobre o passado. Neste processo, passado e
presente se misturam fazendo com que as próprias memórias possam sofrer
fraturas, apresentar fissuras pelas quais podemos perceber, por exemplo, um
trabalho político-ideológico sobre as memórias. Por isso, antes de mais nada,
defendemos que o testemunho é uma questão do/para o discurso. No depoimento,
forma assumida pelo testemunho no Relatório Final da CNV, o modo de dizer da
testemunha assume, conforme mostraremos na análise do corpus, uma postura
irregular que opera no plano de um duplo jogo da memória envolvendo um “EU” e
um “NÓS” por meio de uma consciência de/sobre si (a busca de si) através de uma
análise do “EU”.
trauma, que a maioria luta para esquecer e não pode, ou melhor, não consegue.
Nessa direção, talvez, estas sejam as questões mais difíceis de se enfrentar, na
sessão de testemunho, por quem passou pela tortura: o medo da recordação, o
envolvimento, mais uma vez, com o fantasma da tortura e, sobretudo, a
incompreensão ou a não aceitação dos motivos que geraram a tortura e que
permanecem, até hoje, marcadas no corpo e na alma, inclusive dos descendentes.
Pensemos, por exemplo, em alguém que é obrigado a se olhar todos os dias no
espelho e se deparar com a tortura através das marcas da violência em seu corpo,
por meio dessa memória-corpo...
Pois bem, após essa incursão passaremos agora às análises dos recortes
das sequências discursivas (SDs) recortadas dos testemunhos presentes no
Relatório Final da CNV31 (BRASIL, 2014). Diante disso, buscamos, por meio da
análise vertical de corpus (ORLANDI, 2012), observar as regularidades na
organização discursiva do testemunho e os efeitos de sentido que se instauram a
partir daquilo que estamos considerando aqui como as formas do testemunho “EU”,
“NÓS”, “ELES” e “OUTRO”. O tratamento dado ao corpus segue uma organização
que aponta para a descrição, a interpretação e a verticalização dos fenômenos
analisados a partir de 26 SDs distribuídas em cinco blocos de análise a partir deste
capítulo. Conforme dissemos no início, as sequências discursivas não seguem,
rigorosamente, a mesma ordem em que os testemunhos aparecem no Relatório
Final da CNV. Em cada testemunho (SD), há uma nota recortada do arquivo da CNV
com informações sobre a testemunha.
31
Especificamente, recortamos os testemunhos do Tomo I (Volume I do Relatório Final da CNV).
135
TESTEMUNHA-132
SD-1: “Quando eu ia a um velório, eu sempre sentia aquilo lá dentro:
„Poxa, meu sogro não teve o direito dos filhos velarem, noras, sobrinhos,
netos etc. Morreu lá, ninguém sabe como [...] Eu já acostumei sem ele, só
que nunca acostumei com a maneira como ele morreu. E para vir, como
Manoel falou, se forem realmente os restos mortais dele para trazer para
cá, para mim é uma vitória. Para mim é uma maravilha. Nós vamos ficar
devendo a vocês, que se interessaram por isso, muitas coisas. Ou muita
coisa, uma coisa grande, grandiosa. Sei que vocês estão fazendo o
trabalho de vocês, mas para nós é uma honra, para nós é uma honra. [...]
Se esses ossos chegarem, se esse corpo chegar, e a gente colocar ali
dentro para colocar uma placa assim – eu quero que bote uma bem
grande, com letras bem legíveis, bem visíveis: „Aqui jaz Epaminondas e
dona Avelina‟. Eu vou botar lá uma coisa bonita, vou estudar o que eu
vou pôr lá. É alegria” (BRASIL, 2014, p. 48, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2
SD-2: “Dilma Rousseff: Eu me lembro de chegar na Operação
Bandeirante, presa, no início de 1970. Era aquele negócio meio terreno
baldio, não tinha nem muro, direito. Eu entrei no pátio da Operação
Bandeirante e começaram a gritar: „Mata!‟ „Tira a roupa‟, „Terrorista‟, „Filha
da puta‟, „Deve ter matado gente‟. E lembro também perfeitamente que
me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres. Tinha
uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome
verdadeiro. Ela disse: „Xi, você está ferrada‟. Foi o meu primeiro contato
com o esperar. A pior coisa que tem na tortura é esperar, esperar para
apanhar. Eu senti ali que a barra era pesada. E foi. Também estou
lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo branco. Porque vai
formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro [...] depois
da palmatória, eu fui pro pau de arara. As marcas da tortura sou eu. Fazem
parte de mim” (BRASIL, 2014, p. 130 e 387, grifos nossos).
32
Joana Pereira Rocha, nora de Epaminondas Gomes de Oliveira, em depoimento prestado à
Comissão Nacional da Verdade em 21 de outubro de 2013, na audiência pública que assinalou a
entrega dos restos mortais à família. Epaminondas Gomes de Oliveira foi um grande líder comunitário
e desapareceu em agosto de 1971.
33
Seguindo aqui o que defende Indursky (2013 [1997]).
137
Pois bem, é a partir das SDs acima que pontuamos, no eixo da formulação
discursiva do testemunho, a ocorrência dessa regularidade de subjetivação, ou seja,
o funcionamento de um fenômeno de identificação que se dá através da memória da
tortura e que promove o imbricamento de duas pessoas discursivas: um “EU” em um
“NÓS” (“EU” = posição-sujeito individual e “NÓS = instanciação do social, do grupo
social com que o “EU” se identifica e compartilha a memória do mesmo
acontecimento) que acarreta uma relação com “TODOS”. Há, assim, um jogo de
espelhos entre o eu e o outro e, neste processo, ambos se (re)conhecem naquela
memória, dependem um do outro, se recriam e (re)constroem aqui um dizer outro
sobre a violência na Ditadura Militar. Nessa direção, defendemos que tal relação
instaura uma espécie de:
modo que se sustenta uma relação ética com o outro, ou seja, uma responsabilidade
social com este outro. Ao se afirmar como “EU”, na cena testemunhal, o sujeito
produz e identifica-se (consciente e/ou inconscientemente) com uma causa que só
tem razão de ser em função da alteridade, da relação entre um “EU” e o “NÓS” que
subjaz ao testemunho, e que só tem existência diante do funcionamento do político
que atravessa constitutivamente a língua: “Sei que vocês estão fazendo o trabalho
de vocês, mas para nós é uma honra, para nós é uma honra” (SD-1).
inscreve. Observe-se, ainda, que o funcionamento do verbo “ficar”, por sua vez,
estabelece um efeito de sentido que aponta para a fixação permanente da dívida
perante a CNV, ou seja, dizer “ficar” (estar, permanecer, continuar) implica a
instituição de um sujeito [“NÓS”] que se institui num espaço da memória do dever.
Na SD-1, marca-se, ainda, a presença de uma falta que pode ser preenchida,
de certa maneira, porque se “fez justiça”. O desaparecimento forçado e a ocultação
de cadáver deixam um lugar vazio que passa a ser idealizado pelos familiares e, ao
mesmo tempo, os lança no sofrimento diante da impossibilidade de preencher tal
espaço. Para os familiares, a vida passa a ser intolerável porque eles convivem com
uma eterna falta simbólica que gera, por assim dizer, a impossibilidade de dar
sentido a essa falta. É justamente este espaço “vazio” que produz a resistência e,
consequentemente, atrapalha o trabalho do esquecimento sobre a lembrança. Aqui,
a falta denuncia, o silenciado significa. Neste caso, a morte do ente querido fica
sempre à deriva pela falta de um corpo simbolizante, de um ritual de luto que não
aconteceu e que possibilita a atualização constante do trauma e,
consequentemente, a entrada do sujeito no campo do Real. Com o advento do
acontecimento discursivo que se dá através do Relatório Final da CNV, só agora se
abre uma possibilidade para o “NÓS”: a de “subjetivação de uma perda” (BALDINI,
2018, p. 27).
34
O termo trauma é forjado no campo da Psicanálise e “designa a sequela produzida por um evento
desorganizador das defesas psíquicas. Os sobreviventes de grandes catástrofes naturais, assim
como as vítimas de formas extremas de violência, não conseguem superar o terror dessas
experiências porque elas não se enquadram nas estruturas simbólicas que permitem a elaboração
psíquica. Assim, as marcas do sofrimento traumático tendem a se atualizar durante a vida dessas
vítimas e são transmitidas inconscientemente a seus descendentes. O trauma só pode ser
compreendido e descrito a partir do modo como a violação e a violência são incorporadas,
reproduzidas e vivenciadas” (BRASIL, 2014, p, 426-427).
35
Genealogia da moral: uma polêmica.
36
É isto um homem?
143
como um dever moral que precisa ser assegurado pelos sobreviventes. Seguir em
frente, aqui, assume uma posição condicional: só é possível diante da significação,
em certo limite, da verdade, causa primeira da CNV.
Por seu turno, na sequência, encontramos a pista que nos aponta para um
desejo de “esquecimento” por parte do “NÓS” – “EU” ou por um direito “ao
esquecimento” que só é possível agora pelo (re)estabelecimento do ritual do luto: o
velório, o sepultamento, diante do trabalho da CNV que possibilitou a localização e o
reconhecimento dos restos mortais de Epaminodas: (“[...] se forem realmente os
restos mortais dele para trazer para cá, para mim é uma vitória. Para mim é
uma maravilha”). Essa pista, ainda, retoma outro princípio fundador da CNV e que,
em nosso gesto de leitura, aponta para outro mecanismo que é invocado para o
rompimento, em certa medida, com a memória da dor: o desejo de justiça.
em que se inscreve a Ditadura Militar: (“Eu dei meu nome verdadeiro”). Neste
caso, consideramos que dizer o nome verdadeiro ao outro (“menina grávida”) implica
assumir a própria identidade e, ao mesmo, assumir os riscos de colocar-se – através
da desidentificação – contra um discurso outro: o da coerção, da violência, da
interdição e do silenciamento enquanto saberes que caracterizam a FD na qual os
militares estavam filiados: (“[...] Xi, você está ferrada”). Mais que isso: dizer o nome
verdadeiro – na Ditadura Militar – se caracteriza, na espera da tortura, como um ato
de coragem, uma tomada de posição, logo de resistência de um sujeito que se
levanta contra a imposição de uma ideologia dominante.
37
Para Pêcheux “[...] todo enunciado é intrinsecamente suscetível de torna-se outro, diferente de si
mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro [...] Todo enunciado,
toda sequência de enunciados é, pois, linguisticamente descritível como uma série (léxico-
145
O jogo da verdade é, pelo viés ideológico, sempre muito perigoso. Como não
se pode escapar do efeito ideológico, há sempre a possibilidade de que sentidos
diferentes (e antagônicos) se materializem na denominação do que seja “a verdade”.
Para pensar sobre isso, algumas questões se impõem: se um sujeito colocado em
“A” julga ser detentor da verdade, o que restaria para o sujeito colocado em “B” já
que não existe meia verdade e nem meia mentira? Quais critérios poderíamos
utilizar para deliberar sobre quem, de fato, estaria com a verdade em dadas
condições de produção? Como descobriríamos os “traidores” da verdade? E
carecemos decidir. Em tempos de “pós-verdade” no cenário político atual, torna-se
imperativo que a busca pela “instituição” e preservação da verdade seja
intensificada, sobretudo quando se trata de uma verdade histórica. Nossa decisão,
por sua vez, estará sempre filiada a um complexo jogo de formações ideológicas
que marcam a nossa posição-sujeito e, consequentemente, as nossas
decisões/escolhas discursivas que podem ser de diferentes instâncias sociais:
jurídicas, éticas, morais, políticas, profissionais, pessoais etc.
Não importa. Seja qual for a nossa decisão, algo sempre vai nos escapar. E
esse escapável é sempre da ordem do impossível. Portanto, o nosso
reconhecimento de qualquer indício de “verdade” ou “mentira” é sempre e apenas
uma possiblidade de tal “verdade” ou de tal “mentira” no fio do discurso sob o efeito
da ilusão daquele que lhe é porta-voz. Esta constatação, portanto, poderia colocar
tanto “A” quanto “B” numa posição arriscada, isto é, sob suspeita. Entendemos,
assim, que decidir sobre “verdade” e “mentira” implica uma questão discursiva, logo
uma posição político-ideológica sobre aquilo que o sujeito diz. A verdade, em suma,
é aqui entendida como um efeito que se (re)produz discursivamente. Portanto, neste
caso, podemos compreender a verdade como um lugar, ou melhor, como uma
posição que se constrói e se preenche por dado sujeito.
147
38
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Tiyezo1fLRs
149
TESTEMUNHA-339
SD-3: “Começaram a me bater. Eles me colocaram no pau de arara. Eles
me amarraram. Eles me deram batidas. Deram choque. Eles começaram
39
Depoimento de Karen Keilt. Karen vivia nos Estados Unidos desde a década de 1970. Em visita
ao Brasil foi levada a força com o marido para o Departamento Estadual de Investigações Criminais
de São Paulo (DEIC-SP), em 19 de maio de 1976. Ambos só foram libertados no início de julho, após
o pagamento de um “resgate” de 400 mil dólares.
150
TESTEMUNHA-440
SD-4: “[...] A maioria deles ia ao Lar Santana nas missas e conhecia a
irmã Maurina. Então eles ficavam assim. Ele agarrava ela, mas à
tardezinha, à noite, quando todo mundo tinha ido embora, entendeu? Ele
ia na cela e tirava ela. E aí, uns meninos que estavam de plantão, um
olhava pro outro, é agora mesmo. Eles entravam na cela, abriam a porta”
(BRASIL, 2014, p. 406, grifos nossos).
TESTEMUNHA-541
SD-5: “Na questão da mulher, a coisa ficava pior porque... quer dizer pior,
era pior para todo mundo, não tinha melhor para ninguém, né? Mas [...]
existia uma intenção da humilhação enquanto mulher. Então, o choque na
vagina, no ânus, nos mamilos, alicate no mamilo, então... eram as coisas
que eles faziam. Muitas vezes, eu fui torturada junto com Celso Brambilla
porque a gente sustentou a questão de ser noivo. Eles usaram,
obviamente, essa situação, esse vínculo, suposto vínculo, além da
militância, que seria um vínculo afetivo também, para tortura” (BRASIL,
2014, p. 407, grifos nossos).
TESTEMUNHA-642
SD-6: “Então, eles entraram. Dois homens chegaram, eles não deram
ordem de prisão para o meu pai [...] Eles estavam à paisana. Não
estavam vestidos de farda. E a gente achou esquisito a forma como
aqueles homens estavam sendo conduzidos algemados. Papai levantou,
nós levantamos [...] A gente procurou informação. Aí foi quando a gente
veio saber que o que estava acontecendo porque todas aquelas pessoas,
saber que eram amigas do seu Epaminondas, foram presas porque foram
consideradas como comunistas. E ele passou cinco dias. Sem saber
notícia, porque ficou incomunicável [...]” (BRASIL, 2014, p. 381-383, grifos
nossos).
40
Depoimento de Áurea Moretti Pires à CNV. Ela relembra que ficou presa com a Irmã Maurina
(diretora do orfanato Lar Santana em Ribeirão Preto/SP) e que presenciou a violência sexual
praticada contra a religiosa.
41
Márcia Bassetto Paes relata, em depoimento prestado a CNV, as torturas que sofreu quando foi
presa com Celso Giovanetti Brambilla pelo Deops/SP, em 28 de abril de 1977.
42
Depoimento de Maria de Jesus Sousa Santos, que, em 22 de outubro de 2013, contou como foi o
padecimento da família de Antônio Alves Rodrigues − preso sem ser militante, apenas porque era
amigo íntimo de Epaminondas Gomes de Oliveira.
151
Esquema 2. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa a partir de Pêcheux (2010 [1969], p. 82).
“Então, eles entraram. Dois homens chegaram, eles não deram ordem
de prisão para o meu pai [...] Eles estavam à paisana”. SD-6.
Além disso, a não nomeação deste outro, que é recuperado pela memória
discursiva, apresenta-nos o indício de que o sujeito que se inscreve no testemunho
tem um comportamento singular uma vez que, ao discursivizar a memória da
Ditadura, busca romper com o discurso [a memória institucional] já estabilizado pelos
militares enquanto representantes de um Aparelho Repressivo e Ideológico do
Estado, justamente porque, diante da tortura que produz o trauma, há um
recalcamento deste outro. Voltaremos a tratar desta questão quando analisarmos os
efeitos da (não) denominação em relação ao “OUTRO”.
Vamos tomar a SD-6 ainda como referência para pontuar um aspecto verbal
relevante para a construção discursiva do testemunho. Nesse sentido, o verbo
flexionado no pretérito imperfeito do indicativo – “[...] Eles estavam à paisana. Não
estavam vestidos de farda. E a gente achou esquisito a forma como aqueles
homens estavam sendo conduzidos algemados” – lança o sujeito do discurso que
se inscreve no testemunho em um evento do passado que não foi concluído. O
efeito de sentido que o imperfeito produz é justamente o de paralisar temporalmente
o sujeito dentro de uma experiência-limite que não tem fim. Neste caso, o sujeito que
se lembra narra quadro a quadro o momento vivido como algo que é contínuo, ou
seja, que está em curso, inacabado. Assim, a questão temporal determina, em
nossa leitura, a lembrança de um sujeito que, de certa maneira, se perdeu. Em toda
a narrativa memorial, observamos que há uma constante nuance entre o passado e
o presente que se materializa no eixo da formulação e, neste caso, a flexão verbal
se configura como uma pista contundente que aponta para um jogo de memória que
se inscreve entre o passado e o presente do “EU”, ou seja, no testemunho o
passado se instaura como causa daquilo que o sujeito é no presente.
As SD‟s a seguir são tomadas como referência para pensarmos sobre o dever
de memória no testemunho. Conforme temos defendido ao longo do trabalho, tal
empreendimento lança o sujeito no jogo de contradição entre a necessidade de
esquecer e a obrigação moral de não esquecer. Vejamos:
TESTEMUNHA-743
SD-7: “Somos também sobreviventes da repressão. Perdura em nós a
memória e estamos eticamente obrigados a defendê-la, a nos
reencontrar com ela, ainda que seja doloroso. Tive a possibilidade de
sobreviver. Levo comigo a obrigação de não esquecer” (BRASIL, 2014, p.
220, grifos nossos).
TESTEMUNHA-844
SD-8: “Eu quero esquecer. Mas eu te pergunto: qual é o profissional, na
psicologia, que vai apagar essas marcas? Não tem. Não tem [...] Olha,
43
Fala de Universindo Rodriguez Díaz, historiador e sobrevivente do sequestro em Porto Alegre
pela Operação Condor, aliança política criada entre os regimes ditatoriais do Brasil, Argentina, Chile,
Paraguai e Uruguai.
44
Testemunho de Cristina Moraes Almeida, presa pela primeira vez aos 19 anos, em 1969. Durante
as sessões de tortura, sofreu mutilações na região do tórax e nos seios e teve a perna estraçalhada
por uma furadeira (BRASIL, 2014, p. 424).
158
TESTEMUNHA-945
SD-9: “Nao teve um dia que eu não me lembrasse do período em que
eu estive presa, não da tortura propriamente, mas de detalhes, de
acontecimentos. [...] Eu acho que a sequela maior é o medo de que
aconteça algo. E não é porque tem filhos e netos. É por você mesmo [...]
Acho que esse é o maior” (BRASIL, 2014, p. 424, grifos nossos).
TESTEMUNHA-1046
SD-10: “Ao longo dos meus dez anos de exílio, um sonho
acompanhou-me de tempos em tempos, intermitente. Repetia-se
sempre igual, com pequenas variantes. [...] Mais terrível que o
pesadelo era o levantar-se com ele, na dúvida, naquelas frações de
segundo entreabertas entre a noite e o amanhecer, sem saber se fora
apenas sonho mesmo ou despertar de uma realidade cloroformizada pela
vida [...]” (BRASIL, 2014, p. 425, grifos nossos).
TESTEMUNHA-1147
SD-11: “Ontem eu custei um pouco pra reconhecer o prédio. Foi
necessário que a gente localizasse uma coluna, que está meio
disfarçada, no meio de paredes. Só que quando nós achamos essa
coluna, que ficava junto às salas de tortura, eu reconheci o prédio.
Junto a essa coluna ficava um banco encostado. Como eram duas as
salas de tortura, e nós éramos três, eles colocavam um em cada sala, pra
tomar sessões de choque; uma das salas tinha o pau de arara, pra
pendurar no pau de arara, e o outro ficava sentado, era bem do lado,
quem sentasse nessa cadeira ouvia os que estavam sendo torturados.
Era uma maneira que eles utilizavam para que aquele que estivesse
esperando se autotorturasse [...]. No momento em que eu fui colocado
nesse banco, sempre algemado para trás, pensei: „Como é que eu posso
me livrar dessa situação? Como é que eu posso amenizar isso?‟. Então
encostei nessa coluna e disse: „Bom, é sua obrigação revolucionária,
obrigação moral de dormir‟. Aí eu dormi. [...] Porque, enquanto eu dormia,
podia sonhar [...]” (BRASIL, 2014, p. 278, grifos nossos).
45
Depoimento de Robêni Batista da Costa, presa em três ocasiões distintas, entre 1968 e 1973,
também não consegue esquecer.
46
Depoimento do jornalista Flávio Tavares, preso, torturado e banido do país, foi assombrado
durante uma década por um pesadelo recorrente.
47
Antonio Roberto Espinosa, depoimento a CNV, em 24 de janeiro de 2014. Arquivo CNV:
00092.000570/2014-21.
159
48
Genealogia da moral: uma polêmica.
49
É isto um homem?
160
Assim sendo, ainda que marcado pela dor e pelo sofrimento, o desejo é de
reencontro com uma memória, e não de esquecimento como ocorre – de certa
maneira – em Primo Levi e Nietzsche. Conforme temos defendido neste trabalho, a
luta, aí empreendida, é contra uma forma de esquecimento que é engendrada por
fatores políticos e ideológicos, contrapondo-se, dessa maneira, a um esquecimento
que consideramos como constitutivo na configuração de uma rede de memórias e
162
como uma condição necessária para que qualquer dizer seja possível. Além de levar
consigo a obrigação ética de “não esquecer”, o sujeito aí configurado sabe que
sozinho é incapaz de defender essa memória e, por isso, propõe uma convocação
de todos para que também não esqueçam, mesmo aqueles que, por alguma razão,
não participaram daquele acontecimento: a memória social os recruta para defendê-
la frente ao agenciamento do esquecimento. Dessa forma, a mudança na forma de
discursivizar a pessoa aponta o indício de que o testemunho instaura, neste caso,
uma memória (um sujeito) que se compromete com a responsabilidade ética do
lembrar, um sujeito que é movido pelo dever (posição-sujeito da obrigação).
que estamos considerando como uma forma de resistência 1); por outro lado, este
mesmo sujeito demonstra o desejo e a necessidade do esquecimento para que a
vida possa ser retomada sem que a dor de um passado de violência seja
reatualizada (causa daquilo que estamos considerando como uma forma de
resistência 2). Assim, ao mesmo tempo em que há a denúncia, há também o desejo
de esquecimento. Portanto, dependendo das condições de produção, defendemos
que o ato de lembrar e a necessidade de esquecer podem se caracterizar como
formas de resistência no testemunho.
SUJEITO
PASSADO PRESENTE
166
50
Marcel Proust: À la recherche du temps perdu (Em busca do tempo perdido, 1987 [1913-1927]).
167
involuntária é tecida pela felicidade; na memória aqui concebida, por sua vez, a
lembrança é involuntária em virtude do trauma, da violência. Assim, estamos diante
de memórias em ruínas, de fragmentos, lembranças quebradas, rastros, vestígios e
lacunas que constroem o evento do passado por meio do gesto de testemunhar.
ponto que o testemunho se configura, em nossa leitura, como o rastro forte de uma
memória que ainda reverbera em nós, apesar de existir, em contrapartida, um forte
trabalho político para o silenciamento da memória através da destruição de arquivos
e monumentos. Pois bem, a voz do testemunho acima fornece uma pista
contundente para entendermos o efeito do esquecimento através do apagamento de
rastros. O efeito de tal apagamento – que objetiva emudecer o sujeito e produzir um
esquecimento sobre a memória da tortura e da violência –, aponta-nos para a
seguinte implicação de sentido: o não reconhecimento – logo a não
responsabilização – das práticas e dos lugares onde ocorriam os crimes contra as
pessoas que eram contrárias ao modus operandi da Ditadura Militar.
Além disso, reforçamos que os testemunhos acima recuperam uma voz que
se inscreve numa posição de denúncia que instaura efeitos de sentido que
desestabilizam a memória da Ditadura à medida que o sujeito afirma que é/foi vítima
de uma tripla forma de violência: a primeira configura-se pela tortura física, simbólica
e psicológica que sofreu na própria pele por parte de seus algozes; a segunda
violência assume a forma do esquecimento, ou seja, pela consciência de que a
tortura que ocorreu nos porões da Ditadura Militar é alvo constante do esquecimento
político-ideológico no âmbito da sociedade, seja por parte dos agressores, seja por
parte de setores da sociedade que ainda defendem a postura dos militares a partir
de 1964; a terceira violência é fruto da Lei de Anistia (1979) que se erige como um
instrumento político-jurídico institucional que protege – através do simulacro de
perdão – os agentes públicos envolvidos com a violação dos Direitos Humanos
naquele período histórico, contribuindo, dessa maneira, para o desenvolvimento de
uma política de esquecimento da memória (INDURSKY, 2015).
51
Estamos considerando aqui a denominação, a partir de Mariani, “enquanto um modo de
construção discursiva dos „referentes‟, que tem como característica a capacidade de condensar em
um substantivo, ou em um conjunto parafrástico de sintagmas nominais e expressões, „os pontos de
estabilização dos processos‟ resultantes das relações de força entre formações discursivas em
concorrência num mesmo campo” (MARIANI, 1996, p. 120).
170
TESTEMUNHA MILITAR52:
SD-12A: “Comissão Nacional da Verdade: Por que os agentes do Estado
usavam codinomes?
Pedro Ivo Moézia de Lima: Ah, isso nós aprendemos com os terroristas.
Comissão Nacional da Verdade: Se o senhor puder me explicar...
Pedro Ivo Moézia de Lima: Então, é por isso.
Comissão Nacional da Verdade: Mas por quê?
Pedro Ivo Moézia de Lima: Para ninguém saber quem eu sou. O meu
nome verdadeiro eu escondo, não digo para ninguém. Ninguém. Nós
aprendemos... [...]. Eles usavam codinomes, o codinome era para evitar
que fossem identificados [...]” (BRASIL, 2014, p. 145, grifos nossos).
SD-12B: “[...] Quando fui transferido para São Paulo no início dos anos
70, os terroristas já haviam assaltado mais de 300 bancos e carros
fortes [...] Estávamos lutando pela democracia e estávamos lutando
contra o comunismo [...] Ela (Dilma Rousseff) integrou quatro grupos
terroristas que teriam como objetivo final a implantação de uma
ditadura do proletariado, o comunismo” (BRASIL, 2014, p. 780).
TESTEMUNHA-1353
SD-13: “Deixar meus filhos na mão daqueles animais, daqueles bichos.
Ah, nem bicho faz aquilo. Aquilo são uns monstros. Jogaram meus filhos
naquele Juizado de Menor. [...] As próprias empregadas, que cuidavam lá
daquele Juizado de Menor, falavam que meus filhos eram filhos de
terrorista [...] Esse daqui [Adilson] foi levado não sei quantas vezes pela
polícia, surravam ele, socavam meu filho, com nove anos. A polícia! A
polícia de Atibaia surrava meu filho [...]” (BRASIL, 2014, p. 410, grifos
nossos).
52
Depoimento do coronel reformado Pedro Ivo Moézia e do coronel reformado Carlos Alberto
Brilhante Ustra. Disponíveis, respectivamente, em: https://www.youtube.com/watch?v=APK43QRtn8A
& https://www.youtube.com/watch?v=pWsv4EndpfY
53
Testemunho de Damaris Lucena. Em 1970, após o assassinato de seu marido e sua prisão pela
Oban, Damaris Lucena viu seus filhos Adilson, Denise e Ângela Telma ficarem sob a guarda do
Estado.
171
“[...] Ah, isso nós aprendemos com os terroristas [...] Eles usavam codinomes
[...]”
Comunistas Comunistas
“[...] Os terroristas já haviam assaltado mais de 300 bancos [...]”
Comunistas
“[...] Ela integrou quatro grupos terroristas [...]”
172
Comunistas
Esquema 6. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.
É esta reflexão que mobiliza outra questão que lançamos na tese: como o
testemunho tensiona, através da memória, o jogo de projeções imaginárias? Nesse
jogo político-ideológico com a memória, todos aqueles que se diziam contrários aos
militares eram deslocados para a posição de “comunista” [“OUTRO”] – significado
enquanto “terrorista” – logo pertencentes ao mesmo domínio de memória de uma
suposta FD comunista. Com isso, impõe-se que os sentidos sigam uma rota
ideológica “X” através do discurso sobre54 o “ser comunista” e, através da
54
Para Mariani os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem sobre um discurso
de („discurso origem‟), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral,
174
[...] “outro” que é projeção, do sujeito, daquilo que, nele, causa seu
mal-estar. Este outro, também se produz como metáfora (uma coisa
por outra), e, neste sentido, vem [...] carregado de historicidade.
Historicidade aqui compreendida como parte do processo de deriva
(deslizamento, efeito metafórico) que é parte da relação com a
alteridade. Ao se constituir, pela metáfora, o sujeito cindido
exterioriza o estranho em si pela transferência que coloca, neste
outro, o que o divide, o que ele odeia (ORLANDI, 2017, p. 100).
“O codinome era para evitar que [Ø] fossem identificados como militares”.
Esquema 8. Fonte: Elaboração do autor da pesquisa.
55
Esse sentido ainda permanece tão cristalizado no âmbito da memória social que a Comissão de
Anistia, do então governo, denominou os “requerentes de pedidos de indenização de terroristas”.
Ver em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2019/08/10/anistiando-terrorista-e-decisao-
com-base-em-infancia-militar-as-decisoes.htm
178
Além disso, este recorte nos possibilita compreender que a CNV também deu
voz a outra versão da história através do testemunho de alguns militares, ou seja,
não ouviu apenas vítimas da Ditadura Militar, mas também alguns dos agentes
estatais que estavam no comando das ações de violação dos Direitos Humanos no
âmbito dos quartéis. Por isso, fizemos questão de trazer o testemunho da SD13-A/B
– em que “ELES” falam e não são falados por – para, de certa forma, fazer uma
contraposição em relação aos demais. Esse é um fato importante porque ele nos
ajuda a entender o segundo funcionamento daquilo que estamos considerando aqui
como um fenômeno de subjetivação entre o “EU” e o “NÓS”, ou seja, que produz
dois movimentos de identificação que podem caracterizar um sujeito: a
179
56
Orlandi (2012a & 2017).
180
escapa inevitavelmente à língua (a alíngua), ou seja, de que o todo nunca pode ser
capturado, pois há algo que sempre escapa à representação simbólica. É a partir
desta reflexão que – no quadro teórico da AD – Gadet & Pêcheux (2004 [1981])
estabelecem uma dupla-forma do Real: o da língua, através da hiância, do equívoco,
da falta estruturante, aquilo em que a língua tropeça, o lapso; e o da história, que
implica reconhecer que a contradição também atravessa constitutivamente o sujeito,
a ideologia, o discurso, o sentido.
TESTEMUNHA-1457
SD-14: “[...] Ele chegou. Nós, todo mundo chorando, ele ficou muito...
Mas ele não contava para nós [...] quando ele chegou a gente percebeu
que ele vinha mancando de uma perna. E a gente perguntava para ele:
„Papai, te machucaram?‟ „Não, não, não.‟ „O que foi que houve?‟ [...] Daí,
então, eu não fiquei sendo a mesma pessoa como nenhum dos nossos
irmãos ficaram sendo a mesma pessoa. Porque a gente tinha que viver
com aquela história bem ali. Sem ter com quem dividir. Sem ter a quem
pedir apoio, sem ter com quem desabafar. Ao longo da nossa vida, a
gente olhava para ele e a gente via aquela cena. Parecia que
estávamos revivendo [...] A gente imagina o que ele sofreu. E a gente
não esquece. [...]. E nós fomos prisioneiros dessa história de saber e não
poder contar para ninguém” (BRASIL, 2014, p. 381-383, grifos nossos).
TESTEMUNHA-1558
57
Segunda parte do depoimento de Maria de Jesus Sousa Santos, que, em 22 de outubro de 2013,
contou como foi o padecimento da família de Antônio Alves Rodrigues − preso sem ser militante,
apenas porque era amigo íntimo de Epaminondas Gomes de Oliveira.
58
Em depoimento a CNV, Maria Aparecida Costa relata torturas que sofreu na Oban, entre
dezembro de 1969 e janeiro de 1970. Arquivo CNV, 00092.002323/2013-89.
186
TESTEMUNHA-1659
SD-16: “Torturas terríveis mesmo, principalmente o choque elétrico, que é
a pior coisa que existe. Tudo era mais suportável, mas o choque
elétrico... E vou falar uma coisa que me ocorreu muitos anos depois, que
é o sadismo dos torturadores. [...] eles pegavam as partes mais
sensíveis do corpo, que são as partes mais erógenas, mais sensíveis às
relações amorosas, mais nervosas. Que são o pênis, os lábios, as partes
mais sensíveis. É uma tragédia [...] são também as partes que os
algozes, os torturadores...” (BRASIL. 2014, p. 403, grifos nossos).
TESTEMUNHA-1760
SD-17: “[...] pensa bem, você está dentro de um banheiro e você ouve os
gritos de horror, porque os gritos de tortura nao são gritos... [...]”
(BRASIL. 2014, p. 419, grifos nossos).
TESTEMUNHA-1861
SD-18: “Eu comecei a pensar nos meus alunos, eu sabia que eu tinha
muitos alunos envolvidos em movimentos socialistas, sindicalistas. [...]
tudo isso na minha cabeça foi dando um pânico tão grande, um medo de
falar um nome de um aluno, o medo foi tão grande, foi uma coisa
assim.... tão inumana, que eu tenho a impressão que com aquele pavor,
aquela coisa toda, que eu só pensava nos alunos, que eles iam me
torturar, e que eu não ia falar o nome de um aluno, eu não podia falar um
nome, eu não queria falar um nome, eu não ia falar um nome, essa coisa
foi tão apavorante [...]” (BRASIL, 2014, 413, grifos nossos).
porque possibilita que algo aqui fique de fora do campo do simbólico, seja
irrepresentável porque há aí a falta do significante), que impede o sujeito de acessar
o simbólico. Logo, estamos diante de algo que não pode ser simbolizado diante de
um trauma, da tortura que produz uma quebra na lembrança e lança o sujeito no
espaço Ø enquanto representação de uma ausência. A testemunha aqui se coloca,
pois, diante de uma dificuldade paradoxal: ela narra justamente o inenarrável, aquilo
que escapa a toda forma de representação e constitui-se dos restos, das sobras,
daquilo que é recalcado do registro do simbólico e do imaginário, da hiância
estrutural que afeta a instância do simbólico e do imaginário.
As SD‟s a seguir, por sua vez, confirmam este encontro do sujeito com o
impossível e denunciam a herança da tortura:
TESTEMUNHA-1962
SD-19: “Depois que eu saí, eu fiquei fechada, encerrada. Não queria
saber de nada e nem de ninguém [...] Eu tinha perdido a linguagem
verbal. Fiquei fechada, fechada. Minha vida foi ali um ponto – parágrafo,
até eu ver como eu iria começar minha vida, eu não sabia mais [...].
Acabam com a sua vida e aí você tem que ver como é que você vai
refazer o seu eu, para você ver que vida você quer ter, para onde você
vai. Então, a primeira coisa foi que acabou tudo até recomeçar outra vez,
mas nunca mais do [mesmo] jeito. A violência acaba com o ser
62
O trauma representa uma forma de sofrimento continuado que, no limite, leva ao emudecimento.
Depoimento de Roseli Lacreta, presa e submetida a tortura em instalações da Aeronáutica, no Rio
de Janeiro, em 1971.
191
TESTEMUNHA-2063
SD-20: “[...] eu fiquei com muito trauma, por muito tempo, muito, muito,
muito tempo. Eu não consigo lembrar... Outra coisa é o pavor que eu
tinha das pessoas, pavor de pessoa de farda, tinha medo de pessoas
fardadas, tinha pavor. E eu tinha fobia social, não conseguia ficar junto
com as pessoas” (BRASIL, 2014, p. 428, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2164
SD-21: “Você não esquece. Essa condição que te limita nas relações
com as pessoas, porque você tem um constante medo de perder, medo
de ser traída, medo de trair. É uma constante isso. São sensações
horríveis que você vive com elas, não perde, não tem jeito [...] É uma
coisa quase que impossível. [...] Eu fui filha [...] de dois perseguidos [...]
Então viver a fragilidade do núcleo familiar, a fragilidade e a
precariedade desse núcleo familiar que pode ser desfeito a qualquer
momento, então ele não tem uma base sólida e profunda. Você não
consegue construir isso. A outra coisa é que você transmite depois
para os próprios filhos. Eu transmiti para minha filha,
involuntariamente, uma mesma condição de precariedade [...] Eu
repeti com minha filha exatamente aquilo que aconteceu comigo”
(BRASIL, 2014, p. 428, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2265
SD-22: “Os dois filhos são sequelados [...]. A Kátia acha que eu não
devia ter tido filhos [...]. Eu nunca conversei com eles sobre isso [...]
Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de tudo, né? Sente tudo,
né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? [...] Ela esteve
internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso
dizer que umas 15 vezes ela tentou o suicídio. E sempre na minha frente”
(BRASIL. 2014, p. 429, grifos nossos).
63
Depoimento de Ernesto Carlos Dias do Nascimento. Ele relatou o impacto de ter sido preso com
a mãe, Jovelina, e levado para a Oban, onde já estava seu pai. O menino tinha apenas um ano e três
meses e foi uma das quatro crianças banidas com outros 40 presos políticos enviados para a Argélia,
em junho de 1970.
64
Depoimento de Denise Peres Crispim. Ela estava grávida de seis meses quando foi levada presa,
em 23 de julho de 1970, para a Oban, em São Paulo.
65
Depoimento de Eva Teresa Skazufka, capturada em junho de 1970 pela Oban, em São Paulo.
Durante um mês, Eva e seu filho Fernando, de um ano, eram obrigados a comparecer ao DOPS.
Com apenas 30 dias de vida, sua filha Kátia também acompanhava a família.
192
instaura justamente pelo/no silêncio como sintoma do trauma: (“Eu tinha perdido a
linguagem verbal”). Ora, perder a linguagem verbal implica, neste caso, a
impossibilidade de tomar a palavra, a enunciação e, consequentemente, proíbe-se
que o sujeito possa acessar o espaço do simbólico, logo impede-se que ele (o
sujeito) possa significar[-se] através da linguagem. O silêncio aí instaurado configura
mais uma marca/efeito da violência sobre o sujeito. Pois bem, o testemunho nos
lança novamente na reflexão em torno do simbólico e do Real. Neste caso,
comungamos com Mariani quando defende que os testemunhos:
Figura 10 – Nó borromeano
Estamos, assim, no espaço do inatingível que não pode ser acessado e nem
verbalizado. Portanto, o testemunho se instaura aqui como espaço de possibilidade
de inscrição do simbólico em meio ao impossível que se dá através da falta e é
exatamente essa incompletude, esse não-todo que luta por simbolizar aquilo que,
194
tortura, ou seja, que foi diretamente afetada pela violência e a repressão da Ditadura
Militar no Brasil.
Na SD-22, Eva testemunha que a tortura que sofreu, nos porões da Ditadura
Militar, provocou sequelas em seus dois filhos: (“Os dois filhos são sequelados
[...] Eu nunca conversei com eles sobre isso [...] o bebê sabe de tudo, né?
Sente tudo, né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? Ela esteve
internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê? Porque eu posso dizer
que umas 15 vezes ela tentou o suicídio. E sempre na minha frente [...]”). Aqui,
as sequelas são entendidas como marcas (rastros) que impedem o trabalho do
esquecimento sobre a lembrança da tortura e que instaura, por assim dizer, um
esquecimento inatingível. Além disso, ao afirmar que (“Os dois filhos são
sequelados [...]”), o testemunho produz um efeito de sentido que joga com a
responsabilização daquele que provocou as sequelas através da tortura e, além
disso, confirma que a experiência com a violência no passado continua produzindo
efeitos devastadores no presente do sujeito que se lembra daquele acontecimento.
198
pode ser publicizada, tornada pública. E mais que isso: quando o sujeito se lembra
daquilo que aconteceu no passado da Ditadura Militar, ele se lembra de sua própria
presença naquele acontecimento histórico, de sua condição que foi anulada na
sessão de tortura e que se confunde com a memória dos judeus e de tantas outras
minorias que sobreviveram aos campos da morte e que voltaram, de certa maneira,
à vida.
Cabe aqui, ainda, observar os efeitos de sentido diante da presença da
interrogação na SD-22: (“[...] Hoje se sabe muito bem que [...] o bebê sabe de
tudo, né? Sente tudo, né? Pode não saber, mas as sensações estão lá, né? [...]
Ela esteve internada várias vezes, a Kátia, em clínica. Por quê?”).
Diante disso, Eva representa, assim como as outras vozes aqui presentes, um
símbolo de resistência, um monumento à esperança, à memória, à justiça e à
verdade. Por esta razão, estamos diante de uma voz que incomodava (e que
incomoda ainda hoje para nos lembrar de não esquecer) por ser contrária à proposta
dos militares e, por esta razão, foi submetida à clandestinidade. Portanto, o
testemunho representa – assim como todas as outras vozes silenciadas durante a
200
Ditadura Militar e que aqui não conseguimos recuperar – um sujeito sobre o qual não
se produziu memória, ou melhor, sobre o qual se construiu uma memória outra
através das políticas de esquecimento e de manipulação da memória.
TESTEMUNHA-2366
SD-23: “Toda nossa tortura era feita [com] as mulheres nuas [...] levando
choques pelo corpo todo. Inclusive na vagina, no ânus, nos mamilos, nos
ouvidos. E os meus filhos me viram dessa forma. Eu urinada, com fezes.
Enfim, o meu filho chegou para mim e disse: „Mãe, por que você ficou azul
e o pai ficou verde?‟. O pai estava saindo do estado de coma e eu
estava azul de tanto... Aí que eu me dei conta: de tantos hematomas no
corpo” (BRASIL, 2014, p. 410, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2467
SD-24: “Estava grávida, já entrando no quinto mês de gravidez. Só que as
minhas funções físicas nao faziam perceber e a minha infanti...,
ingenui..., imaturidade para a situação também não. Eu fui torturada
grávida. [...] Essa situação, eu só consegui elaborar agora. Essa é a
primeira vez que eu estou contando, abrindo, colocando isso” (BRASIL,
2014, p. 412, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2568
SD-25: “Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante
é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a
mulher é vadia, a palavra mesmo era „puta‟, „menina decente, olha para a
66
Maria Amélia de Almeida Teles teve os filhos raptados depois de ser presa com o marido, César,
em dezembro de 1972.
67
Testemunho de Márcia Bassetto Paes, presa cerca de 4 meses, no DOPS/SP, também perdeu o
bebe que esperava.
68
Izabel Fávero, depoimento à CNV, em 27 de abril de 2013. Arquivo CNV, 00092.000088/2014-91.
201
sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação
os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta‟, enfim, eu não me
lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto
[...] eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza
que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque
eles tinham nojo de mim [...] eu lembro que eu tinha muita, muita, muita
dor no pescoço, quando a gente sofre choque, a gente joga a cabeça pra
trás, aí tinha um momento que eu não sabia mais onde doía, mas enfim”
(BRASIL, 2014, p. 400, grifos nossos).
TESTEMUNHA-2669
SD-26: “„Por que uma moça está fazendo isso?‟ E é uma forma, talvez,
muito de querer te desqualificar de todas as maneiras. Inclusive, o mínimo
que você ouve é que você é uma „vaca‟. São as boas-vindas [...] E isso foi
crescendo e eu acho que você se sente exposto e você é exposto, você
enfim, se encontra diante deles de uma dupla maneira: você está
inteiramente nas mãos enquanto ser humano e na tua condição feminina
você está nu, você está à mercê, não é? Disso tudo. [...] Como os
homens também foram, mas talvez, por ser uma mulher, eu acho que isso
tem um peso terrível. Pela tua formação, pela formação social, ideológica”
(BRASIL, 2014, p. 404, grifos nossos).
69
Em depoimento a CNV, Maria Aparecida Costa relata torturas que sofreu na Oban, entre
dezembro de 1969 e janeiro de 1970. Arquivo CNV, 00092.002323/2013-89.
70
Concordamos com Zoppi-Fontana quando propõe, também a partir de Pêcheux (2012a [1983]), que
“o acontecimento discursivo produz efeito de retorno (de deslocamento e desregularização) não só
sobre a memória discursiva e as materialidades discursivas que a configuram, mas também sobre os
próprios processos históricos e sociais dos quais o discurso participa como prática, agindo
eficazmente na reprodução/transformação das relações sociais” (ZOPPI-FONTANA, 2002, p. 182,
grifos nossos).
202
discursivo em torno da tortura, que, por sua vez, produz imagens distintas daquelas
sustentadas pela memória institucional do Regime Militar no Brasil.
atualização de uma memória, ou seja, institui-se aí uma nova ordem do dizer ou, por
assim dizer, uma nova ordem do discurso que dá condições para que
saberes/dizeres outros sobre a violência que ocorria nos porões da Ditadura fiquem
à deriva e somente nas condições de produção de agora podem significar de outra
maneira. Com isso, instaura-se um novo regime de discursividades e,
consequentemente, uma nova rede de saberes sobre as ações dos militares, bem
como se estabelece uma nova maneira de produção da memória a partir de um
saber já-dito (um percurso que já se inscreveu discursivamente antes e em outro
lugar) sobre a Ditadura que se choca com o presente através da atualização, em
certa medida, desta memória.
ser insuportável e inimaginável. Daí o efeito de multiplicar os efeitos da dor por três.
Além disso, o testemunho faz trabalhar, de certa forma, uma espécie de
esquecimento porque é impossível recuperar plenamente uma memória: (“[...] eu
não me lembro bem se no terceiro [...]”). Com esse gesto, a voz do sujeito que aí
enuncia marca uma falta, ou melhor, produz o dizer de uma falta que se inscreve na
ordem da memória, e deixa transparecer a sua forma lacunar, ou seja, por mais que
ele tente se lembrar dos eventos da tortura, há algo que escapa à rememoração e
que, por conseguinte, permanece no silêncio da memória, na impossibilidade de
dizer e de esquecer.
produção, ou seja, “ser vadia” pode metaforizar sentido para “liberdade”, para “ser
livre”, para “ser o que eu quiser”, o que apontaria para uma FD “feminista” que se
inscreve – entre outros lugares – na bandeira da “Marcha das Vadias” que luta pelo
empoderamento feminino e protesta contra a violência sexual, o machismo, a
misoginia, o feminicídio e a desigualdade social entre homens e mulheres na
sociedade, por exemplo. Com esse gesto, há um deslocamento do termo “vadia” de
um cenário negativo para um cenário positivo, logo de resistência e reinvindicação à
medida que a emancipação da mulher começa a partir do momento em que a
sociedade passa a vê-la para além do papel sagrado preestabelecido e que a
coloca, exclusivamente, na posição de mãe, esposa, guardiã do lar e educadora dos
filhos.
Efeito do “Karma”
Desaparecimen
to
Forçado
Silenciament
Tortura
o
Por tudo isso, nós não esqueceremos jamais. Esta dor é nossa e, por mais
que tentemos, ela não pode ser mensurada. O fato é que o Regime Militar também
deixou marcas profundas na “tábua de cera” e o sofrimento daquele acontecimento
segue produzindo metástase na sociedade através do reflexo dos rostos, das vidas
que estão à deriva, dos rastros e dos restos de um passado-presente que
representa e (des)territorializa os efeitos de sentido que se inscrevem no
testemunho sobre aquela memória.
211
Pois bem, realizar um trabalho desta natureza não foi uma tarefa fácil. Logo, o
caminho palmilhado para chegar até aqui foi, no mínimo, desafiador: pela forma
como fui tocado por cada testemunho aqui apresentado, por tantas outras vozes
silenciadas que não puderam ser recuperadas pela CNV (e muito menos aqui) e,
sobretudo, por perceber que ainda persiste na sociedade, da pior maneira possível,
uma memória manipulada sobre a Ditadura Militar. E mais que isso, foi difícil porque
pude compreender – num período que se diz democrático – que os Direitos
Humanos ainda continuam a ser violados, que as pessoas ainda continuam a
padecer nas mãos do próprio Estado; que lutar por espaços de voz voltou a ser
discursivizado como “terrorismo”, “subversão” e “balbúrdia”; que os ativistas dos
Direitos Humanos voltaram a ser presos – Lula –, exilados – Debora Diniz, Jean
Wyllys, Márcia Tiburi – e assassinados – Marielle Franco –; que o Regime Militar,
os torturadores (discursivizados como “heróis nacionais”) e o AI-5 voltaram a ser
exaltados na ordem do dia. Por tudo isso, este trabalho só poderia encontrar, de
certa forma, um lugar de interpelação e identificação: a resistência.
Portanto, para mim, o mais importante, além de ter chegado até aqui, foi não
desistir, continuar a lutar, seguir acreditando que tudo isso ainda pode mudar,
mesmo diante das adversidades. É por ter esperança, pois é com e por ela que luto
quando tudo parece estar perdido. Eis aí a razão de ser desta tese. Assim, agarro-
me aqui a esperança e ao desejo de que estas páginas possam fazer barulho e
chegar, de alguma maneira, até àqueles que, hoje ou amanhã, pedem nas ruas uma
intervenção militar, seja por desconhecimento da história, seja por acreditarem numa
memória que aí se saturou, seja por força política no jogo das relações de poder na
sociedade, seja pelo capricho de uma ideologia dominante, seja por tudo isso junto e
misturado.
Enfim, para dar consequência ao ritual acadêmico – mesmo sabendo que ele
também pode ser atravessado pela falha e pela incompletude – gostaria de retomar
e insistir nas questões que pontuei na introdução do trabalho:
desejo e da ilusão referencial que o interpela pela força de uma ideologia (uma FD)
dominante.
Aparelho Repressivo Militar que produziu (e produz) efeitos de sentido outros sob o
simulacro de verdade. Chegar a essa compreensão só foi possível porque
enfrentamos, no percurso do terceiro capítulo da tese, à reflexão proposta sobre a
memória na esteira da história, da filosofia, da sociologia, da antropologia e as
ressonâncias que estes campos do saber produzem no âmbito da AD. Daí por que
não consideramos, aqui, a memória psicológica, mas aquela que é constituída e
pensada – discursivamente, historicamente e socialmente – como exterior ao sujeito,
que reverbera antes, alhures e independentemente de qualquer cogitação. A
memória que se caracteriza por um movimento pendular que reenvia o saber tanto
ao passado quanto ao presente. Portanto, dissemos que é a memória que
estabelece as disputas políticas pelo poder (e de abuso do poder) na sociedade, que
produz os lugares de (des)identificação dos sujeitos com determinados saberes e os
mecanismos de interpelação, assujeitamento, silenciamento e resistência. É
justamente este funcionamento do político na/da memória que determina aquilo que
deve ser lembrado e aquilo que deve ser esquecido na sociedade.
ideológico com a memória – o “OUTRO” numa posição que ele não merece estar.
Por esta razão, o não dizer o “OUTRO” perpassa um dizer (outro) sobre ele. Com
isso, produz-se imaginariamente e ideologicamente uma violência para e sobre o
“OUTRO”, a fim de dar sustentação, legitimidade e legalidade às ações arbitrárias
praticadas por “ELES”, estabelecendo, com isso, estratégias e condições para
assegurar a continuidade do Regime Militar no Brasil.
Pois bem, é por isso que nos juntamos na defesa desse dizer outro sobre a
truculência da Ditadura Militar e, dessa forma, sustentamos que não se pode mais
negligenciar esta história e, sobretudo, não podemos mais dar as costas para este
passado. Concordando com a CNV (BRASIL, 2014), não podemos negar às
gerações futuras o conhecimento da verdade histórica, mesmo diante dos limites de
qualquer reflexão e investigação. Por isso, chamamos a atenção para o fato de que
este esforço, por conseguinte, propõe que se fortaleça, no país, a construção ou a
consolidação de uma política da não repetição e, para isso, a história e a memória
da Ditadura Militar precisam ser, na medida do possível, (re)conhecidas e
compartilhadas por todos. Não podemos mais ludibriar esta memória. Preservar esta
memória – a memória subterrânea que a história dita oficial não conta – frente à
217
Estado brasileiro através das Forças Armadas. O texto deixa explícito que o
Presidente Geisel delibera com a maior naturalidade sobre as ações de execução
dos opositores ao Regime Militar, inclusive se daria continuidade às ações
empreendidas por seu antecessor – o General Médici –, ou se aperfeiçoaria as
táticas de tortura e execução do ex-presidente que já eram, diga-se de passagem,
de uma crueldade terrível.
Portanto, a tese sustentada, por muitos militares, de que a tortura não ocorria
nos porões da Ditadura caiu por terra de vez, principalmente porque a cadeia de
comando partia do próprio Presidente da República, num verdadeiro “efeito dominó”.
Para garantir a concentração do poder nas mãos dos militares, de acordo com o
documento, Geisel escolheu o seu sucessor, o General João Figueiredo,
estabelecendo os mecanismos para garantir a permanência do Regime Ditatorial no
Brasil.
Deseja-se, assim, que a Lei de Anistia volte à pauta da Corte após as novas
revelações sobre o passado da Ditadura Militar para que se possa rever o perdão
concedido aos militares e a outros agentes do Estado que praticaram tortura ou
outros crimes comuns contra a humanidade naquele fatídico movimento. O Relatório
Final da CNV, por sua vez, ficará como legado de nossa história; uma triste história,
e como monumento à memória das vítimas, a fim de que nunca possam ser
esquecidas, e aquele evento nunca mais se repita. Hoje, a memória eterniza os
homens e mulheres que saem do anonimato como exemplos de uma tomada de
consciência, de posição-sujeito de resistência e símbolos da luta de um segmento
social que não aceitou o cárcere e lutou em nome do ideal de liberdade, justiça e
igualdade. São memórias de um passado marcado pela dor de uma violência física e
simbólica que impregnou a nossa história e, mesmo que muitos insistam em
esquecê-la, silenciá-la ou apagá-la, ela permanecerá sempre lá, indelével, latente,
reclamando sentidos e denunciando um passado de repressão que se camufla até
hoje e ainda sangra na memória social de nossa nação.
Finalmente, já que o discurso não é nunca uma rua de mão única, de sentido
único, que este trabalho possa, de alguma forma, produzir rasura naquela memória
e se juntar, na medida do possível, a outras formas de resistir e de (res)significar
aquela memória no social, produzindo, assim, outros espaços de memória. E que o
exercício de memória, o não esquecer, torne-se também a memória dos outros...
219
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