Você está na página 1de 14
FUNDAGAO EDTTORA DA UNESP Presidente do Conselho Corador Hermon Voorwold Diroor-Prosidente 046 Cositho Marques Noto utorfxveutve Malo Hornon Borin Gutierre ‘Awsousor Eaitorot Antonio Colo Ferrero Conselho Editorial Académico Cliuidio Antonio Rabello Coelho José Roberto Ernondas wir Gontoge Morchezon ‘Mora do Rosso Longa Menta Morio Encornagde BelrSo Sposito ‘Mario Fernondo Bolognest Foulo César Conée Borger Roberto Andeé Kroenke Sargio Vicente Mota Edores-Asisentes ‘derson Nobora ‘ete Zebber Cristiane Gradvohi Coles Roger Chartier Origens culturais da Revolucdo Francesa Tradugo George Schlesinger editora unesp Il lluminismo e revolugéo; Revolucéo e iluminismo Qualquer reflexdo sobre as origens culturais da Revolugio Francesa conduz inevitavelmente a um cléssico, Lesorigiesintelle- tuellesclela Révolution Frangaise - 1715-1787 [As origens intelectuais, da Revolugio Francesa - 1715-1787], de Daniel Mornet (1933, 1967)."A obra de Mornet parece ditar a tinica perspectiva possivel ppara trabalhos futuros, uma perspectiva que postula umaconexio | Essa obra (oi escrta aproximadamente na metade da careira de Mornet, discipulo fil de Gustave Lanson, docente de lets na Sorbonce. Antes da Primeira Guerra Mundial Mornetpublicou Lesenimentdelanatureen France De Je Jacquet Rouseniva Bernardin de Saree. Pais: Hachette, 1907; Les er seignements des bibliothéquesprvées (1750-1780), Rewed'HistoreLitéaive ea ance, p-449-96,jul-se. 1910; Les scenes delanature en France XVI site, Paris: Armand Colin, 1911, Tés condicbes, fotemente expressas em seus Origins intellectelles,. 6c subjacentes a abordagem de Morne: eo dis- ‘anciaram de critica litera a-pistriea ede inclinagi estéica:aexigéncla de capear a produsio literdcia de uma época em sua otalidade em vez de imitar-se a estudar os “grandes” auores eos “grandes” textos da raceao «edo cinone literério; «necessidede de iavestgar alo s6 0 texts, mas as 25 Roger Chair evidente eobrigatéria entre o progresso denovas idéias através do culo XVIII e a emergéncia da Revolugdo como acontecimento. Para Moret, trés leis governavam a penetragao de novas idéias, que ele idemiicou com o lluminismo, na opiniao piiblica geral. Primeiro, as idéias desciam pela escala social “das classes: conne te refinadas para a burguesia, para a pequena burguesia e para 0 ovo” (ibidem, p.2). Em segundo lugar, essa penetrasao se difundia do centro (Paris) para a periferia (as provincias). Finalmente, 0 proceso foi se acelerando no decorter do século, comesando com ‘minorias que anteciparam as novas idéias antes de 1750 e pros- seguiindo nos decisivos e mobilizadores conflitos na metade do século, para chegar,ap6s 1770, na cifuséo universal desses novos principios. Iso levou Mornet a tese subjacent do livo, de que ‘foram, em parte, idéias que determinaram a Revolucao Francesa” (ibidem, p.3). Embora nao negasse a importancia—na verdade, a primazia das causas politicas, Mornetconsiderou o pensamento iluminista, tanto em seus aspectos criticos quanto reformadores, como precondigao necesséria para a crise final da velha monarquia ‘medida que rumava para a revolucio, . Sem dvi, causas polls nfo etm sido sucente pera deteriora Revol pelo menos de oma ao pds. (ibidem, p.477). oe pe eee beeen OE cireulago ("o que importa tanto quanto o niimeroéa proporcte do nimet a ibidem, p.457). Em suas obras posteriores, por exemplo,. Hite dela ature fanaitecsique, 1600-1700, sescractire viral etsesspectncormus, eae ee a ee Braun ahr Se oe 26 Crigens eulscis do Revolugbo Froncese ‘ede suas ressalvas (claramente ‘A despeito de sua prudénc assinaladas no texto por meio de expressties como “em parte”, “sem diivida” e "pelo menos"), Mornet postulou uma ligacao necessiria entre o Huminismo e a Revolncio. Os motivos da Revolugio no estavam, éclaro, inteiramente contidos na filoso- fia, mas sem transformagées no “pensamento publico” geradas “pola inteligencia", cal evento poderia nao ter ocorrido quando cocorreu. [sso levou Mornet a uma hipétese de trabalho que nos {iltimos cingiienta anos tem assombrado tanto a historia inte- ectual como a sociologia cultural do séctlo XVUL A quimera das origens ‘Surgiram dividas, no entanto, insinuando que a questao pode ter sido mal colocada. Em primeiro lugar, sob quais condicoes 6 legitimo estabelecer um conjunto de idéias ¢ fatos difusos € ispares como “causas" ou “origens” de um acontecimento? Essa opera¢ao nao & to auto-evidente quanto parcce. De um lado, pressupde um processo de selecao que retém, dentre as inime- ras realidades que constituem a histéria de uma época, apenas & matriz do futuro evento. De outro, demanda uma reconstrucéo retrospectiva que dé unidade aos pensamentos e as agdes que se supdem ser as “origens”, mas alheios uns aos outros, heteroge- neos em sua natureza e descontinuos em sua realizagao. ‘Seguindo Nietzsche, Michel Foucault nos ofereceu uma critica devastadora a nocdo de origem entendida nesse sentido. (Foucault, 1971, p-145-72, 1977, p-139-64). Assumindo a line- aridade absoluta do curso da histétia, justificando uma intermi- navel busca de comegos e anulando a originalidade do evento como presente jé antes de acontecer, recorrer a essa categoria “oblitera tanto a descontinuidade radical de mudangas hist6ricas abruptas quanto a irredutivel discordancia que separa as varias séries de discursos e préticas. Quando a histéria sucumbe & 7 Roger Chartier “quimera das origens”, ela assume, talvez inconscientemente, 0 fardo de diversas pressuposig6es: que todo momento hist6rico 6 uma totalidade homogenea investida com um significado tinico ¢ ideal, presente em cada uma das realidades que constituem e expressam 0 todo; que o devir histérico se organiza como uma inevitavel continuidade; que os eventos estdo correlacionados, uum tecendo 6 outro num fluxo ininterrupto de mudanca que nos possibiitadecidr queum dels éa “cause outrooeeite” Pera Foucault, todavia, era precisamente dessas nodes clissicas de totalidade, continuidade e causalidade que a andlise “geneal6- gica” ou “arqueol6gica” deveria fugir se quisesse formular uma narrativa adequada da ruprura eda divergéncia. Como a wirliche Historie (Hist6ria] de Nietzsche, tal andlise Pee ie acne ce ae a eis Bere treet eet roa enc race apie lint Bani ua autocross Pee erate Cal ee rc aya PRR REET ic aa opal cero de tn snc msiexec os manson tas ous Cem p11 em Langue p99) _Sea histéria deve substituira busca de origens pela “dispo- sigdo sistemética da nogdo de descontinuidade” (Foucault, 1968, p.9-40, ctagao dap.11), a propria pertinéncia da questéo da qual partimos fica minada. Isto é ainda mais verdadeiro uma vez que a nocio de origem impée o risco adicional de propor uma leitura teleolégice do s culo XVIII que busca compreendé-lo s6 em relacao ao fendmeno supostamente considerado seu desfecho necessério ~a Revolugao Prancesa ~ e a focalizar apenas o fenémeno visto como gerador desse desfecho ~ o luminismo, Nao obstante, o que deve ser uestionado éjustamente a ilusio retrospectiva inerente 20 “mo- vimento regressivo que nos possibilita ler sinais premonitérios 28 COrigens cultures da Revolugio Francesa vento foi completado, e quando olhamos para o passa quandooet sse necessariamente cdo de um ponto de chegada que talvez néo fos seu futuro” (Goulemot, 1980, p.603-13). Ao afirmar que fot o Tluminismo que produziu a Revolucio, a interpretacao classica talvez inverta a ordem logica: ndo deverlamos, em ves disso, con- doa inventora do Tluminismo, tentando sores basicos, sengas, pela siderar que foi a Revolu ancorar sta legitimidade num corpo de textos e aut reconciliados e unidos, apesar de suas extremas sua preparagio de uma ruptura com o velho mundo? (Schleich, 1981, p.210; Gumbrecht & Reichardt, 1985, p.7-88; Popkin, 1987, p.737-50.) Quando reuniram (ndo sem algum debate) estrais incluindo Voltaire, Rousseau, Mably ingio radicalmente critica hes), os revoluciondrios um pantedo de anc e Raynal, quando atribuiram uma fu A ilosofia (se ndo @ todos os Philosop! continuidade que foi primeiro um processo de idade, Encontrat a: “origens” que foi a proposta de Mornet as acdes das pessoas jo historicamente construjram uma justificagao e uma busca de paterni cde um evento nasidéias do século - ~ seria uma forma de repetir, sem saber, ‘envolvidas no préprio evento e de sustentar com: estabelecida uma filiacéo que foi proclamada ideologi Poderia essa dficuldade ser contornada por uma reformula- cdo que substitua a categoria de origens intelectuais por origens i? Tal substituicdo, sem dtivida, faria muito por ampliar ‘a nogao de calturais as possibi origens culturais assume que as institu para (ou resisténcias a) idéias forjadas Yamica fades de compreensio. De um lado, uigdes culturais no $40 simples receptéculos ‘em outros lugares. [sso nos permite restaurar uma dini prépria para formas de sociabilidade, meios de comunicagao © processos educacionais, dinamica esta que Ihes ¢ negada por uma andlise como a de Mornet, que os considera apenas do ponto de vista da ideologia que contém ou transmitem. De ‘outro, uma abordagem em termos de sociologia cultural abre uma larga gama de prticas que devem ser levadas em conside- entos claros ¢ bem elaborados, mas ragiio: no somente pensamé 29 Roger Chestie também representacdes nio mediadas e corporificadas; no sé envolvimentos voluntétios e racionais, mas também lealdades automiticas ¢ obrigatérias. Isso torna possivel situar o evento revoluciondrio nas transforinasOes de longo prazo que Edgar Quinet designou “temperamento” quando contrastava a natu- reza inflexivel dos reformadores religiosos do século XVI como 2 posi¢ao mais maledvel dos revolucionérios de século XVIII (Quinet, 1865), abrindo caminho para uma reflexdo essencial sobre as variacdes na estrutura da personalidade ou, para usar a terminologia de Norbert Elias, economia psiquica (idem, ibi- dem). Mas serd essa ampliagao de perspectiva suficiente para evitar as ciladas da interpretacio teleolégica? levido a © postulado de que necessidade 6 uma clissica ilusSo recrospectiva de conscincia his- ‘rica, que vé o passado como campo de possibilidades dentro do {qual “o que realmente ocorreu” aparece ex post facto como o tinico fisruro para esse passado, que realmente ocorreu” escreveu Francois Furet (1978a, p.35), colocando-nos em guarda contra reconstrugées a posteriori que parecem estar necessaria- mente implicitas em qualquer busca de origens. Mas seré evitavel esse perigo? Devemos nés, inspirados pela “histéria contrafactual”, nos comportar tal qual nao tivéssemos conhecimento de como a década de 1780 terminou? Devemos suspender qualquer julgamento e supor que a Revolugdo Francesa jamais aconteceu? Seria divertido, até mesmo proveitoso, encarar esse desafio. Mas seo fizéssemos, que questionamento e prin pio de inteligibilidade usariamos para organizar nossa indagacfo das muitas séries de discurso e prética que se entrelacam para formar o aquilo que habitualmente é designado como a cultura da Francado século XVII? A Histéria despida de toda e qualquer tentagdo teleolégica estaria attiscada a se tomar um intermind- vel inventario de fatos desconexos abandonados a sua prolifica 30 COrigens culluris de Rewolugdo Froncese incoeréncia, & espera de hipéteses que proponhiam uma possive! ordem entre eles. Gostemos ou no, precisamos trabalhar dentro do terreno delimitado por Mornet (e antes dele, pelos préprios revoluciondrios) e considerar que nenhuma abordagem de um problema hist6rico seja possivel fora do discurso historiogréfico quea elaborou. A questao proposta por Les ariginesintellectuelles de la Révolution Francaise ~ a questao da relagao entre as idéias formuladas e propagadas pelo Tluminismo com a ocorréncia da Revolugao ~ nos servird como um conjunto de problemas que a9 mesmo tempo aceitaremos e descartaremos, que recebemos como legado e continuaremos a sujeitar 4 divida. Taine: da razo classica ao espirito revolucionario. ‘A relagéo de Mornet com os historiadores que 0 precederam foi exatamente da mesma ordem. Hé duas referéncias bibliogré- ficas fundamentais em seu livro: uma que ele reiterava, discutia © refutava ~ LAncien Régime [O Antigo Regime] de Hippolyte Taine ~ e outta discreta e mencionada quase en passant ~ LAncien Régime et la Révolution [O Antigo Regime e a Revolucao], de Aléxis de Tocqueville (1856). Ambas sao obras centrais para a historiogra- fia revoluciondcia, Mornet fazia duas criticas 2 Taine. A primeira censurava-o por coneluir com excessiva pressa que “e espitito revolucionério” foi difundido desde o inicio c por basear seu julga- mento em textos que eram famosos demais, parcos demais e,além de tudo, construfdos erroneamente. Para Mornet, reconstituir.o progresso de novas idéias requeria uma abordagem diferente: uma tentativa de medir a penetragao dessas idéies (ou a resistencia a clas) com base num conjunto de evidéncias o mais vasto possivel, extraidas nao somente da literatura ou da filosofia, mas também de memérias pessoais, periddicos impressos, cursos académicos, debates nas academias e lojas macénicas, ¢ nos cahiers de doléances. 31 Roger Charter E verdade que nesse trabalho a implementagao de Mornet de seu chamado ao rigor é com freqiiéncia canhestra e tentativa, mantendo-se mais enumerativa que quantitativa, aceitando a evidéncia de séries incompletas e dliserepantes. A preocupagio expressa por Mornet (que de-forma geral se mantém fiel a0 pro- rama elaborado por Lanson na década de 1900) (Lanson, 1903, p.445-53; 1904, p.621-42) forneceu, no obstante, uma base de estudos que modificou profundamente a hist6ria cultural francesa ‘nos iltimos vinte ou 25 anos, conduzindo-a para o massivo corpo documental, para o tratamento de dados em séries temporais € para a experiéncia das pessoas comuns. No entanto, Mornet tinha uma segunda critica a Taine. Quando este afirmava que o “espirito revolucionério” ja existia, completamente formado, na sociedade do Antigo Regime, sendo levado as conseqtiéncias mais extremas pelos Philosophes, dava nova vida & velha teotia da conspiraeao.e & tese de uma revolugao planejada, Moret julgava essa idéia inaceitével ‘Um Lenin, um Trotsky, quisecam uma revolucao especifica; pci- meiroa prepararam, depoisa organizaram c entioa dirigiram. Nada semelhante a isso aconteceu na Franga, As origens da Revolucao so uma histéria, a histéria da Revolugéo é outra (Mornet, 1933, 1967, p.471). ‘Trata-se de um comentétio precioso. Fle abre caminho para todas as linhas de pensamento que distinguem, de um lado, a Revolugao sendo inscrita num processo de longo prazo como 0 desfecho necessério para uma constelacZo de causas que afizeram acontecer e, de outro, a Revolugao como um evento que institui, por uma dinémica prépria, uma configuracao politica e social que nio pode ser reduzida as condigdes que a tornaram possivel (Furet, 19782, p.38-9; 1981, p.17-28). Mesmo assumindo que a’ Revolugdo tenha tido muitas origens (intelectuais, culturais ou outras), sua prépria historia nao pode set limitada a clas. 32 COrigens eulturcis do Revolugbo Francesa ‘A dupla criticade Mornet indubitavelmente deixa de captar 2 originalidade paradoxal do trabalho de Taine -ou seja, a genealo~ gia que faz remontar 0 “esptrito revolucionério” a sua matriz no classicigmo francés. Numa carta enderacada a Boutmy em 1874, Taine descreve seu projeto de trabalho nos seguintes termos: [Eu quero] mostrar que Boileau, Descartes, Lemaistre de Sacy, Corneille, Racine, Fléchier so os antecessores de Saint-Just ¢ Robespierre. O que 28 reteve foi que o dogma monarquico e reli- gioso estava intacto; uma ver que odogma se desgastou pelos seus cexcessas e foi derrubacdo pela visdo cientifica do mundo (Newton, via Voltaire), o espirito cléssico inevitavelmente produziu a teoria do homem abstrato, natural e do contrato social. (Taine, 1986)-* Aiém do lluminismo, a Revolucéo tinha rafzes no triunfo dla raison raisonnante do classicisro. Substituindo “a plenitude e complexidade de tealidades” por um “mundo abstrato”, substi- tuindo o individuo real tal como de fato existe na natureza ena histéria por um “homem em geral”, 0 espirito classico ceu 20 pensamento filoséfico sua estrutura, a0 mesmo tempo em que solapava as fundag6es costumeiras e hist6ricas da monarquia. ‘Anegacio da realidade, que reside no corac20 do classicismo, atingju sua plenitude na erradicagdo aculturadora proposta pelos homens da Revolucio: Em nome da Re2fo, da qual o Estado somente 6 representante ce intérprete, eles se propdem a desfazer e refazer, de acordo coma razio, ecoma razfo apenas, todos os costumes, festas, cerimBnias cctrajes, aera, ocalendério, pesos e medidas, os nomes das estagSes, meses, semanas e dias, de pragas e monumentos, nomes de familia ede batismo, titulos honorificos, © tom do discurso, a forma de ‘Acarta para Boutmy, de 31 de julhode 1874, écitads oa introducao por Prangois Liger "Taine les Orignes dela France comemporsine”, pXXXI. 33 Reger Chorter saudagdo, de cumprimentar, de falar e de escrever, de tal maneira que o francés, como anteriormente o puritano e o quacre, remo- delado até mesmo em sua substéncia interna, exponha, mediante 09 miniovos detathes de sua conduta e aparéncia, o dominio do {oxlo-poderaso principio que remodela seu sere a inflexivelligica ue controla seus pensamentos. Isso constitu o resultado final ¢ ttlunfo completo do esplritoclésico(ibidem, p.187) 2 Sera que isso deve ser visto como a exuberancia ou a em- briaguez de uma filosofia contra-tevolucionéria reescrevendo a historia nacional a luz de seu inevitavel, destrutivo e detestével resultado? Talvez nao, ou nao simplesmente isso. Tracando © “espirito revoluciondrio” nao diretamente as reformas do Tuminismo, mas a tradiczo em si-a tradi¢ao em suas formas mais respeitosas de autoridade, real e divina ~ Taine deixou de lado 0 topos forjado pela Revolugdo, que, em sta busca por herdis fundadores, escolheu apenas Descartes (proposto, mas no admitido, para 0 pantedo revolucionario) para ser coloca- do ao lado dos Philosophes. Filiagoes que fracassaram em vir A fona na consciéncia dos protagonistas histéricos e que teciam telagdes desconhecidas sob suas proclamadas ideologias so mais interessantes que aquelas que eles alegavam e exaltavam. A esse respeito, Taine contribuiu para a conceitualizacao do Processo cultural que inclufa a Revolucéo, situando-a num intervalo de tempo mais longo do que havia sido considerado, tanto antes dele quanto depois de Mornet. Além disso, quando Taine caracterizava o classicismo em termos de sua rejeicao da realidade e de sua negagdo do mundo social, forneceu um esboco para posteriores andlises que definiam a “derreificacio” como um taco distintivo da literatura francesa nos séculos XVII e XVIIL 3 ‘Thine & citado de The Ancient Regine, nova ed, rev. Trad. John Durand. New Yorks H. Holt, 1896, p.191, 250-1, 34 COrigenscuturais da Revolucéo Francesa ia eldssica dos franceses representa o extremo radical Auragé 40 de estilos, na rompimento do trégico com o cotidia na separacdo de estilos, na rompimento ro e o real, conseguido pela literatura européia (Auerbach, 1946, .365-94, ctagao p.388). Este pronunciamento de Brich Auerbach & como uma remi- niscéncia da afirmativa de Taine, Também para Auerbach a esté- tica eldssica (que igualmente regia a literatura do Huminismo, E dla qual o drarma trgico era apenas um exemplo de expressio) substitufaa experiéncia concreta, cotidiana, a eee existéncias individuais por uma humanidade universal, absoluta e mitica, Vinteanos antes de Taine, ¢considerando um intervalo de tempo ainda menor, Tocqueville concebeu a mesma oposicto entre o mundo abstrato da razao e “a plenitude e complexidade as reaidades’, utlizando cut par de categorias contrastantes: “politica literdria” e “experiéncia de assuntos puiblicos Tocqueville: politica literaria ¢ experiéncia de assuntos publicos ara Toqueile, cr extn expressarque a Revolugio i, paradoxalmente, o desfecho inevitavel tanto de uma evolucao extremamente longs da centalizao adinistacva assum da pela monarquia quanto de uma ruptura brutal, violenta e inesperada. © acaso nio desempenhou papel algum na irrup¢ao da Revolugéo; embora tenha apanhado © mundo de surpresa, fol 0 desfecho inevitvel de um longo periodo de gestae, #conclusio abruptavioleneade um processo no qual seis geragoes desempe- ‘nharam um papel intermitente. Mesmo que ela no tivesse ocorrido, de qualquer maneira, cedo ou tarde, a velha estrutura social teria 35 Roger Chotier sido abalada, A Gnica diferenca teria sido que, em ver de ruir de forma tio sibitae brutal, teria desabado poucoapouco, NumaGnica © cruel arremetida, sem aviso, sem transigéo e sem compuncéo, a Revolugdo efetivou o que de todo modo tenderia a ocorter, apenas de Forma lentae gradual. Assim, tal foi a congquista da Revoluczo (Tocqueville, 1967, p.81) Embora sua significancia estivesse totalmente contida no Processo que foi seu inicio e sua causa, a Revolugdo foi, néo obstante, uma ruptura violenta cujo momento e radicalidade do podem ser deduzidos a partir do proceso, Para que isso seja possivel, Tocqueville apresentou outras razdes, esbocadas no livro 3 do L'Ancien Régime et la Révolution, onde tenta encaixar a emergéncia do evento e seus desenvolvimentos posteriores que conferiram sentido e necessidade ao acontecimento, Para fazé-lo, enfatizuu uma cronologia de cutto prazo (0s trinia ou ‘quarenta anos que precederam a Revolugdo) ¢ tentou discerniras mudangas culturais que produziram transformac6es répicas em ‘déias ¢ sentimentos. O novo papel assumido pelos intelectuais ‘do foi a menos importante dessas mudancas. Tocqueville analisa 0 papel dos intelectuais no lio 3, capi- tulo I, “Como em torno da metade do século XVIII homens de letras assumiram a lideranca na politica eas conseqiiéncias desse novo desenvolvimento".* O ponto de partida do capitulo é uma oposigao fundamental entre o exercicio efetivo do governo por partede agentes da administragio monarquica (que Tocqueville denominava, com certo anactonismo, forctionnaires) e a “politi- ca abstrata, literéria” desenvolvida pelos homens de letras que hraviam-se tornado os arbitros da opinio. Na Franca posterior 4.1750, a autoridade tinha sido desligada do poder, a politica, 4 Aa laces fe Tcquerile ese argo no segunprovin de inci meet le Revolucion, liveo 3, cap. 1, p.229-41, ctalo de The Old Re des p The Old Regine, cic, 36 ‘OFigens euluras de Revolugdo Froncesa separada da administracdo, e a discussio publica tinha lugar fora das instituigdes governamentais, Na viséo de Tocqueville, tal situagao justepunha perigosamente politica sem poder ¢ um poder sem autoridade. B apresentava dois resultados: de um lado, levava a colocar “teorias abstratas ¢ generalizagSes referentes & natureza do governo” em lugar das licées de “pra- ica” e “experiencia”, do respeito pelo “complexo de costumes tradicionais” e da “experiéncia em assuntos piblicos”. Banida daesfera governamencal,e, portanto, carente de qualquer acesso & tomada de decis6es administrativas, a vida politica poderia apenas ser transposta ou “canalizada” para a literatura -refoulée dans (a littérature, escreveu Tocqueville, indicando tanto repres- so como transferéncia. De outro lado, a ruptura entre o poder administrativo ¢ a “politica literéria” investiu esses homens de letras ~ os “fildsofos” ¢ “nossos escritores” - com uma funcéo e ‘uma responsabilidade anteriormente (ou em outras partes) atri- buidla aos “lideres de opinido publica” normais. Diferentemente dia Inglaterra, onde “escritores sobre teoria do governo e aqueles que efetivamente governavam cooperavam entre si" ¢ onde os “politicos profissionais" continuavam a dirigir a opinio publica, 1a Franga no final do Antigo Regime os homens de letras se tor- naram uma espécie de aristocracia substituta, que era ao mesmo tempo todo-poderosa e nao tinha poder real algum, ‘A razao desse paradoxo reside no processo de centralizagao, Ao destruir as “instituigdes livres” que Tocqueville qualificava como “comumente deseritas como feudais”, ¢ ao enfraquecer a “vida piblica” removendo “a nobreza ea burguesia” do.exercicio do poder, a prépria monarquia ctiou condigées que autorizavam, a hegemonia “filoséfica”. De um lado, 0 governo, que tendo suprimido toda a administragao ao esvaziar de seu contetido a Assembléia Geral, as assembléias provinciais eos conselhos mu- nicipais, viu-se privado de pessoas experientes na arte da polltica, uma vez que nao havia mais onde adquirir tal experiencia. De outro, o poder do Estado confrontava-se com uma opiniao publica 7 Roger Chartier surgida do entulho da velha liberdade Ptiblica e fascinada pela “politica literdria”. As elites, despidas de todas as instituigées representativas e expulsas dos negécios piblicos, voltavam as costas para a sociedade & qual havian pertencida para no mundo ideal elaborado pelos homens de letras: Assim, paralelamente 20 sistema social da época, tradicional ¢ confuso, para ndo dizer castico, foi senco gradualmente construtda znamentedos homens uma sociedde ideal imaginéria, na qual tudo era simples, uniforme, coerente, eqtitativo e racional no sentido pleno do terme, Quandoo mundo social foi destitufdo de sua realidade (uma ‘déia da qual Taine tiraria proveito) “essas propensbes literdvias foram importadas para a arena politica” -ou seja, o movimento dual de abstracSo e generalizagao tendia a reduzir 0 “complexo de costumes tradicionais” @ algumas poucas “regras simples, elementares, derivadas do exercicio da razio humana e da lei natural”. A politizagao da literatura foi, portanto, 20 mesmo temn- Po uma “literizaca0” da politica transformada numa expectativa de ruptura e um sonho de um “mundo ideal”, A politica literaria e a educarao teérica, produtos do processo de centralizagao, tornaram-se uma ideologia comum entre gre pos igualmente privados de qualquer participago no governo, Assim, contribuiram notavelmente para minimizar as diferencas entre nobres e burgueses, tornando os dois grupos comparaveis, Tocqueville estabeleceu assim um novo pensamento politico, e sua difusdo de teorias genéricas e abstratas na perspectiva (fandamental 2 seu ver) de reduzir as brechas entre provincias e classes: Nao hd divida de que no final do século XVII ainda era possivel etectar matizes de diferenga no comportamento ca aristocracia € da burguesia; pois nada leva mais tempo para ser adquirido do 38 Crigens cures do Rewolugbo Francese {que o verniz superficial daquilo que se chama boas maneitas. Mas basicamente todos os graduaclas acima da horda comum eram seme- Jhantes;tinham as mesmas idéias, os mesmos habitos, os mesmos {ostos, 0s mesmos tipos de divertimento; liam os mesmos livros e falavam da mesma mancira. (O jutzo de Tocqueville & claro, como se vé no titulo do livto 2, capfeulo 8: “Como a Franga se tornou o pals no qual os homens, eram mais parecidos”. ‘No entanto, devemos considerar o restante do pensamen- to de Tocqueville: “..eles diferiam apenas em seus direitos” (ibidem, p.158). A comunho de mentes tornava a exibigo de privilégios e prerrogativas simultaneamente mais necessaria e ‘mais intolerdvel. Por trés de idénticos pensamentos € priticas sociais ainda repousavam interesses ferozmente antagdnicos € certa ostentacao de distanciamento, Como o fortalecimento do “despotismo democrético” — uma categoria paradoxal que, con- forme o termo empregado por Tocqueville, refete-se 20 proceso dual de centralizacao administrativa e aboligdo das diferencas ~as solidariedades ¢ interdependéncia necessariamente produzidas por uma sociedade de liberdade e estructura hierdrquica deram lugar a interesses individuais que competiam entre si. Embora uma cultura compartithada trouxesse uniformidade as preferén-

Você também pode gostar