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OS PRINCIPIOS

ILOSÖFICOS DO DIREITC
POLÎTICO MODERNO

Sim one G oyard-Fàbre

M artins Fontes
A fim de atender ao projeto de pensar
filosoficamente os princípios
fundamentais e organizacionais que, no
direito político moderno, tomam
inteligíveis seu sentido, sua validade e
sua eficiência, nós nos basearemos não
apenas no direito público positivo tal
como fo i edificado a partir do século
XV I, mas também na doutrina que, de
J. Bodin a C. Schmitt, os jurisconsultos
elaboraram, bem como nas obras dos
filósofos que, de Maquiavel a
J. Habermas ou a R. Dworkin,
propuseram uma hermenêutica da
ordem jurídico-política.
Depois de examinarmos, numa primeira
parte, a questão d a n a tu re za e dos
p rin c íp io s do P oder tais como
manifestados por sua emergência e seu
exercício no espaço jurídico-político da
modernidade, nós nos indagaremos,
muna segunda parte, sobre as fig u ra s
do d ire ito p o lític o no E stado , lugar por
excelência da política moderna. Nossa
terceira parte será consagrada à crise do
d ire ito p o lític o m oderno no mundo
contemporâneo e aos ensinamentos
filosóficos que dela se podem extrair.

S. G.-F.

Im agem da capa A m b rog io Lorenzetti, A s V irtudes do


B om Governo, afresco, Palazzo P u b blico , Siena. D etalhe.
r •. li ;P-s> h ;»
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OS PRINCÍPIOS
FILO SÓ FICOS DO
D IR EITO PO LÍTIC O
M O DERN O
OS PRINCÍPIOS
FILOSÓFICOS DO
DIREITO POLÍTICO
MODERNO
Simone Goyard-Fabre

Tradução
IR E N E A . PA TE R N O T

M artins Fontes
São Paulo 2002
............ N
Autor : Gayard-Fatee, Simone
Título : A princípios filosóficos do direito político modemo
(321.01 G724p)
Registro: 028534 Ex.: 2

E sta o b ra fo i p u b lica d a origina lm en te em fra nc ês com o títu lo


... J
L E S P R IN C IP E S P H IL O S O P H IQ U E S D U D R O IT P O L IT IQ U E M O D E R N E
p o r Presses U n iversitaire s de France, P aris.
C op yrig ht © Presses U n iversitaire s de France, 1997.
C opyright © 19 99 , L iv ra ria M a rtin s Fontes E d ito ra L td a .,
São P a u lo , p a ra a presente edição.

l 3 edição
novem bro de 1999
23 tira g e m
m arço de 2002

T rad u çã o
IR E N E A . P A TER N O T

R evisã o da tra d uç ão
M a ria E rm a n tin a G a lvão
R evisã o g rá fic a
Ive te B a tista dos Santos
A na M a ria de O liv e ira M endes B arbosa
P ro d uç ão g rá fic a
G eraldo A lves
P a g iu a ç ã o /F o to lito s
S tud io 3 D esenvolvim ento E d ito ria l)

D ados Internacionais de C atalogação na Publicação (C IP )


(C â m ara B ra sile ira do L iv ro , SP, B ra sil)

Goyard-Fabre, Sim one.


Os princípios filosóficos do direito po lítico m odem o / Simone
Goyard-Fabre ; tradução Irene A . Patemot. - São Paulo : M artins
Fontes, 1999. - (Ensino superior).

T ítu lo original: Les príncipes philosophiques du droit politique


m odeme.
Bibliografia.
IS B N 85-336-1163-3

1. Ciência política - F ilo so fia 2. D ire ito - F ilo so fia 3. O Estado


I. T ítu lo . EL Série.

99-4739__________ ^___________________________ ,______________C D U -34 0.1 2

ín d ic e s p a ra ca tálog o siste m á tic o :


1. D ire ito : F ilo so fia 340.12

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Rua Conselheiro Ram alho, 330/340 01325-000 São Paulo SP B ra sil
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índ ic e

Considerações p re lim in a re s .......................................

1. O “direito p o lític o “ ................................................. 2

• 2. A “m odernidade” do direito p o lític o ....................... 4


A ) A s prim ícias da via m oderna........ .......... ........ . 5
B ) Os difíceis caminhos de acesso à modernidade
ju ríd ic o -p o lític a .......... .................... ........... 12
O m om ento m aquiavélico............... 14
N a transição de duas eras: o direito da R epúbli-
, ca de Jean B o d in .................. ............................. . 21
C ) O passo decisivo da m odernidade: o Estado-
L e via ta ..... .............. 27
O m oderno M inotauro.................................. 28
A essência do moderno na catedral racional do
direito p o lític o ..... ................ ......... ......... 34
O desmoronamento da catedral m oderna........... 40

3. Questões de m étodo.......:............................... ........ . 42


A ) A s estradas da história...................................... . 43
B ) Os cam inhos “ científicos” ..... ............................ 44
C ) A v ia filo s ó fic a .......................................... 48

P R IM E IR A P A R T E

A N A T U R E Z A E OS P R IN C ÍP IO S D O P O D E R
N O E SPA Ç O J U R ÍD IC O -P O L ÍT IC O M O D E R N O

C apítulo I - A centralização do P oder e o p rin c íp io de


u nid ad e do E stad o m o d e rn o ....................................... 55
1. O princípio da ordem pública no Estado segundo
M a q u ia ve l.................................................................. 59
A ) Serviço público e norm atividade do Poder no
E stad o ...................... ............ , ............................. 60
B ) Os im perativos organizacionais do Estado m o­
derno .................................................................... 66

2. O princípio de autoridade no Estado-Leviatã de


H obbes....................................................................... 71
A ) A problem atização teórica do Estado................. 72
O hum anism o....................................................... 76
O ind ivid u alism o ..................... ............................ 77
O igualitarism o.............. 81
O racionalism o.............................. 85
B ) O princípio da autoridade do Estado e a repre­
sentação................................................................ 89

3. O princípio de constitucionalidade da ordem ju ­


rídica m oderna.............. 95
A ) O hum anism o ju ríd ic o ............................ 96
B ) O constitucionalism o m oderno.......................... 102
O estatuto orgânico do Estado................... 104
A hierarquia das norm as...................................... 106
O estatuto norm ativo do Estado moderno .......... 110

Capítulo I I - A soberania, p rin c íp io de independência


e de onicom petência do E stado m o d ern o .................. 115

1. O arquétipo naturalista da soberania sobre a “N a ­


ve-República ” ................................. 118
A) A renovação do conceito em M ethodus e em L a
R épublique................ 121
- B ) Natureza e função da soberania.................. :....... 130
C ) A fundação m etajurídica do direito de soberania.. 137
D ) Soberania e harmonias naturais.......................... 143
2. O modelo racionalista da soberania no Estado-Le-
v ia tã ............................................................................ 149
A ) G rotius e Hobbes, depreciadores do naturalis­
m o ju ríd ic o ............ .................... 150
B ) A s perspectivas conflituosas do direito político
m oderno............................................................... 156

3. As controvérsias doutrinárias e a mudança do con­


ceito da soberania....................... .................... ......... 158
A ) A questão da origem da soberania...................... 160
B ) A questão da extensão da soberania................... 163
C ) A questão dos titulares da soberania.................. 170

4. A soberania do povo............................. 179


A ) A soberania do “povo como corpo” segundo
Rousseau.............................................................. 180
B ) A “ soberania nacional” segundo Sieyès......, ..... 183

5. A lim itação constitucional da soberania.................. 187


A ) Ilim itação ou lim itação da soberania?............... 187
B ) M onism o ou pluralism o do poder soberano?..... 192

SEG U N DAPARTE

A S D U A S F IG U R A S D O D IR E IT O P O L ÍT IC O
N O ESTA D O M O D E R N O

C apítulo I - O Estado D O direito, expressão dos p rin ­


cípios de legalidade e de legitim idade........................ 207

1. D as m áxim as da “arte de governar” aos axiom as


reguladores do governo ...................... ..................... 210
A ) D a m etáfora ao conceito........ ............................. 210
B ) D ificuldades da análise conceituai..................... 215
C ) O que quer dizer “ governar” : a contribuição de
Rousseau......... ........................ :...................... . 219
2. Os cânones do sistema in stitucional no Estado D O
d ire ito .....................................■................................... 233
A ) A tipologia dos regim es....... ...................... ........ 233
A desclassificação das classificações tradicionais. 234
M ontesquieu e o princípio de m oderação.......... 237
“ Todo governo legítim o é republicano” .....,....... 246
B ) U m a hermenêutica da norm atividade institu­
cional...................................... .................. .......... 251
A inseparabilidade do Estado e dó direito............ 252
Cari Schm itt, adversário de K e lse n .................... 265
O ponto de vista de H . Hart: o espectro do tota­
lita rism o ................................. 271

3. A questão da legitim idade no direito p o lític o mo­


derno......... ........... 273
A ) Dos modelos antigos às prim eiras m odificações
m odernas..................... 275
B ) A equação da legitim idade racional e da leg ali­
dade segundo M a x W eber......... ...... 281
C ) A irredutibilidade da legitim idade à legalidade
segundo G . Ferrero.............................................. 284
D ) Legitim idade e legitim ação................................. 292

Capítulo I I - O E stado D E d ire ito , síntese dos p rin c í­


pios de ordem e de lib e rd a d e ........ ..................... 307

1. A idéia de Estado D E d ireito: de sua genealogia à


suaproblem atização............ ............ 311
A ) O aparecimento do conceito de Rechtsstaat...... 312
B ) A te o ria d e C a rré d e M a lb e rg ......... ............. 315
C ) U m conceito repleto de equivocidade............... . 319

2. D a defesa das liberdades à em briaguez dos "direi­


tos do homem ’’........ ................... ..................... ........ 322
A ) A defesa liberal das liberdades individuais........ 324
B ) Os “ direitos do hom em ” no Estado D E d ire ito ... 328
O sentido das Declarações dos d ireitos..... . 329
A s mutações do conceito dos direitos do ho­
m e m .............................. ............ .................. . 332
C) D o caráter problem ático do Estado D E d ire ito ... 338

3. Sim bologia republicana e dem ocracia................... 341


A ) O ideal republicano....................... ...................... 341
B ) A s ambigüidades do entusiasmo dem ocrático.... 343

T E R C E IR A P A R T E

A C R IS E D O D IR E IT O P O L ÍT IC O M O D E R N O
E SEU S E N S IN A M E N T O S

C apítulo I - Da crítica à crise do direito político m o­


derno: o princípio de racionalidade em questão...... 363

1. Os acentos polêm icos da ideologia contra-revolu­


cionária ........................................................ ............ 364
À ) A oposição ante-revolucionária ao direito p o lí­
tico m oderno........................................................ 365
A discussão entre B o u lain villiers e D u b o s......... 365
O anti-racionalism o de H um e e de H erd er...... .. 367
B ) A “reação” contra-revolucionária................. 371
A s Reflexões de Burke......................................... 371
A crítica da Constituição francesa: Brandès,
Rehberg e G entz................................................ 375
C ) A escola do histo ricism o ................... ............... 379
A obra de S avig ny.............. 379
A s ressalvas de Chateaubriand....... .................... 385

2. A crise do direito p o lític o : da efervescência ao p a ­


roxism o ......................... 388
A ) A dem olição do direito do Estado burguês......... 389
M arx, crítico d eH eg el........... ....... 389
A s dúvidas que pesam sobre o programa com u­
nista...................................................................... 395
B ) D a descoberta da nação ao despertar das nacio­
nalidades e aos nacionalism os.................... 400
A nação no horizonte da h istó ria ..... .................. 400
A s duas lógicas da nação na época m oderna 405
A vontade geral e o Estado-nação: o exemplo
deS ieyès........................................ 405
O despertar “nacionalitário” : Fichte e H egel.... 410
R um o à independência da nação........... ............ 419
C ) A exacerbação nacionalista........................... 421
O exem plo do pangerm anism o........................... 422

3. O acme da crise: Nietzsche e sua descendência. . 425


A ) A filo s o fia a “ marteladas” de N ietzsche............ 426
O monstro Estado, novo íd o lo do “ demasiado
hum ano” ................................... 426
U m processo m etafísico................,.................... 429
B ) O pensamento do d e c lín io ...... :........................... 431
Os Holzwege do Estado m oderno segundo H e i-
degger................................................... 432
O antim odem ism o da corrente inspirada em
Nietzsche e Heidegger................................... 435

Capítulo I I - A m etam orfose do d ire ito estatal e seu


sig nificad o filo s ó fic o ...................... 439

1. A renovação da idéia de contrato s o c ia l.................. 440


A ) A crítica da idéia de contrato s o c ia l................... 441
B ) O remanejamento do conceito de contrato social.. 443

2. A am pliação do direito p o lític o e o m al-estar da so­


berania estatal........................................................... 447
A ) A construçãodeum direitopúblicointem acional.. 449
B ) Os m odelos “ federalistas” ................................... 452
A s tentativas de aprimoramento do conceito de
“ federação” : o exem plo de K a n t......................... 452
Confederação e federação............................... 459
3. A rejeição dos p rin cíp io s do direito p o lític o mo­
derno........................................................................... 465
A ) O retomo aos horizontes antemodemos do direi­
to: a tese de Leo Strauss....................................... 466
Os erros do historicism o...................................... 466
A s lições de Xenofonte e de Tucídides............... 470
U m a filo s o fia na contramão: a volta à norm ati-
vidade natural.... .............................. 474
B ) A s perspectivas pós-m odernas do direito p o líti­
co: as proposições de J. Habermas...................... 480
O paradigma da com unicação............................ 480
Os riscos de um a pós-m odem idade consensual. 485

CONCLUSÃO - O espírito do direito político moderno:


as exigências transcendentais da razão ju ríd ic a ........ 491

Referências bibliográficas ............................................ 501


1. Fontes doutrinárias..................................................... 501
2. Estudos................................................................... 505
3 . Trabalhos coletivos..................................................... 511

B ib liog rafia em língua portuguesa e espanhola........... 513


1. Clássicos do pensamento p o lític o .............................. 513
2. Seleção de obras de filo s o fia p o lític a ....................... 514

índice onom ástico......................................................... 517


Considerações prelim inares

A marca da p olítica está impressa com tanta força nas m ú l-


.tiplas figuras do m undo em que vivem os que o apolitism o se
configura im possível. Ora, o nascimento da p o lítica rem onta à
aurora do m undo, assim que se m anifestaram o comando dos
chefes e a organização da vid a com um . Se atualmente, como
no tempo de Platão, a tarefa da filo s o fia continua sendo a busca,
sub specie aeternitatis, da essência do p o lítico , no m undo
“m oderno” ela exige um a reflexão crítica sobre a constituição
da ordem ju ríd ic a que governa, ao m esm o tempo, a vid a de
cada povo e as relações entre os diversos povos. O espaço pú­
blico, interno e internacional, não pode prescindir das estrutu­
ras de direito que fix a m seus contextos e constituem seu arca­
bouço, form ando assim o que chamamos de “ ordem ju ríd ic a ” .
Para designar essas estruturas reguladoras que compõem o que
B odin denominava, no século X V I, o “ direito da república” (res
p u b lica ), os autores do século X V II, como Hobbes e Locke, e
depois do século X V III, como B urlam aqui e Rousseau, recor­
reram alternadamente às expressões “ direito c iv il” (jus c ivilè )
e “ direito p o lítico ” , às quais atualmente preferim os a expressão
“ direito público” .
Antes de empreender qualquer reflexão sobre os princípios
filo só fic o s do direito político m oderno, é necessário, neste ca­
p ítu lo prelim inar, precisar o que é o direito p o lític o , destacar
sua especificidade no m undo moderno e indicar as regras me­
todológicas que seguiremos a fim de apreender suas bases fu n ­
damentais e seus princípios reguladores.
2 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

1 .0 “ direito político”

O direito “político” ou “público” é o conjunto de regras que


estrutura o aparelho da potência dos Estados, tanto no plano
interno como no trato ju ríd ic o internacional. A existência do
direito p o lítico sig n ifica que a p o lític a não se reduz a sim ples
relações de forças e que “potência” não é “poder” . A potência
é apenas um dado factual que se expressa de m aneira em pírica
e contingente. O Poder p o lítico - Potestas e não potentia - é
um a construção ju ríd ica, tanto é que seu exercício obedece a
princípios e a regras que lhe im põem restrições e lim ites. Se a
potência é força e, às vezes, violência, o Poder p o lítico im p lica
a ordem de direito erigida por um conjunto de vínculos institu­
cionais. O “ direito p o lítico ” é precisamente constituído pelas
norm as que regem a organização institucional da p o lítica e seu
funcionam ento no âm bito por ela determinado e delim itado.
O problem a aqui não é d irim ir a questão de saber se os
fundamentos da po lítica são naturais ou a rtificiais, mas sim
tom ar consciência e dar conta da necessidade, em qualquer rea­
lidade política, das estruturas de direito que, instituidoras, or­
ganizadoras e funcionais, comandam seu estabelecimento, sua
ordem e seu m ovim ento, Desse m odo, quando a vid a p o lític a '
se m anifesta pela votação de um a le i, pelo recurso ao im posto,
por decisões de ordem m onetária, por procedimentos interna­
cionais em m atéria de comércio ou de trabalho, por acordos
m ilitares entre vários Estados etc., é sempre com base em regras
jurídicas. Elas são a trama com plexa, ainda que elaborada de
form a lógica, a partir da qual se tecem os acontecimentos da
vid a po lítica dos povos e através da qual eles adquirem sentido
na substância do m undo; elas orientam os comportamentos e
as decisões dos Estados, im pondo um a disciplina, linhas de for­
ça e um a ordem às diversas representações e manifestações da
existência política. N ão há p o lítica que não requeira sua orga­
nização ju ríd ic a por m eio de um corpus de regras cuja vocação
é, a um só tempo, a de um a ordem-ordenamento que fix a as re­
lações form ais entre as norm as constitutivas do sistema e um a
ordem-comando que expressa a autoridade de que está investi-
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 3

da essa instância política. Sistem aticidade e norm atividade são


as duas características conjuntas e indissociáveis da ordem
ju ríd ic a que estrutura o estofo da vid a pública, dando form a e
validade a seus conteúdos substanciais.
N a existência das sociedades humanas há evidentemente
outros im perativos além dos do direito: assim, as regras da
m oral, os mandamentos da religião ou, simplesmente, os pre­
ceitos do decoro não são de form a algum a negligenciáveis. Con­
tudo, enquanto essas m áxim as não podem ser pensadas inde-
pendentemente tanto do seu conteúdo como da sua fixação no
grupo social, a especificidade do direito p o lítico está em não
residir apenas na sua m atéria e em proceder da norm atividade
de que é portador1. É por isso que sua vocação é, em prim eiro
lugar, organizacional: confere à diversidade dos fenômenos do
m undo p o lítico um arranjo lógico e coerente que acompanha a
organização racional dos poderes públicos consoante'valores e
exigências homogêneas. Consequentemente, o poder p o lítico ,
longe de se m anifestar como um a sim ples potência que se exer­
ce em circunstâncias particulares e contingenciais, em m eio a
tensões inevitáveis, é, ao m esm o tempo, condicionado form al­
m ente pelo direito e lim itad o por ele, já que é nele que encon­
tra seus critérios de validade. Entretanto, o ordenamento juríd ico
da po lítica não poderia significar nem seu form alism o exclusivo
- isto é, a ausência de substância, portanto, a vacuidade - nem
seu im o b ilism o rígido - isto é, a institucionalização estática,
portanto, o caráter d e fin itivo . O direito p o lítico evolui - e deve
evoluir - de acordo com os problemas criados pela m ovim en­
tação histórica e pelo progresso das sociedades.
A dupla exigência de ordem e de m ovim ento que o direito
p o lítico acarreta explica que possa ser considerado na perspec­
tiva de um a periodização histórica, reveladora tanto de suas
constâncias como de suas variações. O direito p o lítico , que é
incum bido de estabelecer a organização do Estado, de d e fin ir

1. “ Graças à regra, a partir de um a certa época, a humanidade teve a pos­


sibilidade inédita de armazenar o direito” , escreve J. Carbonnier, Sur le carac,
tère p r im itif de la règle de droit, m Mé/aBg-es-Roa&ier, Paris, 1961, p. 114.
4 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

seu regim e político, de fix a r sua estrutura governamental, de


regulamentar suas relações com os outros Estados, etc., é um sis­
tem a orgânico que contém algo vivo . Com o tal, o direito p o lí­
tico acrescenta, à sua capacidade essencial de ordem, um a dinâ­
m ica intrínseca graças à qual a sociedade p o lític a não só se
m antém mas tam bém fic a aberta ao progresso por interm edia­
ção de suas instituições. Pela hierarquia que instaura entre os
valores que pretende fazer respeitar, bem como pelos procedi­
mentos que põe em ação a fim de assegurar a autoridade do
Poder, o direito p o lític o tem a função não só de sistem atizar a
vid a p o lítica, m as tam bém de trabalhar permanentemente para
seu eq u ilíb rio geral que, ao longo do tempo, sempre tem de ser
reajustado, até m esm o refeito.
N ão será descabido dizer que o conceito de “ instituição
p o lítica” conotado pelo direito p o lític o tem um a am plitude tão
grande que sua compreensão não pode ser m uito precisa. N ão
obstante, essa noção se reporta sempre à organização do Poder
p o lític o e à disposição do seu exercício. Por isso as leis, os re­
gulam entos adm inistrativos, as próprias Constituições, inserin-
do-se no campo sócio-histórico em que evolui a p o lítica, evo­
luem com ela. O sistema ju ríd ic o da R om a im perial não é o das
senhorias feudais; o da época “moderna” é discutido atualmente,
às vezes até m esm o acusado por certos contemporâneos que se
declaram “pós-m odem os” . Sob a aparência de um truísm o, essa
observação é fundam entalm ente problem ática. A ssim , para se
estudar os princípios filo só fic o s do direito p o lítico m oderno, é
necessário precisar com o m aior rigor possível qual é a acepção
da “m odernidade” política.

2. A “ m odernidade” do direito político

Desenhar os contornos do m undo moderno é, tanto para o


filó s o fo com o para o historiador, um a tarefa incômoda. Se os
historiadores geralm ente estão de acordo em situar na prim eira
década do século X V II, até m esm o com o assassinato de H en­
rique IV em 1610, o nascim ento dos “ Tempos modernos” , os
filó so fo s são m u ito m ais indecisos. É verdade que são menos
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 5

ciosos do que os historiadores de um a datação precisa e que


buscam sobretudo os sinais que, iniciando um a ruptura com o
cosm ologism o do pensamento antigo e o teologism o do pensa­
m ento m edieval, anunciam preocupações ou um a sensibilidade
intelectual novas. Esses sinais só se deixam decifrar ao longo
de um a progressão h istó ric o -filo só fica cujo percurso devemos
refazer em etapas sucessivas.

A ) A s p rim ícias da v ia m oderna

Os prim eiros sinais da modernidade p olítica2, esparsos e


parcim oniosos, podem ser descobertos já no fin a l do século
X I I I na desconfiança com que alguns leigos, aliás isolados,
cercaram a filo s o fia de Santo Tomás. M as fo i no século X IV
que as obras de Duns Scot (1266-1308), de M a rs ílio de Pádua
(1275-1343) e de G uilherm e de Occam (1290-1349 pu 1350)
colocaram em novas vias a filo s o fia e, em particular, o pensa­
m ento político.
O franciscano Duns Scot, marcado, nas próprias ousadias de
sua especulação metafísica, pelo platonism o3 e pelo agostinianis-
m o político4, continuava a fazer da Cidade de Deus o modelo
puro e transcendente da Cidade dos homens e, afinal de contas,
dispensava pouca atenção à política, a não ser situando-a na sua
relação com a teologia. Em compensação, Guilherme de Òccam5 e

2. A respeito deste ponto pode-se consulter a obra de Joseph R . Strayer,


On the M edieval O rigins o f the M odem State (Princeton, 1970), trad, fir.,
Payot, 1979.
3. C f. E. G ilson , Jean Duns Scot, Introduction à ses positions fonda­
m entales, Paris, 1952.
4. C f. A rq u illière , L ’augustianism e p olitiq u e, Paris, 1934.
5. C f. L . Baüdry, L e philosophe et le po litiq ue dans G uillaum e de
Occam, Archives d ’histoire doctrinale et litté ra ire du M oyen Âge, 1939, X T V ;
G uillaum e de Occam, sa vie, ses oeuvres, ses idées, Paris, 1949-1950; C .
B ayley, The P ivo ta i Concepts in the P o litic a l P hilosophy o f W illia m o f
Ockham , The Journal o f H istory o f Ideas, 1949; P. A lfe ri, G uillaum e de
Occam, le singulier, Paris, 1989; C . Panaccio, Les mots, les concepts et les cho­
ses: la sém antique de G uillaum e de Occam et le nom inalism e d 'aujourd ’hui,
Paris, M ontreal, 1991.
6 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

M a rsílio de Pádua6 insistiram na independência da Cidade em


relação à Igreja e na autonom ia do princípio tem poral, que
contrapunham francamente à autoridade espiritual. Esse é, sem
dúvida alguma, o prim eiro sinal daquilo que seus contemporâ­
neos denominaram a via moderna. Contudo, embora fosse o p ri­
m eiro, esse sinal tem um significado flagrante, destinado, tanto
por seu princípio como por seus prolongam entos, a m od ificar
daí em diante a direção de qualquer meditação sobre a po lítica
e sobre a organização ju ríd ic a de que ela necessita.
Disseram de Occam, esse franciscâno de O xford apelidado
de Venerabilis Inceptor, que “ ele pode ser compreendido como
o teólogo que substituiu a m etafísica pela lógica” 7. Entretanto,
sua obra não se atém a isso, pois, não hesitando em se ju n tar ao
Im perador L uís da Baviera, tom ou o partido dele no conflito
que o opunha áo papa de A vignon a respeito da questão de sa­
ber a quem - à Igreja ou ao Im pério - pertencia a plenitud o
potestatis. A existência de um vínculo entre a teoria nom inalis­
ta desenvolvida pela lógica de Occam e seu pensamento p o líti­
co constitui um ponto de controvérsia entre os exegetas. N ão se
trata aqui de solucionar esse problem a. Entretanto, está claro
que, para Occam, falar de experiência v iv id a e, em particular,
v iv id a como experiência p o lítica, só é possível segundo a ló g i­
ca abstrata dos conceitos8; o que im porta de fato é encontrar na
comunidade dos homens a realidade concreta dos indivíduos9.
Ora, por um lado, como esta não pede nada à transcendência da

6. C f. G . de Lagarde, La naissance de l ’esprit laïque au déclin du


M oyen Âge, Louvain, Paris, N auwelaerts, 1946 (3“ ed.); A . Passerin d ’E n -
trèves, The M edieval C ontribution to P o litic a l Thought, N o va Y o rk , 1959; J.
Q u ille t, La philosophie p olitiq u e de M arsile de Padoue, V rin , 1970.
7. M . B astit, Naissance de la lo i m oderne, P U F , 1990, p. 242.
8. A “navalha de Occam” se aplica principalm ente às “entidades de
D uns Scot” , isto é, a um a linguagem conceituai com um a função meramente
operatória.
9. “ O nom inalism o tem um a solidariedade estreita com um a filo s o fia
p o lític a e social que afirm a que as preferências in d ivid u ais devem contar.” (J.
Largeault, Enquête sur le nom inalism e, Paris, Lou vain, Nauwelaerts, 1971;
cf. M . V ille y , L a genèse du droit su b je ctif chez G uillaum e de Occam , A r­
chives de philosophie du d roit, Sirey, 1964, t. X I, pp. 97-127.)
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 1

Natureza nem à transcendência de Deus como autor do m undo,


poderá abrir-se a v ia p e la qual se efetuará, depois de G rotius, a
politização do conceito teológico do Poder. Por outro lado, os
homens, por suas vontades singulares, se revelam opostos uns
aos outros e, nessa perspectiva em que se delineia a eventuali­
dade dos conflitos fratricidas dos quais Hobbes fará a própria
substância da condição natural dos homens, o individualism o
começa sua carreira.
Quando G uilherm e de Occam ensinava que a linguagem ,
não podendo expressar essências universais, é feita de sinais
ligados a representações individuais, tinha por objetivo mostrar
que só existem seres singulares. Sem dúvida, seu pensamento,
mesmo em seus pontos mais críticos, ainda não se havia livrado
inteiram ente dos hábitos m entais instaurados por Aristóteles e
Santo Tomás. Entretanto, isso não privava seu pensamento de
coerência nem alterava sua força inovadora. A ssim , Occam se
recusava a reconhecer qualquer naturalidade e qualquer teleo-
logia providencial na cidade dos homens: d izia que os homens
deviam , eles próprios, instaurá-la e construí-la. N a m edida em
que é o produto da ação e da história dos homens, ela não pode
ser pensada como um bem soberano. N um a perspectiva a rtifi-
cialista, na qual se pode perceber o poder dos indivíduos que
presidirão à construção convencional do Estado m oderno, a
Cidade se mostra, como indica o caráter autoritário dó Im pério,
m esm a quando ela não elude a sacralidade do Poder, como um
m al inevitável. D e fato, como o poder do príncipe não era, na
comunidade p o lítica, nada m ais do que um poder m ais forte do
que o dos indivíduos que a edificaram , a Cidade, privada de
qualquer ordem, transcendente ou im anente, é palco de oposi­
ções e de conflitos tanto entre os indivíduos e o príncipe como
entre os próprios indivíduos. E m todo caso, o im portante é que
a livre decisão da vontade dos indivíduos seja o princípio de
emergência da Cidade10,
Esse voluntarism o individualista quase exclusivo que, se-'
gundo Occam, na Cidade sobrepuja qualquer referência onto-

10. O nascim ento da Cidade provém no» ex speciali praecepto divino,


sed voluntate humana, sublinha Occam na Opus nonaginta dierum , cap. 88.
8 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

lógica, iria encontrar em M a rs ílio de Pádua um eco profundo no


qual - ainda que o paduano jam ais tenha aprovado seu “ colega
ocasional” - se pode ver acentuar-se a tendência para a via
m oderna. s

N o D efensor Pacis, que fo i publicado em Paris em 132411,


o paduano M a rs ílio não escondia sua hostilidade ao papado.
Sem dificuldade, condenava qualquer ascendência do poder
eclesiástico sobre o poder tem poral da comunidade c iv il e opu­
nha, de m aneira categórica, à autoridade de obediência teocrá-
tica, o m onism ô de um poder esséncialmente leigo. M a rs ílio se
situava assim, deliberadamente, no extrem o oposto do agosti-
nianism o p o lítico , cujos representantes, do século V I ao X I I -
os papas G regório M agno (papa de 590 a 604), Gregório V E
(papa de 1073 a 1085) e Inocêncio I I I (papa de 1198 a 1216) - ,
por um a distorção radical do pensamento de Santo A gostinho12,
haviam requerido a submissão do poder tem poral dos príncipes
ao poder espiritual dos papas. A teoria das “ duas espadas” , ex­
posta nos séculos V I e V II pelos papas G elásio e Gregório
M agno, era clara: aplenitudo potestatis pertence unicamente à
Deus; mas Deus dá aos dois poderes distintos do P on tífice - a
auctoritas - e do rei - a potestas - a m issão de fazer a ordem
divina triunfar neste m undo. Contudo, na história, as rivalid a­
des entre os príncipes, depois de Carlos M agno, enfraquece­
ram os poderes temporais, enquanto aumentava o poder da
Igreja. O episódio de Canossa, em 1077, constituiu a m ais pro­
funda hum ilhação que o papa G regório V II podia in flig ir ao
im perador da A lemanha, H enrique IV e a teoria das duas espa­
das fo i m odificada de m odo que o papado, com a auctoritas,
detivesse a potestas. Todavia, a resistência dos príncipes, em

11. M a rs ílio de Pádua, Defensor Pacis, tradução, introdução e comen­


tários de J. Q u ille t, V rin , 1968.
12. A C tvitas D e i, escrita entre 413 e 427 pelo bispo de H ipona, Santo
A gostinho (354-430), é um a resposta aos pagãos que im putavam ao C ris­
tianism o a responsabilidade da decadência do Im pério Rom ano. A Cidade ter­
restre, d izia Santo Agostinho, devia olhar para o Céu e se elevar para a Cidade
de Deus.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 9

m eio às oposições conjugadas da Igreja e dos senhores feudais,


ensejava práticas jurídico-adm inistrativas que favoreciam a
tendência de se construir um “poder real” no qual se esboça­
vam os prim eiros traços da soberania13. Nesse contexto com ­
plicado, M arsílio de Pádua, a fim de defender a paz, denunciava
os abusos do sacerdócio cristão e atacava as pretensões desme­
didas dos “bispos de Rom a” , o que o levava não só a pleitear o
poderio do im perador da Alem anha contra a teocracia romana,
mas tam bém a delinear, no próprio seio do C ristianism o, o per­
f i l de u m Estado leigo.
A gindo assim, M a rs ílio de Pádua, que, em sua argumenta­
ção pro et contra, utilizava amplamente A p o lític a dé Aristóteles
e a teoria tom ista, certamente ainda não era um “m oderno” .
M as, embora considerasse que um a sociedade po lítica é um a
comunidade natural, na qual compete a um a pars principans
(um príncipe, in d ivid u al ou coletivo) legislar, adm inistrar e ju l­
gar, m esmo assim ele declarava que a p lenitud o potestátís de­
v ia ser reconhecida ao rei (e não ao papa). O reconhecimento
de um a ordem sociopolítica independente da ordem eclesiástica
abria, assim, o cam inho para a concepção do Estado moderno,
cuja soberania logo será apresentada como a “ form a” ou a “ es­
sência” . Contudo, será preciso que se passem m ais de dois sé­
culos para Jean B pdin elaborar um a teorização desse conceito
capital da modernidade política. A lé m disso, será preciso, de um
lado, distinguir sua obra doutrinária da realidade p o lítica e, do
outro, situar sua doutrina em seu contexto filo só fic o próprio, no

13. A respeito desse período com plexo, cf. O . von G ierke, Les théories
p olitiques du M oyen Âge, trad. J. Pange, Paris, Tenin, 1914: “A la recherche
de la souveraineté” , pp. 113-20; M arcel D avid , La souveraineté et les lim ites
juridiq ues du pouvoir monarchique du IX e au X V e siècle, Paris, D a llo z, 1954;
H . Quaritsch, Staat und Souveränität, Frankfurt, Athenäum , 1970; Sou­
veränität-Entstehung und Entw icklung des B egriffs in Frankreich und
Deutschland vom X III Jh. B is 1806, B erlim , Duncker und H um boldt, 1986; E.
K antorow icz, Les deux corps du ro i, trad. fr., Paris, G allim ard, 1989; O liv ie r
Beaud, La puissance de l 'É tat, Paris, P U F, 1994; prim eira parte, capítulo pre­
lim in a r: “L a souveraineté ante-étatique ou la n otio n m édiévale de souverai­
neté” , pp. 35-46.
10 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

qual se m esclam a sólida tradição naturalista e a visão ju ríd ic a


nova de um Estado adm inistrativo de caráter centralizador.

É por isso que os “ sinais” da via m oderna, que se deixam


decifrar em seu traçado ainda num pontilhado m uito tênue, só
devem ser apreendidos e interpretados com in fin ita prudência.
É verdade que as concepções m ais tradicionais fic a m divididas
com o “ golpe da crítica occamista” 14 e trincadas pelo sentido
do laicism o do paduano, de m odo que se exerce um a enorme
força abaladora sobre o edifício teológico-político do pensamen­
to m edieval. M as seria particularm ente temerário isolar de seu
contexto doutrinário os argumentos polêm icos utilizados por
G uilherm e de Occam e M arsílio de Pádua, bem como separá-los
da realidade po lítica dos séculos atormentados a que perten­
cem. Seu enraizamento nas filo so fia s de Aristóteles e de Santo
Tomás e, m ais ainda, a marca do direito romano e do direito
germânico são tão fortes nas análises e argumentações, nas quais
se podem descobrir os indícios prenunciadores da modernidade,
que é preciso renunciar a um a decifração anacrônica na qual se
desenharia o “ desencanto com o m undo” : o Príncipe c iv il con­
tinua sendo, mesmo nos textos de M a rs ílio de Pádua, “m inistro
de Deus” ; o Estado é apresentado como cristão e os cidadãos
são seus “ fié is ” . Portanto, ainda que a teocracia esteja abalada,
ainda não chegou a hora em que a p o lítica poderá prescindir de
um horizonte teológico. O “m ito da Igreja prim itiva” continua
m uito forte nesses séculos em que se percebem os prim eiros
m ovim entos de um a mutação filo s ó fic a da instituição política.
Por conseguinte, e m ais “ o esboço de um a doutrina conciliar”
que se encontra na obra do paduano, aliás concebida explicita­
mente para “ resolver os problemas do tempo presente” .
Se, nos anos que se seguiram, pesquisarmos, por exem plo,
em John W y c liff, encontraremos nele a mesma am bivalência:
na mesma época em que São Gregório M agno defendia a dou­
trina universalista da obediência passiva ao rei, saudado como
“vigário de Deus” , W y c liff pregava, justam ente contra o u n i-

14. Lagarde, op. cit., V , p. 86.


CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 11

versalism o do poder da Igreja, o particularism o “nacional” do


poder do rei. Nesse duplo m ovim ento, em que a respublica
christiana iniciava seu declínio, enquanto a soberania dos reis
tendia a se afirm ar em suas nações, encontram-se as justaposi­
ções, a sedimentação, até mesmo a mescla de idéias tradicio­
nais e de intuições inovadoras. Portanto, não se deve exagerar
a “modernidade” dessas visões políticas em que subsistem os
parâmetros do pensamento político m edieval. Encontramos ne­
las, mesmo no século X I V apenas algumas prim ícias da via mo­
derna; ainda assim, só as encontramos escavando a espessa
camada de noções teológicas no m eio das quais estão enterradas.
A lé m disso, elas estão impregnadas de rem iniscências rom a-
nistas, através das quais as expressões respublica ou ju s p u b li-
cum não se reportam ao Estado, pelaboa e sim ples razão de que
a sociedade p o lítica de então não é um Estado15. Nessa época,
os termos “político” e “ estatal” não são sinônim os, como ocorre
corn os “modernos” e, sob m uitos aspectos, ainda conosco. A s­
sim , poder-se-ia dizer dos doutrinadores e dos legistas do século
X IV , descartando-se todos os m atizes, o que se disse de G u i­
lherme de Occam. E m suas obras, propunham um “emaranhado”
com plexo de elementos dispersos cuja significação ambivalente
- Occam é “ escolástico atrasado para uns, pré-reform ador para
outros” 16 - não deixa de ter algo de enigm ático.
A ssim , parece-nos bem d ifíc il afirm ar de m odo peremptó­
rio que, “já no in íc io do século X IV , ficara evidente que o
Estado soberano seria a estrutura preponderante na Europa oci­
dental” 17. Em bora sejá exato que a emergência da po lítica m o­
derna coincide com o reconhecimento da soberania estatal, é
preciso lem brar que ela só se deu ao longo de um encaminha­
m ento d ifíc il e se efetuou em nascimentos sucessivos.

15. C f. Jhering, L 'esprit du d ro it rom ain, trad. ff., reimpressão F o m i,


B olonha, 19 69,1.1, pp. 209-10.
16. Jean Gaudemet, B ulletin critique, in Revue de d ro it canonique, U n i­
versité dé Strasbourg, 1964, pp. 277 ss.
17. Joseph R . Strayer, Les origines médiévales de l ’É tat moderne (1970),
trad. citada, p. 85.
12 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

B ) Os difíceis cam inhos de acesso


à m odernidade ju ríd ic o -p o lític a

N o Ocidente p o lítico , os séculos X I V e X V correspondem


aos períodos agitados da Guerra dos Cem A nos (1337-1453),
que não foram m uito propícios à elaboração de novas teorias
político-jurídicas. Sem dúvida, pode-se observar que na França,
desde F ilip e , o B elo, e seus legistas, a potência real tendia a se
tom ar absoluta; também que, logo depois da derrota de Poitiers,
em 1356, a “ Grande ordonnance” , pela qual Robert Lecocq
apresentou ao d e lfim Carlos as queixas e petições dos depu­
tados aos Estados Gerais, tratava, sob a influência de Étienne
M arcei, da administração do reino, do papel dos Estados, da re­
sistência aos abusos do Poder etç., o que, se essa ordenação
tivesse sido aplicada, teria aproxim ado o m odelo governamen­
tal francês daquele que a M agna C arta de João Sem Terra ha­
v ia estabelecido na Inglaterra em 1215: assim como o Parla­
m ento representava a nação inglesa, tam bém os Estados Gerais
teriam , perante o rei, representado a nação francesa. M as as
intrigas entremeadas de assassinatos, a guerra c iv il, a insurrei­
ção camponesa, os banditism os de todo tipo e logo, após o fra­
casso de Étienne M arcei, o reinado desastroso de Carlos V I,
não eram m uito convidativos, em m eio às ruínas causadas pela
Guerra dos Cem Anos, a um a reflexão filo s ó fic a sobre a p o lí­
tica e sobre o direito que estrutura suas instituições e rege seu
funcionam ento. A s coisas não iam m uito m elhor na Inglaterra,
onde o reino ia de crise em crise: crise social, Peste Negra em
1348, insurreição popular em 1381, deposição do rei Ricardo I I
em 1399, derrota fin a l na Guerra dos Cem A nos... A in d a por
cim a, o m undo ocidental era então, em seu conjunto, v ítim a de
epidemias que dizim avam as populações e im plantavam o
m edo; a Igreja era sacudida por inúm eros escândalos e a cris­
tandade se desmembrava; os conflitos entre os príncipes se
m ultiplicavam ; a crise econôm ica provocava um a recessão ca­
tastrófica... É verdade que, na França, os reis Carlos V H (que
reinou de Í4 2 2 a 1461) e L u ís X I (que reinou de 1461 a 1483)
deram in íc io a um a reorganização institucional e a um a refor­
m a financeira que constituíram um passo decisivo para a u n i-
CONSIDERAÇÕES PR ELIlklN A R E S 13

dade do reino e, ao mesmo tempo, para o absolutism o do Poder;


na Inglaterra, os prim eiros Tudores e, na Espanha, Fernando e
Isabel consagraram a autoridade dos monarcas; na Itá lia do
século X V deu-se um reerguimento econôm ico. E m todo caso,
no reino da França o sentimento nacional, que fora despertado
pela vitó ria de B ouvines, em 1214, se fortaleceu com firm eza,
e a idéia de pátria (que poderia ser sim bolizada pelo heroísm o
exem plar de Joana d ’A rc) logo correspondeu ao ideal de um a
unidade nacional sobre o qual se começava a pensar que era
engrandecedor servir de form a quase religiosa: p w p a tria m ori.
A criação de exércitos permanentes e a m ultiplicação dos o fi­
ciais reais traduziram a orientação cada vez m ais n ítid a para
um governo centralizador. Entretanto, embora o m undo ociden­
tal fosse, inegavelm ente, nessa época palco dè transformações,
era então bem d ifíc il extrair da prática p o lítica um a “ doutrina”
coerente do direito político , quer porque ela se apoiava na rea­
lidade histórica para ressaltar as linhas diretrizes dela, quer
porque, aõ contrário, elaborava um programa de idéias que de­
veria ser transcrito para os fatos. E m conseqüência, os p rim ei­
ros sinais da “modernidade” , que despontam, como vim os, nas
teorias políticas do século X I I I , não parecem, por vo lta do sé­
culo X V nem se intensificar nem ser tematizados. A filo s o fia
p o lítica e a doutrina ju ríd ica estão adormecidas.
E m compensação, o desenvolvim ento delas no século X V I
será im enso e, embora ele não fosse suficiente para um desa­
brochar de um a teoria “ moderna” do direito político, marcou
seu aparecimento ou prim eiro nascim ento18. Esse prim eiro
nascimento, que é tuna vitória, ao m esmo tempo, contra o teo-
logism o m edieval e contra a m entalidade feudal, fo i, como ve­
remos, d ifíc il. E le se efetuou em várias fases, dominadas su­
cessivamente pelas vozes, no século X V I, de M aquiavel e de
B odin, depois, no século X V II, pela de Hobbes. Suas obras
exam inam o problem a do direito p o lítico com ênfases m uito '

18. N ão achamos que, ao dizer isso, estamos traindo o pensamento de


Pierre M anent, em sua obra Naissances de la p olitiq u e moderne, Paris, PaÿOt,
1977.
14 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

diferenciadas. N ão obstante, elas se completam para abrir, m u i­


tas vezes em m eio a hesitações filo só fic a s perturbadoras, os
cam inhos da m odernidade ju ríd ico -p olítica.

O momento m aquiavélico19

É sob esse pórtico m aquiavélico20 que se m anifestam as


prim ícias da modernidade p o lític a surgidas tim idam ente no sé­
culo X n i. “ O fundador da filo s o fia p o lítica m oderna é M a -
quiavel” , escreveu Leo Strauss. “E le tentou efetuar, e de fato
efetuou, um a ruptura com a tradição da filo s o fia p o lític a em
seu conjunto.” 21 Com parável a Cristóvão C olom bo avistando o
“ N ovo M und o” , o que descobriu fo i, para a m oral e para a p o lí­
tica, um “novo continente” . Arribando não sem dificuldades a
essas margens novas, de fato M aquiavel contribui m esm o para
cinzelar a essência da modernidade. Esse “ trabalho da obra”
não deixa de ter pontos obscuros. M as, no fin a l das contas, a
especificidade do “moderno” encontra suas prim eiras marcas
na ruptura consumada por M aquiavel, dessa vez para valer,

19. U tilizam os aqui a expressão de J. G. A . Pocock sem com isso adotar


a tese, brilhante mas altam ente discutível, que defende em seu liv ro Le
moment m achiavélien (1975), trad, fir., P U F, 1997.
20. N ic o lo M a cch iavelli (1469-1527) fo i secretário dos B orgia em F lo ­
rença de 1498 a 1512. Nesse ano fo i despedido pelos M édicis, que retom aram
aò trono. N a sua aposentadoria forçada em San Casciano, escreveu em 1513
o D e principatibus (O Príncipe) e, paralelam ente, sem publicá-los, os D is­
cursos sobre a prim eira década de T ito L iv io , concluídos em 1519. A pedido
dos M édicis, compôs igualm ente em 1519 um Discurso sobre a reform a do
Estado de Florença. N ão poderíam os tam pouco deixar passar em silêncio
A arte da guerra, as H istórias florentinas e a Vida de Castruccio Castrücani.
A respeito de M aquiavel, cf. Ch. Benoist, Le machiavélism e, 3 vo l., Pa­
ris, P lon, 1907-36; Georges M o ün in , M achiavel, sa vie, son oeuvre, avec un
exposé de sa philosophie, Paris, C lub Français du L ivre , 1957; Claude Lefort,
Le travail de l'oeuvre. M achiavel, G allim ard, 1972; Pierre M anent, Naissances
de la philosophie p olitiq u e moderne, cap. I, Payot, 1977; J.-G . Fichte, M a­
chiavel, trad, fir., Payot, 1977; Leo Strauss, ver a nota seguinte.
21. Leo Strauss, Q u’est-ce que la philosophie politique? (1959), trad, fr.,
P U F , 1992, p. 44; cf. igualm ente Leo Strauss, Thoughts on M acchiavelli,
G lencoe, Illin o is , 1958.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 15

com o universalism o teológico que caracterizava o pensamen­


to p o lítico m edieval. N em por isso seria exato concluir que
M aquiavel é o filó s o fo do direito p o lítico moderno. Todavia,
nele há m ais do que os sinais precursores da m odernidade ju r í­
dico-política22: o secretário florentino abre corajosamente a
passagem entre O político, cuja essência era buscada pela filo ­
so fia clássica, na v ia traçada por Platão e Aristóteles, e A p o lí­
tica, cuja existência ele escruta no Estado em v ia de nascer e
de organizar suas próprias instituições. Nessa passagem se efe­
tua o prim eiro nascimento da filo s o fia p o lítica moderna.
Esse prim eiro nascimento não é nada menos do que um a
revolução. M aquiavel não pede m ais nada à tradição clássica,
nem à filo s o fia etem itária dos A ntigos, já que é a p o lítica em
seu devir que ele disseca; nem ao horizonte teológico-político
da escolástica m edieval, já que, em seu realism o, ele se prende
à m aneira pela qual os homens cumprem a tarefa que lhes cabe
de governar o Estado e de fazer a história. O que J. G . A . Po-
cock denom ina “ o m om ento m aquiavélico” marca, contraria­
m ente à tese que defende, o despertar de um a visão nova na
historiando direito p olítico.
Discutiu-se m uito sobre a questão de saber em que obra de
M aquiavel reside a verdade da palavra m aquiavélica e como se
deve entender essa verdade: assim, Rousseau, que m editou
m u ito sobre as lições de M aquiavel nos Discursos sobre a p r i­
m eira década de T ito L ív io , se perguntava, segundo A . G e n tili
e Spinoza23, se não conviria ler O p rín cip e24 como “ o liv ro dos
republicanos” 25. N o fundo, isso não tem m uita im portância.
Q ue M aquiavel tenha sido ou não tenha sido “ republicano” , e

22. C f. M aurice M erleau-P onty, em Signes, N ota sobre M aquiavel,


G allim ard, 1960, p. 267.
23. Spinoza, Tractatuspoliticus (1677), V , § 7 ; segundo Pierre B ayle,
D ictionnaire historique e t critique, art. “M achiavel” , n. 1, essa mesma inter­
pretação era dada por A lberico G e n tili no D e legationibus, L ib . D I, cap. 9.
24. É ú til recordar que o títu lo da obra é D e principatibus: Os p rin c i­
pados.
25 Rousseau, Le contrat social, liv . I II, cap. V I, in B ibliothèque de la
Pléiade, t. D I, p. 409: “F ing ind o dar lições aos reis, ele deu grandes lições aos
povos. O p rincipe de M aq uiave l é o liv ro dos republicanos.” N o M anuscrit de
16 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ainda que tenha sido u m adm irador fervoroso da república ro­


m ana, o im portante é que ele não deita as raízes da sua filo s o ­
fia dos “principados” e do “ Estado” - a palavra aparece pela
prim eira vez em sua pena com o sentido moderno que lhe atri­
buím os - nem em um universalismo cosmológico nem nò ecume­
nism o da cristandade. O conhecimento que tem das antigas re­
públicas e dos principados do seu tempo ensina-lhe a indepen­
dência, até a autonom ia da esfera p o lítica, em sua organização
e em seu funcionam ento. Entendamos nisso, de m aneira estrita,
que a unidade dessa sociedade p o lítica que elé chama de “ Es­
tado” resulta de um ato instituinte pelo qual o legislador d e fi­
ne os p rin cíp io s do exercício do Poder. À secularização do pen­
samento p o lítico , m uito m ais radical segundo M aquiavel do
que em precursores como M arsflio de Pádua, estabelece um a cisão
total entre a Cidade dos homens e a Cidade de Deus. C onsi­
derando que a po lítica pertence a esta terra, ele não procura, a
exem plo do idealism o platônico, os fundamentos m etapolíticos
da po lítica; tampouco lhe atribui, a exem plo de Santo Tomás,
um a fonte divina. A o recusar qualquer fundação transcenden­
tal da organização e da vid a políticas, ele já envereda pela v ia
que conduz ao “ fim da m etafísica” e prepara o advento de um a
“ ciência p o lítica” 26. Se não é irreligioso, é sem dúvida anticris-
tão: sem jam ais falar do pecado o riginal ou de um a natureza
hum ana que carrega os estigmas da Queda, ele vê no cristianis­
m o a religião que comete o erro de confundir bondade e fra­
queza, virtude e hum ildade. E le supõe, ao contrário, que existe

Neuchâtel 7842, fó lio 52, pode-se 1er: “ M aquiavel era um hom em de bem e
um bom cidadão; mas, ligado à casa dos M édicis, era obrigado, na opressão
de sua pátria, a disfarçar seu am or pela liberdade.. (esse texto fo i acrescen­
tado à edição de 1782 do Contrat so c ia l). N o m esmo sentido, cf. D iderot, arti­
go M aquiavelism o da Encyclopédie, t. IX .
Esse julgam ento é retomado por Léo Strauss em Ihoughts ou M acchiavelli,
1958, p. 382: “ O liv ro de M aquiavel sobre os principados e seu liv ro sobre as
repúblicas são ambos republicanos: o elogio das repúblicas que se exprim e no
liv ro sobre elas nunca é contrariado por um elogio dos principados em qual­
quer u m dós dois livros” ; cf. tam bém G . M o u iiin , op: c it., sobretudo 5? parte.
26. A lexandre Passerin d’Entré ves, La notion de l ’É tat (1967), trad. fr.,
Sirey, 1969, p. 53.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 17

no hom em um a força viva e agressiva que se chama v irtú e que


é totalm ente estranha à retidão bíblica. Contrariam ente ao ca­
tolicism o m edieval, louva a força e a audácia das “ grandes
feras” que carregam em si o sobre-humano. Considera portanto,
como assinalará Fichte, que “ os homens são maus” - ou, pelo
menos, que há neles suficiente m aldade para que recorram aos
estratagemas, aos ardis e às m entiras - e, sobre essa base antro­
pológica em que o p e rfil do hom em comum, sempre m edíocre,
não é m uito elogioso, pode exaltar a tendência natural que pos­
suem aqueles que governam a se fazerem antes temer do que
amar pelo povo dentro do Estado e a querer, no exterior, apesar
da oposição geral, am pliar o Estado. N u m m undo sem ideais e
sem valores parecido com um a selva, esses são os m eios m ais
seguros para que um príncipe ou, da mesma m aneira, um a R e­
pública, firm e cada vez m ais sua potência não sem se erguer,
num gesto tão belo quanto dram ático, contra a Fortuna, senho­
ra do destino. N o caso, o im portante é ter êxito - é preciso pre­
servar o Estado, fazê-lo perdurar aum entando-lhe a grandeza.
E m consequência, é total a ruptura entre a p o lítica e a
m oral consumada por M aquiavel. N em Fichte nem H egel se
enganaram quando viram em sua obra o princípio de um a p o lí­
tica de potência que prefigura a le i de concorrência v ita l que
regeu a RecãpoiitikP. Hegel, em Constituição da Alem anha, su­
b linh o u de m odo m uito especial que a arte p o lítica m aquiavé­
lica, longe de se fundar num ideal e de ensinar o que deve ser,
tem como referência principal - no entanto sem qualquer cinis­
m o o direito do m ais forte ta l como ele se exprim e na própria
realidade da H istória. D e fato, segundo M aquiavel, a relação da
p o lític a com a guerra é inevitável - a guerra é o m eió de tom ar
o póder e â arte de cònservá-lo. Segundo ele, a guérra nem
sequer é, como será segundo Clausew itz, “ o prosseguimento
da p o lític a por outros m eios” ; está inserida, expressa ou laten­
te, na própria realidade política. Faz parte, de m aneira substan­
cial, do direito p o lític o e, como tál, é a trama da história - de -
um a história para a qual o secretário florentino sabe m uito bem

27. C f. o artigo de A . E lkan, “O descobrimento de M aquiavel na A le ­


m anha no in íc io do século X I X ”, H istorische Zeitschrift, 1919, pp. 427-58.
18 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

que, durante quatorze anos, contribuiu com suas instruções, suas


missões e suas legações, de um a história que ele tam bém sabe
que, no andamento dos assuntos públicos, significa o próprio
destino de um povo. ,
Dessa maneira, segundo M aquiavel, o espírito do direito
p o lítico e o sentido da história são essencialmente deste mundo.
É por essa razão que não hesita em extrair de P olíbio a idéia de
um ciclo eterno - “o eterno retom o” ? - em que as diversas fo r­
mas de governo se sucedem e vão se repetindo. Isso não quer
dizer que M aquiavel retom e aos A ntigos, mas que a po lítica
sempre apresentou, apresenta em seu tempo e apresentará inces­
santemente aos homens os mesmos problemas concretos; que,
portanto, a arte política tem - e tem apenas - de parte a parte, um a
vocação prática que compete ao direito inserir em seu dispositivo
norm ativo. A evidência dessa vocação prática culm inará, pensa
ele, quando os príncipes da Itália, depois de expulsar os bárbaros,
se unirem para form ar uma grande pátria28. Por isso não é de es­
pantar que O príncipe, longe de conter longas tiradas m etafísicas
ou profissões de fé ideológica, se lim ite , com um à tonalidade
absolutamente técnica, a enunciar regras para o êxito p o lítico .
N a autonom ia dá ordem p o lítica assim proclamada, na d i­
mensão realista atribuída ao Poder, na preem inência da arte de
governar, bem como na concepção praxiológica da p o lític a e
de suas instituições, aloja-se a indiscutível novidade do olhar
que M aquiavel lança sobre a coisa pública. Essa novidade se
concentra na invenção da palavra Estado e na conotação qüe
logo lhe é atribuída num registro que, rejeitando qualquer ideal
contem plativo, situa o seu conceito no pólo oposto, conjunta-
m ente, do idealism o antigo, do Cristianism o, do estoicism o e,
de m aneira m ais geral, de qualquer m oralism o. D e fato, sob a
pena ,de M aquiavel, ainda que sem um a perfeita constância, a
palavra Estado assume um a conotação verdadeiramente “m o­
derna” . A . Passerin d ’Entrèves recorda de m odo judicioso29 que

28. “A salvação da pátria é o objetivo e a justificação do Estado” , es­


creve Á . Passerin d ’Entrèves, op. c it., p. 220. C f. tam bém G . M o u n in , op. c it.,
p. 205.
29. Á . Passerin d ’Entrèves, op. c it., p. 40.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 19

essa palavra já não tem apenas o sentido do la tim vulgar em ­


pregado por Justiniano na expressão statum reipublicae susten-
tamus; nem sequer o que encontramos no D igesto, em que o •
ju s publicum é d efinid o como quod a d statum rei romanae
speetat. Desde a prim eira frase do P rín cip e, o term o Estado,
sem ser d efinido de m odo rigoroso, designa um a configuração
p o lític a que im p lica a organização da relação de forças entre o
comando e a obediência: ele caracteriza, na sua “verdade efeti­
va” , o “novo principado” que M aq uiavel sonda. O surgimento
dessa conotação, até então inédita, do conceito de Estado marca,
na esfera política, o advento do espírito “m oderno” . “ M aquia­
vel” , escreve L eo Strauss, “ m o d ifico u radicalm ente não só a
substância do ensino p o lítico , mas também seu estilo.” 30 Por
essa transformação profunda, ele é u m “ descobridor” . Iniciando
um a “ m udança radical” na m aneira de pensar a p o lítica e suas
regras, ele seria, continua L . Strauss, “ o prim eiro filó s o fo a
tentar forçar o acaso a fim de dom inar o futuro, engajando-se
num a campanha de propaganda” . C om essa “propaganda” , que
não se destina, como a propaganda de hoje, a captar auditórios
fascinados, M aquiavel desejava “ convencer, e não apenas per­
suadir ou intim idar. F o i o prim eiro de um a longa série de pen­
sadores modernos a esperar provocar novos modos de vid a e
novas ordens políticas (nuovi m odi e ord ini) por m eio da exten­
são das luzes. A s luzes — lucus a non lucendo - começam com
M aquiavel” 31.
• A lu z m aquiavélica, contudo, só ilu m in a a prim eira das
“ ondas da m odernidade” . M esm o assim ela fez que se form as­
sem espessas nuvens sobre a Itá lia “armada” , “ despojada de
padres” e “ unificada” . N ão tardaram a desabar tempestades
carregadas de críticas e de protestos. O pensamento do século
X V I não estava pronto para acolher bem o prim eiro nascimen­
to da modernidade ju ríd ic o -p o lític a . E le não compreendia bem
a dessacralização da p o lític a e, se bem que as perspectivas d e '
antropologização que se desenhavam não fossem inteiram ente

30. L . Strauss, Qu ’est-ce que la philosophie politique?, trad. citada, p. 48.


31. Ib id ., p. 50.
20 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

recusadas m una época em que se form ulavam indagações so­


bre “ a hum ana natureza” , m uitos autores, tão diferentes como
Erasmo ou G entillet, Thom as M ore ou L a B oétie32, sentiram
então como um opróbrio o vácuo m oral da po lítica e de sua or­
dem jurídica. N o m ín im o continuariam m u ito reticentes diante
do realism o da vontade de poder, que julgavam desonrosa.
Poucos pensadores ousaram seguir M aqüiavel pelo novo conti­
nente ao qual havia arribado. M esm o que se adm ita a existên­
cia de um “ m aquiavelism o de M ontaigne” 33, as novas idéias
estavam longe de ter causa ganha no pensamento do direito e
da arte políticos. N u m século em que os grandes descobrimen­
tos e os tum ultos religiosos preparavam mudanças profundas,
as inovações em m atéria de p o lítica e de direito ficaram m uito
lim itadas. O hum anism o cristão, m esmo abalado pela R efor­
m a, àindá dom inava amplárnente o m undo ocidental, de m odo
que a prim eira onda da m odernidade parece ter tido, em seu
tempo, pouca am plitude; D e m odo m uito especial, os legistas e
òs jurisconsultos não estavam m uito inclinados a fazer ecó às
regras dessa po lítica que declaravam, de m odo geral, “ de ferro
e de sangue” . É verdade que tendiam a refutar, cada vez com
m ais vigor, as práticas do feudalism o, e podem-se discernir em
seus textos as pequenas mudanças prenunciadoras da concep­
ção absolutista e centralizadora do Poder real qüe logo vão
contrapor a elas34. M as, impregnadas por m últiplas influências,
suas idéias nem sempre eram m uito claras: o direito romano
ainda estava m uito viv o , a herança escolástica não estava m or­
ta, o hum anism o cristão estava em plena atividade, a religião
reform ada ganhava terreno; às esperanças que se depositavám

32. Erasm o,A instituição do príncipe cristão, 1516; Thom as M ore, A uto­
p ia , 1516; L a B oétie, Discursos sobre a servidão voluntária, 1548; Innpcenti
G entillet, O anti-M aquiavel, 1576.
33. Arm a M a ria Battista, A lie origine dei pensiero p o lític o lib e rtin o :
M ontaigne e Charron, M ilã o , G iu ffrè , 1966.
34. Citem os, por exem plo, na própria época de M aqüiavel, Jean Fer-
rault, Insigna peculiaria C hristianissim i Francorum regni, 1520; Charles de
G rassaille, Regalium Franciae lib r i duo, 1538; B arthélem i de Chasseneux,
Catalogas gloriae m undi, 1546.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 21

num poder real centralizador, cujos sím bolos eram Carlos V e


Francisco I, se mesclavam, além dos remanescentes feudais, im ­
pulsos laicizantes, particularism os tradicionais e provincianos
e até, por vezes, esforços “nacionalitários” . Portanto, na p ri­
m eira metade do século X V I, em que o pensamento, pouco
“ filó s o fo ” , não se inclinava para a abstração e a teoria, é m uito
d ifíc il encontrar um a problem ática ju ríd ic o -p o lític a unitária e,
menos ainda, um a doutrina que m anifeste nitidam ente a reno­
vação da concepção do Poder35. A s perspectivas deviam m o d i-
ficar-se de m aneira sensível na obra de Jean B odin.

N a transição de duas eras: o direito


da República de Jean B odin

A obra de Jean B odin (1529-1596)36, sobre a qual costuma­


m os repetir que ela propõe, em 1576, nos Seis livros d aR ep ú -

35. A m aioria dos autores têm então a preocupação de g lo rificar o re i da


França. Então, sobre um fundo doutrinário que não tem nenhum a pretensão
filo s ó fic a e sobre o qual acum ulam referências aó direito rom ano e ao direito
canônico, com põem o inventário das prerrogativas reais; sobretudo ju nta m -
lhes com entários pro lixos, que salientam , com o entre os autores da Idade M é ­
dia, que o príncipe, “im perador em seu reino” , é a im agem de Deus na terra.
Pode-se, evidentem ente, assinalar que, ha m esm a época, Claude de
Seyssel e Charles D u M o u lin dão um a tonalidade p o lític a m ais m atizada
quando insistem sobre a necessidade de “freios” e de “moderações” para a
m onarquia. E m La G rand’ M onarchic de France (1519), Claude de Seyssel,
extraindo lições dos reinados de L uís X I I e depois de Francisco I e Henrique H ,
esboça um a sistem atização institucional da m onarquia moderada, na qual a
religião, a ju stiç a e a p o líc ia devem “regular e refrear o poder” . - Q uatro déca­
das m ais tarde, Charles D u M o u lin , em Traité de Vorigine, desprogrès et ex­
cellence du royaume et m onarchic des François, sublinha a im portância, no
reino, das leis fundam entais e dos regulam entos e sustenta que o poder real é
“m ais moderado do que absoluto” .
Entretanto, se essas obras são o prelúdio do futuro “galicism o” , conser­
vam mesmo assim m uitas idéias provenientes, através dos glosadores, do
direito rom ano e da escolástica. Os sintom as de m odernidade são, portanto,
m uito tênues entre os legistas da tradição ju ríd ic a francesa que, basicamente,
constroem sua concepção da m onarquia com base no m odelo divin o. A res­
peito desse ponto, cf. O. Beaud, La puissance de 1’É tat, op. c it., p. 41.
36. A respeito de Jean B odin, cf. H enri B audrillart, Jean Bodin et son
temps. Tableau des theories politiques et des idées économiques au X V Iesiè -
22 OS P R IN C ÍP IO S f il o s ó f ic o s d o d ir e it o

blica, a prim eira teoria da soberania, pode parecer constituir


um a exceção, na m edida em que form ula um a verdadeira pro-
blem atização do direito da República. A ssim como M aquiavel
na Itá lia , B odin, de fato, percébeu na França os defeitos que
ífa g iliza va m dramaticamente os reinos do seu tempo: ter por
horizonte, no século X V I, ou 0 im pério de Rom a ou a Res
p u b lica 37 christiana lhe parecia m uito insólito, pois essas duas
form as políticas haviam desaparecido. Então, Jean B odin,
“p o lítico ” antes de ser filó s o fo da política, quis criar a doutri­
na que p erm itiria à m onarquia da França consolidar suas bases
e promover a ordem e a justiça. Nesse empreendimento, sente
um a verdadeira admiração pela obra do florentino, ainda que,
em diversos pontos, não oculte sua discordância. Recusa-se a
buscar no “ constitucionalism o” m edieval os elementos suscetí­
veis de assentar solidam ente a Res pub lica. N a nova problem á­
tica que enuncia, indaga-se sobre a origem do Poder e as for­
mas do “m elhor regime” , questões tradicionais desde Platão.
Apaixonado por história e utilizando de bom grado um a con­
duta comparatista38, constatou que, num a sociedade que não
seja a sociedade doméstica, a existência de um p o d er p ú b lico é
um a necessidade de fato. A interrogação que form ula quando
busca a especificidade desse poder é verdadeiramente inédita
até ele. E n fim , para responder a essa pergunta, cria um apara-

cle, Paris, 1853, A alen, 1964; Roger C hauviré, Jean Bodin, auteur de La Ré­
publique, Paris, 1914; Jean M oreau-R eibel, Jean Bodin et le d ro itp ub lie com­
paré dans ses rapports avec la philosophie de l ’histoire, V rin , 1933; H elm ut
Quaritsch, Staat und Souveränität, 1.1: D ie Grundlagen, Frankfurt, 1970, pp.
243-394; Sim one G oyard-Fabre, Jean Bodin et le d ro it de la République,
P U F , 1989; Julian H . F ranklin , Jean Bodin et la naissance de la théorie abso­
lutiste (1973), trad. fr., P U F, 1993. - Obras coletivas: Actes du C olloque in­
ternational Jean Bodin à M unich, M unique, 1973; Actes du C olloque inter­
d isciplinaire d ’Angers, Angers, 1985; Jean B odin: nature, histoire, d roit et
p olitiq u e (ed. Y . Ch. Zarka), P U F, 1996. - Para um a b ib lio g rafia m ais com ­
pleta, indicam os nossa obra consagrada a Jean B odin. '
37. C f. J. F ra nklin , op. c it., pp. 12 ss.
38. C f., além da obra clássica de M oreau-R eibel, J. Franklin, Jean
Bodin and the X V Ith Century R evolution in the M ethodology ofLaw and H is-
tory, C olum bia U niversity Press, 1963.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 23

to conceituai que dá a um vocabulário já usual um alcance se­


m ântico novo e, precisamente, “ m oderno” .
Seus talentos de ju rista levaram B odin39 a elaborar, p ri­
m eiro em 1566, no M ethodus ad fac ilem historiarum cognitio-
nem, depois, dez anos m ais tarde, nos Les six livres de la R é-
publique (O s seis livros da R epública), um a teoria da “potência
soberana” . Esta é, diz ele, a “ form a” ou a “ essência” da Repú­
blica. Com o tal, é tão diferente da soberania m edieval que,
repelindo o feudalism o e o sacerdocismo, acaba por se opor a
ela. Essa mutação profunda da idéia de soberania não é, evi­
dentemente, alheia nem ao m ovim ento p o lítico que, no curso
dos séculos X I V e X V provocou a centralização do poder real
e determ inou a autoridade deste sobre as instituições do reino,
nem às guerras civis e religiosas da época. M as a força e a o ri­
ginalidade da teoria de B odin não resultam apenas da cons­
ciência que ele tom a da insuficiência, na hora da crise, das
“prerrogativas jurídicas de que dispõe o rei pós-feudal” 40; ela
se deve sobretudo à ousadia intelectual com que passa do fato,
particular e contingente, ao conceito geral e necessário: “ R e­
pública” , escreve B o d in já na prim eira frase dos Seis livros da
República, “ é um governo reto de várias fam ílias e do que lhes
é com um , com potência soberana”41. Talvez seja, aliás, devido
a essa teorização de alcance geral que B odin fo i pouco com ­
preendido pelo monarca, acima de tudo atento à singularidade
da situação. Seja como for, é com B o d in que, pela prim eira vez
na história da doutrina política, o conceito de soberania conota
a essência da república: esse conceito não só define sua espe­
cificidade, distinguindo-a de qualquer outra comunidade, mas
a designa como Estado n o sentido m oderno da palavra, o que
quer dizer que faz dela um a entidade p o lítica cuja prerrogativa
já não é, como para os reis da Idade M éd ia, jurisd icio nal, mas
legisladora. Nesse ponto não há dúvida algum a de que B o d in

39..B odin estudou direito em Toulouse, onde predom inava a in flu ên cia
de A lc ia t, D u M o u lin e Cujas.
40. O . Beaud, op. c it., p. 49.
41. J. B odin, Les six livres de la République, É ditio n D u Puys, 1591, p. 1.
24 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

deu um grande passo na via m oderna tipicam ente francesa: na


encruzilhada da prática e da teoria, todas as suas análises - as
fundamentais da le i, da m agistratura, da cidadania, das quais
decorrem todas as outras - convergem para a racionalização ju ­
rídica do Poder na República. Esse procedim ento, que lhe per­
m ite sublinhar a indefectível unidade da soberania que caracte­
riza juridicam ente o Estado m oderno, é inteiram ente novo. A
esse respeito, pode-se então dizer que o espírito que preside ao
trabalho jurídico de B odin é análogo ao espírito que anim a o tra­
balho p olítico de M aquiavel. A partir daí, o Estado moderno en­
controu sua form a e sua m atéria ao m esmo tempo.
Contudo, o B odin filó s o fo é, sem dúvida alguma, menos
“m oderno” do que M aquiavel. Evitem os ver nisso um a regres­
são intelectual. A diferença entre os dois autores decorre so­
bretudo da textura própria do direito de que fala Bodin: a ordem
ju ríd ic a é, de fato, m ais rebelde às mutações revolucionárias do
que o tecido político que M aq uiavel exam inava reconhecendo
nele o lugar por excelência, devido a seu caráter conflituoso,
das rupturas e das mudanças radicais. B odin, por sua vez, fic a
dependente, sob m uitos aspectos, do pensamento dos legistas,
apegado à idéia romana da majestas im perial, e sua argumenta­
ção densa em gerai é impregnada de reminiscências da retórica
clássica. Maquiavel, què não tinha m uita preocupação com a espe­
culação teórica, extraía com m aior facilidade da carne da his­
tória os embriões de um a possível renovação política. M as so­
bretudo, enquanto o cinism o de M aquiavel empurrava arroja­
damente seu pensamento p o lític o , com o observarão Fichte e
Hegel, para o princípio positivo de um m undo novo ávido de
pragmatismo, Bodin, na virada de duas eras, mantém-se o filó so fo
da am bivalência: se, com sua teoria da soberania, B od in colo­
ca, como jurista, a pedra angular do Estado m oderno, centrali­
zador e adm inistrativo, ele conjuga, não sem paradoxos, essa
renovação da problem ática fundam ental das repúblicas com
temas m etajurídicos e m etapolíticos que pertencem à p h ilo so -
phiap erennis. A ssim , “ o governo de direito” da República não
é concebível, segundo ele, sem a obediência às “ leis de Deus e
da natureza” , que constituem o pano de fundo de sua constru-
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 25

ção doutrinária. Nesse ponto ele não padece de dúvida alguma.


A o contrário, sua certeza é total: Deus, em sua onipotência e
sua bondade, fez da Natureza o m odelo das Repúblicas. Por­
tanto, quando participa da corrente inovadora do hum anism o
renascentista, B od in conjuga, no direito p o lítico , a preocupa­
ção hum anista que o orienta para o pensamento m oderno com
um naturalism o profundo que colhe seu alento na m etafísica
tradicional na qual ele próprio é pautado pelo teologism o. N o
centro da obra, o m oderno conceito ju ríd ic o que B o d in tem da
soberania rege um a teoria da ju stiça que, inserida na suntuosa
e universal harm onia cósmica, não deixá de recordar os temas
musicológicos do Timeu. Quando, num a “ monarquia régia” , um
. “rei sábio” encarna a soberania, esta é comparável à dom inan­
te de um a escala diátônica à qual o N úm ero, por sua m agia
secreta, dá força e beleza. A ssim , a “ju stiça harm ônica” , como
o canto do m undo, reina no reino em que as dissonâncias se en­
trem eiam para compor os m ais perfeitos acordes. A política,
por suas estruturas jurídicas, é, como a m úsica por suas estru-
turas harmónicas, um hino à Natureza.
tfã o será d ifíc il convir que tais perspectivas são estranhas
aos horizontes da modernidade. A política, tal como a pensa
B odin, permanece m uito afastada, apesar dâ teorização da idéia
m oderna de soberania, dos artifícios râcionalistas que, nos sé­
culos que se seguirão, farão a glória da filo s o fia moderna. É
verdadè que, aò pôr fim à taum aturgia que enchia ó reino de
sím bolos e dé m istérios im penetráveis, B o d in orienta 0 Estado
para um ã nova concepção. M as, segundo ele, o direito da R e­
pública, quê é'um a ressonância da harm onia das esferas, não
èstá ainda separado, em razão de seus fundamentos m étapolíti-
cos, do cosm ólogism o governado, como quer a tradição, pela
“ grande le i de Deus e da Natureza” .
: A quilata-se assim o quanto, no século X V I, é d ifíc il con­
sumar-se a ruptura m ental que conduz ao direito p o lític o m o­
derno. E certo que M aquiavel e B odin, reconhecendo a seculá-
rização e a nacionalização do Estado, insistindo naqujlo que,
na República, é necessariamente público, salientando a d ife ­
rença entre a form a do Estado e a form a do Governo, enfati-
26 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

zando o im pério da le i, exterior ao direito natural etc., encam i­


nham a doutrina p o lítica para a concepção do Estado m oderno.
M as, se M aquiavel permanecia no lim ia r da modernidade ju r í­
dico-política deixando o m ovim ento da H istória marcar com
suas vicissitudes o exercício da potência do príncipe, B odin,
por sua vez, ainda não consegue pensar o direito p o lític o inde­
pendentemente dos valores da tradição m oral e não o concebe
sem um a referência fundam ental de natureza m etapolítica, o
que priva o Estado soberano de um a auto-suficiência autêntica
e, portanto, da independência de seu conceito. M esm o que a
república reta já não se desenhe no horizonte da respublica
christiana, ela continua tal que, para além da obediência dos sú­
ditos ao monarca, a obediência do monarca às leis da Natureza
desejadas por Deus conserva o valor de um a norm a fundam en­
tal. N em um instante B o d in se perguntã o que aconteceria com
a potência soberana se Deus não existisse.

Poder-se-ia pensar que cabe a H ugo G rotius (1583-1645)42


transpor o lim ia r da modernidade quando, em 1625, escreve o
fam oso preceito etiam si daremus Deum non esse43, que provo­
cou tempestades tão violentas. Entretanto, apesar da obstina­
ção com que tantos autores repetem que G rotius abriu a carrei­
ra do “ direito natural moderno” , sua “modernidade” só poderia
ser considerada com m uita circunspeção. Seguramente, não se
deve desconsiderar nem a ambição epistem ológica de sistem a-
ticidade nem a força racional das regras m etodológicas que
G rotius exprim e com clareza no começo de seu tratado D ire ito
da guerra e da paz. A s potências da racionalidade demonstra­
tiva é construtora que ele põe em ação antecipam o dom ínio
especulativo da razão, tal como o conceberão um pouco m ais

42. A b ib lio g rafia relativa á G rotius é im ensa. O essencial está reunido


in Peter Haggenmacher, G rotius et la doctrine de la guerreju ste , Paris, P U F,
1983.
43. H . G rotius, D e ju re b e lli acp ads, Prolegom ena, § 11; cf. em especial:
John Saint Léger, The “etiam si daremus ” o f Hugo G rotius, R om a, 1962; Gro­
tius et l ’ordreju rid iq u e international (C olóquio de Genebra, 1983), Lausanne,
Payot, 1985.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 27

tarde Descartes, Hobbes e Spinoza. O rigor analítico e sintéti­


co de sua lógica-dedutiva, que ele extrai da matemática, provém
sem dúvida de um pensamento liberado da retórica do discurso
e, por essa razão, já “moderno” . E m conformidade com sua pos­
tulação m etodológica e seus paradigmas operacionais, G rotius
elabora um a defesa da independência racional do direito. A lé m
disso, o jurisconsulto holandês encontra o fundamento do d i­
reito não m ais na natureza das coisas, mas na natureza racional
do hom em : o direito natural, d iz ele, pertence, a títu lo de d ic-
tamen rationis, à “natureza hum ana”44. D ito isso, G rotius não
cuida de elaborar um a filo s o fia do direito p o lítico moderno.
E le está, aliás, tão próxim o dos pensadores escolásticos45, que
costuma citar que a sociedade p o lítica - m esmo que, para rea­
lizá -la , os homens tivessem de recorrer a um acordo de tip o
contratual que im plica individualism o, voluntarism o e consen-
sualismo - funda-se, segundo ele, na sociabilidade, que éxxm ha-
bitus natural. Portanto, embora o sistema ju ríd ic o de G rotius
participe mesmo do m onism o racionalista de sua concepção do
mundo, traçando assim a via que conduzirá a W o lff e a Vattel, ele
estabelece apenas de maneira ainda incerta tanto o âm bito esta­
tal como os filosofem as portadores de um direito público cuja
“modernidade” dará categoricamente as costas à escolástica.
N ão obstante, era na obra de G rotius que Hobbes, seu con­
temporâneo, iria encontrar a consagração ju ríd ic a do in d iv i­
dualism o do qual faz a pedra angular de um a outra política,
que ele quér decididamente moderna.

C) O passo decisivo da m odernidade: o E stado-Leviatã

N a filo s o fia de Thom as Hobbes (1588-1679) dá-se o “ se­


gundo nascimento” da p olítica moderna: a obra do pensador de
M alm esbury marca de fato o surgimento de um direito p o lític o '

44. Ib id ., Prolegom ena, § 9.


45. A esse respeito, cf. o estudo m agistral de Peter Haggenmacher, op.
c it., P U F , 1983.
28 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

que, na República ou Estado ( Com monwealth), é concebido de


m aneira nova por um Poder unitário tão poderoso que parece
ser o “moderno M inotauro” . M as o Estado-Leviatã edificado
pela “ arte e indústria” , cujo princípio é a razão dos homens, é
também um gigante com pés de barro, cuja força é tam bém sua
vulnerabilidade.

O moderno M inotauro

Hobbes não só efetua na sua obra46 a cristalização dos f i-


losofem as políticos preparados laboriosam ente no século X V I
mas apóia a arquitetônica do Estado-Leviatã num a postulação
que abala deliberadamente “ a vã filo s o fia ” dos autores antigos
e, mesmo que a ruptura com o passado ainda lhe seja às vezes
d ifíc il, form ula os axiom as básicos de um pensamento do d i­
reito p o lítico que se encaminha, dessa vez de verdade, para o
horizonte da modernidade.
Neste capítulo prelim inar, destinado a delinear o contexto
no qual se inserirão os desenvolvim entos do direito p o lítico m o­
derno, não teria cabimento expor de m aneira exaustiva a filo ­
so fia de Hobbes, à qual, aliás, teremos de retom ar m uitas ve­
zes no prosseguimento deste estudo. Lim itar-nos-em os, por-

46. D a im ensa massa de com entários relativos a Hobbes, retenhamos


espeGialmente: Ferdinand Tõnniès, Thomas Hobbes: der M ann und der Denker,
L eip zig , 1912; Leo Strauss, The p o litic a lphilosophy o f Thomas Hobbes, 1936,
reeditado 1952 e 1961; Raym ond P o lin , P o litiq ue etphilosophie chez Thomas
Hobbes, P U F, 1953, reeditado 1977; D a v id P. G authier, The Logic o f Le­
viathan, O xford, 1969; Bernard W ilm s, D ie A ntw ort der Leviathan: Thomas
Hobbespolitische Theorie, B erlim , 1970; Sim one Goyard-Fabre, Le d ro it et la
lo i dans la philosophie de Thomas Hobbes, K lincksieck, 1975; Raym ond P o lin ,
Hobbes, D ieu et les hommes, P U F , 1981; M ic h e l M alherbe, Thomas Hobbes,
V rin , 1984; Y . Charles Zarka, La décision métaphysique de Hobbes, V rin , 1987.
M encionem os igualm ente as seguintes obras coletivas: Hobbes, p h i­
losophie p olitiq u e (editado por Sim one G oyard-Fabre), Cahiers de philoso­
p hie p o litiq u e et ju rid iq u e , Caen, 1983, n? 3; Thomas Hobbes: de la m éta-
physique à la p o litiq u e (editado por M . Bertm an e M . M alherbe), V rin , 1989;
Thomas Hobbes: La Ragione dei M oderno tra teologia ep o litic a (editado por
G . B o re lli), N ápoles, 1990; Le P ouvoir et le d ro it (editado por F . Tricaud),
Saint-Étienne, 1992; P o litic a e d iritto (editado por G . Sorgi), M ilã o , 1995.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 29

tanto, a indicar o que é, nela, o sinal, deliberado e flagrante, do


surgimento de um estilo de pensamento “moderno” . Precisamos
contudo assinalar que, em que pese o papel histórico que Hobbes
desempenha na “ segunda onda da modernidade” e, o que é bas­
tante surpreendente, apesar do esforço sintético e sistemático
de sua filo s o fia , ele não acaba a mutação ju ríd ic o -p o lític a do
Estado moderno, assim como, aliás, não determina plenamente
a essência do “m oderno” . Seu papel é, porém, capital na m ar­
cha filo só fic a que deixa para trás as temáticas de um a tradição
que suas “ fábulas” , d iz ele, tom am politicam ente inoperante e
historicam ente caduca.
Com o Hobbes considerava que as doutrinas políticas enun­
ciadas anteriormente não passavam de “ sonhos” , declarava-se
ò fundador da “ ciência política” , que assim ilava à “ filo s o fia po­
lític a ” 47. Para apreciar essa pretensão em sua justa m edida, é
preciso apreender a novidade dos eixos em tom o dos quais ele
ed ifica sua teoria do Estado-Leviatã.
E m seu enorme corpus filo s ó fic o , Hobbes atribui, de m a­
neira explícita, um lugar de prim eiro plano à sua teorização do
direitp pqlítico. A concepção de Estado exposta sucessivamente
em Elem ents o f L aw (1640), em D e C ive (1642) e em Leviatã
(1651), não resulta, como afirm aram certos comentaristas, do
m edo que o filó s o fo teria sentido diante dos ím petos do parla­
m entarism o inglês. N o fundo, pouco im porta, aliás, que a inse­
gurança de Hobbes fosse real ou im aginária. A questão do po­
der p o lítico o atormentava desde o ano de 1629, quando tradu­
z iu A Guerra do Peloponeso, de Tucídides. Se é inconteste que
os acontecimentos na Inglaterra aguçaram sua tom ada de cons­
ciência do problem a, a originalidade de Hobbes não está em
ju lg a r a p o lítica de um ponto de vista prático e num a perspec­
tiva crítica. E le inseriu sua problem ática, de m aneira essen­
cialm ente teórica, em sua filo s o fia geral, cientemente unitária

47. “ Se a F ísic a é um a coisa inteiram ente nova, a filo s o fia p o lític a o é


ainda m ais. E la não é m ais antiga do que m inha obra D o cidadão” , D e C or-
pore, E pístola dedicatória, trad. fr. de D estutt de Tracy; cf. Leviathan, cap. IX ,
quadro a pp. 80, trad. fr .F . Tricaud, Sirey, 1971.
30 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

e sistemática. M esm o que “ F oi M aquiavel, m aior do que C ris­


tóvão Colom bo, que descobriu o continente sobre o qual Hobbes
pôde edificar sua doutrina”48, diferentem ente de M aquiavel,
Hobbes não fo i um filó s o fo “ engajado” ; mesmo que tenha, em
1651, oferecido ao jo vem Carlos I I um manuscrito de Leviatã
(que, de resto, o rei recusou), o que quis elaborar fo i um a teo­
ria explicativa e especulativa da política, um a obra de “ ciência”49.
Se o vín culo que une num sistema sua concepção filo s ó fic a do
direito p o lítico é antes de tudo um vín culo de m étodo, o cará­
ter lógico-dedutivo do procedim ento seguido tem um alcance
m uito m aior do que m etodológico; comporta um a opção fu n ­
damental, pela quäl se mede a novidade do olhar lançado sobre
a instituição e a organização ju ríd ic a da coisá política. A pos­
tulação mecanicista do sistema revela logo seu caráter antiesco-
lástico: não só a “ciência po lítica” se pretende, como a física
ou a antropologia, racional, analítica e sintética, mas também
substitui a linguagem da qualidade u tilizad a até então pelas
doutrinas políticas que se situavam, de m aneira m ais ou menos
consciente, na esteira de Aristóteles, pela lin g uagem precisa e
rigorosa da quantidade, como os esquemas da física m ecanicis­
ta de M ersenne e de G alileu. E m conseqüência, enfatizando o
elementar - a partir dó qual tudo no m ecanismo universal pode
ser composto - , Hobbes atribui ao indivíduo o estatuto episte-
m ológico do que é principal. E o ind ivíduo é, acima de tudo,
potência (potentid), no que é declarado igual a qualquer outro
em seus fins, bem como nos m eios de que dispõe para atingi-los.

48. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, V , a, P lon, 1954, p. 192.


49. N o prefácio do D e C ive, Hobbes confessa de m aneira m uito clara
que seu vasto desígnio filo s ó fic o com portava originariam ente três partes, que
ia m do geral para o particular: um estudo dos corpos naturais, um estudo da
natureza hum ana e um estudo da sociedade c iv il. Foram as “ conflagrações”
da guerra c iv il n a Inglaterra que o levaram a publicar em prim eiro lugar as re­
flexões políticas com as quais previra concluir seu sistema. A verdade é que,
para além da prioridade editorial que Hobbes atribuiu a sua filo s o fia p o lític a,
não é possível separá-la de sua prim eira filo s o fia ; cf. Sim one G oyard-Fabre,
D e la philosophie prem ière à la philosophie p o litiq ue dans la pensée de T h o -
m as Hobbes, in P o lític a e D iritto , M ilã o , G iu ffrè, 1995, pp. 75-95.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 31

Por conseguinte, a coexistência natural dos indivíduos é com ­


parável à dos lobos: homo hom ini lupus; não poda ser m ais do
que um a relação de forças. Sua concorrência universal é “ a guer­
ra de todos contra todos” .
À lu z do epistema m ecanicista adotado por Hobbes, o es­
boço traçado por B o d in de um direito político, no qual repercu­
tia o canto d ivino do m undo, assume um a feição “ fabulosa” e,
de qualquer m odo, obsoleta. Hobbes considera que não se chega
às verdades do direito p o lítico ouvindo a m úsica das esferas
que “ os sineiros do m undo” fazem soar. Para compreender as
estruturas do Estado, é preciso elevar-se ao conhecimento ló g i­
co e aos encadeamentos necessários dos elementos que nele
“ compõem” . O cientificism o pretendido pela teoria hobbesia-
na abre à evidência um registro novo para a filo s o fia do d ire i­
to político . Nesse registro escrevem-se, com uma n itidez in c i­
siva, no passo geométrico do mecanismo, os paradigmas da
modernidade ju ríd ic a e política.
E m prim eiro lugar, a relação entre antropologia e po lítica
adquire um a força fundam ental. M aquiavel entrevira o vínculo
entre os caracteres do hom em - sua perversidade e sua v irtii -
e os jogos da política. Hobbes va i infinitam ente m ais longe:
não se pode dizer, como Leo Strauss, que ele “retifica” M aquia­
v e l m ediante “um a obra-prim a de prestidigitação” 50; de m anei­
ra m uito m ais radical, ele detecta na “ natureza humana” a fonte
em que nascem todas as estruturas de direito da política. M a is
do que isso: a mecânica hum ana é o cadinho da m áquina p o lí­
tica. Essa linguagem mecanicista jam ais havia sido usada com
a am plitude e a autoridade que lhe dá Hobbes. Longe das meta­
físicas naturalistas por que se pautavam as teorias escolásticas e
ainda B odin, ele extrai da natureza humana, exam inando-a pela
v ia “ resolutiva” no âmago da hipotética “ condição natural dos
hom ens” 51, todos os elementos cujas articulações “ com positi-

50. Leo Strauss, Q u’est-ce que la p olitiq ue?, trad, citada, p. 51.
51. A prim eira parte dos Elem ents o fLaw , intitulada Hum an Nature, e
o Léviatharl, caps. 1 a 4, mostram que tudo no hom em - a sensação, a im a g i-
32 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

vas” contribuirão para o a rtificialism o construtor dos conceitos


ju ríd ico -p o lítico s modernos. Por conseguinte, a razão, à qual
Hobbes, como Descartes, confere o estatuto de um p rivilé g io
propriam ente hum ano, não é um poder ou um a faculdade inata,
mas sim um exercício ou um a operação de cálculo (com puta-
tio ): ela é o m étodo, arte ou indústria52, cujo emprego é indis­
pensável à edificação e à organização estrutural e funcional da
sociedade política.
Sobre as bases de sua antropologia m ecanicista, in d iv i­
dualista e racionalista, Hobbes reconstitui, no n ív e l da refle­
xão, as form as do p o lítico que os homens constituíram no n ív e l
da experiência: deplorando “ as trevas” 53 em que os filó so fo s se
deleitaram séculos a fio , ele deseja, d iz, graças a um a “ reflexão
industriosa” , expor à lu z “ os fundamentos” e os “princípios
racionais” do poder c iv il54. Está m ais do que na hora de a “ filo ­
sofia c iv il” , enquanto “ ciência p o lítica” , mostrar que os funda­
mentos e os princípios do m undo p o lítico não são postulados
form ulados a p rio ri, mas as linhas de força significativas que
se encontram em qualquer instituição sociopolítica. E m conse-
qüência, ele se pergunta sobre o Poder “ no abstrato” 55 e fala em
termos gerais da natureza das leis sem jam ais discorrer “ em
particular sobre as leis de nenhum Estado do m undo” 56 nem
“ disputar a favor de qualquer seita” . Se não ignora que a ciência,
para além da inteligibilidade dos princípios, pode trazer, quando

nação, a paixão, os encadeamentos de pensamentos etc. - é efeito de conatus


e se m anifesta no m ovim ento. Esse procedim ento é prova da dupla rejeição da
ontologia tradicional e da visão dualista do corpo e da alm a. O estado de na­
tureza que um a rtifício m etodológico perm ite considerar ( Léviathan, cap. X II I )
revela que o hom em é, como um relógio ou um autômato, um a m ecânica com ­
plexa na qual tudo se explica segundo o processo da causalidade. O próprio
pensamento se exprim e, com o tudo no m undo, como a consecução de causas
e de seus efeitos, mas o caráter específico dessa consecução é ser um a cone­
xão necessária.
52. Léviathan, cap. V .
53. Ib id ., cap. X L V I, pp. 678 ss.
54. Ib id ., cap. X X X , pp. 358-9.
55. Ib id ., cap. E pístola dedicatória, p. 5.
56. .DeCzve, Prefácio, x x x ix , x l.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 33

fo r o caso, vantagens práticas, ele pretende não obstante afas­


tar-se de qualquer form a de p raxiologia e de proselitism o.
Os arcanos do mundo p o lítico se revelam assim na a rtifi­
cialidade da m áquina p o lítica cuja fig ura filosófico-m atem áti­
ca é o Estado-Leviatã. Elabora-se a filo s o fia do poder c iv il, até
nas suas conseqüências, recorrendo aos conceitos, às catego­
rias e aos esquemas da jovem ciência mecanicista. Nesse pro­
cedimento que instala solidam ente o direito político no conti­
nente da modernidade, Hobbes não se contenta em transportar
as form as operacionais e as exigências m entais do mecanismo
do campo da física para a esfera do p o lítico aplicando-as, com
m aior ou m enor acerto, à realidade humana. N a “ consciência
galileana” que Hobbes tem do m undo p o lítico , sim bolizado pe­
la fig ura a rtific ia l e sintética do Leviatã, condensa-se o espíri­
to da modernidade.
Entretanto, apesar dos pontos inovadores do gesto filo s ó ­
fic o próprio do racionalism o hobbesiano, a m odernidade ju r í­
dico-política não encontra sua realização: Hobbes pensa o
“ deus m ortal” que a República é sob o “Deus im ortal” . O direito
p o lítico , cujo esquema racional elé traça, deita suas raízes nas
“ leis naturais” e na norm atividade da obrigação que elas envol­
vem em conform idade com a vontade divina. D e fato, Hobbes
explica que a dedução dessas “ leis” depende, ela também , das
potências da razão, para a qual tudo funciona segundo o esque­
m a da causalidade produtiva e se traduz de acordo com as fig u ­
ras puras da geometria. M as as duas leis naturais fundamentais
- esforçar-se pela paz e saber se privar, se os outros também o
consentem, do direito que se tem sobre todas as coisas na m e­
dida em que isso seja necessário para a paz - e todas as que
delas decorrem57 não deixam de criar um embaraço por sua
origem , sua finalidade, sua obrigatoriedade, pois elas contêm
um evidente resquício de m etafísica. H á nisso, sem dúvida
alguma, o indício eloqüente da dificuldade encontrada por qual­
quer tentativa inovadora para se liv ra r da tradição.

57. Léviathan, caps. X IV e X V , pp, 128 ss.


32 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

vas” contribuirão para o a rtificialism o construtor dos conceitos


ju ríd ico -p olítico s modernos. Por conseguinte, a razão, à qual
Hobbes, como Descartes, confere o estatuto de um p rivilég io
propriam ente hum ano, não é um poder ou um a faculdade inata,
mas sim um exercício ou um a operação de cálculo (computa-
tio ): ela é o m étodo, arte ou indústria52, cujo emprego é indis­
pensável à edificação e à organização estrutural e funcional da
sociedade política.
Sobre as bases de sua antropologia m ecanicista, in d iv i­
dualista e racionalista, Hobbes reconstitui, no n ív e l da refle­
xão, as form as do político que os homens constituíram no n ív e l
da experiência: deplorando “ as trevas” 53 em que os filó so fo s se
deleitaram séculos a fio , ele deseja, d iz, graças a um a “reflexão
industriosa” , expor à lu z “ os fundamentos” e os “ princípios
racionais” do poder c iv il54. Está m ais do que na hora de a “ filo ­
sofia c iv il” , enquanto “ ciência p o lítica” , mostrar que os funda­
mentos e os princípios do m undo p o lítico não são postulados
form ulados a p rio ri, mas as lin h as de força significativas que
se encontram em qualquer instituição socippolítica. E m conse­
quência, ele se pergunta sobre o Poder “ no abstrato” 55 e fala em
termos gerais da natureza das leis sem jam ais discorrer “ em
particular sobre as leis de nenhum Estado do m undo” 56 nem
“ disputar a favor de qualquer seita” . Se não ignora que a ciência,
para além da inteligibilidade dos princípios, pode trazer, quando

nação, a paixão, os encadeamentos de pensamentos etc. - é efeito de conatus


e se m anifesta no m ovim ento. Esse procedim ento é prova da dupla rejeição da
ontologia tradicional e da visão dualista do corpo e da alm a. O estado de na­
tureza que um a rtifício m etodológico perm ite considerar (Léviathan , cap. X II I )
revela que o hom em é, como um relógio ou u m autômato, um a m ecânica com ­
plexa na qual tudo se explica segundo o processo da causalidade. O próprio
pensamento se exprim e, com o tudo no m undo, como a consecução de causas
e de seus efeitos, mas o caráter específico dessa consecução é ser um a cone­
xão necessária.
52. Léviathan, cap. V .
53. Ibidt., cap. X L V I, pp. 678 ss.
54. Ib id ., cap. X X X , pp. 358-9.
55. Ib id :, cap. E pístola dedicatória, p. 5.
56. D e Czve, Prefácio, x x x ix , x l.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 33

fo r o caso, vantagens práticas, ele pretende não obstante afas-


tar-se de qualquer form a de p raxiologia e de proselitism o.
Os arcanos do m undo p o lítico se revelam assim na a rtifi­
cialidade da m áquina p o lítica cuja fig ura filo só fico-m atem áti­
ca é o Estado-Leviatã. Elabora-se a filo s o fia do poder c iv il, até
nas suas conseqüências, recorrendo aos conceitos, às catego­
rias e aos esquemas da jo vem ciência mecanicista. Nesse pro­
cedimento que instala solidam ente o direito p o lítico no conti­
nente da m odernidade, Hobbes não se contenta em transportar
as form as operacionais e as exigências m entais do m ecanismo
do campo da física para a esfera do p o lítico aplicando-as, com
m aior ou m enor acerto, à realidade humana. N a “ consciência
galileana” que Hobbes tem do m undo p o lítico , sim bolizado pe­
la fig ura a rtific ia l e sintética do Leviatã, condensa-se o espíri­
to da modernidade.
Entretanto, apesar dos pontos inovadores do gesto filo s ó ­
fic o próprio do racionalism o hobbesiano, a m odernidade ju r í­
dico-política não encontra sua realização: Hobbes pensa o
“deus m ortal” que a República é sob o “ Deus im ortal” . O direito
p o lítico , cujo esquema racional elé traça, deita suas raízes nas
“ leis naturais” e na norm atividade da obrigação que elas envol­
vem em conform idade com a vontade divina. D e fato, Hobbes
explica que a dedução dessas “ leis” depende, ela também , das
potências da razão, para a qual tudo funciona segundo o esque­
m a da causalidade produtiva e se traduz de acordo com as fig u ­
ras puras da geometria. M as as duas leis naturais fundamentais
- esforçar-se pela paz e saber se privar, se ps outros tam bém o
consentem, do direito que sè tem sobre todas as coisas na m e­
dida em que isso seja. necessário para a paz - e todas as que
delas decorrem57 não deixam de criar um embaraço por sua
origem , sua finalidade, sua obrigatoriedade, pois elas contêm
um evidente resquício de m etafísica. H á nisso, sem dúvida
alguma, o indício eloqüente da dificuldade encontrada por qual­
quer tentativa inovadora para se livrar da tradição.

57. Léviathan , caps. X T V e X V , pp, 128 ss.


34 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

E m meados do século XVII, quaisquer que sejam, na rea­


lidade p o lítica, o desaparecimento do aparato senhorial e, na
doutrina, a afirm ação das poderosas temáticas descobertas e
desenvolvidas a partir de M aquiavel, o triunfo da modernidade
ainda não está assegurado. Os novos filosofem as tropeçam em
fortes resistências que demonstram a sobrevivência da teoria
do direito d ivin o dos reis na p o lític a teológica de Filrner, de
Bossuet ou de Fénelon58 e m ostram que jurisconsultos como
Cum berland ou P ufendorf e filó so fo s como Locke e Barbeyrac
estão longe de aprovar os axiom as do racionalism o mecanicista
de Hobbes. A essência da m odernidade só pertencerá de m a­
neira decisiva à problem ática do direito p o lítico no fin a l do
século XVm, quando a filo s o fia do Ilum inism o, desteologizada,
bUscar a idéia do Poder e a exigência organizacional do espaço
público a p arte hom inis somente nas capacidades arquitetôni­
cas da razão.

A essência do moderno na catedral


racional do direito p o lític o

Neste capítulo prelim inar, não poderíam os retraçar todos


os caminhos acidentados seguidos pelos filó so fo s do século
X V I I I em m eio a polêm icas inflam adas e combates m ilitantes.
É acompanhando o olhar lançado por H egel59 sobre a arquité-

5 8 .0 prim eiro Tratado do governo c iv il, de Locke, responde, ponto por


ponto, ao Patriarcha de S ir Robert F ilm er. Bossuet escreveu, entre 1659 e
1670, La P o litiq ue tirée des propres paroles de l ’Écriture sainte, destinado à
educação do D e lfim , de quem era então preceptor. Fénelon escreveu para seu
aluno, o duque de Borgonha, neto de L u ís X IV , seu célebre Telêmaco, p u b li­
cado contra sua vontade em 1699 e que lhe valeu cair em desgraça.
59. D o enorme conjunto b ib liográfico consagrado à filo s o fia de H egel,
destaquemos, relativas a seu pensamento p o lític o , as seguintes obras: Théo­
dore A dorno, Trois études sur H egel, trad. fr., Payot, 1979; K . L o w ith , D e
H egel à Nietzsche (1941), trad. fi., G allim ard, 1969; É ric W e il, H egel et l'É ta t,
V rin , 1950; Eugène Fleischm ann, La philosophie de Hegel, P lon, 1964; Ber­
nard Bourgeois, La pensée p o litiq u e de H egel, P U F , 1969; J. R itter, H egel et
la Révolution française, Beauchesne, 1970; D enis Rosenfeld, P o litiq ue et li­
berté, A ubier, 1984; André Stanguennec, Hegel, critique de K ant, P U F , 1985;
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 35

tura intelectual do direito p o lítico que, ao fio de sua crítica,


apreenderemos “ a essência da m odernidade” . A catedral racio­
nal do direito político, edificada pela filo s o fia do Ilu m in ism o ,
é na verdade, pensa ele, cheia de sombras amedrontadoras.
U m am or radioso de juventude prendera Hegel à “bela to­
talidade grega” . N a Cidade antiga, em que a harm onia da vid a
significava a plenitude da comunidade, H egel ficava fascinado
pela form a da Polis que lhe parecia, na época de Stuttgart e de
Tübingen, ser o outro da alm a alemã do tempo de crise que v ia
espalhar-se à sua volta e o outro do Estado alemão a cujo res­
peito disse que, na virada dos séculos X V I I I e X I X , “já nem
sequer é um Estado” 60. A o contrário da Alem anha em decadên­
cia, a P o lite ia helénica estava impregnada da beleza alegre e da
religiosidade profunda que pertencem, pensava ele, a tudo o
que está vivo. Ora, esquadrinhando os dramas que, através do
destino do judaísm o e do cristianism o, envolveram a consciên­
cia histórica e acabaram por culm inar na França no Terror jac o ­
bino, Hegel compreendeu que E spírito e D estino são antagôni­
cos; m ais precisamente, que toda unidade de significado históri­
co possui uma face positiva - é o E sp írito - e uma face negativa
- é o D estino. Então, diante do m undo que o rodeia, descobre
“ a infelicidade da consciência” , cujo dilaceramento cresce com
o progresso da m odernidade. E m A fenom enologia do espírito,
H egel considerará até a modernidade um a doença. M as, já nas
obras de sua m ocidade, procura seus sintomas e os descobre
m uito especialmente no m undo p o lítico , onde a decadência do
Estado lhe parece paroxística. A p o lític a m oderna por ele des­
crita em A Constituição da Alem anha se parece m uito, na in -

Bem ard Bourgeois, Le d roit naturel de Hegel (1802-1803), Commentaire, V rin ,


1986; Jean-François Kervégan, L e citoyen contre le bourgeois, in Rousseau,
d ie R evolution und derju ng e H egel, ed. por H . F . Fuld a e R . P. Hortsm ann,
K lette-C otta, 199.1; Bernard Bourgeois, Études hégéliennes, P U F, 1992;
Jean-François Kervégan, Hegel, C arl Schm itt. Le.p o litiq u e entre spéculation
et p o sitivité , P U F , 1992; P aul Dubouchet, L a philosophie du d ro it de H egel,
L ’Herm ès, 1995. Obras coletivas: H egel et le siècle des Lum ières (ed. por J.
D ’H ondt), P U F , 1974; H egel et la philosophie du d ro it, P U F, 1979.
60. C f. H egel, A Constituição da Alem anha, 1801.
36 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

quietação que a corrói, com á crise da democracia ateniense do


século IV a.C. N ela o direito público se dissolveu no direito p ri­
vado; a realidade política, doente de individualism o e de bur­
guesia, se encaminha para seu destino de m orte: “A com unida­
de está desagregada. O Estado já não existe.” 61 O direito político
moderno é paradoxalmente m inado pelo próprio triunfo daqui­
lo de que tanto se orgulha a modernidade: a promoção do in d iv í­
duo, o triunfo da subjetividade. E la reflete, assim, a infelicidade
da consciência, já que, como cada um só se preocupa consigo,
a comunidade está partida: a separação introduziu o negativo
na plenitude do universal e, infiltrando a contradição na v ia pú­
blica, nela introduziu u m germe de dissolução. O espírito, m u­
tilado pelo advento da particularidade e da subjetividade, que
nele insinuam a diferença dissolvente, entrou em decadência. O
declínio, começado pelo cristianism o e acentuado pelo feuda­
lism o, apagou o “ espírito do povo” e, nõ Estado m oderno, efe­
tuou a cisão do povo (Volk) e da pluralidade dos indivíduos. A in ­
da por cima, o progresso da burguesia, fazendo prevalecer os in ­
teresses privados sobre o interesse público, instalou o reinado
do dinheiro e g lorificou a vocação econômica da “ sociedade ci­
v il” , como atestam os negócios florescentes dos comerciantes
alemães que se preocupam acim a de tudo com a produção e o
intercâm bio.
Tal como no declínio da Grécia antiga, os desvios do Es­
tado na época moderna provocaram a ruína da “ m oralidade
objetiva” {Sittlichkeit) e, enquanto progride a interiorização da
vid a que conduz à “m oralidade subjetiva” {M o ra litä t), perde-
se o senso da ordem pública e do bem comum. A proclamação
dos “ direitos do hom em ” é, pensa H egel, o ato m ais sig n ifica­
tivo das vitórias individualistas da m odernidade. Com prova a
teim osia que, d iz ele, persegue até a loucura a afirm ação da sin­
gularidade62, de m odo que, no Terror, lê-se como num espelho
a negatividade do destino. E la m anifesta a m ais alta contradi­
ção: de fato, a Revolução fo i “ um nascer do sol” , pois a espe-

61. M d ., trad. fr., Cham p lib re, p. 30.


62. Ib id ., p. 167.
' CONSIDERA ÇÕES PR ELIM IN AR ES 37

rança de um m undo novo dava a todos (portanto, à comunidade


da vid a pública), depois dos ím petos individualistas do século
X V III, sua verdadeira vocação; mas ela conduziu, por etapas, à
destruição das esperanças que fizera nascer e, conseqüência de
um a p o lítica da virtude, à m orte term idoriana. F o i um a queda.
D o mesmo m odo, Napoleãp pareceu ser “ a alm a do m undo” , o
espírito universal; na realidade, não passou de um ind ivíduo e,
em nom e das certezas de sua própria razão, fracassou. N a sua
majestade e, conjuntamente, por seu fracasso, ele encarna “ a
essência da m odernidade” , Com ele, a p o lítica se tom ou o que
é: um “paraíso perdido” 63. Gs filósofos modernos, como Hobbes
e Fichte, não souberam pensar a verdade do direito e da política:
o Estado de que falam , moderno por excelência, é apenas “um
Estado de entendimento [que] não é um a organização, mas um a
m áquina” construída não pelo povo, mas por “um a pluralidade
atom ística e sem vida” 64. N em sequer conseguiram determinar
o estatuto do cidadão moderno, pela sim ples razão de que o
confundiram com o burguês, cuja substância, na m edida em
que é um sim ples átomo do tecido social, é a subjetividade
livre que se deseja e se exprim e como tal.
Portanto, a crítica do direito p o lítico m oderno é feita sem
reservas da parte de Hegel. Já em suas prim eiras obras, e xp li­
cou que o ind ivíd uo, esse átom o que os filó so fo s modernos
postaram no lim ia r da sociedade, nada é: ele não pode vive r em
autarquia; nem biológica nem economicamente, pode bastar a
si mesmo; a autonom ia não tem sentido concreto. Com o o in d i­
víduo não é um a dimensão real da vid a ética, os im perativos
que ele eventualmente pode atribuir a si m esm o são necessaria­
m ente pobres, quando não form ais e vazios. E m consequência,
o Estado moderno tem excessiva tendência a legislar sobre pro­
blemas particulares; dessa maneira, só obtém resultados incoe­
rentes, às vezes até tão discordantes que, forçado a um a legis­
lação m inuciosa, cede à inflação dos textos e à m ultiplicação

63. E. Cassirer, D er Erkenntnis Problem , 1923, t. III, p. 292.


64. H egel, D ifférence des systèmesphilosophiques de Fichte et de Schel-
lin g , in Prem ières publications, trad. M . M é ry , O phrys, 1952, p. 133.
38 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

dos tribunais. Essa dispersão, refletindo o reinado da m u ltip li­


cidade das pessoas privadas, carece da verdade da “unidade
ética absoluta” 65. Então, nessa existência ético-política altera­
da pelas rupturas e cisões, o individualism o é apenas um a fig u ­
ra de cera: falta-lhe a vida; tudo o que era harm onia e beleza na
aurora grega desapareceu. É isso que, segundo Hegel, faz a in ­
felicidade da m odernidade política. Esta tem suas raízes na
“ interioridade abstrata” ; vai de par com o ensimesmamento
dos indivíduos e com o igualitarism o teórico; atola-se na arbi­
trariedade das singularidades de tal m aneira que se diz que o
governo dos homens procede, louvando-se no consentimento
voluntário de cada um , da convenção e do contrato. N a política,
na cultura e na história assim concebidas, o espírito é alienado
de si mesmo, o que equivale, na “ orgia da subjetividade” 66, a
negar sua im ediatez.
Desse m odo, para Hegel, o direito p o lítico m oderno des­
m orona sob o peso da “ cruz do presente” . E m m eio às guerras
em que, sob a fig ura do destino, a alteridade se m anifesta como
hostilidade na contingência e na violência de ações particula­
res sem direito (Rechtlos)67, o Estado moderno se revela incapaz
de se elevar ao universal. Cada Estado se proclam a soberano
sob a form a de um a subjetividade certa de si mesma68 e, na sua
singularidade, diferencia-se de todos os outros; então, para a fir­
m ar sua diferença, só m antém com eles relações de exclusão. A
guerra - basta olhar a Prússia de Frederico G uilherm e IV e a
França revolucionária para se convencer disso - está inserida
na sua negatividade negadora69. Eis, pára Hegel, o drama no qual,
pela dialética da finitud e, se afundam o direito e a p o lítica dos
tempos modernos: eles assumem a postura do destino destrui-

65. H egel, Des manières de traiter scientifiquem ent du d ro it naturel,


trad. B. Bourgeois, V rin , 1972, p. 71.
66. E . Fleischm ann, La philosophie p o litiq u e de H egel, P lon, 1964, p. 6.
67. H egel, Encyclopédie, § 545; Principes de la philosophie du d roit, §§
3 2 1 e 338.
68. Principes de la philosophie du d roit, § 281.
69. Ib id ., § 324 R . e § 331.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 39

dor e, na gesta histórica da decadência, o direito p o lítico tem a


feição do negativo.
Hegel certamente não atribui à modernidade p o lítica a
im utabilidade de um a realidade d efinitiva. A o contrário, inse­
re-a, em toda a sua com plexidade, no seio de um processo dia­
lético que, ainda que à custa do “ calvário do A bsoluto” , conduz
ao Espírito objetivo. Ocorre que, sendo a modernidade do direito
um a das produções m ais pungentes do próprio Espírito, Hegel
combate-a continuamente: por ser apenas o m om ento da parti­
cularidade, ela constitui, como tal, um entrave cuja relatividade
é preciso ultrapassar a fim de atingir, por sobre-sunção, a ne­
cessidade racional do Weltsgeist10. Quando, portanto, quiséssemos
considerar os valores da m odernidade em si mesmos, seria pre­
ciso, no dizer de Hegel, denunciar neles, em nom e de sua insu­
ficiên cia substancial, as ilusões que não deixam de engendrar.
N o fundo, o pecado da m odernidade que o direito p o lític o
revela é o do A ufklärung in teiro : em razão de sua abstração, ele
não sabe recusar a subordinação do direito público à m oral71;
acredita que o direito público e a vid a p o lítica repousam em
princípios puros, o que o incita a fazer prevalecer a subjetivida­
de do querer e a pensar a exigência de autonom ia como p rincí­
p io efetivo da liberdade (ao passo que eles não exibem m ais do
que um a condição formalmente universal sua). Claro, no processo
dialético que leva à efetividade e à racionalidade da m oralidade
objetiva, o direito da vontade subjetiva permanece inarredável.
M as o erro do pensamento m oderno está em haver erigido o
sujeito in d ivid u al em princípio real concreto, quando ele não
pode, por si só, constituir a trama do direito p o lítico , já que se
ignora como m om ento da Totalidade. A filo s o fia do direito dos
modernos simbolizada, segundo Hegel, pelo “ momento kantia­
no” em que se exprim em o individualism o, a geração contra-
tualista do Estado, o m oralism o abstrato que conduz às duas
figuras, ética e econômica, do liberalism o está repleta de enga- .
nos: de um lado, o form alism o abstrato do m oralism o gerou a

70. Ib id ., § 344.
71. Ib id ., § 337 R .
40 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ficção sistemática e teórica da universalidade dos direitos do


hom em ; do outro, preparou a defesa, na sociedade c iv il bur­
guesa, da propriedade in d ivid u al e, assim, subordinou a ordem
pública às reivindicações privadas. Isso é adm itir a prim azia dó
direitó sobre a le i, a prevalência da racionalidade interior sobre
a positividáde efetiva das instituições. A modernidade, conclui
Hegel, se enraíza hum racionalism o errado, incapaz de ver no
universal outra coisa que não um m om ento particular da vid a
ética.

O desmoronamento da catedral moderna

• A crítica pouco amena feita por H egel da “ essência do


m oderno” é ainda m ais perturbadora porque, algumas décadas
m ais tarde, N ietzsche72, num outro registro, am pliará seu eco.
Denunciando o p e rfil monstruoso da modernidade, ele enxer­
gará nela um a doença que corrói a sociedade do Ocidente,
inconsciente de que já está exangue e m oribunda. N um a se­
m iótica terrificante, ele fará do Estado “ o m ais frio de todos os
monstros frios” , o sinal paroxístico dessa doença.
N a sua visão profética e pela palavra de fogo de seus afo­
rism os, Nietzsche leva ao extrem o, no crescendo que va i das
Intem pestivas ao poema de Zaratustra e aos textos terríveis do
ano de 1888, o significado de suas amargas constatações. D e ­
pois de ter fustigado os “ filiste u s da cultura” que, ha Alem anha
bism arckiana, são, por sua modernidade, “pensadores às aves­
sas” , ele denuncia “ a comédia do p o lítico ” , na qual, por sua
“ debilidade senil” , Os modernos pensam, em nom e das “ idéias
novas” - justiça, igualdade, liberdade - abrir “ a grande estrada

72. A respeito do pensamento p o lític o de N ietzsche, relativam ente


pouco estudado, o f. Heidegger, Nietzsche (1961), trad, fr. G allim ard, 1971;
Pierre K lossow ski, Nietzsche et le cercle vicieux, M ercure de France, 1969;
O liv ie r R eboul, Nietzsche, critique de K ant, P U F , 1974; Leo Strauss, The
Three W aves o f M o dern ity in P o litic a l P hilosophy, P o litic a l Philosophy,
N o va Y o rk , 1975; Sim one G oyard-Fabre, Nietzsche et la question p o litiq u e,
Sirey, 1977; Jean-François M a ttéi, L 'o rd re du monde. P laton, Nietzsche et
Heidegger, P U F, 1989; A le x is Philonenko, Nietzsche, 1995.
CO NSID ERAÇ Õ ESPRELIM IN ARES 41

do futuro” 73. Fora das fronteiras da Alem anha, ocorre o m esmo


fenôm eno: enquanto o cientificism o e o historicism o se apre­
sentam como a marca do “m oderno” , a vid a está m uda; o n ii­
lism o se instala; a Europa é “ um mundo que desmorona” . A m o­
dernidade faz, portanto, da Europa um a “ sociedade de esgota­
dos” : o dinheiro se tom ou seu deus e, num a algaravia vulgar, o
m undo m oderno perdeu o senso da alteridade e da diferença. A
uniform idade, que é im potência para a originalidade, é o sinal
dessa “ casa dos m ortos” . N um crepúsculo fúnebre, a p o lítica é
esvaziada de toda energia criadora74 e o Estado m oderno se
pulveriza num a algazarra grotesca de im potentes. Segundo
Nietzsche, o hom o p o litic u s dos tempos modernos se parece
com o homo religiosus da cristandade: sob a máscara do hum a-
nitarism o e dos ideais, ele trai a vida. D epois da “m orte de
Deus” , o político substituiu o teológico e p Estado se tom ou “ o
novo íd o lo ” 75, odioso em sua monstruosidade: no direito p o lí­
tico do “ hum ano, demasiado hum ano” , tudo é m entira - um a
m entira extramoral na qual Nietzsche descobre a negatividade do
hom em decaído. C om seus hábitos p olíticos estereotipados,
suas categorias jurídicas e adm inistrativas capciosas, suas leis
com pretensão de serem gerais e form ais, o Estado m oderno,
íd o lo democrático, por sua m aquinaria demente e com u m a
boa consciência estonteante, é um em pecilho ao bom funciona­
m ento: possuído pelo “ espírito da lerdeza” , ele não passa de
um empreendimento de embrutecimento que favorece o instinto
do rebanho. E m todos os pontos, opõe-se ao “ sentido da Ter­
ra” . O Estado, como a Igreja, é o m undo dos “ m oedeiros fa l­
sos” 76. N ietzsche declara que sente apenas um “ grande despre­
zo” e um “ grande asco” por essa “ doença de pele” da terra que
é a modernidade política, cujo sím bolo é, na esteira m ortífera
de Rousseau, a Revolução Francesa77.

73. N ietzsche, Prem ière Intem pestive, trad, fi;., A ubier, p. 53.
74. Nietzsche, G aia ciência, § 23; Humano, demasiado humano, cap. V III.
75. N ietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, liv ro I: “ D o novo íd o lo ” .
76. N ietzsche, Genealogia da m oral, Prim eira dissertação, § 14.
77. Nietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, liv ro H l: “D a visão e do enigm a” .
42 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A palavra nietzschiana apresenta assim a ú ltim a onda da


modernidade como um abastardamento, como um desmorona­
mento. Atualm ente, um a crítica virulenta da modernidade m er­
gulha na esteira deixada por Nietzsche, reforçada por temas
extraídos de Heidegger. O Estado m oderno é acusado de m il
males e, em contextos ideológicos diferentes, é questionado por
M . Foucault, G. Deleuze, J.-E Lyotard e oútros, em nom e de
um a “pós-m odem idade” da qual esses autores, aliás, não apon­
tam os critérios nem as características essenciais.
N ão entrará em nosso objetivo expor, por si mesmas, essas
teorias da “m orte do direito” . Precisaremos, contudo, m encio­
nar sua existência porque ela sig n ifica que a “m odernidade”
designa o espírito de um a época, que, com seus próprios lim i­
tes, pertence à história e à história das idéias. Através das filo ­
sofias às vezes delirantes da “ m orte do hom em ” , que se em ­
penham na dem olição do direito p o lítico moderno, podemos
ler o significado dos princípios filo só fic o s que a anim am ; e,
como neste fim de século somos, digam o que disserem a res­
peito os advogados da nebulosa pós-m odem a, os herdeiros das
idéias modernas, a reflexão que trata dos princípios filo só fic o s
do direito p o lítico do Estado m oderno não só conserva sua per­
tinência, mas se prende a um a forte atualidade.

Com o, nesta obra, consagramos nosso objetivo à análise


crítica dos princípios filo só ficos do direito p olítico moderno,
temos de especificar o aparelho m etodológico que empregamos.

3. Questões de método

A pesquisa dos princípios do direito p o lítico m oderno


parece poder ser empreendida tom ando-se as vias diferencia­
das da história, da ciência e da filo s o fia . Tomem os, ú m de cada
vez, esses caminhos diversos.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 43

A ) A s estradas da história

O direito p o lítico tem, certamente, um a história não só


porque seus conteúdos norm ativos se transform aram ao longo
do tem po, mas porque a historicidade pertence às form as re­
vestidas pelo direito desde sua emergência. A s grandes figuras
do direito do Im pério romano, as estruturas ju ríd ico-p olíticas
do feudalism o, do absolutism o m onárquico ou dó constitucio­
nalism o contemporâneo sim bolizam a dimensão histórica do
direito p olítico.
Caso se considere que o século X V I constitui na história o
advento, embora ainda tím id o, da modernidade, observa-se
logo o im pulso tom ado, a partir dessa época, pelo pensamento
p o lítico e pelas form as do direito que o apoiam. É particular­
m ente instrutivo retraçar esse percurso em seus meandros, em
suas dificuldades e em suas sombras, sobretudo se praticamos,
além da exposição da “ sucessão cronológica” - a exem plo de
Jean B odin em M ethodus adfacilem historiaram cognitionem - ,
um procedim ento comparativo78 destinado a form ar um “ju íz o
crítico” .' O historiador e, m ais ainda, o historiador das idéias
que, estudando, ao longo do tempo, num contexto concreto, o
que foram , h ic et nunc, a potência dos governantes, a subm is­
são dos cidadãos à autoridade, as relações da p olítica com a
econom ia, as reform as ou as revoluções, o peso das guerras
etc., reúnem um m aterial rico ao qual o direito p o lítico , en­
quanto província da cultura, não é indiferente nem na sua ins­
tituição nem na sua evolução.
Todavia, o acúm ulo desses parâmetros, ainda por cim a
entremeados com fatores sociológicos e psicológicos, não bas­
ta para a compreensão do direito p o lítico . M esm o quando dou­
trinas e teorias organizam e sistem atizam os dados da H istória,
tentando esclarecê-los mediante o m ovim ento das idéias, elas
não conseguem, em razão de seu m étodo de trabalho, eviden­
ciar a especificidade do direito p o lítico , nem seus fundam en-

78. C f. J. B odin, M ethodus adfacilem htstoriarum cognitionem , trecho


sobre os filósofos franceses, P U F, 1951, p. 281.
44 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tos, suas linhas de força ou as condições de sua validade. Com o


a história, quaisquer que sejam sua form a e grau de refinam en­
to , não fornece critério para distinguir o que, na esfera da cul­
tura, caracteriza o direito p o lític o e o distingue de outras pro­
duções Culturais, ela é incapaz de e xib ir suas determinações in ­
ternas. Leo Strauss assinalou79 com pertinência que, embora a
“ historização” do problem a da p o lítica e do direito que a estru­
tura seja um procedim ento envolto de “um a certa sedução” ,
nem por isso ela deixa de ser deploravelm ente redutora: ela é,
d iz ele, um “ disfarce dogm ático” que carece de especificidade
e, a fo rtio ri, de autonom ia do campo ju ríd ic o -p o lític o . A bem
dizer, historicizar o direito equivale a negá-lo80.
O filó so fo , não encontrando no procedim ento historizador
referência nem ponto fix o para pensar o direito p o lítico , fic a
insatisfeito por não poder problem atizá-lo nem ju lg á -lo . Quer
dizer que ele deixa de seguir pela v ia da ciência ou da episte-
m ologia para apreender, com todo rigor, a natureza e os p rincí­
pios do direito público do estado moderno?

B ) Os cam inhos “científicos " .

Desde o advento, no século X I X , das “ ciências humanas” 81,


a disciplina que chamamos de “ ciência política” desenvolveu-se82
de m aneira considerável e, nas suas margens, instalaram -se
outras disciplinas como a “ ciência do direito” e a epistem olo-
gia juríd ica, a sociologia e a antropologia do direito. N ão seria
p caso de traçar aqui o esboço m etodológico desses setores do
conhecimento, pois cada um deles adquiriu ou está em v ia de
adquirir sua independência epistem ológica. E m nossa busca

79. L . Strauss, D ro it naturel et histoire, cap. l,passim .


80. C f igualm ente K a rl Popper, M isère d e lÉ isio ric ism e , trad. fri,
1956: -
81. C f. D ilth e y , Introduction à l ’étude des sciences humaines, 1883,
trad. fr., 1942.
82. Assinalem os, a títu lo de exem plo, os trabalhos, hoje clássicos, de G.
Burdeau, M . Duverger, J. E llu l, L . H am on, G . Lavau, M . Prélot, etc.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 45

dos princípios filo só fic o s do direito p o lítico m oderno, pergun­


tam o-nos somente se as vias heurísticas tomadas por essas d i­
versas “ ciências” são as que convém tomar. ■ ...
Sem dúvida, as ciências humanas constituem para o d irei­
to p o lítico um processo de conhecimento, de compreensão e de
interpretação cujo caráter heurístico é inegável. Seu projeto
consiste em analisar o próprio fato da organização institucional
das sociedades políticas a fim de determ inar as constâncias
que, assimiláveis a leis de construção, o caracterizam de maneira
geral. A ssim , a “ ciência po lítica” , que tem por objeto “ o conhe­
cim ento do universo político polarizado pelo fenômeno político
do Poder” 83, parece m ais bem indicada para vim estudo “ funda­
m ental” do direito político por ser um a “ ciência de encruzilha­
da” 84, fé rtil pela convergência e pela complementaridade das
abordagens ju ríd ica, econômica, sociológica, psicológica etc.
do direito p o lític o 85.
Entretanto, essa vontade de síntese m etodológica predis­
põe a ciência p o lític a ou a um vasto sincretism o que tem pouco
interesse científico ou, como é m ais freqüente, a inflexões ca-
tegoriais e teóricas diferenciadas, que a fazem fragmentar-se, a
m edida que se desenvolve, em disciplinas distintas como a
sociologia p o lítica, a antropologia ou etnologia políticas. C on­
vém igualm ente assinalar que, no progresso obtido no decurso
do século X X , a ciência p o lítica, a exem plo da p o litic a l Scien­
ce praticada nos países anglo-saxões, se transform ou ao se
autonom izar: tom ou-se o conhecimento dos dados da ativida­
de p o lítica; simultaneam ente, aperfeiçoou suas técnicas de pes­
quisa para analisar principalm ente a tom ada de decisões pelos
atores políticos.
Se form os capazes de apreciar o interesse de tais procedi­
mentos, também veremos rapidamente seus lim ites. Pôr se v in ­
cularem à corrente das ciências positivas, eles seguramente

83. G. Burdeau, TraitédeS ciencepolitique, L G D J, ed. 1966, t. I, p. 6.


84. M . Duverger, Méthodes de la Science p o litiq u e, PU F, 1959, p. 21.
85. “ Se a ciência p o lític a apresenta um a originalidade, ela reside na sín­
tese que se esforça por realizar entre as contribuições de diversas, procedên-
cias” (M . M erle, Revue du d roitp u b lic , 1955, p. 1136).
46 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

possuem um interesse cognitivo apreciável: os métodos de tra­


balho empregados - análise, estatística, sondagem, m atem ati-
zação, form alização e inform atização dos dados - conferem à
“ ciência” do direito e da p o lítica um a inegável fecundidade
heurística. M as não é possível isolar os princípios do direito
p o lítico na configuração do saber assim edificado, segundo es­
quemas apresentados como estabelecendo, segundo a expres­
são de M a x Weber, um a “ explicação compreensiva” 86 que visa
a “ apreender por interpretação” o sentido de um conjunto his­
tórico, sociológico ou p o lític o 87. Esses princípios são antes
pressupostos pela ciência p o lítica do que estabelecidos por ela.
A lé m disso, o im enso campo operacional que essa disciplina
investiga não tem fronteiras bem nítidas, de sorte que, como
esse fato tom a a extensão do direito bastante instável, sua base
e sua função permanecem indecisas. Será preciso acrescentar
que, atualmente, há certo ceticism o em tom o do caráter cientí­
fic o da ciência p o lítica88 (com o, de m aneira geral, o caráter
científico das ciências hum anas), ao m esm o tempo porque ela
tem. dificuldade para d e fin ir seu objeto próprio e, sobretudo,
porque está m ais orientada para a aplicação do que para a ex­
plicação? A s carências teóricas da ciência po lítica a predis­
põem m al para a compreensão do direito p o lítico e, pio r ainda,
para a pesquisa de seus princípios fundam entais ou diretores.
Contudo, a objetividade obriga a reconhecer que, no âm ­
bito geral das ciências humanas, a ciência do direito - que os
alemães chamam de Rechtswissenschaft e os anglo-saxões de

86. Geralm ente colocamos em oposição as duas noções de explicação e


de compreensão. N a realidade, em suas obras, M . W eber fa la comumente de
explicação compreensiva (verstehende Erklärung) e de compreensão explica­
tiv a ( erklärendes Verstehen), as duas expressões correspondendo a um mes­
m o processo intelectual.
87. M a x W eber, Économ ie et sociélé, trad. fr., P lon, 1 9 7 1 ,1.1, p. 8.
88. N ão é por acaso que a segunda edição do volum oso Traité de Sci­
ence p olitiq u e de G . Burdeau (L G D J, 1966) se abre na seguinte confidência:
“D evo confessar qüe ós resultados aos quais levaram os esforços da ciência
p o lític a não me convenceram da possibilidade de fazer um corte no tecido das
sociedades para reservá-la à sagacidade dos politólogos” , 1.1, p. 2.
CO NSIDERAÇÕES PR ELIM IN A R ES 47

Leg al Science - se caracteriza sobretudo, diferentem ente da


ciência p o lítica, por seu projeto teórico. E la procura estabele­
cer um corpus cognitivo m ais ou menos sistemático que, pela
racionalização dos fenômenos estudados, discerne neles regu­
laridades tendenciais ordenadas e as reporta às idéias, aos valo ­
res e aos interesses dom in antes de um a época ou de um a socie­
dade. O direito p o lític o deveria, portanto, ser u m dos objetos
privilegiados da ciência do direito.
N ão obstante, surgiu um a dificuldade, proveniente da p lu ­
ralidade de abordagens possíveis. Se, para certos autores, a ciên­
cia do direito, sob o nom e de “ dogmática ju ríd ica” , consiste
num a sistematização das regras cuja finalid ad e é ora conheci­
m ento, ora criação, ela se tom a, para outros autores,um a her­
m enêutica cujas tegras operacionais, em píricas ou ló g ic o -ftír-
m ais, são m uito diversificadas. A variedade dos procedimentos
lançou suspeita sobre a “ ciência do direito” , que às vezes é
acusada de ser desprovida seja de cientificidade, seja de ju rid i-
cidade. Sem chegar a um a crítica tão radical, devemos observar
que, no que d iz respeito sobretudo ao estudo do direito p o lítico
pela ciência do direito, esta esbarra na m ultiplicidade de fato­
res que tem que levar em conta e na necessidade de escolher,
entre eles, os paradigmas aos quais recorrerá preferentemente.
Por um lado, como o direito p o lítico m antém m últiplas rela­
ções com a história, a economia, a diplom acia, a sociologia e a
psicologia - o que é ainda m ais patente quando se trata do d i­
reito p o lítico m oderno - , possui um a textura com plexa e sua
compreensão global precisa recorrer às disciplinas especializa­
das que estudam esses diferentes dom ínios, o que tende a lhe
dar um a feição sincrética que carece de clareza. Por outro lado,
como o recurso a essa m ultidisciplinaridade não pode visar à
justaposição ou à soma dos conhecimentos, a ciência do direi­
to, confrontada com a pluralidade das racionalidades possíveis,
deve determinar de m aneira seletiva as perspectivas e os câno­
nes que são seus, o que acarreta o risco de introduzir nela um
elemento de parcialidade. D e acordo com os critérios escolhi­
dos, a capacidade de elucidação que um a ciência assim possui
é seletiva; em conseqüência, é necessariamente lim itada, já que
48 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

é, no fundo, dependente de pressupostos, axiológicos ou ideo­


lógicos por exemplo, que puderam determinar a escolha de seus
critérios e de seus m odelos operacionais. Nessas condições,
pode-se indagar se um a ciência do direito político não está con­
denada a tropeçar em “ obstáculos epistem ológicos” intranspo­
níveis, que afastam os resultados por ela obtidos do conheci­
m ento teórico aprofundado que buscava. Avaliam os, portanto,
a am bigüidade com que ela se arrisca a cercar o próprio pensa­
m ento do direito político: ou ela se arrisca, por preocupação
com objetividade, a reduzir o direito p o lítico à descrição - ou
seja, à sim ples representação - das normas que ele enuncia hic
et m n c , ou am plia o dom ínio específico integrando-lhe sua
postulação criteriológica e se refugia num a m etalinguagem que
a priva da autonom ia científica que pretendia89.
N ão se trata de subestimar os elementos de verdade trazi­
dos pontualm ente pela ciênçia p o lítica e pela ciência do direi­
to. Entretanto, de m aneira geral, as “ ciências humanas” quase
não perm item conduzir o conhecimento do direito p o lític o até
seus p rin cíp io s fundamentais. E m compensação, a conduta f i ­
lo sófica que, em vez de estar em busca de saber, responde a
um a intenção hermenêutica e a um a reflexão crítica, deve per­
m itir desvendar as condições de intelig ib ilid ad e do direito p o lí­
tico e, por conseguinte, elucidar os princípios sobre os quais
ele se apóia para in stitu ir a realidade do m undo p o lítico m oder­
no e dar-lhe vida.

C ) Â via filo s ó fic a

A tarefa do filó s o fo não é descrever um a ordem de direito


positivo existente aqui e agora, nem sequer explicar a form a e
o conteúdo do ordenamento ju ríd ic o de certo Estado ou de
certo organismo internacional. A filo s o fia não é um trabalho
de conhecimento, mas u m exercício in find ável de reflexão com -

89. Á respeito desses problem as, cf. C hristian A tias, Épistém ologie ju ­
ridique, P U F, 1986.
CONSIDERAÇÕES PR ELIM IN AR ES 49

preensiva e crítica. Perguntando-se sobre o direito p o lítico tal


como se m anifestou desde o advento da “modernidade” , isto é,
sobre o conjunto das regras do direito positivo que form am a
base institucional das sociedades políticas tal como existiram
nos séculos da m odernidade ocidental, o filó so fo , hoje, se atri­
b u i como tarefa, não, como o filó s o fo clássico, ju lg á-las pela
m edida da idealidade pura de um arquétipo in te lig íve l, mas
aprofundar o significado dessas regras a fim de descobrir nelas
as raízes desse sentido e de sua legitim idade. Pelo gesto radica-
lizador da reflexão, o que busca compreender é a própria pos­
sibilidade da existência do direito público enquanto fato nor­
m ativo essencial às sociedades políticas modernas.

A fim de atender ao projeto de pensar filosoficam ente os


princípios fundam entais e organizacionais que, no direito p o lí­
tico m oderno, tom am in telig íveis seu sentido, sua validade e
sua eficiência, nós nos basearemos não apenas no direito p ú b li­
co positivo tal como fo i edificado a partir do século X V I, mas
tam bém na doutrina que, de X B o d in a C. Schm itt, os juriscon­
sultos elaboraram, bem como nas obras dos filó so fo s que, de
M aquiavel a X Habermas ou a R . D w orkin, propuseram um a
hermenêutica da ordem ju ríd ico -p olítica.

D epois de exam inarm os, num a prim eira parte, a questão


da natureza e dos prin cíp io s do Poder tais como manifestados
por sua emergência e seu exercício no espaço ju ríd ic o -p o lític o
da modernidade, nós nos indagaremos, num a segunda parte,
sobre asfig uras do direito p o lític o no Estado, lugar por excelên­
cia da po lítica moderna. Nossa terceira parte será consagrada à
crise do direito p o lític o moderno no m undo contemporâneo e
aos ensinamentos filo só fic o s que dela se podem extrair.
P R IM E IR A PARTE

A natureza e os princípios
do Poder no espaço
jurídico-político moderno

Todos os conceitos do direito p o lític o m oderno têm suas


raízes na idéia daquilo que é “ público” : assim, falam os da vid a
pública, do poder público, da responsabilidadè pública do go­
verno perante o Parlam ento, das liberdades públicas etc., ou
ainda da publicidade dos atos no D iá rio O fic ia l. É verdade que
o direito rom ano não ignorava as res publicae, que m enciona­
va1 ao lado das res communes, comuns a todos, das res univer-
sitatis, próprias das corporações, dâs res n u lliu s, que não per­
tenciam a ninguém , e das res singulorum que, pertencendo a
particulares, estavam todas incluídas no trato ju ríd ico . M as, no
direito francês, é preciso vincular a noção do qúe é “público” à de
“ dom ínio público” . Á o contrário do direito da m onarquia e,
singularm ente, do E d ito de M o u lin s, de 1566, que, ao declarar
inalienável o dom ínio da Coroa, referia-se à concepção purá-
m ente feudal do R e i como “ senhor feudal soberano” , a R evo­
lução Francesa e, sobretudo, o pensamento ju ríd ico pós-revolu-
eionário iam atribuir à idéia do que é “público” um a conotação,
se não inteiram ente nova, pelo menos com um a força diferen­
te: opondo-se dessa vez a tudo o que pudesse recordar o feuda­
lism o, o pensamento revolucionário vin culou essencialmente a
idéia daquilo que é público - poderes ou coisas - àquilo que
pertepce ao povo como corpo ou comunidade política. A b riu -
se assim para o direito p o lítico um campo conceituai coberto
hoje pela noção de “ dom ínio público” e, Cedendo a certa m oda

1. Institutes, n , 1 ,3 ! divisão, seções 1 ,2 ,3 e 4.


52 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

lingüística, o termo freqüentemènte utilizado atualmente de “ es­


paço público” .
N a verdade, se a noção de “ dom ínio público” assumiu um
sentido técnico para designar o que não é suscetível de apro­
priação privada, a expressão “ espaço público” possui um a co­
notação bastante flutuante, devida sobretudo ao emprego que
lhe deu Jürgen Habermas em 1961, na sua tese Strukturw andel
der Ö ffentlichkeit; então ele estudava, de um ponto de vista só­
cio-histórico, a formação da opinião pública como dimensão
constitutiva das sociedades burguesas; nessa perspectiva, a no­
ção de “ espaço público” a que se referia designava, principal­
m ente nos sistemas neocapitalistas, o dom ínio em que, entre a
sociedade c iv il2 e o Estado, se form a e se form ula a opinião
pública. Jürgen Habermas afirm ava e desenvolvia a idéia se*
gündo a qual, sob as influências cruzadas do conhecimento, da
p o lítica e dos interesses, a opinião pública obedece ao paradig­
m a da comunicação.
Sem subestim ar o valor que, de um ponto de vista m ais
prático do que teórico, se prende, nas sociedades democráticas
contemporâneas, a essa compreensão do “ espaço público” que
renova a fig ura do m undo sociopolítico, nós nos ateremos a
um a acepção m ais clássica da esfera pública como lugar em
que o Poder se organiza é se exerce como form a jurídica. Sieyès,
às vésperas da Revolução Francesa; declarava que um a m á xi­
m a do direito universal d iz que “não há falta m aior que a falta
de poder”3; é por isso que, acrescentava, é im perativo que um a
sociedade p o lítica possua um a Constituição estabelecida pela
nação. K ant, no E nsaio sobre a p a z perpétua, indicava em
1795, em termos m ais filo só fic o s mas dentro do m esm o espí­
rito , que a publicidade é “ a fórm ula transcendental do direito
público” . Entendamos que os povos só atingem a consciência

2. A partir de H egel, a expressão “ sociedade c iv il” não m ais designa,


com o nos autores dos séculos X V II e X V m , a sociedade po lític a ou estatal.
E la significa essencialmente a dim ensão econôm ica da sociedade. C f. H egel,
P rincípios da filo s o fia do d ireito (1821).
3 . E. Sieyès, Qu ’est-ce quele tiers état? (1789), reedição P U F, 1982,p. 80.
P R IM EIR A PARTE 53

de si pela v ia pública,, que se m anifesta no espaço público por


um corpus orgânico de normas de direito. A esfera do “público”
é reconhecida por v ia de consequência de seu critério norm ati­
vo-jurídico. A s instituições que a organizam são, sob o conceito
de “ direito público” , sua expressão m anifesta; dirigem e estru­
turam ps fenômenos políticos, perm itindo a coexistência entre á
ordem pública e a liberdade dos cidadãos. ■ ;'
Ora, se é verdade que as sociedades antigas - a Cidade
antiga ou as sociedades medievais - j á possuíam um a organiza­
ção ju ríd ic a apurada em m atéria de direito privado, é no Estado
m oderno que, pouco a pouco, o direito “público” se firm o u
como um conjunto de regras que form am , segundo a expressão
de M arcei Prélot, “um a técnica da autoridade” essencial para a
disposição do fenôm eno político. D e fato, o Poder só é possí­
ve l dentro da ordem. Bertrand de Jouvenel escreveu mesmo
que “A organização do Poder faz um a sociedade passar do caos.
para o ser”4. Por isso nós nos indagaremos nesta prim eira parte
sobre o que é a natureza do Poder e em que consiste o princípio
da independência que, no espaço público da modernidade, ex­
prim e a essência do Estado.
Antes de qualquer análise, deixem os claro que, para nós,
não se trata de pesquisar a origem ou a fonte de que emana o
Poder, isto é, de nos perguntar se, de fato, o poder p o lítico nas­
ceu de “ força e violência” , se é o fruto da vontade divin â ou o
resultado da vontade popular. Tais perspectivas, puramente
doutrinárias, atendem a postulações m etapolíticas cujos axio ­
mas básicos já contêm em si próprios as respostas dos proble­
mas levantados. A o contrário, para nós se trata, independente­
m ente de pressupostos m etafísicos, de compreender os p rin cí­
pios que, inerentes ao Poder tal como se exerce juridicam ente
até nossa época, puderam, nas sociedades políticas do Ocidente
m oderno, dar-lhe autoridade e fazer com que fosse reconheci­
do como o critério essencial do Estado.
Exam inarem os, portanto, num prim eiro capítulo, as idéias
m obilizadoras que, progressivamente postas em evidência pelos

4. C f. Bertrand de Jouvenel, Encyclopédiefrançaise, t. X , pp. 10-62.


54 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

filó so fo s e im prim indo significativam ente sua marca na m o­


dernidade ju ríd ico -p o lítica, explicam a centralização do Poder
no Estado moderno. D epois, num segundo capítulo, nós nos
deteremos na questão da soberania estatal que, “ essência” ou
“ form a” do Poder do Estado m oderno, ao qual confere sua in ­
dependência e sua onicom petência, continua, até hoje, no cen­
tro da reflexão filo s ó fic a sobre o direito p olítico.
C apítulo I
A centralização do Poder e o p rincíp io
de unidade do Estado moderno

A noção de Poder p o lítico fo i geralmente, na história, lig a ­


da à idéia do comando ditado por aquele ou aqueles que detêm
a autoridade: “ U m a m ultidão sem chefe nada pode fazer; é não
se devem fazer ameaças antes de se apoderar da autoridade” , es­
creveu M aquiavel com im pressionante síntese1. Essa concep­
ção, que assim ila o Poder p o lítico a um a lib id o dom inandi, cer­
tamente tem o p rivilé g io da perenidade, mas tem tam bém o
defeito da equivocidade. D e fato, se está claro que ela põe a
p o lítica de todos os tempos sob o signo da dominação - o ato
de dofninar e o fato de ser dom inado - , ater-se à im ágem da
“ Cidade do comando” é deixar de lado a pluralidade das m ani­
festações da autoridade dominante que, lógica e cronologica­
m ente, assumiram form as tão diversificadas que dão à realida­
de do direito p o lítico significados totalm ente heterogêneos. A
fim de chegar à compreensão do poder nas sociedades modernas,
convém, por conseguinte, delim itar, entre os inum eráveis fatos
de dominação ou de comando, os princípios específicos pelos
quais os filó so fo s buscaram esclarecer a natureza da autorida­
de exercida pelo Poder no Estado.
Aparentemente, essa pesquisa é banal. M uitos autores, m es­
m o antigos, a fizeram e a consideraram mesmo essencial. L i-
m item o-nos aqui a dois exemplos. Aristóteles, em A p o lític a ,
distinguia o poder que é exercido na Cidade daquele que é e xe r-'
eido na sociedade doméstica: o político não comanda nem exer-

1. M aquiavel, D iscours sur la prem ière décade de T ite-Live, I, X L IV ,


Pléiade, p. 476.
56 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ce sua autoridade à m aneira de um chefe de fa m ília ou de um


patrão; seu poder consiste em administrar a justiça e, apoiando-
se num conjunto de leis, em dar a cada um o que lhe cabe. C om
base nisso, o Estagirita, mesmo quando se detinha no exame
das “ Constituições” do m undo antigo, sempre atribuía ao po­
der p o lítico um a finalidade ética. E m segundo lugar, recorde­
mos a distinção estabelecida por Santo A gostinho entre a auto­
ridade de que se prevalece o chefe de um a quadrilha de bandi­
dos e a autoridade po lítica do chefe de um a Cidade2: claro, um
chefe de bandidos nem sempre recorre à violência, mas im põe
a obediência por sua ascendência, seja.ela força, competência
ou carisma; já a autoridade do chefe político, é, sem dúvida
alguma, “ a faculdade de carrear o consentimento alheio”3, porém
o im portante é que obtenha esse consentimento em nom e de
sua legitim idade, seja ela teológica, tradicionalista ou juríd ica.
Essas observações são bem conhecidas. M as é preciso no­
tar que, embora já perm itissem a Aristóteles ou a Santo Agos­
tinho sublinhar que a autoridade dò Poder na Cidade p o lític a é
irredutível às relações de influência exercidas por um in d iv í­
duo sobre outros indivíduos a fim de obter sua obediência - o
que os psicólogos anglo-saxões de hoje denom inam , com um
term o intraduzível no francês, leadership elas não indicavam
em que consiste a especificidade da autoridade política. Dada
essa carência, o conceito de Poder permaneceu durante m uito
tempo cercado de um halo de incerteza e de am bigüidade. E m
compensação, com a filo s o fia m oderna, a im precisão que vela­
va a idéia do Poder se dissipou gradualmente graças a um a pro-
blem atização e a um a investigação novas: em vez de considerar
a autoridade do Poder no Estado através da relação de coman­
do com a obediência, isto é, na relação interpessoal entre os
governantes e os governados, â indagação in cid iu sobre os p rin -

2. Santo A g o stin h o ,^ Cidade de Deus, IV , 4. A respeito desse tem a, ver


A . Schütz, Saint A ugustin, l ’É tat et la bande de brigands, D roits, 1993, n? 16,
pp. 71-82. Assinalem os que A ristóteles, em A p o lític a , u tiliza v a igualm ente a
im agem da quadrilha de ladrões e de m alfeitores, IV , 4; V II, 2.
3. Bertrand de Jouvenel, D e la souveraineté, L ib rairie de M édicis, 1955,
PR IM EIR A PARTE 57

cípios imanentes que perm itiram sua emergência, determinar


ram sua natureza e regeram sua realização, D e M aquiavel a
Kelsen, as análises convergem para mostrar que, na esfera do
Estado, o Poder não pode confundir-se, a não ser desnaturan­
do-se, com o fato de poderes interpessoais, E le é, no Estado,
um fenôm eno ju ríd ic o de organização e de regulação que se
caracteriza, já em sua emergência, por sua capacidade norm a­
tiva. Com o tal, ele se coloca sob o signo do hum anism o ju ríd i­
co e encarna princípios ao m esmo tempo fundam entais e fu n ­
dadores que são indispensáveis ao direito p o lític o m oderno.
D ir-se-á,, certamente com razão, que a capacidade norm a­
tiva do Poder p o lític o não era ignorada pelos romanos. A liá s , é
o que atesta amplamente a obra de Cícero. A Res publica, que
im p lica um comensus ju ris , é em sua essência, assinalava C í­
cero, intim am ente ligada ao direito; é mesmo inconcebível fora
do estabelecimento das leis, o qual é sua marca distintiva: lex
e s tç iv ilis societatis vinculum 4. Contudo, quando, em D e Repu­
blica, C ipião explica em que consiste, na República, o consen-
sus ju r is 5, ele se refere tanto a um horizonte m oral çomo a um a
perspectiva ju ríd ica. Porque pensa, a exem plo dos estoicos, que
“ o m undo é a pátria com um dos homens e dos deuses” 6, a idéia
do direito remete, segundo ele, à idéia, universal de justiça7.
E la encontra seu fundam ento na natureza8 que, precisamente,
define a le i natural. Esta, entendida como a le i de ordem, eter­
na e im utável, que Deus colocou no m undo9, “ quer que nos
aproxim em os dos deuses com â alm a pura” 10. D o m esm o m o-

4. Cícero, De Republica, § X X X II .
5. Ib id ., § X X V .
6. Cícero, D e legibus, I, § X X I I I ; D e fin ib u s, I II , X IX , 64.
7. Cícero, D e legibus, I, § V I.
8. Ib id , I, § X . A id é ia não é o rig in al de Cícero, que adota (cf. D e fln i-
bus, V , X X H I, 66) a concepção aristotélica de òtvOpcoTtoç «púoei tcoAiu x o v
Çdõov e não hesita em comparar a sociabilidade, hum ana à conduta gregária
das abelhas. (D e o ffic iis , I, X C IV , 157). Isso, aliás, não exprim e outra coisa
senão a onipresença de Deus no m undo.
9. Cícero, D e legibus, I , § V L
10. Ib id ., II, § X -
58 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do, quando considera, como òs jurisconsultos da Rom a antiga,


que não há República sem um poder supremo (sümma potes-
tas)n , do qual emanam as leis da comunidade e do qual depen­
de a form a (status) da Cidade12; Cícero não dissocia a capaci­
dade norm ativa ou reguladora do Podér na República do pano
de fundo m etajurídico, marcado ao m esm o tem po por natura­
lism o e por teologism o, no qual se insere. É por essa razão que
esse Poder dâ República, pertença ele ao príncipe ou ao povo,
está, como tal, acima das leis por ele estabelecidas: elé é, còmo
d iz o D igesto, solutus lêgibus13. Quanto aostatus reipublicae
determinado pelo Poder, ele repousá na claríssim a distinção
enunciada pelo Digesto entre o que é “público” e o que é “p ri­
vado” : Publicum ju s est quod ad statum rei Rom anae spectát,
privatum quod ad singulorum utilitatem 14. E le só se compreen­
de, ademais, dentro de um a perspectiva teleológiea ná qual a
le i natural e d ivina se revela como o im perativo de ordem que
Se im põe a “ um povo organizado” . A capacidade norm ativa do
Poder é portanto m uito real, segundo Cícero, na República.
M as está sempre subordinada à transcendência da le i natural
que atribui aos magistrados detentores da potência pública o
encargo, ou, com m ais exatidão, a m issão de realizar da m elhor
m aneira possível o direito im utável e eterno do qual ela é o
garante d ivino.
N o direito público m oderno, a capacidade norm ativa do
Poder é concebida em outras bases: b humanismo ju ríd ic o trans­
form a tão amplamente os horizontes teológico-m etafísicos do
pensamento dos clássicos rojnanos, geralmente seguidos pelos
autores medievais, que chega a suplantá-los. Desde o século X V I
o hum anism o ju ríd ic o 15 firm oü-se com variações, certamente

11. Cícero, D e Republica, I, § X X X I.


12. Essa posição é, aliás, das m ais clássicas entre os jurisconsultos ro ­
manos. C f. Papiniano: Lex.est... communis reipublicae sponsio, Digesto, 1.3.1,
e C aio: Lex est quodpopulus ju b e t atque constituit, Institutos, 1.2.27.
13. D igestó, 1.3.31.
14. Ib id ., 1.1.1.
15. Segundo M ic h e l V ille y , o “hum anism o ju ríd ic o m oderno” se define
com o “ a tendência a colocar o hom em no princíp io e no fim de tudo” . Seize
P R IM E IR A PARTE 59

diferentes, mas cada vez m ais densas. Reteremos aqui três m o­


m entos im portantes na concepção da produção das normas ju ­
rídicas pelo Poder do Estado, três momentos em cujo decorrer se
firm aram os princípios filo só fic o s qué form am , desde então, a
pedra angular do direito p o lítico m oderno.
Marcada num prim eiro m om ento pelo realism o pragm áti­
co de M aquiayel, a capacidade norm ativa do Poder, expressão
do p rin c íp io de ordem p ública, tom ou-se, num segundo m o­
m ento, inseparável, no sistema filo só fic o -p o lític o de Hobbes,
de um racionalism o calculista destinado a caracterizar o Esta-
do-Leviatã pela im anência de u m p rin c íp io de autoridade. Por
fim , num terceiro m om ento, a racionalidade po lítica culm inou,
na época da Revolução Francesa, num hum anism o ju ríd ic o que
devia condensar o poder norm ativo do Estado num p rin c íp io
constitucionalista, cuja eficiência continua, ainda hoje, indis­
pensável.

1. O princípio da ordem pública


no Estado segando M aquiavel

Quando M aquiavel, “ m aior do que Cristóvão C o lo m ­


bo” 16, chega às margens do continente que será o da m oderni­
dade p o lítica , não concebe a norm atividade do Poder do E s­
tado - oü dos jovens principados - sobre as bases filo só fic a s
da rom anidade.

essais de philosophie du d roit, D a llo z, 1969, pp. 60 ss. M esm o que não siga­
m os M . V ille y em todas as suas análises e conclusões, podemos adotar, pro­
visoriam ente, a definição que dá do hum anism o ju ríd ic o m oderno. Seria cer­
tam ente m ais ju d icioso, a fim de evitar qualquer equívoco sobre o sentido da
palavra “hum anism o” , fa lar de antropologism o ju ríd ic o , a fim de contrapô-lo
ao naturalism o e ao teologism o ju ríd ic o s dos séculos clássicos. M as o te rm o .
não é fe liz do ponto de vista fonético e corre o risco de ter u m acento anacrô­
nico, já que a antropologia ju ríd ic a pertence precipuam ente às pesquisas das
ciências hum anas do século X X . Portanto, guardaremos a expressão hum anis­
m o ju ríd ic o , à qual, evidentem ente, não damos o significado literário e m oral
que assum iu no século X V I.
16. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, P lon, p. 192.
60 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Se dermos crédito a Leo Strauss17, M arlow e, que atribuiu


ao florentino a frase taxativa “ Sustento que não há outro peca­
do além da ignorância” , tève um a ótim a idéia: sua frase não só
define a atitude intelectual de M aquiavel como perm ite situar
em sua ordem própria sua concepção da po lítica e do direito
que a rege.

A ) Serviço p úblico e nom iatividade do Póder no Estado

A originalidade de M aquiavel transparece em O p rín cip e ,


em que é, acim a de tudo, o pensador dá ação política. A seu
ver, o Poder não se define péla idéia, mas pelos procedimentos
que levam a ele e perm item nele se manter. Considerado filo ­
soficamente, o pensamento p o lítico de M aquiavel im plica; des­
de o princípio, a rejeição da idéia do direito natural e, m ais am­
plam ente, a recusa da filo s o fia p o lítica tradicional. Seja esta a
de Platão, de Aristóteles, de Cícero, ou a que encontramos nos
pensadores m edievais, ela cai, com todas as inspirações mes­
cladas, na esparrela de um idealism o tão in ú til quanto falacio­
so. O florentino, rico de sua experiência, opõe-lhe um a busca
realista, que leva essencialmente em conta, no universo em que
vivem os homens, não tanto as situações cotidianas, a fin a l
banais e pouco significativas, mas “ os casos extremos” . Essas
situações-lim ite funcionam como reveladoras daquilo que,
num a hum anidade em que rugem as paixões, é gerador de m e­
do e de m orte. N ão tendo exam inado os medos e os m ales que
atormentam os homens, as filo so fia s clássicas se equivocaram
ao associar a idéia da “ le i natural” à perfeição humana. Por
causa desse erro de postulação, as filo so fia s clássicas se extra­
viaram , pensa M aquiavel, em cam inhos que não levam a lugar
algum e que, de todo m odo, só indicaram aos hom ens o senso
dos deveres ou, o que vem a dar iio mesmo, só lhes falaram dos
direitos derivados desses deveres. Ê nisso que elas permanece­
ram, irredutivelm ente, ‘‘pré-modernas” . O projeto p o lítico de

17. Ib id .
PR IM EIR A PARTE 61

M aquiavel é, portanto, embasado num a vontade de ruptura com


os pressupostos idealistas e as especulações utópicas da filo s o ­
fia clássica: é in ú til dissertar sobre “ o m elhor regime” , cujos
contornos nunca farão compreender em que consiste a natureza
do Poder político; essa natureza só se exprim e através dos em ­
preendimentos que o chamam e que ele provoca. .
A ssim , M aquiavel não concebe outra organização po lítica
além da que se preocupa em prim eiro lugar com o “ serviço
público” . A cim a de tudo, não a.pensa de.acordo com a figura
hipotética de seu dever-ser; encontra-a na realidade concreta
do Poder e de suas manifestações, segundo “ a verdade efetiva
da coisa” , m esmo que esta esteja oculta em recônditos com pli­
cados e por vezes cheios de sombras. É preciso insistir nisso, A
natureza do Poder não se revela nas repúblicas im aginárias
esculpidas pelo idealism o: o Poder não é o. do filó so fo , cuja
sabedoria faria descer na Caverna dos homens a in te lig ib ilid a ­
de diam antina do Céu das idéias. A natureza do Poder tampouco
se revela num a po lítica báSeada no teologism o: o Poder não é
na Cidade terrestre, m esmo quando se fa la de “plenos pode­
res” , à*im agem da potência transcendental de Deus. A os olhos
de M aquiavel, o fracasso prático do “ filó s o fo -re i’’ e o desmem­
bram ento da Respublica christiana sig n ificam que a idealidade
do Poder do Estado éu m a quim era de visionário. E m compen­
sação, sua “ efetividade” - a verità effectuale de sua m aneira de
e xistir - m anjfesta suas características e deixa perceber seus
princípios. Pode-se, portanto, considerar o D e Principatibus um
“ espelho dos príncipes” , em conform idade com o sentido que
então se dava a essa expressão. M as parece sobretudo que M a ­
quiavel “ seguiu um cam inho em que ninguém antes dele havia
pisado. Com para o que conseguiu com o descobrimento dos
mares e terras desconhecidos; apresenta-se como o C olom bo
do m undo m oral e p o lítico ” 18.
Entretanto, ainda que as perspectivas inovadoras do realis­
m o de M aquiavel e a intenção praxiológica que guiam sua pes-

18. Léo Strauss e Joseph Cropsey, H istoire de la philosophie p olitiq u e


(1963), trad. fi:., P U F , 1994, p. 331.
62 OS p r in c íp io s f il o s ó f ic o s d o d ir e it o

quisa constituam , mesmo como os comentadores têm assinala­


do, a base sobre a qual começará a se edificar, principalm ente
com Hobbes, o direito p o lítico m oderno, não se pode calar a
am bivalência que paira no discurso do florentinó. Se é verdade
que no “planeta” do qual M aquiavel é o teórico, o “ Príncipe dó
Inferno” 19 é senhor da ação política, é preciso in sistir de m odo
m uito especial nos procedimentos do acesso ao Poder e nos
m eios práticos para nele se manter. N o entanto - talvez contra
qualquer expectativa, mas, “ tal como o navegador em büsca de
águas e terras desconhecidas”20, encontramo-nos num a rota
in e xp lo ra d a -h á lugar nos interstícios do disCUtso m aquiavéli­
co para o esboço de um a concepção institucional na qual se a li­
nhava a capacidade norm ativa do Poder.
A norm atividade do Poder se exprim e na m aneira que o
Estado tem - seja ele principado ou república - de adotar novas
leis para atender às dificuldades da situação. A coisa é árdua,
por vezes até im possível, em razão do peso dos costumes. A
tarefa se mostra sempre problem ática: ainda que a inovação
inevitavelm ente perturbe a tradição, ela deve não obstante con­
sistir no estabelecimento de regras novas que não abalem de­
m asiado as condições estabelecidas21. Gom o quer que seja,
isso é necessário: “ U m príncipe recém-estabelecido num a Cida­
de ou num a província Conquistada deve renovar tudo:”22 Sem
dúvida procederá m ais por cálculo interessado do que por v ir­
tude generosa; ou ainda só avançará por tentativas e erros, sem
buscar as razões suficientes das norm as novas que estabelece.
M as o im portante é que, no Estado do qual M aquiavel traça
pela prim eira vez um bosquejo que, sem ser n ítid o e unívoco,

19. Joël Cornette, “L a planète M achiavel: le Prince d ’E nfer” , in L ’É tat


baroque, V rin , 1985, pp. 44 ss.
20. M aquiavel, D iscours sur la prem ière décade de T ite-Live, Prefácio,
p. 377. '
21. Ib id ., liv . I II , cap. X X X V , p. 696; Le Prince, V I, p. 305: “É preciso
pensar que não há coisa m ais penosa de se tratar, m ais duvidosa de se conse­
guir, nem m ais perigosa de se m anejar do que se aventurar a in trod u zir novas
instituições.”
22. M aquiavel, D iscours..., liv . I, cap. X X V I, p. 441.
PR IM EIR A PARTE 63

possui características já modernas23, as novas leis do príncipe


form am um a estrutura ju ríd ic a que se parece m uito com qs ele­
m entos constitucionais pelos quais definim os hoje a ordem es­
tatal. Já na prim eira frase dq P ríncip e, M aquiavel declara que
essas leis, por “ seu comando sobre os hom ens” , caracterizam
“ todos os Estados” 24. A o descrever a ação p o lítica na qual o uso
calculado da força e da astúcia determ ina a estratégia do ho­
m em de Estado e determina seu êxito, ele pretende mostrar que
o poder de Estado não é apenas expressão de potência e de
oportunism o. M u ito pelo contrário, para dado povo, em seu
território e num tem po determinado, é preciso que o Poder se
organize de ta l m odo, que seja canalizado e controlado. M a ­
quiavel, seguramente, se lim ita a m encionar e a descrever, com
ò apoio de exemplos históricos, os m eios pelos quais se m ani­
festa a ação do Poder do Estado; não elabora um a teoria siste­
m ática da prática política. N ão obstante, os mecanismos do
Poder aos quais recorre a práxis do chefe de um Estado para
m antê-lo ou desenvolvê-lo, bem como para ganhar um a batalha
contra a adversidade, contêm princípios gerais que M aquiavel
considera, im plicitam ente, o eixo fundam ental de um a concep­
ção institucional da política. Que o “principado c iv il” venha “ do
povo ou dos grandes, segundo um a ou outra parte tenha ocasião
para isso” 25, ele im põe a todos os cidadãos um corpo de regras

23. Convém aqui dar m aior atenção ao vocabulário. A lexandre Passerin


d ’Entrèves observa com m uita justeza que traduzir por Estado os termos
P o lis, Res publica, C ivitas ou Regnum, utilizados pelos autores clássicos, é
um a tradução complacente que não é pertinente {La notion de 1’E tat, O xford,
1967; trad. ff., Sirey, 1969, pp. 37-9). É preciso aguardar os meados do século
X I I I para que a filo s o fia política, pondo ênfase menos na unidade da com uni­
dade cristã (a respublica christiana ) do que na pluralidade das comunidades
diferenciadas nascidas de sua fragmentação (as civitates e os regna), reconhe­
ça a cada um a delas a individualidade sociopolítica de um a communitas p er-
fecta et sib i sufficiens, “ aquela que” , d iz A . Passerin d’Entrèves, “m ais se apro­
xim a, na linguagem m edieval, da noção m oderna do Estado” , já que se pode
encontrar nela um princíp io de unidade e de auto-suficiência. Contudo, so­
m ente com â Renascença é qüe aparece á palavra Estado “que fornece o âm bi­
to conceituai para um a situação nova” .
24. M aquiavel, Le Prince, I, p. 290.
25. IX , p. 317.
64 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

é de leis: não é dessa m aneira, pergunta o florentino, que o rei­


no de França “ é um dos m ais bem ordenados e governados de
que se tenha conhecimento em nosso tem po. E nele se encon­
tram in fin ita s boas instituições? das quais depende a liberdade
e segurança do rei” 26. A liá s , observa ele, a autoridade do Poder
num Estado vem do fato de os estatutos e os regulamentos que
ele a li estabeleceu terem preem inência sobre os usos e costu­
mes existentes.
Contrariamente ao que afirm avam os pensadores m edie­
vais, sempre apegados à regra consuetudináriâ, M aquiavel con­
sidera que a força do Poder consiste menos no respeito dos cos­
tumes por que se pautam òs povos do que no recurso à sua pró­
pria capacidade legisladora: o Estado é criador do direito da
comunidade c iv il. O poder p o lític o e um poder norm ativo e o
Estado se delineia como um fenôm eno ju ríd ico . É por isso que,
ao passo que o pensamento p o lítico m edieval, atento aos es­
quemas do regime feudal, confundia m ais ou menos, entre o
senhor e seus vassalos, o que é “público” e o que é “privado” ,
M aquiavel reencontra e reativa a distinção feita por Aristóteles
e Cícero entre a autoridade pública do príncipe e a autoridade
doméstica do pai de fa m ília ou do dono da casa, N ão se deixa­
rá de objetar aqui que M aq uiavel fic a a tal ponto reticente dian­
te de um a eventual teorização das estruturas jurídicas do Poder
estatal que nem sequer fa la da soberania do Estado, embora a
reconhecesse como summa potestas. É verdade que não cuida,
m esmo que a idéia de regulação da vid a pública esteja onipre­
sente em sua obra, de escrever um novo de legibus. M as reco­
nhece que o “príncipe novo” encarna num Estado, hic et nunc,
o poder de editar regras organizacionais e m áxim as de coman­
do. A prim azia da ordem assim estabelecida é tal que, sob um
rei ou num a república, todos os súditos devem obediência às
regras do direito assim “ form ulado” . Portanto, não só M aq u ia­
v e l avança por um cam inho novo ao associar a noção de “poder
público” ao seu conceito de Estado, mas tam bém é-lhe im pos-

26. Ib id ., X IX , p. 346.
P R IM E IR A PARTE 65

sível pensar o Estado independentemente do sistema regulador


que é a própria expressão do Poder.
Contudo, no discurso m aquiavélico, nada revela m elhor a
am bivalência da jo vem noção de Estado do que a hesitação en­
tre a ênfase dada explicitam ente à ação p o lítica e a im portân­
cia atribuída, ainda que im plicitam ente, à institucionalização do
Poder. Sem dúvida, essa indecisão permanece no fundo oculto
da obra. Entretanto, se um a teoria dá instituição continua sendo
o não-dito que o pensamento m aquiavélico guarda em seu cer­
ne, èlasè deixa decifrar filosoficam ente.
D e fato, embora a obra p o lítica de M aquiavel, compreen­
dida do ângulo filo s ó fic o , sig nifiq ue a rejeição dos horizontes
idealistas do pensamento p o lítico antigo, indica de m odo m uito
particular a fragmentação do universalism o ligado ao ecume­
nism o unitário da respublica christiana. O p rín cip e e os D is ­
cursos ensinam, de m odo uníssono, que o pluralism o e o rèla-
tivism o se insinuam na esfera específica formada, daí por diante,
pelos “principados” novos. Adem ais, como o aparelho in stitu -
cionafelaborado em cada um a delas por um Poder cuja preo­
cupação prim ordial é perdurar27, a autoridade do Estado não
poderia ser estabelecida de um a vez por todas; as regras de
ação que ela estabelece seguem os contornos dos acontecimen­
tos; adaptam-se e renovam-se ao sabor das “ coisas humanas” 28
e dos antagonismos que ocorrem na realidade política. E m
conseqüência, M aquiavel substitui o estatismo das instituições
m edievais, reputadas como. formadas com quase-perfeição já
que eram à im agem da Cidade de Deus, por um a dinâm ica ju r í­
dico-política necessária dependente do m ovim ento histórico.
N os prim órdios da modernidade, um a das grandes idéias filo ­
sóficas de M aquiavel é que não é a transcendência das idéias
que leva à realização do direito p o lítico ; como o Poder é coisa
humana, o Estado não tem de buscar suas raízes no “ outro m un-

27. Ib id ., II, p. 290.


28. M aquiavel, A m andrágora, lU ato, cena 2, e D iscours..., liv . I, X I, in
fin e , p. 414.
66 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do” , in te lig ív e l ou divino; tem , aqui m esm o, a história como


princípio, como cadinho e como horizonte29.
A ssim se desfazem, no próprio cerne do “trabalho da obra” ,
todos os pontos de referência tradicionais que, no âm bito dua­
lista do pensamento e do real, tinham servido até então para
d e fin ir a p o lítica por sua relação com o céu in te lig íve l ou com
a ordem natural e d ivina do m undo. Portanto, temos boas ra­
zões para dizer que p florentino abre a v ia de um a compreen­
são moderna do direito político, na m edida em que o hum anis­
m o que o conduz se reporta à experiência e à história. N ão obs­
tante, nos labirintos da obra, as coisas não são sim ples: ousado
precursor das vias da m odernidade, M aquiavel só avança, con­
tudo, em seu novo “planeta” sob o manto da ambiguidade: tendo
optado por expor os m eios usados pelo Poder do Estado na ação,
ele fic a m uito discreto - quase sigiloso - sobre a necessária
regulação norm ativa cuja necessidade irreprim ível ele captou.

B ) Os im perativos organizacionais do Estado moderno

Apesar da imprecisão e das hesitações do discurso de M a ­


quiavel, u m fenômeno de m aquiavelização do direito p o lítico
iria marcar, como um ponto sem retom o, a marcha da com ­
preensão do Poder. Para captar os princípios a partir dos quais
a filo s o fia conceberá desde então o Poder no Estado m oderno,
façamos o balanço das grandes mudanças que M aq uiavel intro­
duziu nos conceitos e nos procedim entos políticos.
Separando os horizontes do jusnaturalism o cosm ológico
da filo s o fia aristotélica e estóica e dando um adeus d e fin itivo
ao idealism o m etafísico e teológico, M aquiavel reconheceu as
raízes seculares, antropológicas e históricas do Poder: assim se
abre, sobre um fu n d o de realismo, a carreira do hum anism o ju -
ríd ico-político. N o espaço público que será o do m undo m o-

29. M aquiavel, D iscours..., liv . II, prefácio, p. 510. Evidentem ente, isso
não qüer dizer que M aquiavel seja o prelúdio dos historicism os do século X IX .
A noção de “ senso da H istória” é inteiram ente ignorada por ele.
PR IM EIR A PARTE 67

dem o, cabe ao hom em e somente a ele construir e conduzir a


p o lític a do Estado. É quase certo que, nessa revolução episte-
m ológica, M aquiavel tenha sido influenciado pelo direito ro­
m ano; seu conhecimento do D igesto e dos Institutos, sua fa m i­
liaridade com Tito L ív io e com a história de Rom a transparecem
em numerosas páginas e ele próprio confessa que sua “ longa
experiência das coisas modernas” deve m uito à sua “ leitura
contínua dos antigos” 30. M as quando declara que, no novo Es­
tado, os que têm o encargo de governar devem im itar “ a antiga
virtude” , isso quer dizer que devem reinventá-la e adaptá-la aos
parâmetros exigidos por um a p o lítica dirigida pelas novas ins­
tituições. D e fato, para além de sua erudição, M aquiavel com ­
preendeu não apenas que o Poder nada tinha a pedir a Deus31,
mas que, na sua laicidade intrínseca, não podia ser assim ilado
nem ao carisma de um chefe, fosse ele A n íb a l ou César Borgia,
nem à força m aterial de um a comunidade. A liá s, no hum anis­
m o ju ríd ic o -p o lític o que ele inaugura, o que lhe im porta não é
d irim ir a questão de saber se o Poder é (ou deve ser) o de um
m onarca ou de um povo (O p rín cip e e os Discursos não se
apresentam como os dois termos de um a alternativa entre os
quais é preciso optar), m as fazer entender que jam ais haverá
Poder p o lític o sem um conjunto de regras destinadas a estabe­
lecer suas estruturas básicas, fix a r suas linhas organizacionais
e até prever suas diversas m odalidades de controle. O Príncipe,
fundador de um a ordem inteiram ente nova, tem a seu cargo
fazer de seu “principado novo” um sistema ju ríd ic o , isto é, um
corpo de ordenações e de leis sobre o qual se edificará sua prá­
tica política; assim também , um a República é im possível e in ­
concebível sem um corpo de regras de direito destinado a esta­
belecer e a m anter a ordem pública. A s H istó rias flo re n tih à s
revelam , como num espelho, os m alefícios das carências orga-

30. M aquiavel, Le Prince, Dedicatória a Lourenço de M édicis, p. 289.


31. Se J. R . Strayer pode falar de um a L aícization o f French and E ng lish
Society in the Thirteenth Century, Speculum, 1940, X V , pp. 76-86, trata-se ai
apenas de sinais precursores ainda tím idos. M aquiavel fo i quem deu corajosa­
m ente o passo.
68 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

nizacionais da vid a pública e, portanto, 6 custo hum ano exor­


bitante e dramático da desordem num Estado.
Compreende-se, por conseguinte, a im portância das consi­
derações antropológicas na obra de M aquiavel. À m aldade e a
inveja dos homens, o d elírio das paixões, o m al sempre presen­
te na sombra do m enor bem, as forças do desejo e do egoísmo,
a inaptidão para fazer o bem sem ser forçado a isso etc. são ele­
mentos que esclarecem a natureza já po lítica do ato que pare­
ce, contudo, ser somente o fundador da política: esse ato esta­
belece um vinculum ju r is cuja força obrigatória é altamente
significativa do ponto .de vista filo só fic o . É que, de fato, no
Estado moderno, o dom ínio do Poder se exerce sobre a neces­
sidade natural e sobre o acaso que regem a vid a dos homens,
sem o que a anom ia é anarquia. A ssim se explica que a astúcia
seja o recurso, cardeal dos que governam, não só porque tom a
a força invisível (fo i esse o caso de Brutus fingindo a loucura)32,
mas sobretudo porque canaliza a força graças à coerção que
doma a necessidade para encam inhar-se para a liberdade: fo i
assim, aliás, que Rom a outrora cortou “ as raízes de suas quere­
las” 33. Desse m odo, aqueles que governam estão em condições
de enfrentar a im previsibilidade veiculada pelo tempo da histó­
ria. Conjurar á necessidade natural e p acaso histórico constitui
um critério decisivo da modernidade do direito p o lítico in statu
nascendi. É nisso que a virtü prepara sua capacidade norm ati­
va: im pedindo que a fo rtu n a empregue, “ a cada volta do sol” ,
toda a extensão de sua força, ela assegura o dom ínio sem o qual
não existe o Poder do Estado. A arte de governar é inconcebí­
ve l sem recorrer ao p rin c íp io da ordem pública.
Em bora sublinhe a im anência do p rin c íp io de ordem no
próprio âmago do Poder, M aquiavel ainda não sabe, entretanto,
conferir-lhe a clareza de um a m áxim a de lógica jurídica. Se­
gundo ele, esse princípio se exprim e em dois níveis. N u m p ri­
m eiro n íve l, comanda a preocupação com o êxito que acompa­
nha a ação do m om ento e, já que determina, como tal, um a es-

32. M aquiavel, D iscours..., liv . I II , II, p. 612.


33. Ib id ., liv . I, V I, p. 395.
P R IM EIR A PARTE 69

tratégia colocada sob o signo da utilidade e da eficácia, não se


eleva acim a da oportunidade34. Entendamos que ele perm ite ao
príncipe recorrer, se fo r preciso, a m eios extraordinários.a fim
de m anter a rédea curta a mediocridade humana. N u m segundo
n íve l, m ais profundo, ensina (é essa, de m odo todo especial, a
lição m agistral da República romana) que o sentido do direito
p o lític o está, no Estado, para além da personalidade dos p o líti­
cos que nele atuam: “ Graças à excelência de sua Constituição
e de suas leis, ‘a Cidade’ não tem necessidade de basear sua
salvação na virtude de um hom em só.” 35 Se é verdade qué o
Poder se preocupa acima de tudo cprti as técnicas do êxito - em
m om ento algum M aquiavel duyidá que essa é a missão p rin ci­
pal do “príncipe novo” na Itá lia agitada do Cinquecento - ele é,
na sua natureza profunda, questão, de instituição e de direito.
Tudo se passa, portanto, çom o;se, no entrecho da obra m aquia­
vélica, se entremeassem dois discursos aparentemente desco­
nexos. U m prim eiro discurso, explícito, participa de seu realis­
m o pessimista. Ensina a necessidade de domar os homens,
m esm o que para isso os governantes devessem usar cinism o36.
Contudo, M aquiavel não é o porta-voz de um cesarismo cruel,
intransigente e cego. É o advogado da “ ordem pública” , que é
im portante fazer triunfar sobre os interesses e as paixões. D a
mesm a form a, um segundo discurso, im p líc ito , está como que
escrito nas margens de T ito L ív io . Contém a intuição forte,
ainda que jam ais conceitualizada é teorizada, segundo a qual a
potência do Estado requer as estruturas de úm direito público
cujas normas sejam coercivas: ás “ boás leis” sãò tão im portan­
tes quanto as “boas armas” ; o direito è a força devem cooperar
e se compor, razão pela qual é necessário ao príncipe “ saber
bem lid a r com a fera e o hom em ” . Fichte e Cassirer serão sen­
síveis ao aspecto institucional puramente leigo que dá feição

34. M . M erleau-P onty, Signes, p. 275.


35. M aquiavel, H istoires florentines, liv . IV , I, p. 1119.
36. M aquiavel, D iscours..., Jiv. I, IX , p. 405. Léo Strauss até chaîna o
floren tin o de teacher o f e v il, em Thoughts on M acchiavelli, Glencoe, Illin o is ,
1958, p. 9.
70 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ju ríd ic a à po lítica segundo M aquiavel - um a po lítica da Terra


que sig n ifica que compete aos hom ens atuar è que terão, em
d e fin itivo , o destino que merecem37.

Certam ente é sobre o horizonte som brio dos prim eiros


albores da Renascença que se destaca a fig ura o riginal de M a ­
quiavel: o ferro e o veneno reinam na Itá lia do Cinquecento; a
Reform a de Lutero e a “ guerra dos camponeses” ensangüen-
tam a A lem anha desde o começo do século X V I; na França de
Francisco I é o tempo das guerras; na Inglaterra, grassa a m isé­
ria, diante da qual Thom as M ore protesta e reage... M as, mes­
m o sendo sempre possível, com Rousseau ou com Leo Strauss,
expor a questão de saber “ como ler M aquiavel” , é cèrto que
um a compreensão histórica de sua obra permanece inteiram en­
te insuficiente. Para além da aventura histórica dos homens,
filosoficam ente ele é, como d iz E . Cassirer, “ o prim eiro pensa­
dor que teve um a representação completa do que sig nifica o Es­
tado” 38. Julguem o-lo herm ético ou esclarecedor, insolente ou
fecundo, negro ou dourado, im porta reconhecer que ele salien­
ta com um a força extraordinária a energia criadora do Poder e
que, abrindo com essa idéia iconoclasta os cam inhos do hum a­
nism o jurídico-político, situa-se “ à beira do mundo moderno” 39.
M aquiavel, compreendido ou incompreendido, suscitou nu­
m erosíssimas resistências e críticas virulentas40. Ocorre que,
depois dele, não se podia pensar o direito p o lítico com o antes
dele. Sua doutrina serviu de breviário secreto aos condutores do
Poder, mesmo àqueles que, oficialm ente, a denunciavam. Será
preciso evocar o im placável C rom w ell, os “ déspotas esclareci­
dos” , o próprio Rousseau que v ia em O p ríncip e “ o liv ro dos
republicanos” ? Napoleão e M ussolini não escondiam sua adm i-

37. Arespeito desse ponto, cf. Em st Cassirer, The myth ofthe State (1946),
caps. X e X I, em trad. fr., G allim ard, 1993, pp. 164-80 e 181-93.
38. E m st Cassirer, op. c it., p. 133.
39. Ib id ., p. 140.
40. Lim item o-nos a citar aqui La G rant 'm onarchie de France, do A r­
cebispo Claude de Seyssel (1519) e, sobretudo, o A nti-M achiàvelauD iscours
sur les moyens de bien gouverner et de m aintenir en bonne p a ix un royaume
ou autre principauté, de Innocent G en tille t (1576).
P R IM E IR A PARTE 71

ração pelo florentino. N a verdade, para além do uso dado por


certos chefes de Estado às teses, m ais o u menos bem com ­
preendidas, de M aquiavel, parece-nos m uito m ais interessante
observar que autores como M anzoni e Clausewitz no século X I X ,
depois, m ais perto de nós, James Buraham e M erleau-Ponty,
souberam ver na obra do florentino, tão abundante quanto per­
turbadora, a idéia m oderna da preem inência do Estado secular,
de sua Constituição e de suas leis.

Contudo, coube a Thom as Hpbbes edificar, peça por peça,


dessa vez como filo s o fia sistemática, a estátua do Poder41 co­
m o potência norm ativa num Estado cuja catedral im pressio­
nante o hom em construiu racionalm ente.

2 .0 princípio de autoridade no Estado-Leviatã de Hobbes

O historiador das idéias pode fic a r espantado e irritado ao


m esm o tem po quando lê, sob a pena de Thom as Hobbes, que a
filo s o fia p o lític a nasceu com o D e Cive42. Espanta-se com que,
de Platão a Jean B od in ou de Aristóteles a M aquiavel, nenhu­
m a das obras filo só ficas de Santo A gostinho, Santo Tomás ou
M a rs ílio de Pádua, mereça, na opinião de Hobbes, sér conside­
rada em sua dimensão p olítica e com que nenhum dos glosado-
res, legistas ou jurisconsultos tenha sabido, nas escolas de d i­
reito de Bolonha, Pádua, Salamanca, Bourges ou Orléans, lançar
a m enor clareza sobre os princípios e as engrenagens da p o líti­
ca. Assim , nenhum filó so fo , nenhum jurista teria compreendido,
até o século X V II, que a p olítica não pode prescindir da postu­
lação fundam ental nem do horizonte conceituai da filo so fia ? A
pretensão do filó s o fo de M alm esbury de inaugurar a “ filo s o fia
p o lítica” pode portanto irritar na m edida em que tacha dê in -

41. Leo Strauss qualifica mesmo Hobbes de “prim eiro filósofo do Poder” ,
D ro it naturel et histoire, P lon, p. 208.
42. “ Se a Física é um a coisa inteiram ente nova, a filo s o fia p o litic a o é
ainda bem m ais. E la não é m ais antiga do que m inha obra D o cidadão” , D e
Corpore, E pístola dedicatória, trad. Destutt de Tracy; cf. igualm ente Lé-
viathan, cap. IX , trad. F. Tricaud, Sirey, 1971, p. 80.
72 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

fantilism o e considera vãs todas as obras, no entanto vigorosas,


dos séculos passados. Não seria m ais por um orgulho desmedido
do que por heroísm o intelectual que Hobbes se arroga a quali­
dade de fundador em m atéria de filo s o fia política?
Só a leitura atenta do corpus filo só fic o hobbesiano perm i­
te dar adeus a esse espanto irritado. Hobbes, diferentem ente de
M aquiavel, não é em baixador nem jurista: é filó so fo . Avan­
çando com passo firm e no terreno em que, desde Grotius e Des­
cartes, firm am -se com n itidez cada vez m aior as características
distintivas do continente m oderno do pensamento* cujas mar­
gens M aquiavel entrevira, Hobbes dirige a todos os autores que
o precederam a crítica contundente de terem sempre considera­
do a p o lítica um a questão de arte e de prática. Ora, como, na ló ­
gica interna do sistema filo só fico de Hobbes, a política não pode
ser pensada independentemente dap hilosop hia p rim a , o Poder,
pedra angular da política como sempre fo i reconhecido, deve ser
encarado como uma questão teórica e de princípio. E m outras pa­
lavras, o que Hobbes inventa em seu procedim ento filo s ó fic o é
a problem atização teórica da p o lític a .

A ) A problem atização teórica do Estado

Para Hobbes, erigir a estátua do Estado-Leviatã não é um


empreendimento pragm ático e sim especulativo. A lé m disso,
quando Hobbes reconhece o poder do Estado como a fonte de
todas as normas da experiência p o lítica, não é porque um a
constatação em pírica, e sim um raciocínio rigoroso o conduz a
ta l conclusão. A feição racionalista do pensamento de Hobbes
aparenta-se assim m ais com os esquemas discursivos da filo s o ­
fia francesa do século X V H do que com as tendências em piris-
tas da filo s o fia inglesa: não que Hobbes ignore a im portância
da Common Law 43 que, na Inglaterra, converte o direito, até e
inclusive o direito político, no produto do costume e da ju ris -

43. A D ialogue between a Philosopher and a Student ó f the Commo


Law o f England, publicado postum am ente em 1681, fo i sem dúvida redigido
em 1664 ou 1665, cf. edição de TuU io A scarelli, D a llo z, 1966.
P R IM EIR A PARTE 73

prudência; mas, diante do m odelo institucional da França de


R ichelieu, ele pensa que a força do Poder reside na arquitetura
racional de sua legislação positiva.. Entre os m odelos inglês e
francês, a epistem ologia hobbesiana, em sua ambição teorista,
não hesita: o legalism o centralizador da França exprim e as
potências do racional. Hobbes procurará portanto, explicando
com o elas estruturam o Poder, sistem atizar seu significado
conceituai e sua capacidade organizadora. A ssim , a “ filo s o fia
p o lítica” será um a “ ciência po lítica” .
Com o a problem ática do Poder consiste, desde então, em
se perguntar quais são as razões de p rincíp io, ao mesmo tempo
fundam entais e organizacionais, da autoridade do Poder no
Estado, Hobbes renova a indagação ciceroniana que se referia
outrora à ratio ju r is , à ratio legis e à ratio decidendi. Abre o
cam inho para o trabalho de reflexão crítica que recua, segundo
a v ia especulativa, às raízes prim ordiais do Poder. Por essa
razão, bem m elhor do que M aquiavel, ele enuncia o que Leo
Strauss chama de um a “ questão fundam ental” : esta não é nem
a questão em pírica da origem da ordem p o lítica nem a questão
ontológica de sua essência. Hobbes form ula à questão essen­
cial que tocá ao que há de m ais profundo, portanto, de funda­
m ental, na realidade p o lítica que o Estado é. N o sentido m ais
forte do term o, é o princípio - o princípio prim eiro - do Poder
que sua nova filo s o fia po lítica pretende pôr em evidência44.
Hobbes m ostra assim que, no espaço público em que os ho­
mens são chamados a evoluir se não querem se parecer com
lobos, o Poder, sim bolizado pelo Leviatã, é um a fig u ra da arte
racional. Isso, bem entendido, fo i m uitas vezes salientado
pelos comentadores. M as õbservou-se menos que, no m ecanis­
m o universal postulado pela filo s o fia de Hobbes, as proprieda­
des norm ativas do Poder do Estado resultam da m aneira pela

44. C oino d iz com m u ita clareza Robert Cum m ings em Human Nature
and H istory: A Study ofthe Development o flib e ra lP o litic a l Thought (Chicago,
1969, v o l. 2, p. 16), citado por Hannah A rendt em Juger. Sur la philosophie
p o litiq u e de K ant, trad, fir., L e S euil, 1995, p. 43: “ O objeto da filo s o fia p o lí­
tica m oderna, ‘inaugurada p or Hobbes’, não é a Cidade ou sua p o lític a, m as a
relação entre filo s o fia e p o lític a.”
74 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

qual ele é gerado. Indo m uito m ais longe do que M aquiavel na


v ia do hum anism o ju ríd ic o -p o lític o e extraindo, ademais, a
lição das capacidades epistem ológicas de renovação intelectual
contidas na Obra de Bacon, Hobbes conduz a um ponto tão alto
de desenvolvim ento a tem ática do Poder produtor das normas
da instituição p o lítica que ela permanecerá, até nossa época, o
fio condutor de um direito público que conquistou sua autono­
m ia: o Poder do Estado moderno tem o m onopólio da criação do
direito, a tal ponto que, onde não existe Poder, não há direito45.
Diferentem ente de M aquiavel, Hobbes não é um “p o líti­
co” , é como espectador aterrorizado que assiste às vicissitudes
que abalam a Inglaterra, d ivid id a no seu tempo pela guerra ci­
v il. Diferentèm ente de B o d in e G rotius e ainda que, em inúm e­
ros pontos, ele se aproxim e de seus posicionam entos, e, m uito
atento tanto à Common Layv quanto ao direito da m onarquia
francesa, ele trata do problem a do Poder com as ferramentas
conceituais e os gabaritos categoriais do filó so fo . A lé m disso,
diferentem ente de Bacon, a quem, não obstante, parece dever
m uito (ainda que não indique suas fontes), ele quer escapar das
m iragens provocadas pela república im aginária que continua
sendo, a seu ver, A Nova A tlân tid a, quaisquer que sejam as ver­
dades que ela contém. E m conseqüência, a arte racional conce­
bida por Hobbes determina, com um a lógica im pecável, as com ­
petências institucionais que, presas ao Poder em razão de sua
construção, conferem -lhe na vid a pública sua força de coman­
do e de regulação.
Hobbes aprofundou sob um duplo signo aquilo que, em
M aquiavel, ainda não passava de um a intuição: de u m lado,
enquanto o hum anism o de M aq uiavel se lim itava a afastar as
tradições fabulosas da m etafísica e da teologia, Hobbes preci­
sa sua tendência racionalista e seu fundam ento individualista',
do outro lado, enquanto Bacon procurava a natureza do Poder
num a E upólis (isto é, onde ele não pode estar), Hobbes, a p li-

45. É claro que o term o “ direito” é entendido aqui no seu sentido ju r íd


co. Isso deixa intacta a questão dò “ d ireito natural” que, segundo Hobbes, não
tem nenhum a dim ensão ju ríd ic a (nem m esm o m oral).
PR IM EIR A PARTE 75

cando o m étodo resolutivo/com positivo da jo vem ciência m e-


canicista, analisa seus elementos constitutivos a fim de aquila­
tar as capacidades produtivas resultantes de sua síntese e de sua
colocação em movimento. Expõe assim, até suas últim as con-
seqüências, as premissas, até então demasiado tím idas, do hu­
m anism o ju ríd ic o -p o lític o - o que lhe perm ite construir “ a p ri­
m eira teoria moderna do Estado moderno” . Digam os, em outras
palavras, que o Podér tal como o concebe Hobbes é o do Estado
moderno.

A s diferentes facetas da teoria hobbesiana são, de fato,


filosofem as em tom o dos quais a p o lítica m oderna, de um a ou
de outra maneira, construirá sua representação do espaço pú­
blico. Isso se explica pelo fato de Hobbes, que énfatizá o cará­
ter teórico de sua investigação - “ E u não falo dos homens,
mas, no abstrato, do centro do Poder”46- , não se preocupar em
responder aos problemas que nascem da conjuntura p o lítica da
hora e não levar em conta o realism o pragm ático invocado por
M aquiavel na Itá lia dos B órgia e dos M éd icis. Em bora, quando
apresenta ò Estado-Leviatã coino o lugar de um governo forte
e centralizador, pareça repetir a lição do P ríncipe, ele a eleva a
um n ív e l totalm ente diferente: o do conceito e da teoria geral,
na própria perspectiva em que, no século X X , R . Carré de M a l-
berg, H . Kelsen e C. Schm itt ainda a estudarão. Quaisquer que
sejam as censuras político-ideológicas tão freqüéntemente for­
m uladas - com oü sem razão - contra Hobbes, apresentado
com o o “ horrendo” doutrinador do despotism o, o rigor da aná­
lise e o equacionamento lógico do poder descobrem as linhas
mestras da teoria do Estado m oderno: as capacidades de co­
m ando e de regulação do Poder procedem, no âmago do hum a­
nism o ju ríd ic o , de um a concepção ind ivid u alista e ig u a lita ris -
ta da existência pública, embasada num racionalism o estrito.
Esses quatro filosofem as, que resumem a modernidade do pen­
samento hobbesiano, culm inarão paradoxalmente, nó século do

46. Hobbes, Léviaíhan, E pistola dedicatória a Francis G odolphin, trad.


Tricaud, p. 2 e n. 5.
76 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Ilu m in ism o , num discurso que, contudo, se pretenderá hostil


aò tom ideológico que se acredita então discernir nela. Seu sig­
nificado é tão forte, por si só e em razão de seus prolongam en­
tos, que merece ser exam inado:

■ O humanismo

Sem a m enor hesitação, Hobbes pensa a p o lítica no con­


texto hum anista desenhado com traços sugestivos mas firm es
pelos pensadores do século X V I. O Poder é, em seu princípio,
edificado pelo hom em ; são os homens que asseguram seu fu n ­
cionamento; em sua utilização, ele deve servir à segurança dos
homens e à paz c iv il. O direito político , segundo Hobbes, se
apóia na antropologia: as três obras que contêm a teoria do
direito político - Elements o f Law, D e Cive e Leviatã - abrem-se
com um estudo da natureza hum ana cuja análise ensina que,
não. sendo o hom em inclinado por natureza a amar o hom em ,
não há sociedade natural, com o pensava Aristóteles, nem sequer
sociabilidade natural* como pensa ainda G rotius. Considerado
filosoficam ente, o estudo da natureza hum ana está destinado a
fornecer rim desmentido total do. naturalism o soçiopolítico
cuja herança, desde Aristóteles, a tradição recebeu. E le im p li­
ca igualm ente um grande distanciam ento do teologism o cristão
que quis reforçar o çosmologismo, dando ênfase à obra do D eus-
Providência. À dupla vontade de ruptura manifestada por Hobbes
ao rejeitar o çosm ologism o naturalista e ao se afastar do teolo­
gism o providencialista é tão forte que, opondo-se à idéia das
harmonias naturais projetadas por B o d in em sua “ República
bem ordenada” , Hobbes encontra o esquema dp Estado na
lógica da arquitetura a rtific ia l que o hom em é capaz de conce­
ber e edificar; do m esmo m odo, o Poder, num universo que está
sendo desteologizado pela afirm ação já triunfante das aptidões
racionais do hom em , se d elineia como um poder tem poral
exclusivam entc secular. O procedim ento é decisivo: quase to­
dos os analistas do Estado m oderno, Rousseau, K ant, H egel,
bem como A la in ou M erleau-Ponty, o seguirão nesse cam inho.
Com Hobbes começa, ap m esm o tempo que a desnaturalização
da autoridade do Estado, aquilo que M a x W eber chamará de “ o
P R IM EIR A PARTE 77

desencantamento do m undo” : para o Estado, os horizontes teo­


lógico-políticos recuam para a sombra. Deus, sem dúvida, ain­
da não desertou do m undo, mas o tem poral e o espiritual per­
tencem a partir de então a duas repúblicas - a c iv il e a eclesiás­
tica -- cujas potências não devem interferir um a na outra. Glaro,
não se poderia deixar de falar que o pensamento iconoclasta de
Hobbes tropeça em lim ites que não pode (ou não quer) trans­
por: as “ leis civis” e as “ leis naturais” sc contêm m utuamente e
o Leviatã permanece um “ Deus m ortal” sob úm Deus im ortal.
Hobbes continua assim, apesar de suas características hum a­
nistas, um pénsador entre dois m undos. Entretanto, na m oder­
nidade de sua obra, a Cidade terrestre é construída, para a tran­
quilidade dos homens, pela invenção, pela arte e pela indústria
dos homens.

O individualism o

U m a vez descartadas as tradições “ fabulosas” , Hobbes, a


fim de conhecer cientificam ente o hom em , considera-o, na
m edida em qué é sempre rem etido a si mesmo, a seu am or-pró-
prio e a sua glória, um ind ivíd uo a quem o trato com os outros
não interessa naturalmènte. O individualism o, cuja im portân­
cia M aquiavel, com suas observações realistas, havia pressen­
tido sem jam ais, contudo, tem atizá-lo com o um dos eixos de
sua doutrina, constitui para Hobbes o apuramento necessário
que o hum anism o requer para ser a base sólida do direito p o lí­
tico. N ada há de surpreendente nisso, já que ós preceitos m eto­
dológicos do filó so fo são, de m aneira deliberada e expressa, os
mesmos da ciência galileana47. Graças à audácia epistem ológi-

47. Já o Short Tract (provavelm ente escrito em 1630; cf. edição de J.


Bem hardt, C ourt traité desprem ierspríncipes, P U F , 1988) não deixava d ú vi­
da algum a a esse respeito. D epois de descobrir, fascinado, os Elem entos de
Euclides, nos quais o elem entar e suas composições constituem as bases do
raciocínio cie ntífico , Hobbes expunha nesse fin o opúsculo que todo objeto
adquire para o conhecim ento a figura-geom étrica: organização e rig o r de­
m onstrativo, lógica analítica e reconstrução dedutiva, clareza das definições e
prin cíp io de causalidade necessário e suficiente são as chaves m etodológicas
tanto da “ ciência” como da “ filo s o fia ” . Então Hobbes, cheio de admiração
78 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ca do elementarismo, Hobbes é conduzido a um a antropologia


de tipo puramente individualista: conhecer a natureza hum ana
não é conhecer a espécie hum ana em sua globalidade nem a
m aneira pela qual ela se insere h o Todo do m undo; é conhecer
O com as quais
comporá, m ediante um trabalho de síntese, a província da sua
existência, cuja administração incum birá à pluralidade das
individualidades. Antes da m onadologia leibnitziana, o hum a­
nism o de Hobbes inaugura “ a era do in d ivíd u o ”48, bem sinto­
m ática do pensamento m oderno49.
F o i por não compreenderem o prim ado do in d ivíd u o até
no m undo p o lítico que as filo so fia s continuaram até então nas
trevas de um a especulação dogmática, condenando assim ao
fracasso o que nelas era “ antes um sonho do que um a ciên­
cia” 50. Entretanto, a rigor o ind ivid ualism o, cujas m etam orfo­
ses Hobbes pretende descobrir, não é de form a algum a inédito
no pensamento do direito público. Segundo von G ierke51, a

pela jo ve m ciência m ecanicista que M ersenne, R oberval, Ferm ât, Gassendi,


H arvey, etc. constroem seguindo os passos de G alileu , adota o procedim ento
intelectual que suscitou, na expressão de R . Lenoble {Mersenne ou la nais­
sance du mécanisme, 1942; reedição 1971), “o m ilagre dos anos 1620” . N ão
apenas, como Mersenne, o renom ado “ secretário da Europa culta” , ele repele
o naturalism o e o pan-psiquism o que espalham na ciência um a tintura de
sobrenatural, mas, como ele ainda, por um a m utação da sensibilidade intelec­
tual que o opõe ao pensamento escolástico, fo ija um a nova epistem a: esta,
fe ita de procedim entos analíticos/sintéticos que recom põem o todo com o
a u x ílio dê seus elementos, confere ao elem entar e ao in d iv id u a l um lugar de
prim eiro plano que lhe perm ite substituir a poética m edieval da qUalidade
pela linguagem da quantidade e da m edida.
48. Tiram os essa expressão do títu lo do liv ro de A la in Renaut, L 'è re de
l ’individu, G allim ard, 1989, que, todavia, não a emprega a propósito de Hobbes.
49. Sieyès, em Q u’est-ce que le tiers état? (1789), escreveu, como se
fizesse eco a Hobbes (que, contudo, não form ou suas idéias): “N unca se com­
preenderá o mecanismo social se não se optar por analisar um a sociedade como
um a m áquina comum, considerar separadamente cada um a de suas partes e
ju ntá-las de novo, na m ente, todas, um a por um a, a fim de captar suas concor­
dâncias e a harm onia geral que disso deve resultar” , reedição P U F , p. 65.
50. Hobbes, Léviathan, cap. X L V I, p. 681.
51. V o n G ierke, Das deutsche Genossenschaftsrecht{1868-1881), trad.
fr. parcial sob o títu lo Théories p olitiques du M oyen Âge, Sirey, 1914.
PR IM EIR A PARTE 79

passagem da universitas para a societas constituiu, na história


ju ríd ic o -p o lític a m edieval, um a guinada capital. N o nom inalis­
m o de G uilherm e de Occam, que é sua transposição filosófica, a
comunidade hum ana já não era pensada comp um todo no qual
os homens eram apenas partes indissociáveis; ela resultava,
antes, de um a associação ou da soma de indivíduos e, em cada
societas âssim form ada, as vontades individuais constituíam o
ponto de partida e o princípio da ordem p o lítica que elas cons­
troem . Hobbes adota m anifestam ente o esquema occamiano do
individualism o como condição da instituição do Estado. E , ao
passo que os publicistas da Idade M éd ia eram reticentes à u tili­
zação da noção de persona que, no entanto, lhes fornecia o di­
reito privado, Hobbes resolveu conferir à noçãô de in d ivíd u o
um estatuto conceituai surpreendentemente claro, áo qual, de
todo m odo, o exame do problem a filo s ó fic o da individuação,
clássico desde Aristóteles, jam ais perm itira chegar. Já em E le -
ments o fL a w 52, o indivíduo aparece, graças à hipótese de traba­
lho do “ estado da natureza” como estado antèpolítico e antejurí-
dico53 como o ser que não tem outra preocupação além da sua
própria vida (ou sobrevivência) e que, no caso, é auto-suficiente.
A partir dessa premissa individualista, a existência do Po­
der no Estado apresenta portanto um único problem a: o da pas­
sagem de Uma m ultidão de átomos ind ivid uais associais e apo-
líticos, para a unidade ordenada da sociedade “ c iv il” ou “p o lí­
tica” . Para resolver esse problem a, Hobbes propõe um a teoria
do contrato social ~ cuja idéia ele não inventa mas cujo p e rfil,
antes de Rousseau, renova de m odo profundo e cuja teoria ela­
bora54. Exam inarem os m ais adiante os m ecanism os das doutri­
nas contratualistas que, depois de Hobbes e em m eio a m atizes
que, de P ufendorf ou de Locke até Rousseau, K ant ou Fichte,

52. Hobbes, Eléments ofLaw , §§ 5 e 6; Léviathfin, ç&p. X IV .


53. Recordemos que o direito da natureza (Jus naturae) é, no hipotético
“ estado de natureza” , um a força (potentia ) e que, como tal, não possui nenhu­
m a dim ensão ju ríd ic a. "
54. Sobre o problem a da formação da teoria do contrato social, indica­
m os nossa abra L ’interm inable querelle du contrat social, Ottaw a, 1982. C f.
igualm ente Patrick R ile y , The General W illB efore Rousseau, Princeton, 1986.
80 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

são sobretudo francas diferenças, traçam o cam inho que leva à


m odernidade do direito político. Basta aqui sublinhar que o in ­
dividualism o, ao postular a independência das vontades, é o
pressuposto obrigatório das modernas teorias contratualistas
do Poder. É verdade que, enraizado num voluntarism o in d iv i­
dualista, o processo do contrato social não deixa de levantar
tremendas questões filo só ficas: como a pluralidade dos in d iv í­
duos pode form ar a unidade do corpo público? Com o sua inde­
pendência pode converter-se em união? Hobbes - diferente­
mente de Roussêau e, sobretudo, de Kant, que tentaram resolver
essas questões inserindo a Idéia racional do contrato no h ori­
zonte transcendental do pensamento - nem sequer entreviu a
dificuldade, como atestam os frontispícios eloqüentes do D e
corpore político e do Leviatã, que representam o corpo político
como a soma de uma m ultidão de indivíduos partes extra partes.
Com o dirá Bergson, indagando-se sobre o velho problema do
m últiplo e do uno que, vindo da m etafísica ontológica, ressurge
na. área política, “ com serragem não se faz um a árvore” . A d ifi­
culdade em que esbarra Hobbes sem se dar conta é particular­
mente grave quando se trata do Poder da “ sociedade c iv il” nasci­
da do contrato: como conceber que, no Estado-Leviatã, a autori­
dade unitária do comando oriundo da capacidade norm ativa do
Poder expresse a vontade una e homogênea do Soberano, quan­
do ela procede da pluralidade heterogênea e m ultiform e das von­
tades independentes dos indivíduos? Hobbes não consegue eluci­
dar esse problema porque não sabe distinguir, como fará Rous­
seau, entre a “vontade de todos” e a “vontade geral” ; tampouco
sabe salientar, como fará Kant, a diferença entre heteronomia e
autonomia; Apesar dessas sérias carências, Hobbes, explicando
more geométrico que a problemática do Poder deita suas raízes
no individualism o, forneceu à modernidade do direito político
um a de suas chaves mais notáveis. A ssim Sieyès, em 1789, não
hesitará em escrever que, embora a nação se caraeterize pela
“unidade da vontade comum” , não se poderia esquecer que “ o
indivíduo é â origem de todo o podei-” 55. Essas palavras, que

55. E. Sieyès, Q u’est-ceque le tiers état?, pp. 65-6.


PR IM EIR A PARTE 81

exprim em um estado de espírito, explicam , na época revolucio­


nária, a reivindicação dos “direitos do hom em ” e, nas diversas
correntes do liberalism o* os im pulsos daquilo a que B enjam in
Constant chama a “ liberdade dos modernos” . A ssim entendidas
e exacerbadas, elas são o ponto de partida, no m undo moderno,
da “ espiral individualista” 515 cujos prim eiros fio s Hobbes, que
não im aginava seu destino, havia reunido num nó apertado. -
E le já poderia, porém, ter avaliado esse destino prodigioso:
o individualism o que constitui a base sobre a qual se edifica 0
Poder do Estado-Leviatã vai de par, no seu sistema m atem ático-
mecanicista, com um igualitarism o.estrito - u m dos temas m ais
obcecantes do pensamento do direito m odém o. M as, na verdade,
a equação entre individualism o e iguabtarism o é.menos transpa­
rente e mais complexa do que pode parecer à prim eira vista. ;

O igualitarism o

E m prim eiro lugar, a tese m ais nova e tam bém a m ais im ­


portante por suas conseqüências jurídicas é, em Hobbes, a da
igualdade dos indivíduos. Certamente podem-se, também aí, en­
contrar antecedentes não desprezíveis para o igualitarism o: a
patrística cristã considerava que os homens, sendo todos irm ãos,
são iguais perante Deus. M as, na filo s o fia de Hobbes, a igual­
dade em questão não é a dos homens perante o tribunal divino.
O estudo antropológico ensina que a igualdade é o correlato da
postulação individualista do sistema e tem um a dimensão filo ­
sófica quase existencial - isso, precisamente, marcará de
m odo duradouro o pensamento m oderno. “ Todos os homens
são naturalmente iguais” 57, declara Hobbes. A favor da ficção

56. A expressão é de G . Lipovetsky em L ’émpire de l 'éphémère. La mode


etsondestindanslessociétésm odernes,G d!^síaax& i\9% l..- . , ,
. 57. Hobbes, D e C iye, §, 3;.no Léviathan, cap. X H I, p. 121, ele precisa:
“A Natureza fez os hom ens tão iguais no que se refere às faculdades do corpo
e dá m ente que, aindá que possamos às vezes encontrar u m hom ènrclaram en-
te m ais forte, òorpofalm enté, bu com um a mente m ais perspicaz do que outro,
m esmo assim , levando tudo em conta, a diferença de um hom em para outro
não é tão considerável que um hom em possa, por essa razão, reclam ar para si
um a vantagem que outro não pudesse pretender tanto quanto ele.” ■
82 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

m etodológica da “ condição natural dos homens” , ele apresen­


ta, inicialm ente, uma prova físico-m ecânica dessa igualdade: os
homens têm um a capacidade ig u al de se m atar uns aos outros e
até mesmo o m ais fraco sempre tem força suficiente para matar
outro m ais forte do que ele, seja porque recorre a “ um a m aqui­
nação secreta” seja porque “ se a lia a outros que estejam cor­
rendo o mesmo perigo que ele” . Hobbes apresenta a seguir um
argumento de natureza psicointelectual: “ Quanto às faculdades
do espírito ( ...) , nelas encontro, entre os homens, um a igualda­
de m ais perfeita ainda do que sua igualdade de forças” : não que
Hobbes, a exem plo de Descartes, ache que “ o bom senso é a
coisa m ais bem distribuída no m undo” e que todos o receberam
igualm ente do Criador, porém, segundo ele, a prudência “ é dis­
pensada igualm ente a todos os homens para as coisas às quais
se aplicam igualm ente” 58; mesmo que cada um tenha tendência
a se considerar m ais sensato do que os outros, isso prova, d iz
ele, antes a igualdade dos homens do que sua desigualdade, já
que, nesse caso, cada um está satisfeito com a sua parte. Pode-se,
sem dúvida, achar esse argumento estranho e contraditório, pois
sé supõe que é a relação entre o hom em “m ais forte” e o hom em
“ m ãis fraco” , ou entre a parcela m aior ou m enor dê sabedoria
de que cada um se crê portador, que prova a igualdade dos in d i­
víduos. Entretanto, são dois os temas que se devem reter. O p ri­
m eiro é que, do ponto de vista filo s ó fic o , Hobbes rompe a con­
cepção tradicional de um a sociedade hierarquizada que neces­
sita, como repetirá M ontesquieu - nesse aspecto m ais “ antigo”
do que “moderno” - de “ categorias e diferenças” . A esse respei­
to, como em tantos outros, Hobbes é profundam ente antiaris-
totélico e, dè m aneira ainda m ais radical, antigrego: a im agem
da “ bela totalidade” , valorizada pelo antigo pensamento helé­
nico, está a léguas de distância de sua própria visão da socieda­
de. A ós seus olhos, esta não é um a unidade que integra a m u lti­
plicidade, mas resulta da soma de individualidades iguais em
“ força” e em “ mente” . A analítica da condição hum ana feita
por Hobbes está no p ólo oposto do h olism o sociopolítico des-

58. Ib id ., pp. 121-2.


PR IM EIR A PARTE 83

crito por Aristóteles59: os homens, na sua constituição natural


igual, têm não só aptidões iguais mas tam bém necessidades
iguais, os mesmos m eios para satisfazê-las e as mesmas espe­
ranças de atingir seus fin s, tendendo todos esses parâmetros
para sua preocupação igual de perseverar em suas vidas. Por
conseguinte, não existem entre os indivíduos diferenças pu de­
sigualdades que determ inem a sua complementaridade: por
isso, quando deixam o “ estado da natureza” pelo “ estado social” ,
que é, ao mesmo tempo, o “ estado c iv il ou p o lític o ” , sua con­
tribuição para a convenção e para a instituição do Poder é a
mesm a para todos.
A m oderna filo s o fia do direito, especialmente no século
X V III, se apoderará desse tema anti-hierárquico sem se preo­
cupar com m atizes. A igualdade, compreendida como um d i­
reito natural do ind ivíd uo, se tom ará - Hobbes, que atribuía ao
ju s naturae um a conotação60 inteiram ente diferente, jam ais
pensara nisso - o objeto de um a argumentação fervorosa e de
um m ilitantism o cuja esperança alim entará então e alim enta
ainda as utopias socializantes.
N um a segunda abordagem, um a análise m ais acurada do
igualitarism o que acompanha, na filo s o fia de Hobbes, a axio­
m ática individualista, conduz a um a segunda tem ática que é,
exatamente, a da edificação do Poder p o lítico do Estado-Levia-
tã sobre o pano de fundo da dialética entre a razão e a paixão.
A igualdade natural dos indivíduos é ta l que cada um dis­
põe de um “ direito de natureza” (Jus naturae), que não é nada
menos do que a liberdade de fazer tudo que possa para preser-

59. Hobbes, D e Civè, I, § 2. Hobbes substitui a im agem organicista da


sociedade, na qual, segundo Aristóteles, as partes são determinadas pelo todo,
por sua concepção m ecanicista de um a sociedade construída por composição
sintética dos elementos que os indivíduos são iguais por natureza. N o mesmo
m ovim ento iconoclasta, Hobbes não hesita em abalar, com o já fizera Giordano
B runo, a idéia dos ciclos, que embasa o retom o eterno das coisas. A ciência
m ecanicista ganha facilm ente dessa visão m etafísica “ fabulosa” e, ainda por
cim a, indica um a via na qual se encaixa a experiência de um a marcha para a
frente das coisas.
60. C f. supra, n. 53, p. 79.
84 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

var sua vida61. Com o, nessa condição, cada um tem direito a


tudo dé que necessita, essa igualdade predispõe os indivíduos à
concorrência e à guerra: dèsconfiançà, inim izade, rivalidade
explicam de m odo m uito lógico'que, segundo “ a inferência ex­
traída das paixões” , o hom em seja “um lobo para o hom em ” e
o estado da natureza em que reina um a hostilidade universal
ocasione a “ guerra de todos contra todos” . Entretanto, Hobbes
acrescenta: “Penso que jam ais fo i assim de um â m aneira geral
no m undo inteiro.” 62 O estado pré-político é um a ficção m eto­
dológica: o gênero de vid a que seu conceito envolve só preva­
leceria “ se não houvesse poder com um a se temer” (se ainda
não houvesse ou se já não houvesse)63. Desse m odo, Hobbes
remeté à problemática fundam ental dó Poder que, assinala ju d i­
ciosamente Leo Strauss, ‘‘tom a-se pela prim eira vez eo nom inè
u m tem a central da filo s o fia p olítica” 64. Ora, nessa problem á­
tica dò Poder, o individualism o e o igualitarism o, vigas mestras
do sistema àntropológico-político de Hobbes, culm inam na dia­
lética das paixões e da razão. A natureza hum ana é de fato o
palco de paixões contraditórias: se umas levantam os homens
uns contra os outros e geram a guerra, outras, como “ o m edo
da m orte, o desejo das coisas necessárias á um a vid a agradável,
a esperança de obtê-las pelo engenho deles” inclinam -nos para
a paz, e “ a razão sugere ãs cláusulas apropriadas de acordo pá-
cífic o , a partir das quais se pode levár Os homens a se entende­
rem ” 65. M esm o quando a razão não tem , segundo Hobbes, a
Capacidade de dom ínio de que a dota Descartes, ela adquire,
por sua lid a com as paixões, um form idável poder criador que
se mostra o m otor da sociedade c iv il.
Essa tese, na antropologia que o século X V I I I desenvolve­
rá corajosamente, adquirirá um a força prodigiosa e, por causa

61. Hobbes, Elements o f Law , prim eira parte, X T V , § 6; Léviathan,


cap. X X I.
62. Hobbes, Léviathan, cap. X III, p. 125.
63 .Ib id .
64. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, p. 208.
65. Hobbes, Léviathan, cap. X III, p. 127.
PR IM EIR A PARTE 85

de suas considerações filo só ficas, decidirá, em grande parte, a


tonalidade que a reflexão p o lítica assumirá nas décadas v in ­
douras. De fato, o aparelho conceituai ao qual Hobbes recorre
encontra sua realização nura racionalism o que, embora velado
por m atizes sutis no corpus da obra, nem por isso deixa de
constituir sua vig a mestra, da qual o pensamento moderno rete­
rá m ais a força explosiva do que os matizes.

O racionalism o

N o sistema de Hobbes, as “ leis de natureza” revelam a su­


tileza do racionalism o por ele exposto. Segundo a “ le i de natu­
reza fundam ental” , explica o filó so fo , “ é um preceito, um a re­
gra geral da razão, que todo hom em deve se esforçar pela paz,
por todo o tempo que tiver a esperança de obtê-la” 66. U m a
“ segunda le i de natureza” 67 deriva dessa m áxim a prim ordial da
razão; ela indica o procedim ento, também racional, pelo qual o
constituinte (covenani), ao instituir a Commonwealth, ainda cha­
mada de República ou Estado, será gerador do Poder. N ão obs­
tante, fic a claro que a naturalidade da le i “ fundam ental” que
rege a condição prim ordial dos homens não sufoca dé form a
algum a as capacidades da razão: m uito pelo contrário, a racio­
nalidade faz parte dessa naturalidade, o que basta para explicar
a longa cadeia das “ leis de natureza” que decorrem, m ediante
sim ples lógica, das duas prim eiras leis naturais. Desde sua p ri­
m eira expressão, a razão, por sua progressão dedutiva, m ani­
festa portanto sua capacidade construtiva. Essa é a idéia mes­
tra quê leva Hobbes ao racionalism o construtivista de sua teo­
rização do direito p o lítico : ele pretende, como M aquiavel ou
Bacon, porém de m odo m ais filo s ó fic o e sistemático do que
eles, mostrar a preeminência da “ arte” humana na sociedade es­
tatal. Para ele não seria questão de ver na sociedade c iv il, a
exem plo de Aristóteles, a expressão de um a finalidadè natural
que a situaria no grande Todo cósmico nem , como os autores

66. Ibid., cap. X IV , p. 129.


67. Ibid., cap. X V .
86 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

m edievais, o lugar de um a taum aturgia teológica que encheria


o Estado de m istérios. E m sua sistematicidade científica, a f i ­
lo so fia dé Hobbes é, portanto, a partir das leis fundam entais de
natureza, a expressão de um racionalism o rigoroso cujos p rincí­
pios sim ples são claramente definidos: de um lado, como v i­
mos, todas as “ leis naturais” que adm inistram a condição dos
homens resultam, por um procedim ento dedutivo, da le i de
natureza fundam ental; do outro, o procedim ento contratualista,
que é gerador da sociedade c iv il e do Poder que lhe é inerente,
é um “ cálculo” racional de interesses, cujos termos e processos
são ambos form ulados pela segunda le i de natureza, derivada
da le i de natureza fundam ental: “ Que se consinta, quando os
outros também o consentem, em se desfazer, em toda a m edida
em que se pensa ser isso necessário para a paz e para sua pró­
pria defesa, do direito que se tem sobre todas as coisas; e que
se contente com uma liberdade para com os outros igual à que se
concederia aos outros para consigo mesmo.” 68 A segurança do
raciocínio de Hobbes fa z o resto.
O construtivism o racional de Hobbes vai, portanto, m ais
longe do que o realism o pragm ático de M aquiavcl e do que o
idealism o inventivo de Bacon: com um procedim ento sedutor,
ele erige a potência do Estado como o atributo essencial do
homo a rtific ia lis , constituído pela “ pessoa pública” edificada
pelo próprio trabalho da razão. O pacto que neutraliza matem a­
ticamente a luta universal69 e arranca os homens das angústias
dé sua condição natural, na qual ronda o medo da m orte, é con­
cebido como o a rtifíc io racional necessário que constrói a
sociedade c iv il: a m ultidão reunida pelo contrato que cada um
concíui com cada um e em virtude do qual todos consentem,
porque isso é necessário para a paz, em não exercer o direito de
natureza que têm sobre todas as coisas, form a - como m ostra a
iconografia qué ilustra diversas edições dos tratados políticos
dê Hobbes - “um a só pessoa” 70, a saber, a pessoa pública (p e r-

68. Ibid., cap. X T V , p. 129.


69. É ric W e il, Essais et conférences, P lon, 1971, t. II, p. 136.
70. Hobbes, Léviathan, cap. X V I, p. 166.
P R IM E IR A PARTE 87

sona c iv ilis ) do Estado-Leviatã. Essa m etáfora antropom órfica


é rica de significado.
. A ssim , explica-se a instituição da República ou Estado se­
gundo um esquema construtivista que, de parte a parte, é obra
da razão dos homens. D izendo isso, Hobbes confirm a a h ip ó­
tese pela qual, um quarto de século antes, G rotius tinha susci­
tado o escândalo: o direito, ele ousara escrever, seria o que é,
m esm o que Deus não existisse71. Com o a proposição etiam si
daremus non Deum esse era, na mente de G rotius, sim plesm en­
te hipotética - quando se pensou que fosse tética! o juriscon­
sulto pretendia explicar, com ênfases m uito modernas, que o
direito, em seu dispositivo p o lítico , bem como as regras que es­
tabelece para o direito privado, se colocam sob o signo eminente
do racionalism o que caracteriza o hum anism o m oderno. Por
certo convém não esquecer que o construtivism ó de Hobbes
não é axiologicam ente neutro e que se, fazendo do Poder o
cadinho de onde sairão, como de um centro, todas as leis civis,
indica o cam inho daquilo que será o “positivism o ju ríd ic o ” 72,
ele não pode conceber as leis civis independentemente do sig­
nificado teleológico da le i fundam ental dé natureza, a tal ponto,
escreve ele, que “ a le i de natureza e a le i c iv il se contêm um a
na outra” 73. A teleologia natural em que está impressa a marca
do Criador não está portanto ausente da grande m áquina p o lí­
tica que legisla em todas as áreas de m aneira im perativa; ela

71. G rotius, D ro it de la guerre et de la paix, Prolegóm ena, § X I. A res­


peito das controvérsias em to m p do célebre etiamsi daremus non Deum esse,
cf. P. Haggenmacher, Grotius et la doctrine de la guerre juste, P U F , 1983, se­
gunda parte, pp. 462 ss.
72. H enry Sum m er M aine, em Lectures on the Early History o f Ins­
titutions, Londres, 1914, T. ed., p. 354, observa que os positivistas ingleses do
século X I X e, principalm ente, John A ustin, apresentaram “ um exam e m uito
m ais aprofundado” da concepção do Poder e da le i que a que Hobbes h avia
form ulado inicialm ente. Sobre essa questão do positivism o ju ríd ic o , cf. em Le
Pouvoir et le droit, ed. de F. Tricaud e L . R oux, Saint-Étienne, 1992, Stanley
L . Paulson, “Hobbes et le positivism e ju rid iq u e classique” , pp. 102-13, e S i­
m one G oyard-Fabre, “L ’in tu itio n du positivism e ju rid iq u e et ses lim ite s dans
la pensée de Hobbes” , pp. 91-102.
73. Hobbes, Léviathan, cap. X X V I, p. 285.
88 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

relativiza e, no m ín im o , orienta a onipotência norm ativa do Po­


der. A s leis civis só cumprem sua função em conform idade
com a m áxim a fundam ental da grande le i de natureza: mas esta
traz, indelével, a marca do racional e comanda a dedução, evi­
dentemente ela também racional, de todas as outras leis natu­
rais74 no orbe por ela determinado. M esm o que, de Hobbes a
Locke - provavelmente sob a influência de P ü fen d o rf e de
Cum berland - , a razão se tenha tom ado m ais razoável do que ra­
cional, e mesmo que, segundo K ant, no racionalism o que carac­
teriza a esfera do direito político^ a razão prática terá m ais pro­
fundidade e verdade do que a razão especulativa, a verdade é
que Hobbes, sem saber, abriu claramente a v ia de um a “p o siti-
vização” racional do Poder: não só o d e fin iu como o resultado
de um cálculo racional de interesses, como tam bém o caracte­
rizo u como “a m aior potência” e, sobretudo, como “ o único le­
gislador” no Estado75. N o m ín im o , a firm o u a certeza m etodo­
lógica e filo só fic a do cqnstrutivism o76: como “ só compreende­
m os aquilo que criamos” , o Poder que os homens constroem já
não tem m istérios para eles77. A capacidade norm ativa que a
potência do Estado-Leviatã m anifesta no grau supremo - “não
se poderia im aginar” , d iz Hobbes, “ que os homens edificassem
um poder m aior” 78 - resulta da convergência do hum anism o
leigo, do individualism o, do igualitarism o e do racionalism o,
que são as pedras angulares da teoria do Estado elaborada por
Hobbes.
É nesse bosquejo filo s ó fic o que se insere o princípio da
autoridade própria do Poder no Estado. Com base nesse ponto,
Hobbes construiu um a teoria da representação graças à qual
assumiu, de m aneira orig inal e firm e, o p e rfil de um pioneiro.

74. Ibid., cap. X V .


75. Hobbes, De Cive, X T V , § 1; Léviathan, cap. X T V , p. 283.
76. Léo Strauss assinala de form a notável que, para Hobbes, ‘‘o m undo
de nossas construções não tem equívoco algum porque somos a sua única
causa e tem os, portanto, um conhecim ento perfeito de sua causa” , D ro it natu­
rel et histoire, P lon, pp. 188-9.
77. Ibid., p. 188.
78. Hobbes, Léviathan,cap. X X , pp. 219 e 260.
PR IM EIRA PARTE 89

B ) O p rin c íp io da autoridade do Estado e a representação

O extraordinário capítulo X V I do Leviatã, que não tem


equivalente nos Elem ents o f Law nem no D e Cive, abre para a
reflexão ju ríd ica e política, apresentando um a análise lexico ­
gráfica completamente notável do term o “pessoa” , um campo
até então inexplorado, que a posteridade filo s ó fic a já não po­
derá ignorar. Hobbes escreve que: “ É um a pessoa aquele cujas
palavras ou ações são consideradas seja como lhe pertencendo,
seja como representando as palavras ou ações de. outro, ou de
qualquer outra realidade à qual elas são atribuídas, por um a
atribuição verdadeira ou fictícia.” ?9 Hobbes explica que o ter­
m o “pessoa” , cujos equivalentes latino e grego são, respectiva­
mente, as palavras persona e 7ipÓGG57tov, designa o rosto e in d i­
ca m uito especialmente o disfarce, a aparência exterior que, no
palco, um hom em assume no teatro; m ais precisamente ainda,
elè designa a parte do disfarce que cobre o rosto, isto é, a m ás­
cara. D o teatro o uso da palavra passou para o tribunal, depois
pára a vid a corrente; contudo, sua conotação permaneceu idên­
tica: um a pessoa é sobretudo e fundam entalm ente um persona­
gem , um ator que desempenha um papel. Dada a sua acepção
original, toda pessoa é, portanto, persona fic ta m. E m conse­
quência, esse term o hão pode ter aplicação algum a no estado
de natureza: na Condição natural im aginada pór Hobbes, os ho­
mens seriam indivíduos, não pessoas. E m outras palavras, um a
pessoa é um artefactum ou um a ficção que só tom a sentido
quando o hom em se arrancou do estado de natureza ao selar o
a rtifíc io contratual que in stitu i a sociedade c iv il.
Essa análise léxica81 levou Hobbes a aperfeiçoar à relação
entre ator e autor, o que esclarece notavelm ente seu conceito

79. Ibid., cap. X V I, p. 161.


80. Hobbes, D e homine ( Traité de l ’homme, Paris, Blanchard, 1974),
cap. X V , p. 191.
81. A mutação que a idéia de pessoa im p lica em relação à noção de in d i­
víduo natural não é de natureza psicológica; p caráter a rtific ia l e c iv il da pes­
soa revela sua dimensão ju ríd ic a. A liá s , é.possível que Hobbes tenha: encon­
trado no direito rom ano (Digesto, 3, 4, 7.1; 3, 4, 1,1 e 2; C aio, D , 11) ou em
90 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do Poder no Estado. D e fato, segundo o D igesto como segundo


Cícero82 (citado por Hobbes), a geração de um a pessoa como
artefactum ju ríd ic o requer - é verdade que se trata, nos autores
antigos, de direito privado - unia transferência de autoridade,
já que ela exige um a espécie de dialética entre auctores e acto -
res, sendo estes os representantes daqueles: é preciso que a
pessoa tenha recebido, para agir, um m andato ou um a perm is­
são, noutros termos, um a delegação de poderes. Tendo os direi­
tos individuais dos “autores” dado ensejo à transferência em
favor da pessoa, esta é obrigada a agir em seu nom e e lugar: ela
é “ ator” . Com o tal, ela “ assume a personalidade” dos autores,
age “ em seu nom e” (in the person o f). E m suma, só há pessoa
em virtude de um a permissão ou de um mandato outorgado a
outrem. E m qualquer área que seja - política, religiosa, m ilitar,
ju d ic iá ria etc. - um a pessoa é representativa daqueles que lhe
transferiram seus direitos: o tenente, o substituto, o vigário, o
procurador etc. agem “ em nom e e no lugar” daqueles qüe lhe
confiaram mandato. A ssim , em virtude da relação entre autor e
ator, um a pessoa só pode ser ator - e jam ais autor - das ações
qué realiza: representante daquele ou daqueles que lhe transfe­
riram seus direitos, ela age por ordem ou por procuração. N o
caso, o im portante é que, por suas palavras, por seus atos, pelos
pactos que conclui, ela liga, enquanto ator, o autor ou os auto­
res que lhe conferiram autoridade. Dessa m aneira, é a respon­
sabilidade do mandante e não a do mandatário que se acha com ­
promissada e que é compromissada nos mesmos termos e na
exata m edida fixados pelo m andato que lhe confere o direito
(isto é, o poder) de agir.
Hobbes transpôs essa teoria da representação do direito
privado para o direito público. N a República, a representação é
o corolário do contrato, cuja função instituinte ela perm ite elu -

G rotius (De ju re belli ac pacis, I, E I, V E ; I, E I, X .2 ; E , X IV , I e E ) a id é ia de


um a persona civilis , privada ou pública, que, enquanto ficção ju ríd ic a , é dis­
tin ta de um a individualidade física.
8 2 . Digesto, 3 , 4 , 1.2; Cícero, Deoratore, I, E , X X IV , 102: Unussusti-
neo tres personas, mei, adversarii etjudieis.
PR IM EIR A PARTE 91

cidar: “ U m a m ultidão de homens se tom a um a única pessoa


quando esses homens são representados por um só hom em ou
um a só pessoa” 83 - deve-se compreender, por um rei ou um
conselho, sendo ambos um a “pessoa a rtific ia l” juridicam ente
definida. Hobbes acrescenta: “ É a unidade daquele que repre­
senta, não a unidade do representado, que tom a una a pessoa.
E é aquele que representa que assume a personalidade e só
assume um a única.” 84 A m ultidão que, por natureza, não é una,
mas m últip la, é portanto feita de “m últip lo s autores” que, ao
transferirem sua autoridade própria para “ aquele que os repre­
senta a todos” , se tom am o cadinho da pessoa fic tíc ia ou arti­
fic ia l, una e in d ivisíve l, que é o Estado. O Leviatã, “ em quem
reside a essência da república” , sé define portanto“ um a pessoa
única tal como um a grande m ultidão de hòmens se fizeram
( ...) o autor de suas ações ( ...) com o fito de sua paz” 85. E n ­
quanto “pessoa única” ou unum quid, ele é um a pessoa repre­
sentativa, um ser de razão cujo poder assume a personalidade
da m ultidão reunida - o povo - que ele representa. D isso resul­
ta que o povo ou “ corpo público” é permanentemente o autor
das ações de que o Estado é o ator. Por conseguinte, longe de
sim bolizar, como m uitos leitores pretenderam, um Poder in d i­
vidualizado ou um monstro de tirania, o Leviatã sai, m uito pelõ
contrário, de um a democracia originária. O Estado não é um a
entidade separável do povo: no Poder do qual ele é a sede, a po­
tência soberana, que pertence originariam ente ao povo, é m e­
diada pela representação. A ssim se esclarece a expressão m is­
teriosa: Rex estpopulusi6.
A teoria da representação esboçada por Hobbes fo i, de
m odo geral, m al compreendida ou sim plesmente ignorada, em

83. Léviathan, cap. X V I, p. 166.


84. M d .
85. Ibid., cap. X V II, p. 178.
86. Spinoza dirá: Rex est ipsa Civitas. Essas frases m ostram que o con­
trato in stitu ido r da R epública não se conclui, de um a vez por todas, num ins­
tante histórico, com a participação m ediata dos cidadãos, por interm édio da
representação, na vida do Estado, como se, a cada dia, o pacto se renovasse ta­
citam ente.
92 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

seu tempo, por seus leitores. Contudo, teve u in alcance decisi­


vo, a ponto de constituir, desde o século X V III, com numerosas
variantes, um dos temas essenciais da filo s o fia do direito p o lí­
tico. Rousseau não se enganou a esse respeito: “A idéia dos
representantes” , escreve ele, “ é moderna. ( ...). Nas antigas re­
públicas e mesmo nas m onarquias, jam ais o povo teve repre­
sentantes; não se conhecia essa palavra.” 87 É verdade que Rous-
seau atribui a origem dessa idéia ao “ governo feudal” e quase
só pensa, no caso, na “ idade de ouro” dos Estados Gerais da anti­
ga França88. Sem se referir a Hobbes, cuja dialética do autor e
do ator parece ignorar, nem sequer a M ontesquieu que, obser­
vando a Constituição da Inglaterra, tinha compreendido que o
Parlamento era o órgão representativo da nação e, como tal,
tinha a incum bência de servir de obstáculo aos eventuais abu­
sos de poder do monarca, Rousseau condena categoricamente
a representação pelo fato de que ela rom peria a unidade in d iv i­
sível da soberania do povo. M as, na mesm a época, os filó so fo s
do século X V I I I falam m uito desse problem a89. N ão estabele­
cem relação algum a entre representação e democracia90 e fic a -
se impressionado com a hesitação que cerca esse conceito forte
de representação. Caberá a Sieyès — que, no entanto, está bem
afastado da tese de Hobbes - superar essa incerteza conceituai:
estabelecerá um vín culo entre governo representativo e Estadõ-
nação, não considerando, é verdade, os deputados como m an­
datários, já que eles têm incumbência de se exprim ir em nome da
nação toda. Posteriormente, em 3 de setembro de 1791, o legis­
lador francês, em conform idade com a tese de Sieyès, escreve­
rá: “A Constituição francesa é representativa.” 91

87. J.-J. Rousseau, Le contrat social, I II, cap. X V .


88. Era aí que tinham assento os com issários daqueles que, localm ente,
em Verm andois ou em B erry, lhes haviam confiado um mandato, aliás perfei­
tam ente revogável, conferindo-lhes no m áxim o u m papel consultivo. C f. F .
G uizo t, Histoire des origines du gouvernement représentatif, Paris, D id ier,
1857, t .I,p . 322.
89. O t. X V d à Encyclopédie contém o artigo “ Representantes” , devido
à pena de D iderot e de D ’Holbach.
90. Sobre esse ponto, cf. Hannah P itkin , The Concept o f Representa­
tion, Berkeley, 1967.
91. Constitution de 1791, art. 2, títu lo III.
PR IM EIRA PARTE 93

D a í em diante, na via aberta por Hobbes e na qual o século


X V I I I avançou sem saber realmente o que devia ao autor m al­
quisto do Leviatã e m odificando consideravelmente sua con­
cepção, a representação devia aparecer como um processo de
racionalização92 e, com m aior ou m enor nitidez, de dem ocrati­
zação do poder93: no m ínim o, estava-se cada vez m ais firm e ­
m ente convencido de que o regime representativo constituía
“um a garantia contra a aventura” 94, na m edida em que, de um
lado, dim inuindo a distância entre governantes e governados,
devia perm itir temperar o exercício do Poder e em que, do ou­
tro, compensava a im possibilidade da democracia direta no
m undo moderno em que a dem ografia começava a aumentar. A
idéia de representação, na hora da Revolução Francesa, parecia
ser o resultado de um processo de racionalização que, vinculan­
do a participação dos indivíduos à generalidade das competên­
cias do Poder, fazia do Estado-nação o espaço no qual se m ani­
festa a unidade ju ríd ic a prim ordial da esfera política.
Sobre essa m atéria, os problemas estavam longe de estar
todos resolvidos e deveriam surgir m uitas dificuldades quando
os defensores da representação liberal-dem ocrática pretende­
ram acentuar o papel da deliberação e do acerto. Ocorre que o
princípio de autoridade do Poder, a partir de Hobbes e graças a
ele, apesar das variações distantes da literalidade de suas pró­
prias teses, havia de algum a m aneira mudado de campo: en-
contrava,-se não na vontade “ arbitrária e absoluta” do monarca,
mas, a partir daí, pertencia ao corpo do povo, tom ado o centro
de gravidade da autoridade do poder estatal. A intuição dos m o-
narcólatras do século X V I estava transportada para o contexto
renovado da moderna filo s o fia do direito político, no qual ela

92. E. Sieyès vê na representação n ina idéia que, correspondente à


“marcha da razão” , deve inserir-se no dispositivo ju ríd ic o do Estado m oderno
que é preciso construir. Qu ’est-ce que le tiers état?, cap. V I, p. 91.
93. A representação do A ntig o Regim e, fundada essencialmente sobre o
mandato, já. não devia passar de um a recordação histórica; os p rivilé g io s de
uns, que são as servidões dos outros, não deviam m ais ressurgir, já que a Na­
ção toda, em princípio, devia fazer o uvir sua voz.
94. G . Burdeau, Traité de science politique, L G D J, 1970, t. V , p. 306.
94 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

se tom ava um a certeza que m uito poucos autores recusavam


adm itir: são os povos que fazem os reis e que, no m ínim o, dão
autoridade ao Poder.

C om um a fidelidade m uitas vezes in fie l ao espírito meca-


nicista que comanda o corpus filo s ó fic o hobbesiano, o pensa­
m ento do direito político moderno devia assim ficar marcado
pelas ousadias epistemológicas e filo só fico -ju ríd ic as do autor
do Leviatã. F o i à sombra do sucesso escandaloso que cercava a
obra fascinante do filó so fo qué o direito p o lítico m oderno ver­
dadeiramente tom ou im pulso. Sem dúvida, o “hobbesianism o”
fo i m al compreendido durante m uito tempo; por um curioso
contra-senso, ele causava mèdo porque se assim ilava a capaci­
dade norm ativa do Poder à arbitrariedade do absolutism o. “ O
horrível Senhor Hobbes” , m al entendido, fo i, já no século X V III,
objeto de críticas pouco amenas, à semelhança das de Barbey-
rac95, Rousseau, K ant e B enjam in Constant. N ão se compreen­
dia ém que sua filo s o fia iconoclasta - da qual só se retinham as
virtualidades autoritárias, dem onizando o p e rfil m aciço do
Leviatã - podia trazer em si a esperança, para os cidadãos, da
autonom ia do direito p o lítico . N o entanto, não podemos nos
contentar em sublinhar a hostilidade despertada por ela. Tam ­
pouco podemos dizer que Hobbes teve discípulos fervorosos.
Seu legado é com plexo. Os filó so fo s do Ilu m in ism o o liam ;
pilhavam m esmo sua doutrina em pontos de detalhe; serviám -
se dos princípios e dos filosofem as contidos na sua teoria do
Estado. M a is tarde, após silenciar sobre aquele que B . Constant
acusava de ser “protetor do despotismo” , começou-se a des­
confiar que a m odernidade do Poder do Estado-Leviatã, não se
lim itando à destruição das idéias tradicionais, comportava para
o direito político vetores-pilotos que lhe davam seu vig o r teó­
rico. E m grande parte, a doutrina constitucional, quê começou

95. N o prefácio da tradução francesa fe ito por Jean Barbeyrac ao D e ju re


naturae et gentium de Pufendorf, Hobbes é ju lgad o particulannente perigoso:
“Pode-se dar aos livros desse inglês fam oso o m esm o uso que se dá a alguns
anim ais ou plantas venenosas.”
PR IM EIRA PARTE 95

a se consolidar no fim do século X V III, traz, com o que em fili-.


grana e à sua revelia, a marca das idéias de Hobbes.

3. O p rin c íp io de constitucionalidade
da ordem ju ríd ic a m oderna

A erosão da filo s o fia tradicional do direito político fo i


acentuada, de maneira m uito particular, pelo pensamento do Ilu -
m inism o, que am pliou Os cam inhos pelos quais M aquiavel e
Hobbes haviam enveredado num a atmosfera de escândalo. N ão
acompanharemos aqui o curso dos debates, m uitas vezes áspe­
ros, que então opuseram os “ modernos” aos “ antigos” ; esse pro­
cedimento cabe à história das idéias. Ficando no âm bito da f i ­
lo s o fia p o lítica e ju ríd ica, queremos m uito m ais aquilatar as
conseqüências desse debate exam inando a m aneira pela qual,
na época da Revolução Francesa, as idéias constitucionalistas
puderam expressar, no âmago do hum anism o ju ríd ico , a capa­
cidade norm ativa do Poder, destacada por M aquiavel e, sobretu­
do, por Hobbes. E m menos de dois séculos, a Constituição fo i
considerada a escritura necessária do Poder.
Seria evidentemente temerário e certamente errado dedu­
z ir disso que os homens da Revolução foram seguidores de
M aquiavel ou discípulos de Hobbes. N o entanto, mesmo que
esses filó so fo s tenham sido então m alquistos e com m uito ffe -
qüência condenados por suas idéias políticas - aliás m uito m al
entendidas - que dão azo a interpretações deformantes, eles abri­
ram caminhos e criaram perspectivas que o pensamento do
século X V I I I não pode ignorar. Enquanto M aquiavel, de m odo
geral, é amaldiçoado por ter louvado, afirm a-se, com um a pre­
cipitação suspeita, as benesses do cinism o na política96, Hobbes
desencadeia a enxurrada da controvérsia (que, contudo, não po­
deríamos reduzir a um sim ples torneio entre seus adversários e

96. O s artigos de D iderot na Encyclopédie - “ P olítica” , “M aquiavel” ,


“ M aquiavelism o” - são, a esse respeito, m uito significativos tanto pela b revi­
dade com o pelo tom perem ptório do com entário.
96 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

seus partidários)97. A m aneira pela qual são recebidas süas


ousadias epistemológicas e o racionalism o radical de sua pro­
posta p olítica é reveladora da efervescência intelectual desenca­
deada então, entre os “ filósofos” e, de m odo mais geral, no m eio
da iníellig entsia do m om ento, leiga ou religiosa, pela indaga­
ção sobre a “ autoridade p olítica” 98.

A ) O humanismo ju ríd ic o

A indagação sobre a.natureza da autoridade estatal se co­


loca inicialm ente sob o signo fulgurante de um hum anism o
ju ríd ic o que varre quase totalm ente os pontos de referência da
filo s o fia tradicional do direito político.
Hobbes havia mostrado que o Estado-Leviatã é “ o único
legislador” ou, em outras palavras, que só ele, o Poder, está
habilitado a decidir sobre as regras que determinam e m antêm
a ordem pública. De fato, na hipótese de um a condição pré-
p o lítica anterior à instituição da República, o choque com peti­
tivo dos desejos individuais faria nascer, num clim a de temor,
a instabilidade e a insegurança da guerra universal; em com ­
pensação, “ quando um a República é instituída, há leis” e, espe­
c ific a Hobbes, “ a le i c iv il é, para cada súdito, o conjunto das
regras que a República, orahnente, por escrito ou por qualquer
outro sinal adequado de sua vontade, m andou-o u tiliz a r para
distinguir o certo e o errado, isto é, que é contrário à regra e
que não lhe é contrário” 99. A inda que o tom novo de um discurso
filo só fic o -ju ríd ic o como esse tenha sido, de m odo geral, trans­
posto pelos autores do século X V I I I para um âm bito ideo ló gi­
co que não era o seu e no qual era entendido exclusivam ente

97. C f. Y ve s G laziou, Hobbes en France au X V IIIesiècle, P Ü F , 1993.


98. C f. o artigo “Autoridade po lític a” , da pena de D iderot no tom o I da
Encyclopédie, em 1751. A respeito desse artigo, que reproduz sua gênese a
partir do D e Cive de Hobbes e relata o m ovim ento de idéias por ele suscitado
no Journal de Trévoux e no Le moniteur, c f Jacques Proust, D iderot et
l ’Encyclopédie, A . C o lin , 1967, pp. 350-6.
99. Hobbes, Léviathan, cap. X X V I, p. 282.
PR IM EIRA PARTE 97

como o índice do absolutism o e da arbitrariedade monárquicos,


ele teve repercussões consideráveis. Essas repercussões nem
sempre foram conscientes nem sistemáticas: por exem plo, dei­
xaram ouvir-se, de m aneira amortecida, no artigo “ H obbesia-
nism o” , redigido por D iderot para a Encyclopédie100 e, de m a­
neira incisiva, nas análises da relação entre a legislação e a ju s ­
tiça que seriam feitas por H elvétius: “A Justiça” , escreve ele,
“pressupõe leis estabelecidas.” 101 E m todo o caso, elas jam ais
foram suficientes para produzir a homogeneidade da doutrina
ju ríd ic o -p o lític a do século X V III, na qual subsiste, com varia­
ções diversificadas, a in fluência complexa do jusnaturalism o102.
Apesar da hesitação doutrinária que, na sensibilidade intélec-

100. Esse artigo, qúe teria sido redigido por Diderot, ao que parece, antes
de 1760, ainda que só tenha sido publicado em 1765, no t. V III da Encyclopédie,
é, nas dezenove colunas que o compõem, bastante substancial. Retomando quan­
to ao essencial o que Brücker havia exposto em sua Historia critica philoso-
phiae, D iderot se demora m uito m ais na vida de Hobbes e na sua aversão pela
escolástica do que, propriam ente falando, na sua filo s o fia política. N ão obs­
tante, não a ignora e explica as idéias políticas contidas no Dè Cive e no Leviatã
pela hostilidade visceral que Hobbes teria sentido, na conjuntura caótica da p o lí­
tica inglesa, para com a resistência ao Poder e todas as formas de sedição. D o
ponto de vista da reflexão política, sem dúvida o que há de m ais interessante
nesse longo artigo é a comparação das idéias de Hobbes ê de Rousseau. O arti­
go, que contrapõe ponto: por ponto os dois filósofos - em geral de m aneira m uito
contestável, pois Diderot, na ocasião em que escreveu seu artigo, não conhecia
O contrato social - parece haver tido por objetivo antes inserir-se nos acesos
debates da atualidade intelectual do que indicar, diante da ám plidãò das opiniões
de Rousseau (a rixa entre Diderot e Rousseau virá m ais tarde), os lim ites do hob-
besianismo; por isso, a fim de tentar atacar Hobbes, Diderot se abstém, a exem ­
plo de Brücker, de enumerar os erros lógicos ou ideológicos pelos quais, sem
dúvida alguma contudo, ele ó critica. N isso, porém, a preocupação da atualidade
mundana e intelectual sobrepuja â análise e o raciocínio.
101. C f. H elvétius, D e l 'Homme, in Oeuvres complètes, reimpressão da
edição de 1795, G. O lm s, H ildesheim , 1969, t. V IH , p. 258; cf. p. 254: “ A
injustiça não precede q estabelecimento de um a convenção, de um a le i e de
um interesse com um .” A aprovação de Hobbes e a oposição a M ontesquieu
estão evidentes em tais frases.
102. F o i assim que D om at e Barbeyrac e. posteriorm ente, um pouco
m ais tarde, M ontesquieu e M a lb y, invocaram a corrente jusnaturalista “ clássi­
ca” ta l como a exprim ia Cícero; outros autores, como D iderot, L ing uet e V a t-
te l pretendem, pòr sua vez, adotar as tendências jusnaturalistas “módem às” de
G rotius e de Ch. W olfF.
96 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

seus partidários)97. A m aneira pela qual são recebidas suas


ousadias epistemológicas e o racionalism o radical de sua pro­
posta po lítica é reveladora da efervescência intelectual desenca­
deada então, entre os “ filósofos” e, de m odo mais geral, no m eio
da intelligentsia do m om ento, leiga ou religiosa, pela indaga­
ção sobre a “ autoridade p o lítica” 98.

A ) O humanismo ju ríd ic o

A indagação sobre a natureza da autoridade estatal se co­


loca in ic ia lm ente sob o signo fulgurante de um hum anism o
ju ríd ic o que varre quase totalm ente os pontos de referência da
filo s o fia tradicional do direito p olítico.
Hobbes havia mostrado que o Estado-Leviatã é “ o único
legislador” ou, em outras palavras, que só ele, o Poder, está
habilitado a decidir sobre as regras que determ inam e m antêm
a ordem pública. D e fato, na hipótese de um a condição pré-
p o lític a anterior à instituição da República, o choque com peti­
tiv o dos desejos individuais faria nascer, num clim a de temor,
a instabilidade e a insegurança da guerra universal; em com ­
pensação, “ quando um a República é instituída, há leis” e, espe­
c ific a Hobbes, “ a le i c iv il é, para cada súdito, o conjunto das
regras que a República, oralm ente, por escrito qu por qualquer
outro sinal adequado de sua vontade, m andou-o u tiliz a r para
distinguir o certo e o errado, isto é, que é contrário à regra e
que não lhe é contrário” 99. A inda que o tom novo de um discurso
filo só fic o -ju ríd ic o como esse tenha sido, de m odo geral, trans­
posto pelos autores dp século X V I I I para um âm bito ideo ló gi­
co que não era o seu e no qual era entendido exclusivam ente

97. C f. Y ves G laziou, Hobbes en France àu X V IIIesiècle, P U F , 1993.


98. C f. o artigo “ Autoridade p o lític a ” , da pena de D iderót no tom o I da
Encyclopédie, em 1751. A respeito desse artigo, que reproduz sua gênese a
partir do De Cive de Hobbes e relata o m ovim ento de idéias por ele suscitado
no Journal de Trévoux e no Le moniteur, c f Jacques Proust, Diderot et
l ’Encyclopédie, A . C o lin . 1967, pp. .350-6.
99. Hobbes, Léviathan, cap. X X V I, p. 282.
PR IM EIR A PARTE 97

como o índice do absolutism o e da arbitrariedade monárquicos,


ele teve repercussões consideráveis. Essas repercussões nem
sempre foram conscientes nem sistemáticas: por exem plo, dei­
xaram ouvir-se, de m aneira amortecida, no artigo “ H obbesia-
nism o” , redigido por D iderot para a Encydopédie100 e, de m a­
neira incisiva, nas análises da relação entre a legislação e a ju s ­
tiça que seriam feitas por H elvétius: “A Justiça” , escreve ele,
“pressupõe leis estabelecidas.” 101 E m todo o caso, elas jam ais
foram suficientes para produzir a homogeneidade da doutrina
ju ríd ic o -p o lític a do século X V III, na qual subsiste, com varia­
ções diversificadas, a influência complexa do jusnaturalism o102.
Apesar da hesitação doutrinária que, na sensibilidade intelec-

100. Esse artigo, qüe teria sido redigido por Diderot, ao que parece, antes
de 1760, ainda que só tenha sido publicado em 1765, no t. V III da Encydopédie,
é, nas dezenove colunas que o compõem, bastante substancial. Retomando quan­
to ao essencial o que Brücker havia exposto em sua Historia critica philoso-
phiae, D iderot se demora m uito m ais na vida de Hobbes e na sua aversão pela
escolástica do que, propriam ente falando, na sua filo s o fia política. N ão obs­
tante, não a ignora e explica as idéias políticas contidas no D e Cive e no Leviatã
pela hostilidade visceral que Hobbes teria sentido, na conjuntura caótica da p o lí­
tica inglesa, para com a resistência ao Poder e todas as formas de sedição. D o
ponto de vista da reflexão política, sem dúvida õ que há de m ais interessante
nesse longo artigo é a comparação das idéias de Hobbes e de Rousseau. O arti­
go, que contrapõe ponto por ponto os dois filósofos - em geral de m aneira m uito
contçstável, pois Diderot, na ocasião em que escreveu seu artigo, não conhecia
O contrato social - parece haver tido por objetivo antes inserir-se nos acesos
debates da atualidade intelectual do que indicar, diante da ám plidãò das opiniões
de Rousseau (a rixa entre Diderot e Rousseau virá m ais tarde), os lim ites do hób-
besianismo; por isso, a fim de tentar atacar Hobbes, Diderot se abstém, a exem ­
plo de Brücker, de enumerar os erros lógicos ou ideológicos pelos quais, sem
dúvida alguma contudo, ele o critica. Nisso, porém, a preocupação da atualidade
mundana e intelectual sobrepuja à análise e o raciocínio. '
101. C f. H elvétius, D e l ’Homme, in Oeuvres complètes, reimpressão da
edição de 1795, G. O lm s, H ildesheim , 1969, t. V III, p. 258; cf. p. 254: “ A
injustiça não precede o estabelecimento de um a convenção, de um a le i e de
u m interesse com um .” A aprovação de Hobbes e a oposição a M ontesquieu
estão evidentes em tais frases.
102. F o i assim que D om at e Barbeyrac e, posteriorm ente, um pouco
m ais tarde, M ontesquieu e M a lb y, invocaram a corrente jusnaturalista “ clássi­
ca” ta l como a exprim ia Cícero; outros autores, comò D iderot, L ing uet e V a t-
te l pretendem, por sua vez, adotar as tendências jusnaturalistas “m odem às" de
G rotius e de Ch. W o lff.
98 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tual da época, traduzia o encontro de tendências m últiplas, as


idéias m obilizadoras que fazem a modernidade do pensamento
de Hobbes se impuseram e se desenvolveram, mesmo quando
eram severamente criticadas. M ais do que nunca, sua aceitação
tendeu a desacreditar os horizontes ontológicos e os ideais
axiológicos do antigo direito p o lítico ; levado por essa vontade
de renovação, esse ím peto, seguramente, ocasionava incoerên­
cias e ilusões. N ão im porta: graças a ele, ficava cada vez m ais
claro que o homem era reconhecido como o único centro de
gravidade possível do Poder e que, no Estado, era a ele, somen­
te a ele, que incum bia tom ar a in iciativa das leis e das regras de
direito. A s referências heteronômicas em que se louvava a tra­
dição filo só fic a para basear a autoridade po lítica - a natureza
das coisas, o poder d ivino dos reis, as crenças religiosas, a or­
dem estabelecida etc. - eram vistas como obstáculos epistem o-
lógicos para o conhecimento do direito público. Para além de
rejeições e rupturas, mesmo que ainda cheias de ambigüidade
por ser grande a dificuldade de se apagar um passado secular,
não estava longe o tempo em que K ant, proclam ando a capaci­
dade essencial de autonom ia do hom em , o reconhece como
produtor das norm as pelas quais ele instaura, organiza e adm i­
nistra a v id a pública.
Pode-se portanto dizer que a inflação hum anista que atra­
vessa o século do Ilu m in ism o não só fazia do hom em o condu­
tor da vid a política, como, m ais precisamente, dava tamanho
ím peto ao indivíd uo e à razão de que é portador que este, tor­
nado o único agente dâ potência e da autoridade políticas, era
saudado, em sua autonom ia, como o criador das norm as da
ordem juríd ica. Esse novo espírito do direito, que corresponde
ao progresso geral da m odernidade, havia de se expressar, por
exem plo, nas inflam adas filíp ic a s lançadas por Voltaire e D i-
derot contra a religião revelada, declarada totalm ente alheia às
estruturas e à vid a do Estado. H avia chegado a hora de “ lançar
um a bom ba na casa do Senhor” ou de “ esmagar o Infam e” , já
que o Poder só podia, daí por diante, ser concebido como um
poder leigo. O hum anism o racionalista e individualista prepa­
rado pela filo s o fia de Hobbes, que se costumava despojar de
PRIM EIRA PARTE 99

seus m atizes d ifíceis, triunfava sem dúvida algum a nessa nóva


visão do direito p o lític o fundado sobre a capacidade de autono­
m ização do in d ivíd u o hum ano...
C om o o avanço das idéias nunca se efetua sem provocar
süa evolução, convém observar que a racionalidade ju ríd ic a se
v iu rapidamente atribuir um estatuto m ais construtivo do que
iconoclasta. Expressando-se sobretudo por suas capacidades e
por suas competências arquitetônicas, o racionalism o associou
pouco a pouco à necessidade da ordem pública, colocando-as
tam bém sob o signo da razão e firm ando-as como cada vez
m ais im periosas, as reivindicações do progresso e da liberdade.
Através delas revela-se a complementaridade entre a razão ra­
cional, pela qual se pautava a filo s o fia de Hobbes, e a razão
razoável, da qual a filo s o fia de Locke tinha, por ocasião da se­
gunda revolução na Inglaterra, revelado toda a im portância.
Portanto, a reflexão sobre o direito do Estado nãò podia perm a­
necer puramente teórica e especulativa; aplicava-se igualm enté,
em m últiplas obras, a considerações práticas julgadas indis­
pensáveis. A ssim é que, de V ic o a Portalis, m ultiplicaram -se,
sob os nomes prestigiosos de Ling uet e de Blackstone, de M i-
rabeau e de F ilan g ie ri, de M a lb y e de Bentham etc., volum osos
tratados de legislação. N a segunda metade do século, a defesa
das leis e das regras de governo não era exclusiva apenas dos
filó so fo s, dos p olíticos e dos juristas; ganhara tam bém os sa­
lões mundanos, os cenáculos jornalísticos e os clubes, onde às
vezes dava azo a reações explosivas de reflexão teórica sobre
os temas do contrato social, do progresso, dos direitos dos ci­
dadãos etc., e de paixão político-legisladora. N a onda de nom o-
filia que se in ic io u no século do Ilu m in ism o , as considerações
práticas rapidamente assumiram preem inência sobre as espe­
culações teóricas, ainda m ais porque a m aioria dos autores se
mostrava acima de tudo preocupada com o progresso da condi­
ção hum ana e com a promoção da liberdade dos cidadãos.
Graças a essas transformações, o hum anism o ju ríd ic o se m odi­
fic o u para expor plenam ente a necessidade de um sistema das
instituições estatais cujo ed ifício a razão sustentaria. A ssim ,
paradoxalmente, a doutrina ju ríd ic o -p o lític a de Hobbes se v iu
100 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

sublimada: na mesma época em que M ontesqüieu e Rousseau


denunciavam, em registros filo só fic o s diferentes, Os m a le fí­
cios reais e possíveis desse “ Leviatã sem correntes” concebido
pelo “h orrível Senhor Hobbes” , õ hum anism o chegava a proje­
tar a construção de um a catedral estatal cuja estrutura centrali­
zadora produziria a unidade e ^in d ivisib ilid a d e .
Superando, não sem dificuldades, a equivocidade ineren­
te ao term o “ direito” , a filo s o fia do direito orientou a reflexão
sobre o Poder para um a concepção constitucionalista que real­
m ente construiu o pórtico do estado m oderno. D e fato, no sé­
culo X V III, juristas e filó so fo s atribuíram expressamente ao
“ direito p o lítico ” , tam bém chamado de “ direito c iv il” , a função
de organizar o Poder do Estado em conform idade com normas
racionais, cujo estatuto específico eles se dedicaram a modelar.
A ssim , por exem plo, J.-J. B urlam aqui buscava, num a obra pu­
blicada em Genebra em 1751, os “princípios” do direito p o líti­
co103; em 1 7 6 2 ,0 contrato social de J.-J. Rousseau trazia tam ­
bém, como subtítulo, “P rincíp ios do direito p o lític o ” ; em 1796,
E. Kant, em Rechtslehre, examinava, seguindo o exem plo de
A chenw all, a dicotom ia entre o “ direito privado” e o “ direito
c iv il” 104. M as, para além dessa term inologia, adotada sem hesi­
tação mesmo pelos autores apegados à idéia de direito natural,
tendia a se afirm ar de m aneira cada vez m ais categórica a e xi­
gência de reguladores que é inerente ao Poder.
Esses tempos de mutação do pensamento ju ríd ic o são
m uito complexos, não só porque a palavra “ direito” , em que se
detém a reflexão dos filó so fo s, revela m ais do que nunca a po-
lissem ia que G rotius e Burlam aqui destacam no in ício de seus
tratados, mas porque a idéia do “ direito natural” , encontrada
por todos os autores quando se indagam sobre os princípios dk>

103: Jean-Jacques B urlam aqui, Principes du droit politique, sem lugar


nem data, na realidade, Genebra, B a rillo t, 1751; reedição 1754. D o m esm o
autor, m encionem os tam bém Principes du droit naturel etpolitique, Genebra,
1763 (que reúne os Principes du droit naturel, 1747, e os Principes du droit
politique).
104. Rem etem os a nosso estudo La philosophie du droit de Kant, V rin ,
1996.
PR IM EIR A PA R TE 101

“ direito p o lític o ” , se inclina para sua acepção “moderna” : en­


quanto a tradição clássica e m edieval fundava süa concepção
do direito natural na “natureza das coisas” e a inseria num pon­
deroso cosm ologism o que a teologia judaico-cristã sustentara
com um teologism o providencialista, o jusnaturalism o “m oder­
no” vê no direito natural um dictamén rationis. Com o mostrou
P. Haggenmacher, certamente é com um a leitura sim plificadora,
portanto tendenciosa, dos textos, que freqüentemente se im pu­
ta a G rotius, sem m atizes, essa mutação semântica. Ocorre que
o autor de D e ju re b e lli ac pacis tinha traçado a rota de um a
filo s o fia da separação segundo a qual, depois dele e sob a
influência de Hobbes, se devia pensar a noção do “ direito natu­
ral” : o hom em está separado de Deus; a razão está separada da
experiência; a ordem do conhecer está separada da ordem do
ser; em conseqüência disso, o conhecimento do direito natural
se tom ava a celebração do logos. É claro que semelhante trans­
formação não podia efetuar-se sem encontrar resistências, como
mostra, por exem plo, o conflito que rebentou entre L e ib n itz e
Barbeyrac (sendo este ú ltim o, na realidade, o porta-voz e o de­
fensor de P ufendorf)105. Seja como for, ao adotar o itinerário
indicado por G rotius, o racionalism o leib nitziano-w olffiano de­
v ia conduzir os príncipes esclarecidos do século X V III, para
quem o direito, assim ilado à le i segundo a acepção que lhe
havia reconhecido G rotius, devia corresponder à capacidade
construtora da razão e expressar a ordo ordinans do Estadó.
A idéia reguladora segundo a qual o direito procede dos
dictam ina rectae rationis não devia ser alheia ao pensamento
ju ríd ic o -p o lític o do inclassificável Rousseau, que distinguirá
com acuidade “ o direito natural propriamente dito” e o “ direi­
to natural raciocinado” 106. 0 prim eiro corresponde - sobre esse
ponto Rousseau está de acordo com Hobbes e Spinoza - à es­
pontaneidade im ediata da vid a que, em todo ind ivíduo, quer

105. C f. in Barbeyrac, Écrits de droit et de morale: Jugentent d'un Ano­


nyme, Thesaurus de philosophie du droit, Paris II, Duchem in, 1996.
106. J.-J. Rousseau, Manuscrit de Genève, in Oeuvres complètes, P léia­
de, t. IE , p. 329.
102 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

perseverar; como tal, ele não tem , evidentemente, nenhum a d i­


mensão ju ríd ic a e, declara Rousseau, “não é um verdadeiro
direito” . O segundo procede da “ arte aperfeiçoada” inventada
pela razão para instalar um a ordem ju ríd ic a no trato dos ho­
mens; consistindo no estabelecimento de regras, de convenções,
de pactos e de leis, ele é a base dá legislação positiva das socie­
dades civis. Para Rousseau, a dificuldade está em pôr de acor­
do o naturalism o e o racionalism o; é por isso que ele atribui à
le i não a tarefa de criar o direito (ele ignora o “positivism o ju r í­
dico”), mas sim a de “ fix a r” os direitos.
N o âm bito da filo s o fia do direito, em que desde então se
instalou a reflexão política, a conseqüência m ais flagrante das
mutações semânticas correlatas, no século X V III, da evolução
do racionalism o é a consagração do conceito de “ Constituição”
pelo direito p olítico. Nesse conceito, a capacidade norm ativa
fundam ental do Poder do Estado conseguirá condensar-se de
um a m aneira tão forte que suas características dominantes so­
brevivem ainda na teoria constitucional contemporânea.

B ) O constitucionalism o moderno

A idéia de Constituição107 não fo i inventada pelos filó s o ­


fos ou pelos jurisconsultos do século X V III. M as eles m o d ifi­
caram profundam ente a conotação do term o P oliteia (ito A t-
T E Ía) empregado outrora por Péricles, Platão, Xenofonte e
Aristóteles. Para a filo s o fia p o lític a antiga, quaisquer que fos­
sem as divergências entre o platonism o e o aristotelism o, é a
Constituição pu P o lite ia que, na Cidade ou P olis, determinava
a articulação entre o fim visado pela p o lítica e os m eios que
tinham de ser empregados para realizá-la. A idéia de C onsti­
tuição designava assim a finalidade política - o justo - enquanto
as leis eram os m eios pelos quais se buscava o estabelecimen­
to da justiça. Portanto, a Constituição comandava o m odo de
organização do Poder, devendo este comportar, segundo A ris-

107. C f. P. Bastid, L ’idée de Constitution, Econom ica, 1985.


PR IM EIRA PARTE 103

tóteles, “três partes” : a “parte deliberativa” , relativa aos interes­


ses comuns; a parte relacionada com as administrações e m a­
gistraturas; a parte, enfim , encarregada de aplicar a justiça. N o
caso, o im portante era que, na perspectiva teleológica em que
se situava à filo s o fia política, as leis da Cidade, sob um a “ Cons­
tituição direita” , fossem “necessariamente justas” (o que acar­
retava, com toda a lógica, que, sob um a “ Constituição transvia­
da” , as leis fossem “necessariamente injustas” ).
A in d a que essa acepção da idéia de Constituição tenha sido
em geral acolhida pelo pensamento p o lítico da Idade M édia,
delineou-se um a oscilação semântica no século X I I I quando a
palavra “ Constituição” fo i empregada no sentido de “ in s titu i­
ção” , termo esse que se aplicava, por exem plo, às disposições
adotadas pelas m unicipalidades. Posteriormente, no século X V I,
a palavra “ Constituição” fo i utilizad a conjuntamente com a
m etáfora do “ corpo p o lítico ” para designar sua organização;
nesse uso, rapidamente passou a corresponder à noção de “ le i
fundam ental” , designando assim, no Estado cujos Contornos
modernos se delineavam , um corpo de norm as que, superior a
todas as regras, determinava, conform e elas lhe fossem confor­
mes ou contrárias, sua regularidade ou sua irregularidade (sua
constitucionalidade ou sua inconstituciqnalidade) e, em conse-
qüência, sua validade ou sua invalidade ju ríd ica. N o Estado, a
idéia de Constituição fo i assim pensada com o o analogon m o­
derno do que haviam sido outrora a M ag na C arta de João sem
Terra no reino da Inglaterra e as “ leis fundam entais” da m onar­
quia francesa. Portanto, ela m ostrou-se a palavra originária das
competências norm ativas do Estado, que fix a para o princípio
do direito público o âm bito no qual deve exercer-se e assume
ipso fa c to um valor programático. Nessa m aneira nova de com ­
preender a Constituição, conjugaram-se duas idéias mestras e
complementares, que a doutriha, desde então, firm o u e apri­
m orou constantemente. Por um lado, a Constituição define o
estatuto orgânico do Estado e é nela que reside a base dá potên­
cia estatal. Por outro lado, o aparelho ju ríd ic o do Poder se d e li­
neia segundo o esquema da “hierarquia das normas” .
104 OS PR IN C ÍPIO S f il o s ó f ic o s d o d ir e it o

O estatuto orgânico do Estado

A idéia do estatuto orgânico do Estado se form ou sob a


influência da prática p o lític a inglesa108 e da filo s o fia po lítica
de Lockc, tal como fo i exposta em 1690 no Tratado do governo
c iv ilm . E la é facilm ente identificada no célebre capítulo que
Montesquieu, em 1748, consagrou em O espírito das leis à Cons­
tituição da Inglaterra110. Essas páginas, redigidas por M ontes­
quieu na sua prim eira versão ao voltar de um a estada na In ­
glaterra, durante a qual pudera observar com vagar a vid a p o lí­
tica do outro lado do Canal da M ancha e ler as obras de M ilto n
e de Locke, expõem num estilo norm ativo - “ é preciso que..
“ é necessário q ue;. “ deve-se...” - como devem articular-se
nó Estado “ a potência legislativa, a potência executiva das coi­
sas que dependem do direito das gentes, é â potência executiva
daquelas que dependem do direito c iv il” 111. Decerto interpreta-
se com demasiada pressa a análise feita por M ontesquieu como
a teoria da “ separação dos poderes” quando se trata, como m os­
tramos noutra obra, de sua não-confusão, o quê im plica ao mes­
m o tempo distinção orgânica e colaboração funcional deles. EsSe
não é, porém, o ponto em que queremos aqui insistir. O im por­
tante é sublinhar que, segundo M ontesquieu, “ cada Estado” en­
contra sua base ju ríd ica na organização constitucional das com ­
petências pelas quais o Poder m anifesta nele sua autoridade: essa
é a condição sine qua hon da estabilidade política. D e fato, se
a Constituição é deturpada, o Estado degenera e a liberdade dos
cidadãos fic a gravementé ameaçada. É por isso que a regra fu n -

108. C f. O liv ie r Lutaud, Les deux révolutions d ’Angleterre. Documents


politiques, sociaux, religieux, A ubier, 1978.
109. Reportam o-nos à apresentação que fizem os desse tratado po lític o,
Flam m arion, 1984, T. ed., 1992. C f. igualm ente Cahiers de philosophie p o li­
tique etjuridique, n°. V , Caen, 1984; S. G oyard-Fabfe, John Locke et la raison
raisonnable, V rin , 1986.
110. M ontesquieu, L ’esprit des lois, îiv . X I, cap; V í. Rem etem os aqui a
nossas duas obras L a philosophie du droit de Montesquieu, K lincksieck,
1973; T. ed., 1979; Montesquieu: la nature, les lois, la liberté, P U F , 1993; cf.
igualm ente Cahiers de philosophie politique etjuridique, r i V II, Caen, 1987.
111. M ontesquieu, L'esprit des lois, liv . X I, cap. V I, in Pléiade, p. 396.
PR IM EIR A PARTE 105

dam ental do pensamento constitucional se enuncia, para M o n -


tesquieu, como um im perativo: “Para qüe não se possa abusar do
poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder detenha
o poder.” 112 O sentido e a im portância que M ontesquieu atribui
à norm atividade do Poder se revelam em tal preceito: é preciso
que, no Estado, o Poder, mediante um textofim dador, confira a si
m esm o suas próprias regras.
A Constituição, ao d e fin ir as bases sobre as quais se esta­
belece o estatuto orgânico do Estado, é, portanto, a regra “ fu n ­
dam ental” que a potência estatal im põe a si mesma. E la é,
segundo a ju sta expressão de M aurice H auriou, ‘‘o regulam en­
to da Cidade” , cuja “ ordem” profunda ela define: a in d iv is ib i­
lidade, a distribuição dos poderes, a repartição dos encargos e
atributos adm inistrativos e jud iciários etc. N isso se encontra
realizada a mutação semântica do term o “ Constituição” : ela
designa daí em diante o texto fundador no qual, em seus diver­
sos campos de competência e de ação, se apóia a p o lítica esta­
tal. Sieyès, às vésperas da Revolução Francesa, não se engana­
va: “ Caso nos falte um a Constituição” , desfecha ele, “ é preci­
so fazer-se uma.” 113 E xplica que o Poder “nada é sem suas for­
mas constitutivas; ele não age, não se dirige; não se comanda a
não ser por elas” ; e acrescenta: “ O governo só exerce um poder
real na m edida em que é constitucional,” 114 A idéia constitucio­
nal se im porá a todo o pensamento político do século X I X 115.
E la exam inará m inuciosam ente seus m otivos a fim de lhe dar
corpo nos textos que, na França; serão inscritos no ffontão do
Estado. M ais perto de nós, recordemos que, segundo Carré de
M alberg, “ o Estado deve sua existência antes de tudo ao fato de

112. Ibid., liv . X I, cap. IV , p. 395. .


113. Em m anuel Sieyès, Q u’est-ce que le tiers état?, 1789, reed. P U F ,
p. 64.
114. Ibid., pp. 67-8.
115. Rem etem os por exem plo à obra de B enjam in Constant e, num esti­
lo m ais técnico, às Questions constitutionnelles estudadas por Édouard L a -
boulaye (1872); reedição na B ibliothèque de philosophie p o litiq ue et ju rid i­
que, Caen, 1993.
106 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

possuir uma Constituição” 116» “ O nascimento do Estado” , pros­


segue esse autor, “ coincide com o estabelecimento de sua Cons­
tituição, escrita ou não, isto é, com o aparecimento do estatuto
que, pela prim eira vez, dá à coletividade, órgãos que assegu­
ram a unidade de sua vontade e fazem dela um a pessoa estatal.”
Lim item o-nos aqui a m encionar o lugar eminente ocupado pela
noção de Constituição nas obras de H . Kelsen e de C. Schm itt.
N o m ín im o , parece, desde já , que a capacidade norm ativa do
Poder se delineia, na perspectiva constitucionalista, não apenas
como o princípio fundador do Estado, mas também com o o prin­
cíp io regulador de seu funcionam ento.

A hierarquia das norm as

A segunda idéia que as estruturas constitucionais do E s­


tado moderno im plicam é a da “ hierarquia das normas” . Só será
denom inada como tal, por H . Kelsen, na prim eira metade do
século X X ; não obstante, ela pertence à lógica im anente do Po­
der que o racionalism o m oderno vincula ao p rincípio da cons-
titucionalidade.
N o Estado, o direito se desdobra, sob a Constituição, em
patamares sucessivos tais que, em cada um de seus respectivos
níveis, as regras editadas são subordinadas às regras do n íve l
superior e subordinam a elas as regras dos n íveis inferiores. A
coerência e a unidade do sistema do direito dependem dessa
estrutura orgânica, sim bolizada pela célebre im agem da “pirâ­
m ide ju ríd ica” na qual o procedim ento hipotético-dedutivo en­
contra seu lugar por excelência. M as a lógica constitucional
não é apenas organizadora; é tam bém criadora, de m odo que o
processo dedutivo sig nifica que há no Estado um a autogeração
das normas do direito. Se esse esquema da criação do direito
pelo direito, utilizad o pela Stufenbautheorie no começo do sé­
culo X X , é levado à sua m aior nitidez pela Teoria pura do direi­
to de Kelsen, na qual, aliás, valendo para a ordem ju ríd ic a in te i-

116. R aym ond Carré de M alberg, Contribution à la théorie générale de


l ’État (1920), reprodução C N R S, 19 62,1.1, p. 65.
PR IM EIRA PARTE 107

ra, tem um a extensão que vai m uito além da questão do direito


político, é interessante vê -lo delinear-se, a partir do fim do sé­
culo X V III, na obra de Sieyès.
Observamos m uitas vezes as ênfases inéditas do discurso
p o lítico feito por Sieyès, em janeiro de 1789, no panfleto in ti­
tulado Q u ’est-ce que le tiers état?, m uito particularm ente quan­
do denuncia, nos p rivilégios e nas desigualdades que os acom­
panham, os inim igos reais do interesse comum. F oi menos no­
tado que, nesse lib e lo que poderia passar por um a obra de cir­
cunstância, um dos maiores m éritos de Sieyès está em esboçar
um a resposta à problem ática da fundação do Poder estatal.
N um a obra recente, O liv ie r Beaud recorda Com m uita perti­
nência que “A ciência constitucional de Sieyès demonstra um a
notável percepção da natureza e das im plicações da noção m o­
derna de Constituição” 117. Compreendeu, com o diz, que “ os
poderes públicos eram juridicam ente ligados à Constituição” .
Esse vín culo ju ríd ic o decorre precisamente da hierarquia das
regras pelas quais o Poder organiza os poderes. D e fato, Siéyès
- que assim lança o espírito do direito p o lític o moderno - não
tem dúvida algum a de que a sociedade p o lític a é, como vira
Hobbes e como repetiu m agnificam ente Rousseau, um “ ser de
razão” criado ou “ instituído” pelo hom em e obediente às leis
de constituição que lhe são imanentes. É por isso que a “ ciên­
cia p o lítica” , que Hobbes e depois Rousseau se jactarão, ambos,
de ter inaugurado, e que Sieyès, por sua vez, se gabará “ de ter
acabado” , não pode, declara ele, prender-se àquilo que “ deve
sér”. Ora, se é indispensável que, na nova ordem social que está
prestes a advir, o “terceiro estado” seja visto, em virtude de süâ
indústria e de seu talento, como “ o todo da nação” , é preciso
considerá-lo como depositário das exigências da razão, às quais
devem em prim eiro lugar atender os negócios públicos. Qué o
“ terceiro” , que é “ somente ele a Nação” , se constitua em A s­
sem bléia N acional118, que a sala que a sediar se chame “ sala

117. O . Beaud, La puissance de l ’État, P U F , 1994, p. 207.


118. E . Sieyès, Q u ’est-ce que le tiers état?, p. 79. C f. Archives parle­
mentaires, 1“ série, 15 de ju n h o de 1789.
108 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

nacional” , que somente os deputados presentes possam a í ex­


pressar a vontade daqueles que eles supostamente representam
- eis os requisitos aos quais a vontade po lítica geral deve satis­
fazer. A fim de que possa ser assim, Sieyès elabora um projeto
de Constituição cujos princípios, oriundos da competência
norm ativa da razão, indicam “ o que se deveria fazer” 119: “ Tra­
ta-se” , escreve ele, “ de saber o que se deve entender pela Cons­
tituição p o lítica de um a sociedade e de observar suas relações
corretas com a própria nação.” 120 E logo acrescenta: “ É im pos­
sível criar-se um corpo para um a finalid ad e sem lhe dar um a
organização, form as e leis próprias para cum prir as funções às
quais se quis destiná-lo. É isso que chamamos de Constituição
desse corpo, É evidente que ele não pode existir sem ela.” 121 É
não menos evidente que “ qualquer governo” , do ponto de vista
orgânico como do ponto de vista ju ríd ic o de seu funcionam en­
to, deve apoiar-se em sua Constituição. Nessas fórm ulas costu­
m ou-se vislum brar a idéia segundo a qual a soberania popular
consiste essencialmente no poder constituinte do povo122. M as
Sieyès não se lim ita a enunciar essa idéia: para que p “ed ifíc io ”
fiq u e sólido, d iz ele, não basta que a vontade dos homens seja
o seu princípio, nem m esm o que seu interesse ou sua felicid a­
de sejam seu fim , nem sequer ainda que a realização do bem
com um seja seu objetivo. Se é preciso que, por um lado, o dis­
positivo constitucional se apresente realmente como “ o manda­
to de fazer” que a Nação confia a seus governantes, é preciso
também que ps procedimentos de ação fiq u em rigorosamente
especificados, qué diversos órgãos sejam colocados cada um
no seu escalão, que suas competências específicas não in te rfi­
ram nem se sobreponham umas às outras, que seu emprego
seja escrupulosamente controlado etc., o que só é possível, sob
a Constituição, em conform idade com um a hierarquização das
normas e das regras.

119. Ibid., títu lo do cap. V .


120. Ibid., cap. V , p. 66.
1 2 \.Ib id .,? . 67.
122. Sieyès de fato escreveu que a vontade nacional “ é a origem de toda
a legalidade” .
PR IM EIRA PARTE 109

Esses requisitos conferem à Constituição um a supremacia


form al que, aliás, tanto do ponto de vista teórico como do ponto
de vista prático, os doutrinadores da Revolução e os Consti­
tuintes de 1791 adm itiram e quiseram respeitar: a hierarquia
das regras é mesmo, a seus olhos, um a m uralha que protege a
vid a pública de flutuações desordenadas. N o m ín im o ela signi­
fic a que, pelo próprio dispositivo da Constituição, o Poder não
pode manifestar-se como simples potência; só pode agir sob a
autoridade da le i como norm a soberana, situando sua ação em
seu lugar certo na organização global da vid a do Estado. Nesse
sentido, a Constituição é a regra form al que, ao mesmo tempo,
exprim e a potência soberana da Nação e, canalizando-a, geren­
cia o Poder do Estado. Desse m odo, as leis constitucionais, diz
explicitam ente Sieyès, são “fundamentais” 123; quanto às leis or­
dinárias, elas são consideradas no âm bito das leis orgânicas,
por sua vez determinadas pelas instituições constitucionais:
“ são a obra do corpo legislativo form ado e que se m ove segun­
do suas condições constitutivas” 124.
A Constituição prevista por Sieyès desenha portanto em
seu dispositivo um ordenamento ju ríd ic o segundo o qual as
competências dos órgãos dó Estado bem como seu campo de
atuação própria são determinados, delim itados e hierarquizados.
A o estruturar a capacidade norm ativa do Poder, a Constituição
traça a arquitetônica ju ríd ic a geral da política. O esforço de
Sieyès consiste em tentar com isso a síntese do p oder consti­
tuinte o rig in á rio que ele atribui ao gênio criador da nação e da
capacidade ju ríd ic a dos órgãos instituídos, cujo funcionam en­
to é regulado pelos procedimentos hierárquicos determinados
pela Constituição. D os dois elementos dessa síntese, o segun­
do não tardará a se afirm ar como juridicam ente o m ais perti­
nente. D e fato, em 20 de ju lh o de 1789, diante da Com issão de
Constituição da Assem bléia, Sieyès devia explicar que o po­
der constituinte originário da nação deve apágar-se diante dos

123. Ibid,, p. 67.


124. Ibid., p. 68.
110 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

poderes instituídos125; segundo o estatuto constitucional, cujas


grandes linhas ele expõe, um “ Júri constitucionário” (que não
é nem o povo nem o poder legislativo) déve mesmo ser previs­
to como órgão de revisão encarregado, conform e um procedi­
m ento fixa d o m inuciosam ente, de revisar a Constituição quan­
do necessário. M esm o que “ a Constituição seja o iceberg do
ed ifício estatal, enquanto a potência pública estatal é sua parte
imersa” 126, e, ademais, qualquer que tenha sido a evolução do
pensamento de Sieyès entre 1789 e o ano III, ele soube mostrar
com um vig o r notável que, no Estado moderno, o Poder só
exerce suas capacidades curvando-se à supremacia da norm a
constitucional.

O estatuto norm ativo do Estado moderno

O princípio de constitucionalidade estava destinado a se­


guir um longo cam inho no direito p o lítico moderno. Sem per­
correr um a rota a cujo fin a l certamente não chegamos hoje,
guardemos aqui simplesmente a forte repercussão que teve com
K ant na filo s o fia . N a D o u trina do direito, K ant m ostra que a
Constituição, ao estabelecer a configuração ju ríd ic a do Poder
no Estado, d e fin iu seu estatuto norm ativo.
Já em 1781, a C rítica da razão pura focalizava a im por­
tância que o princípio constitucional assume no dom ínio ju r í­
d ico -p o lítico 127. Essa im portância é tão intensa que, em 1784,
em Id éia de uma história universal de um ponto de vista cos-
m opolítico, o filó so fo já não vê apenas num a Constituição o
princípio cardeal da sociedade c iv il no escalão estatal, mas o

125. Sieyès, “E xp osition raisonnée des droits de l ’hom m e et du citoyen” ,


in Archives parlementaires, t. V III.
126. O. Beaud, op. c it, p. 209.
127. Kant, Critique de la raison pure, Plêiade, 1.1, p. 1028; AK, I II, p.
247: “U m a Constituição que tem por finalidade a m aior liberdade hum ana
segundo leis que perm itiriam à liberdade de cada um subsistir em consonân­
cia com a dos demais (...), essa é pelo m enos um a idéia necessária, que deve
servir de fundam ento não apenas aos prim eiros planos que se esbocem de um a
constituição política, mas ainda a todas as le is.”
PR IM EIR A PARTE 111

de “ um a sociedade c iv il que adm inistra o direito de m aneira


universal” 128. Esse problem a, d iz ele, é “ o m ais d ifíc il” e “ será
resolvido por ú ltim o pela espécie hum ana” . M as, para superar
“ a sociabilidade insociável” que reina no seio da espécie hu­
mana, não há outra v ia senão o estabelecimento de um a Cons­
tituição: assim como a Constituição c iv il continua sendo no
Estado “ a idéia necessária” da qual falava a C rítica da razão
pu ra para assegurar a coexistência das liberdades, assim, tam ­
bém entre os Estados, a Idéia pura de um a “ Constituição cos-
m opolítica” 129 é o princípio regulador segundo o qual será evi­
tado o antagonismo entre as nações.
E m 1796, em D o u trin a do direito, na hora que, até no
campo prático, K ant dom ina perfeitam ente o procedim ento cri-
ticista, ele submete essa tese ao tribunal crítico da razão, o que
lhe perm ite precisar o estatuto filo s ó fic o de um a Constituição.
Está certamente tão longe de encontrar na Constituição da In ­
glaterra, a exem plo de M ontesquieu bem como de seus con­
temporâneos Burke, G entz ou Rehberg, o m odelo do republi­
canismo, que faz votos para que o Poder não se reduza, no Es­
tado moderno, à arbitrariedade da potência; aliás, pretender que
a tarefa de um a Constituição é “ lim ita r o poder pelo poder” não
passa, a seu ver, de um a “ quimera” . Se é verdade que a Cons­
tituição expressa, no m ais alto n ível, a aptidão norm ativa e xig i­
da pela po lítica m oderna, estatal é internacional, nem por isso
se deve ju lg á -la do ponto de vista da história po lítica em pírica.
Para o filó so fo do criticism o, o problem a está em captar as con­
dições de possibilidade e de validade dessa norm atividade; ora,
só se pode exam inar essa questão “ crítica” “ do ponto de vista
do direito” , isto é, segundo exigências a p rio ri que, só elas, são
básicas. Portanto, não basta dizer que o “pacto de união c iv il”
perm ite a coexistência dos homens sob “ leis públicas de coer­
ção” ; é preciso que a Constituição c iv il ( Verfassung) sob à qual

128. Kant, Idée d ’une histoire universelle d ’un p oint de vue cosmopoli­
tique, C inquièm e proposition, P léia d e,!. II, p. 193; AK, V III, p. 22.
129. C f. Kant, Théorie et pratique, 3“ seçïo, Pléiade, t. I II, p. 297; AK,
V III, pp. 311-2.
112 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

se ordenam essas leis públicas atenda, para que estas sejam


válidas, ao im perativo da razão pura prática que legisla a p rio ­
ri. E m aatcâs palavras, no Estado, a Constituição é, segundo
K ant, não a fonte ou a origem das leis estatutárias, mas a regra
que indica como elas devem ser (Sollen) 130. E la aclara o ideal
da legislação e do governo. N ão pretendemos com isso que a
Constituição seja, como na República platônica (que de resto
K ant adm irava), a fig ura arquetípica do Poder, mas m uito m ais
que, por seu estatuto filo s ó fic o em que repercute a exigência
transcendental da razão pura prática, ela é u m princípio norm a­
tiv o e regulador pelo qual devem ser aquilatados todas as rela­
ções de direito público. É assim a pedra de toque da ju ris d ic i-
dade e da legitim idade das leis públicas de coerção bem como
da obediência que lhes devem os cidadãos e os povos.
Segundo os m otivos e os considerandos da filo s o fia crítica,
“ a Constituição c iv il perfeita é” , d iz K ant, “ a coisa em si mes­
m a” 131. N o estatuto de .universalidade da exigência racional
pura que assim caracteriza a Constituição, Kelsen verá “ a hip ó­
tese lógica transcendental” 132 da teoria pura do direito133. D an­
do continuidade ao pensamento crítico de K ant, ele m ostra que
todo o direito positivo da pirâm ide ju ríd ica, cujo topo é a Cons­
tituição civil, se prende a um a Grundnorm que não é “ enunciada”
mas sim “ suposta” a títu lo de requisito prim ordial e pqro do
Sollen ju ríd ic o expresso pelo Poder de Estado. Quer dizer que,

Í3 0 . N o plano internacional, a “ Constituição cosm ppoiítica” tam bém


não designa um corpus de leis e dé regulam entos, mas o conjunto dás condi­
ções racionais transcendentais às quais a “ federação” dos povos deverá obe­
decer para tender à paz no m undo.
131. Kant, Doctrine du droit, Apêndice, Conclusão, Plêiade, t. III, p.
649; AK, V I, 371.
132. Kélsen, Théorie puredü droit, trad. Ch. Eisenm ánn, Siréy, 1962;
p. 266.- ■ ■■ ■'
133. A teoria kelseniana não poderá, na nossa opinião, ser assim ilada -
ainda que isso tenha sido fe ito com m uita freqüência - , de m aneira m uito
superficial, ao “ positivism o ju ríd ic o ” . Estudar as estruturas e buscar, como
fa z K elsen, a fundação lógica pura de u m sistem a de direito p o sitivo é um pro­
cedim ento científico que não im p lica de form a algum a que se seja o porta-voz
do positivism o.
PR IM EIRA PARTE 113

para o neokantiano que Kelsen é, como para Kant, a Cons­


tituição do Estado só é compreendida se a reflexão fo r dirigida
para aquilo que é. sua fundação originária pura. N a perspectiva
transcendental que o criticism o determina, compete somente à
juridicidade estrutural da razão conferir à Constituição, e à h ie­
rarquia das normas jurídicas que se situam sob ela, sua razão
de ser e seu fundam ento, ou seja, assegurar sua possibilidade,
sua base e sua legitim idade. O a p r io r i originário e universal da
Constituição e, portanto, do direito público ou p olítico, enun­
cia-se como “um postulado da razão prática” . É no factum
rationis que reside a capacidade norm ativa que, da Constituição
às leis ordinárias e às regulamentações, caracteriza o fenôm e­
no do Poder.
K ant tirava de suas análises um a conclusão que não pode
deixar de im pressionar o teórico de direito do Estado moderno:
este se insere “nos lim ites da razão sim ples” . A ssim se explica
que “ mesmo um povo de dem ônios” , desde que tenha in te li­
gência, saberá resolver, na modernidade ju ríd ica, o problem a
da Constituição do Estado. Portanto, o horizonte p o lític o -ju rí­
dico não é, nas form as estatais da p o lítica moderna, um h ori­
zonte impregnado de m oralidade. O reino c iv il da República
não se confunde com o ideal m oral do reino dos fins. Se ele
não sig n ifica que o poder de Estado, ao arrancar o hom em da
precariedade de sua condição natural, se eleva para a idealida­
de perfeita dos fin s éticos e do B em soberano, ensina que, na
arquitetônica da razão prática, a Id éia pura e a p rio ri da Cons­
tituição serve de regra e de fio condutor ( Rechtsnur, norm a),
isto é, de m odelo crítico à teoria da organização da vid a p o líti­
ca do Estado m oderno134.

Levado pelos filosofem as que, ao longo de três séculos,


caracterizaram o pensamento moderno —o hum anism o, o in d i­
vidualism o, o igualitarism o, o racionalism o - , o direito político,

134. K ant, Doctrine du droit, § 45, p. 578; AK, V I, p. 313.


114 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

desde M aquiavel, edificou-se e orgânizóu-se à partir dos três


grandes princípios da ordem p úb lica, da autoridade centraliza­
dora do Poder e da constitucionalidade da ordem jurídica. Con­
vém , portanto, exam inar como a capacidade norm ativa do Po­
der, comandada pelas exigências da razão prática e inserida
nos seus próprios lim ites, m anifesta-se na realidade p o lítica do
m undo moderno pelos princípios de independência e de o n i-
competência expressos pela idéia de soberania.
C apítulo I I

A soberania, p rin cíp io de independência


e de onicompetência do Estado moderno

.[o estudo do Poder no Estado m oderno m ostrou que, quan­


do ele não existe, não há direito (no sentido ju ríd ic o do term o).
Pela capacidade norm ativa, cujo princípio ele extrai da razão
hum ana, o Poder p o lítico se m ostra apto para refrear e contro­
lar os ímpetos da força bruta; por essa aptidão, ele se caracteriza,
sob a Constituição, com o criador de direito, isto é, como potên­
cia reguladora. Ora, no Estado m oderno, o conceito de sobera­
n ia conota essa vocação fundam ental do Poder. É importante,
portanto, apreender sua natureza e compreender por que, con­
densando em si a “ essência” do Estado, ela expressa e põe em
ação, no direito p o lític o moderno, os princípios de indepen­
dência e de onicom petência do Estado. 23
Em bora, com todo rigor, o conceito de soberania seja,
stricto sensu, um conceito do direito p o lítico “ moderno” , não
se poderiam desconhecer as noções analógicas que, lato sensu,
existiam na Cidade antiga e na p o lítica m edieval. O próprio
Jean B odin, que em geral é apresentado como o prim eiro teóri­
co da soberania, não ignorava nem as noções de KÓptov TtoXi-
re u p a ou de ic u p ía à p x n , que Aristóteles utilizava para desig­
nar o “poder dirigente” , nem, sobretudo, a expressão de sum -
mum im perium , freqüente entre os rom anos. E m sua grande
erudição, sabia tam bém que a elaboração do conceito de sobe­
rania é incom preensível se, por um lado, não se remonta à fo r­
m ulação que lhe davam os autores m edievais e se, por outro,
não se relaciona sua idéia com as polêm icas relativas à questão
de saber se, no m undo cristão, era preciso atribuir prim azia ao
poder espiritual do Papa ou ao poder tem poral do imperador.
116 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

N a história das idéias, os autores1 estão de acordo em encon­


trar, no fin a l do século X I I I , nos termos supremitas, majestas
e, sobretudo, summa potestas, a conotação superlativa que o
term o soberania recolherá. Esse ú ltim o term o teria aparecido
no idiom a francês no ú ltim o quarto do século X H I, mas o adje­
tivo “ soberano” , derivado do la tim m edieval superamos (sendo
em latim clássico supremos), que queria dizer “ superior” , exis­
tia no fin a l do século X II. Seja como for, originariam ente, a
soberania é superioritas: não há potência acim a dela. É esse o
sentido que retêm os Livm s~ãõscostum es e dos usos dé B eau-
voisis: “ Cada um dos barões é soberano em seu baronato” , es­
creveu o Senhor de Beaum anoir, que coloca “ os reis e os sobe­
ranos acima de todos” 2. E m 1303, G uillaum e de Plaisians, pro­
clamando, num a frase audaciosa, que “ o rei de França é im pe­
rador no seu reino” , indicava com isso que a majestas ligada à
“ le i do rei” (ele u tilizava com m uita liberdade a expressão ro­
mana lex regia, designando com ela a potência pública do reino)
estava a ponto de desmembrar a Respublica christiana. Por
conseguinte, o rei, que a partir daí não ficaria subm etido nem
ao im perador nem ao papa, seria detentor de um ju s plenum ,
denominado também ju s potestatis. Por essa razão, deveria exer­
cer o poder legislativo e as regalia, isto é, regulamentar a justiça,
a moeda, os impostos c os m onopólios.
Ocorre que, a partir dessas origens longínquas, a evolução
do Conceito dè soberania“ fic o u m ais com plexa, porque nela se
entrechocam, já hó fin a l do século X I I I , as influências discor-

1. C f. Joseph Strayer, Les origines m édiévales de l'É ta t moderne, trad.


citada, Payot, 1979, p. 21, que escreveu: “A soberania teve um a existência de
fato bem antes do m om ento em que pôde ser descrita no plano teórico (res­
pectivam ente, 1300 e 1550).” Esse autor rem ete a Gaines Post, Studies in M e­
dieval Legal Thought, Princeton, 1964, pp. 2 8 0 -9 ,3 0 1 -9 ,4 4 5 -5 3 e 463-78. C f.
igualm ente E . H . K antorow icz, The K ing 's Two Bodíes, Princeton, 1957; trad.
fr., Les deux corps du ro i, G allim ard, 1989, cap. V , pp. 172-99.
2- Beaum anoir, Livres des coustumes et des usages de Beauvoisis, §
X X X IV . E le observa no § 1043 (cf. igualm ente os §§ 1512-5) que “ o rei é
supremo soberano, que pode prom ulgar as leis (o establissem ent) que lhe pa­
reçam favorecer o bem com um e que todos estão sujeitos à sua ju stiç a” .
p r im e ir a p a r t e 117

dantes de legistas como Pierre du B ois, de teólogos como João


de Paris e, no século X IV , as de glosadores como Bartolo e B a l­
do* uns sustentando que o reino da França era independente
tanto do im perador como do papa, os outros declarando, com
Baldo: Rex est im perator in suo regno. O preceito não tardou a
se im por, o que constituiu um passo decisivo rum o à idéia de
suprema ou sum m apotestas. N a verdade, a doutrina levou em
consideração a onipotência reconhecida no monarca: “A ssim
quer o rei, assim quer a lei.” N em por isso ela fo i m uito clara e
m uito coerente. Ora os legistas, utilizando o preceito de D ío n
Crisóstom o, e sobretudo extraindo a lição do desenrolar dos
acontecimentos, consideravam que o rei, acima das leis, já que
ele as faz, está isento delas: Princeps legibus solutus est3; ora
próxim os dos comentários do direito rom ano feitos por Baldo4,
afirm avam que “ o príncipe dêve viver segundo as leis” , porque
da le i depende süa auctoritas. A ssim é que, a idéia de sobera­
n ia só se im pôs em m eio a hesitações doutrinárias: a soberania
caracteriza, como sustentam Charles de Grassaille e Jèan Fer-.
ràult5, o rei que, como “ um Deus feito hom em ” , é dotado das
“ vinte prerrogativas da Coroa Sereníssima de França” , ou então
ela não passa* m ais modestámente, de “um a m onarquia tempe­
rada” , como declara Claude de Seyssel?6 N a abundância dos
textos, fic a patente a incerteza doutrinária.
É verdade que, no começo do século X V I, M aquiavel es­
creveu a Vettori que “no seu D e P rincipatibus, ele aprofunda o
m ais que pode os problemas que apresenta um assunto assim:
o que é a soberania, quantos tipos de soberania existem , como
é adquirida, como é m antida, como é perdida” 7. N ão obstante,

3. Este preceito, que se encontra no D e M onarchia de Dante, de 1311,


terá grande repercussão nas obras de B od in e de Hobbes.
4. B aldo, CommentaHi in Codicem, 1358-1395; Com m entarii in D iges­
tion, 1357-1397.
5. Charles de G rassaille, Regalium Franciae lib rid u o , 1538; Jean Fer-
rault, D e ju rib u s e tp rivile g iis Regni Francorum , 1520.
6. Claude de Seyssel, La grant’m onarchiede France, 1519.
7. M aquiavel, carta a V e tto ri datada de 10 de dezem bro de 1513, P léia­
de, p. 1436. Esses problem as são de fato tratados èm Le Prince, cap. X V ,
Pléiade, p. 335.
118 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

será preciso esperar m ais de m eio século para que Jean B odin,
prim eiro no M ethodus de 1566 e depois, sobretudo, dez anos
m ais tarde, nos Seis livros da República, conceba o projeto não
só de consolidar a noção de soberania nó âmago da experiência
p o lítica do reino da França, mas tam bém , de m odo m ais auda­
cioso, de fix a r sua conotação conceituai num âm bito ju ríd ic o .
A partir de então, começava, na m odernidade nascente, a histó­
ria com plexa de um a idéia que, atualmente, na hora da europei­
zação, quiçá da m undialização do direito p olítico, ainda perma­
nece no centro de numerosos debates teóricos e práticos.
D epois de termos recordado a análise vigorosa que, no
lim ia r do m undo m oderno, B o d in fazia da soberania com o “ es­
sência” da República, sublinharemos, com a comparação das
teorizações filosóficas que dela fazem , respectivamente, B od in
e Hobbes, o caráter polêm ico que, já em sua emergência, afeta
seu conceito. E m seguida, recordaremos as grandes linhas do
debate que, nos séculos X V H I e X I X , opôs os defensores da
soberania do Príncipe e os da soberania do povo. A natureza
conflituosa da idéia de soberania ressurge, aliás, no nosso fin a l
de século, como veremos na ú ltim a parte desta obra: ela passa
por um a verdadeira crise e sua sobrevivência, no cerne de um a
p o lítica que se internacionaliza, é m ais do que nunca proble-:
mática. Por enquanto, procedamos à análise genealógica do m o­
delo filo só fic o da soberania.

1. O arq u étip o n a tu ra lis ta da soberania


sobre a N ave-R epública

Jean B od in não estabeleceu corte entre süâs idéias e sua


participação política. Cum pria narrar aqui como, aos trinta anos,
ele chegou a Paris, após as penosas decepções que sofrera em
Toulouse - prim eiro na Universidade, onde reinavam ásperas
rivalidades entre os juristas, uns seguindo Jacques Cujas na sua
análise filoló g ico -h istó rica do direito, os outros, próxim os de
Connan e Jean Coras, defendendo um a visão sistemática do
direito romano - e depois, na “ Cidade rosa” , onde o clim a p o lí-
PR IM EIR A : PARTE 119

tico-religioso era detestável. Teremos presente sobretudo que,


já nessa época, B o d in tinha grandes projetos de teorização do
direito8 e que, ao m esm o tempo, se adaptava às práticas dos tri­
bunais parisienses. M as, na capital onde se am plia eontinuada-
m ente a repercussão dos fenômenos sociais e políticos, ele era
particularm ente sensível à atmosfera de crise que, desde a m or­
te de H enrique I I (1559), se agravava dia a dia: de fato, como o
lealism o m onárquico então se confundia, na realidade, com a
ortodoxia católica, a tensão religiosa com os huguenotes se tor­
nava dramática. Os problemas p olíticos se envenenavam com
as questões de fé religiosa: A rainha-m ãe Catarina de M édicis
seguira uns tempos os conselhos dè conciliação e tolerância
que lhe dava o chanceler M ic h e l de 1’H ospital; mas a luta entre
católicos e protestantes levou a tragédias Como o colóquio de
Poissy e o massacre de W assy.O Parlam ento de Paris, em sua
m aioria favorável à repressão do protestantismo, mostrava aber­
tamente o conluio entre p o lítica e religião. Nessa conjuntura, o
reinó da França, já em 1562, parecia um barco desgovernado,
cujas estruturas demasiado frágeis eram ameaçadas pela força
de um a tirania crescente que extraía sua inspiração das teses
m aquiavélicas e, ao mesmo tempo, pela vontade de resistência
popular dos huguenotes que os monárcômacos procuravam
justificar, ainda que, àquela altura, ainda não adotassem Um tom
m uito virulento9.
D iante dessa situação e apesar de um a psicologia com ple­
xa, B odin escolheu seu lado: enfileirou-se - sem convicção pro­
funda e talvez por um cálculo de interesses - na tendência ao
lealism o monárquico. Logo alistou-se, ao lado do duque François
d ’A lençon, no clã dos “ Políticos” , ao quàl permanecerá ligado
de 1573 a 1583. Sinceramente perturbado pelas agitações que
enfraqueciam cada vez m ais o reino, achou que se tom ava u r-

8. É isso que demonstra a Juris universi distribution cujo m anuscrito


data de 1566. A obra, porém , só fo i publicada em 1578. C f. nossa apresenta­
ção desse texto, Exposé du d roit universel, P U F , 1985.
9. F o i sobretudo depois do massacre da N o ite de São Bartolom eu, em
1572, que os panfletos dos monarcômacos se tom aram violentos.
120 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

gente dar à m onarquia francesa um a base doutrinária na qual


conviria que ela se apoiasse a fim de recobrar sua autoridade
perdida e de se consolidar. Ora, na época em que era ainda jo ­
vem professor na Faculdade de Toulouse, B od in estudam as
magistraturas num D e Im pério , que fo i queim ado quando de
sua,morte, de acordo com seu desejo10. M as, o eco desse texto
está presente no M ethodus e no L a République. A í se vê o con­
ceito de soberania emergir pouco a pouco de um contexto ju r í­
dico-histórico, no qual são determinantes dois elementos: de
um lado, a fragmentação da Europa em Estados nacionais, que
desmembram a Respubliça christiana e se opõem ao poder do
im perador; do outro, em cada um desses novos Estados, a von­
tade de preem inência do poder dos príncipes sobre o poder dos
“ corpos interm ediários” como o Senado e os Parlamentos. A in ­
da que o discurso de B o d in fiq ue pesado com um a pletora de
exemplos históricos e de referências livrescas ou bíblicas, seu
desígnio é claro ao expor, na dedicatória do L a République a
M ons. D u Faur, a bela m etáfora da N ave-República: “Enquanto
a nave da nossa República tinha na popa o vento agradável, só
se pensava em fru ir um repouso firm e e garantido, com todas
as farsas, pantom imas e disfarces que podem ser im aginados
pelos homens inebriados por todas as espécies de prazeres. M as,
desde que a tempestade im petuosa passou a atormentar a nave
de nossa República com ta l vio lên cia que o próprio capitão e os
pilotos estão como que cansados e extenuados por um trabalho
contínuo, é preciso que os passageiros lhes dêem um a ajuda,
quer nas velas, quer nos cordames, quer na âncora e, àqueles a
quem faltar a força, que dêem algum bom conselho.” 11 Para
aqueles que “ têm o desejo e a vontade constante de ver o estado
desse reino em seu prim eiro esplendor, florescente ainda em
armas e em leis” , a realização do programa ju ríd ico -p o lítico não

10. Sobre esse D e Im pério, bem com o sobre um D e ju rid ic tio n e que
data da mesma época, cf. T . Chauviré, Jean Bodin, auteur de La République,
L a Flèche, 1914, que recolhe suas inform ações em M énage (A egid ius M e -
nagius) num a Vita P e tri  erodii, sem lugar nem data, p. 143.
11. Les S ix Livres de la République (ed. D u Püys, 1583; reed. Scientia
A alen, 1961), prefácio, p. a ij.
PR IM EIR A PARTE 121

pode esperar, pois a N ave-República corre o risco de naufragar


na tempestade da história.
Com o o pensamento dos fin s comanda o pensamento dos
m eios, o “ P olítico” B odin, a fim de ajudar a endireitar o tim ão
e a m anter firm e o lem e, pretende possuir um conhecimento
perfeito das estruturas da República, que, diz ele, “ se reconhece
na unidade da soberania” 12. O talento do jurisconsulto se reve­
la m aravilhoso para analisar o conceito de soberania que, na
República, assume prontamente um valor criteriológico.

A ) A renovação do conceito em M ethodus e em L a République

Form ado em direito romano, B odin, a fim de estudar a so­


berania, se apóia expressamerite na noção romana de im perium .
Sabe que essas raízes estão m uito distantes e talvez rem ontem
à dominação etrusca sobre Rom a. M as, referindo-se ao texto
do D ig esto13 e influenciado pelos m últiplos comentários que os
glosadores adicionaram à passagem a que se refere, ele guarda
acim a de tudo a idéia do merum im perium 14. Esse conceito de­
signava o poder de comando unitário do princeps oü prim eiro

12. M ethodus (na trad. Pierre M esnard: Méthode p our la connaissance


fa c ile de l ’histoire, Corpus des philosophes fiançais, P U F , 1951), V I, p. 352.
A célebre definição da república com o “ o governo reto de várias fa m ilia s e
daquilo que lhes é com um com a potência soberana” , La République, I, I, p. 1,
retom a o m esm o critério.
13. D igesto, II, I, 3: Ulpianus lib ro secundo de o fficio quaestoris.
Im perium aut merum aut m ixtum est. M erum est im perium habere g la d ii p o -
testatem animadvertandum facinorosos homines, quod etiam potestas appel-
latur. M ixtum est im perium cui etiam ju rid ic tio inest quod in danda bonorum
possessione constitit. Jurid ictio est aeiam ju d ie is denti licentia.
14. Dando-se crédito a Charles Loyseau, em seu Traité des offices, I,
V II, p. 28, a distinção o rigin al entre o merum im perium e o m ixtum im perium
se extin g u iu com o fim da R om a antiga. Isso explicaria ás dificuldades èncon-
tradas pelos legistas da Idade M édia para u tiliz a r a noção de im perium , cuja
conotação, ao longo da história, se tom ara hem pouco clara. Provavelm ente
fo i para solucionar essas dificuldades que o texto do D igesto (II, 1 ,3) deu azo
a tantos com entários nas edições glosadas do Corpusju ris c iv ilis .
122 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

personagem da República; ao longo de um a evolução com ple­


xa, esse poder acabara, a partir do século I, por se concentrar
no ju s g la d ii que pertencia ao Caesar imperator. Decerto B odin,
nesse resumo sim plificador, esòàmoteia as transformações de
que o merum im perium fo i objeto na Rom a da Realeza ao Im ­
pério15. M as fic a sobretudo im pressionado com a am plitude do
im perium infinitu m vinculado à m ais alta autoridade e ju ris d i­
ção m ilita r e c iv il16. A lé m disso, B od in conhece as abundantes
glosas com as quais, na Escola de Bolonha, B artolo e depois
Baldo sobrecarregaram a idéia de summum im perium e como,
na trilh a dos glosadores, o uso da noção de seigneurie, na Itá lia
e depois na França feudal, pouco a pouco se im pôs. Por fim ,
B odin historiador não ignora as pesadas controvérsias que, des­
de os legistas do século X D 3 17, m ais um a vez deform aram ou
tranisformaram a noção im perium , e é recorrendo às análises
de canonistas como Im o la ou Pam om ita que ele extrai a cono­
tação ju ríd ic a desse conceito, assim ilando-o àp lenitudo potes-
tatis. D e todos esses precedentes, B odin, num a visão “ sintetis-
ta” , guarda um único tema: o p oder soberano de um rei o torna
independente, de m odo que, no dom ínio tem poral, a exem plo
do que é o Soberano P ontífice no dom ínio espiritual, ele é su­
p e rio ra todas as autoridades subordinadas. Outrossim , quais­
quer que sejam as sobrecargas semânticas, o conceito de sum­
mum im perium K conota, segundo Bodin, o “status Reipublicae” .
O term o status, dificilm en te traduzível, é transposto por Pierre
M esnard como “princípio” da República, da qual designa, sob o
nom e de soberania, “ a alm a” , “ a essência” ou “ a form a” ..

15. Sobre essa evolução embaralhada e com plexa, cf. M yron P. G ilm ore,
Argum entfrom Roman Law in P o litic a l Thought: 1200-1600. Cambridge, 1941.
16. O im perator era de in íc io um chefe m ilita r. Somente ao cabo de
transformações lentas e sucessivas ele se tom ou detentor da autoridade adm i­
nistrativa e ju diciária.
17. U ns, como G uillaum e de Nogaret, Pierre Flòtte, Pierre de C uigniè-
res, estavam sobretudo preocupados em dar ao rei da França os direitos de um
senhor dom inante; os outros eram m ais doutrinários é entendiam inspirar-se
nos trabalhos da Escola de B olonha.
18. B od in faz expressamente menção a isso no M ethodus, p. 359.
P R IM EIR A PARTE 123

A soberania assim concebida constitui daí em diante, para


B odin, o ponto nodal de sua grande obra: nela se concentram o
princípio de independência e o p rincípio de onicom petência do
Estado moderno. A s m odificações que, de u m texto para outro,
m atizam seu sentido, não m od ificam sua definição in ic ia l e,
m uito pelo contrário, perm item seu aprofundamento. Em bar­
quemos, pois, nessa N ave-República e sigamos a rota intelec­
tual de B od in a fim de captar, em seu lugar de excelência, a na­
tureza ju ríd ic a do poder soberano.
N o longo capítulo V I do M ethodus, intitulado D e statu
rerum publicaram 19, B odin, que se propõe estudar o status (des­
ta vez, P. M esnard traduziu por “ constituição” ) das R epúbli­
cas20, apresenta sua prim eira análise da soberania. Duas obser­
vações se fazem necessárias aqui. A prim eira é temática: B odin
não se indaga sobre a soberania divina e espiritual, que pertence
a um a ordem diversa daquela da República dos hom ens; anali­
sa a soberania p o lític a característica da ordem ju ríd ic a tem po­
ral das Cidades. A segunda observação é term inológica: embo­
ra o term o status tenha sido traduzido em francês pela palavra
“ constitution” [constituição], não possui conotação “ constitu-
cionalista” ; designa os elementos que, na “ h istória universal
dos Estados” , intervêm com o constantes para a instauração e o
governo de um a sociedade po lítica, qualquer que seja seu regi­
m e, m onarquia, aristocracia ou democracia21; m elhor seria tra­
d u zi-la pela expressão “ estatuto institucional” .
O estudo da soberania das repúblicas, observa B odin, ja ­
m ais fo i conduzido a seu term o pelas doutrinas anteriores; é
tamanha a insuficiência analítica delas que nenhum a conse­
guiu dar desse conceito um a definição clara e substancial. A s­
sim , m esm o que concordemos que A ristóteles se interessava
m ais pela adm inistração da República do que pela autoridade
soberana, temos de adm itir que em lugar nenhum d iz em que
consiste o summum im perium ; chama-o de “ poder supremo” ,

19. M ethodus, texto latino , p. 167.


20. Ib id ., texto francês, pp. 349 ss.
21. Ib id ., p. 350.
124 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

reconhece que “ a majestade e fo rm a da República” residem em


sua “ autoridade c iv il soberana” ou em seu “ comando soberano” ,
porém não fornece nem análise nem definição desse conceito.
Essa carência é tanto m ais lam entável porque não d iz m uito em
que consiste a “ form a da República” , cujo status é, precisa­
mente, reconhecido à soberania22. D o mesmo m odo, os juriscon­
sultos de Rom a e a m aioria dos escritores políticos m edievais
que acreditavam seguir a tradição rom anista do merum im pe-
rium não esclareceram a noção de soberania N o dizer de B odin,
eles teriam m esmo sido levados a um paralogism o, por ele
apresentado nos seguintes termos: “E les pensavam que a auto­
ridade soberana era d efinid a pela criação dos magistrados e
pelo poder de castigar e de recompensar; mas, como essas pe­
nas e esses favores provêm comumente da decisão e da autori­
dade dos magistrados, deduzir-se-ia daí que estes participam ,
ju n to com o príncipe, do exercício da soberania, o que é absur­
do.” Digam os com m aior sobriedade e de m aneira menos sur­
preendente qué o erro de todos esses autores teria sido criar
um a interferência entre magistratura, jurisdição e soberania e,
por isso mesmo, considera B odin, partilhar a potência sobera­
na distribuindo-a entre diversos magistrados. Certos autores
não teriam sequer visto, continua B o d in , que, ao atribuir, Como
fazem , toda a potência pública aos magistrados, o poder discri­
cionário que lhes é concedido só pode conduzir a República à
sua ruína. A conclusão de B o d in é perem ptória: não aceita a
vacuidade nem o erro dos autores antigos.
Por conseguinte, defin in do a República como “ o conjunto
das fam ílias ou dos colégios submetidos a um a só e mesma
autoridade” , que não é nem paternal nem doméstica mas “pú­
blica”23, ele enumera os atributos essenciais do poder sobera­
no que lhe competem. D epois de comparar os argumentos de
Aristóteles, de P olíbio, de D io n ísio de Halicam asso e dos prin ­
cipais jurisconsultos, considera que esses atributos são cinco:
nom ear os m ais altos m agistrados, legislar, declarar a guerra e
concluir a paz, ju lg a r em ú ltim a instância, ter direito de vid a e

22. Ib id ., pp. 351 e3 59.


23. Ib id ., pp. 351 e 357.
P R IM EIR A PARTE 125

de m orte nos casos em que a le i não se presta à clemência24. Os


juristas, d iz ele, são unânim es em reconhecer esses atributos
(aos quais geralmente acrescentam o poder de criar im postos e
de cunhar m oeda) seja ao príncipe, num a m onarquia, seja aos
nobres, num a aristocracia, seja ao povo, num a democracia. M as
o erro estaria em acreditar, sublinha B odin, que a questão da
soberania depende do regime da República. O verdadeiro pro­
blem a reside na natureza da relação que, em qualquer república
e seja qual fo r seu regime, existe entre magistratura e soberania.
Resum indo esse problem a, como o fize ra U lp iano, ao d i­
reito da espada (ju s g la d ii), B o d in segue a tradição que, a seu
ver, tem um valor exemplar. Partindo da dicotom ia entee a au­
toridade “plena e redonda” e a autoridade delegada (ordinata),
ele se pergunta se, quando o príncipe delegou um a parte de sua
autoridade a um m agistrado com a função de exercê-la, conti­
nua a ser seu proprietário25. N u m desses resumos incisivos cujo
segredo possui, constata que, de Papiniano a Àccursio, os ju ­
risconsultos são unânim es - sobre esse ponto, elogia A le ia t - è
a prática confirm a a doutrina: “ O direito pertence ao príncipe e
seu exercício compete ao magistrado.” 26 Entretanto, concede
B odin, essa posição deve ser aprimorada à lu z dos dois p rincí­
pios do direito universal - a le i e a'equidade - pois é deles que
depende a natureza da função do magistrado. N a realidade, dois
casos se encontram: ou os magistrados têm sim plesmente a
função “mercenária” ou “ servil” , como d iz B artolo, de aplicar
a le i - o que, segundo B odin, abarcando aí ainda a história com
um olhar tão sim plificador que falseia a realidade histórica,
teria sido a função do pretor em Rom a27 - e, nesse caso, eles

24. Ibld., p. 359.


25. B od in evoca a esse respeito a controvérsia entre A zo n e Lotário.
Nessa questão, o im perador deu razão a Lotário que havia reconhecido, con­
tra A zo n, a propriedade in d iv is ív e l do direito de soberania e, em agradeci­
m ento, ofereceu-lhe u in cavalo - ocasião qué ensejou zom barias em função
das quais a polêm ica redobrou, pois equus não é aequus.
26. Ibid., texto latino , p. 175; texto francês, p. 360.
27. N a verdade, em Rom a, o pretor estava longe de ter um a função “servil” ,
já que, pelo “edito do pretor” , ele dizia exatamente o direito que aplicaria e como
o aplicaria - o que demonstra a margem de independência de que dispunha.
126 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

claramente só têm um poder derivado e secundário, recebido,


anteriormente, de um poder superior e que não podem, poste­
riorm ente, transm itir a um terceiro; ou os magistrados têm d i­
reito de decidir fora da le i desejada pelo poder soberano - como
os cônsules romanos que tinham a g la d ii potestas - e são, en­
tão, na m atéria, detentores de um poder plenamente discricio­
nário em razão do estatuto de autonom ia de sua magistratura.
Ocorre que, sendo distintos esses dois tipos de relações possí­
veis entre magistratura e soberania, nunca o magistrado possui,
sublinha B odin, o merum im perium ou a summa potestas', em
ambos os casos, o poder e a função que lhe cabem foram rece­
bidos por certo tempo e deverão ser restituídos ao prineeps,
único soberano.
E m seguida, B o d in se pergunta sobre o estatuto dos decre­
tos adotados por um Senado num a democracia. O problem a é
delicado, porque o direito iin p lica, no direito romano qüe ele
tom a como referência, ta l como nó nosso direito m oderno, um a
hierarquia das norm as na qual as determinações dos m agistra­
dos não podem derrogar a autoridade do Senado, a autoridade
dó Senado não pode derrogar a potência da plebe, e a potência da
plebe não pode derrogar a majestade do povo, em quem reside
a plenitude da autoridade soberana28. Seria então “ loucura” ou
“ crim e capital” sustentar que a potência soberana é delegada a
magistrados ou, p io r ainda, que é com partilhada (quer com o na
democracia romana entre o povo, o Senado e os cônsules, quer
como pleiteia Thom as M o re para a m onarquia inglesa, entre
órgãos com funções distintas e específicas). Contra todos
aqueles que defendem a idéia de um a Constituição m ista, B o ­
din - que nesse ponto deplora as carências do Corpus rom a­
no29, da doutrina m edieval e do costume francês - afirm a que,
considerada juridicam ente, a autoridade soberana, em qualquer
form a.que encarne, é, em todo Estado, constituída por prerro­
gativas próprias que não se delegam nem se partilham . N ão fala

28. Ib id ., p. 362.
29. Nesse aspecto do problem a ele se ju n ta às críticas form uladas por
François H otm an no seu A ntiíribonien.
PR IM EIR A PARTE 127

explicitam ente de “ ind ivisib ilid ad e” da soberania, mas afirm a


não encontrar na história e, m ais especialmente, na história de
Rom a, m odelo ju ríd ic o de um a soberania compartilhada30. Sa­
lienta cóm m uito vig o r que o poder de fazer as leis é, na hierar­
quia 0das normas jurídicas, o poder ao qual estão necessaria­
m ente subordinados todos os outros, adm inistrativos ou ju d i­
ciais; trata-se, como repete, de um poder de comando supremo;
a potência soberana ordena e suas ordens são obrigatórias. A pa­
rentemente, ao contrário das teses expostas por Claude de
Seyssel em A grande m onarquia da França, B od in afirm a que
nenhum “ freio” lim ita o poder soberano; aliás, o costume con­
firm a , d iz e le , a integralidade indefectível da soberania. N o
entanto, ele reconhece que os reis, por ocasião de sua sagração,
se comprometem por um juram ento solene a jam ais vio la r nem
as leis fundam entais nem a regra da eqüidade (ex legibus im pe-
r ii et aequo b o n ó fl . Apesar da aparente contradição da propo­
sição que um espírito moderno não deixa de notar, não há incoe­
rência alguma no pensamento de Bodin, como veremos seguindo
a análise tem ática m ais acurada feita em A República.
Façamos o balanço. N o M ethodús, B o d in parece reportar-
se à tradição m onárquica da França e distingue escrupulosa­
m ente a form a do governo da form a do Estado. A d m ite que a
fo rm a do governo - isto é, a m aneirap o lític a pela qual a auto­
ridade soberana é exercida - seja subm etida a controle (pelos
Estados gerais, pelos Estados provinciais ou pelas cortes de
Justiça), e só possa portanto ser exercida no âm bito das leis. E m
compensação, ajforma do Estado —isto é, a essência da Res p u -

30. N a realidade é de um ponto de vista m ais p o lític o do que ju ríd ic o


que P o líb io sublinha, na dem ocracia rom ana, a influência do Senado que
detém seu poder p or delegação do povo (c f. M ethodús, texto latino , p. 179).
O m esm o ocorria em Èsparta no tem po de Licurgo e na república de Veneza.
A respeito desse ponto, B o d in fo i criticado por A lthusius, na P o lític a m etho-
dice digesta (1603), e por Pufendorf, no D e ju re naturae et gentium (1672),
m encionando que “ os Estados irregulares” não têm princíp io unificador, mas
m esm o assim são Estados que se m antêm graças à associação de seus com po­
nentes diferentes.
31. M ethodús, p. 187.
128 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

blica, qualquer que seja o regimé, na França ou fora dela - é


definida, em seu estatuto ju ríd ic o , como potência soberana que,
em si, é um a sutnrna potestas designada pelos termos superio-
ritas, supremitas ouplenitudo pótestatis. A substância da Repú­
blica precisa sempre dafo rm a (no sentido aristotélico do term o)
que é a soberania.
É preciso adm itir, nãõ obstante, que a posição adotada por
B odin em 1566, e mesmo ainda em 1572, na única revisão do
M ethodus, não deixa de ter certa imprecisão. Talvez esta pro­
venha apenas de uma prudência tática num país onde a crise é
latente. Porém, ela vem também , sem dúvida, da dificuldade
que B o d in sente em articular entre elas, como se preocupa em
fazer, categorias políticas e categorias jurídicas. E m 1576, Os seis
livros da República demonstrarão um m aior dom ínio quanto a
esse problem a32.
O texto dos Seis livros da República, cujo títu lo clássico o
insere na tradição que v a i de Platão a Aristóteles e Cícero, é,
apesar de seus longos meandros, m ais sistemático e m ais n ítido
do que o do Methodus. Deve ser lid o em suas duas versões: a
de 1576, em francês, e a de 1586, em latim . O pensamento de
B o d in passou pela prova da história na França contemporânea,
arrasada pelos sobressaltos das guerras religiosas e por suas
repercussões políticas. D o ponto de vista conceituai e teórico,
o pensamento se consolidou. A definição da república, enun­
ciada no começo da obra: “R epública é um governo reto de vá­
rias fam ílias e daquilo que lhes é com um com potência sobera­
na” 33, bem como a problem ática logo form ulada: “A soberania
é o ponto principal e m ais necessário de ser compreendido no
tratado da República”34, são os sinais de um a arquitetônica que,
ao longo das m il páginas do volum é, não falhará. O texto la ti-

32. N ão poderíam os ver em La République, como Julian F ranklin , “um a


virada brutal e dramática, determ inada por novas preocupações políticas” .
Jean Bodin et la naissance de la théorie absolutiste, Cam bridge, 1973, trad,
fr., P U F , 1993, p. 67.
33. Les S ix Livres de la République, I, I, p. 1.
34. Ib id ., I, V III, p. 122.
PR IM EIR A PARTE 129

no acrescentará um m atiz sutil ao traduzir “governo reto” por


legitim a gubem atio. Esse m atiz não é gratuito: especifica a du­
pla âncora, histórica e ju ríd ica, da reflexão feita por Bodin.
O teor do texto não pode ser compreendido indépendente-
m ente do contexto histórico marcado, ao mesmo tempo, pela
propensão tirânica do governo da França e pela vontade de re­
sistência dos huguenotes. Por um lado, B odin está aterrorizado
pela evolução da p o lítica sob a regência de Catarina de M é d i-
eis. “A italiana” , como era chamada, era próxim a dos G uise e
dos interesses católicos; seu governo, cada vez m ais fraco, fo i
logo dom inado - não se trata de um paradoxo - pela vontade de
elim inar os opositores huguenotes, o que explica em grande
parte o massacre da N o ite de São Bartolom eu. B odin, escanda­
lizado com a intolerância e a brutalidade inteiram ente m aquia­
vélica de Catarina de M éd icis, depois de Carlos LX, desaprova
totalm ente a perseguição dos heréticos35. Por outro lado, B o d in
não ignora a evolução da literatura panfletária dos m onarcôm a-
cos, cujos libelos se tom aram , após a N o ite de São B artolo­
m eu, de um a violência extrema: expondo o problem a do direito
de resistência ao Poder, eles consideram que esse “ direito” exis­
te m esm o e que é líc ita a resistência sempre que o Poder ultra­
passa suas competências; chegam até a pregar o tiranicídio
quando a autocracia do príncipe - então “tirano em exercício”
m ais ainda do que “tirano de origem ” ou usurpador - conduz à
servidão dos súditos36. O reino da França está portanto entre­
gue ao sopro da tirania, que B o d in acha ser m ais ou menos
filh a de M aquiavel, e aos ataques do pensamento protestatório
dos monarcômacos, aliás huguenotes ou católicos. Esses ven-

35. N os Estados G erais de B lo is , em que tem assento em 1576 na qua­


lidade de representante do terceiro estado por Verm andois, e le se faz notar
por sua diatribe contra as perseguições religiosas e por sua defesa da tolerân­
cia. O rei não gostou e recusou-lhe o cargo de referendário, que lhe havia m ais
ou m enos prom etido.
36. B od in não abre polêm ica com os monarcômacos. E le até pouco fa la
deles, ainda que cite em L a République (I, V III, p. 137) Le d roit des m agis-
. trats, de Théodore de Bèze, e Fran co-G allia de François H otm an. Contudo, é
m u ito h o stil a eles porque vê neles os coveiros do Estado.
130 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tos contrários castigam m ais do que nunca a Nave-República.


O navio corre o risco de soçobrar sob as repetidas invectivas da
opressão e da rebelião. Esse desfraldar de violência é um desa­
fio à soberania do Estado37, Para evitar o naufrágio, im porta
garantir bem as estruturas jurídicas da N ave-República. Estas,
na opinião de B odin, que assim repüdia os monarcômacos, não
são determinadas jú r is consensu. Elas se prendem à form a da
República, à sua soberania essencial: “ D a mesma m aneira que
o navio não é m ais que m adeira sem form a de nave quando a
quilha, que sustenta os costados, a proa, a popa e a ponte são
retiradas, assim também a República sem potência soberana,
que une todos os membros e partes desta, e todas as fam ílias e
colegiados em um corpo, já não é República.” 38 O objetivo de
B odin é se elevar à compreensão ju ríd ic a do conceito de sobe­
rania precisando a natureza e aju n ç ã o que são as suás: por sua
natureza, ela reúne e engloba as “partes” ou “membros” de um a
República; por sua função, é “ o eixo em tom o do qual gira o
estado de um a república” . N atureza e função da soberania re­
velam suas três características fundam entais: é potência de co­
m ando; é perpétua; é absoluta. Cada um a dessas características
exige um exame.

B ) Natureza e função da soberania ’

A soberania é em p rim eiro h ig a r potência de comando39.


M as esta, diferentem ente da ^ tê h c iã de^cõináhdar q u e u rn
m arido, um pai, um mestre ou um senhor possuem naturalm en­
te, não é um comando privado. Seja por pertencer à autoridade
direta do soberano que baixa a le i, seja por ele jazer, por dele-

37. Esse tem a retom a como um leitm otiv ao lòngó de todos õs S ix livres
de la République. B odin repete, por exem plo no II, V , p. 301, que, por um
lado, a “grande le i de Deus e da natureza” , a m ais fundam ental entre todas as
leis, é achincalhada pela opressão tirânica, e que, por outro, se o povo pode
depor o rei, é porque êsse rei não é “absolutam ente soberano” .
38. La République, I, II, p. 12.
39. Ib id ., I, II, p. 19.
P R IM EIR A PARTE 131

gação, “na pessoa dos magistrados que se curvam perante a le i


e comandam outros magistrados e particulares” 40, ele é essen­
cialm ente de ordem p ú b lic a .^o n ta â o , o m ais im portante é que,
prerrogativa prim ordial na República, esse comando m anifesta
sua perfeita superioritas, portanto, a plenitude de potência41. Por
isso o detentor dessa competência básica — príncipe, assem­
bléia ou povo - é como o p ilo to em seu navio: abaixo de Deus,
ele é o único senhor a bordo da N ave-República.
JPassando da m etáfora à definição, B o d in caracteriza então
a soberania como “ a potência absoluta e perpétua de um a R e­
pública” 42. O fato de a soberania ser perpétua ou sempiterna
sig n ific a que não é lim itad a no tempoTfSua característica trans-
tem poral perm ite d irim ir a questão da delegação: os m agistra­
dos, regentes ou comissários, são “ depositários e guardiães” ,
por uns tempos, de um poder de comando m una determinada
m issão - “ fazer a guerra, reprim ir um a sedição, reform ar o Es­
tado ou nomear novos funcionários” (a lista dessas “missões”
não é lim itativa); seu poder não pode ser soberano, sendo neces­
sariamente subordinado. A liá s, um a vez cum prida sua m issão,
eles “não passam de súditos” ; assim aconteceu com o grande
Arconte de Atenas ou com Cincinato em Rom a; assim aconte­
ce na França com o tenente-general de um príncipe. A potência
que seu cargo lhes confere, ainda que im ensa, faz deles “ co­
m issários” : sua m issão é “precária” . E , mesmo que um poder
in fin ito fosse dado “por toda a vid a” a algum magistrado, nem
por isso este seria detentor da soberania43. Com o Bracton, que,

40. um.,I, II, p. 19.


41. H á nisso, de form a patente, um a transposição para o direito público
da R epública da noção de plenitudo potestatis que, na Decretai P er Vene-
rabilem de Inocêncio I II, definia a autoridade suprema do soberano pontífice.
42. La Republique, I, V III, p. 122. N a versão latina, a definição da sobe­
rania não comporta a perpetuidade. Porém , a análise de B odin é conduzida da
m esm a m aneira nas duas edições e, num a e na outra, ela começa pelo estudo
da perpetuidade do poder soberano.
43. N ão está certo pretender, como J. F ranklin , que, “ quando ele fa la de
perpetuidade do poder a propósito de um estado (sic: deveria ser grafado Es­
tado) m onárquico, B odin quer dizer o cargo v ita líc io ” , op. c it, p, 177. B odin
se coloca no terreno da lógica a fim de analisar a essência da soberania. Nessa
132 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

no século X I I I , declarava num a frase célebre, N ullum tempus


c u rrit contra regem, jB ódin acha que a soberania não tolera,
pela própria razão de sua essência, nenhum a lim itação crono­
lógica. N o navio República, ela não é da ordem do tem po;
transcende-o. H
A o mesmo tempo, ela transcende a pessoa dos príncipes.
N ão poderia pertencer a sua pessoa física e ser o atributo de sua
vontade subjetiva. E la é característica dá “pessoa pública” que
o Estado é, pelo fato de ter vontade (objetiva) apenas por m eto-
n ím ia. A perpetuidade da soberania corresponde à perpetuida­
de da Coroa tal como a estabeleciam, ná França, “ as leis funda­
m entais do reino” , cuja form ulação, de data recente44, refletia
o tema m edieval segundo o qual a dignidade real45, sagrada,
portanto im aterial, era im ortal: M ajestas regia nunquam m ori-
tur. B odin, seguindo òs C onsilia de Baldo46, transpõe dessa m a­
neira a perpetuidade suprapessoal da Coroa para a Res p u b lica
em geral. É certo que os reis passam. M as, como d iz o velho
brocardo: “ O rei m orreu, v iv a o re i!” . Com o a Coroa, a Res p u ­
blica permanece. H á n isso a prim eira form ulação da continui­
dade da potência pública. ]E m sua essencialidade, a soberania
exclui de fáto toda prescrição é toda vacância do Poder; como
se o tempo se diluísse num perpétuo presente, a soberania se
cerca de um “halo de eternidade” . Isso explica que, príncipe ou
assembléia, o detentor da potência soberana não tenha, no Es­
tado, que prestar contas a quem quer aue seja, a não ser, fora da
ordem do tempo, ao próprio Deus47f j j

perspectiva, que não é a da história em pírica, é contraditório, já que á perpe­


tuidade está contida analiticam ente na form a essencial do poder soberano,
falar de soberania tem porária, “p o r tem po determ inado” ou ‘V ita líc ia ” .
44. F o i por vo lta dé 1418-1419.que p legista Jean de Terreverm eille
( Terrirubius) fix o u nos seus Tractatus, impressos e m L y o n em 1526 (foram
reeditados por F . H otm an em A rras em 1586), u m conjunto de regras consue-
tudinárias sem as quais a realeza não parecia vá lid a nem viáve l.
45. Esta, bem entendido, é para ser considerada in genere e não in in d i­
víduo.
46. B aldo, C onsilia, I II, 217, n. 3.
47. La Republique, I, V III, p. 125.
P R IM E IR A PARTE 133

E n fim , a soberania da República é absoluta. Para a elu ci­


dação dessa terceira característica fundam ental do poder sobe­
rano, é particularm ente ú til a confrontação das versões latina e
francesa do texto. D ize r que a soberania é absoluta não s ig n ifi­
ca que é ilim itad a, nem m esmo que é, como indicava a palavra
antiga superioritas, superlativa, isto é, superior a todos os outros
poderes; isso quer dizer que é incondicional. B odin é perfeita­
m ente claro: um a soberania condicional é um a contradição nos
termos. Escreve: “A soberania dada a um príncipe sob encar­
gos e condições não é soberania nem potência absoluta.”48 U ti­
lizando o m odelo da plenitudo potestatis p o n tific a l, em que os
canonistas via m um a majestas “plena e redonda” , B o d in consi­
dera que a soberania m onopoliza toda a autoridade na Repú­
blica. E la a concentra e a exprim e, de m aneira em inente, em
todos os campos, pela prerrogativa legislativa. “ O ponto p rin ci­
pal da majestade soberana e potência absoluta consiste principal­
mente em dar leis aos súditos em geral sem o consentimento de­
les.”49 “D ar leis a todos em geral e a cada u in em particular” 50,
essa é a prim eira marca da soberania e a m ais evidente. ‘Todos
os outros direitos” são abrangidos por esse dom ínio prim ordial:
como “ desencadear a guerra ou fazer a paz; conhecer, em últim a
instância, dos julgam entos de todos os magistrados; nom ear ou
destituir os m ais altos funcionários; im p or aos súditos encar­
gos e subsídios ou iséntá-los deles; outorgar graças e dispensas
contra o rigor das leis; elevar ou abaixar a liga, o valor e o pe­
so das moedas; fazer os súditos e hom ens devotados jurarem
m anter sua fidelidade sem exceção àquele a quem o juram ento
é devido.” 51
Com essa tese, B od in se afasta do pensamento m edieval -
o de Bracton, por exem plo - que dava ênfase ao caráter de ju iz
e de justiceiro do soberano, geralmente representado tendo na
m ão a balança, seu atributo essencial; e retom a a idéia do sobe-

48. Ib id ., I, V III,p . 128.


49. Ib id ., I, V III, p. 142.
50. Ib id ., I, X , p. 222.
51. Ib id ., I, X , p. 223.
134 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

rano solus conditor legis, que os glosadores romanos encontra­


vam nos Institutos de Justiniano. Contudo, utiliza a língua dos
autores m edievais, calcada no princípio de U lpiano Princeps
legibus solutus est e sublinha que, na República, o soberano,
não m ais do que o papa, “não pode atar suas mãos m esmo
quando o quisesse” 52. É verdade que, como ele é o único no na-
vio-Estado que detém a prerrogativa legislativa, tam bém é de
sua competência exclusiva ab-rogar ou m od ificar as leis53. É
por isso que cada edito ou ordenação, dependendo somente de
“ sua pura e franca vontade” , traz a frase “Porque assim nos
apraz” [“ C ar tel est notre bon p la is it>r\. Nessas condições, é
“ im possível por natureza que o soberano dê leis ou ordene a si
próprio” |N a sua preeminênçja, o poder soberano absoluto está
isento das leis por ele fe ita sK jO texto latino é explícito: a sobe­
rania é summa in eives ac súbditos legisbusque soluta potestas
(a soberania tem “ supremacia sobre os cidadãos e os súditos e
é desvinculada das leis” ). A í está o essencial: não apenas o so­
berano não é vassalo nem feudatário, pois, “ se depende de ou­
trem , já não é soberano” (o que im p lica que jam ais é tributário
dos outros Estados), não somente é livre em relação a seus su­
bordinados e seus predecessores, com o, solutus legibus, é livre
em relação às leis, editos e ordenações por ele feitos. Portento,
na sua ordem própria, isto é, na N ave-República, a soberania
sig n ifica a independência da autoridade de comando55.pNão se
entenda que ela seja sinôn im a da arbitrariedade do Poder, em
que a vontade do soberano, apoiando-se na força, é considera­
da razão. B ó d in não aceita que a p istola do bandido faça d ire i-

52. Ib id .,1 , V III, p. 132.


53. Ib id ., I, V m , pp. 150-1.
54. Ib id ., I, V IU , p. 131: “É preciso que aqueles que são soberanos não
fiquem de form a algum a subm etidos aos comandos de outrem e que possam
dar leis aos súditos ou anular as leis inúteis, para fozer outras, o que não pode
fazer aquele que é subm etido às leis ou àqueles que têm comando sobre ele.”
55. G uy C o q u ille, no seu D iscours aux états de France, 1589, escreve­
rá: “O rei é monarca e não tem com panhia em sua majestade r e a l... o que há
de majestade representando sua potência e sua dignidade reside inseparavel­
mente em sua única pessoa” ( Oeuvrés, B ordeaux, 1703, t II, p. 1).
P R IM E IR A PARTE 135

to nem que o soberano proclame: s it p ro ràtione voluntas. A


conotação ju ríd ic a da soberania se concentra na capacidade.de
decisão que ela contém analiticam ente56, isto é, segundo sua
essência e sem referência a algum a cláusula co n stitu c io n a ljA
soberania é, p o r si, o poder de assumir, compromissos “ segun­
do a exigência dos casos, dos tempos e das pessoas” , é de assu- )
m i-lo s sem recorrer às disposições de um a Constituição, sem
se louvar em opiniões ou injunções que seriam form uladas por .
instâncias inferiores ou pelo povo. A independência da potên- !
cia soberana exclui consultas e dispensas. Por isso o Senado, j
ou qualquer outra assembléia, não tem participação algum a, i
segundo B odin, nas decisões do poder soberano; aliás, se fosse !
assim, haveria um ilogism o flagrante, pois a soberania, Com- j
partilhada, se dissolveria em vez de se firm ar.
Indo até o fim dessa lógica do direito de soberania d e fin i­
do como potência suprema e absoluta de comando na República,
é preciso adm itir que, caso se apresente um a situação excep­
cional ou um caso de extrem a necessidade, só ela, com toda a
“ liberdade” , tem competência para decidir. Dessa im plicação
Jógica da soberania, C. Schm itt extrairá sua célebre definição:
“ É soberano aquele que decide até m esm o num a (iib er) situa­
ção excepcional” 57 - o que sig n ifica que a ordem ju ríd ic a esta­
belecida em virtude das prerrogativas inerentes por essência à
potência soberana repousa não num a norm a constitucional e
sim num a competência decisória livre de qualquer obrigação
jurídico-norm ativa; é isso o que já indica de m odo m uito exato
na língua de B o d in o adjetivo “ absoluta” : ab-soluta legibus.
tTD o ponto de vista da teoria ju ríd ica, fic a patente que tal
compreensão do conceito de soberania é diam etralm ente opos-

56. É sobre esse traço fundam ental que, com toda razão, insiste C ari
Schm itt, Theologiep o litiq u e, 1922, trad. ff., G allim ard, 1988, p. 18: é notável
que B od in introduza “a decisão no ceme da noção de soberania” .
57. Ib id ., p. 15. N o texto alem ão, a preposição “über” cria dificuldades,
como assinala o tradutor francês: Souverän ist, wer über den Ausnahmezustand
entscheidet. Porém , não poderíam os traduzir sim plesm ente, como ele fa z, por
“ da situação excepcional” . D e fato, não é somente nas situações comuns, mas
mesmo nas situações excepcionais que decide o soberano.
136 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ta à constitucionalidade do “ estado D O direito” 58, na m edida


em que este d istribui as competências e instaura entre elas con­
troles recíprocos. Segundo B odin, o que caracteriza no Estado
a soberania não é só sua capacidade de legislar para as situações
cotidianas da vid a pública, mas tam bém sua competência de se
exercer fora da norm alidade^p. Schm itt está certo ao sublinhar
que as situações que não são abrangidas pelas normas jurídicas
existentes e que, por esse m otivo, são ditas “ excepcionais” , não
significam desordem oucaos. É preciso que entrem em catego­
rias jurídicas e, como estas não existem , a função do poder so­
berano é criá-las. A ssim , o direito de soberania, com seu cará­
ter absoluto, está longe de designar o m onopólio da dominação
ou da coerção; m uito m ais do que isso, ele é a fonte básica da
ordem jurídica, o que constitui no Estado o único m otivo, ne­
cessário e suficiente, para se submeter à norm a. Essa exegese,
que define a soberania por sua capacidade decisória, é seduto­
ra. Entretanto, quando C. Schm itt conclui: “Para criar o direito,
não há necessidade algum a de estar em seu direito” 59, enuncia
um a proposição que B od in jam ais endossaria. N a econom ia
geral da obra de B odin, é im possível còlocar entre parênteses os
“princípios universais da natureza” , em que se apoiam a inde­
pendência e a onicom petência do poder soberano. D o m esm o
m odo, sendo o esplêndido “teatro da natureza” , segundo B odin,
o lugar por excelência no qual se situa a soberania das Repú­
blicas, seu conceito não transpõe realmente o lim ia r da m oder­
nidade juríd ica: é esse naturalism o m etafísico que será posto
em questão pelo artificialism o de Hobbes, que elucida plena­
mente, já no século X V II, o caráter conflituoso de um conceito
cujo significado o direito p o lítico m oderno discute sem cessar.
Antes de pôr frente a frente as teorias de soberania de
Hobbes e de B odin, pesquisemos, na obra m ultidim ensional
de B odin, as premissas m etajurídicas de suâ teorização ju ríd ica
da soberania.

58. C f. in fra , pp. 207 ss.


59. íb id ., p. 24.
P R IM EIR A PARTE 137

C ) A fundação m etajuridica do direito de soberania

, Pesquisar o fundam ento fin a l do direito de soberania é ta­


refa delicada. Por isso descartaremos, num a etapa prelim inar,
certas interpretações que nos parecem tão falaciosas quanto se­
dutoras.
A obra de Julian Franklin, recentemente traduzida em fran­
cês, se indaga sobre o papel de B od in em Jean B odin et la n ais-
sance de la théorie absofutiste. O autor pretende mostrar que,
com Os seis livros da República, “ a v ia da autocracia é legal­
m ente aberta” 60. A tese é tão am plam ente argumentada que
inevitavelm ente prende a atenção. N ão obstante, apesar do ca­
ráter m uito sério de um a problem ática assim, parece-nos que b
pensamento de B od in é perigosamente deturpado. A “ teoria
absolutista” se apresenta na história das idéias como um a teo­
ria política. Ora, pela própria razão de seu m étodo de trabalho,
B o d in não elabora a teoria de um regim e p o lítico ; desde suas
prim eiras obras - è nesse ponto m anteve-se constante - analisa
a p o lítica num a perspectiva ju ríd ic a , com o faziam os autores
medievais. M esm o tendo um a preferência pela “monarquia real”
- ele o d iz e deve-se acreditar nisso - não advoga um regim e
p o lític o e sim busca as estruturas jurídicas necessárias para um
governo reto (legitim a gubem atio) da Nave-República. D iferen­
temente do que farão, m eio século m ais tarde, Cardin Le Bret61
é R ichelieu62, ele não propõe em seu volum oso tratado um a
pragm ática p o lítica posta deliberadamente a serviço do absolu­
tism o m onárquico; é num a perspectiva de teoria do direito que
submete o conceito de soberania ao b isturi da análise. A liá s,
não se poderia, sem desvirtuar seu pensamento, encobrir a tese
diretriz de sua construção teórica segundo a qual a soberania,
d efinida como “ absoluta” - isto é, livre das leis por ela estabe­
lecidas - , é duplamente “ lim itada” : ao m esmo tempo pelas le­
ges im p erii e pela “ grande le i de Deus e da Natureza” . B odin é

60. Julian Franklin, op. c it.,p . 166.


61. Cardin L e Bret, D e la souveraineté du ro i, 1632.
62. R ichelieu, Testamentp olitiq u e, redigido entre 1635 e 1640.
138 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

um pensador demasiado escrupuloso para que haja incoerência


nessa tese. M u ito pelo contrário, seu significado é profundo: os
lim ites da soberania não são em píricos; revelam seu funda­
m ento fin a l. D e fato, se o direito de soberania se insere bem na
ordem tem poral da República dos homens, sua dupla lim itação
revela que ele m ergulha suas raízes em requisitos m etajuríd i-
cos e transtemporais que não pertencem a este m undo.
Para compreender isso, abstenhamo-nos por u m instante
de pensar como “modernos” : não nos perguntemos se há ou não
há, segundo B odin, lim ites constitucionais para a soberania. A
questão é in ú til, já que a soberania, sendo soluta legibus, é l i ­
vre, em sua p ró p ria ordem, em relação às leis estabelecidas da
República, que, aliás, ela pode ab-rogar. Contudo, é preciso, com
B odin, pensar como filó s o fo do direito e não ocultar os p rincí­
pios m etajurídicos da ordem ju ríd ic a da República: por sua na­
tureza, a soberania está subm etida a leis de uma outra ordem,
diferente das leis da República; é-lhe im possível ab-rogá-las;
ela não tem nenhuma liberdade em relação à potência delas. N a
Nave-República, o soberano é realmente o único senhor a bordo,
porém_só o é “ abaixo de Deus” . E m conseqüência, a summa
potestas, cujo depositário é o soberano, está submetida, sob as
leis naturais queridas por Deus, às regras do direito natural63,
ao ju s gentium , às leges im p erii que, oriundas do direito con-
suetudinário64, refletem a le i d ivina do m undo. “ Os príncipes
soberanos” , escreve B odin, “ são estabelecidos por Deus como
seus lugares-tenentes para comandar os outros homens.” 65 Por
conseguinte, aquele que recebe de Deus a potência soberana é
também, de Deus, “a im agem na terra” 66. E m consequência, não

63. Dentre as regras do direito natural, é preciso citar as que se referem


à fa m ília e à propriedade.
64. A s leges im perii são as “leis ftm dam entais do reino” . Entre elas, as
duas m ais im portantes se referem à devolução da Coroa e à inalienabilidade
do dom ínio real. Elas têm um a im portância capital: “ Quando se derrubam as
leis fundam entais de um reino, o rei e a realeza que estão edificados sobre elas
caem im ediatam ente.” Brève remontrance á la noblesse de France sur le fa it
de la déclaration de M onsieur le duc d'A lençon, 1576, p. 14.
65. La République, I, X , p. 211.
66. Ib id ., I, X , pp. 212 e 215.
P R IM EIR A PARTE 139

lhe é possível, sem um a falha horrível e sem se tom ar “ culpado


de lesa-majestade divin a” , in frin g ir a le i de Deüs e da natureza,
que B odin, como Cícero, reconhece transcendental, im utável,
eterna e inelutável.
A idéia da origem divina da autoridade soberana, tão fun­
dam ental para B odin, pode parecer banal no século X V I e po-
der-se-ia vê -la como posta a serviço da p o lítica m onarquista,
Ora, se B o d in evoca, m uito especialmente na sua controvérsia
subjacente com os monarcômacos, a teoria tradicional da Igre­
ja católica romana resum ida na frase do apóstolo São Paulo -
N on pptestas n is i a D eo - não é possível que ele a confunda
com a teoria da m onarquia de direito d ivin o que lhe é posterior
e será defendida, no século X V II, num contexto polêm ico es­
tranho a B odin, pelos publicistas galicanos a fim de se oporem
à tese do poder tem poral do papa. A fastar esse anacronismo
representa afastar, ao mesmo tempo, a pretensa vontade ideo­
lógica de B odin em favor do absolutism o monárquico.
A reflexão de B o d in não se deixa ilu d ir por esse contexto
de controvérsia ideológica. Seu pensamento especulativo está
em busca do fundam ento m etajuridico do direito de soberania.
Para acom panhá-lo nessa busca, é preciso encontrar o solo em
que ela se enraíza. Ora, como B odin considera com realismo que
toda República tem origens naturais67 e que “ força e violência”
fizeram nascer, sob u m chefe, as sociedades políticas68, ele não
vê na questão das fontes divinas da potência soberana um pro­
blem a verdadeiramente problem ático. Para ele, a referência a
Deus é tão evidentemente um postulado que nem sequer pro­
cura provas da existência do “prim eiro princípio” . Este, de res­
to, não pode ser conhecido e suas vontades são impenetráveis.
Noutras palavras, na sua teoria do direito de soberania, B o d in
não procura demonstrar o valor de sua referência a Deus: p o s-
tula-a. U m postulado não constitui um problem a; é recusado
ou aceito. B odin, incondicionalm ente, adota essa postulação;
ela é a base fundam ental de suâ teoria.

67. Ib id ., IV , I, p. 503.
68. Ib id ., II, H l, p. 281; IV , I, p. 511.
140 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Por conseguinte, fic a claro que o desígnio de B o d in éf ilo ­


sófico: paia ele, trata-se de m ostrar que, na süá compreensão
últim a, a soberania participa, em toda República, da ordem das
coisas desejadas por Deus; portanto, ela se insere num a “ im a­
gem total do m undo” 69. Fazendo parte do ordenamento geral
da Natureza universal, a soberania é a expressão, no m undo dos
hom ens, de um a regra de composição da totalidade cósmica
sobre a qual reina o Deus criador e organizador. Por conseguin­
te, enqüànto form a ju ríd ic a da República, á soberania não é,
segundo B odin, a pedra angular do absolutism o m onárquico70.
Sua obra inteira tende a mostrar que o direito de soberania, em
razão do lugar que ocupa no vasto theatm m naturae, e o ín d i­
ce das exigências m etajurídicas, ao mesmo tempo éticas e on­
tológicas, de toda a ordem ju ríd ic a das repúblicas.
À soberania da República é sobretudo ligada, de m aneira
fundam ental, a requisitos de ordem m oral. D e fato, o estudo do
direito de soberania destacou sua força norm ativa: ela é o poder
de comandar os cidadãos e de legislar para todos em todos os
campos. M as é preciso que seu governo seja “reto” ou que seja,
como d iz o texto latino, legitim a guberriatio. Sobre esSe ponto
todos os textos são consoantes; m ais ainda do que o M ethodus
e o À República, a A pologia de René H erp in (1576) e o C o l-
loquium Heptaplom eres (1593) são explícitos. Expõem que as
decisões do poder legislativo são leis verdadeiras com a condi­
ção expressa de respeitar as disposições dá le i natural pela qual
Deus espalha a justiça no universo71. E m consequência, quando,
usando sua competência própria, a potência soberana ab-roga

69. C f. Cesare V a so li, N óte sul Theatrum naturae d i J. B odin, R ivista d i


storia delia filo s o fia , U I, 1990, pp. 475-537.
70. F o i apenas por um a interpretação redutora e deturpada dos textos
que “ a doutrina constitucional o fic ia l do A ntig o R egim e” è os doutrinadores
ingleses do realism o puderam invocar o que J. F ra n k lin chama de “ o absolu­
tism o de B odin” , op. c lt., p. 171.
71. N a A pologie de René H erpin (o texto se segue, na edição de Puys,
aos Six Livres de la Republique), B odin explica longamente com o, por núm ero
e m úsica, Deus espalhou sua le i em todo o cosmos. C f. igualm ente C olloquium
Heptaplom eres, D roz, 1984, liv . II, p. 24.
PR IM EIR A PARTE 141

ou corrige as.leis, por m ais que seja soluta lege poíestas, está
ligada, em sua retidão ou em sua legitim idade, à exigência de
justiça que é im anente às leis divinas da natureza. E la não a
pode repudiar sem se desvirtuar a ponto de deixar de ser sobe­
rania. Por essa razão, quem a detém “ está obrigado às justas
convenções e promessas que fez” 72, tenham elas sido ou não
acompanhadas de um juram ento. Entendamos que a potência
soberana está no caso vinculada não em virtude de um vincu-
lum ju ris , mas em virtude de um a exigência m oral de justiça.
D o mesmo m odo, o detentor da soberania tampouco pode der­
rogar os costumes de seu país, não porque im põem um a obri­
gação jurídica, mas porque neles se delineiam as leis naturais
queridas por Deus para um a nação.
Por um lado, observações desse tip o são significativas no
n ív e l teórico em que se situa o pensamento de B odin. E le não
se lim ita a responder às ameaças da tiran ia do príncipe ou da
rebelião huguenote. Para além das m anifestações conjunturais
da história política, discerne as exigências que a vontade d iv i­
na introduziu no “teatro da natureza universal” 73. N inguém , e
sobretudo não o soberano, pode derrogar “ sem crim e” 74 esse
requisito que, para todos os povos, tem um caráter “ santo e in ­
vio lá ve l” 75. T al como declara a E pístola dedicatória do U niver-
sae naturae theatrum, a vontade de Deus é, no todo do m undo,
a norm a sagrada de qualquer ação.
Por outro lado, B o d in sublinha vigorosam ente que a obri­
gação m oral que lig a o soberano à exigência de ju stiça querida
por Deus se traduz de m aneira concreta e precisa no direito de
soberania. Em bora a soberania seja habilitada a “m udar e cor­
rig ir (as leis) segundo a ocorrência dos casos” 76, não pode exer­
cer sua competência segundo seu capricho ou a seu bel-prazer,

; 72. La République, I, V III, p. 133.


73. A q u iép reciso consulter o Universae naturae theatrum , L yo n , 1596,
trad. fr., L yo n, 1597.
74. La République, n i, V II, p. 483.
75. Ibid.., I, I, p. 32.
76. Ib id ., I, V III, p. 142.
142 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

más somente em conform idade com o que o ju sto requer: “ é


obrigada a fazer justiça por obrigação d ivina e natural” 77. Justi-
tia èst Jin is ju ris . U m a exigência assim indica m orm ente a
im portância da b o n afid es e da prudenlia nò governo reto dã
República78, que só é possível sob o signo do ju sto e do razoá­
vel. E la acarreta em seguida sérias repercussões políticas; se
obedecer à justiça que a le i natural quer define a legitim a g u -
bem atiò, desobedêcê-la é cair na tirania: “ O rei” , escreve B odin,
“ se conform a às leis da Natureza e o tirano as pisoteia; um aca­
ta apiedade, ajustiça e a fé, o outro não tem nem Deus, nem fé,
nem le i” .79 Os descaminhos do poder provêm sempre do nãó-
respeito desse im perativo m oral de ju stiça qüe “tem o esplen­
dor do sol” 80. 0 soberano, tal como deve ser, permanece eterna-
m ente súdito de Deus81. “ Se a ju stiç a é o fim da le i e a le i obra
do príncipe, o príncipe é a im agem de Deus; é preciso, pelo
m esmo raciocínio, que a le i do príncipe seja feita pelo m odelo
da le i de Deus” 82, que é infinitam ente ju sta e reta. Portanto, a
ordem natural e d ivina é a nõrm a m oral da ordem p o lítica ; ela
è, para o soberano, “ a estrela do pastor” .
A s exigências m orais inerentes à soberania têm um duplo
significado. N o âm bito de um a teoria do direito, indicam que,
para Bodin, não há autonom ia do direito mas, segundo um termo
que costuma empregar, u m “ entremeamento” entre o direito e
a m oral. O fato de a organização ju ríd ic a da República com ­
portar, m ais profundo do que seu aspecto técnico, um compo­
nente m oral, é um traço que caracteriza a corrente j usnaturalis-
ta até Pufendorf. O direito público de soberania não pode esca­
par à teleologia teológicó-natural que faz do justo a norm a de
tudo que é direito. O pensamento de B o d in está aqui com todo

77. Ib id ., III, V I, p. 471.


78. E las podem , é claro, receber um a garantia institucional sob form as
diversas, porém isso nada retira de Seu caráter fundam entalm ente m oral.
79. La République, II, I II, p. 289.
80. Ib id ., II, I II, p. 280.
81. ib id ., I, V III, pp. 133 e 156.
82. Itn d ., I, V m , p. 161.
PR IM EIRA PARTE 143

seu apuro: o ju sto não é, segundo ele, com o no m undo partido


da filo s o fia platônica, o arquétipo in te lig ív e l que, em razão de
sua pura exemplaridade, serve de m odelo para a república que
os hom ens edificam na penum bra da Caverna; essa perspectiva
dualista orientaria a teoria do direito para um idealism o em que
a ordem ju ríd ic a desapareceria no m oralism o. Segundo B odin,
o justo é, contra todo o positivism o vindouro, a norm a que tom a
os enunciados do direito válidos e obrigatórios, o que, na nossa
linguagem moderna, significa sua im possível “ neutralidade a xio -
lógica” : na N ave-República, o direito de soberania só é reto em
razão da justiça que lhe é im anente83; se falta essa justiça, desa­
parece o direito de soberania. O direito de soberania, tal como
o concebe B odin, não basta a si m esm o, um a vez que participa
das exigências da “ grande le i da natureza” : só é descodificado
num horizonte m etafísico com plexo cujas metamorfoses con­
vém decifrar.

D ) Soberania e harm onias naturais

Os três grandes textos juríd ico s de B odin - Methodus,


Juris universi D istrib u tio , Os seis livros da República - term i­
nam com páginas breves relativas a um a categoria conceituai
que é pouco corrente no direito público: a “justiça harm ônica” .
O tom desse conceito parece, à prim eira vista, há que adm itir,
enigm ático. O enigm a se tom a menos denso quando nos dize­
m os que, no século X V I, a distinção entre as disciplinas, qué
nos é fa m ilia r hoje, ainda não existia: B o d in jurisconsulto era
tam bém historiador, hum anista, cosm ógrafo, m usicólogo, m e­
tafísico etc. N ão obstante, é necessário, para apreender o senti­
do fin a l do direito de soberania, destrinçar o enredamento dos
gêneros na escrita m ultiform e dos textos.
A soberania, repete incansavelmente B odin, não pode ser
dividida: se fosse partilhada, um a das partes subjugaria a outra

83. U m a ju stiç a desse tipo evidentem ente não se compreende como


um a justeza (.R ichtigkeit) que im p lica um a racionalidade calculadora.
144 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

e o caráter m isto da autoridade, aniquilando a independência da


capacidade de decisão que constitui sua essência, a arruinaria. A
unidade da soberania é o im perativo categórico da República.
M as, na obra de Bodin, essa idéia não serve de eixo para uma
apologia da monarquia. O caráter indivisível, simples e uno da
soberania é reportado à ordem imanente do mundo. Só encontra
sua explicação na hierarquia universal que caracteriza a visão
cósmica de Bodin. “Pois, assim como o grande Deus, por nature­
za m uito sábio e m uito justo, manda nos anjos, assim os anjos
mandam nos homens, os homens nos animais, a alma no corpo, o
céu na terra .. ,” 84 A unicidade do comando soberano m anifesta
na República a vontade unificadora e absoluta (isto é, não subme­
tida às leis da natureza que ela edita) da “m aravilhável” sabedo­
ria divina. É importante, portanto, situar a soberania em seu exato
lugar na escala da Natureza e, para fazê-lo, é preciso relacioná-la
com a cadeia dos seres em toda a sua totalidade.
B odin, ao enfraquecer os teologúm enos da tradição m e­
dieval à qual ele tantas vezes se referiu, exibe um naturalism o
vigoroso. Se a República “ tem apenas um corpo” e não pode,
sem ser um “ monstro” , ter “ várias cabeças” 85, é porque a u n i­
cidade e a unidade da soberania se inserem , como a distrib ui­
ção dos astros em tom o do Sol, como a organização do fo rm i­
gueiro em volta de suá rainha ou do rebanho atrás de seu pas­
tor86, num quadro cosm ográfico encantado. Para compreender
o sentido da soberania, é preciso desvendar o m istério ontoló­
gico da Natureza. B odin fornece todos os elementos m etodológi­
cos dessa decifração ao sugerir três n íveis de leitura - aritm o-
lógica, m usicológica e m etafísica — do direito de soberania.
D ar um a estrutura m atem ática ao conceito ju ríd ic o de so­
berania não é, no século X V I, m uito o riginal87. O que é m uito

84. La Republique,prefácio, a iiij.


85. Ib id ., V I, IV , p. 966.
86. C f. M ethodus, p. 414.
87. A ssiste-se no século X V I a um florescer de obras m atemáticas - as
de Charles de B ovelles, de Cathalan, de Forcâdel, de L a Tayssonière, de P e l-
letier du M ans etc. - que, graças ao surto do platonism o, conferem , sobretudo
à aritm ética, seu títu lo de nobreza e lhe atribuem um a vocação prática.
PR IM EIR A PARTE 145

m ais é que, na concepção do m undo de B ódin, o número é o ni­


presente: “Deus dispôs todas as' coisas por números” 88; o alga­
rism o 6 governa ãs m ulheres, o algarism o 7, os homens; os al­
garismos 7 e 9 presidem às revoluções. B o d in desenvolve um a
filo s o fia do núm ero89, que concébe, contra os epicuristas, como
antiacaso, e contra os estóicos, como o antidestino. É portan­
to em termos aritm éticos que ele pensa a justiça, a qual, como
sabemos, ele adota como critério de validade da soberania.
Enquanto a justiça com utativa quer um a igualdade estrita tal
como a = b, enquanto a justiça distributiva quer um a igualdade
de relações, isto é, um a proporção do tip o aíb = b/c, a justiça
harm ônica, que é a alm a da autoridade soberana, se exprim e
num a fórm ula com plexa e um pouco hermética, que remete à
tradição pitagórica das mediedades90. O esoterismo aritm oló-
gico e m ágico do pitagorism o não desagrada a B odin, embora
seja d ifíc il dizer o que conhecia exatamente da num erologia de
Pitágoras. Seja como for, ele projeta os poderes m atem ático-
m ísticos dos números, m uito particularm ente os da tétrade e da
década, sobre as estruturas da República91 de m aneira que a har­
m onia devida ao núm ero sela a unidade da Cidade sob a u n ic i­
dade e a indivisib ilid ad e da soberania.
Nessa transposição, Platão, herdeiro do pitagorism o, fo i o
inspirador de B odin. Indicou-lhe como recorrer, m ais além da
aritm ologia, à m usicologia, a fim de compreender os segredos
de um direito justo. D e fato, a justiça harm ônica que inspira a

88. La République, V I, V I, p. 1016.


89. C f. Apologie de René H etpin, p. 14 e pp. 36 ss.
90. Sobre o problem a das mediedades, ef. P. H . M ic h e l, D e Pythagore
à Euclide. C ontribution à Vhistoire des mathématiques pré-euclidiennes, Paris,
1950; D . H . Fow ler, The M athem atics o f P la to 's Academy; a New Recons­
truction, O xford, 1987,
91. E le coloca em lugar de honra a tétrade, que é, d iz ele, princíp io de
harm onia. D e fato, a soma dos números da tétrade é a década: 1 + 2 + 3 + 4 =
10. O ra, a década é perfeita, pois une aquilo que, na série dos números, é p ri­
m eiro: ela é princíp io de união e de organização ao m esm o tem po que p rin cí­
p io de explicação daquilo que é. A tétrade contém em seu recôndito, do pònto
de vista do ser com o do ponto de vista do conhecer, a le i da harm onia.
146 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

soberania legítim a (legitim a gubernatió) repete a estrutura da


escala diatónica92. Quando B o d in evoca o canto das três Parcas
- sentadas em tom o de sua mãe Necessidade, C loto canta o
presente, Átropo o futuro e Láqüêsis o passado - , recorda-se do
m ito de E r93, no qual Platão celebrava no cosmos um a harm o­
n ia m usical que a linguagem m atem ática traduzia. A m úsica do
m undo, aliada à eufonia dos tempos, fa z o concerto m aravilho­
so do universo. M as B od in se recorda também do Timeu, no
qual Platão descrevia com um forte sim bolism o geom étrico-
m usical o ordenamento do sistema do m undo em que se conju­
gam o círculo do mesmo, o círculo do outro e o número perfeito
do tempo: nessa aliança, que é expressa pelo “número nupcial” 94,
ressoa o canto do m undo, à cuja escuta se põe B odin95. Então,
quando o soberano legisla, ele pratica a m étrica superior, se­
gundo a qual se determ inam os acordes da escala96. M úsica e
p olítica são analógicas: “A ssim como o intervalo de oitava con­
tém todos os acordes em potencial, assim também num só e
m esmo príncipe reside o poder supremo que, dele, se transm i­
te a todos os m agistrados .” 97 Por sua potência legislativa, o so­
berano tem a incum bência de realizar a concordância das d ife ­
renças - concordância m aravilhosa em que os extremos são
unidos pelos interm ediários que os juntam . E le “ equilibra” ou
“ acomoda” as forças antagônicas umas com as outras: p rín ci­
pes e súditos, senhores e servidores, justos e maldosos, fortes e

92. M ethodus, p. 422; La Republique, V I, V I, p. 1056;A pologiedeR ené


H erpin, pp. 31-2.
93. Platão, La Republique, liv . X , 616 c — 617 c.
94. Platão, LãR épublique, V III, 546 b sa.
95. B odin, Lã Republique, V I, V I, p. 1056; M ethodus, pp. 370-1. Se­
gundo B odin, o núm ero nupcial é 5040, decididam ente não com o os outros:
ele é.obtido m ultiplicando-se os prim eiros núm eros até 7, uns pelos outros; a
seqüência dos dez prim eiros algarism os (a década) constitui para ele, e só
para ele, um a série ininterrupta de divisores exatos; fora da década, o prim ei­
ro divisor exato é 12; ora, o ano com porta 12 meses, a Cidade 12 tribos, cada
tribo tem 120 mem bros (núm ero d iv is ív e l por 12) etc.
96. M ethodus, p. 422.
97. Ih id ., p. 423.
P R IM EIR A PARTE 147

fracos etc. E le concilia em suas leis, segundo o princípio da


harm onia, do que é plural, im puro ou discordante: a igualdade
e a hierarquia, o príncipe e o povo, a nobreza e a plebe, o senhor
e o servidor. “ É a discordância que dá graça à harm onia .” 98
Nesse “ enredamento” reside, segundo Bodin, o segredo on­
tológico da soberania. E m m eio aos meandros histó ric o-b íb li­
cos do verbo de B odin, o conceito de soberania indica a solu­
ção que o direito público traz ao problem a m etafísico do U no e
do M ú ltip lo : assim como, na música, a harm onia procede da
nota dom inante, assim tam bém Deus é a única fonte da ordem
do m undo, assim tam bém a soberania, “una e in d iv is íve l” , é o
princípio de união da República. O U no engloba o M ú ltip lo e
harm oniza suas variações. N ão se podem estabelecer vários
chefes em uma fa m ília , vários pilotos em um navio, várias rai­
nhas em um a colm eia99. D iante desse pluralism o, toda a natu­
reza protesta, a razão desaprova, a experiência dos séculos con­
c lu i pelo sentido oposto. A necessidade de um poder único é a
transposição ju ríd ic a da sublim idade m etafísica do U no.
Com o, pór conseguinte, não compreender que a soberania
repete na N ave-República o ordenamento geral do cosmos, que
é o de um teatro d ivin o ? N o òrbe da grande Natureza, a sub­
m issão da soberania à em inência da le i d ivin a nada tem de um a
servidão; sob o algoritm o da unim ultiplicidade, ela exprim e a
participação da Cidade na unidade orgânica do grande Todo do
m undo100. Com o observa E. Cassirer, o hom em , no século X V I,
“ só tom a a m edida do seu próprio destino percorrendo em toda
a sua am plidão a esfera do Todo” 101. A ssim se explica o caráter
“ sagrado e in vio lável” da soberania: o segredo de sua essência
e de sua potência só é descoberto pela contemplação do poder
d ivin o trabalhando no im enso anfiteatro da N atureza102.

98. La République, V I, V I, p. 1060.


99. M ethodus, p. 414.
100. É por isso que B o d in considera im pensável a idéia de um a C iyitas
m axim a ou de um im pério universal.
101. E . Cassirer, In d ivid u et cosmos dans la philosophie de la Renais­
sance (1927), trad, fr., E d. de M in u it, 1983, p. 113.
102. “N ós não viem os para outra finalidade a este teatro do m undo
senão para entender, tanto quanto nos seja possível, a adm irável bondade, sa-
148 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

N o universo conceituai em que B o d in insere as estruturas


jurídicas da N ave-República, a soberania é, como dirá Charles
Loyseau condensando a escrita copiosa dos Seis livros da Re­
pú b lica, “ a form a que dá o ser ao Estado” . Caracterizada como
“ auge de potência” , ela embasa a sociedade po lítica de m odo
que, ta l como a estrutura de um navio, confere-lhe estabilidade
e segurança contra os ventos da história. Com o as prerrogati­
vas superlativas da potência soberana exprim em a perfeição de
sua essência, elas podem pôr um freio tanto nos desvios da
República quanto nas sedições que a ameacem: os tiranos e os
rebeldes são de antemão abatidos. E is por que “ a palavra m a­
jestade é apropriada para aquele que m aneja o tim ão da so­
berania” 103.
M as, a própria feitura da obra de B od in indica que, para
além da preocupação de um “p o lítico ” legalista cioso de dar à
França enferm a de seu tempo um a sólida base doutrinária ju r í­
dica, o objetivo para o qual se orienta a análise da soberania
não é “ constitucionalista” . H om em do século X V I e m uito m e­
nos m oderno do que se costum ou dizer ao celebrar a n itidez
teórica de seu conceito de soberania, B o d in explica que as es­
truturas jurídicas do Estado só são compreendidas relacionadas
com um a visão cosm ológica, até mesmo cosm ográfica104. Essa
tese, na econom ia de conjunto de sua obra, nada tem de um
epifenôm eno ou de um floreio. S ig n ific a que sua reflexão so­
bre a noção de soberania é fundam entalm ente m etafísica. Das
montanhas às repúblicas, do diam ante entre as pedras ao sobe­
rano no navio p olítico, repercutem as harm onias naturais que a
le i do m undo desejada por DéuS in süfla em todas as áreas. O
direito p o lític o não se desvincula de um a m etafísica naturalis­
ta na qual cada ser ou form a de ser tom a lugar na “ escala da

bedoria e potência desse grande Operário de todas as coisas e para ficarm os


enlevados com m ais ardente afeto em celebrar seus louvores na contemplação
desse Todo, obra incom parável d ’Este” (Théâtre universel de la nature [1596],
trad. fit, 1597, p. 3).
103. La République, I, X , p. 218.
104. Apologie de René H erpin, pp. 15 e 23.
PRIMEIRA PARTE 149

natureza” . O grande liv ro do m undo está cheio de correspon­


dências e consonâncias, de m odo que, em sua ordem, a potên­
cia soberana é para a República o que, na ordem cósmica, a
U nidade é para a Totalidade: a saber, princípio, princeps ou
archè. Portanto, o navio Estado está firm e e voga reto, ainda
que as vagas estejam agitadas, quando, como na “mãe Nature­
za” , ordem, conveniência e harm onia tecem a trama dos atribu­
tos essenciais da soberania. A ú ltim a página de A República é
eloqüente. A p o lifo n ia dos “tocadores do mundo” é a norm a u n i­
versal; não só ela in c lu i o m al no bem e acomoda os vícios à
virtude num sábio “ enredamento” ; mas tam bém a ju stiça har­
m ônica que, m ais ainda do que a dim ensão ética, é o segredo
ontológico de um a República reta, une as dissonâncias num can­
to que fa z o u vir a supremacia da Unidade.
Para B o d in que, sem dúvida, já pressente, sob os sinais
prenunciadores do a rtificialism o racionalista, as vertigens do
individualism o que dissolve e pulveriza em vez de juntar e unir,
a soberania é, no direito p o lítico , um hino à Natureza. N a har­
m onia régia da República ela fa z ressoar o d ivin o canto do
m undo.
A hora da modernidade ju ríd ic o -p o lític a soará quando,
sob o signo da polêm ica, o raciocínio e o a rtifíc io excluírem as
bases naturalistas da soberania. Essa revolução filo só fic a , que
é tam bém a revolução intelectual de um a época, subverterá a
teoria do direito p o lític o atribuindo à idéia de soberania a sim ­
plicidade e o rigor de suas bases racionais.

2 .0 modelo racionalista da soberania


no Estado-Leviatã

A teoria ju ríd ic a da soberania m odelada por B odin, n ítid a


e incisiva, fez escola rapidamente. E m 1610, Charles Loyseau,
tendo-se atribuído a tarefa de “ citar exatamente os direitos de
soberania visto que os antigos filó so fo s quase não falaram dele
porque, no tempo deles, as soberanias ainda não estavam bem
150 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

estabelecidas” 105, escreve os célebres preceitos que a pósteri-


dade irá guardar: “ O Estado e a soberania tomada in concreto
são sinônim os” e “A soberania é a form a que dá o ser ao Es­
tado” . “E la consiste, prossegue ele, em potência absoluta, isto é,
perfeita e inteira em todos os pontos, que os canonistas cha­
m am de plenitudo potestatis. E, por conseguinte, ela não tem
grau de superioridade, pois o que tem um superior não pode ser
supremo ou soberano; sem lim itação de tempo, de outra form a
não seria nem potência absoluta nem mesmo senhoria [...]. E,
como a Coroa não pode existir se seu círculo não é inteiro, tam ­
bém a soberania não existe se lhe falta algum a coisa” 106. N a
clareza do conceito, o trabalho teórico realizado por B o d in e
seus sucessores parece ter-lhe dado acentos d efinitivos, chama­
dos a repercutir na doutrina107: “A soberania” , escreve Cardin
Le Bret, “não é mais divisível do que o ponto em geometria .” 108
Entretanto, bastam algumas décadas, em cujo decorrer se
realizou o que se denom inou “ o m ilagre dos anos 1620” para
que o surto da ciência mecanicista abale essa segurança doutri­
náriae revele a carga polêm ica que, no Estado em busca de sua
modernidade, a concepção da soberania continha.

A ) G rotius e Hobbes, depreciadores do naturalism o ju ríd ic o

E m 1625, à idéia que G rotius tem da soberania fa z des­


pontar, a exem plo de toda a sua obra, um a incontestável hesita­
ção filo só fica. E verdade que, na longa análise - de resto, pouco
sistemática - que apresenta dela, reconhece-a, tal como B odin,
como “ a potência c iv il” que, nas suas palavras, Tucídides, A ris -

105. Charles Loyseau, Traicté des Seigneuries, 4“ ed., Paris, 1614, capí­
tu lo ni, p. 25.
106. Ib id ., cap. Il, pp. 14-5.
107. Essa m esm a tonalidade de proposição é encontrada, por exem plo,
em Jean Savaron, D e la souveraineté du ro i, 1615, em Cardin Le B ret, D e la
souveraineté du ro i, 1632, e no Testamentp o litiq u e de R ichelieu, do quai ele
fo i conselheiro.
108. C ardin L e Brèt, D e la souveraineté du ro i, ed. de 1 6 3 2 ,1, 1.
PR IM EIR A PARTE 151

tóteles e D io n ísio de Halicam asso já haviam compreendido co­


m o “ o poder m oral de governar um Estado” 109. Salienta o prin­
cípio de “perfeita independência” 110 próprio desse “poder supe­
rio r ” 111 do qual o Estado é “ o súdito com um ” , ao passo queUmá
ou várias pessoas podem ser seus “ súditos próprios” 112. D e m a­
neira m uito clássica, ele se indaga, apoiado em numerosos exem­
plos históricos, sobre as maneiras de possuir o direito de sobe­
rania e de perdê-lo. Entretanto, observa que a soberania pode
ser considerada seja “um estabelecimento d ivino” , seja “um es­
tabelecim ento hum ano” 113. Seguramente ele não tem m uita
sim patia nem pelo “ famoso Barclay” nem pelos monarcômacos
que, nos sèus polêm icos artigos p olíticos dèfenderam esta ú lti­
m a tese. M as, nãó escreveu que, “m esm o que não haja Deus al­
gum ” 114, o direito dos homens, sob as luzes da razão, seria
aquilo que é? Isso, é claro, não passa de pura hipótese. O fato é
que o princípio de independência da soberania se deixa subsu­
m ir, ainda que m etodologicam ente, pelas categorias da razão
humana. Essa mudança de categoria indica não que o hom em é
a m edida de todas as coisas, mas que não é filosoficam ente
necessário inserir a soberania num a doutrina teocrática que de­
duz seu conceito da vontade d ivina absoluta e im penetrável
(logo, irracional). Tudo leva a crer que os posicionam entos re­
ligiosos de G rotius no campo dos arm inianos opostos ao dog­
m atism o de C alvino, que defende a onipotência de Deus, não
são alheios ao argumento115. Ocorre que, para ele, a idéia do

109. G rotius, D ro itd e la guerre et d e la p a ix , I, I II , V I, 1.


110. Ibid., !, III, XV II, 1.
111. N o D e ju re praedae de 1605, G rotius já observava que “A palavra
Estado se aplica a um corpo capaz de bastar a s i m esm o e que constitui um
todo por si só” .
112. G rotius, D ro it de la guerre et de la p a ix, I, H l, V II, 6.
113. Ibid., I, IV , V II, 3.
114. Ibid., Prolegôm enos, § 11.
115. N ão se poderia duvidar da sinceridade religiosa de G rotius. D epois
de fu g ir da prisão, ele d ivulgou em Paris, em 1622, um a D efettsio fid e i catho-
licae (que lhe valeu um a condenação à m orte pelos Estados Gerais da H o ­
landa e m il dificuldades por parte do em baixador dos Países B aixos em P a-
152 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

direito - e, portanto, a idéia do direito de soberania - não se


pauta por um a razão que seria, como se pensou m uito tempo,
serva da le i divina. E. Cassirer ultrapassa amplamente a litèra-
lidade dos textos quando a firm a que G rotius “ vai realizar, no
campo do direito, a mesma revolução que fez G alileu na fís i­
ca” 116. D e fato o procedim ento de G rotius é ainda desprovido
de segurança, de tão forte que é a influência da escolástica es­
panhola da Éscola de Salamanca sobre o seu pensamento117; é
o de um pensador entre dois m undos que, ainda fascinado pe­
las teorias teológico-naturalistas das quais B odin - criticado em
várias ocasiões118 - lhe parece ser um representante, vislum bra,
sem lhes dar ainda um a adesão plena, as potências de que está
prenhe a racionalidade do pensar hum ano. H á mesmo no ju ris ­
consulto o pressentimento de um a autarquia racional cujos pro­
jetos ele prevê que triunfarão, num futuro próxim o, sobre os
obstáculos epistem ológicos e as dificuldades filo só fic a s aos
quais conduzem, m uito especialmente no campo ju ríd ic o , as
idéias aceitas e os hábitos antigos. M esm o que não consiga to­
m ar um a resolução e jam ais negue a transcendência de Deus,
ele pede a um racionalism o hum anista, contra a dogmática teo­
lógica e segundo um método que se parece m uito com o de Des­
cartes119, que explique o universo ju ríd ic o -p o lític o .
N a mesm a época, R ichelieu, certamente m ais preocupado
com a prática do que com a teoria p o lítica ou ju ríd ica, declara
que “ a razão deve ser a regra na condução de um Estado” 120.

ris ). Posteriorm ente, em 1639, publicou o D e veritate re lig ion is christianae


(parcialm ente redigido havia m uito tem po), em que expunha sua fé num Có­
digo universal da religião cristã. N os Prolegôm enos do D e ju re b e lli ac pacis
ele escreveu tam bém : “N ão se poderia servir a Deus com am or dem ais” (§
X L V I).
116. E . Cassirer, L a philosophie des Lum ières (1932), trad. fr., Fayard,
19 70,p. 246.
117. Sobre esse aspecto da obra de G rotius, cf. P. Haggenmacher, op. cit.
118. G rotius, cf. na tradução de Barbeyrac do D ro it de la guerre et de la
p a ix, as notas explícitas sob n , V E , 1 e H , X X , 33.
119. G rotius, D ro it de la guerre et de la p a ix. Prolegôm enos, § L V H I.
120. R ichelieu, Testamentp o litiq u e, reedição B ibliothèque de philoso­
ph ie po litiq ue et ju rid iq ue, Caen, 1985, p. 247.
P R IM EIR A PA R TE 153

Sem procurar tom ar filo s ó fic o um “ testamento p o lítico ” que


não o é m uito, reconheçamos pelo menos que, na ocasião em
que Descartes conclui, segundo a bela frase de F. A lq u ié , “ a
descoberta m etafísica do hom em ” , há em ta l concepção da po­
lític a o sinal eloqüente da antropodicéia racionalista que não
tardará em se tom ar perfeitam ente explícita.

A filo s o fia de Hobbes, na qual o hom em carrega o peSo e


adquire o dom ínio do universo p o lítico e ju ríd ic o por ele cons­
truído, confirm a essa renovação da consciência do tempo. Por
m ais que a ciência p o lítica exposta no L eviatã faça a “ essência
da República” residir, a exem plo do que d izia B odin, num a p o -
testas entendida como “ suprema potência” 121, essa herança de
palavras está longe de ser tuna herança de idéias. E la é, com
m eio século de intervalo, o índice do torneio filo s ó fic o desen­
cadeado entre o racionalism o a rtific ia lista e o naturalism o
m etapolítico. D e fato, mesmo quando a definição proposta por
B o d in - a soberania é a “ autoridade suprema em que reside o
princípio da República ” 122 - é, na form a, a que Hobbes repete
— o poder soberano pertence ao Leviatã, esse Deus m ortal em
quem reside “ a essência da república” - na realidade o que res­
soa é um acorde dissonante: a consonância das palavras e das
fórm ulas é m inada pela dissonância das duas filo so fia s nas
quais se insere seu conceito da soberania. O “ auge de potência”
que, no comando supremo, determ ina a majestade do gesto po­
lític o , não é afetado, num caso e no outro, pelo mesmo s ig n ifi­
cado. É verdade que, por sua vontade epistem ológica de reno­
var as velhas imagens do orbe político louvando-se em exigên­
cias de cientificidade, Hobbes poderia parecer p róxim o de
B o d in 123. Só que B o d in e Hobbes não concebem a “ ciência” da

121. Hobbes, Léviathan, cap. X V II, p. 178. >


122. B odin, M ethodus, p. 359.
123. B odin declarava: “É preciso form ar a definição da soberania porque
não há jurisconsulto nem filósofo p olítico que a tenha definido: ao passo que esse
é o ponto principal e o m ais necessário de ser entendido no tratado da República”
(La Republique, I, V IU , p. 122). Conhece-se o desígnio de Hohbes de fazer nas­
cer a “ciência política” que, nas suas palavras, surge no D e Cive.
154 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

mesma m aneira e não lhe atribuem o mesmo andamento. Esse


é o ponto in ic ia l de divergências filo só ficas, cujas repercus­
sões, no m undo moderno, tum ultuarão a teoria do direito p o lí­
tico a ponto de evidenciar o caráter conflituoso de seus conceitos
diretrizes.
Vim os que Bodin, ao teorizar a idéia de soberania, pensava-a
com referência à ordem m etafísica do cosmos, Hobbes, resolu­
tamente antiaristòtélico, renega os horizontes cosm ológicos
do m undo p o lítico e se recusa a situar o m icrocosm o estatal no
macrocosmo querido por Deus e regido por E le. N ão pensa que
não exista Deus criando e adm inistrando a Natureza, porém, no
seu racionalism o universal e no passo geométrico de um a ciên­
cia mecanicista causal, redutora e explicativa, considera que só
há sociedade “ c iv il ou p o lítica” , ou seja, Estado soberano,
construída pelo projeto racional dos homens. A ssim se esface­
lam ao mesmo tempo, explicitam ente, as referências teológica
e cosmológica do direito político. Isso não quer dizer que Hobbes
opta pelo ceticism o ou que se compraz na dúvida, ainda que
m etódica. E le pensa o hom em com o princípio: reconhece-lhé
u m poder calculista que, por sua capacidade de síntese, é cons­
trutor, portanto capaz desse empreendimento grandioso que é a
edificação do Poder do Estado, em que, aliás, a racionalidade é
por si só um programa de ação. Essa audácia racionalista exclui
a busca de eventuais sim ilitudes entre a majestade do Estado e o
b rilho do sol entre os astros124, entre o soberano da República e
a rainha de um enxame de abelhas tanto quanto entre a potên­
cia soberana do Leviatã e a potência doméstica natural que se
exprim e num “ lar” . Enquanto, segundo B odin, o príncipe, tal
como quer a “ grande le i de Deus e da Natureza” , m anda natu­
ralm ente nos súditos como o pai manda nos filh o s 125, para
Hobbes não é concebível que o governo da casa, calcado na
ordem da natureza, seja “ o verdadeiro m odelo do Governo da

124. C f. B odin, M ethodus, p. 414.


125. B odin, La République, I, I, pp. 1 1 ,2 9 ,3 2 ; cf. p. 34 : “É im possível
que a R epública va lha algum a coisa se as fa m ília s, que são os pilares desta,
tiverem maus alicerces.”
PR IM EIR A PARTE 155

República” . A soberania do Estado-Leviatã é edificada, m ate­


maticamente - é certo que com base nas leis da natureza funda­
mentais, mas tais que são “preceitos” ou “teoremas da razão” 126
- pela soma de todos os direitos ou poderes cujo exercício os
indivíduos, concluindo um contrato inter pares, confiaram ao
homo a rtific ia lis encarregado dè representá-los a todos e de
agir em nom e e lugar deles. A potência soberana resulta do cál­
culo teleológico de interesses pelo qual a razão, no universo de
signos (marks) edificado por èla, opõe-se à anarquia e à belige­
rância do estado de natureza. O significado desse universo de
signos se esclarece, na ciência p o lítica de Hobbes, pelo esfor­
ço e pela audácia que consistem em se desfazer das crenças e
das idéias “ fabulosas” às quais a tradição conferia autoridade.
A firm an d o a autocracia da razão, a nova lógica consuma a des­
coberta p o lítica do hom em , do m esm o m odo que a nova filo s o ­
fia de Descartes acaba de consumar a “ descoberta m etafísica
do homem” . Seria incongruente relacionar o Poder soberano com
o “m odelo” da “le i de Deus e da natureza” ou ver nele “ a im a­
gem de Deus” . É na soberania da razão que reside a chave da
soberania dq Estado: esta é um “ estabelecimento hum ano” e se
caracteriza como “ a alm a a rtific ia l” do “ hom em a rtific ia l” que
é o ser de razão do Estado. Suas estruturas conceituais são per­
feitam ente in telig íveis pois que o próprio intelecto as produz.
Seria um erro concluir que a passagem do direito divin o
para o direito hum ano assim efetuada atesta a incredulidade ou
irreligiosidade de Hobbes. Decerto existem , no século X V II,
céticos, libertinos e ateus. M as a filo s o fia de Hobbes não se in ­
clina nem para o negativism o ontológico nem para a retirada de
Deus; desloca, m uito especialmente em m atéria de direito p o lí­
tico, o ponto de aplicação da reflexão. Erradicando as escórias
que atrapalham a m etafísica de um a outra época, ela pretende
m ostrar que a intelig ib ilidad e dos conceitos-mestres do direito
p o lítico só é atingida quando a razão disseca suas próprias ope­
rações. Afastar.os horizontes teológicos, èncobrir as harmonias

126. Hobbes, Léviathan, cap. X T V , p. 129.


156 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cósmicas é um a espécie de catarse que destaca, no que se refere


à razão, a clareza das produções dessa própria razão. A soberania,
ariefactum construído pela operação da razão, não comporta
m istério algum . A revolução m ecanicista da ciência hobbesia-
na dissocia a ciência e a m ística, o saber e a crença: a razão, l i ­
berta, pode avançar, no m undo de suas próprias obras e graças
a sua energia produtora, pelo cam inho que leva à autonom ia.
Entretanto* em meados do século X V II, a filo s o fia do di­
reito p o lítico é palco de um áspero co n flito doutrinário.

B ) As perspectivas conflituosas do direito p o lític o moderno

N o âmago do “ grande século” , a indagação filo só fic a sobre


a soberania, embora unanim em ente saudada como “ a essência
do Estado” , leva a uma encruzilhada. Será o direito da República
no m undo dos homens, como pensou B odin, p reflexo da har­
m onia universal ou m anifesta, como quer demonstrar Hobbes,
as glórias da racionalidade construtora? Esse dualism o repete a
antiga alternativa âaP hysis e do Nom os. N o tom polêm ico ine­
vitavelm ente assumido pela teorização filo s ó fic a da soberania,
ressoa tam bém o choque da problem ática tradicional do direito
p olítico, vinculado à axiologia cujo dogmatismo m etafísico em -
basa a idéia do “m elhor regime” , e da problematização m oder­
na requerida por um a perspectiva cie ntífica ciosa de explicar
aquilo que é por análise e síntese, e de alcançar, ao fazê-lo, um á
“ verdade especulativa” 127.
B odin, por causa de seu apego à harm onia universal e à
natureza das coisas, pressentia os perigos que o in d ivid u alis­
m o, cujos prim eiros indícios percebia na ciência copemicana,
faria pesar sobre a unidade do m undo. Entrevia as ameaças pe­
las quais o m étodo resolutivo, que dissolve e pulveriza em
lugar de ju n tar e unir, destruiria a harm onia Unitária que, à im a­
gem da Natureza, a república dos homens qüer. M u ito pelo con­
trário, Hobbes admirava G alileü e Mersenne por terem atacado

127. Ib id ., cap. X X X I, p. 392.


PR IM EIR A PARTE 157

de frente os vestígios do aristotelism o que, na “ escala da natu­


reza” , m antêm as “proporções harmônicas” entre os seres. Seu
racionalism o não sig n ifica que “ o silêncio eterno dos espaços
in fin itos” o amedronte, mas que decreta a m orte das fábulas
m etafísicas: a p o lítica dos hom ens, feita pelos homens para os
hom ens, não tem fundam ento supra-humano. Segundo ele, a
soberania do Estado m oderno não oculta “ a realeza natural de
Deus” - “ o Eterno reina, que a terra se rejub ile” - mas a ciên­
cia do Estado, estranha às verdades religiosas reveladas que
estão situadas fora do campo da racionalidade, tem por desíg­
n io firm a r a in iciativa e a responsabilidade dos homens na so­
ciedade c iv il que lhes cabe ed ificar para se arrancar do caos
m ortífero de sua condição natural. N a p o lític a e nà cultura em
marcha, os homens dão as costas às potências das trevas. N o
m ais alto n ív e l do direito, a ordem e a tranqüilidade públicas
são a obra que os homens constroem para si próprios. A eman­
cipação deles começa com a segurança conquistadora de sua
razão. A verdade do direito p o lític o não depende de um a h ip o­
tética essência ontológica, mas é obra da razão construtora dos
homens.
De B od in a Hobbes, a soberania deixou o orbe encantado
da Natureza que, desde Aristóteles, oferecia o paradigma da
ordem. Desde então, o livro da M odernidade podia abrir-se
num clim a de fascinação racional carregado de um a universal
esperança de autonom ia.
Contudo, quem quer que re flita sobre o significado que se
prende às vitórias do a rtificialism o racional sobre o naturalis­
m o providencial não pode deixar de situá-las no cerne de um
conflito eterno. O século X V I I fala da “ querela dos A ntigos e
dos M odernos” . A expressão, qualquer que tenha sido seu su­
cesso, mesmo em nossa época, é pouco fe liz e pouco exata; exis­
tem , na verdade, poucos filósofos que, considerados “ antigos” ,
não têm , nesse tempo de mutação, algum a intuição m oderna,
ou que, declarados “ modernos” , não devam nada aos antigos.
O que existe é, antes, um co n flito eterno entre duas vertentes
da filo s o fia , em que se m anifesta a força inesgotável do esque­
m a polêm ico do pensamento: ou este se orienta para um h ori­
zonte de transcendência ou se compraz, utilizand o outros in s-
\

158 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

trumentos mentais, na im anência de seus próprios poderes. N es­


se universo partido, a discussão não abre um a terceira via . O
co nflito é in fin d ável, pois a rejeição de um a tendência remete
à outra e vice-versa. Nessa perspectiva conflituosa, a oposição
expressada pelas prim eiras teorizações filo só fic a s da sobera­
n ia propostas por B od in e por Hobbes assume a fig u ra de um
revelador ela é o sím bolo da carga polêm ica que m ora nos
conceitos do direito polêm ico - ou que, pelo menos, morará
neles enquanto a filo s o fia procurar conferir-lhes a certeza de
algum dogmatismo. Parece, portanto, que a oposição doutrinária
entre o naturalismo providencial de B odin e o artificialism o
racionalista de Hobbes é menos reveladora do choque entre o es­
pírito dos “Antigos” (aliás, será que B odin é um “ antigo” ?) e o
espírito dos “ Modernos” (será mesmo que Hobbes é de fato um
“moderno” ?) do que do duelo gigantesco do qual não há em
absoluto certeza, mesmo hoje, apesar das “transformações da f i­
losofia” , de que ele possa ter findado. Portanto, não é nada sur­
preendente que a idéia de soberania tenha sido exposta, já em suas
prim eiras teorizações filosóficas, aos antagonismos profundos
que deviam provocar um a crise endógena em seu conceito.
N a m odernidade do direito p o lítico , essa crise, transporta­
da, é verdade, para outro terreno, não tardará a rebentar. G ro-
tiu s a havia pressentido quando, no seu volum oso tratado, per­
guntava “ se a soberania pertence sempre aos povos” 128. C on­
tudo, m ais reivindicante e m ais m ilitan te, a filo s o fia do século
X V III, prosseguida pelos debates pós-revolucionários, iria de­
bater longamente sobre o lugar da soberania: ela reside nos
príncipes ou nos povos?

3. As controvérsias doutrinárias e a mudança


do conceito da soberania

A carga polêm ica contida pelos princípios fundam entais


dá soberania nas obras de B o d in e de Hobbes permanece pura-

128. G rotius, D ro it de la guerre et de la p a ix, I, D3, V III.


PR IM EIR A PARTE 159

m ente teórica. O fato de B odm ser u m “p o lítico ” que se põe in ­


teiramente a serviço da m onarquia francesa em nada altera a es­
colha m etodológica de um pensamento que pretende elaborar
um a “ doutrina” da soberania. Quanto a Hobbes, ele próprio
declara se indagar sobre o poder “ no abstrato” e não “ discutir
em favor de nenhum a seita” 129; se declara não ser indiferente às
conseqüências práticas das idéias, confessa preferir a análise
conceituai à m ilitân cia que - com o sabe por experiência - é
perigosa e lhe causa medo. Por isso, o co nflito que a id éia de
soberania traz em si provém essencialmente, entre as teorias
dos dois filó so fo s, das respectivas postulações às quais remete
seu conceito.
Entretanto, ao m esm o tempo, outros autores inserem a
idéia de soberania num contexto que, sem ser verdadeiramente
m ilitante, possui um a feição que diríam os já ser “ ideológica” .
C om isso eles contribuem , enquanto começa a se operar um
amadurecimento geral da consciência dos povos, para o desen­
cadeamento de um a crise de outro tipo, m ais po lítica do què
filo só fic a , m ais profunda, que não cessará, décadas a fio , de
m inar o conceito. Seu procedim ento não consiste em explicar o
m odelo de ordem 7- natural ou racional - expressa pela sobera­
n ia no Estado e, para isso, reportar sua idéia a um horizonte
m etajurídico. Seu projeto é m ais prático do que teórico; contudo,
produz no m ovim ento do pensamento ju ríd ic o -p o lític o efeitos
perturbadores, de intensa repercussão filo só fica. Sua indagação,
que incide - aparentemente de m aneira m uito clássica com
relação ao filó s o fo - sobre a origem , a extensão e os titulares
da soberania, solapa m ais ou menos a noção. E m todo o caso,
a soberania se tom a o objeto de ásperas controvérsias que trans­
portam para o terreno escorregadio da prática a carga po lêm i­
ca que, até então, a teoria alojava em sua idéia.

129. Hobbes, Léviathan, E pístola dedicatória, p. 5; D e Cive, prefácio,


x x x ix e x l.
160 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A ) A questão da origem da soberania

A questão da origem da soberania m ostra o quanto, já em


sua emergência, o conceito m oderno de Estado é atormentado.
Se a soberania é, de m aneira geral, reconhecida Como a marca
essencial da potência do Estado, um dos problemas que se
apresentam aos legistas é dizer qual é sua fonte, a fim de m edir
os efeitos qUe dela decorrem. Para eles, essa questão é de fato
fundamental, graças à qual a tradição teológico-político herdada
da escolástica m edieval se vê contestada. M as, nesse ponto, as
coisas são mais complicadas do que se tende a dizer hoje, u tili­
zando fórm ulas impressionantes que falseiam a verdade histó­
rica das doutrinas do direito político.
Basta recordar aqui qual era a tese mestra do pensamento
antem odemo do direito p o lítico . E la se condensa nas palavras
freqüentemente citadas do apóstolo São Paulo: N u lla potestas
n isi a D e o m . A soberania - ainda que o nom e ainda não exis­
tisse - era então pensada, no d om ínio tem poral, à im agem da
onipotência de Deus no d om ínio espiritual, como plenitud o
potestatis; o “ soberano” que a encarnava só podia ser imago
D e i. Para além desse m odo de representação analógica, d eli­
neava-se a teoria cristã do direito d ivin o dos reis segundo a
qual qualquer príncipe investido, na terra, do Poder de comando,
só o recebe de Deus. Essa era a tese, vinda da patrística cristã
e, em particular, de Santo Agostinho, defendida oficialm ente
pela Igreja católica romana131. Inúm eros teólogos, no século
X V n , ainda aderem a ela. D e F. Suárez a Bossuet, o mesmo tema
retom a, exposto claramente por J. Fr. H om ius 132 e por Pierre
N ic o le 133. Se a designação dos príncipes depende de um a esco-

130. Romanos, X III, 1.


131. C f. o artigo de J.-F. Courtine, L ’héritage scolastique dans la pro­
blém atique théologico-politique de l ’âge classique, in L ’É tat baroque, V rin ,
1985, pp. 89 ss.
132. J. Fried. H om ius, D e C ivitate (1664), liv . H , cap. I; cf. igualm ente
Pufendorf, D e ju re naturae et gentium , liv . H , cap. HT, § 3, que resume a dou­
trin a ta l com o a expõe H om ius.
133. Pierre N icole, D e l ’éducation d ’un prince, Paris, 1670. “ D e la gran­
deur” , prim eira parte, X H I, X T V , pp. 185-6. “A in d a que a realeza e oütras fo r-
P R IM EIR A PARTE 161

lh a hum ana, a autoridade soberana de que são detentores pro­


vém de Deus, assim como a autoridade pastoral dos bispos lhes
é conferida por Jesus Cristo. E m todo caso, fic a claro que a
teoria do direito d ivin o dos reis - tal como a encontramos ex­
posta com todo seu vig o r dogmático na Inglaterra pelo re i Jai­
m e I e na França por Cardin L e Bret, aprovado por R ichelieu 134
- insere o conceito da soberania num horizonte teológico-polí­
tico. E m 1644, Sorbière declara ainda de m aneira peremptória:
“ O rei deve prestar conta de seus atos somente a Deus.”
Ora, a filo s o fia moderna, desde seus prim eiros passos, ten­
de a secularizar os conceitos teológicos, que ela transpõe para
o terreno propriam ente hum ano do direito p o lítico . O célebre
preceito lançado por G rotius, segundo o qual o direito seria o
que é “m esmo que Deus não existisse ou ficasse indiferente
aos assuntos hum anos” , faz rebentar a crise das teorias teológ i­
co-políticas. Certamente, a proposição de G rotius - ousar supor
que Deus pudesse não existir - era julg ada escandalosa. O pró­
prio G rotius o sabia e escreveu que “ teria sido um crim e h o rrí­
v e l” concordar com “ que não há Deus ou, se existe um , que ele
não se interessa pelas coisas humanas” 135. Entretanto, a auda­
ciosa hipótese do jurisconsulto tinha por que perturbar e podia
fazer nascer a dúvida sobre a origem d ivina da soberania. A liás,
como vim os, o Estado-Leviatã não era, na filo s o fia mecanicista
de Hobbes, um “ deus m ortal” que, sob o Deus im ortal, era edi-

mas de governo venham originariam ente da escolha e do consentim ento dos


povos, a autoridade do rèi, não obstante, não vem do povo mas somente de
Deus [...] Com o a escolha daqueles que elegem o bispo não é o que faz o
bispo, e como é preciso que a autoridade pastoral de Jesus Cristo lhe Seja
transm itida por sua ordenação, assim é a transmissão que Deus lhes faz de sua
realeza e de sua potência que ps estabelece reis legítim os e lhes dá úm direito
verdadeiro sobre seus súditos. E é por isso que o apóstolo não chama os p rín ­
cipes de m inistros do povo, mas os chama de ‘m inistros de Deus’, pois eles
recebem sua potência somente de D eus.”
134. Cardin L e Bret, D e la souveraineté du ro i: de son domaine et de sa
couronne, 1632, sublinha a independência do rei em relação ao papa e ao
im perador (I, 2 e 3) e tam bém em relação ao povo (I, 9). “ Os reis da França
recebem seu cetro somente de Deus.”
135. G rotius, D e ju re b e lli ac pacis, Prolegôm enos, § X I.
162 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ficado pelo ato do contrato que os homens concluíam entre si


nos termos de um cálculo racional de interesses? Segundo õ
autor do Leviatã, a potência soberana encontrava assim sua o ri­
gem, sem nada pedir a Deus, na operação computadora (compu-
tatio) da razão humana. Por m ais que o trabalho de instituição
do poder sobèrano obedeça à teleologia das leis fundamentais da
natureza, Deus perm itiu aos hom ens descobri-las como teore­
mas de razão deles, e a soberania m ergulha suas raízes nas ca­
pacidades computadoras e construtoras dessa razão. Observa-se
da mesma m aneira que, segundo Rousseau, a soberania encon­
tra sua origem e seus princípios fundam entais no ato do “ con­
trato social” , que é concluído pelas vontades particulares dos
homens a fim de edificar a vontade geral. N ão obstante, é te­
m erário e exagerado deduzir disso que, no Estado m oderno, a
idéia que se tem da soberania, laicizada e compreendida como
“um poder somente profano” , se opõe a qualquer concepção
teocrática ou eclesiástica do Poder136. O m ovim ento das idéias
é menos sim plista e os autores, nessa época que é ainda de tran­
sição, sabem manejar os m atizes com delicadeza. É verdade
que, no seu conjunto, jurisconsultos e filó so fo s estão de acordo
em não m ais buscar a origem da soberania estatal rio decreto
im penetrável de um Deus transcendente, que presidiria a todos
os destinos do m undo hum ano, até e inclusive em suas estrutu­
ras jurídico-políticas. M as, ao privilegiar as potências construto­
ras da razão e da vontade humanas, ainda estão longe de “ des-
sacralizar” o mundo e de afirm ar a laicização radical do direito
do Estado. É por isso que não se poderia falar sem in fin ita s
precauções do “ desencanto” que o direito p o lítico e o m undo
ensejariam. É isso que aparece quando se escruta a extensão
que é então atribuída à soberania no Estado moderno.

136. É o que sustenta de m aneira m uito sim plificadora e esquemática G.


M airet, in L a genèse de l ’État laïc, de M a rsile de Padoue à L ou is X IV , H is­
toire des idéologies (sob a direção de F . Châtelet, Paris, 1976, t. II, p. 287): “À
soberania supõe um a concepção inteiram ente laicizada do poder e sua d e fin i­
ção como poder somente profano.”
PR IM EIR A PARTE 163

B ) A questão da extensão da soberania

A extensão da soberania surge com clareza cada vez m aior


à m edida qúe se desenvolve o hum anism o ju ríd ico . O aspecto
“ m ágico” ou “ taum atúrgico” , que, num universo im buído dos
m istérios divinos, L a B oétie já deplorava, tende a ser apagado
pelo trabalho do racional, cuja força liberadora, nesse aspecto,
é incontestável. Contudo, é ir longe demais considerar o con­
ceito da soberania do Estado como sendo laicizado a ponto de
ser desespiritualizado. A inteligência do direito p o lítico não se
alim enta, nos séculos X V II e X V III, de um a luta contra a espi­
ritualidade. M esm o quando Voltaire e D iderot clam am que é
preciso “ lançar um a bomba na casa do Senhor” ou “ esmagar o
Infam e” , mesmo quando a religião natural tende a suplantar as
religiões reveladas, não se pode deduzir disso que a evolução
do pensamento se efetua, em m atéria de direito público, por es­
trepitosas rupturas. C. Schm itt, ao se indagar precisamente sobre
a soberania, tem razão em descobrir num a frase de Rousseau o
significado do conteúdo e da extensão da soberania acarretada
pela mudança de suas origens.
N o artigo “Econom ia p olítica” , recorda C. Schm itt, Rous­
seau escreve que a soberania deve “im ita r os decretos im utá­
veis da divindade” . Compreendamos, com Schmitt, não, como se
repete com tanta freqüência hoje, que o conceito de soberania
já não se enraíza no terreno teológico da tradição cristã, mas
que o conceito teológico da soberania, em seu conteúdo espe­
c ífic o , se p o litizo u . Boutm y, citado por C. Schm itt137, declara­
va: “ Rousseau aplica ao soberano a idéia que os filó so fo s fa­
zem de Deus: ele pode aquilo que quer; mas não pode querer o
m a l.” 138 A afirm ação da soberania como essência do Estado
m oderno não im plica portanto a des-teologização do m undo e
do direito p olítico. M u ito pelo contrário, nas representações
políticas dos séculos X V I I e X V III, o príncipe soberano, que

137. C. Schm itt, Théologie p olitiq u e (1922), trad. fr. G allim ard, 1988,
p. 55.
138. E. B outm y, Annales des sciences p olitiq ues, 1902, p. 418.
164 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

“ desenvolve todas as virtualidades do Estado por um a espécie


de criação contínua [...] é-o Deus cartesiano transposto para o
m undo p o lítico ” 139. A prudência intelectual recomenda portan­
to que se cerque de bastantes m atizes o esquema redutor segun­
do o qual o antropom orfism o ju ríd ic o -p o lític o da modernidade
se oporia ao m odelo teológico da soberania. O contexto de
referência dos conceitos de direito p o lítico certamente já não é
o da teologia. M as, a intelig ib ilid ad e do conceito m oderno da
soberania que caracteriza, “ neste m undo” , o poder do Estado
não im plica ruptura com o pensamento teológico tradicional.
D e m aneira m uito m ais sutil, convém observar que as capaci­
dades ligadas à soberania estatal são pensadas por analogia
com a plenitudo potestatis de Deus. O ím peto hum anista (ou
antropologista) da m odernidade não consiste em negar Deus,
mas em pensar a potência soberana do Estado transpondo a
idéia de onipotência d ivina para a esfera do direito público em
v ia de racionalização.
Os historiadores m encionaram m uitas vezes o caráter sa­
grado por m uito tempo im putado à instituição monárquica.
D iante de um povo que tinha necessidade de crença para con­
ju ra r seu grande medo, as sacralidades soberanas exprim iam a
dignidade real: a sagração, o juram ento, um verdadeiro culto
cerim onial . . . . Elas constituíam como que o código da potên­
cia hiperbólica que fazia o rei “ im agem de Deus” ou ig ual ao
Sol. A doutrina po lítica repercutia amplamente essa concepção
da sacralidade essencial da m onarquia como delegação d iv i­
na140. M as, se o século X V I I em nada afasta o credo m onárqui­
co que continua sendo de m odo geral um estereótipo carregado

139. F. A tger, Essai sur l ’histoire des doctrines du contrat social, 1906,
p. 136.
140. C f., a títu lo de exem plos: G uy C o q u ille, Institution au d ro it des
Français, 1608; Charles Loyseau, no seu Traité des Seigneuries, 1610, faz
um a ardente defesa dos direitos do rei: “A s leis de Deus, da natureza e dos
hom ens” são, escreve ele, “ as leis fundam entais do Estado” (II, 2 ); Jean Sa-
varon pretende demonstrar em D e la souveraineté du ro i, 1620, que Sua
M ajestade não pode se submeter a quem quer que seja nem alienar seu dom í­
n io de m odo vita líc io .
P R IM E IR A P A R TE 165

de confiança, os pensadores p olíticos e os jurisconsultos já não


atribuem poderes taumatúrgicos à dom inação real; eles se ape­
gam cada vez menos, à m edida que se desenvolve a teoria con-
tratualista, às virtudes m ísticas do sangue e da dinastia. N ão
obstante, o Soberano continua sendo situado no m ais alto n ív e l
da cadeia dos seres e é reconhecido, segundo o código de pen­
samento analógico usado com frequência, como todo-poderoso.
O soberano L eyialã de Hobbes é, nesse aspecto, exemplar: de­
fine-se como “um deus m ortal” . A “ vontade geral” , segundo
Rousseau, responde a esse m esm o paradigm a m etodológico -
por onde se vê que o m étodo tem valor fundam entalm ente filo ­
sófico - , o que explica que, sempre virtuosa, ela não possa errar.
E encontramos na m aneira pela qual Sieyès pensa o Estado o
eco profundo da politização ligada à perfeição da d ivina potên­
cia; ele declara de fato: “ D e qualquer m aneira que queira um a
nação, basta que ela queira. Todas as form as são boas e sua von­
tade é sempre a le i suprema.” Se, portanto, é verdade que o so­
berano já não pertence ao orbe teológico, ele traz ainda, como
que por hipotipose, todas as marcas da sacralização. “ Soberano
acima de todos” , como já d izia Beaum anoir por volta dos anos
1280, ele continua sendo no Estado, ainda que não eleito pelo
Deus im ortal, o ordenador todó-poderoso.
O estatuto do soberano dos tempos modernos é portanto
am bivalente. Por um lado, ele já não é expressamente, como
nos séculos anteriores, ó fideicom issário de Deus; firm a-se
como a autoridade central cujo poder é edificado racionalm en­
te pela arte humana. M as, por outro lado, sua dominação se faz
à semelhança do reino de D eus141. Sem dúvida, no espaço in fi­
nito, a escrita d ivina está tão confusa que se pode pensar, como
Pascal, que “ o grande Pã morreu” 142. 0 silêncio de Deus é mes­
m o tão impressionante que ó m undo pode parecer desestábili-
zado. M as a mediação racional não sig n ific a ainda nem o

141. C f. as prim eiras linhas do Léviathan de Hobbes: “A natureza, essa


arte pela qual Deus produziu o m undo e ò governa, é im itada pela arte do
hom em ,..” (Introdução, p. 5).
142. Pascal, Pensées, fragm ento 343.
166 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

triu n fo das certezas profanas nem a autonom ia do hom em . A


sobrevivência da sim bólica teológico-política é tão tenaz que o
soberano é, no Estado, como o Deus de antanho no universo, O
legislador: ele detém, sozinho, a capacidade de legislar. Vale
dizer que a soberania do Estado, como a soberania de Deus, se
caracteriza por sua vontade legisladora. “A s leis” , já escrevia B o ­
din, “ só dependem da pura e franca vontade do Soberano .” 143
Hobbes, m ais preciso, considera não só que o poder soberano,
cüjo m odelo é fornecido pela “ república de instituição” 144, é
capaz de substituir pela coerção da le i c iv il o tem or recíproco
engendrado pelo exercício do direito de natureza - a le i obriga,
o direito perm ite — mas que, expressando a majestade da pes­
soa pública (seja ela hom em ou assembléia, príncipe ou Esta­
do), ela c u lm in a —já observava B o d in - na idéia de que “ não
se podem atar as mãos, m esmo que o queira” . A expressão de
Cardin L e Bret - o rei é “ a le i viva ” 145 - conserva um a plenitu­
de que força a veneração pois o direito de soberania por ele
encarnado é potência de in iciativa, de decisão e de comando.
Pelo novo equilíbrio de forças que a onipotência do Estado es­
tabelece, a soberania não sig n ifica seu caráter m onstruoso mas
sim a capacidade quase sagrada de ser a fonte viva de todos os
poderes: são seus “ direitos e possibilidade” (faculties) que con­
sagram, lógica ou matematicamente, o m onopólio de sua o ni­
potência. Esta continua a ser una e in d iv is íve l146; à semelhança
da potência divina, ela é igualm ente in vio lá ve l e inalienável.

143. J. B odin, Les Six Livres de la République, I, V III, p. 192.


144. Hobbes, Léviathan, cap. X V II.
145. Cardin L e Bret, D e la souveraineté du ro i, I, 8.
146. Ib id ., I, 9: A soberania “ é tão d iv is íve l quanto o ponto em Geo­
m etria” . Passando da im agem à análise, Hobbes se opõe à teoria dita das “par­
tes da soberania” ta l como expunha G rotius, D ro it de la guerre et de la p a ix ,
I, H l, § 17. 1). É claro que ele repudia totalm ente a idéia da m ixed m onarchy
louvada por Coke, bem como o esquema do parlam entarism o ta l com o estava
estabelecido de facto na Inglaterra de sua época: nesses m odelos políticos, a
soberania, que neles é difusa e subm etida a controle, encontra-se d ivid id a, o
que conduz m ais cedo ou m ais tarde, pensa Hobbes, à guerra c iv il. “ É um a
opinião sediciosa considerar que a potência soberana possa ser partilhada
(im perium summum d ivid iposse) e eu não conheço nenhum a m ais perniciosa
P R IM EIR A PARTE 167

Por conseguinte, convém descartar o equívoco que consis­


te em afirm ar, a exem plo de Jaime I 147 quando de sua ruidosa
querela com o cardeal Belarm ino, que o “ direito d ivin o ” fa z a
m onarquia. Tal gabarito de análise é inadequado: o contrato de
que nasce a soberania é, m uito pelo contrário, “um a contramina
destinada a fazer explodir a teoria do direito d ivin o dos reis ” 148.
Segundo a expressão de Grotius, que não renega Hobbes, a sobe­
rania é de fato um estabelecimento hum ano, porém, qualquer
que seja sua dimensão tem poral e profana, cerca-se de sacrali-
dade e a pessoa do rei conserva a auréola do sagrado149.
Descartado esse equívoco, a extensão da soberania se re­
vela em suafuncionalidade, por definição operacional: “ Com o
a finalid ad e dessa instituição é a paz e a defesa de todos e co­
m o quem tem direito ao fim tem direito aos m eios, cabe por
direito a. qualquer hom em ou assembléia investido da soberania
ser o ju iz aq mesmo tempo dos m eios necessários p ara a p a z e

ao Estado” , D e Cive, X II , § 5; Léviathan, cap. X X I X , pp. 349-52.; cf. ig u al­


m ente os quatro diálogos do Behemoth o r the LongP arliam ent (redigido por
Hobbes aos vin te e quatro anos de idade e publicado somente em 1889 por
Tõnnies),
147. O rei Jaim e I é autor de diversos tratados po lític os conhecidos por
Hobbes: o B asilicon D óron ; Trew Law o f Free M onarchies, 1598; A pologia
pro juram ento fid e lita tis , 1608.
148. A expressão é de Vaughan, Studies in the H istory o fP o litic q l P h i-
losophy before and after Rousseau, nova edição, Manchester, 1939,1 1 , p. 145,
que, dizendo isso, fa la do contrato social tal com o ele aparece em Locke. M as
ele poderia m uito bèm ter-se referido também ao D e Cive, X V , § 5, no qual
Hobbes m ostra que, se Deus tem , por sua própria natureza, o direito de reinar,
os hom ens só adquirem esse direito por um pacto concluído entre eles. A í está
o sin a l de tudo que separa a perfeição divin a do m undo decaído dos homens.
Evidentem ente, não se deve confundir a tese absolutista da m onarquia de
direito d ivin o , que é essencialmente p o lítica (cf. Suárez e Bossuet) com a teo­
ria da origem d ivin a do poder c iv il, da qual falam os antes e que é d irig id a so­
bretudo contra as pretensões do papado de exercer u m poder tem poral.
149. M esm o que a transcendência de Deus seja ta l que, segundo as pala­
vras de M alebranche, “do fin ito ao in fin ito , a distância é in fin ita ” , a pessoa do
rei, daí por diante sem enigm a para a razão que edificou o seu poder, continua
sendo o equivalente terrestre do Deus que reina na ordem celeste. O advento
do racionalism o ju ríd ic o -p o lític o está longe de ter elim inado o pensamento
sim bólico.
168 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a defesa e daquilo que as atrapalha ou perturba, e defa z e r tudo


o que ju lg u e necessário, seja por antecipação, para preservar a
paz e a segurança evitando a discórdia no interior e a h ostilida­
de no exterior, seja, quando se perderam a paz e a segurança,
para recuperá-las .” 150 Sendo a paz a finalid ad e da instituição
c iv il, os m eios que a soberania emprega são todos aqueles que
é possível conceber para assegurar essa paz, para preservá-la
quando está ameaçada e para recuperá-la quando fo i perdida.
E la é a razão pela qual a atividade contém e elim ina as forças
m ultiform es da destruição. Portanto, seu exercício não tem
lim ite s; m anifesta-se em todos os setores da existência hum a­
na porque nenhum deles, por natureza, está im une às dissen­
sões. A ssim se explica a onicom petência do poder soberano,
“ único legislador” 151: ele define o ju sto , conhece e decide to­
dos os litíg io s, fazendo-se assim senhor do poder ju d ic iá rio 152;
mas tam bém “ decide a guerra e a paz com as outras nações e
repúblicas” , “ escolhe todos os conselheiros, m inistros, m agis­
trados e funcionários” , distribui punições, sinais de considera­
ção e recompensas, cunha moeda, in stitu i e rege a propriedade,
adm inistra os bens dos menores, exerce a preempção dos mer­
cados, recolhe as contribuições, dispõe da força armada etc.153;
é até “ju iz das opiniões e das doutrinas que serão perm itidas ou
proscritas” 154. M ais característico ainda é o fato de, no im enso
campo em qué legisla, a soberania poder ab-rogar suas próprias
leis por outras leis e de qualquer outro procedimento ab-roga-
tório ser im possível. Com o a funcionalidade e a extensão da
soberania trazem assim a marca do racionalism o voluntarista
que preside sua geração, é no ato de estabelecer a le i que se re­
conhece sua modernidade. Pode-se até dizer que o direito do
Estado moderno se desenha como o conjunto de normas “ esta­
belecidas” , em todos os campos da vid a c iv il, pela potência es-

150. Hobbes, Léviathan, cap. X V III, p. 184. Os grifos são nossos.


151. Ib id ., cap. X X V I, p. 283; cap. X X X , p. 357.
152. Hobbes, .De corpore p o litic o , T. parte, I, 8.
153. Hobbes, Léviathan, cap. X V TH , pp. 187-8.
154. Ib id ., cap. X V III, p. 184.
P R IM EIR A PARTE 169

tatal. Contudo, se a extensão da soberania legislativa e ju d ic iá ­


ria não tem lim ites, não se segue que ela traga a marca da arbi­
trariedade: o exercício da soberania deve, em todos os campos,
ter por fim o bem com um e a paz c iv il. E m compensação, é
m uito m ais im portante sublinhar que, sob pena de ver o Estado
se esfacelar, ela é, em sua extensão, uma totalidade indissociável:
retom ando velhas expressões, Hobbes recorda que “ a espada
da justiça” e a “ espada da guerra” “ são apenas uma” 155. N o cam­
po da soberania, ordem ju ríd ic a e ordem m oral não se separam.
A unidade da potência pública é indefectível. Sua in d iv is ib ili­
dade se confunde com o princípio de onipotência do Estado.
Assim , a extensão da soberania é pensada no Estado moder­
no como o analogon do espaço universal sobre o qual Deus faz
reinar sua suprema potência: corresponde exatamente ao campo
no qual se exerce a capacidade norm ativa do Poder. Contudo, é
exagerado e temerário decifrar nessa analogia “ um processo de
secularização” do direito político156. C. Schm itt tem razão de
dizer que nela “ os vestígios da representação de Deus ainda con­
tinuam reconhecíveis” 157. Por m ais atentos que tenham sido aos
“ lim ites” atribuíveis à extensão da soberania, o “ sábio Locke” e
Burlam aqui158 ficam fié is a essa representação da potência do
Estado como pólo dos valores humanos. Evidentemente, não há
nisso nem visão de Deus nem im obilism o contemplativo. M as,
tampouco há dessacralização da soberania. Entre essas duas ó ti­
cas, o pensamento ordenador e norm ativo do poder soberano se
revela, por sua extensão, como a transposição para o mundo po­
lític o do conceito teológico de summa potestas.
Essa concepção analógica da soberania exphca em gran­
de parte que se possa ter assistido, após a Revolução Francésa,

155. Hobbes, D e corporep o litic o , T. parte, I, 8.


156. C f. E . W . Böckenforde, Recht, Staat, F reih eit. “D ie Entstehung
des Staates als Vorgang der Säkularization” , Frankfurt, Surkhamp, 1991, pp.
92 ss.
157. C. Schm itt, op. c it., p. 55.
158. Locke, Traité du gouvernement c iv il, “ D e l ’étendue du pouvoir lé ­
g is la tif” , § 135; B urlam aqui, Principes du d ro it p olitiq u e, K parte, cap. V II.
170 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

em autores como D e M aistre, D e B ònald ou Blanc de Saint-


Bónnet, ao ressurgimento, m ais ou menos com pleto, de teorias
teócráticas. Entretanto, a acusação de passadismo e de rom an­
tism o que pesa sobre a revivescência do conceito teológico de
soberania é o sinal eloqüente da suspeita què, principalm ente
desde que os filósofos do Ilum inism o o consideraram um a marca
de obscurantismo, cerca a partir de então essa representação.
A lé m disso, a desconfiança se insinua de m aneira m uito m ais
tenaz quando se trata de determ inar e de fix a r quem são os titu ­
lares da soberania.

C) A questão dos titulares da soberania

À m edida que se define o pensamento do direito público


chamado a dar form a ao Estado m oderno, a questão de saber
qual é ou quais são os titulares da soberania se tom a cada vez
m ais obsessiva: pertencerá aos monarcas? Pertencerá aos povos?
N u m m om ento em que os parcialism os ideológicos estão longe
de estarem varridos pelo pensamento político moderno, é no pla­
no ju ríd ic o que a p artir de então se encontra colocado esse pro­
blem a delicado. N a verdade, essa questão que, no século X V III,
divid e a doutrina e a filo s o fia do direito público, estava latente
havia m ais de dois séculos. M as, enquanto no século X V I o
debate, apesar de sua extrem a vivacidade, quase não incid ia
sobre o direito e não acarretava repercussões sobre a realidade
p o lítica, no século XVF1I, em razão, por um lado, dos abusos
da m onarquia absoluta e, por outro, do despertar do espírito
crítico, é um a verdadeira crise que, na filo s o fia do direito p o lí­
tico, divide a idéia de soberania.
Á s prim ícias dessa crise são remotas: aparecem, no século
X V I, nos libelos protestatários dos monarcômacos huguenotes.
A firm o u -se às vezes que M a rs ílio de Pádua, no Defensor p a -
cis, publicado em 1324, já se fizera o advogado de um “repu­
blicanism o” democrático. N ão apenas um a interpretação desse
tipo, aplicada a u m pensador m edieval, é anacrônica, como está
errada: M a rs ílio de Pádua se opunha acim a de tudo aos teóri-
P R IM EIR A PARTE 171

cos da teocracia p o ntifícia e, se discernim os bem em sua obra


os lineam entos de um a problem ática da soberania, esta lhe pa­
recia dever ser atribuída ao imperador. E le estabelecia as coor­
denadas teóricas a partir das quais será concebi4a, na Cidade
laicizada e que fazia parte da plenitudo potestas do papa, a
idéia m oderna da soberania do rei. N o seu conjunto, a filo s o ­
fia da Renascença, embora entre numerosos meandros, radica­
lizo u essa m aneira de pensar e, sem jam ais sonhar com a “ m or­
te de D eus” , visualizou a Cidade da contingentia hom inis. A
obra de B odin, m esm o atendendo integralm ente ao projeto
m ilitan te e prático de consolidar as bases da m onarquia france­
sa, corresponde, por sua m agistral doutrina da soberania, a essa
orientação teórica. Os sucessores de B o d in que, como Charles
Loyseau159, Cardin Le B ret160 e R ichelieu 161, sublinham o cará­
ter “ uno e in d iv is íve l” da soberania, atribuem sua potência
“ absoluta e perpétua” à pessoa, ainda sagrada, do rei. D o mesmo
m odo, a tradição regaliana está im plantada na católica Espa­
nha, onde M ariana 162 faz o elogio da soberania monárquica, sob
a condição expressa de que esta não se confunda com um poder
tirânico arbitrário. N ão há dúvida de que a defesa, até mesmo a
apologia, da “ soberania do rei” tenha assim traçado a rota do abso­
lutism o m onárquico com o qual se g lo rific o u o século X V II.
M a s, m esmo que a idéia da soberania absoluta dos reis
encontrasse sólidas cauções teóricas ao m esm o tempo no pen­
samento ju ríd ic o de G rotius, no construtivism o racionalista da
filo s o fia de Hobbes ou no providencialism o neo-agostiniano
de Bossuet, sentiam-se tremendos abalos na doutrina desde m ea­
dos do século X V I. D os monarcômacos a Rousseau, a Sieyès e
m esmo a K ant, esses abalos tiveram intensidades diversifica­
das e se alojaram em contextos diferentes uns dos outros. A
crise que sacudia o conceito de soberania resultava de m ú lti­
plas in fluências: a cólera dos monarcômacos protestantes, que

159. Charles Loyseau, Traité des seigneuries, 1610.


160. C ardin L e Bret, D e la souveraineté du ro i, 1632.
1 6 1 .0 Testamento p o lític o de R ichelieu fo i redigido entre 1635 e 1640.
162. M ariana, D e rege et regis in stitu tion is, 1598-1599.
172 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ressoou até ém A lthusius163, as novas ousadias da análise ju r í­


dica apresentada p o r Suárez164, a reserva dos m eios jansenis-
tas, a polêm ica p o lítico-relig iosa entre BosSuet e Jurieu 165 etc.
são episódios que puderam influenciar a indagação filo s ó fic a
cuja renovação incisiva Rousseau afirm ará de m aneira d e fin i­
tiva. N ão podemos aqui relatar de m odo exaustivo a história
dos abalos ideológicos, políticos e filo só fic o s que levaram a
m udar o lugar da soberania dos príncipes p ara os povos. M as
é im portante assinalar que, no Curso dos dois séculos durante
os quais o absolutism o m onárquico consolidou sua existência
histórica166, enquanto a doutrina elaborava as estruturas ju ríd i­
cas dele, form ulou-se e refinou-se, segundo diversas axiomáticas
e, no entanto, de m aneira convergente, não o questionamento
da idéia de soberania - que continua a ser o ponto focal da re­
flexão sobre o direito p o lític o - mas o questionamento de sua
atribuição monárquica.
Antes mesmo que B o d in analisasse seu conceito, a sobe­
rania dos reis e, sobretudo, os abusos de poder perpetrados em
seu nom e eram severamente condenados nos panfletos p u b li­
cados com grande estardalhaço pelos monarcômacos protes­
tantes. Já L a Boétie, no seu D iscurso da servidão voluntária,
se levantava contra a tirania e pleiteava a liberdade, sustentan­
do seu pleito com uma vigorosa intuição contratualista graças
à qual reconhecia apenas ao povo a vocação para dar investidu­
ra a seu rei. Se, apoiado por todos, o rei-tirano é tudo e pode
tudo, ele nada m ais pode e nada m ais é quando é abandonado
por todos167. É o próprio povo, d iz em substância L a Boétie,
que faz sua servidão ou sua liberdade, pois é ele, e somente ele,

163. A lthusius, P o lític a , 1603.


164. Francisco Suárez, D e legibus, 1612.
165. Jurieu, Lettres pastorales, 1689 (em particular as cartas X V I, X V II
e X V III) .
166. Essa consolidação se operou com ainda m aior facilidade porque,
salvo o episódio da Fronda, os Parlam entos haviam afundado no im obilism o
e os Estados Gerais jam ais foram convocados entre 1614 e 1789.
167. Para a análise das intuições de L a B oétie, remetemos a nossa apre­
sentação do Discours de la servitude volontaire, Flam m arion, 1983.
PR IM EIR A PARTE 173

que fa z ou desfaz o tirano. D e resto, L a Boétie é perfeitamente


legalista; não combate a m onarquia — coisa im pensável no seu
tem po - mas a tirania168; ele não v a i contra a idéia da potência
soberana a ponto de propor um a teoria da soberania do povo169.
N ão obstante, tem a intuição brilhante do papel que o povo, m e­
diante seu consentimento, é chamado a desempenhar no Estado
em marcha rum o à sua m odernidade. Esse é o prim eiro sinal da
crise que, logo, sacudirá a idéia de soberania, na mesma época
que - ironia ou profecia? - B o d in fo rja a teoria dela.
A liás, B odin mede a virulência e a audácia que os monarcô-
macos, sobretudo após a N oite de São Bartolom eu, destilam em
seus libelos170. Só que, enquanto seu profundo desacordo com as

168. É possível que L a B oétie tenha ficado exasperado com a m ediocri­


dade de certos tratados políticos da prim eira metade do século X V I - por
exem plo, os de Jean Ferrault, Charles D e G rassaille, Claude Gousté, entre ou­
tros - cuja finalidade era lo uvar os p rivilé g io s dos reis. Isso é sim ples conjec­
tura. E m compensação, é evidente que os excessos da m onarquia - os de
todos os tem pos e de todos os países - se afiguraram a L a B oétie com o um
atentado contra a essência da m onarquia e, m ais profundam ente, contra ap ro ­
pria essência da política.
169. A idéia de “póvo” é, aliás, em meados do século X V I, juridicam en­
te m uito im precisa e de m odo geral afetada - L a B oétie im o constitui exceção
- por um coeficiente sociologicam ente pejorativo: o povo é “ o grande popu­
lacho” .
170. A Fran co-G allia de François H otm an, publicada em 1573, fora
logo traduzida em fiancés por Sim on G oulart. H otm an retraçava, de m aneira
idealizada, as origens da m onarquia da França e se inflam ava ao defender a
idéia da soberania do p ovo e a eleição dos reis. D o m esm o m odo, o retum ban­
te R éveille-m atin des Français et de leurs voisins, composé p a r Eusèbe P h i-
ladelphe Cosm opolite, enform e de dialogues, publicado na B asiléia em 1574,
depois em Edim burgo em 1574 e atribuído a um certo N icolas Bam aud, bem
como La Résolution claire e tfa c ile tant defo is fa ite de la p rise des armesp a r
les inférieurs, lançado na B asiléia em 1575 e atribuído problem aticam ente a
O det de L a N oue, afirm avam a superioridade dos povos sobre os reis, contes­
tando assim a soberania absoluta dos principes. E m Genebra, nesses mesmos
anos, os textos de Théodore de Bèze tinham um a feição m ais n itid a e m ais
cuidada, porém o Traité du d ro it des m agistrats sur.leurs sujets e o Traité de
l ’autorité du m agistrat apresentavam teses opostas, revelando assim o quanto
as vicissitudes religiosas da época m arcavam os m ais ponderados dos autores.
E m 1579, os Vindiciae contra tyrannos, lançados sob o pseudônim o de Julius
B rutus, logo se cercaram de celebridade. Seus autores, D u P lessis-M om ay e
174 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E ITO

teses iconoclastas deles é onipresente em Os seis livros da Re­


pública, ele não os cita, com exceção de F. Hotm an171. Suas pala­
vras, bastante flutuantes em sua violência, oferecem uma argu­
mentação que não é m uito coerente nem m uito sólida. É preciso
confessar, ainda por cima, que, na sua época, esses polêmicos
artigos protestatórios não têm alcance teórico nem para a doutri­
na jurídica nem para a filo so fia política. Os textos dos membros
católicos da Liga como Jean Boucher ou Louis d’Orléans se apro­
xim am de muitas teses monarcômacas, mas não têm mais in ­
fluência do que elas. Ocorre que, de fato, o poder real, mesmo nas
horas mais sombrias das guerras civis, tem seus defensores. En­
contra-os nos adeptos da Contra-Reform a 172 e no próprio palco da
História, onde os “Políticos” 173, por amor à tradição, pretendem
servir à unidade do reino e à causa da monarquia. A idéia dinás­
tica tem uma ressonância afetiva e, na França, instala-se o Estado
centralizador e administrativo delineado por Bodin.
N ão im porta. Tudo se passa como se os monarcômacos
tivessem marcado um ponto de mudança no curso das idéias.
A ssim , o jurista da W estfália Johannes A lthusius (1557-1638)
elabora, na sua P o lític a m ethodice digesta (1603), além da
imagem freqüentemente citada de um Estado parecido com um a
hierarquia piram idal de “ corpo” em cujo topo se encontra o prín­
cipe — unus populus in uno corpore sub uno capite —, uma con-

H u b e r t L a n g u e t, t u m u lt u a v a m o h o r iz o n t e ju r íd ic o - p o lít ic o d a R e p ú b lic a . P o r
u m la d o , e le s p r o p u n h a m u m a te o r ia d o c o n t r a to q u e d e v ia s e r s e la d o , d iz ia m
e le s , e n tr e o r e i e o p o v o ; p o r o u tr o , c o n s id e r a n d o , c o m o B u c h a n a n n o De ju re
regni apud Scotos ( 1 5 7 9 ) , q u e o d ir e it o d o s p o v o s é m a is p r o f u n d o e m a is
v e r íd ic o d o q u e o d ir e it o d o s p r ín c ip e s , e le s p r e g a v a m a r e s is tê n c ia à tir a n ia e
c h e g a v a m , e m n o m e d o d ir e it o d o s p o v o s , a té a d e fe n d e r o tir a n ic íd io .
1 7 1 . B o d in , Les Six Livres de la République, I I I , I I I , p . 4 0 2 .
1 7 2 . M e n c io n e m o s M a r ia n a , De rege et regis institutione, 1 5 9 8 -1 5 9 9 , e R .
B e la r m in o , Tractatus depotestate summipontifici in rebus temporalibus, 1 6 1 0 .
1 7 3 . M e n c io n e m o s , p o r e x e m p lo , d e p o is d e M ic h e l d e L ’H o s p it a l, p a r ­
t i c u la r m e n te lig a d o à m á x im a Princeps solutus legibus, D u H a illa n , De l'estât
et succès des ajfaires de France, 1 5 7 0 ; B e lle f o r e s t , Grandes annales e H is­
toire générale de France, 1 5 7 9 ; P ie r r e d e B e llo y , Apologie catholique, 1 5 8 5 ;
G u y C o q u ille , Discours aux Estais de France e L ’Institution au droit des
Français, 1 6 0 8 .
PR IM EIR A PARTE 175

cepção da soberania ou majestas que pertence à comunidade


orgânica (ou “ sim biótica”) - consociatio sym biotica - e não ao
rei que é seu chefe. O rei está ligado por um contrato aos diver­
sos organismos da sociedade política da qual ele é o delegado.
Por conseguinte, não im porta que o rei seja o summus m agistra-
tus, é “ o povo [que] detém, sozinho, a majestade” . Althusius enun­
cia assim claramente, ainda que no m ovim ento dialético e abs­
trato de seu “ sistema” político, o princípio da soberania popular.
Entretanto, como os monarcômacos dos quais está tão próxim o,
A lthusius passa, no m undo germânico, por um pensador sedicio­
so e subversivo, o que basta para indicar o quanto a idéia da so­
berania dos reis, mesmo embaciada por pesadas suspeitas, con­
tinuava tenaz no começo do século X V II.
O abalo m ais forte veio, paradoxalmente, das idéias de um
jesuíta neo-escolástico das Escolas de Salamanca e de C o im ­
bra, Francisco Suárez (1548-1617). Com o todo jesuíta, Suárez
acreditava na origem d ivina da soberania, assim declarada “ de
direito natural” . M as, se, no seu D e legibus (1612), ele acom­
panha a tradição tom ista ao caracterizar o Estado como potên­
cia pública e lhe reconhecer como critério essencial ser supre-
mus in suo ordine - isto é, absolutamente soberano “ em sua or­
dem” , portanto, neste m undo - , insiste particularm ente, talvez
seguindo M a rsílio de Pádua, em dois pontos: em prim eiro
lugar, a soberania se insere por natureza no corpus p oliticu m ,
isto é, no conjunto do povo que, ainda que por via consuetudi-
nária, se lim ita a confiar o seu exercício ao monarca; em se­
gundo lugar, essa soberania, suprema e absoluta, da qual o
corpo público é o lugar por excelência, longe de fazer com que
o príncipe seja solutus legibus, im põe-lhe obediência às leis do
Estado: em conform idade com a finalidade da “ coisa pública” ,
que é o “bem com um ” , a soberania, apesar de ser absoluta, é
por isso mesmo lim itada.
Esses poucos exem plos 174 bastam para mostrar que, se o
conceito de soberania é comumente assim ilado à majestas v in -

174. P o d e r - s e -ia a c r e s c e n ta r a e s s e s e x e m p lo s , n u m r e g is tr o m e n o s a u s ­
te r o m a s m u it o e lo q ü e n te , o d e C y r a n o d e B e r g e r a c c e le b r a n d o , c o m f u lg u -
176 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

culada ao Poder do Estado, a questão de seu titu la r suscita


divergências notáveis; e que, além disso, é em m eio às vic issi­
tudes polêm icas que fazem nascer ensaios doutrinários geral­
m ente desprovidos de eficiência em seu tempo, que, não obs­
tante, de m aneira subterrânea, o direito p o lítico do Estado m o­
derno abre seu cam inho.
N a verdade, esse cam inho é extremamente tortuoso, pois
os episódios que marcam com m ais nitid ez a lenta gênese da
crise que conduzirá à idéia m oderna da soberania do povo per­
tencem m ais à história e à religião do que ao direito ou à filo ­
so fia política. Isso decorre da própria natureza da noção de
soberania a cujo respeito G. Jellinek observou, com justeza,
que ela pertence às categorias históricas175.
A história da Inglaterra fornece, a esse respeito, no século
X V II, um exem plo impressionante. Já em 1628, Sir Edward
C oke 176 se havia tom ado, no país de Thom as M ore e de John
Fortescue, o “ oráculo da common law ” . E le fora protagonista
da B ill o f Rights e, um dos prim eiros, pregara a liberdade pela
le i. N a mesm a época, am pliava-se o m ovim ento de protesto
lançado por grupos com nomes sugestivos, m ais ou menos
associados às seitas religiosas dos quakers e dos m uggletonia-
nos. Apesar da diversidade de seus comportamentos, tinham
um único desígnio: subverter a sociedade aristocrática inglesa
e mostrar que as tendências absolutistas e, a fo rtio ri, tirânicas
da Coroa eram contrárias ao espírito da M agna Carta. A onda
contestatária dos Levellers (N iveladores), dos D iggers (C ava-

rantes tons relativistes, “ a cironalidade universal” : H istoire comique des États


et Em pires de la Lune et du S o le il, 1656.
175. G . Jellinek ,Allgem eineStaatslehre, 1900; trad. ft. sob o títu lo Z É ta t
moderne et son d roit, 1913: t. II, pp. 126 e 144. C f. igualm ente Carré de
M alberg, C ontribution à la théorie générale de F É tat, 1920-1922, reedição
do C N R S , 1 9 6 2 ,1.1, pp. 75-6 (que, é verdade, fa la principalm ente da emer­
gência da soberania quando dos combates travados pelos reis da França no
exterior, contra o Sacro Im pério Rom ano Germ ânico e o Papado, e, no inte­
rior, contra os senhores feudais).
176. C f. J. Beauté, Un grand ju ris te anglais: S ir Edw ard Coke, 1552-
1634, P U F , 1975; Paulette Carrive, La pensée p o litiq u e anglaise de Hooker à
Hum e, P U F , 1994, pp. 210-20.
P R IM EIR A PARTE 111

dores), dos Seekers (Buscadores) ou dos Ranters (Divagadores)


era poderosa e m uitas vezes violenta. O puritanism o inglês tra­
dicional não facilitava as coisas ao incentivar um a esperança
m ilenarista, aliás m uito confusa. N u m país onde é d ifíc il sepa­
rar a religião e a p o lítica, repetia-se am plam ente que a vox p o -
p u li é vox D e i e alguns clamavam que a fig ura do rei era a do
Anticristo. Cabeças pensantes, como Richard O verton177 e John
L ilb u m e 178 ou, menos célebres, W illia m W alw yn e Thom as
G oodw in, tentavam desajeitadamente ordenar o pensamento
desses m ovim entos desordenados. Dentre os ensaios doutriná­
rios que aparecem, os publicados por Gerrard W instansley e
Everard179 eram representativos de um estado de espírito: o “ re­
tom o de .um governo de verdade” im plicava, em vez da refe­
rência tradicional à transcendência do direito d ivin o que funda­
m enta a soberania dos monarcas, um a fé panteísta próxim a das
teses teístas que serão desenvolvidas pelas filo so fia s de Spino-
za e, m ais tarde, de Diderot. Nessas condições, “virar o m undo
pelo avesso” 180 significava que havia chegado a hora de romper
com a soberania absoluta dos monarcas e encontrar è n fim no
povo dos crentes e dos cidadãos, como já pedia M ilto n em 1644
no seu Areopagetica, as raízes da soberania. O paraíso p erd i­
do, publicado pelo velho poeta em 1667, nem por isso consti­
tu i, como às vezes se pretendeu, Um apelo à subversão. N ão
obstante, M ilto n aprova o regicídio quando é necessário para a
salvaguarda do povo.
A agitação sociopolítica e a efervescência das idéias no
âmago do século X V I I certamente explicam m ais “ as duas re-

1 7 7 . R ic h a r d O v e r t o n , A Remontrance o fM any Thousands Citizens, 1 6 4 6 .


1 7 8 . O lib e lo d e J o h n L i l b u m e in t it u la d o London’s Liberty in Chains,
1 6 4 6 , t in h a c a u s a d o g r a n d e im p a c to .
1 7 9 . E m 1 6 4 9 , e s s e s d o is a u to r e s p u b lic a m .4 Watchword to the C ity o f
London and the Arm y; e m 1 6 5 2 , W in s t a n s le y d e d ic a a O liv e r C r o m w e ll s e u Law
o fFreedom in aP latform ( c u jo s u b títu lo e lo q ü e n te é True M agistracy Restored).
1 8 0 . C f . C h r is to p h e r H i l l , M ettre le monde à l ’envers ( 1 9 7 2 ) , tr a d , fr .,
P a y o t , 1 9 7 7 . O t ít u lo d a o b r a , q u e r e p e te a p a la v r a d e o r d e m d a s s e ita s d is s i­
d e n te s d o s é c u lo X V I I n a In g la te r r a , é s ig n if ic a t iv a m e n t e t o m a d o e m p r e s ta d o
d o s Atos dos Apóstolos, X V I I , 6 .
178 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

voluções da Inglaterra” do que as transformações do conceito


de soberania no direito p olítico. Entretanto, é inegável sua in ­
fluência sobre o pensamento de lorde Shaftesbury ê de James
Tyrrell. Quando Locke trata, no ,Two Treatises o f Government,
de responder ao Patriarcha de Film er, pretende combater a te o -'
cracia anglicana e se recusa a fazer do monarca o titular da so­
berania absoluta. A firm a que a relação com Deus não cabe no
direito c iv il, m esmo nas suas origens; em eonseqüência, ele faz
do Poder e da autoridade que o envolve o resultado do contrato
pelo qual o povo181, após haver consentido (consent) na vid a c i­
v il, concede sua confiança (trust) à autoridade que o governa.
Locke não gosta de usar o term o “ soberania” , mas d iz exp lic i­
tamente que a base da autoridade p olítica é “ o povo” 182. A sobe­
rania do povo, que se expressa na regra m ajoritária (m ajority
rule) m , parece-lhe ser o antídoto exato do absolutism o m onár­
quico - aquele que os Stuart m acularam com tantos m alefícios
e crimes, aquele que, de R ichelieu a L u ís XTV, caracteriza “ a
doença francesa” . A condenação da soberania “ absoluta” que,
por força das coisas, acarreta o risco permanente de se tom ar
“ arbitrária” é categórica184; para Locke, ela tem , em prim eiro
lugar e fundamentalmente, o sentido político que será recolhido
pela doutrina liberal; tem tam bém um alcance ju ríd ic o im enso,
pois Locke se dedica a elaborar, a partir dela, o esquema in s ti­
tucional, já quase “ constitucional” , segundo o qual o governo
c iv il corresponderá à soberania do povo e à regra da m aioria
exigidas por um regim e de liberdade.

181. N o texto de Locke, a palavra people aparece pela prim eira vez no
§ 89 do Tratado do governo c iv il: “A n d th is (p o litic a l o r c iv il society) is done
w herever any num ber o f m en, in the state o f nature, enter in society to m ake
one people, one body p o litic under one supreme governm ent.”
182. Ib id ., §§ 112 e 175.
1 183. Ib id ., § 98.
184. Certamente, do ponto de vista sem ântico, os adjetivos “absoluto” e
“ arbitrário” têm de ser distinguidos: stricto sensu, um poder arbitrário in sp i-
ra-se apenas na arbitrariedade de seu detentor; com o tal, ignora as leis. O po­
der absoluto, por sua vez, se exerce sobre tudo e sobre todos; nada resiste à
sua potência. N ão é m enor o perigo p o lític o que provém , na realidade, da su­
perposição e, logo, da confusão desses dois caracteres.
PR IM EIR A PARTE 179

A história atormentada da Inglaterra do século X V II é


portanto perpassada por um a im ensa força de abalo da idéia de
soberania, cujo ponto de fixação se m ostra cada vez m ais n iti­
damente ser não m ais o príncipe e sim o povo. A luta que tra­
varam do outro lado da M ancha os whigs e os tones é, no cho­
que do liberalism o com o conservadorismo, um a de suas con-
seqüências m ais m anifestas. M as esse episódio histórico tem
para a doutrina dq direito um significado histórico determinan­
te: a soberania não pertence de ju re divino a um a dinastia - n in ­
guém tem o direito natural de exercer a autoridade soberana de
um governo; não é apanágio dos príncipes. Contra a concep­
ção, providencialista ou jüsnaturalista, da patrim onialidade da
soberania real, firm a-se a partir daí a idéia de que a soberania
reside no povo185.
N ão obstante, faltava então demonstrar que o povo é o seu
titu lar e teorizar essa idéia m obilizadora que, tom ando-se um
dos elementos m ais poderosos da filo s o fia m oderna do direito
p o lítico , participa das capacidades emancipadoras que lhe
insuflam o ind ivid ualism o e o racionalism o.

4. A soberania do povo

A teorização exem plar da soberania do povo será, na se­


gunda metade do século X V III, obra de Ròusseau. E m todo
caso, ela varre, de m aneira d e finitiva , apesar de alguns ressur­
gim entos pontuais entre os condutores da Contra-Revolução, a
noção de soberania dos pnhcipes. Entretanto, de Ròusseau a
Sieyès, à doutrina não deixa de conter m atizes im portantes que
revelam a dificuldade que há em se obter um conceito perfeita­
m ente claro e unitário da soberania popular.

185. É típ ico que, em meados do século X V II, C laude Joly, teórico da
Fronda e antiabsolutista, possa ter escrito: “ O s reis extraem originariam ente
sua potência dos povos” , Recueil des maximes véritables et im portantes pour
l ’in stitution du ro i, 1652.
180 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A ) A soberania do “povo comó corpo ” segundo Rousseau

A idéia que Rousseau tem da soberania está évidentem en-


te ligada à sua concepção do contrato social, isto é, ao “ ato pelo
qual um povo é um povo” 186. 0 pacto social faz nascer a vontade
geral própria desse “ corpo m oral e coletivo” que é o “ êu co­
m um ” da República, chamado Estado quando é passivo, Sobe­
rano quàndo é ativo e Potência quando é comparado com seus
semelhantes187. Para além da term inologia usada por Rousseau,
o pensamento é extremamente preciso: “ O corpo p o lítico ou o
Soberano tira seu ser apenas da santidade do contrato.” 188 A
natureza da soberania só pode derivar do procedimento contra­
tual segundo o qual a m ultidão, unanimemente, substitui as von­
tades particulares pela vontade geral: a essência da soberania
se id en tifica então com a vontade geral. Os comentaristas de
Rousseau insistiram m uito nas características de unidade, de
indivisib ilid ade e de perfeita retidão que procedem de sua es­
sência - características de extrema im portância no funciona­
m ento da República, já que “ a soberania é apenas o exercício da
vontade geral” 189. Observaram menos que a insistência e a pre­
cisão com que Rousseau analisa essas características perm item
situar sua concepção da soberania em comparação com as teo­
rias dos jurisconsultos que, de Grotius a Burlam aqui, eram então
respeitados: ressaltando a im portância, a seu ver fundam ental,
da inalienabilidade da soberania, Rousseau inverte, de m aneira
d e fin itiva nesse ponto, a posição dom inante dos jusnaturalistas
dos séculos X V II e X V III; ao m esm o tem po, atribui ao “povo”
no Estado um estatuto filo s ó fic o totalm ente inédito. Deténha-
m o-nos no entrelaçamento dessas duas temáticas, pelo qual se
renova a form a conceituai do direito p olítico.
A o resum ir para E m ile as teses principais do Contrato so­
c ia l, Rousseau escreve: “Exam inarem os se é possível que o

186. J.-J. Rousseau, Le contrat social, I, V , em Pléiade, t. I II, p . 359.


187. Ib id ., I, V I, p. 362.
188. Ib id ., I, V II, p. 363. '
189. Ib id ., I l, I, p. 368.
PR IM EIR A PARTE 181

povo se despoje de seu direito de soberania para com ele reves­


tir um ou vários homens.” 190 Desde G rotius, a questão é clássica.
Todos os jurisconsultos da Escola do direito natural, Pufen-
dorf, Barbeyrac, Burlam aqui, Jurieu etc. adm itiam que, o rig i-
nariamente, a soberania pertence ao povo. M as, nas perspectivas
contratualistas da teoria jusnaturalista deles, “ desde que um povo
transferiu seuclireito a um Soberano, não se poderia supor, sem
contradição, que ele continua a ser seu senhor” 191. D iante de tal
afirm ação, Rousseau se indigna: na p o lítica assim concebida, é
sempre possível “ despojar os povos de todos os seus direitos
para com eles revestir os reis com toda a arte possível” 192. N o
Estado do contrato, a soberania do povo còmo corpo coincide
com a vontade de um “ ser coletivo” que “ só pode ser represen­
tado por si mesmo” 193; ora, se o poder pode ser transm itido, a
vontade, por sua vez, é intransm issível; em outras palavras, a
soberania é inalienável ou incom unicável. O corpo público eri­
gido pelo contrato é, originariam ente e para sempre, seu titular.
D e fato, o direito de soberania é, como Barbeyrac observara ju ­
diciosam ente nas notas que acrescentou à sua tradução de G ro­
tiu s194, não um dom inium , mas um im perium : tal como a vid a e
a liberdade, ele não é um ‘b e m ” que o proprietário poderia co­
merciar. Contrariam ente ao que pensaram G rotius e Pufendorf,
a soberania não pode ser vendida nem sequer dada. U m a vez
que a m ultidão se erigiu em povo, este não pode sè despojar da
soberania que nasceu com ele. “H á [...] no Estado um a força
com um que o sustenta, um a vontade geral que dirige essa for­
ça, sendo a aplicação de uma à outra que constitui a soberania.” 195
Por conseguinte, se o corpo p o lítico degenera e se dissolve, o
povo se desfaz e, simultaneamente, a soberania desaparece: por

190. J.-J. Rousseau, Ém ile, liv . V , P léiade, t. IV , pp. 836 ss.


191. J.-J. B urlam aqui, Principes du d ro it p olitiq u e, V II, § 12.
192. C f. J.-J. Rousseau, Le contrat social, U , U , a critica de G rotius e de
Barbeyrac, p. 370.
193. Ib id ., II, I, p. 368.
194. Trad. Barbeyrac de G rotius, D ro it de la guerre et de la p a ix, liv . I,
I II, § 8 , n. 1.
195. J.-J. Rousseau, M anuscrit de Genève, I,T V , pp. 294-5.
182 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

aí se vê que a soberania é o atributo essencial e indefectível do


povo. E m conseqüência; Rousseau condena não apenas a “ so­
berania do rei” , por tanto tem po valorizada e defendida pelos
legistas e pelos jurisconsultos, como tam bém a teoria dita das
“partes da soberania” que os pensadores políticos inclinados
ao liberalism o opunham ao “ hobbesianism o” e ao seu pretenso
despotismo. D e fato, para Rousseau, a soberania do povo, na
sua unidade in d ivisíve l, “não pode ser representada” porque “ a
vontade não se representa” 196. Supondo-se que o povo prometa
obedecer a um rei, “ ele se dissolve por esse ato, pérde sua qua­
lidade de povo; no instante em que há um senhor, já não há
soberano e, por conseguinte, o corpo p o lítico é destruído” 197.
Sé, aliás, esse povo se atribuísse representantes em vez de um
senhor ou um monarca, já não seria livre e já não seria um po­
v o 198. E m conseqüência, como “ qualquer le i quê o povo em
pessoa não tenha ratificado é nula, não é tuna le i” 199, um Estado
no qual o povo tivesse representantes não téria leis verdadeiras.
Portanto, segundo Rousseau, a idéia “m oderna” da representa­
ção, qúe im plica, d iz ele, a partilha da vontade geral, atenta
necessariamente contra a plenitude in d iv is íve l da soberania do
povo: ela é um a abdicação.
A in d a que a contradição denunciada por Rousseau entre
os dois conceitos de representação e de soberana do povo este­
ja longe, para òs defensores modernos da democracia, de ter a
evidência lógica que ele lhe atribui, fic a patente que a idéia tra­
dicional da “ soberania do rei” a partir daí fic o u irrem ediavel­
m ente superada. E la parecia a Rousseau ser portadora dos ger­
mes dessa arbitrariedade e desse absolutism o m onárquicos que
secretam o despotismo e esmagam no hom em o que há de m ais
precioso: a liberdade. A esse respeito, Rousseau, entre as m ú l­
tiplas interpretações suscitadas pór sua obra, pôde passar por
pai fundador do direito p o lítico m oderno. Esse é u m dos para-

196. J.-J. Rousseau, Le contrat social, II, I, p. 368; I II, X V , p. 429.


197. Ib id ., II, I, p. 369.
198. Ib id ., m , X V , p. 431.
199. Ib id ., II, V H , pp. 381 ss.; m , X V , p. 430.
PR IM EIR A PARTE 183

doxos dissim ulados em sua exposição, pois ele lhe adicionou


um a pletora de exemplos extraídos da história antiga, sendo
interm inável o debate relativo à “m odernidade” - na nossa o p i­
nião m uito duvidosa - de Rousseau. D o m esm o m odo, nós nos
perguntaremos continuamente se o autor do Contrato social é
ou não o cantor da democracia m oderna: certamente, a sobera­
n ia do povo chama a democracia. M as, por um lado, o ideal
padrão democrático que se delineia no Estado do contrato pen­
sado por Rousseau é um governo tão perfeito que não convém
aos homens: “ Se houvesse u m povo de deuses, ele se governa­
ria democraticamente” ; por outro lado, Rousseau não pleiteia
em favor de regim e algum ,-pois seu projeto é pôr em evidência,
como indica o subtítulo do Contrato social, os princípios fu n ­
dadores do direito p olítico. É entre esses princípios fundadores
que se insere a partir daí o conceito renovado da soberania: ela
é o atributo essencial do “povo com corpo” .
A idéia, que parece de perfeita transparência, estava desti­
nada a fazer escola. M u ito particularm ente, Sieyès m edirá o
alcance inovador da mensagem que a reviravolta da teoria tra­
dicional da soberania estatal continha na obra de Rousseau. E n ­
tretanto, Sieyès introduz na doutrina um a inflexão nova que deixa
pressagiar o surgimento de debates até então não im aginados.

B ) A “soberania n acio na l ” segundo Sieyès

Segundo Sieyès, a “ soberania do povo” se confunde com


a “ soberanianacional” . Entretanto, o m atiz entre as duas noções
está m uito longe de ser desprezível já que se, segundo Rousseau,
a soberania do povo exclui qualquer idéia de representação, ao
contrário, segundo Sieyès, é por m eio de um a representação
distinta, é verdade, do mandato - que se traduz a unidade da
soberania nacional200. É de fato um a espécie de democracia
direta - que ele q u alifica de “bruta” - que Sieyès decifra no

200. Sobre esse problem a, consultar Giuseppe Duso, La rappraesenta-


za: un problem a du filo s o fia p o lític a , M ilã o , 1988.
184 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

sistema de Rousseau. Ora, cioso das liberdades individuais, ele


considera ^q u alq u er que tenha sido a evolução de seu pensa­
m ento entre o lib e lo de 1789 Q u ’est-ce que le tiers état? e a
Constitution de l ’an V III (13 de dezembro de 1799) - que es­
tas estão longe de encontrar sua perfeita expressão na partici­
pação direta dos cidadãos na promulgação das leis. Juntando-
se a M ontesquieu a respeito desse ponto, escreVe num a frase
célebre: “ O povo não pode ter outra voz senão a de seus repre­
sentantes, ele só pode falar, só pode agir por m eio deles.” 201 É
por isso que, refutando as noções de delegação de poder, de
comissão, de procuração, de mandato que, extraídas do direito
c iv il, haviam entrado no direito p o lítico do A n tigo Regim e, ele
prega, para o direito p o lítico do Estado moderno que deseja,
um a representação nacional tal que os eleitos sejam indepen­
dentes dos eleitores e só recebam seus poderes da Constituição.
É a nação inteira - confundida por Sieyès com o terceiro esta­
do, pois, na França do amanhã, é preciso, aó passo que nunca
fo i nada, que sej a “tudo” - que deve exprim ir-se pela voz dos
governantes: de fato, é ela que é soberana e, enquanto tal, é, no
Estado, o poder constituinte; possui mesmo sobre os corpos cons­
tituídos, graças áo órgão qué o jú r i é, um poder de controle.
Sejam quais forem as diferenças de apreciação que Sieyès
e Rousseau fazem sobre a idéia de representação, estão de
acordo sobre um ponto: a soberania pertence ao povo. Sieyès
chega mesmo a escrever: “ Só podemos ser livres com o povo e
por ele.” 202 Os homens da Revolução, na sua vontade de derru­
bar aquilo que se chamará a p o steriori dè “A n tig o Regim e” , se
pronunciarão, como Sieyès, com ím petos de fervor patriótico e
de am or à liberdade, pelo Estado-nação d efinid o como “ um
corpo de associados vivendo sob um a le i com um e representa­
do pela mesma legislatura” 203. A Constitution de 1791 dará a essa

201. E . Sieyès, Discours du 7 septembre 1789, ia A rchivesparlem entai­


res, 1! série, t. V III.
202. E. Sieyès, Qu 'est-ce que le tiers état? (1789), reedição P U F , 1982,
p. 54.
203. Ib id ., p. 31.
P R IM EIR A PARTE 185

idéia sua versão o fic ia l e pública: “A soberania é una, in d iv is í­


ve l, inalienável e im prescritível. E la pertence à Nação: nenhu­
m a seção do povo, nem in d ivíd u o algum , pode atribuir-se o
exercício dela.”204
A mutação conceituai da idéia de soberania está consuma­
da a partir de então. Já não é o rei que, sem oposição, é reco­
nhecido como o titu lar em inente da soberania; essa concepção
assum iu um a feição obsoleta e é tão caduca que só poderia ter
aplicação num regim e “ antigo” , definitivam ente ultrapassado
pelo acontecimento revolucionário. D e fato, só o corpo p ú b li­
co - seja ele chamado de povo ou de nação - é declarado deten­
tor da soberania e, mesmo através de seus representantes, ele
não deve, e aliás hão o poderia sem negar a si próprio, alienar-se.
A essa mutação conceituai da soberania corresponde um a
revolução que, para além de sua dim ensão histórica, atesta o
amadurecimento da consciência política. Considerada filo s o fi­
camente, essa mutação, que corresponde ao ideal do Ilu m in is -
m o, prova a força conquistadora do hum anism o e das forças do
racional por e le veiculadas; contra os m istérios do irracional
alojados nas teorias teológico-políticas, o construtivism o racio­
nal edificou, na v ia seguida por Rpusseau e Sieyès, um a sobe­
rania que, form ando um todo com a vontade geral do corpo
público, nada pede aos ideais da.transcendência, não somente a
de Deus, mas tam bém a da Natureza. N o direito p o lítico , as de­
terminações divinas, ou naturais da potência soberana já não
têm sentido. E m conseqüência, as idéias de soberania patrim o­
n ia l ou de fronteiras naturais do Estado são apagadas, a ponto
de não serem m ais do que curiosidades doutrinárias. E pode-se
observar que, à sombra da Revolução Francesa, até em K ant e
em Fichte, os conceitos de soberania e de cidadania form am
um par cujos termos são indissociáveis: na “ nação-contrato” ,
um a é construída graças ao envolvim ento da vontade livre que
a outra exige.
Temos assim base para dizer que, na virada do século X V III,
a idéia de soberania ultrapassou sua etapa crítica. M esm o que,

204. Constituição, de 1791, títu lo III, art. L


186 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

na obra filo só fic o -ju ríd ic a de Kant, a idéia de soberania não


esteja absolutamente isenta de penumbra205 - o que atesta a d i­
ficuldade da metamorfose por que passou - devemos ver nisso
apenas um a incerteza residual. U m a das glórias do hum anism o
ju ríd ic o é d e fin ir a soberania pela competência exclusiva que
os homens têm de fazer as leis a fim de proporcionar áos cida­
dãos a paz e a segurança pública; A o construir a soberania, a
razão m anifestou sua força criadora de norm atividade e de auto­
nom ia. Os homens não podem, segundo às palavras de R ous-
seãu, “ colocar a le i acima dos homens” só porque ela é obra
deles. D o mesmo m odo a liberdade - que, a partir de L a B o é tie ,
se tom ou progressivamente o ponto focal da filo s o fia do direito
político - tende a se firm ar como autolegisladora. Para que isso
fosse possível, a vontade geral, expressando a soberania do
povo, tinha de tom ar o lugar ocupado pela le i natural na filo s o ­
fia tradicional. Desse deslocamento, H egel, em 1821, extrairá
o ensinamento nos seus P rin cíp io s da filo s o fia do direito: “ O
povo, enquanto Estado” , escreverá ele, “ é o E spirito na sua ra­
cionalidade substancial e na sua realidade im ediata; logo, é a
potência absoluta da terra.” 206
N e m p o risso as metamorfoses da idéia de soberania estão
concluídas. Em bora o conceito m ódem o da soberania do povo
traga o testemunho flagrante dos triunfos de que á razão hum a­
na é capaz no direito político, ele se insere, como observa K ant,
“ nos lim ites da sim ples razão” . N ão tardará portanto a se abrir
um novo debate sobre o ponto de saber se a soberania, cujo ca­
ráter absoluto fora tantas vezes proclam ado, não traz, ao con­
trário, as marcas da finitude humana e, por conseguinte, não deve
ser constitucionalm ente lim itada.

205. Sobre esse problem a, remetemos a nossa obra La philosophie du


d ro it de K ant, V rin , 1996.
206. H egel, Principes de la philosophie du d roit, § 331.
PR IM EIR A PARTE 187

5. A lim itação constitucional da soberania

V isto que a soberania era filosoficam ente reconhecida


com o correspondente às representações imanentes do direito
p o lítico construído pela razão humana, devia ser situada em seu
campo próprio e não podia ultrapassar-lhe os lim ites. Tornava-
se portanto o lugar e o ensejo de novos dilem as que, de fato,
não tardarão - m esmo que nos atenhamos ao direito público
interno207 - a cind ir seu conceito ju ríd ic o 208.
N o direito p o lítico interno do Estado m oderno, não são
nem os sobressaltos do jusnaturalism o nem os ím petos do ro­
m antism o que, provocando o despertar das teorias m onarquis­
tas ou legitim istas ligadas à “ soberania personalizada” , fiz e ­
ram surgir novos problemas. O debate, logo depois da Revolução
Francesa, instalou-se noutro terreno, para dirigir-se àquilo que
se havia classicamente considerado as duas características fu n ­
damentais da potência soberana: sua extensão e sua unidade.
Portanto, a crise de seu conceito se desenvolveu duplamente.

A ) Ilim ita ç ã o ou lim itação da soberania?

O prim eiro dilem a surge quando, examinando a extensão da


soberania indagou-se se a soberania era ilim itada ou necessaria­
mente lim itada. Levantando-se contra a monarquia dó A ntigo
Regime, havia-se saudado na soberania legisladora do povo o
paradigma de üm Estado de Uberdade. Ora, rapidamente perce­
beu-se que, no plano político, a soberania do povo, m ovida pelos
ímpetos de sua potência ilim itada que coincidia com a vontade
geral, corria o risco de ser tão perigosa para a ordem e a liberda­
de públicas quanto a soberania absoluta e ilim itada do monarca.

207. Verem os de fato, na terceira parte desta obra, que, no direito inter­
nacional público de nosso século, a idéia de soberania está no centro de um a
nova crise, suscitada pela am pliação e pela globalização do direito p o lític o.
208. Sobre essa vasta questão, cf. Jacques Julliard, La faute à Rousseau:
essai sur les conséquences historiques de Vidée de souveraineté populaire,
L e S euil, 1985.
188 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

N a sua época,; Locke e M ontesquièu haviam mostrado,


cada um à sua maneira, que, quando a autoridade p o lítica está
nas mãos de um só hom em , assim detentor de um poder “ abso­
lu to e arbitrário” , o regime absolutista decorrente disso fic a ex­
posto a todas as vertigens destruidoras do despotismo. Locke
tinha oposto ao absolutism o do tirano em exercício o direito de
resistência do povo209. M ontesquieu, contra a m onocracia de
um príncipe, havia cinzelado o bosquejo de um regim e consti­
tucional caracterizado pela não-confusão dos poderes210, isto é,
por sua distinção orgânica e, no eq uilíb rio dè suas respectivas
potências, por sua complementaridade funcional. Locke e M o n ­
tesquieu haviam de fato compreendido que, no m undo dos ho­
mens, sempre sob o risco de sér arrasado pelas paixões, qual­
quer potência “ suprema” deve ser represada. Seu “ constitucio­
nalism o” era assim, acima de tudo, um a barreira contra o dogma
do absolutism o m onárquico.
O acontecimento revolucionário, ao consagrar a soberania
popular ou nacional, m o d ifico u as perspectivas. A ssim , B enja-
m in Constant, que considera o princípio da soberania do povo
“um princípio universal da política”211, acrescentou-lhe logo um a
advertência: “É necessário, é urgente” , escreve ele, “ conceber
sua natureza e determinar bem sua extensão” 212, pois, “ caso se
atribua a essa soberania um a latitude que não deve ter, a liber­
dade pode ser perdida apesar desse princípio ou por esse p rin ­
cípio.”213 Eis-nos longe de Rousseau, para quem a vontade geral,
cadinho da soberania, é sempre reta e não pode errar214... Po-
de-se sem dúvida objetar que B. Constant não compreendeu as
perspectivas norm ativistas nas quais Rousseau, já adotando um
ponto de vista criticista, situava seu conceito da soberania do
povo. Isso é verdade. M as não é menos verdade que, com urna

209. Locke, 7>œfé du gouvernement c iv il, § § 1 9 9 ss.


210. M ontesquieu, L ’esprit des lo is, liv . X I, cap. V I, pp. 396 ss.
211. B . Constant, Principes de p o litiq u e , I, in Pléiade, p. 1069.
212. Ib id .,p . 1070.
213. Ib id ., p. 1070.
214. J.-J. Rousseau, Le contrat social, II, cap. I II, p. 371.
P R IM EIR A PARTE 189

insistência perturbadora, Constant decifra na idéia de sobera­


n ia do povo defendida por Rousseau tons m ísticos que cortem
o risco, d iz ele, de fazer nascer um erro gigantesco: não é pos­
sível, de fato, fazer da soberania do povo um absoluto político .
Isso não apenas consistiria em lançar-se na “ abstração m etafí­
sica” ,do racionalism o revolucionário já denunciado por Burkê
e Rehberg215, como seria cometer, confiando num princípio
verdadeiro, um erro de julgam ento. Rousseau enganou-se, por­
tanto, a ponto de propor “um m anual de despotismo” . Com o
“ nenhuma autoridade sobre a terra é ilim itad a”216, é im portante
circunscrever a soberania do povo. Esse não é o m otivo de um a
guerra ideológica, mas o ponto crucial de um a questão jurídica.
Segundo B. Constant, em quem se v iu “ o corifeu do liberalis­
m o” , a jurisdição da soberania, ainda que a soberania do povo
como é reconhecida quase unanim em ente daí em diante, deve
deter-se onde começam a independência e a existência in d iv i­
duais. Para superar a antinom ia entre a lei, expressão dà vontade
geral soberana, e a liberdade, exigência do ind ivíd uo, Constant
considera que cabe ao poder organizar o Poder a fim de prote­
ger as liberdades: essa é a regra da “ m onarquia constitucional” .
A lguns anos m ais tarde, Édouard Laboulaye, na qualidade
de ju ris ta atento e m eticuloso, especificará como operar a dis­
tribuição das competências e dos encargos no dispositivo ju r í­
dico de um Estado a fim de que o princípio da soberania do
povo não se deteriore num dogma fatal para as liberdades. Se
ele teme politicam ente o Estado autoritário, centralizador e in ­
tervencionista, do qual o jacobinism o, apoiando-se na onipo­
tência da soberania do povo, deu u m exem plo com o governo
do ano II, deplora sobretudo, filosoficam ente, que a França se
tenha abandonado às utopias, a “ um a m iscelânea de teorias e
de sistemas” 217 que é a “praga das revoluções” . E, d iz ele, um a
doutrina insensata de fato a da “ escola revolucionária ou fta n -

215. C f. in fra , pp. 371 e 376.


216. B . Constant, Principes de p o litiq u e, p. 1075.
217. Édouard Laboulaye, Considérations sur la C onstitution, 1848, in
Questions constitutionnelles, Paris, 1872, reedição Caen, 1993, p. 11.
190 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cesa”218 que confere à Assembléia, supostamente representante


do povo soberano, um a competência ilim itad a: num otim ismo
ju ríd ico acompanhado de pretensões m oralizadoras, sua espe­
rança salvadora da liberdade prepara na realidade o despotis­
m o. Laboulaye aprova H egel quando denuncia na Revolução
Francesa o conluio da “ visão m oral do m undo” com o Terror.
Com o Constant e como Tocqueville, ele sublinha em que o
dogma da soberania do povo acarreta a degradação da liberda­
de absoluta num despotism o da liberdade. Com o o autor de
A democracia na Am érica, ele gosta de comparar a marcha das
coisas políticas nos Estados U nidos e na França. Ora, se, do
outro lado do A tlântico, a soberania do povo é o reflexo concre­
to do “ espírito público” , na França ela se confunde com a idéia
abstrata e m etafísica da autonom ia da vontade. Por conseguinte,
sua transparência e suá eficiência são ilusórias, pois seu con­
ceito fervilh a de paralogismos especulativos do hum anism o
abstrato. E m conseqüência, sob a pressão da opinião pública219,
ela prepara, ao mesmo tempo que a m assificação de um a turba
ávida da “ igualação das condições” , o “novo despotismo” que o
Estado tutelar deverá assumir. A soberania do povo, diz Tocque­
v ille , “ não deve sair dos lim ites da ju stiça e da razão” 220. L a ­
boulaye está de pleno acordo com Tocqueville e, m ais categó­
rico até do que ele, pensa que o direito m oderno é d ivid id o pela
antinom ia entre o autoritarism o estatal e o individualism o lib e ­
ral. A proxim a-se tam bém de Tocqueville ao pensar que a R e­
volução Francesa dá seguimento ao A n tig o Regim e por causa
do sofism a insensato que ela contém: a idéia da soberánia do
povo constitui na realidade, tanto quanto a idéia da soberania
do rei, o obstáculo do centralism o estatal moderno. N o m undo
dos homens, a soberania, de m aneira nenhuma, pode ser abso­
luta. “N ão existe aqui na. terra poder superior à ju stiça e à ra-

218. Ib id ., pp. iv -v i.
219. Lem brem o-nos de que Roederer escrevera em 1797a m a Théorie
de l ’opinion publique e que esta se tom ara u m parâmetro da reflexão filo s ó fi­
ca sobre o direito e a política.
220. Tocqueville, D e la démocratie en Am érique, vo l. H , cap. V H , p. 262.
P R IM E IR A PARTE 191

zão [,..]. A soberania do povo é puramente p o lític a e, por con­


seguinte, lim itad a p o r sua natureza e por seu objeto.”221 Labou-
laye considera que não se poderia, ademais, pretender um a so­
berania popular que se exerça diretamente, como se dava outro-
ra em Atenas: seu exercício im p lica um sistema representativo.
M as, nesse ponto, “ o erro revolucionário” é pensar que o corpo
de representantes pode, ele também , ser soberano. Isso é con­
fu n d ir a posse da soberania e seu exercício: “ Puro sofism a para
quem se dá ao trabalho de compreender que o povo não tem ne­
cessidade algum a de delegar sua soberania, mas que pode con­
fia r a seus mandatários um podèr lim itad o, um mandato clara­
m ente d efinid o ” ; então, os deputados não são soberanos, “ são
encarregados de ordenar os m aiores interesses do país” 222. L a ­
boulaye, como G . de H um bold no seu E nsaio sobre os lim ites
da ação do Estado, pensa que o Estado deve encontrar o campo
de suas ações especificam ente políticas entre o racionalism o
absoluto que rege tudo na uniform idade adm inistrativa e o em ­
pirism o de um laissez-faire, no fin a l das contas, preguiçoso. É
por isso que a “ República constitucional” , cujas linhas progra­
máticas ele traça em m aio de 1871, logo depois da Com una, no
m om ento em que a jo vem I I I República tem necessidade de
sossego e serenidade, insiste na im portância que a lim itação da
soberania do povo tem para a liberdade dos cidadãos: “A nação
só é livre ” , escreve ele, “ quando os deputados têm um freio.” 223
A ssim , a paixão pela unidade, em que Locke diagnosticava
a “ doença francesa” , mostra-se cada vez m ais claramente co­
m o devendo ser combatida graças a um programa constitucio­
n a l orgânico e pluralista que atenda - M ontesquieu assim o ti-

221. E . Laboulaye, D e la souveraineté (esse opúsculo, publicado no


Journal de Lyon de m aio de 1872, n°.sl l e 12, é retomado em Questions cons­
titutionnelles, ed. citada, pp. 409-21; a passagem citada se encontra na p. 412.
A in d a qüe se trate de um texto de circunstância (debates da A ssem bléia sobre
o Conselho de Estado), ele ultrapassa a sim ples conjectura e eleva o debate ao
n ív e l de conceito.
222. Ib id ., p. 417.
223. E . Laboulaye, La République constitutionnelle, in Questions cons-
titutionnelles (pp. 307-29), p. 318.
192 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

nha compreendido - à necessidade de um equilíbrio dos pode­


res. Essa questão de técnica ju ríd ic a própria do direito p o lítico
é rica de um profundo significado filo só fico. Os protagonistas do
debate entre soberania absoluta e soberania lim itada se apro­
xim am , sem ter sempre consciência, do pensamento criticista
de Kant. Insistindo na finitude do hom em e na relatividade de
suas construções necessariamente encerradas dentro dos lim ites
intransponíveis de sua razão prática, K ant evidenciara o perigo
que existe em se conferir um valor objetivo às Idéias da razão.
D e fato, elas só podem servir, explicava ele, como princípios
reguladores para nosso entendim ento construtor224. H á portan­
to lim ites, cujo sentido é ao mesmo tempo quantitativo e q uali­
tativo, que nenhuma obra hum ana é capaz de transpor. O que,
aliás, constitui a peculiaridade - e a grandeza - do hom em é
conhecer essa lim itação. D o m esmo m odo, na ocasião em que
ficam abaladas as certezas dos dogmas racionalistas, a aborda­
gem “ crítica” da soberania republicana dá in íc io , em política,
ao declínio dos absolutos, que se fa z sentir paralelam ente em
outras áreas do saber e da prática. Por conseguinte, in sistir na
necessária lim itação da soberania legisladora é refutar o caráter
“ abstrato e m etafísico” que o rqcionalism o dogmático, na sua
aspiração universalista, lhe havia atribuído. É também, p o r v ia
de consequência, mostrar que o Estado racional não resiste às
razões nem sempre racionalizáveis que fazem o poder sobera­
no do povo e exacerbam as suas vontades. E sobretudo indicar
que a soberania do povo só pode corresponder, no direito p o lí­
tico, a um a idéia reguladora e não a um princípio constitutivo.

B ) M onism o ou pluralism o do poder soberano?

U m segundo dilem a ronda os debates relativos à idéia de


soberania: o da form a, unitária ou pluralista, que elâ deve assu­
m ir no Estado. Sua concepção se revela nesse caso m uito d iv i­
dida, num contexto fortemente impregnado de ideologia, entre
as teorias m onista e pluralista do Poder.

2 2 4 . K a n t, C ritique de la raison pure, P lé ia d e , 1 .1 , p . 1 2 4 7 ; A K , I I I , 4 2 7 .


P R IM EIR A PARTE 193

Se, como vim os ao retraçar as vicissitudes de seu conceito,


a soberania no Estado é fundamentalm ente um a idéia p o lític a
cujo cadinho ideológico fo i pouco a pouco m odelado pelo ra-
cionalism o, m uito depressa fic o u evidente que ela tem necessi­
dade, para se firm ar, de se inserir num a fo rm a ju ríd ic a que lhe
d efine as estruturas e lhe confira efetividade. Ora, a ju ris d ic i-
zação da soberania suscita um problem a de fundo que, também
aí, tem notável ressonância filo só fic a . A fim de apreender sua
tonalidade e significado, não se deve perder de vista que, em
razão do esquema contratualista que a sustenta, a id éia de sobe­
rania do povo, na sua form ulação clássica, se caracterizava por
sua unidade e por sua in divisibilidade. M as a elaboração e o
ajuste dos âm bitos juríd ico s necessários para engastar a idéia
de soberania na realidade p o lítica tendem a indicar a rejeição
do m onism o político para que possa prevalecer a expressão p lu ­
ralista da opinião pública. A ssim está de volta, no âmago dp
debate ju ríd ic o -p o lític o moderno, o velho problem a filo só fic o
do U no e do M ú ltip lo que sempre ressurge sob feições diver­
sas. N ão se trata, nessa ressurgência obstipada, do im obilism o
do pensamento: no direito p o lítico m oderno, o debate assume
o p e rfil específico e altamente problem ático da relação entre a
democracia e o parlamentarismo.
Tocqueville, que considerava a concentração do Poder “um a
m áquina perigosa”225, extraía desse julgam ento o im perativo
prático do direito político : para atenuar os perigos da m onocra-
cia, deve-se evitar “ a concentração no poder legislativo de to­
dos os outros poderes de governo” 226. Portanto, im porta em
prim eiro lugar, segundo ele, elaborar as estruturas jurídicas de
u m sistema não m onocrático que constitua um obstáculo à
“ tirania da m aioria” , que traz o risco de engendrar “ o dogma da
soberania do povo” . À organização constitucional dos poderes
exige que a unidade da soberania vá de par com a especializa­
ção dos órgãos estatais e com a divisão e a distribuição de seu
exercício: o bicam erism o para o poder legislativo, um presi-

225. Tocqueville, Voyages en S icile etaux États-U nis, t V , voL I, p. 178.


226. Tocqueville, D e la dém ocratie en Am érique, 1.1, v o l. 1, p. 158.
194 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

dente (isto é, um executivo) acima dos partidos, a independên­


cia do poder dos ju ízes im pedirão, sem m u tilá -la , que a sobera­
nia se transform e num a força de opressão227. A lé m do fator de
equilíb rio e de ponderação que deve residir na organização
constitucional, a soberania do povo devedar espaço, considera
Tocqueville, à pluralidade dos partidos, à vid a das comunas, às
associações, às “ organizações voluntárias” .
A história do direito público, a partir de meados do século
X I X , deu razãò a Tocqueville. A teoria ju ríd ic a dom inante im ­
pôs a idéia do que ele chamava de um a “ república parlam en­
tar” : não apenas no sentido de que se trata de um regime carac­
terizado pela responsabilidade do governo perante o Parlamento
e por um executivo bicéfalo, mas, além disso, como um regime
constitucional em cuja lógica a mediação representativa, ligada
ao pluralism o dos partidos e das opiniões, articula, no jo g o po­
lítico, a soberania e a cidadania. Quanto à doutrina positivista que
se desenvolve paralelam ente, ela fa z da organização constitu­
cional dos poderes da R epública parlam entar um de seus pon­
tos fortes. E m conform idade com a idéia de Selbsverpflichtung
ou de Selbsbindung apresentada por vo n Jhering e por G . Jel-
linek, R . Carré de M alberg sublinha vigorosam ente que a sobe­
rania deve expressar-se num âm bito ju ríd ic o em que a au to li-
m itação do Poder form a um díptico com o reconhecimento da
autoridade constitucional228. Nesse aspecto form al e processual,
a soberania legisladora se expressa segundo “ a competência de
sua competência” . Com o d iz C. Schm itt, um a jürisdicização
constitucional da soberania corresponde à “recusa da idéia de
que a plenitude do poder do Estado tenha o direito de se reunir
num só ponto”229. O esquema m onista do racionalism o ju ríd ico
revela assim seu erro: a idéia m oderna da soberania do povo
que o “ Ilu m in ism o p o lítico ” concebeu em termos m etafísicos -

227: Ib id ., 1 .1, vo l. 1, p. 103.


228. R aym ond Carré de M alberg, C ontribution à la théorie générale de
l ’É tat (1922), reedição C N R S, 1 9 6 2 ,1.1, pp. 232 e 241.
229. C . Schm itt, Parlem entarism e et dém ocratie (1923), trad. fr., Seuil,
19 88,p. 46.
P R IM EIR A PARTE 195

pressupõe que o Estado seja pensado com o um a pessoa jurídica


ou um sujeito de direito230, concepção que se parece m uito, ob­
serva C . Schm itt, com um “resíduo” do absolutism o principes­
co de outrora231.
A o contrário, o pluralism o p o lítico oferece um a dupla ga­
rantia. É claro que, de u m lado, as leis ordinárias, subordinadas
num regim e pluralista, como aliás num regim e m onista, à le i
constitucional, devem ser-lhe conform es (notem os, de passa­
gem, que esse princípio de constitucionalidade, que sig n ifica a
prim azia da Constituição, é característico da concepção france­
sa tradicional e que encontrou um a garantia adicional na cria­
ção, em 1958, do Conselho C onstitucional que, encarregado do
controle de conform idade constitucional das leis, pode, dentro
de certos lim ites, invalidar aquela dentre elas que, precisamente,
não estivesse conform e com o dispositivo constitucional). D o
outro lado e sobretudo, o Parlam ento, ao exercer sua função
legisladora, abre a democracia para o m undo real e para as con­
dições em píricas efetivas dos países onde se desenvolvem a in ­
dústria e a técnica; é necessário, consideram os defensores do
pluralism o, ter em conta, p o lítica e juridicam ente, grupos eco­
nôm icos, forças sociais, reivindicações sindicais.
Está claro que um a concepção pluralista desse tipo encon­
tra sua força na sua inspiração polêm ica, que não está isenta de
considerações de ética política: desde o princípio, ela im p lica a
recusa do m onism o p o lítico e do form alism o ju ríd ic o que o
acompanha; im plica correlativam ente a rejeição da filo s o fia
dogmática que o embasa e que ela considera teórica, abstrata e

230. N a trilh a das idéias de Rousseau, a Genossenschaftstheorie (teoria


das “ corporações” ou das “ comunidades”) de que G ierke fo i o cabeça e a teo­
ria da “ personalidade ju ríd ic a ” do Estado, sustentada na França por Saleilles
e H auriou no começo do século X X , destacaram a unidade ju ríd ic a do Estado
em que, pela m ediação de diferentes órgãos, se expressa a vontade organizada
da com unidade, N a m edida em que “parece ter um a única vontade” , o Estado
é portanto u m sujeito capaz de querer e de agir: u m sujeito de poderes e de
direitos.
231. C . Schm itt, La notion du p olitiq u e, ttad. fr., C alm ann-Lévy, 1972,
p. 81.
196 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

desencarnada. M ontesquieu pressentira o significado filo s ó fi­


co do pluralism o quando sublinhava a im portância sociopolítica
dos partidos232. A lucidez de M aurice H auriou é, a esse respeito,
m uito reveladora quando ele considera que o advento do parla­
m entarism o marca a “ era da discussão” 233 e invoca o princípio
da responsabilidade. M ais perto de nós, os posicionamentos de
Raym ond A ron em favor dos “regimes constitucionais-plura­
listas” veiculam a antítese ideal-típica de todos os regimes de
form a m onopolística, inevitavelm ente repletos, sejam eles con­
duzidos por um a ideologia de esquerda oü de direita, das v ir­
tualidades deletérias do fenôm eno totalitário234.
A controvérsia na qual a tese do pluralism o ju ríd ic o se
opõe às teorias m onistas do Pòder se desenvolveu, como era

232. M ontesquieu, L ’esprit des lo is, liv . X IX , cap. X X V II.


233. M . H auriou, Précis de d ro it constitutionnel, 1923, pp. 198 e 201. ;
234. É claro que, quando R . A ron, em Dém ocratie et totalitarism e,
G allim ard, 1965, tràta do problem a dos regim es constitucionais-pluralistas,
pensa m uito especialmente no enffentam ento, na história p o lític a de meados
do século X X , entre o bloco soviético e o bloco ocidental e, corhó M erleau-
P onty, vê no terror o efeito da própria ideologia. É na ideologia do Partido
Com unista que ele vê, na U RSS da época, o regim e m onopolístico por exce­
lência. E le sabe, como H . Aréndt, que, na A lem anha hitlerista e na R ússia b o l-
chevista, lidam os com o m esirio fenôm eno totalitário, destruidor da liberdade.
Q ualquer que seja a form a ássum ida pelo “terror” , o im portante é fechar iiis -
titucionahnente o cam inho ;ao m onopólio do partido, à estatização da vida
econôm ica e à pressão ideológica (ao “terrorism o intelectual” ). É por isso que
R . A ro n p le iteia um liberalism o cujo critério perem ptório é o pluralism o dos
partidos, portanto, das idéias (cf. p. 75). Nesse quadro, o respeito da leg ali­
dade é o único princíp io filosoficam ente constitutivo da liberdade. Por essa
razão, é o princíp io ju ríd ic o e constitucional de u m regim e pluralista liberal.
Q uando va i de par com o senso do compromisso - com a condição de que este
r io resulte nò com prom etim ento — a p o lític a pode ser sábia e eficaz, com o se
adaptasse ão m undo atual a antiga phronêsis e a moderação cara a M ontesquieu.
G om o tal, o regim e constitucional-pluralista é um regim e ideál-típico que, ém
túdo oposto à tendência m ohopolístiea, centralizadora, unitária e redutora,
portanto virtualm ente totalitária, da p o lític a moderna, dá espaço às diferen­
ças, à concorrência pacífica, a equilíbrios incessantemente revisáveis e no qual,
por conseguinte, as liberdades não são postas em perigo pela autoridade estatal.
A respeito dessas questões, remetemos a La p olitiq ue historique de Ray­
mond Aron, Cahiers de philosophie p olitiq u e etju rid iq ue, n? X V , Caen, 1989.
PR IM EIR A PARTE 197

inevitável, contra um pano de fundo ideológico. M as ela fez


pesar um a suspeita m uito forte sobre a racionalidade ju ríd ica
do p o lítico , e a filo s o fia contemporânea que se indaga sobre o
direito público fic o u m uito fortem ente marcada por ela.
Para o pensamento contemporâneo, o debate sobre a m a­
neira pela qual a idéia de soberania do povo pode (ou deve) se
inserir nas form as jurídicas do p o lítico parece ser um episódio,
entre outros, da antítese que opõe a retórica argumentativa em
que se aloja a “ ética da discussão” (D iskursethik) às form as de
um a “ racionalidade técnico-instrum ental” que recorre, de m a­
neira brutal, à “ decisão” . Esse debate, em suma relativo às im ­
plicações políticas da ética da discussão, teve seu desenvolvi­
m ento, a partir dos anos 1970, com os autores da Escola de
Frankfurt como K . O. A p el e J. Habermas235; mesmo que tenha
o m érito de chamar a atenção para as pressuposições que atre­
lam a política ao “ espaço público” e à idéia de “comunicação”23®,
ele tem atualmente a preferência de um a certa moda intelec­
tual, incontestavelmente partidária. D e qualquer m odo, esse de­
bate extravasa o âm bito de nossa exposição. Parece-nos não
obstante sintom ático que, para além do direito p o lítico próprio
do período “ m oderno” , a filo s o fia , aperfeiçoando o conceito
da soberania estatal - cuja economia é im possível fazer, mesmo,
como veremos na terceira parte deste estudo, no plano interna­
cional em que a idéia de “ federação” hoje se im põe na Europa,
até em escala m undial - , seja levada a reconhecer os fermentos
polêm icos de que ele é portador e a levar em conta, na prática,
os potenciais de descentralização e de mutação, que estes im põem
à experiência política. A idéia segundo a qual Habermas se
refere à norm atividade que é im anente a todos os procedim en-

235. Pensamos aqui especialmente em K . O. A pel, D iskurs und Ve­


rantwortung, Frankfurt, 1988, e Zur Anwendung der D iskursethik in P o litik ,
Frankfurt, 1992, bem com o e m j. Habermas, F a ktizitä t und Geltung, Beiträge
zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats, Frankfurt,
1992; trad. ft. sob o títu lo D ro it et Dém ocratie. Entre fa its et normes, G a l­
lim ard, 1997.
236. C f. J. Habermas, M orale et com m unication, trad. fr., L e Cerf,
19 86,p. 105.
198 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tos práticos da comunicação e da discussão tende a “ abrir as


perspectivas dos participantes para o horizonte pragm ático de
nossos ideais políticos” 237.
Tudo se passa portanto comõ se, progressivamente, as cri­
ses sucessivas qüe sacudiram o conceito-pilòto de soberania
tivessem orientado a reflexão jurídico-política de tal maneira que
ela se esforça, m uito particularm ente em nosso fin a l de século,
em compensar “ a falta de sentido concreto” que o hum anism o
racionalista da época m oderna lhe havia in flig id o . O erro aqui
seria concluir pelo triunfo p róxim o de vuna R eàlpolitik. Vê-se
m uito m ais desenhar-se um a dialética entre um a racionalidade
calculista e um a racionalidade “ com unicacional” , como se os
procedimentos estratégicos do racionalism o m oderno deves­
sem ser m ediatizados, para atender a um hum anism o verdadei­
ramente hum ano, pelas regulações reclamadas, na “ discussão” ,
pelas razões da opinião pública. T al como observa J. Haber-
mas, o procedim ento democrático de deliberação e de tom ada
de decisão parece dever assegurar daqui para a frente a “valida­
de interna” dp direito p o lítico no qual a doutrina até então p ri­
vilegiara a “viabilidade externa” , isto é, o poder organizador e
sancionador. A s crises da noção de soberania levaram a filo s o ­
fia po lítica a criar o m odelo ju ríd ic o das democracias contem ­
porâneas segundo úm esquema deliberativo e processual que ò
racionalism o da época m oderna não im aginara.

Se a soberania do Estado parecia, na aurora dos tempos


modernos, ser “ a racionalização da explicação m ágica do Po­
der” 238, isto é, ó fruto de um a conduta segura de si mesm a e que
inspirava segurança, a dinâm ica da história po lítica decidiu sua
sorte de um a m aneira menos serena. N a vid a p o lítica dos Es­
tados m odernos, o m ovim ento tende a superar a ordem. H isto ­
ricamente, essa mutação emancipadora que suprime as m oda­
lidades totalitárias ou paternalistas do Poder é, de m odo geral,

237. Jean-Marc Ferry, Philosophie de la com munication, t. 2: Justice


p o litiq u e et dém ocratie procédurale, L e C erf, 1994, p. 119.
238. Georges Burdeau, L ’É tat, S euil, 1970, p. 75.
P R IM EIR A PARTE 199

apresentada como um progresso. Politicam ente, é reivindicada


pelas ideologias que se proclam am tam bém elas progressistas.
Consideradas filosoficam ente, a emergência dá soberania esta­
tal e as transformações endógenas que ela ocasionou no m o vi­
m ento das idéias extraordinariamente denso que atravessou
três séculos de história são, no m undo ocidental, sinais do ama­
durecimento da consciência política.
A s prim eiras teorias da soberania expressavam a necessi­
dade de ordem unitária de que o poder p o lític o encarnado pela
realeza tinha necessidade para se afirm ar diante dos ataques
conjugados do papado e dos senhores feudais; sim bolizada pela
Coroa real, a soberania tinha a perfeição do círculo. Para a
autoridade suprema do Poder que se exercia sobre os súditos do
rei, o Estado era um a instituição centralizadora na qual a legis­
lação e a administração im punham , do alto, suas restrições. A
célebre frase Assim quer o réi, assim quer a le i bastava para
indicar sua natureza. Que o absolutismo estivesse baseâdo, como
pensava Richelieu, num racionalism o construtor, ou, como p e n -.
sou Bossuet, num voluntarismo marcado pelos desígnios de Deus,
ele obedecia à preocupação constante de ordem e de unidade.
O argumento de autoridade - às vezes, é verdade, temperado por
um argumento de utilidade - era a chave da obediência dos sú­
ditos. Isso certamente não autoriza a falar sem precauções nem
m atizes do Estado e de seus “ escravos” , pois fo i no ceme da m o­
narquia “ do antigo regime” que se preparou, no ritm o da evolu­
ção do pensamento, a metamorfose dá idéia de soberania cuja
consagração a po lítica e o direito iria m inserir na H istória.
Preparada de longa datà por contestações e revoltas, a idéia
da soberania do povo form ou, no século X V III, um díptico com
a idéia da soberania dos reis. O term o “povo” , por um a trans­
form ação semântica que o fe z recobrar certos acentos da rom a-
nidade, já não designa o “ grande populacho” de que falava L a
Boétie, nem mesmo a “ ralé” às vezes evocada por Montesqüieu:
o term o “povo” se reporta ao “ corpo p o lític o ” - Hobbes o com ­
preendera antes de Rousseau - , isto é, o conjunto dos cidadãos,
sendo cada um dos quais reconhecido como portador de dig n i­
dade política. É verdade que Sieyès e.Kant, contra qualquer ex-
200 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

pectativa, aceitarão a distinção entre “ cidadãos ativos” e “ ci­


dadãos passivos” ; porém, no racionalism ó do Ilu m in ism o , cida­
dania e soberania vão indiscutivelm ente de par. O atestado de
m aioridade obtido assim pela consciência p o lítica é acompa­
nhado dos ímpetos de liberdade que percorrem todo o século
X V III. M ais profunda do que a necessidade de tolerância, do
que a aspiração à felicidade ou do que as intenções fila n tró p i­
cas, a preocupação com a liberdade é onipresente - ainda que
assuma, de Locke a M ontesquieu, a Rousseau e a Kant, in fle ­
xões diferentes. A idéia da soberania do povo tende então a
m od ificar as perspectivas juríd ico-políticas: o poder, daí em
diante, vem “ de b aixo” , se apóia no pluralism o .da opinião, ex­
pressada por um a imprensa Cada vez m ais abundante; e, sobre­
tudo, os programas de governo respondem não apenas aos re­
quisitos de segurança e de liberdade do ind ivíduo, mas tam bém
às exigências dos “ direitos do hom em e do cidadão” . N ão é um
sinal eloquente P ufendorf ter publicado em 1673 o Deveres do
homem e do cidadão, M a lb y ter lançado em 1758 o D os direitos
e dos deveres do cidadão, e, em 26 de agosto de 1789, a D e ­
claração dos direitos do homem e do cidadão ter sido solene­
mente proclamada? A in d a que a filo s o fia do. século X V I I I
saiba, após M ontesquieu, distinguir a independência e a liber­
dade239, é do indivíd uo portador de direitos que ela faz o p rin ­
cípio e o fim do direito p o lítico . E m menos de dois séculos, o
hum anism o especificou-se num individualism o cujo vetor m ais
poderoso é a idéia de liberdade. Nesse clim a intelectual, a ra­
zão clássica, substancial e teórica, caracterizada fundam ental-
mente por sua capacidade construtora, fo i suplantada pela razão
prática que seu poder crítico pôs a serviço da liberdade. Esta,
desde então, deverá significar a autonom ia dos cidadãos: cabe
a eles dar a si mesmos o dispositivo legislativo que os regerá.
A s transformações por que passou a noção de soberania ao
longo dos conflitos e dos dilemas com que a confrontaram os três
séculos da M odernidade são, por conseguinte, o índice de um a
nova compreensão dos direitos políticos e, de modo mais am plo,

239. M ontesquieu, L ’esp rií des lo is , liv . X I, eap. I II , p. 395.


PR IM EIR A PARTE 201

daquilo que é hum ano. É claro que, desde Bodin, o Estado não
é pensado como “ um a República como idéia, sem efeito, tal
como im aginaram Platão e Thom as M ore, chanceler da In ­
glaterra”240. M as, se a soberania dá form a ju ríd ic a ao conjunto
das realidades concretas da “ coisa pública” e se a adm inistra­
ção, ao invocar leis, chegou a im por sua ordem e suas estruturas
em todos os campos do espaço público, a inversão que se ope­
rou da soberania do rei para a soberania do povo não é menos
característica da nova consciência que pouco apouco desper­
tou no hom em . N o fin a l do século X V III, o hom em do hum a­
nism o m oderno já não,se lim ita apenas, como o sujeito segun­
do Descartes, a dizer “ E u” . E le pretende ser, precisamente no
campo do direito p o lítico , nos lim ites mesmos da razão, o pro­
dutor de suas próprias normas e de suas leis. F o i nesta condi­
ção que, no Estado, portanto sob a inevitável coerção do direito,
o hom em traçou os cam inhos de sua liberdade: o caráter coer­
civo das Constituições e das leis, que em sua autonom ia ó ho­
m em dá a si mesmo, constitui um obstáculo a tudo que é um
obstáculo à liberdade.
A filo s o fia do direito p o lítico á partir dáí levou em conta
a emancipação do Poder do Estado, cuja form ulação hum anis­
ta nada m ais pede ao horizonte do cosm ologism o antigo ou do
teologism o m edieval; também levou em conta as transform a­
ções do conceito de soberania, que conota a capacidade legis­
ladora do povo ou de seus representantes. Esses temas se cer­
cam até de banalidade e, m uitas vezes, de M . Weber a E . Cas-
sirer e a L . Strauss, foram mencionados. É ainda necessário
especificar que, no espaço público em que, desde seu despertar
nos m ovim entos do século X V I, o hum anism o, que punha as
capacidades construtoras e norm ativas do hom em no centro de
sua própria esféra de atividade ju ríd ica, está longe de ter um
p e rfil sim ples e homogêneo. Seguramente, não se pode preten­
der que o hum anism o em que se inspira o direito p o lítico m o­
derno se caracterize como um a marcha contínua rum o à reali­
zação da liberdade e ao respeito dos direitos da pessoa humana.

2 4 0 . B o d in , Les S ix Livres de la République, 1 , 1.


202 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

M as como não adm itir que o corte, com tanta freqüência aber­
to entre esse horizonte de esperança e as realidades da expe­
riência política, tenha sido às vezes m uito cruel e nisso tenha
sido precisamente o aguilhão de seu próprio m ovim ento? C on­
tudo, não concluamos do fato para o direito: o procedim ento é
sofístico. M as saibamos reconhecer que o hum anism o ju ríd i­
co-político é, debaixo da idealidade de seu horizonte, o lugar
permanente de tensões e de conflitos que o dividem e, ao mesmo
tem po, o forçam a se rem odelar e a se transformar. F o i assim,
como vim os, que evoluiu a idéia de soberania como form a e
essência do Estado m oderno. F o i tam bém pelò jo g o de sua dia­
lética interna que, por exem plo, os conceitos de representação,
de parlamentarismo, de cidadania, ou ainda que a idéia dos d i­
reitos do hom em se m odificaram . Com o esses conceitos são,
em seu próprio fundo, polêm icos, o processo m etam órfico que
trabalha o direito p o lítico até em sua natureza ín tim a continua
e continuará sendo indefinidam ente sua obra. Portanto, assim co­
m o o esquema filo só fic o do hum anism o não pode ser fixad o em
formas definitivam ente desenhadas, assim também o direito po­
lític o moderno não pode decifrar-se em estruturas estabelecidas
de um a vez por todas. Tal como o hom em que chegou à consciên­
cia de si, o espaço do direito político, até nos conceitos-mestres
que o sustentam, é o palco de forças conflituosas, até mesmo
polemogêneas, cujo en frentamento provoca mudanças endóge­
nas contínuas. Certamente não se trata de decifrar nisso os ata­
ques de um a revolução permanente que sempre, faria tremer em
suas bases o ed ifício ju ríd ic o das repúblicas. M as o direito po­
lític o moderno se situa sob o signo de um reform ism o perpé­
tuo, cujo traço m ais característico é caber ao próprio direito m o­
d ific a r o direito. Nessa autoprodução das form as jurídicas da
ordem p o lítica, o hum anism o dos “ modernos” encontra m uito
provavelmente seu n ív e l m ais alto de expressão e o Estado é
então, segundo G . Burdeau, o topo de onde só se pode tom ar a
descer...
PR IM EIR A PARTE 203

N a segunda parte desta obra, seguiremos alguns dos cam i­


nhos ascendentes do reform ism o inerente ao direito p o lítico do
hum anism o m oderno, reservando para um a terceira parte a in ­
dagação sobre se o direito p olítico da época contemporânea não
está condenado a recorrer a princípios que o obrigam, com dema­
siada fteqüência, a tom ar a descer de seu topo. Por enquanto, im ­
porta delim itar as figuras do direito p o lítico moderno e buscar
nelas a epifania dos princípios filo só fic o s de ordem, de autori­
dade, de constitucionalidade, mas também de liberdade, de auto­
nomia, de responsabilidade, sobre os quais a razão h u m a n a , passo
a passo, a elaborou reduzindo-lhe as tensões imanentes.
SEGUNDA PARTE

As duas figuras do direito


político no Estado moderno

O direito p o lítico moderno tem a função de d irig ir o Poder


do Estado, exprim indo pelas leis a vontade geral que traduz a
soberania do povo; simultaneam ente, com pete-lhe prom over é
garantir as liberdades dos cidadãos. Através dessa dupla tarefa,
o direito p o lítico do Estado moderno realiza a síntese da ordem
e da liberdade. M as, assim como um a m edalha tem cara e co­
roa, o direito político, em sua unidade sintética, possui duas
figuras, conform e seja considerado em suas engrenagens in sti­
tucionais ou através da condição dos cidadãos. D e um p rim ei­
ro ponto de vista, o direito p o lítico m oderno que, em um a pirâ­
m ide de norm as, exprim e as m áxim as e as regras do governo,
apresenta-se como aquilo a que, por transposição do vocábulo
saxão leg al State, chamaremos o Estado D O direito. D o segun­
do pontò de vista, o direito p o lític o m oderno, pelas regras que
instaura, tom a possível, defíníndo-as e garantindo-as ju rid ic a ­
m ente, a coexistência das liberdades1; aprèsenta-se então como
aquilo a que, conform e um a term inologia m uitas vezes empre­
gada nos dias de hoje e calcada, desta vez, na língua alemã
(Rechtsstaat), chamaremos o Estado D E direito. É claro, o Esta­
do D O direito e o Estado D E direito não são dois Estados: são
as duas figuras sob as quais, na unidade fundam ental e in d iv i­
sível de seu Poder soberano, aparece o Estado moderno.

1. É n e c e s s á r io le n íb r a r m o s a q u i o q u e K a n t c h a m a d e “ a le i u n iv e r s a l
d o d ir e it o ” : “ A g e e x t e r io r m e n te d e t a l f o r m a q u e o liv r e u s o d e te u a r b ít r io
p o s s a c o e x is t ir c o m a lib e r d a d e d e c a d a u m . ” D octrine du d roit, In t r o d u c t io n ,
§ C , P lê ia d e , t. m , p . 4 7 9 ; A K , V I , 2 3 1 .
206 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Nessas duas figuras, diferentes mas evidentemente lig a­


das, o direito p o lítico não é sim plesmente um caso de técnica
ju ríd ica. N as estruturas institucionais que o sustentam e d e fi­
nem conjuntamente a ordem pública e a liberdade dos cidadãos,
dissimulam-se princípios filo só ficos por vezes claramente enun­
ciados, porém o m ais das vezes não form ulados. É preciso de­
cifrá-los. D e fato, seu significado é ainda m ais im portante por­
que revela o duplo aspecto do hum anism o, de que procede o
direito p o lítico dos Estados modernos: de um lado, o constru-
tivism o racional que perm ite a edificação do sistema do direito
objetivo; do outro, o liberalism o, que insere as liberdades na
própria ordem pública. Ora, para apreender esse significado, é
im portante, de um lado, escruto-, através das instituições e das
regras do direito estatal, os poderes práticos da razão hum ana e
seus lim ites e, do outro, aprofundar a questão sempre redun­
dante e continuamente renovada das relações entre a autoridade
dos corpos constituídos e a liberdade dos cidadãos. A ligação
sintética entre a legalidade e a liberdade esclarecerá ao mesmo
tempo, no seio do próprio universo ju ríd ic o , a delicada articu­
lação entre o direito e os direitos, que, m uito ffeqüentemente,
vêm obscurecer as considerações extrajurídicas.

Estudemos um a a um a as duas figuras que oferece à vista


o Estado moderno que se apresenta, de um lado, como o Es­
tado D O direito, expressão ju ríd ic a racional dos princípios de
legalidade e de legitim idade e, do outro, como o Estado D E direi­
to, síntese dos princípios de ordem e de liberdade.
C apítulo I
O Estado D O direito expressão dos ,
p rin c íp io s de legalidade e de legitim idade

A dm ite-se geralmente a idéia segundo a qual a p o lítica é


um a “ arte” ; em todo caso, era nesse sentido que M aquiavel, no
m om ento em que apenas despontava a aurora da modernidade,
considerava o governo do príncipe no seu jo vem Estado. F oi
igualm ente nesse sentido que, em meados do século X I X , o ju ­
rista Édouard Laboulaye considérava que “ a p o lítica é um a arte
feita de bom senso e de habilidade, não um a ciência à base de
cálculo racional” 1. E m tal concepção, a preocupação praxio ló -
gica comanda o pragm atismo do direito p o lítico ; a utilidade e
ô êxito da ação dos governos prevalecem sobre a coerência e a
estabilidade das instituições. É por isso que, segundo M aq u ia­
vel, no principado as situações-lim ite, que colocam o hom em
diante do m edo ou da m orte, fornecem ao príncipe a ocasião de
provar seu talento de chefe e de governador pela hábil dosagem
que fa z da astúcia inteligente e da força impressionante. Para o
secretário florentino, a arte p o lític a consiste em conciliar F or­
tuna e Virtú: pois Fortuna, como um a m ulher, tem caprichos
ou, como um rio, transbordamentos que, pela “perfídia unida ao
talento” , a Virtú do príncipe deve conter. Só com essa condição
a perenidade do Estado ficará assegurada. Algum as décadas
foram suficientes - pois já começava a aceleração da história
- para que B odin, m ais inclinado do que M aq uiavel a teorizar,
não se contentasse com um a visão praxiológica da política. O

1. Édouard Laboulaye, Questions constitutionnelles, Considérations


sur la C onstitution (1848), Paris, Charpentier, 1872, reed. Caen, 1993, p. 37,
n?2.
208 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

M ethodus e A República delinearam com traços seguros ò per­


f i l do “ governo reto” da R espublica, liste, longe de exprim ir a
lib id o dom inandi de um príncipe ou de um chefe, tem para o
Estado um a função unificadora e estabilizadora. N ele as nor­
mas jurídicas constituem, segundo a expressão de G. dei Vecchio,
“ a coluna vertebral do corpo social”2. Portanto, existe necessa­
riamente no Estado, segundo Bodin, um fenômeno de institucio­
nalização que é o corolário da idéia de governo. O tempo passou
e M a x W eber também poderia ressaltar que o Poder no Estado é
a instância que detém o m onopólio do recurso à violência le g í­
tim a; e, para que seja assim, é preciso que esse m onopólio, cuja
coerência intrínseca é um a das prim eiras exigências, seja orga­
nizado por m eio de instituições governamentais.
E m um sentido, pode-se sustentar que a idéia de um a coer­
ção p o lítico-institucional atravessou os séculos, pois já Platão
e Aristóteles se interrogavam sobre as p o lite ia i, que compreen­
diam como as estruturas arquitetônicas da Polis. M as, em outro
sentido, convém notar que, com B odin, a temática institucional
se inseriu de maneira forte e d efinitiva no pensamento do direito
político. N ão poderia ser de outro m odo: ó rei da antiga França
confiava funções de administração e de jurisdição a “ o fic ia is”
e magistrados, cuja função era a expressão dq poder m onárqui­
co. Desde então, os sistemás de Hobbes e de Loçke, as refle­
xões de M ontesquieu sobre a Constituição da Inglaterra, a aná­
lise que Rousseau dá do governo, o estudo kantiano das estru­
turas do direito político do Estado, a filo s o fia do direito de
H egel e depois, m ais próxim as de nós, as obras de H . Kelsen e
de C. Schm itt, a meditação de L . Strauss sobre “ a Cidade e o
hóm em ” , os ju ízo s de H . Arendt sobre o totalitarism o etc., são
outros tantos exemplos de obras filo só ficas que se detiveram,
com m aior ou menor insistência, na natureza, na distribuição e
na função das instituições que form am necessariamente a ar­
quitetônica do Estado. Q ue tal problem a não possa ser eludido
pela reflexão filo só fic a m oderna indica, por si só, que a v ia po­
lític a não pode prescindir das estruturas jurídicas que, com o

2. Georges dei Vecchio, Philosophie du d roit, 1953, p, 279.


SEGUNDA PARTE 209

fito de fenom enalizar sua essência, constituem seu indispensá­


vel arcabouço e distribuem suas funções. A estática e a dinâmica
institucionais são parte integrante do direito p o lítico , de fo rm a
que, organizando: a vid a com um e pondo em m ovim ento, fa ­
zem -na escapar das incertezas e das arm adilhas de um a exis­
tência hum ana anárquica ou prpteiform e.
É portanto im portante mostrar - este é o m om ento dogmá­
tico ou antecrítico de um a teoria do Estado - que, por sua con­
figuração institucional, o Estado moderno é o Estado D O direi­
to. Para fazer isso, deveremos prim eiro submeter a idéia de
governo ao bisturi da análise. Se, de fato, pode parecer claro
que o governo seja incum bido, no Estado, de d e fin ir e estabe­
lecer a relação entre os governantes que m andam e os gover-
nàdos que obedecem, de form a que se possa com pará-lo com
um pastor que conduz seu rebanho3, a relação na qual o concei­
to de governo se cristaliza está longe de ser assim sim ples. É
inteiram ente insuficiente dizer que ela determ ina a organiza­
ção da comunidade estatal pelo Poder, m esm o que acrescente­
mos quç este tem o m onopólio da coerção legítim a. Esta con­
dição, seguramente necessária, é insuficiente, pois a organiza­
ção da comunidade estatal é p olim orfa: não só ela se encarna
em m últiplas instituições que pertencem a um processo aberto,
que um m ovim ento incessante corrige, m od ifica ou enriquece,
como também esse fenôm eno de institucionalização corres­
ponde a um princípio de organização que determina diversos
tipos de governo ou regimes políticos. .
É preciso apreender o significado e a im portância do p o li­
m orfism o ju ríd ic o -p o lític o dos Estados, m uitas vezes assinala­
do e descrito. Ora, no hum anism o invocado pela época m oder­
na, o grande problem a a que deve responder o direito p o lítico é
tom ar o sistema das regras e das norm as governamentais com ­
patível com os direitos e as liberdades dos cidadãos. M ontes-
quieu e Rousseau j á se haviam debruçado sobre esse problem a
- que L . Strauss q ualifica de “ fundam ental” já que, segundo
ele, as ameaças da tirania se levantam contra a própria origem

3 . J .-J . R o u s s e a u , Le contrat social, I , 2 , p . 3 5 3 .


210 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

da vid a política, na m edida em que a arte p o lític a sempre apre­


senta o risco de contrariar à natureza. Eles prepararam os hori­
zontes constitucionaliStás da hierarquia das normas, indispen­
sável para que, na unidade do Estado e do direito, o m odo de
produção da nòrm atividade ju ríd ic a seja o critério de determ i­
nação da liberdade, em que o hom em dos Tempos M odernos
situa o m ó b il süpremo da política. Veremos que, através do sig­
nificad o dè que se revestem ao mesmo tempo o m odo de gover­
no de um povo e a construção norm ativa das instituições que
ele se dá, encontra-se colocada e renovada a questão da le g iti­
m idade dos poderes estabelecidos.

1. Das m áxim as da “ arte de governar”


aos axiomas reguladores do governo

A inda que as filo so fia s designem correntemente a p o lítica


com o “ a arte de governar” , a noção de governo, m uitas vezes
expressa de m aneira m etafórica, práticamente não ensejou um
aclaramento conceituai4. Este, no entanto, é necessário, pois
cumpre distinguir a form a de governar e as regras diretrizes do
govém o. A s m áxim as da arte de governar sãò apenas um dis­
curso ou um escrito de ação; as regras de governo pertencem a
um a axiom ática na qual a aparelhagem intelectual é o sinal de
um a nova compreensão da condição humana.
Rétracemos os caminhos tomados pela lenta elucidação
conceituai da noção de governo.

A ) D a metáfora ao conceito

' A im agem do p ilo to em seu navio é sem dúvida algum a a


m elhor expressão m etafórica da idéia de governo. E la atraves-

4. Assinalem os no entanto a obra recente de M . Senellart, Les arts de


gouverner. D u régim e m édiéval au concept de gouvernement, Saragoça, 1995.
O estudo é m ais histórico do que conceituai.
SEGUNDA PARTE 211

sou os séculos. Aristóteles, cuja obra p o lític a não se lim ita a


um a análise conceituai abstrata, já a u tilizava para ilustrar a v i­
gilância dò hom em de Estado: sua “ arte” devia consistir não
somente em evitar, m ediante um a v ig ília constante, tudo o que
pusesse em risco a estabilidade da vid a da comunidade, mas
igualmente em d irig ir a. Polis para o bem comum. Com o o piloto
no seu navio, o hom em p o lítico conserva na Cidade um e q u ilí­
brio que, ameaçado pelas tempestades da história, nunca é atin­
gido de um a vez por todas. Diferentem ente de Platão, A ristó ­
teles pensava que o hom em p o lítico extrai sua arte de governar
menos da ciência (£ ja a /nj[i,T|) do que da prudência ((ppóvqoiç).
Quando aparecem os prim eiros sinais dos Tempos M odernos,
tam bém B od in evoca, já no prefácio dos Seis livros da Repú­
blica, o navio França, cujo lem e, em m eio aos golpes que lhe
in flig e tragicamente a história, é tão d ifíc il m anter reto5. E le
u tiliz a a bela m etáfora da N ave-República para d e fin ir a sobe­
rania em que se concentra a essência ou a form a do político:
“ D a mesma form a que o navio não é m ais do que m adeira sem
form a de nave, quando a quilha que sustenta Os lados, a proa, a
popa e o tom badilho são elim inados, assim também a repúbli­
ca sem potência soberana, que una todos os membros e partes
dela, bem como todas as fam ílias e colegiados em um corpo, já
não é república .” 6 M as a im agem evoca tam bém o governo da
“ república bem ordenada” que, mantendo reta a proa para o “justo

5. J. B odin, Les S ix Livres de la République, prefácio, a ij: “Pois enquan­


to ó n avio da nossa R epública tinha na popa o vento agradável, só se pensava
em fru ir u m repouso firm e e garantido, com todas as farsas, pantom im as e dis­
farces que podem ser im aginados pelos hom ens alucinados por todas as espé­
cies de prazer. M as, desde que a tempestade im petuosa passou a atorm entar o
n avio de nossa R epública com ta l violê ncia que o próprio capitão e os p ilotos
estão com o que cansados e extenuados por u m trabalho contínuo, é preciso
que os passageiros lhes dêem um a ajuda, aos que estão nas velas, aos que
estão nos cordames, aos que estão na âncora e, àqueles a quem faltar a força,
que dêem algum bom conselho ou que apresentem seus votos e orações
À quele que pode comandar os ventos e am ainar a tempestade, pois todos ju n ­
tos correm o m esmo perigo.”
6. Ib id ., I, II, p. 12.
212 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

harm ônico” , escapa aos desvios e às derivas. A arte do gover­


no requer portanto, como a do p iloto , um a atenção sem esm o-
recixrtento para as finalidades da p o lítica e um a vigilância cons­
tante para escapar das borrascas da história e das arm adilhas
que estão espalhadas em seu curso.
Também Descartes, apesar de pouco propenso a exam inar
as especificidades do direito p o lítico , às quais prefere a im en­
sidão e a variedade do “ grande liv ro do m undo” , não deixa de
salientar a virtude daquele que, para seu governo como para o
governo dos outros, é “ como um p ilo to no seu navio” : sua ati­
tude coincide com a razão bem conduzida - tamanha é aliás a
força do método cartesiano - e “ consiste mais em prática do que
em teoria” 7. Por isso, para os que governam não há pio r “pai­
xão da alma” do que a irresolução8: ela “ faz empregar em delibe­
rar o tempo que é necessário para agir” . Certamente,7a po lítica
- este campo da m oral que, d iz Descartes, está reservado áos
Soberanos9 - é, considera ele, inacessível à racionalização que
a filo s o fia requer. M as, como a arte do p ilo to no m ar bravio, a
arte do Soberano, sobretudo quando o país vacila - o que era
o caso da França no tempo de Descartes, quando R ichelieu lu ­
tava contra os complôs - , é p ed k a cada run que fiq u e em seu
posto, que cumpra sua função e não se introm eta nas tarefas ou
nas prerrogativas dos outros. Aqueles que governam o Estado,
com o aqueles que seguram o lem e de um navio, são, com assi­
duidade e tenacidade, homens de ordem ciosos de equilíb rio e
de unidade (ou, melhor, in im igos das form as anárquicas de um a
pluralidade desordenada).
Quando D ’Alem bert, levando em consideração, no D iscur­
so prelim inar da Encyclopédie, o rico significado das imagens
utilizadas pelo discurso p o lítico , trata do problem a do governo,
resum e-lhe o essencial com um traço sintético: assim como, diz

7. Descartes, Lettre à Mersenne de m ars 163 7, Éd. Adam -Tarm ery, t .1,
p. 349.
8. Descartes, Traité des passions, ed. citada, t. X I, p. 459.
9. Descartes, Lettre à Chanut du 20 novembre 1647, ed. citada, t. V ,
pp. 86-7.
SEGUNDA PARTE 213

ele em substância, o p ilo to navega para a lu z do faro l em m eio


aos escolhos, assim tam bém aqueles que governam o Estado
devem procurar a ordem pública e o bem comum, conjurando
as facções e distanciando-se das pretensões dos intelectuais re­
voltosos ou revolucionários. N o âmago da m odernidade do sé­
culo X V H I, a m etáfora do p ilo to no seu navio sim boliza, por­
tanto, para o governo um a po lítica do equilíbrio que é um a a xio -
lo g ia da ordem.
A sim bologia é forte. A arte do governo não poderia fia r
no acaso e recusa a im provisação; como a arte da navegação,
ela precisa de pontos de referência 10 e m esmo que, no m om en­
to do racionalism o triunfante, não seja resultado da pura razão,
exprim e-se contudo por um a estratégia que im p lica cálculo e
julgam ento. A im agem da navegação tem assim o m érito de
designar o princípio ordenador sem o qual a república ficaria
desprovida de centro ou de alma. Longe de ser um resíduo do
anim ism o antigo, ela sig n ifica ao contrário, com acentos m uito
“ modernos” , que, m esmo que se considere o hom em um “ ani­
m al político” , não há política natural. Governar é um a arte; como
toda arte, precisa de um projeto e de regras. D e fato, abandona­
dos a si próprios, os homens não sabem conduzir-se p o litica­
m ente: seguindo a espontaneidade natural, ficam à deriva e se
perdem; o desespero passa a ser o seu destino. O projeto da arte
de governar é o de orientar e guiar sua ação. A s instituições go­
vernamentais assumem essa função ê, balizando a retidão do
cam inho p o lítico com leis e regras de direito, contribuem , co­
m o dirá Kant, para restabelecer a m adeira nodosa e retorcida
com que a Natureza fez b hom em 11.
Evidentem ehte, a tarefa é im ensa - m ais d ifíc il, obvia­
m ente, do que a do navégador; este, mesmo na m ais forte das
borrascas, se confronta com os elementos da natureza; já os go­
vernos lid am com os homens, em quem, por causa da coexis-

10. C f. Platão, G órgias, 448 c; na M etaflsica, A ristóteles opõe a arte e o


acaso (techné e tyché), A , 1, 981 a 3-5.
11. Kánt, Idée d ’une histoire universelle du p o in t de vue cosm opoliti­
que, Sexta proposição. Pléiade, t. I l, p. 195; A K , V III, 23.
214 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tência entre as paixões e a liberdade, m oram oposições e para­


doxos. N ão é de surpreender que o governo dos homens e dos
povos, mesmo quando está à procura de um a ordem unificadora,
não possa encontrar sua definição num a visão ecumenista do
m undo hum ano: o m undo dos hom ens m uito raramente atinge
a calma grandiosa que, nos mares, sucede a arrebentação das
ondas. É por isso que o governo é um a arte que, devendo esfor-
çar-se, como qualquer arte, por ajustar os m eios com vistas a
um fim , Só o consegue segundo m odalidades plurais e diversi­
ficadas: nenhuma “v ia direta” se oferece, única e majestosa, à
arte de governar. A ssim , os filó so fo s da Antiguidade, e ainda
B odin, viram na arte do governo a im itação, por form as in s ti­
tucionais diversas, da ordem cósm ica ou divina. Os pensadores
modernos vêem nele m ais a expressão do desejo que o hom em
tem , usando de sua razão, de substituir Deus a fim de traçar no
seu próprio m undo as vias juríd icas de sua ação política. Só
que a disjunção que, no m undo m oderno, se m anifesta entre a
ordem do direito p o lítico e a ordem natural, dá azo, no aparelho
norm ativo que os homens ed ificam para seu próprio governo, a
um a dimensão conflituosa que explica que, “produção por l i ­
berdade” como o é toda a arte12, o governo é por excelência o
lugar de tensões que fazem dele o cadinho de um a renovação
interm inável. A ssim como o p ilo to em seu navio deve estar
atento à menor variação dos ventos e das correntezas para m an­
ter o rum o, assim também os homens que governam homens
devem saber que a rigidez e a im utabilidade de um a p o lítica
são os caminhos para seu fracasso e, em conseqüência, que é
indispensável, para governar, avaliar a pressão das circunstân­
cias. N enhum a arte de governar pode pretender ser perfeita;
tampouco governo algum possuirá um a form a d efinitiva . E m
m atéria de direito político, a idealidade e a intem poralidade não
são deste mundo. N o entanto, não há governo que não tenha um a
finalidade e um ideal; tampouco há algum que não aspire a per­
durar.

12. Kant, C ritique de la faculte deju g er, § 43. Pléiade, t. II, pp. 1078 ss.;
AK, V . 298 ss.
SEGUNDA PARTE 215

B ) D ificuldades da análise conceituai

A fim de m edir a com plexidade inerente à arte do gover­


no e, com o m esmo m ovim ento, apreender sua especificidade,
é necessário alçar-se da m etáfora ao conceito. Ora, é digno de
nota que raramente se tenha fe ito a análise conceituai do gover­
n o 13. O pensamento m oderno oferece, no entanto, um m aterial
a partir do qual esse estudo pode ser realizado.
Se consultarmos a Eneyclopédie de D iderot e D ’Alem bert,
representativa, no conjunto, da cultura do século X V III, cons­
tataremos que o cavaleiro de Jaucourt, encarregado de redigir o
verbete “ Governo” 14, define-o com o “ o m odo como a sobera­
n ia é exercida em cada Éstàdo” . N o artigo que dedica a essa no­
ção, indaga-se sobre suas origens e sobre suas form as, depois
exam ina as causas de sua dissolução. “ Não e im possível que” ,
escreve, “ considerando a natureza em si mesma, homens pos­
sam vive r sem nenhum governo público.” N o entanto, o fato é
raro. D e m aneira geral, òs governos públicos “parecem ter sido
form ados por deliberação, consulta e acordo” , a fim de fazer
frente às “ desordens que não teriam fim se [os homens] não
dessem a autoridade e o poder a algum ou alguns deles para de­
cidir todas as rixas” . Portanto, como dissera G rotius, o governo
é mesmo um “ estabelecimento humano” . Seja qual for sua form a,
“ o dever de quem fo r encarregado dele, de qualquer m aneira
que seja, é trabalhar para tom ar os súditos felizes, proporcio­
nando-lhes de um lado as comodidades da vida, a segurança e
a tranqüilidade e, do outro, todos os m eios que podem contri­
b u ir para suas virtudes. A le i soberana de todo bom governo é
o bem público: salus p o p uli, suprema lex est; também na d iv i­
são em que se está sobre as form as do governo, concorda-se

13. Assinalem os no entanto as páginas que B odin dedica, em Os seis li­


vros da República (1576), ao estudo das m agistraturas (remetemos ao nosso
estudo: “L e m agistrat de la R épublique selon B odin”, in Jean Bodin: nature,
histoire, droit et politique, P U F, 1996, pp. 115-48). C f. tb. Jean de S ilhon, Le
ministre d ’État avec le véritable usage de la politique moderne, 1631 e 1643.
14. Encyclopédie, art. “G overno” , cavaleiro de Jaucourt, t. X V .
216 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

com essa ú ltim a verdade com voz unânim e” . Sendo a finalidade


do governo assim afirm ada sem m uita originalidade, Jaucourt,
como numerosos filó so fo s e juristas, investiga sobre a “m elhor
form a de governo” e sobre as “ causas de sua dissolução” .
A análise, há que convir, é curta e certamente menos, es­
clarecedora do que a força sugestiva em butida na m etáfora clás­
sica do piloto em seu navio. É verdade que o verbete “Autoridade
po lítica” , que devemos à pena de D id ero t15, examinara a funda­
ção e os lim ites da autoridade dos governantes e contestara,
para grande cólera aos jesuítas e franciscanos, a teoria tradicio­
n al que arraigava o poder de governar na vontade divina. A lé m
disso, D iderot e seus colaboradores, nos outros artigos relati­
vos à política e ao direito civil: Cidade, Poder, Potência, Im pério,
Representantes, Soberanos etc., postulavam , sem análise nem
demonstração, que o governo dos homens cabe a um “príncipe
sábio” . A asserção era tão perem ptória que, a esse respeito, Jau­
court não tinha m uita coisa a dizer. Certamente, D iderot era
sufiçientem ente realista para não sonhar com um re i-filó s o fo
que insuflasse sua sabedoria em sua arte de conduzir os ho­
mens. Tam bém não deixava de ter desconfiança a respeito dos
déspotas esclarecidos de seu século que, no fin a l das contas -
á experiência o fará aprender à sua custa - são apesar de tudo
déspotas. D e qualquer form a, um a frase do verbete “ Cidadão” ,
de que ele mesmo é redator, é reveladora do seu estado de espí­
rito: “ U m governo em geral é como a vid a anim al: cada passo
da vid a é um passo para a morte.” É por isso que ele esperava
que o tempo das reform as, ao qual aspirava como m uitos dos
seus contemporâneos, e que, como eles, esperava que estivesse
p róxim o16, emendaria os governos tom ando-os m ais ciosos dos
povos e de suas liberdades. U m governo “ moderno” será aque­
le quê, como tudo o que se pauta pela m odernidade em marcha
e pela razão razoável que a traz, se afastará da tradição, corri­
girá ou rejeitará as regras antigas, tomadas pesadas por represen­
tações e hábitos ultrapassados. O governo deve trazer a marca

15. Ib id ., a rt “ Autoridade p o lítica” , D iderot, t . 1.


16. C f. D iderot, R éfutation d ’H elvétius, 1774.
SEGUNDA PARTE 217

do progresso, quer dizer, da m udança e da inovação, M as, nes­


se código retórico em que se refletem as aspirações do flu m i-
nism o, D iderot jam ais submeteu metodicam ente o conceito do
governo do Estado m oderno ao b isturi da análise.
D e fato, essa reserva obstinada é reveladora da indecisão
semântica que, em meados do século X V III, cerca ainda o ter­
m o governo, m al distinto, até m esm o não dissociado, dos ter­
mos Estado, Poder e Autoridade p o lític a . O verbete do D ic io ­
nário filo s ó fic o de Voltaire intitulado “Estados, Governos ” 17 é
revelador dessa variação léxica. Voltaire, como de hábito, m a­
nipula maravilhosamente o aforismo e a ironia, mas não procura
aprofundar a conceitualidade dos term os: “A té hoje ainda não
conheci” , escreve, “ alguém que não tenha governado algum
Estado. N ão fa lo dos Senhores M inistro s, que de fato gover­
nam , alguns pôr dois ou três anos, outros por seis meses, e ou­
tros ainda por seis semanas: falo de todos os outros homens
que, no jantar ou em seu escritório, fazem alarde do seu siste­
m a de governo, reform am os exércitos, a Igreja, a magistratura
e as finanças.” Se é verdade que, no dizer de seu biógrafo, D u -
vem et, “ o governo era para [Voltaire] um assunto habitual de
estudo è de meditação ” 18 - ele poderia ter, como D iderot, excla­
mado: “ Im pohham -m e o silêncio sobre a religião e o governo,
e hãò terei m áis nada que dizer” - , e m esm o que se im agine
que o m elhor governo seria o de Zad ig coroado, em nenhum a
época de sua carreira o m alicioso pensador disse, nem no
D ic io n á rio filo s ó fic o , nem nos Pensamentos sobre d governo,
nora. no Século de L u ís X IV ou prefaciando o A n ti-M a q u ia ve l
do jo vem Frederico II, o que é a arte de governar. A explicação
é Simples: na hõra êm que o pensamento p o lítico do Ü um inis-
m o pretende afirm ar sua m oderna criatividade rompendo com
os valores antigos, ele dá ao termo “ governo” um a extensão m u i­
to larga, êm que dá a conotação do conjunto das instituições
estatais caracterizadas por sua finalidade orientada para o salus

17. O D icionário filo só fic o de V o lta ire fo i lançado em 1764. O verbete


“Estados, Governos” fora redigido em cerca de 1757.
18. D uvem et, La vie de Voltaire, Genebra, 1786, p . 19.
218 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

p o p u li. A bem dizer, essa acepção contém m uito pouca novida­


de; adquire até um a ressonância m uito tradicional, caso se quei­
ra notar que ela não se refere absolutamente ao órgão executi­
vo constituído hoje, no direito p o lítico francês, pelo chefe de
Estado, pelo prim eiro-m inistro e sua equipe m inisterial. Certa­
mente, como veremos m ais adiante exam inando as form as de
governos e Os requisitos aos quais obedecem19, essa indistinção
será varrida, à margem da corrente do Ilu m in ism o , do ponto de
vista ju ríd ico por M ontesquieu e, de m aneira m âis filo só fic a ,
por Rousseau; depois a Revolução Francesa consagrará o sen­
tido novo e específico da idéia de “ governo” . A verdade é que
a m aioria dos pensadores do Ilu m in ism o não sabe distinguir,
na acepção do term o “ governo” , o todo e a parte.
Essa insuficiência ju ríd ic a e filo s ó fic a projetará por m uito
tempo um a sobra tenaz sobre a reflexão ju ríd ico -p o lítica. Por
exemplo, K ant que, em D o u trina do direito, se aplica, em 1796,
ao estudo da trias p o lític a , considera que esses “três poderes”
dividem entre si, sob a Constituição c iv il e p o lític a (b ürg erli-
che Verfassmg), o governo do Estado (R eg ierung f°, Hegel, con­
trário à idéia de “ governo de fato” avançada por Chateaubriand
em 1814 em seu panfleto D e Bonaparte e dos Bourbons, tam ­
bém insere a idéia de governo na de Constituição. N a teoria
orgânica do Estado exposta em 1821 pelos P rin cíp ios da f ilo ­
sofia do direito 21, dá à noção de governo um sentido estrito que
parece específico: sendo o “poder legislativo” incum bido de
determinar e estabelecer o que é universal, o “poder governa­
m ental” subsume, d iz H egel, as esferas particulares e os casos
singulares sob o universal22. Entretanto, a term inologia hege-
liana ainda não é perfeitamente rigorosa: sob a pena do filó so fo ,
o termo governo {Regierung) designa ou, num a acepção am ­
pla, a organização geral do Estado23, ou, com um a extensão es­
trita e técnica, dentre os três poderes do Estado, 0 “poder gover-

19. C f. in fra , pp. 234 ss.


20. K ant, D octrine du d roit, § 45, Pléiade, t. I II, p. 578; AK, V I, 313.
21. H egel, Principes de la philosophie du d roit, § 271.
22. Ib id ., § 273.
23. H egel, Encyclopédie, § 551.
SEGUNDA PARTE 219

nam ental”24, ou seja, aquele exercido por um corpo de funcio­


nários encarregados de “realizar a p esag em do universal para
o particular e para o singular”25, portanto, de “ executar as deci­
sões do príncipe” e de fazer que se apliquem as leis em vigor.
U m a incerteza léxica envolve portanto em nebulosidade o
term o “ governo” , m esmo por vo lta dos anos 1820. Contudo,
H egel, como os juristas do seu tem po, tende a designar por ele
a form a executora do poder que a Constituição define. A reso­
lução está tomada. D a í em diante, para o direito p o lítico , o im ­
portante será determinar quais são os atos específicos que o
governo cumpre, enquanto órgão institucional, em suas relações
com o Parlam ento ou no plano das relações internacionais.
Sobre esse ponto, o filó so fo , longe de acordar somente no
crepúsculo, adiantara-se ao jurista, tentando preencher a lacuna
lexicográfica por tanto tempo deixada aberta. Compreendendo
que apenas com essa condição será possível inserir o conceito
de governo num sistema ju ríd ic o e num a tip olog ia institucional
e política, ele se pergunta, não sem ter de superar numerosas
dificuldades, o que quer dizer governar.

C) O que quer dizer "governar” : a contribuição de Rousseau

Governar um a comunidade p o lítica é, no sentido m ais am ­


p lo - qualquer que seja o aparelho, hom em ou instituições, no
qual se encarna o governo - esforçar-se por lhe dar num a coe­
rência de conjunto. U m governo m ostra-se assim um a relação
vertical de dominação ou de diretriz. Instaura na comunidade
em que se exerce um a m ediação entre, de um lado, um a natu­
ralidade que, “ fle x ív e l em todos os sentidos” , corre sempre o
risco de se revelar desordenada, e, do outro, a exigência norm a­
tiva da ordem pública. Seu objetivo é obter, m uito especialmen­
te nò espaço estatal, um a regulação das ações e das condutas.
Para tanto, o governo gerahnente assume, no m undo m oderno,

24. H egel, Principes de lap hib sop hie du d roit, §§ 287-9.


25. Ib id ., § 290, ad.
220 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a form a ju ríd ic o -c iv il de um a obrá institucional. Esta, m ais ou


menos com plexa, é um sistema de norm as e de regras cuja vo ­
cação é decisória e operacional. D e fato, para que a institucio­
nalização governamental atenda à exigência de ordem que a
vid a p o líticá exige, deve ser acompanhada por um a coerção le­
gítim a. A ssim como o poder p o lítico não é sim ples dominação,
assim também a autoridade do governo é irredutível a um a força
de coerçãó: se advém u m caso desse tip o - a história m ostra d i­
versos exemplos - , ó desvio e a degenerescência políticas con­
duzem à m orte do Estado.
Com o governar não poderia consistir em reduzir as rela­
ções de poder ou de autoridade a relações de força, cada vez
que um governo age ou ordena, suas decisões e suas ordens têm
um valor prescritivo através do qual reffata um a idéia ou um
m odelo. N enhum governo, nenhum a m aneira de governar en­
contra lugar num campo neutro: não apenas governar im p lica
um sistema de representações que é aquele de um país e de um a
época, mas toda instância governamental é comandada por um a
idéia diretriz segundo a qual ela se esforça por ajustar esque­
mas estruturais, que são m eios para atingir o fim que ela se
fixo u . Portanto, pode-se dizer que governar consiste na vontade
de firm a r a preem inência de um a escolha e, em conseqüência,
na im plantação de um aparelho ideológico ou, pelo menos, de
um a idéia diretriz que se tom a o esquema estrutural das in sti­
tuições. Governar sem idéias é algo im possível; aqueles que ou­
sassem pretender o contrário não governariam. Nesse sentido,
portanto, é verdade que as idéias são as m áxim as básicas do
m undo político.
M as vê-se logo despontar a dificuldade: é indispensável
que, num governo, o aparelho ideológico no qual se cristalizam
as intencionalidades do Poder possua ao mesmo tempo compe­
tência, sem o que a adaptação dos m eios ao fim visado seria
incerta, e legitimidade, sem o que os governados estariam prontos,
na m enor oportunidade, a recusar obedecer. Essa dupla exigên­
cia, que é a condição sine qua non da eficácia e da validade de
todo governo, não escapou ao olhar penetrante de Rousseau.
Passando da acepção lata do term o governo para um a acepção
estrita, Rousseau fo i o prim eiro a fornecer um a análise técnica
SEGUNDA PARTE 221

rigorosa das m áxim as do governo do Estado. O estudo d ifíc il e


sutil ao qual procede no L iv ro I I I do Contrato social26 renova.
fundam entalm ente a compreensão de um a noção que, reconhe­
cida cardeal, era entretanto cercada de m uita indecisão conceituai.
Prosseguindo a metáfora antropológica do “ corpo político”
que é onipresente em O contrato social, Rousseau distingue ne­
le a vontade que anim a a potência legisladora da República e a
força sem a qual a potência executora ficaria vã e inoperante.
Ora, a potência legisladora ser a expressão da vontade geral
(noutras palavras, que as leis sejam os atos do povo Soberano) é
um a idéia que, essencial à p olítica de Rousseau, é encontrada
com exemplar constância nas quatro partes de sua obra27: várias
vezes e lembrado que as leis se caracterizam por sua dupla gene­
ralidade (emanantes do povo indiviso, valem para todo ó povo) e
devem referir-se a objetos gerais (não podem pronunciar-se nem
sobre um hom em nem sobre um fato, de m odo que a idéia de
um a le i particular é, segundo Rousseau, um a contradição in
adjecto). E m compensação, a questão relativa à potência execu­
tora se coloca, no Estado do contrato, como um problem a que
deve dar azo a um estudo específico: nesse caso, para Rousseau
trata-se de examinar como se articulam a generalidade da le i
estabelecida pelo Soberano e a particularidade de sua aplicação,
que é função do governo. O exame desse problema de lógica
jurídica - qual é, no Estado, a relação do geral com o particular
- esclarece u concepção jurídica estrita que ele tem do governo e
assume, na pena de Rousseau, um significado filo só fic o que
mostra a tônica de todo o seu pensamento do direito político.
Portanto, fo i definindo a relação que o Governo m antém
com o Soberano que Rousseau especificou sua conotação ju r í­
dica rigorosa.

26. J.-J. Rousseau, Le contràt social, liv . H l, cap.T, ed. citada, pp. 395 ss.
Rousseau, de saída, adverte seu leitor: “A d virto o le ito r de que este capítulo
deve ser lid o calmamente, e que não conheço a arte de ser claro para quem
não quer ficar atento.” ;
27. Ib id ., liv . II, cap. V I, p. 378: a autoridade leg islativa só pode residir
no corpo da nação caracterizado pela vontade geral do povo; liv . I II, cap. X V ,
p. 430 : “ Toda le i não ratificada pelo povo em pessoa é nula, não é um a le i.”
222 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

“ O princípio da vid a p o lítica” , lem bra ele, “ está na autori­


dade soberana” 28 que, nascida do pacto social, se confunde com
a vontade geral da “ pessoa pública” que o Estado é. Esta tem
vocação para legislar e sua generalidade form al acarreta sua
perfeita retidão; as falhas do Soberano são im possíveis porque,
em seu dever-ser, que é sua única m aneira de ser, elas são
inconcebíveis. A exigência de universalidade da razão que pre­
side ao pacto social sig n ifica seu caráter absoluto e irrepreen­
sível: a soberania do povo exprim e a soberania da razão29; por­
tanto, a vontade geral é “ inalterável e pura” 30, não pode errar31.
Só que, se o povo quer sempre seu bem , nem sempre o vê e não
sabe consum á-lo: “insuficientem ente inform ado” , sempre corre
o risco de ser v ítim a das tramas e das facções que dividem de
fa c to a soberania in d ivisíve l de ju re . Por isso cabe ao governo
considerar bem , sob a generalidade fo rm al e pura da le i, a par­
ticularidade concreta e com plexa das condições. Estabelecer
essa relação do geral com o particular pode parecer simples. Ora,

28. Ib id ., m , I, p. 424.
29. Isso significa que, para Rousseau, o contrato social não se define em
termos jurídicos. A liá s, esse “ contrato” é perfeitam ente heterodoxo do ponto
de vista ju ríd ic o : contratar consigo m esm o, como significa o “ ato de associa­
ção” que Rousseau define (I, V II, p. 362), é um ato juridicam ente n ulo e sem
efeito. O próprio Rousseau adm ite: esse ato não é, escreve, “U m a convenção
do superior com o inferior, mas um a convenção do corpo com cada u m de
seus membros” (p. 374). Isso evidentem ente causa problem a: o “ corpo” pode
se comprometer quando, no instante do contrato, ele ainda não existe pois este
justam ente tem por função in stitu í-lo ?
A menos que se adm itam enormes e im perdoáveis erros ju ríd ic os da
parte de Rousseau, isso leva a pensar que o contrato social não se define em
termos de técnica ju ríd ic a; é de outra natureza e, como indica o M anuscrito de
Genebra, é “um ato puro de entendim ento que raciocina” (I, II, p. 286). N ão
entendamos que ele engendra 0 paradigm a do Estado ideal - esse essencialis-
m o dogm ático não cai bem em Rousseau - mas que esse “ ato puro do enten­
dim ento que raciocina” define um a Id éia de va lor regulador, ou seja, a norm a
ou o princípio form al do Estado: “ O Soberano, só pelo fato de ser, é sempre o
que deve ser” (I, V II, p. 363).
30. Ib id ., IV , I, p. 438.
3 1 .IZ > irf.,H ,III,p .3 7 1 .
SEGUNDA PARTE 223

a í está a ilusão: a tarefa do governo é tão d ifíc il que se parece


com o problem a da quadratura do círculo em geometria32.
A fim de destrinchar os dados desse problem a, deve-se f i ­
car atento à term inologia que Rousseau u tiliz a , não esquecer
que o “ corpo p o lítico ” é denom inado “ Soberano” quando é ati­
vo e “ Estado” quando é passivo; que os membros do povo são
“ cidadãos” enquanto participam da autoridade soberana e são ati­
vos, e “súditos” quando, submissos às leis do Estado, são passivos.
Estando determinado esse léxico, a questão é saber como se dá
a comunicação entre o Soberano e o Estado ou, em outras pala­
vras, como se articulam no corpo público as condições de cida­
dão e de súdito. A resposta para essa pergunta está na catego­
ria ju ríd ic a de governo. M as seu próprio conceito é problem á­
tico, e Rousseau se aplica, num longo e d ifíc il capítulo, a escla­
recer sua com plicada tessitura.
O governo, escreve ele, fa z “ de algum a form a na pessoa
pública o que faz no hom em a união entre a alm a e o corpo” . A
definição, há que convir, é pouco ju ríd ica. A um só tempo ex­
p líc ita e enigm ática, ela contém “ o abism o da filo s o fia ” e “ o
abism o da p o lítica” ; como espantar-se de que todos os legisla­
dores aí se tenham perdido ?33 Reconheçamos ao menos o cará­
ter problem ático intrínseco do conceito de governo. D e fato,
este é, d iz Rousseau, “um corpo interm ediário estabelecido en­
tre os súditos e o soberano para sua m útua correspondência” . E
acrescenta, num registro term inológico m ais um a vez bastante
desnorteador: esse corpo interm ediário traz o nome de “Prínci­
pe” ; seus membros que, stricto sensu, são os governadores -
aqueles mesmos que governam - chamam-se “ Magistrados” ou
“ R eis” . N ão nos enganemos: utilizando um vocabulário apa­
rentemente dos m ais tradicionais, Rousseau lhe dá um s ig n ifi-

32. J.-J. Rousseau, Lettres écrites de la montagne, Carta V I, in Pléiade,


t. I I I , p. 871; Carta a M irabeau de 26 de ju lh o de 1767; Considérations sur le
gouvernement de Pologne, p. 995.
33. Manuscrit de Genève, I, IV , p. 296: “ C om o, na constituição do ho ­
m em , a ação da aim a sobre o corpo é o abism o da filo s o fia , da mesma form a
a ação da vontade geral sobre a força pública é o abism o da p o lític a na cons­
tituição do Estado. F o i ai que todos os legisladores se perderam.”
224 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cado tão pouco usual que pode parecer insólito com referência
à literatura ju ríd ic o -p o lític a do m om ento; mas ele assim o tor­
na portador de um a enorme força doutrinária, pois desfaz de
um a vez a confusão secular entre o Rei, o Príncipe e o Soberano.
Para Rousseau, o Príncipe designa o corpo inteiro dos m agis­
trados que são apenas os m inistros do Soberano; e o rei, en­
quanto “ governador” , é um desses magistrados.
Colocados esses termos em sua nova compreensão concei­
tuai, a natureza juríd ica do governo se esclarece em dois m o­
mentos sucessivos. Inicialm ente, nada impede im aginar que a
relação entre o Soberano (o conjunto dos cidadãos ativos) e o
Estado (o conjunto dos súditos passivos) possa ser um a relação
de coincidência ou de identidade. Estaríamos então lidando com
um a democracia direta tal que, com todo rigor, nela o governo
seria então in ú til. Ora, Rousseau está longe de crer na viab ilid a­
de dessa obra-prim a im aginária da arte política: “Nunca existiu
e nunca existirá verdadeira democracia.” 34 É preciso portanto,
num segundo momento, adm itir que a república dos homens, para
ser bem constituída, necessita de um governo que estabeleça
um a mediação entre a generalidade dos atos legislativos do So­
berano e a particularidade dos comportamentos dos súditos. Ora,
o govèm o é a instância institucional que, m unida das “ forças
intermediárias” entre generalidade e particularidade, subsume
os negócios privados sob regra pública. Por isso é im portantís­
sim o distinguir das leis todos os decretos de magistratura: estes
aplicam aquelas a casos individuais ou a objetos particulares.
Avalia-se logo o sentido dessa mediação para a lógica ju r í­
dica: só se compreende a vontade do Soberano relacionada
com as exigências universais da razão que está no princípio do
Estado do contrato; quanto ao governo, pela ação particulari-
zante de seus magistrados, ele confere um a efetividade às deci­
sões legisladoras gerais do Soberano. A legislação e a adm inis­
tração (ó governo dos m inistros) correspondem, em toda R e­
pública, a duas funções distintas das quais dois órgãos distintos
devem ser encarregados.

34. Le contrai social, I II , IV , p. 404.


SEGUNDA PARTE 225

Isso, aparentemente, fic a claro. Entretanto, do ponto de


vista especulativo, trata-se da “ quadratura do círculo” . D o que
precede conclui-se de fato que, por um lado, nenhum governo
pode ser adequado à vontade soberana e, por outro, que todo
governo é necessariamente im puro. A consequência é óbvia:
enquanto mediação entre o geral e o particular, um governo não
pode ser julgado bom em si. Se o Soberano, na sua form a, é de
um a retidão absoluta, o governo só pode ser considerado de um
ponto de vista pragmático, o que relativiza seu valor; por isso
pode no m áxim o ser julg ad o m elhor ou p io r do que outro. A
passagem do norm ativo para o p ositivo é tam bém aquela do
absoluto para o relativo: é isso que, segundo Rousseau, torna tão
problem ática a articulação entre o Soberano e o Governo.
Essa articulação, tão debcada para a lógica ju ríd ica, não é
entretanto aporética se a encaramos na perspectiva da lógica
p o lítica. Passando do problem a da natureza das instâncias dq
Estado para o problema da função delas, Rousseau declara: “ N ão
é bom que aquele que faz as leis as execute.” Com o fvíontesquieu,
ele condena os perigos do despotismo ou da anarquia que nas­
cem da confusão ou da concentração dos poderes35, e é h o stil
ao acúmulo das funções36 que, favorecendo a indistinção entre
o privado e o público, dá azo a m uitas form as de corrupção.
Adem ais, não pode adm itir a teoria das “partes da soberania” ,
inconciliável com a unidade in d iv is íve l do poder soberano; e
ele não cuida de orientar-se para um a teoria constitucionalista
segundo o m odelo inglês. Rousseau raciocina matematicamente.
E xp lica que a relação do Soberano com o Estado é como
a dos extremos num a “proporção contínua ” 37 em que o G o-

35. Ib id ., III, I, p. 397.


3 6 . /t e /., H l, IV e I II, X V .
37. A expressão “ proporção contínua” pode surpreender o le ito r de
hoje. N o entanto, ela é corrente na linguagem m atem ática do século X V III.
C f. sobre esse ponto o artigo “ Proporção” da Encyclopédie, t X IH . Podem -se,
explica o autor, comparar duas relações, e, se essas relações forem iguais,
obtém -se um a proporção : “ Tendo cada relação dois term os, a proporção tem
essenciátmente quatro; o prim eiro e o ú ltim o são denom inados extrem os, o
segundo e o terceiro, m eios. A proporção apresentada sob essa form a é um a
226 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

vem o é a média. O Soberano é no Governo aquilo que o Gover­


no é no Estado:

Soberano _ governo
governo Estado

Por conseguinte, o problem a central do direito p o lítico é


um problem a de equilíbrio m atem ático entre as potências le ­
gisladora e executora. Para que o equilíbrio seja bom , é preci­
so que o produto dô termo m édio por si só seja igual ao produto
dos extremos, isto é, ao produto da potência do povo soberano
pela potência dos súditos no Estado. “N ão se pode alterar ne­
nhum dos três termos sem romper no m esmo instante a propor­
ção.” 38 Esses “três termos” não são, como estabeleceu a tradição
constitucionalista, ó poder legislativo, o poder executivo e o
poder ju d iciário ; são o soberano, ou seja, os cidadãos; o Es­
tado, ou seja, os súditos; o G ovem ò, ou seja, um “ corpo inter­
m ediário estabelecido entre os súditos e o Soberano para sua
m útua correspondência, encarregado da execução das leis e da
manutenção da liberdade, tanto c iv il quanto p olítica” 39: esse
corpo inteiro, cujos membros se chamam “magistrados ou reis,
ou seja, governadores” , traz o nom e de “Príncipe” .
A lógica do direito p o lítico tom a-se, assim, cristalina: se o
Soberano quisesse governar, seria poderoso demais em compa­
ração ao Governo; se o Governo quisesse legislar, seu poder
abusivo o tom aria forte demais em comparação ao Soberano.
N os dois casos - M ontesquieu já havia observado - se instala­
ria o despotism o, fom entador de abusos e de desordens no
fin a l dos quais se p erfilaria a dissolução da República40; e se os

discreta. Se os dois m eios são iguais, pode-se suprim ir um ou o outro, e a pro­


porção passa a só oferecer três term os. M as então, o do m eio é considerado
duplo e pertencente às duas razões: à prim eira com o consequente, e à segun­
da com o antecedente. Neste ú ltim o caso, a proporção tom a o nom e de contí­
nua, e é um a verdadeira progressão.”
38. Ib id ., III, 1, p. 397.
39. Ib id .i m , I, p. 396.
40. Ib id ., m , X , p. 421.
SEGUNDA PARTE 227

súditos, no Estado, já não obedecessem às leis, o Soberano e o


Governo seriam tão fracos que reinaria a anarquia.
A fim de evitar esses dois males, que dissolvem tanto o d i­
reito p o lítico quanto o Estado, a obediência dos súditos às leis
deve ser compensada pela autoridade dos cidadãos sobre o G o­
verno. É que, de fato, o povo, em qualquer Estado, constitui um
parâmetro quantitativamente variável, de m odo que a partici­
pação de cada cidadão no poder soberano se enfraquece à m e­
dida que aumenta a dem ografia: havendo 1 0 .0 0 0 ou 1 0 0 .0 0 0
cidadãos, a participação de cada um passa de 1/ 1 0 .0 0 0 para
1/100.000; isso sig n ifica que, “ quanto m ais cresce o Estado,
m ais d im in u i a liberdade” . Para atenuar esse enfraquecimento,
cabe ao Governo, à m edida que o povo é m ais numeroso, pior-
tanto menos dócil, ser m ais forte: “ Quanto m ais cresce o Es­
tado, m ais o Governo deve retrair-se .” 41 N ão devemos deduzir
que os magistrados devam ser m ais numerosos, pois o aumen­
to de seu núm ero seria, como para o povo, sinal de sua fraque­
za42, mas que à “ relação dos magistrados no Governo deve ser
inversa à relação dos súditos com o Soberano” , de tal form a
que “ o número dos chefes [deve dim inuir] em razão do aumento
do povo” . Portanto, é claro que não poderia haver “um a consti­
tuição de governo única e absoluta, mas que deve haver tantos
governos diferentes na sua natureza quantos Estados diferentes
em grandeza” 43.
Rousseau confessa que essa m atem ática governamental só
deve ser compreendida de m aneira sim bólica, pois “ a precisão
geométrica não cabe nas quantidades morais”44, Apesar de suas
dificuldades, ela é no entanto duplam ente significativa. Por um
lado, Rousseau, apesar de um a term inologia pouco habitual e
absconsa, consegue explicar que, assim como é necessário, no
corpo p o lítico , distinguir o Soberano (o corpo p o lítico quando
é ativo) e o Estado (este m esm o corpo p o lítico quando é passi-

41. Ib id ., m , n, p. 402.
42. Ib id ., H l, II, pp. 400 e 402.
43. Ib id ., III, I, p. 398.
44. Ib id ., m , I, p. 398.
228 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

vo )45, assim tam bém se im põe, no corpo dos magistrados, a ne­


cessária distinção entre o “Príncipe” (“ o corpo inteiro dos m a­
gistrados”) e o Governo (“ a suprema administração” )46. A idéia,
seguramente d ifíc il, se esclarece no entanto quando Rousseau
especifica que o Príncipe e o Estado são estruturalmente cor­
pos ou órgãos -, enquanto o Governo e o Soberano são funções
ou potências. Por outro lado, a m atem ática governam ental a
que Rousseau recorre contribui para tom ar compreensível a com­
plem entaridade entre o Governo e o Soberano: não basta dizer
que o Soberano legisla em termos gerais e o Governo executa as
decisões legislativas aplicando-as por decreto aos casos particula­
res; é preciso ver que “a arte do legislador é saber fixa r o ponto em
que a força e a vontade do Governo, sempre na proporção recípro­
ca, se com binam na relação vantajosa para o Estado”47. Nessas
condições, se o Soberano só pode ser pensado na sua retidão for­
m al, em compensação o Governo, no qual se concentra “ a adm i­
nistração” da Republica, é julgado segundo sua força; não a partir
de sua força absoluta, que é sempre igual à do Estado, mas a par­
tir de sua força relativa, que depende de sua concentração e de sua
atividade efetiva. Isso sig n ifica que o Governo permanece um
poder subalterno ou de direito subordinado - qué Weber denom i­
nará “um estado-m aior adm inistrativo” - qué deve controlar a
vontade geral soberana. Este estatuto funcional corresponde, aliás,
à natureza do executivo e do legislativo, já que o prim eiro é um a
potência que age, e o segundo um a potência que quer48.

O capítulo que Rousseau dedicou à elucidação conceituai


da noção de governo tem , para o direito p olítico, um a im por-

45. Ib id ., I, V I,p . 362. .


46. Ib id ., m , II, p. 396.
47. Ib id ., H l, II, p. 402.
48. C f. Lettres écrites de la montagne, carta V II: “ O poder leg islativo
consiste em duas coisas inseparáveis: fazer as leis e m antê-las; quer dizer, ter
inspeção sobre o poder executivo. N ão há portanto Estado no m undo onde o
Soberano não tenha essa inspeção. Sem isso, toda ligação, toda subordinação,
faltando entre esses dois poderes, o ú ltim o não dependeria do outro; a execu­
ção não teria nenhum a relação necessária com as leis; a L e i seria apenas um a
palavra, e essa palavra não significaria nada.”
SEGUNDA PARTE 229

tância considerável. Atesta m esm o um a revolução intelectual


ao m esm o tempo subversiva e fundadora. Enquanto as m á xi­
mas da arte de governar só adquiriam sentido na trama da p o lí­
tica concreta, em que, como d izia C ardin le Bret pensando na
p o lítica de R ichelieu, elas form avam “ as colunas fortes” da m o­
narquia49, as regras do governo de que R ousseaufaz a substân­
cia de seu estudo sig nificam que o direito p o lítico é escrito em
linguagem matem ática. Isso quer dizer, é claro, que, sob pena
de deliqüescência, a esfera ju ríd ic o -p o lític a deve ser anim ada
pela razão. Disso, porém, R ichelieu não teria discordado, pois
declarava em suas m áxim as que a razão deve dom inar as in c li­
nações50. M as R ichelieu e Rousseau não falam a mesma lin ­
guagem; para R ichelieu, o dom ínio racional ju s tific a a ação até
“no fato do Príncipe” e na “razão de Estado” - , as obras de M a -
quiavel estavam ao lado de seu breviário em sua mesa de traba­
lh o ; para Rousseau, a razão im põe ao direito p o lítico novos es­
quemas intelectuais e tom a possível (se não indispensável) um a
redefinição de suas categorias: como na matemática, ela cons­
tró i seus conceitos, o que lhe perm ite varrer as imagens m itifi-
cadoras e o discurso da m entira. Essa racionalidade subversiva
abre portanto, para o direito p o lítico , u m universo m ental novo
tal que o hom em encontra em si mesmo o princípio do e q u ilí­
brio governamental. Avalia-se em conseqüência, de acordo com
Rousseau, tudo o que separa as regras racionais críticas do go­
verno das m áxim as dogmáticas da arte de governar.
Entretanto, a análise de Rousseau não o leva a celebrar no
direito p o lítico os triunfos racionalistàs. Apesar do rigor sim ­
bólico que deixa m atem ático o estatuto ju ríd ic o conferido ao
Governo, este, d iz Rousseau, “ fa z um esforço contínuo contra
a soberania” 51. Sua tendência, qualquer que seja o regim e p o lí­
tico, é degenerar52. Sempre há, portanto, inadequação entre a

49. Cardin L e B ret, D e la souveraineté du ro i, 1 ,4.


50. R ichelieu, T estam entpoIitique,l, 6. .
51. Le contrat social, III, X , p. 421.
52. Ib id ., in , 10 e H l, 11 onde Rousseau m ostra que a degenerescência
de um Estado é sinal de velhice e, já , de m orte; no liv ro I II, 1, ele havia dito
que as im perfeições de um governo são doenças.
230 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

retidão form al do Soberano e a fragilidade do Governo. O sig­


nificado filo só fic o que repercute de tal confissão é, adm itire­
m os facilm ente, terrível e, apesar dos dois textos que Rousseau
dedica respectivamente à Constituição da Córsega e ao Governo
da Polônia, parece fasciná-lo. Sabemos que, a seu ver, o único
regim e correspondente à relação correta que se pode im aginar
entre o Soberano e o Governo - regim è no qual o Governo é a
m édia proporcional entre o Soberano é o Estado - e a democra­
cia direta. Ora, não só, nessa ficção m atemática, a própria idéia
de Governo se revela in ú til, mas, defa c to , esse regim e é im pos­
sível: “ U m governo tão perfeito não convém aos homens.” A s­
sim , Rousseau reconhece que a defasagem entre o que o ho­
m em pensa e o que constrói é irredutível: o direito e o fato são
irremediavelmente irreconcüiáveis, sendo im possível a passa­
gem da norm a à realidade. Portanto, se lhe parece indubitável
que o Soberano é a norm a de toda p o lítica, cujo dever-ser ela
define, a função de “ administração” atribuída ao Governo o
m antém na em piria, longe da idealidade do conceito puro da
República. É por isso que “todo corpo p o lítico começa a m orrer
já em seu nascimento” 53. E m sua realidade, um Governo é e só
pode ser um a obra de arte, colocado, enquanto ta l, sob o signo
da temporalidade. “ Se Esparta e R om a pereceram, qual Estado
pode esperar perdurar para sempre?” Os governos são precários,
com m aior ou menor robustez, isto é, com m aior ou menor fragi­
lidade, porque, dando à p o lítica as figuras concretas históricas
da particularidade, saem da ordem norm ativa que é universal,
atemporal e a-histórica. Entre as perspectivas norm ativas do
p o lítico desenhadas pelo contrato social e o p e rfil positivo dos
diversos governos, intercala-se, inelim inável, a finitude que pren­
de o hom em à temporalidade. Noutras palavras, os Governos
nunca correspondem ao dever-ser do direito p olítico. N unca a
existência dos Estados chegará à sua essência; a sociedade c iv il
nunca será o que deveria ser.
Com o é intransponível a cisão entre o que deve ser o So­
berano e o que são os regimes políticos, convém insistir na noção

53. Ib id ., I II, X I, p. 424.


SEGUNDA PARTE 231

de interm ediário 54 com que Rousseau caracteriza o Governo.


Recentemente, defendeu-se, utilizand o o vocabulário de Kant,
que o Governo “ esquematiza” a vontade geral?5. Rousseau ex­
poria, sem d izê-lo dessa maneira, o significado transcendental
do governo na medida em que, como a imaginação segundo K ant,
ele seria um poder de síntese: segundo Kant, a ligação sintética
se dá entre o diverso da sensibilidade e as unidades categoriais
do entendimento; segundo Rousseau, a ligação sintética se daria
entre a universidade form al da vontade geral soberana e as parti­
cularidades concretas da organização governamental. A inter­
pretação tem ainda mais força porque, “ no quadro de aço do u ni­
versal” , está bem firm ada a Idéia da potência soberana da vontade
geral como princípio regulador e m áxim a de reflexão da p o líti­
ca. Entretanto, algo resiste a essa interpretação sedutora: Rous­
seau não pensa sinteticamente. A mediação que o Governo opera
entre o Soberano e o Estado não provém de um método de pen­
samento fim cionalm ente unificador. É m ais o indicador da dis­
tância que separa e separará sempre a norm a do político da reà-
lidade política. A mediação é ligação; mas une sem unificar. A
relação desesperançada entre Soberano e Governo é um ponto
de fracasso56 ou, pelo menos, sempre, de conflito. U m novo “m is­
tério do Estado” parece assim residir na invencível bifurcação
entre o Soberano e o Governo. Para Rousseau, essa divisão tem
um sentido m etafísico profundo: reflete a “ infelicidade” insupe­
rável que a im possível redenção do hom em dos Tempos M oder­
nos é. N a terra dos homens, nenhum governo, nenhum direito
político jam ais serão provedores de serenidade.

54. Ih id ., n , 9 em que o governo é apresentado de m aneira figurada


como “ o m eio exato” entre os gigantes e os anões.
55. A . Philonénko, Jeán-Jacques Rousseau et la penséè du m alheur,
V rin , 1984, t. III, p. 48.
56. A té o Legislador, esse “hom em extraordinário” , fracassa em sua
em preitada de esclarecer o povo, dè “persuadi-lo sem [o] convencer” . Apesar
de “providencial” , ele é apenas um hom em e é m ortal, sua obra é marcada
pela precariedade e, diante do povo que não o compreende e permanece rebel­
de a qualquer reform a, ele não tarda ém sentir sua solidão.
232 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A análise rigorosa que Rousseau faz do Governo m odifica


consideravelmente a fig ura em geral vaga que ele possuía até
então da teoria ju ríd ic a ou po lítica. É seguramente perturbado­
ra por sua ressonância m etafísica. M as tem o m érito de mostrar
claramente que os encargos públicos assumidos pelos gover­
nos não servem à sim ples gestão dos negócios da comunidade
c iv il: há grande diferença entre gerir um patrim ônio - quer dizer,
adm inistrar haveres ou bens que são coisas - e govèm ar um Es­
tado - oü seja, realizar um conjunto de atos que se dirigem à
seres humanos cuja liberdade tom a portadores de cultura e de
valor. Adem ais, o exame da relação entre Soberano e Governo
m ostrou que este age legitim am ente, e que, em consequência,
o ato de governar, longe de constituir um p rivilég io , é o exercí­
cio de um a prerrogativa que deve ser bem fundamentada. N es­
sas condições, o governo não é um efeito de dominação; m uitô
pèlo contrário, compete-lhe excluir a arbitrariedade de todos os
seus atos, recusar a indecisão oü a paralisia diante do aconteci­
m ento im previsto, reduzir, tanto quanto possível, a incerteza
ou o medo. Sua própria missão o expõe à suspeita por parte dos
governados. É atacado por um coeficiente de precariedade que
o faz correr o risco de ser desaprovado ou derrubado: “ Os go­
vernos m ais bem instituídos trazem em si” , escrevia Jaucourt,
“ o princípio de sua destruição.”
D iante da inexorável fragilidade de que padece todo go­
verno, compreende-se a im portância conferida por Rousseau
ao estabelecimento de seu estatuto no direito p o lítico do Estado
moderno. Essa im portância é tanto m ais surpreendente e in ­
centiva m ais a reflexão do filó s o fo do direito porque, apesar da
coesão que um governo, em conform idade com as decisões da
potência legisladora, deve conferir à vid a pública m ediante sua
função executora, ele não basta, por si só, para governar um Es­
tado; no Estado moderno, ele é parte integrante de um conjunto
de instituições cujas estrutura estatutária e articulações funcio­
nais são determinadas de m aneira precisa sem poder, no entanto,
ter pretensões à im utabilidade; a rigidez das instituições seria
aliás sua esclerose. Esse traço, essencial para o Estado moder­
no, caracteriza ainda o Estado D O direito da época contem po-
SEGUNDA PARTE 233

rânea. Essa perenidade evidentemente não é desprovida de sig­


n ificad o. Convém , portanto, esquadrinhar o sistema das in sti­
tuições estatais. À lu z dos princípios nos quais ele repousa, e
no curso dos debates e das controvérsias que são o sinal da d ifi­
culdade intrínseca do direito p o lítico , o véu se levantará sobre
o torm ento profundo da consciência m oderna que se indaga so­
bre ele.

2. Os cânones do sistema institucional


no Estado D O direito

Por m uito tempo os filó so fo s leram no corpus institucio­


nal do Estado as form as jurídicas que lhe determinavam o regi­
me político. A ssim , já na Antiguidade e depois nos séculos
m odernos, a descrição tipológica dos regimes ocupou na filo ­
sofia do direito p o lítico um lugar im portante, cujos ensinamen­
tos não é possível subestimar. M as, com o a questão dos regi­
mes políticos é inseparável do sentido das estruturas jurídicas
que as sustentam, a filo s o fia é rem etida, com o que à sua ori­
gem, à questão sempre recorrente da norm atividade da ordem
jurídica.
D epois de termos lembrado como o sistema institucional
e o m etabolism o do qual élé é o lugar foram por m uito tempo
considerados pela filo s o fia os parâmetros a partir dos quais se
diferenciam os regimes políticos, vamos nos concentrar na her­
menêutica da norm atividade expressa pelas instituições estatais.

A ) A tipologia dos regimes

Outrora, os filó so fo s antigos haviam compreendido que,


em razão da problem aticidade que reside em todo governo,
este podia se encarnar em form as institucionais plurais. Platão
e Aristóteles, atentos à realidade viva das Cidades, haviam ela­
borado um a classificação dos diversos tipos de governo cuja
lógica sim ples por m uito tem po fo i respeitada. E la repousava
234 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

em dois parâmetros, um quantitativo: o nwmero dos governan­


tes - um , vários ou todos - d e fin ia a m onarquia, à aristocracia
e a democracia; o outro, qualitativo: a saúde da Cidade gover­
nada determinava os governos sob Constituições òu retas ou
desvirtuadas. Contudo, mesmo que se conceda aos filósofos gre­
gos, juntam ente com Leo Strauss, a honra de ter operado um a
classificação lím p id a dos diversos regimes, constata-se que os
pensadores modernos quebraram e rejeitaram a lógica ju ríd ic o -
p o lítica dos antigos. D o século X V I ao X I X , m ultiplicaram -se
os ensaios de “ desclassificação” e de “ reclassifícação” dos d i­
ferentes regimes57. Tam bém essas tentativas nàda têm dò deci­
sivo ou de d efin itivo ; entretanto, são significativas e trazem à
lu z a im portância das estruturas institucionais e de suas articula­
ções no Estado.

A desclassificação das classificações tradicionais

Das classificações de Platão e de Aristóteles, só lem brare­


m os aqui as grandes linhas, insistindo no significado que lhes
conferiam os filó so fo s antigos, preocupados em encontrar o
critério do “m elhor regim e” .
Platão, depois de distinguir quatro tipos de governos defei­
tuosos que correspondem a temperamentos sociais perverti­
dos58 - a tim ocracia, regime “ entusiasta das honras” ; a oligar­
quia ou governo dos ricos; a democracia, em que governam os
“homens de todas as espécies” ; a tirania, em que reina “ o ho­
m em m ais belo” - , opõe-lhes sua República ideal na qual o filó ­
sofo é rei. M ostra, por outro lado59, que um a le i de transform a­
ção, segundo a qual um excesso faz nascer o excesso oposto,
preside à sucessão dos regimes: assim, a tim ocracia degenera
em plutocracia ou em oligarquia; a democracia advém quando
os pobres alcançam a vitória sobre os ricos; e a democracia trans­
form ada em demagogia gera a tirania, Nessa tipologia descriti-

57. C f. P hilippe Bénéton, Les régim es politiq ues, P U F , 1996.


58. Platão, A República, V III, 544 d - 545 a.
59. Platão, cf. Lettre V III, pp. 851-2.
SEGUNDA PARTE 235

va das form as de governo, em que se m esclam considerações


políticas, sociológicas e psicológicas, o valor de um regim e de­
pende das qualidades dos hom ens que exercem o poder. Por
isso, o alcance da classificação platônica culm ina na crítica da
“miscelânea” democrática60, ideologicamente necessária ao elo­
gio, que se im põe filosoficam ente, da República ideal. A u n i­
dade da C alípo lis, que é a m orada do filó so fo -re i61, é feita do
equilíb rio perfeito dos humores hum anos e dos componentes
institucionais: é um a sofocracia. N a verdade, Platão procura m e­
nos efetuar um a classificação dos regimes do que demonstrar
que o verdadeiro p o lític o é necessariamente filó s o fo , pois todo
falso p o lítico sempre é um sofista.
Aristóteles é m ais sistem ático do que Platão porque proje­
ta menos torm ento m etafísico na sua “ ciência p olítica” . Tendo
d efinid o a fo m ia ideal de um m odelo de Constituição6^ que
perm ite, de acordo com a finalid ad e da po lítica, realizar na C i­
dade o “ bem com um ” , ele descreve e analisa os três tipos de
“ Constituições relas” que determinam a monarquia, a aristocra­
cia e a república (pu p o litié ), cada um desses regimes degene­
rando, pelo desvio de suas Constituições, em tirania, oligarquia
e democracia. Esse esquema é acompanhado de m últiplas dis­
tinções e exceções, em cujo decorrer transparece a preocupação
do Estagirita em encontrar a ou as form as de governo capazes
de exprim ir o justo. Ética e política, de fato, são ligadas, de m odo
que o valor de um regime depende menos do número daquèles que
governam do que da virtude pela qual eles se conform am com a
ordem natural das coisas. Portanto, um governo é bom se a auto­
ridade que exerce respeita o direito natural; senão, enviscado na

60. Platão, A Republica, V III, 557 c; A política, 292.


61. E m .4 política (275 c ê 293 a), Platão explicou que 6 p o lític o , longe
de ser um pastor d ivin o , é o próprio filó s o fo , que se esforça em elucidar o
m undo dos homens por sua inteligência e seu saber. Certamente, nem sempre
consegue; Platão sabe por experiência, não esquecendo a in fe liz tentativa com
D enis da S icília. Para ele, no entanto, o im portante é sublinhar que filo s o fia e
política têm a mesma essência (A Republica, V I, 499 b-c; As leis, IV , 709 d ss.;
Carta V II, 328 a-b).
62. Aristóteles, A política, I, 1252 a.
236 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

arbitrariedade—a de um só ou da massa popular é m au porque


é tirania ou anarquia. .
A filo s o fia do direito p o lítico m oderno m uitas vezes u tili­
zou a classificação trilóg ica dos regimes em m onarquia, aristo­
cracia e democracia. M as isso não sig n ifica que tenha ficado
fie l à tradição antiga que, no essencial, deu continuidade ao pen­
samento judaico-cristão. D e um lado, a relação entre ética e
p o lítica afrouxou a ponto de, após M aquiavel, ter prevalecido a
idéia de um a política, se não sem ética, pelo menos independen­
te dela. D o outro lado, enquanto a idéia de liberdade m udava de
form a e de séritido, afastando-se do ideal do civism o à antiga,
a tip o lo g ia dos regimes assum iu, principálm ente no século
X V m , outra figura. Essa dupla mutação, que corresponde ao
amadurecimento da consciência ju ríd ico -p o lítica, tem um al­
cance filo s ó fic o considerável: m ostra no que princípios novos
esteiam o diréito p o lítico m oderno.
M aquiavel, a quem se deve sempre voltar para encontrar
os prim eiros frêm itos da m odernidade no pensamento do direi­
to p o lítico , m óstrõu, com “um a lucidez cínica” 63, o que há de
ridículo e in ú til na tipologia dos governos. Q ualquer que seja o
cam inho tomado pelo governo dos homens, é sempre um orde­
namento de m eios qüe visam ápenás, péla astúcia e às vezes
pela violência, à eficácia. O realism o é consubstanciai à p o líti­
ca, qüe im o tem outro objetivo, se necessário através do aparen­
tar e da guerra, além do sucesso. A m etáfora da navegação, aos
olhos de Maquiavel, é destituída de pertinência: nenhuma teleo lo -
g iá ético-m etafísica guia a po lítica. O “ nòvó príncipe” , prim ei­
ra fig ura da po lítica moderna, certamente não é um tirano como
acreditaram B ayle e D iderot64, mas é in ú til, considera M aquia­
ve l, logo aprovado por G abriel Naudé65, dissecar seu governo
em m odos ou categorias que determ inam um “regim e” . Por
m ais que B od in se levantasse contra a iconoclastiam aquiave-

63 . R aym ond P o lin , Éthique etp o litiq u e, S irey , 1968, p. 124.


64. Pierre B ayle, D ictionnaire historique et critique (1697), art. “ M aquia­
ve l” ; Diderot, Encyclopédie, verbete “M aquiavelism o” . •
65. G abriel Naudé, Considérations politiques sur les coups d ’E tat (1639).
SEGUNDA PARTE 237

liana e reabilitasse o tema de um a tip olog ia dos regimes p o líti­


cos,, procurava acima de tudo restaurar o prestígio, da m onar­
quia e não tinha m uito interesse pelas outras formas de governo
em si mesmas.
E m compensação, em sua vontade de ordem e de raciona­
lidade, o pensamento p o lítico , de M ontesquieu a K ant, des­
m ente MaquiaveJ, empenhando-se novamente na classificação
tipológica dos regimes. M as não se trata de polêm ica doutriná­
ria. N o direito p o lítico moderno instatu nascen d i, inserem-se,
por vezes com dificuldade, preocupações e exigências novas
que dão mostras do enfraquecim ento dos princípios em que se
fundamenta. O exem plo de M ontesquieu é, a esse respeito, dos
m ais eloquentes porque, subvertendo as tipologias da tradição,
põe em prim eiro plano, na necessária balança dos poderes, o
princípio de moderação que o direito p o lítico de um bom go­
verno deve respeitar.

M ontesquieu e o p rin c íp io de moderação

M ontesquieu não se lim ita a m od ificar a classificação dos


regimes que a tradição havia estabelecido segundo critério quan­
titativo dos governantes. N o novo esquema estrutural dos três
regimes políticos que elé discerne .entre os exemplos qüé a his­
tória fornece - “H á” , escreve ele, “três espécies dè governos: o
republicano, o m onárquico e o despótico ” 66 - , ele superpõe a
distinção bipartite entre os governos moderados e os governos
não moderados. O magistrado de Bordeaux refletiu por m uito
tempo no problem a dos governos para que haja nessa superpo­
sição dos esquemas inadvertência òu incoerência. Pelo contrá­
rio, Montesquieu, depois de precisar a “natureza” e o “princípio”
de cada um dos três regimes que m enciona, mostra, aperfei­
çoando as leis do que deveria ser um Estado de liberdade, a e xi­
gência fundam ental que, daí em diante, anim a, como um im pe­
rativo, o pensamento do direito p olítico. A complexidade de seu

66. M ontesquieu, L 'esprit des lo is, liv ro II, cap. 1, p. 239. É claro que
este esquema não repete o que é tradicionalm ente fundado no critério do nú­
m ero: um (m onarquia), vários (aristocracia), todos (dem ocracia).
238 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

procedim ento certamente se deve á seu sutil talento de escritor;


mas é reveladora dos requisitos inovadores que ele pretende
insuflar no direito p o lítico do futuro. Essa com plexidade não é,
portanto, a máscara de um pensamento desordenado e pouco
seguro de si próprio: se M ontesquieu confessa que, por m uito
tempo, “ encontrava a verdade só para perdê-la” , tudo o que pro­
curava veio a ele assim que descobriu seus “princípios” 67; mes­
m o quando nãò dá “todos os detalhes” , “ m uitas verdades” , d iz
ele, “ só se farão sentir após se ver a cadeia que as une a outras” 68.
Essas “verdades” são im portantes: colocam no cerne do direi­
to p o lítico do futuro as exigências de um a liberdade p o lític a de
que os homens, mais do que nunca, jam ais aceitarão ser priva­
dos. Para atualizar essâ exigência, não há outro m eio a não ser
instaurar um governo que obedeça ao princípio de moderação.
Constatando que, no grande liv ro do m undo, a experiência
e a história desenharam os m odelos republicano, m onárquico
e despótico, M ontesquieu sacode duplam ente a trilo g ia clássi­
ca dos regimes políticos. Por um lado, se a definição da m onar­
quia não traz problem a - “ um só governo” 69, em compensação,
o governo republicano é, d iz M ontesquieu, ou democrático ou
aristocrático 70 e, sobretudo, o despotismo, longe de ser um a
form a degenerativa da m onarquia, constitui por si só um a cate­
goria71. Adem ais, essa tipologia revela seu sentido menos na
exposição da “natureza” das form as assim tomadas pelo gover­
no do que na descoberta de seus “princípios” : a natureza deles é
o que os faz ser assim - é a estrutura particular deles; o p rin cíp io
deles é o que os faz agir - são as paixões humanas que os m o­
vem 72. E não se poderia perder de vista que a força do p rincí­
p io arrasta tudo. M ontesquieu explica que, na República, a v ir­
tude cívica é um princípio tão forte que é a “ alm a” desse gover­
no; na monarquia, a honra suplanta a virtude; quanto ao despo-

67. Ib id ., prefácio, p. 231.


68. Ib id ., p. 229.
69. Ib id ., II, IV , p. 247.
70. Ib id ., H , II, p. 239.
71 Ib id ., II, V , p. 249.
72. Ib id ., H l, I, pp. 250-1.
SEGUNDA PARTE 239

tism o, tem o medo como m ola. Ora, para além dos princípios
que o b isturi de um analista sensível põe a n u nas expressões
psicológicas e sociológicas da história política, o autor de O espí­
rito das leis dedfraum problema que hoje diríamos ser de “ direito
fundam ental” e que, a seus olhos, é O problem a de todo o direi­
to público. Esse problem a tem duas facetas, que M ontesquieu
considera com u m olhar novo73. Por um lado, ele se refere, co­
m o é devido, às estruturas jurídicas do p o lítico , ou seja, à rela­
ção dos governos com as leis e as Constituições; é preciso que
essa relação seja embasada pelo princípio de equilíbrio ou de ba­
lança dos poderes. Por outro, remete aos princípios fundadores
dos governos, ou seja, indica o sentido de que cada um deles é
portador: o filó s o fo avalia neles o valor do espírito de “ mode­
ração” , o único que tom a possível a liberdade política.
O estudo das estruturas jurídicas adotadas pelos diferentes
modos de governo leva M ontesquieu a sublinhar a im portân­
cia, na Constituição, da balança dos poderes. Insiste na posi­
ção cardeal que as leis devem ocupar na natureza bem como no
princípio de um governo sadio. A “ força das leis” , de fato, é es­
sencial à República; se deixam de ser executadas, a República
fic a corrompida, e o Estado já está perdido74. N a m onarquia, as
leis - trate-se das leis “ fundamentais” ou do “ canal” que as leis
seguem nos “poderes interm ediários” - ocupam o lugar das v ir­
tudes cívicas75. M as é sobretudo im pressionante que o despo­
tism o seja “ um governo m onstruoso” porque nele as leis são
substituídas pela arbitrariedade e pelo capricho de um príncipe76.
A relação das leis com o princípio dos governos dá-lhes dina­
m ism o e explica sua ação em todós os campos, empregos pú­
blicos, educação, assuntos m ilitares, econom ia, justiça, comér­
cio etc. Portanto não é de espantar que a inobservância das leis

73. N ão se deve c o n c lu ir -já o demonstramos em outro liv ro : cf. M on­


tesquieu: la nature, les lois, la liberte —que M ontesquieu é um “M oderno” em
oposição aos “A ntigos” . C om o ele m esm o d iz, indaga da p o lític a “ do futuro” ,
m as extrai da filo s o fia clássica a postulação m etajuridica dessa política.
74. M ontesquieu, L ’esprit des lois, I II, I II, p. 252.
75. Ibid., U I, V , p. 255.
76. Ibid., I II, IX , p. 258.
240 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

engendre um a corrupção que gangrena o governo e que um go­


verno sem le i, que nem sequer é um governo, seja, como o des­
potism o, anarquia e vazio p olítico.
Contudo, as próprias leis devem m anter um a relação es­
treita com a Constituição, pois ela é a m atriz da ordem pública.
M esm o que M ontesquieu não dê ao térm ò “ Constituição” o sig­
nificad o form al de um texto escrito “ estabelecendo” as normas
colocadas no topo da hierarquia das regras jurídicas do Estado,
ele sabe, como todos os jurisconsultos de seu século, que um a
organização das competências é indispensável para a vid a de
um Estado. É nesse espírito que, adm irador da “ Constituição
da Inglaterra” , descreve, no capítulo m áis célebre do O espírito
dás leis11, o ordenamento dos poderes que cooperam para a ação
de um governo. Sua finalid ad e é relatar coino a Constituição
inglesa (ou, pelo menos, o que acredita ver nela) tom a possível
a liberdade p o lítica m ediante a distinção e a distribuição dos
poderes.
Esse capítulo não elabora um a teoria, como se costúma
repetir, da “ separação dos poderes” 78, mas da “balança dos po­
deres” . Essa concepção cabe num a frase: “Para que não se possa
abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o
poder detenha õ poder.” 79 D ito de outra form a, é indispensável
que “ as três espécies de poder: a potência legisladora, a potên­
cia executora das coisas que dependem do direito das gentes e
a potência executora daquelas que dependem do direito c iv il” 80
não fiq uem concentradas nas mãos de um m esmo hom em ou
de um m esmo corpo; para evitar a confusão dos poderes que
resultaria dessa concentração, os três poderes devem ser distri­
buídos a instancias organicamente distintas e aptas, por sua
cooperação, portanto por sua complementaridade, a exercer nas

77. Ib id ., X I, V I, pp. 396 ss.


78. Rem etem os sobre esse ponto ao estudo que fizem os desse problem a
em La philosophie du d roit de. M ontesquieu, K lincksieck, 2? ed., 1979 e em
M ontesquieu: la nature, les lo is, la liberté, P U F , 1994.
79. M ontesquieu, L ‘esprit des lo is, X I, IV , p. 395.
80. Ib id ., X I, V I, p. 396.
SEGUNDA PARTE 241

form as a autoridade do governo. A s competências de um “ po­


der” não poderiam invadir as competências de outro. Portanto,
o im portante não é que esses poderes sejam separados, mas
que suas atribuições, determinando suas respectivas tarefas,
obedeçam a um a divisão e um a distribuição correspondentes a
u m princípio de equilíbrio. E , em sua dinâm ica, esses poderes
devem funcionar “ concertadamente” 81. T al “ balança” das ins­
tâncias governamentais, estabelecida sob a Constituição e no
respeito das form as legais, im pede não apenas os desvios que
ocasionariam as invasões de competência de um órgão institu­
cional no outro, mas tam bém os abusos ou descaminhos de po­
der: assim os mecanismos representativos, o bieam erism o, a
ponderação das prerrogativas, o controle recíproco dos diversos
órgãos, a fixação da ordem do dia das assembléias etc. consti­
tuem outros tantos procedim entos favoráveis ao equilíb rio de
um governo. M as, num governo, “É preciso que as coisas andem;
um, Estado estará perdido se tudo nele fo r inação”82. Portanto, se
se passar da estática constitucional para a dinâm ica política,
fic a claro que os requisitos de um a balança p o lítica , isenta
tanto de carências funcionais quanto de excesso de poder, co­
mandam, já no nível constitucional, os princípios de moderação
do governo.
A lguns anos antes de M ontesquieu, o abade de S aint-Pier-
re, em Discurso sobre a p olissinod ia, havia demonstrado que
“ a pluralidade dos conselhos é a form a de m inistério m ais van­
tajosa para um rei e para seu reino” . M as Saint-Sim qn relata que,
pela exposição das vantagens do regim e proposto, pelas res­
postas trazidas a possíveis objeções e, ainda mais, pela acusação
im p líc ita de im perícia dirigida a L u ís X I V e ap Regente, a obra
causara rnn “tremendo tum ulto” . O livro chistoso fora apreen­
dido, o abade posto na prisão e excluído da Academ ia Francesa.
Já M ontesquieu não era “membro da Academ ia” ; menos irre­
verente e m ais hábil, ele transmuda a trilo g ia sistemática dos
regimes “ sob um a outra idéia” num a concepção binária do es-

81.Ib id .,X I, VI,p. 405.


82. Ibid., X X II, X X II, p. 681.
242 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

quema de intelig ib ilid ad e da ordem política: pode-se estar às


voltas seja com governos moderados83 seja com governos não
moderados84. N o pensamento de M ontesquieu, essa mudança
de perspectiva corresponde à passagem da ordem positiva do
direito constitucional para a ordem norm ativa dos ju ízo s de
valor sobre a política. A mutação do procedimento acarreta en­
tão um a transformação da linguagem : M ontesquieu se exprim e
daí em diante em termos de dever-ser e de dever-fazer. E m to m o
da idéia de moderação, ele elabora o prográma reform ista re­
querido pela p o lítica de libérdade pela qual pretende fazer
frente às ameaças de despotismo que sentiu subir, sob a R e­
gência, no absolutismo da monarquia francesa. D e maneira m ais
geral, o princípio de moderação se firm a como o axiom a do
constitucionalism o liberal que deve fazêr antítese com a terato-
logiá do despotismo.
Se nos lim itam os à pensar o valor dos regimes em termos
de saúde ou de doença política, o dualism o dos governos m o­
derados e dos governos não moderados parece ter a sim plicidade
da obviedade. Entretanto, não é assim, pois M ontesquieu tem
um a certeza: nenhum governo e, por natureza, m oderado85. A
moderação é “ um a obra-prim a de legislação” 86; resulta de um a
organização constitucional cuja im portância é ainda m ais cru­
cial por ter em jo g o a existência da liberdade p o lítica. N ão v o l­
temos aqui às form as do apárelho ju ríd ic o pelo qual o poder
deve deter ò poder; vim os que o dispositivo constitucional de
um Estado que, à im agem da Inglaterra, seria o de um país
onde reina a liberdade, requer procedimentos internos de ba­
lança obtidos pela combinação e pelo temperamento das po­
tências ao m esm o tempo que pela distribuição das tarefas, pela
regulação das competências e pela compensação das funções.
M as recorramos ao p rincípio filo s ó fic o fundam ental que o
próprio M ontesquieu exprim e em u m resumo impressionante:

83. Ib id ., I II, X , p. 259.


84. Ib id ., V I R V IU , p. 356.
85. Ib id ., X I, IV , p. 395.
86. Ib id ., V , X IV , p. 297.
SEGUNDA PARTE 243

“E u o digo, e parece-me que só fiz essa obra para provar isso:


o espírito de moderação deve ser o do legislador: o bem p o líti­
co, como o bem m oral, encontra-se sempre entre dois lim ites,” 87
Apenas a recusa dos extrem ismos dissolventes representados
pela lentidão democrática e peja rigidez despótica condiciona a
técnica constitucional que tom a possível um a p o lítica de lib er­
dade. A questão, portanto, é saber como conjurar, no direito pú­
blico, a fascinação dos extremos.
Tocamos nesse ponto na referência fundamental do direito
político. O Cuidado com que M ontesquieu redigiu o prim eiro
livro de O espírito das leis é sig nificativo da gravidade que
confere a essa questão. Se é verdade, como inúmeras vezes se
assinalou, qúe a moderação dos governos de liberdade atende
aos determinismos das condições físicas de um Estado (suas
dimensões, seu clim a, sua topografia), se é verdade também que
ela depende de fatores psicossociológicos e éticos, seria errô­
neo atribuir a M ontesquieu, no exame desse problem a, um pen­
samento causal e redutor; entre a moderação de um governo e
os diferentes fatores que ela deve levar em consideração, ele
estabelece não relações de causa e efeito, mas correlações e
correspondências cujo sentido se decifra num horizonte a xio -
lógico. É assim que um a p o lítica de moderação deve concordar
com a pluralidade dos partidos e das opiniões, espelho dos cos­
tumes e das maneiras diversificadas de um a nação88 e reflexo
das m últiplas facetas de seu “ espírito geral” 89; mas esse plura­
lism o é inconcebível se não é reportado à “natureza das coisas” ,
ou seja, se não se vo lta a suas raízes m etafísicas. N em sequer
basta, para ju lg a r o valor dos governos moderados, repudiar
toda p o lítica sem ética - M aquiavel lançou um desafio inad­
m issível à dignidade humana90, mas é preciso compreender que
a moderação é, na p o lítica, o único princípio que perm ite às

87. Ibid., X X I X , I, p. 865; cf. Pensées n? 1795, in Pléiade 1.1, p. 1429.


O g rifo é nosso.
88. M d ., X IX , X X V II, p. 575.
89. M d ., X IX , IV , p. 558.
90. Ib id , X X I , X X , p. 641.
244 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E ITO

instituições atingir a regra de ordem que faz a legalidade u n i­


versal. D e fato, no m undo fundado na razão, os caprichos do
acaso, a cegueira da fatalidade, a im previsibilidade da contin­
gência estão excluídos; da N atureza ao próprio Deus, passando
pelos homens e pelos anjos, as leis, universabnente, “ são as re­
lações necessárias que derivam da natureza das coisas” 91. Por­
tanto, um governo moderado é aquele que reflete “ a relação de
conveniência” , paradigma do ju sto , que “ o grande Júpiter” es­
tabeleceu objetivamente, antes de todas as convenções hum a­
nas, para todos e para sempre, entre as coisas92. F ie l à idéia das
“ leis civis em sua ordem natural” , m agnificam ente exposta por
Jean Dom at, M ontesquieu pensa que a moderação só corres­
ponde à sua vocação liberadora se relacionada com a sociabili-
dade que, por sua vez, insere o hom em , segundo justas relações
de conveniência, na escala dos seres. Repele todas as tentações in ­
dividualistas do seu século, pois elas contradizem a harm onia na­
tural nas estruturas cosinológicas da qual deve inserir-se a co­
m unidade po lítica dos homens. A ssim M ontesquieu, com sua
concepção da moderação, defende a idéia moderna de liberdade
com os filosofem as do naturalism o antigo.
E m todo caso, o im portante é que o princípio de modera­
ção se tenha tom ado, na dicotom ia dos regimes, o fio condutor
do liberalism o do qual as instituições são protetoras e colocam
a liberdade dos cidadãos aó abrigo dos excessos ou dos desvios
de poder daqueles que governam. M as, em M ontesquieu, a teo­
ria do direito p o lítico nunca é independente de seus fundam en­
tos filo só ficos. Por isso, não causa menos im pacto a tese que
lèva M ontesquieu a pensar que a hum anidade tom ou, na sua
história, não como repete seu século, o cam inho do progresso,
mas a estrada da decadência. A o longo de todo o seu cam inho,
a história, explica éle, é a distorção da ordem natural das coi-

91. Ibid., I,I,p : 232.


92. Ibid., I, I, p. 233: “Antes que houvesse leis feitas, havia relações de
ju stiç a possíveis. D izer que não há nada de ju sto nem de injusto além do que
ordenam ou proíbem as leis positivas, é dizer que antes que se tivesse traçado
um círculo, nem todos os raios eram iguais.”
SEGUNDA PARTE

sas: fo i assim que, apesar de sua grandeza, a civilizaçã


na desmoronou. E m semelhante acontecimento há ui
cada vez que a realidade p o lítica fo i abandonada aos c í
de um único ou aos poderes de todos, esses extremisnw
naram a harm onia natural da comunidade. Será sempr
N unca a liberdade - contanto que se entenda bem essa
que provocou tantas vertigens semânticas - encontra
nos regimes que cam inham contra a natureza.
M esm o que, “por um a infelicidade ligada à condi
mana, os grandes homens moderados sejam raros” , a v<
que o princípio de moderação é a regra áurea de um a po
liberdade; dessa regra, a natureza é a norm a e o critéri
isso que, se existem “três espécies dè governos” , eles coi
dem a duas concepções da política: ou, num inferno pc
hom em , rebaixado à categoria dos bichos, perde sua 1
dade, o que é p io r do que perder a vid a; ou então é prei
guindo a ordem natural das coisas, elaborar a arquiteta
titucional de um governo que deixa aos cidadãos todas
possibilidades de liberdade.
N u m tempo em que o racionalism o e o ind ivid u al
H um inism o preparavam suas glórias, a p o lítica jusnata
o hum anism o liberal de M ontesquieu não foram comj
dos. E m tom o de O espírito das leis, a crítica - dos je su
jansenistas, do Vaticano, do clã dos “ filósofos” - fo i ve
M esm o em nosso século, L . Strauss acreditou que 1
quieu pregava um retom o às figuras p o líticas do mundc
Ora, M ontesquieu sabia que essa volta no tempo era i
ye l; e nunca pensou nisso. A força do seu pensamento c
to p o lítico está em outra parte. E sua mensagem é filo s
regra de um bom governo é, estando o hom em recolo
ordem dos seres, elaborar leis civis e políticas cuja f
restituir à comunidade humana as estruturas ontológi
horizonte axiológico que o Criador lhe havia destinadi
sentido a história esfumou. N u m século entusiasta de a
log ia e de racionalism o, era com certeza d ifíc il o uvir t
Entretanto, o estado dos regimes feito por M ontesquk
defesa do princípio de moderação m ostravam que o a
246 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

centrismo idealista que tinha a aprovação de sua época condu­


zia a p o lítica a caminhos semeados de escolhos.

“ Todo goverrio legítim o é republicano”

O prestígio de Rousseau deveria eclipsar as teses do cons­


titucionalism o de M ontesquieu. Diferentem ente de O espírito
das leis, O contrato social resgata, de certa form a, a tipolog ia
ternária clássica dos regimes pois, m etodicamente, Rousseau
estuda os governos democrático, aristocrático e m onárquico,
aos quais acrescenta um outro tip o de governo que q u alifica de
“m isto” 93. Só que, nesse esquema quase tradicional, encontra-se
um a reflexão o rig inal e d ifíc il. Rousseau que, como já vim os,
quis “ fix a r p sentido preciso da palavra governo” 94, exam inou
as relações entre a norm a pura (ou essência) da República e sua
expressão concreta no Estado do contrato. Nesse exame, racio­
cina sobre o que é “ fundam ental” , e sua originalidade é per­
guntar-se se a racionalidade do Soberano, pura e universal em
sua exigência norm ativa, pode unir-se à dim ensão prática da
política. E m termos m ais perturbadores, digamos que Rousseau
se pergunta se todo governo não está condenado, em razão da
diferença irredutível dos planos e das ordens, à inadequação em
relação à vontade geral que é seu fundam ento ú ltim o. O bvia­
mente, tal problemática era estranha às tipologias até então pro­
postas, tipologias que Rousseau considera de lógica obsoleta e
de filo s o fia curta demais. Indagar-se, como indica o subtítulo
do Contrato social, sobre os “princípios do direito p o lític o ” , é
procurar o solo do qual todo governo, nem m ais nem menos do
que a soberania que ele prolonga, deve extrair as condições de
sua legitim idade e de sua validade. Rousseau, sem saber, form u­
la assim a questão que o criticism o kantiano colocará no cerne
do problem a político : Q uid ju ris ? . Dado que a soberania d e fi­
ne o dever-ser que é a norm a de toda política, seu conceito tem
a envergadura de um princípio universal: ela é portanto a m es-

93. Rousseau, Le conirat social, liv . I II, cap. V R , p. 413.


94. Ibid., liv . H l, I, p. 395; cf. supra, pp. 219 ss.
SEGUNDA PARTE 247

m a95 e os fundamentos do Estado não são diferentes segundo


os diversos modos do seu governo96. Toda a sociedade c iv il
tem raízes, de direito, num a democracia originária, já que a so­
berania, pelo ato dó contrato, é a vontade do povo: “ Todo gover­
no legítim o” , escreve Rousseau, “ é republicano.” 91
D e tal fórm ula, o direito p o lític o devia extrair um a in sp i­
ração nova, m ediante aliás um a falsificação grave da filo s o fia
de Rousseau. D e fato, pela potência m ágica do verbo, a palavra
“república” acabava de m udar de sentido: já não designava -
ou, pelo m enos, não somente - a res p u b lica ou a República
cuja essência B o d in definira e cujo estatuto institucional deter­
m inara, mas, por sua fundamentação contratual origin al como
por suas estruturas governamentais, ela conotava, no próprio
m om ento em que a palavra “povo” tam bém assumia um a acep­
ção nova designando o conjunto dos cidadãos, a exigência
dem ocrática desde então colocada no princípio da p o lítica e do
direito público. Para que a república fosse verdadeiramente
republicana, não era necessário que o povo fosse sua alm a, que
as instâncias governamentais fossem, de m aneira m ais ou m e­
nos direta, segundo um m õdo de sufrágio e dos procedimentos
apropriados, a emanação da vontade popular? N ão era preciso,
m esmo que isso não estivesse em Rousseau e resultasse de um a
interpretação que ele não pudera prever, que elas tomassem,
pela representação nacional, as formas da democracia parlamen­
tar a fim de trabalhar para o respeito da opinião, para a liberda­
de e a igualdade dos cidadãos? O pensamento político do século
X V m , prosseguindo seu ím peto, assim entendia que, no Estado
democrático ao qual ele começava a aspirar, o povo fosse ple­
namente soberano, que fizesse suas próprias leis e que a auto­
nom ia fosse saudada como o supremo grau de um a consciência
po lítica en fim chegada, segundo o ideal do Ilum inism o, à m aio ­
ridade. É claro que o discurso dos “ direitos do hom em e do
cidadão” fornece à p o lítica republicana sua ponta de lança
m ais afiada, e, nos ím petos e transtornos da Revolução Fran-

95. Ibid., I II, IV , p. 405.


96. Rousseau, Lettres écrites de la montagne, Carta V I, p. 811.
97. Rousseau, Le contrat social, II, II, p. 380.
248 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cesa, não se tardou em assemelhar a república e o governo de­


mocrático. Contra o p e rfil daí em diante condenado da m onar­
quia do A ntigo Regim e, essa assimilação - mesmo que não cor­
respondesse ao ideal ju ríd ic o -p o lític o de Rousseau, que ffe -
qüentemente se invocava - sim bolizava a santidade da le i e os
valores liberais.
M as, naquilo que se considera geralmente mutações ju ríd i­
co-políticas importantes, dissim ulam -se ao mesmo tempo um a
curiosa ironia da história e, sobretudo, um a espantosa incom ­
preensão das idéias de Rousseau. D e um lado, Tocqueville devia
mostrar que a Revolução Francesa, longe de ter criado um a rup­
tura política comandada pelo universalism o da igualdade e da
liberdade que é o princípio das reivindicações democráticas da
República nova, apenas prolongou o processo de centralização
que, no A ntigo Regime, a monarquia efetuava contra as diversas
formas de feudalismo. Por outro lado e sobretudo, Rousseau era
traído pelos mesmos que diziam , adulando-o, inspirar-se nele. A
democracia originária é seguramente para ele o cadinho da repú­
blica; mas, como tal, longe de determinar u m regime político,
nem sequer a carta juríd ica de um tipo de governo, ela define a
norm a do político, num a linguagem que ainda não é a sua, a
Idéia republicana. A democracia é, segundo Rousseau, o mode­
lo p olítico que fo ija a razão republicana. Portanto, se, em sua
idealidade, esse modelo aclara - como na m atem ática—a d efini­
ção causal genética da República e enche de luz a inteligibilidade
de seu sim bolismo, não pode coincidir com um â organização ins­
titucional concreta, mesmo que esta fosse declarada “revolucio­
nária” . Rousseau sempre repetiu: a democracia é um governo
“perfeito demais” para convir a homens. E la não pode instalar-se
em povos irremediavelmente corrompidos, de tal form a que a so­
ciedade po lítica nunca poderá ser o que deveria ser98: os verda­
deiros “ fundamentos do direito p o lítico ” serão traídos.

98. É por isso que Rousseau, com um a lucidez intelectual que se tem
dificuldade em compreender, devia estim ar que era tão in ú til estabelecer um a
classificação dos regimes políticos ou dos tipos de governo quanto fazer-se a
pergunta por tanto tempo fe ita pelos filósofos, do “m elhor governo” , cf.
Lettres écrites de la montagne, Carta V I, pp. 808-9.
SEGUNDA PARTE 249

Logo Kant, sem dúvida o leito r m ais profundo de R ous-


seau, celebrará as virtudes do “republicanism o” , sempre cui­
dando de d istin g ui-lo bem da dem ocracia". Para evitar qual­
quer confusão, é preciso saber fazer a diferença, observa, entre
as formas do soberano (form ae im perii) e as formas de governo
(form ae regim inis): as prim eiras - encame-se a potência sobe­
rana em um monarca, em um a assembléia ou no povo - são
apenas um a fenom enalização do Estado, cuja essencialidade
reside sempre, na m edida em que é a “ coisa pública” (gemeines
Wesen ou R epublik), na vontade unida do corpo público; as
segundas designam o “m odo constitucional segundo o qual a
vontade geral do povo decidiu que se exerceria seu poder” 100.
Ora, é precisamente no exercício do Poder que se podem dis­
cernir dois modos, e dois modos somente: o republicano e o
despótico, pois a Constituição só pode repousar “ em dois prin ­
cípios políticos” que determinam o m odo como o Estado faz
uso da potência soberana. A alternativa é clara: ou o poder exe­
cutivo é constitucionalm ente distinto do pòder legislativo e
trata-se de republicanism o101, ou o legislador executa as leis
que ele próprio fez, e trata-se de despotism o102; no prim eiro
caso, tom a-se possível resolver o co n flito sempre ameaçador
entre as pretensões privadas e os reclamos públicos; no segun­
do caso, o governo paralisa a coisa pública a ponto de ser, em si,
“ contraditório” . Ora, essa contradição, que faz do despotismo o
m ais pesado dos dogmatismos, K ant a decifra na democracia:
ela esmaga todas as forças críticas e, por m ais que se diga que
a autoridade é a do povo, ela entorpece a liberdade de pensar.
Segundo Kanf, que, manifestamente, compreendeu nesse ponto
a d ifíc il mensagem filo só fic a de Rousseau, se é verdade que
“todo governo leg ítim o é republicano” , é falso que o republica-

99. Kant, Essai sur la paix perpétuelle, T. seção, prim eiro artigo d e fin i­
tiv o , p. 343; AK, V III, 352.
100. Ibid., p. 343; AK, V III, 352.
101. Ibid.
102. Kant, Doctrine du droit, § 49, p. 582; AK, V I, 317: “U m govem o
que fosse ao mesmo tem po legislador deveria ser chamado despótico.”
250 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

nism o se identifique com a democracia: de fato, ele é acim a de


tudo antidogmático e, por essa razão, designa o antídoto do des­
potism o, ainda que este ú ltim o exprim isse a autocracia do povo.

Se, nas análises que tratam da espinhosa questão dos go­


vernos, M ontesquieu, Rousseau e K ant avançam teses pertur­
badoras, a velha trilogia de antigamente, na época ainda conser­
va, no entanto, seu prestígio: encontram o-la assim sob as penas
de V oltaire103 e de Destutt de Tracy104. M as é im pressionante
que, no século X I X , nem o estudo hegeliano do poder governa­
m ental, nem a pesquisa dos “ princípios de po lítica” efetuada
por B . Constant, nem a explicação socioeconômica do p o lítico
avançada por M a rx e Pareto etc. façam referência a elas: a “ des­
classificação” dos regimes p olíticos105 consuma a derrota dos
esquemas tradicionais. A velha trilo g ia dos governos perdeu a
atualidade. N a nova m oda que o pensamento do direito p o líti­
co m oderno vive, o choque entre as doutrinas liberais e as cor­
rentes socializantes, a escalada dos nacionalism os, os ím petos
republicanos trazidos pela vontade democrática e depois, m ais
próxim os de nós, a afirm ação do fenôm eno totalitário (de d i­
reita ou de esquerda) e, hoje, a rejeição das ideologias, a onipo­
tência da m ídia, as perspectivas m undialistas da p o lític a ou o
atual “ declínio das paixões políticas” são outros tantos elemen­
tos complexos e por vezes cum ulativos que empurram para a
sombra as concepções clássicas.
D iante de tal constatação, o filó s o fo podé se perguntar se
as explicações redutoras do direito p o lítico e, m uito especial­
mente, seu relegamento à sociologia e à economia, não ocul­
tam “ as questões fundamentais” , aquelas que, precisamehte, re­
metem aos princípios fundamentais do direito público, às Idéias
(isto é, ao Ideal regulador) que o anim am , tom ando possível e
válid a a norm atividade das instituições.

103. V oltaire, Dialogues entre A, B, C (1768), V I diálogo, reed. Caen,


1985, pp. 44-8.
104. Destutt de Tracy, Commentaire sur L ’esprit des lois de Montes­
quieu (1817), reed. Caen, 1992, cap. I II, pp. 17-30.
105. C f. P hilippe Bénéton, op. ait., pp. 43 ss.
SEGUNDA PARTE 251

B ) Uma hermenêutica da norm atividade institucional

A m ultiplicidade das determinações - históricas, culturais,


científicas, técnicas, econômicas, diplom áticas etc. - que inter­
vêm na po lítica dos Estados modernos lhe dá freqüentemente a
feição de um labirinto em que é d ifíc il discernir um a racionali­
dade específica que, no entanto, ela invoca como seu axiom a
fundam ental. Isso é ainda m ais d ifíc ii porque, como os filó s o ­
fos desde o século X V I I I puseram a questão da liberdade no
centro de sua reflexão, o direito p o lítico se apresenta como um
lugar polêm ico em que antinom ias teóricas e conflitos práticos
se atam e ressurgem sem trégua. 0 estatuto filo só fic o do direito
p o lític o moderno parece, portanto, trazer a marca da am bigüi-
dade e, quando o hum anism o se transform a em terror e o sen­
tido em falta de sentido, ou quando a liberdade, envergando a
máscara da m entira e da corrupção, se tom a “ a liberdade do
vazio” , essa ambiguidade não deixa de ter um a certa m aldição.
Entretanto, não se poderiam confundir as vicissitudes da aven­
tura po lítica m oderna, que são apenas a factualidade contin­
gente da história, com o poder produtor de normas que form a a
natureza intrínseca do direito p o lítico . Noutras palavras, o fato
de o Estado ser em piricamente o local da história e dos torm en­
tos gerados por seus sobressaltos não deve fazer esquecer a es­
pecificidade e a irredutibilidade da exigência de ordem e de
norm atividade que ele m anifesta. N ão só a po lítica m oderna é
inseparável da arquitetura ju ríd ic a que a sustenta, mas, como o
Estado moderno é o Estado “ legal” , ou m elhor, o Estado D O
d ireito, a p o lítica é um a ação nom m tizada, m ediatizada em to­
das as suas expressões por um conjunto de instituições e de
regras que se ordenam em um ed ifício norm ativo.
D e K ant a Kelsen, o trabalho da reflexão crítica mostra
que a problem ática fundam ental da filo s o fia p o lítica consistia
em um a busca do fundamento m ais profundo da autoridade do
Poder. Conseqüentemente, convém exam inar a lógica im anen­
te do direito p o lítico a fim de apreender nela a identidade espe­
c ífic a de sua capacidade norm ativa.
252 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A inseparabilidade do Estado e do direito

N inguém m elhor do que Kelsen106 soube mostrar em sua


“teoria pura do direito” que o Estado moderno não se distingue
da ordem ju ríd ic a que o organiza. Esse ponto é capital. O pon­
do-se a G . Jellinek107,. Kelsen considera que Estado e direito
são inseparáveis108, à ponto de um Estado de não-direito ser
pura contradição nos termos: num estado (status) de não-direi­
to, não pode haver nem Estado ( C ivitas) nem p o lítica (p o li-
teia)m . O Estado é, portanto, sempre o Estado D O direito, e,
na fig ura estática de suas instituições bem como em sua dinâ­
m ica, ele se caracteriza por sua norm atividade, que unicam en­
te um a lógica transcendental desenvolvida em um procedimento
crítico é capaz de explicar.
F o i dito com justeza que o desígnio de Kelsen não é invo­
car “ a autoridade objetiva da ciência do direito para ju s tific a r
as pretensões políticas” 110. A hostilidade que sempre teve para
com a ideologia - noção que, considera ele, “mascara, transfi­
gura ou distorce a realidade” 111 - explica em grande parte seu

106. Poderíam os igualm ente interrogar a esse respeito as obras, dora­


vante clássicas, de M a x W eber que insistem na im portância da “ dom inação
legal” , ou de R aym ond Carré de M alberg que teorizam “ o Estado legal” . M a is
próxim o de nós, citem os, no m esmo sentido, o constitucionalism o que C ari
Friedrich expõe na Encyclopaedia o f the Social Sciences (1968) e o legalism o
(the rule ofLaw ) defendido por M . O akshott em On History and other Essays,
pp. 119 ss.
107. A controvérsia gira principalm ente em tom o da obra de Jellinek
Allgemeine Staatslehre, 3? ed., 1914.
108. H . Kelsen, Das Wesen des Staates, trad. fr. in La pensée politique
de Kelsen, Cahiers dephilosophie politique etjuridique, 1990, n? X V II, p. 20.
109. Essa idéia é, na obra toda, um leitm otiv poderoso. C f., por exem plo,
Ü ber Staatsunrecht (1914) in Ausgewählte Schriften von Hans Kelsen, ed. por
M e rk l e Verdross, I, pp. 957-1057; Das Wesen des Staates, art. c it.; Théorie
pure du droit, trad. Charles Eisenm ann, Sirey, pp. 378 ss.
110. Prefácio de Jean Thevenaz (1934) à tradução da Théorie pure du
droit, L a Baconnière, p. 17.
111. Théorie pure du droit, trad. Thevenaz, 1? edição, § 17. Sobre esse
aspecto do pensamento de Kelsen, cf. Peter Röm er, D ie R eine Rechtslehre
Hans K elsen’s als Ideologie und Ideologie K ritik , in Politische Viertel Jah­
resschrift, 1971, 12, pp. 579-98.
SEGUNDA PARTE 253

projeto epistem ológico de um a teoria “pura” do direito. A idéia,


j á presente em 1911 em Hauptproblem e der Staatslehre, perma­
neceu im utável no curso da obra. Trata-se, para o ju rista de V ie ­
na, de exam inar o direito positivo em si próprio a fim de elabo­
rar um a ciência do direito objetivo, desvencilhada - depurada
- de todas as considerações extracientíficas e extrajurídicas, ou
seja, ideológicas e m etafísicas. O m ó b il geral e fundam ental do
m étodo é elim inar da ciência do direito todos os elementos que
lhe são alheios. Considerado do ponto de vista filo só fic o , o
estudo do direito positivo que Kelsen realiza não sig n ifica por­
tanto, como se repete continuamente, que ele é “positivista” : a
teoria pura do direito elabora um a ciência norm ativa do direito,
não porque estabelece ou constrói norm as, mas porque estuda
com o as normas em vig o r hic et nunc no direito positivo tor­
nam possível a interpretação das condutas humanas. Ora, nesse
estudo que tem por objeto o sentido e o valor de um a ordem ju ­
rídica, o traço m ais orig in al é que, como não há necessidade
algum a de recorrer aos conceitos e às categorias extrajurídicas
do direito natural, da m oral, da história ou da m etafísica, toda
ordem ju ríd ic a é compreendida juridicam ente, ou seja, de acor­
do e a partir da norm atividade que lhe é inerente e lhe dá sua
juridicidade.
Esse im perativo epistem ológico .fo i m ais ou menos bèm
compreendido pelos leitores de Kelsen que, por esse m otivo,
frequentemente pensaram que a questão do direito p o lítico
ocupava um lugar m ín im o e praticamente desprezível na sua
obra. N a verdade, isso era enganar-se sobre seu significado pro­
fundo. D e um lado, Kelsen não é um ju rista teórico puramente
m editativo. V ive u até m uito de perto os últim os sobressaltos do
Im pério austro-húngaro e concedeu suas simpatias políticas ao
Partido Social-Democrata. N o fin a l do ano de 1918, o chanceler
K a rl Renner confiou-lhe o encargo de preparar para a Á ustria
um projeto de Constituição que aliás, no essencial, fo i adotado.
Esse projeto comportava a criação de um a Corte Constitucio­
n al que, efetivamente, fo i criada e em cujo seio ele fo i nomeado
“m embro v ita líc io ” . Sua carreira nesse cargo fo i agitada; quan­
do surgiu a questão do divórcio entre os católicos, ele fo i alvo
254 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de críticas m uito fortes, que estranhamente lhe acarretaram a


exclusão, com todos os outros membros vitalício s, entretanto
por definição inam ovíveis, da Corte Constitucional. Sua refle­
xão sobre o direito p o lítico , porém , não pára com esse episó­
dio. A o contrário, na Europa e depois nos Estados U nidos, teve
m últiplas oportunidades de observar o funcionam ento do Estado
m oderno e de escrutar os princípios nos quais repousam suas
estruturas jurídicas. A pós várias experiências acadêmicas v iv i­
das penosamente nas universidades de C olônia e de Praga, onde
fo i alvo dos estudantes pró-nazistas, e apesar de duas estadas
m ais tranqüilas no In stituto dos A lto s Estudos Internacionais
de Genebra, fo i obrigado, com o m uitos judeus, a seguir o ca­
m inho do e xílio . A s universidades de H arvard e de Berkeley o
acolheram calorosamente. Pôde então prosseguir sua reflexão
sobre o direito público e sobre o direito internacional. Isso lhe
perm itiu não somente term inar sua “teoriapura do direito” 112 e
distinguir suas grandes linhas mestras de m aneira didática em
1945 em G eneral Theory o f L aw and State113, mas também,
sob a influência da filo s o fia anglo-saxã, dar à sua concepção
norm ativista do direito público a in flexão nova que se descobre
em sua obra póstuma (1979) Allgem eine Theorie der Norm en114.
Por outro lado, se Kelsen não fala, ou fa la m uito pouco, das
vicissitudes da carreira política, que contudo viveu dolorosa­
m ente desde antes da ascensão do nazism o115, sempre deu um a
atenção acentuada aos problemas juríd icos e filo só fic o s susci­
tados pelos conceitos-mestres do direito político m oderno. Já
em seus prim eiros trabalhos116, indagava-se sobre a noção de

112. A prim eira edição dessa obra h avia sido lançada em 1932, antes do
seu e xílio .
113. Essa obra acaba de ser traduzida em língua francesa: Théorie gene­
rale du droit et de l'État, LG D J, 1997.
114. A tradução francesa dessa obra acaba de ser lançada, P U F , 1996.
115. C f. a carta autobiográfica que d irig iu , de V iena, em 1927, ao pro­
fessor rom eno G yu la M o or (trad. fr. de M ic h e l Troper, in D ro it et Société, tf.
V II, 1987, pp. 345-8).
116. D ie Staatslehre des Dante A lighieri, 1905; Hauptprobleme der
Staatslehre, 1811.
SEGUNDA PARTE 255

Estado a fim de elucidar um conceito que sabia dividido, no


in íc io do século X X , entre um a ressonância sociológica e um a
acepção jurídica. É m uito sig n ificativo que, qualquer que tenha
sido a evolução do seu pensamento, os estudos que dedicou à
soberania117, à Constituição118, ao parlam entarism o119, à demo­
cracia120, ao Estado121 constituam pontos fortes de um im enso
corpus dom inado por Reine Reçhtslehre (1934) e Allgem eine
Theorie der N orm en (1979). E m sua m aioria, esses estudos
foram realizados no contexto p o lítico perturbado vigente entre
as duas guerras. Adem ais, desencadearam ásperas polêm icas,
das quais a m ais ardente fo i a travada entre C. Schm itt e H .
Kelsen. A verdade é que, m esm o na ú ltim a parte da obra, em
que transparecem esquemas epistemológicos novos, o problem a
do Estado continua no centro das preocupações filo só ficas do
ju ris ta austríaco. Longe de se lim ita r a um a teoria descritiva do
Estado, ele abala um a tradição secular e define o Estado como
um a entidade ju ríd ica, aó ponto de, para ele, Estado e ordem
ju ríd ic a serem expressões sinônim as: “ Todo Estado é necessa­
riam ente um Estado do direito (Rechtsstaat), no sentido de que
todo Estado é um a ordem juríd ica.” 122
A o longo de toda a sua obra, Kelsen permaneceu fie l a
essa concepção m onista legalista do Estado123. Sua argumen­
tação reside em prim eiro lugar em um a crítica dos pressupostos
da teoria do Estado moderno tal como aparece desde B odin. O

117. Das Problem der Souveränität und die Theorie des Völkerrechts;
Beitrag zu einer reinen Rechtslehre, 1920.
118 .D ie Verfassungsgesetze der Republik Deutschösterreich, m it einer
historischen Uebersicht und kritischen Erläuterungen, 5 v o l., 1919-1922.
119. Das Problem des Parlementarismus, 1925.
120. Wom Wesen und Wert der Demokratie, 1929; Demokratie und So­
zialismus, 1967.
121. Allgemeine Staatslehre, 1925; General Theory ofL aw and State,
1945.
122. H . Kelsen, Theorie pure du droit, pp. 418-9.
123. C f. por exem plo, D er soziologische und der juristische Staatsbe-
griff, kritische Untersuschung des Verhältnisses von Staat und Recht, 1922;
Theorie pure du droit (19 34), trad. Ch. Eisenm ann, Sirey, 1962, p. 193; Ge­
neral Theory ofLaw and State, N o va Y o rk , 1945, pp. 181 ss.
256 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

axiom a básico dessa teoria, d iz de fato Kelsen, é dualista: ten­


de a fazer do Estado um a comunidade, regida pelo direito na
m edida em que é um sistema de normas. Ora, segundo Kelsen,
ta l form ulação, por m ais tradicional que seja, é indefensável na
m edida em que pressupõe que a realidade social da com unida­
de política é anterior ao aparelho juríd ico que a estrutura. O dua­
lism o assim adotado é desprovido de pertinência: um a p lu ra li­
dade de indivíduos form a um a comunidade estatal se, e somente
se, um a ordem norm ativa coerciva reja suas condutas; a com u­
nidade que chamamos de Estado não se distingue portanto da
ordem ju ríd ica que a organiza. N a teoria dualista, superpõem-se
mesmo dois erros, um lógico, o outro filo só fic o , particularm en­
te detectáveis no procedim ento adotado por Jellinék, segundo
quem a teoria de Estado se insere ao m esmo tempo nas ciências
sociais e nas ciências jurídicas. Ora, replica Kelsen, o Estado
não é um a realidade social que é o substrato do direito; e o
direito não é “ como um a causa prim eira não causada, que cria­
ria o Estado a partir do vazio norm ativo” : do estrito ponto de
vista lógico, “não sé pode conceber um Estado a um só tempo
criado do direito e subm etido ao direito” 124. O erro filo s ó fic o
decorre da tentação sociologista (ou psicossociologista) que,
nò dizer de Kelsen, embasa a gênese contratualista da vontade
geral125. Essa tentação, concorda ele, é sedutora na m edida em
que considera o direito um produto da vontade dos povos. M es­
m o assim é falaciosa, pois não é possível atribuir um funda­
m ento à unidade da pluralidade dos indivíduos que se reúnem
para form ar um Estado126. Jellinek se engana quando acredita
que existe um elemento psicológico com um a todos aqueles
que, parlamentares ou m inistros, têm a qualidade de órgãos do
Estado: eles não decidem nem agem em virtude de um a q uali­
dade psicológica ou social, mas somente porque receberam
desta ou daquela norm a ju ríd ic a a habilitação para decidir ou

124. M ic h e l Troper, Pour une théorie juridique de l ’État, P U F , 1994,


p. 146.
125. H . Kelsen, General Theory ofLaw and State, p. 285.
126. Ibid., p. 183. O texto inglês d iz one in the many.
SEGUNDA PARTE 257

agir em nom e do Estado e para ele. A liá s , nenhum fato - seja


ele psíquico como a vontade in d ivid u al, ou social como a von­
tade geral - pode produzir direito: Jus ex facto non oritur. Kelsen
repete à exaustão: apenas o direito é criador de direito. E m
páginas impressionantes, a Teoria p u m do direito mostra que o
direito não é fruto das volições humanas, mas que cabe às nor­
mas do sistema ju ríd ic o dar à vontade um a qualificação ju r íd i­
ca e um sentido norm ativo, que são os únicos que podem tom á-la
apta para produzir decisões de direito. E m conseqüência, nunca
o Estado, na sua natureza própria, deve ser confundido com os
elementos factuais que pertencem à sua substância. De maneira
geral, todas as concepções psicossociologistas do Estado, por
m ais sedutoras que sejam, têm um caráter superficial que lhes
onera pesadamente a validade. A ssim , quando se considera que
o Estado é um corpo social que tem por princípio a interação
dos membros que o compõem, não se indica o critério decisivo
da realidade estatal - a interação é onipresente na natureza in ­
teira - e nada autoriza afirm ar que a interação existente entre
os indivíduos de um mesmo Estado é m ais intensa do que a
constatada entre indivíduos pertencentes a Estados diferen­
tes127. A teoria da interação é um a ficção sociopolítica e erra
ao ocultar o caráter ju ríd ic o do Estado. D a mesma form a, não
se poderia adm itir a tese sociológica segundo a qual a vontade
coletiva e o interesse com um do grupo constituem os critérios
da unidade estatal. Também as noções de sentim ento coletivo
ou de consciência coletiva não são determinantes da natureza

127. Ibid., p. 183. Essa asserção, insiste Kelsen, é até desm entida pelos
fatos: acontece que indivíduos que têm a m esm a nacionalidade, a mesma raça
ou a mesma religião, portanto, m uito próxim os uns dos outros, fiquem disper­
sos nos Estados em que a população carece de homogeneidade. O fato de per­
tencer a um a mesma com unidade religiosa ou lingüística, ou ainda a um a
mesma classe, cria fieqüentem ente laços m ais estreitos do que a cidadania.
A lé m disso, os m eios de comunicação de que dispõem os hom ens do século
X X perm item aos povos dispersos no m undo partilharem os mesmos valores
espirituais: “ Se se pudesse m edir com exatidão a intensidade das interações
sociais, veríam os m uito provavelm ente que a hum anidade está d ivid id a em
grupos que não coincidem nem u m pouco com os Estados” (p. 184).
258 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do Estado. Toda tendência a hipóstasiar a vontade com um ou o


interesse geral engloba um a intenção ideológica cuja frag ilid a­
de Kelsen assinala: se esse fosse o Critério do Estado, nem se­
quer haveria necessidade de leis, já que a ordem ju ríd ic a coin­
cidiria com a obediência voluntária de todos os súditos. - K e l­
sen recusa igualm ente a concepção organicista do Estado, da
qual elege von G ierke como o representante m ais n otório128;
Essa concepção não dá um a explicação científica do fenôm eno
estatal, na m edida em que a transposição dos esquemas b io ló ­
gicos que ela opera se encontra carregada de significado ético-
político: o argumento que ela usa m ais ffeqüentemente não é o
de que o cidadão não se pertence e dá sua vida, se necessário
for, pela pátria? - E n fim , se a teoria sociológica que define o
Estado em termos de dominação é célebre, nem por isso deixa
de ser errônea129, pois inverte a ordem dos fatores que leva em
consideração. Certamente, existe em todo Estado um a relação
de m ando com obediência que se exprim e pela regulamentação
ju ríd ic a das condutas qüe a le i define. M as, quando essa rela­
ção é determinada por aquele que declara im por suas ordens
“ em nom e do Estado” , a questão é saber qual é o critério que
perm ite distinguir essas ordens dadas “ em nom e do Estado”
dos outros mandos. N ão será necessário que procedam de um a
ordem cuja validade é pressuposta? A visão sociologista im p li­
ca subrepticiamente a idéia de um a ordem ju ríd ic a válid a e,
portanto, requer como fundam ento, sem o confessar, a norm a-
tividade do direito. Seus defensores raciocinam ao contrário:
longe de explicar a ordem norm ativa do direito, eles a pressu­
põem, pois ela precisa dele130. Portanto, isso sig n ifica que u n i­
camente o conceito de um a ordem ju ríd ic a considerada como
um sistema de normas válidas confere um a legitim idade às pres­
crições editadas “ em nom e do Estado” ; só ele perm ite d istin -

128. C f. V o n G ierke, Das Wesen der Menschlichen Verbände, 1902, pp.


34 ss.
129. Kelsen, Der Soziologische und der Juristische Staatsbegriff(2? ed.,
1927).
130. Kelsen, General Theory o f Law and State, p. 186.
SEGUNDA PARTE 259

gui-las dos mandos que um bando de m alfeitores enuncia131.


A liá s, sustentar que a autoridade estatal encontra suas raízes na
força é pura aberração132. A autoridade do Estado só encontra
sua especificidade, portanto sua essência, na legitim idade de
seu conceito: “A dominação que, sociologicam ente, se caracte­
riza como dominação do Estado, se apresenta como criação e
execução de uma ordem de direito, ou seja, como um a dom ina­
ção que é interpretada como ta l pelos que m andam e pelos que
obedecem.” 133 Portanto, m esm o quando a dominação estatal é
vista pela sociologia como objeto, ela não se apresenta como
u m fato bruto, mas como um fato inseparável da interpretação
que fazem dela aqueles que dão as ordens e aqueles que as
recebem. M a x W eber tem razão em dizer que só se compreen­
de uma conduta social através de sua interpretação e por ela134. D e
m aneira geral, o erro das análises sociológicas do Estado é não
ter a especificidade dele, porque pressupõem sua dimensão
ju ríd ic a sem se interrogar nem sobre sua natureza nem sobre
suas im plicações. Isso é particularm ente flagrante na célebre
definição do Estado por seus três elementos: o povo, o territó­
rio e a potência pública135. 0 sofism a aqui é patente, pois esses
elementos, longe de serem, no caso, fatos em píricos brutos, só
são definíveis como elementos do Estado pelo próprio Estado
e, portanto, pela ordem ju ríd ica que o constitui.

131. E M ., pp. 191 ss.: cf. T . G uastm i, I briganti e lo Stato. U n enigm a


n ella dottrina pura dei d iritto, Rivista Trimestrale d i D iritto e Procedura civi-
le, 1984, n? 3, pp. 655-65.
132. Kelsen, L ’essence de 1’État, trad. citada, p. 24: “ Os canhões, as
m etralhadoras, as bom bas a gás, as fortalezas e as prisões, os patíbulos e as
guilhotinas” não são np Estado “objetos indiferentes” , mas não indicam abso­
lutam ente sua essencialidadé.
133. Kelsen, General Theory ofLaw and State, p. 188. O g rifo é nosso.
134. C f. M a x W eber, Wirtschaft und Gesellschaft, I. N o curso de sua
obra, Kelsen atribuirá um a im portância cada vez m aior à interpretação. É por
isso que sua condenação da explicação causalista é inapelável: “A sociologia
do direito não relaciona os fatos positivos que ela deve apreender com normas
válidas, mas relaciona com outros fatos positivos, do ângulo das relações de
causa com efeito.” Theorie pure du droit, p. 142.
135. Kelsen, General Theory ofLaw and State, pp. 207 ss.
260 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A ssim , segundo Kelsen, o Estado é inconcebível fora do


direito. A doutrina tradicional, na sua feitura dualística, é inca­
paz de explicar o que fa z “ a essência do Estado” : não somente
ela chega, através da sua teorização da soberania, a hipostasiar
um Estado que transcende o direito e pode então ter seus “ m is­
térios” 136, como oblitera completamente a especificidade do E s­
tado, a saber que, fundador do direito, ele só pode fundar a si
próprio no direito e se ju s tific a r por ele.

D epois dessa crítica sem concessões das teorias dualistas,


a argumentação kelseniana pode assumir um a feição construtiva.
O Estado se define como “ um a ordem norm ativa” ou como um
“ sistema de normas” que determ ina “ o que deve (s o ll) aconte­
cer, mesmo que isso nem sempre aconteça” 137. E le “ só pode ser
pensado corno um a autoridade que dom ina os homens na m edi­
da em que é um a ordem que coage os homens a um determ ina­
do comportamento e, portanto, u m sistema de norm as que re­
gula o comportamento hum ano” . Essa ordem norm ativa tem
um a validade objetiva que define “ a esfera da existência espe­
c ífic a do Estado” . A representação que tem um a norm a como
objeto (ou como conteúdo) é, quanto a ela, eficaz, ou seja, pro­
voca um comportamento dos homens conforme à norma. Pode-se
assim estabelecer que a ordem juríd ica que define o Estado exis­
te como um a ordem de coerção norm ativa a um só tempo válida
e eficaz: “ Seria absurdo adm itir a validade de um a ordem esta­
tal à qual o comportamento dos homens de m odo algum se con­
formasse.” O Estado é, conseqüentemente, “o ponto focal com um
da imputação de todos os atos estatais identificáveis como es-
pecificam ente norm ativos” .
D a mesm a form a, o Estado é, enquanto ordem ju ríd ica,
um esquema de significado ou, dito de outra form a, “ um sistema
id eal graças ao qual certos fatos reais são distinguidos como
atos estatais na m edida em que é constatada sua concordância

136. Kelsen pensa nesse ponto no Estado-Leviatã de Hobbes, cf. Gott


undStaat, 1922-1923.
137. A s citações que se seguem pertencem ao artigo já Citado, A essên­
cia do Estado, que data de 1926, pp. 2 0 ,2 1 ,2 3 ,2 5 ,2 7 .
SEGUNDA PARTE 261

com o conteúdo desse sistema” . Essas indicações serão inúm e­


ras vezes repetidas por Kelsen138: o Estado é - e não é nada
m ais além disso - “ a ordem ju ríd ica” das condutas humanas. O
conceito unitário do Estado e do direito corresponde à “ idéia”
que orienta as ações do hom em na comunidade c iv il. Dora­
vante, a razão lógica pela qual toda concepção dualista que sepa­
ra o Estado e o direito é indefensável fic a perfeitam ente clara:
“N ão pode haver m ais de um conceito do m esmo objeto.”
A s conseqüências dessa especificação do Estado são in c i­
sivas. Por exem plo, o Estado m oderno que se caracteriza como
potência soberana só é concebível em termos de norm ativida-
de. Todo conflito que se levanta entre um ind ivíd uo e o Estado
im p lica referência à natureza norm ativa da potência estatal:
supõe um a distorção entre a vontade ou a conduta efetiva de
u m in d ivíd u o e o sistema das norm as estatais, noutras pala­
vras, o antagonismo entre o que é e o que deve ser (the is and
the oughf). Adem ais, a organização do Estado como sociedade
po lítica é um a ordem cuja especificidade reside em seu caráter
essencialmente coercivo139, isso porque ele dispõe do uso da
força da qual tem o m onopólio, juridicam ente estabelecido e
que m anifesta um a coerção legal. O poder do Estado “ é o po­
der que o direito positivo organiza; é o poder do direito, ou seja,
a eficácia do direito positivo” 140. O m onism o kelseniano não
tolera nenhuma reserva: é “puro” . Quando H auriou considera
esse m onism o a fonte provável de todas as servidões141, comete
o erro de transportar para o terreno ideológico (do qual Kelsen
sempre fu g iu ) um filó so fem a cujo alcance é epistem ológico. O

138. C f. Über Grenzen zwischen juristischer und soziologischer Method,


W T S , I, pp. 3-36; Théorie pure du droit, trad. cit., pp. 378 ss.; General Theory
o f Law änd State, pp. 188 ss.
139. Kelsen, Théorie pure du droit, pp. 46 ss.
140. Kelsen, General Theory ofLaw and State, p. 190. V ê-se m uito bem
nisso que o Estado não é um fenôm eno de dom inação pela força bruta: o
poder do Estado só tem sentido exercido na form a ju ríd ic a por órgãos que a
ordem ju ríd ic a designou e investiu de competências jurídicas.
141. M aurice H auriou, Aux sources du droit, reed., Caen, 1986, pp. 77
e 80.
262 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

im portante, na teoria kelseniana do Estado m oderno, é que seja


excluída de sua compreensão toda referência a elementos feno­
m enais. O Estado, em si, não é um a realidade em pírica, mas
puramente conceituai. Sobretudo, nenhum ato estatal pode ser
explicado de m aneira causalista: o problem a filo só fic o do Esta­
do é um problem a de im putação142. A imputação é m esm o o
critério decisivo do Estado do direito: ela sig n ifica que toda
ação estatal é determinada de m aneira específica pela ordem
norm ativa do sistema ju ríd ic o ; stricto sensu, é a execução da
ordem jurídica.
Prosseguindo sua análise, Kelsen explica que o Estado, con­
siderado, através dos seus diversos órgãos, sujeito de imputação,
pode, por comodismo, ser designado como “pessoa jurídica” ( jú ­
ris tic person). Entendamos então que, como entidade ju ríd ica,
ele é sim bolicam ente “ a personificação de um a ordem de direi­
to” . M as é bem m ais pertinente e m uito m ais im portante sa­
lientar que a vocação do Estado é preencher, graças às instân­
cias que chamamos de seus órgãos, certo núm ero de junções,
determ inadas pela própria ordem juríd ica. Cada um desses ór­
gãos tem, enquanto agente ju ríd ico , um a função própria que
nenhum outro está habilitado a cumprir. Disso decorre que, na
ordem ju ríd ica estatal, a vontade não intervém sozinha para
criar direito. Todas as normas do direito são criadas por atos de
direito, que por sua vez só têm significado ju ríd ico em virtude
de normas de direito de um plano m ais elevado. Somente o d i­
reito produz direito. Portanto não se poderia designar o Estado
como “pessoa ju ríd ica” a não ser de m aneira fic tíc ia ou sim bó­
lica na m edida em que é “um centro de im putação” . E, no caso,
o significado da m etáfora é m ais im portante do que a própria
ficção: ela se traduz pela célebre im agem da pirâm ide ju ríd ic a
que explica, do ponto de vista da “ estática ju ríd ica” , a hierar­
quia das norm as: sob a Constituição, elas vão, de patamar em
patamar, do corpus das leis aos regulamentos e às decisões in ­
dividuais; do ponto de vista da “ dinâm ica ju ríd ica” , a hierar-

142. Kelsen, Théorie pure du droit, pp. 105 ss.; General Theory o f Law
and State, p. 191.
SEGUNDA PARTE 263

quia das normas reveste o aspecto de um a gênese ju ríd ica, já


que, segundo o esquema da Stufenbautheorie ou “ form ação do
direito por graus” , toda norma resulta da aplicação de um a norm a
superior e comanda a criação de norm as inferiores. Vê-se em
conseqüência que, no Estado D O direito, a função dos diversos
órgãos, que vemos como criação ou como aplicação de normas
jurídicas, sig n ifica que o direito regula sua p ró p ria criação143.
A teoria do Estado responde assim à quaestio ju r is , cuja
im ensa fecundidade Kelsen avaliou na obra de K ant e no neo-
kantism o da Escola de M arburgo. Seguindo assim a v ia do cri-
ticism o, ele mostra que a natureza do Estado, independente-
m ente do regime p o lítico que se outorga, é ligada à validade de
sua ordem ju ríd ic a 144. O Estado só constituir um com a ordem
norm ativa de coerção que seu sistema de regras positivas de
direito constitui é tão fundam ental que, precisa Kelsen, em caso
de revolução vitoriosa ou de golpe de Estado bem -sucedido
não se pode sequer dizer, como se faz habitualmente, qüe “ gran­
de parte das leis que foram editadas sob o im pério da antiga
Constituição ‘permanece em vig o r’ : essa ú ltim a expressão” ,
escreve Kelsen, “ não é ju sta” 145. Então não há certamente cria­
ção de um direito novo, mas “recebimento por um a ordem ju rí­
dica de normas de um a outra ordem” e, no entanto, tudo se
passa como se esse recebimento fosse “ apesar de tudo criação de
direito” . Portanto, temos de sublinhar que o Estado é um a ordem
de direito centralizado (ou relativam ente centralizado)146 e que
conserva sua identidade enquanto essa ordem é m antida, ou
seja, enquanto as m odificações que intervêm no conteúdo das
normas resultam de atos conformes à Constituição147, o que m os­
tra que “ o governo efetivo, que estabelece norm as gerais e nor-

143. Segundo K elsen, isso é o que a doutrina tradicional jam ais v iu ,


petrificada num a postulação dualística que faz do Estado u m in d ivíd u o supra-
hum ano (o Leviatã é o exem plo m ais im pressionante) cujas vontade e autori­
dade editariam às regras de direito.
144. Théorie pure du droit, p. 294.
145. Ibid., p. 279.
146. Ibid., pp. 325 e 379; General Theory o fLaw and State, p. 189.
147. General Theory ofLaw and State, pp. 219-20.
264 OS PR IN C ÍPIO S f il o s ó f ic o s d o d ir e it o

mas individuais eficazes, com base num a Constituição eficaz,


representa o governo legítim o dó Estado” 14?.
É preciso avaliar a principal conseqüência da tese que, no
norm ativism o de Kelsen, identifica o Estado e o direito149. Con­
trariamente à idéia, clássica desde B o d in e Hobbes, segundo a
qual o Estado é criador do direito, Kelsen considera que o
Estado é ele próprio o direito. D a í decorre a condenação que
pronuncia da teoria da lim itação do Estado. N ão só essa teoria,
tal como a form ularam , na esteira de M ontésquieu, H um boldt
e Laboulaye, e até Carré de M alberg (falando m ais precisa­
mente da “ autolim itação do Estado” ), é deficiente em razão de
sua referência ao dualism o do Estado e do direito, mas, quando
reportada à lógica do m onism o legalista de Kelsen, não tem
sentido algum: o Estado não pode ser mais lim itado pelo direito
do que criado por ele, já que a ele se id entifica. Quando esses
autores falam da lim itação do Estado pelo direito, são vítim as,
no dizer de Kelsen, de um a confusão das categorias e de um a
insuficiência de análise. O erro deles é não fazer diferença en­
tre o Estado comõ entidade ju ríd ic a e os órgãos do Estado, cujo
campo de competências específicas, evidentemente, deve ser
determinado pelo direito. Ora, a idéia de Kelsen segundo a qual
a lim itação do Estado é inconcebível devia levantar contra sua
teoria críticas virulentas.
Essas críticas são de duas ordens: umas dizem respeito ao
edifício hierárquico das normas; as outras, m ais profundas, con­
testam sua concepção do Estado do direito. A s críticas do p ri­
m eiro tip o 150 atacam, com um a espantosa incompreensão do

148. Théorie pure du droit, p. 280.


149. M esm o que Kelsen, na Théorie générale des normes, abrande, pro­
vavelm ente sob a influência do pensamento anglo-saxão, o logicism o das nor­
mas cujo campo, aliás, ele generaliza (a ponto de considerar a relig ião e o
direito “ duas ordens norm ativas sim ilares” ), ele não parece ter pensado em
m o dificar sua teoria ju rid ista do Estado, de que, de resto, ele fa la pouco nessa
ú ltim a obra, cf. n. 38, in trad. fr. citada, p. 38.
150. C f. por exem plo Deão M aury, Observations sur les idées du profes­
seur Kelsen, Revue critique de législation et dejurisprudence, 1929, pp. 527
ss.; K Capitant, Introduction à l ’étude de l ’illicite. L ’im pératif catégorique,
pp. 162 ss.
SEGUNDA PARTE 265

procedim ento criticista de Kelsen, a idéia da Grundnorm (o u


U m orm ) que, na Teoria pura do direito, designa a “ hipótese de
validade” suposta por Kelsen como a “ hipótese lógica trans­
cendental” , sem a qual não seria possível estabelecer o ed ifício
das normas jurídicas.
Essas críticas, que a frase de M ic h e l V ille y poderia resu­
m ir, ao reprovar Kelsen por reconstruir a realidade ju ríd ic a “ do
ponto de vista do im aginário” 151, não se referem diretamente à
concepção que Kelsen tem do Estado, identificando-o ao direi­
to. E m compensação, a crítica radical de C. Schm itt pretende
expressamente atacar, em um a retumbante controvérsia, a filo ­
so fia kelseniana do Estado152.

C a rl Schmitt, adversário de Kelsen

E m sua Teoria da Constituição153, Schm itt se opõe a Kelsen


com acentos que, m utatis m utandis, lem bram a polêm ica entre
Hegel e Kant. E m todo caso, não deixam de mostrar um a des-

151. M ic h e l V ille y , Leçons d ’histoire de la philosophie du droit, Sirey,


p. 344.
152. Assinalem os igualm ente, desse ponto de vista, mas com m enor
envergadura, a crítica de H enry D upeyroux, Archives de philosophie du droit,
1938, pp. 1-97. O autor, colocando-se no terreno da técnica ju ríd ic a , estim a
que não é possível identificar o Estado com a pura dimensão norm ativa das
regras de direito. Quando Kelsen invocou K ant e o neokantism o, d iz em suma
H . D upeyroux, cometeu um erro filo só fic o , pois não v iu que um a regra de
direito só adquire sentido graças ao poder sintético e à atividade unificadora
do pensamento, no m om ento em que se apropria dos fatos da experiência
hum ana para os subsum ir e os qualificar (exatam ente como um conceito do
entendim ento só adquire significado, segundo Kant, sensibilizando-se graças
aos esquemas da im aginação). D a mesma form a, por não ter detectado no
kantism o cuja pré-form ação ele reivindica aquilo a que a fenom enologia chama
“ a intencionalidade” , Kelsen, no seu “puro” norm ativisrrio, perdeu a am biva­
lência essencial do direito e, em conseqüência, a do Estado em que o Sollen
não pode ser indiferente ao Sein. Kelsen, d iz H . D upeyroux, condenou-se à
contradição ao adm itir que, no Estado, a validade das regras da pirâm ide ju r í­
dica deve ser com pletada pela noção de eficácia (argum ento que, rigorosa­
m ente, só é fie l ao pensamento de Kelsen, segundo o qual a eficiência das
regras condiciona a própria validade delas).
153. C . Schm itt, Verfassungslehre, E ed., 1928; trad. fi., P U F, 1993.
266 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

norteadora incompreensão do m onism o norm ativista que K e l-


sen defendeu. M ercê de um a polêm ica por vezes m uito técni­
ca154, que enseja um a severidade que beira a m á-fé, Schm itt
acusa Kelsen de encerrar sua teoria do Estado na sistematicidade
de um a especulação totalm ente abstrata, ao passo qué, aos seus
olhos, o “poder constituinte” dê um Estado — Sieyès, d iz ele, te­
ve razão de insistir nesse ponto155 - emana da vontade desse su­
je ito concreto que é o povo-nação. Se a Constituição pode ser
considerada como designando a essência da política, é unica­
m ente, declara Schm itt, porque é um a decisão tom ada pela na­
ção relativam ente às instituições de sua própria existência num
dado m om ento de sua história. Apesar de, nesse ponto, ele en­
fraquecer sua tese passando de m aneira sub-reptícia do m ode­
lo de “ decisão” que lhe é oferecido pela sentença ju d ic iá ria pro­
nunciada por um ju iz num tribunal para o esquema do que ele
estim a ser o decisionism o ju ríd ic o -p o lític o , Schm itt insiste no
caráter realista que um a Constituição exige para ser viá ve l: de
fato, é unicamente na existência concreta da nação, estim a ele,
que ela funda sua legitim idade. Contra Kelsen, ele crê, portanto,
poder deduzir que não há necessidade algum a de no Estado re­
correr a um a norm a - um “ dever-ser” por definição desprovido
da dimensão real do que é - , sendo um a norma, segundo ele, por
sua própria natureza, “ absolutamente sem condições de fundar
o que quer que seja” 156.
Partindo dessa premissa antinorm ativista, Schm itt censura
em Kelsen sua concepção m onista legalista do Estado, pensado
essencialmente como um sistema de normas. O erro do Estado

154. Dessa tecmcidade que S chm itt defende, citem os com o exem plo
apenas o estudo do term o polissêm ico Constituição fornecido nò in íc io da
obra. K elsen, segundo Schm itt, não téria sabido, no seu nonnativism ó, distin­
g u ir o sentido “ absoluto” da Constituição - “ o m odo de existência concreto,
dado de si com toda a unidade p o lític a existente” (trad. fr., p. 132) revelado
pela politeia de A ristóteles e de Santo Tom ás, pelas Constituições francesas
de 1791 e de 1793, e seu sentido “relativo” revelado pelo realism o dás “ leis
fundam entais” .
155. C. Schm itt, Theorie de la Constitution , pp. 213-5.
156. Ibid., p. 225.
SEGUNDA PARTE 267

que se confunde com o direito é im por, pela pirâm ide de suas


normas, um a espécie de “governo da le i” , im perm eável às in ­
fluências histórico-sociais, Schm itt pretende que Kelsen en­
controu seu m odelo no liberalism o doutrinário abstrato da
Restauração. Gom o Weber, de quem fo i aluno, ele denuncia a
m ediocridade e a vacuidade do esquema assim adotado e cri­
tica os desyios adm inistrativos e burocráticos, evidentemente
form alistas, que nele são sempre possíveis. Tendo, quanto a ele,
declarado encontrar seu próprio modelo no pensamento de Sieyès
quando confere o poder constituinte à soberania nacional, e
considerando que “ é soberano aquele que decide mesmo em si­
tuações excepcionais” 157, ele salienta que em caso algum pode­
ria haver im perialism o do direito e que o “pan-norm ativism o
ju ríd ic o kelseniano” é um a passagem de lim ite que, em razão
da autoprodução de suas normas, está politicam ente em falso.
N ão apenas, lem bra ele sem cessar, a Constituição não é m ais
do que a expressão da vontade p o lítica do poder constituinte de
um povo-nação como suj eito concreto, mas é o cadinho de um a
capacidade de decisões em todas as circunstancias, sejam elas
as m ais d ifíceis e as m ais im previstas. O Estado não pode por­
tanto reduzir-se, nem em seu aspecto organizacional nem em
sua vocação funcional, a um corpo de regras e de leis construí­
do apenas pela razão segundo um a lógica pura. E m 1927, em
sua célebre conferência D e r B e g riff des Politischen, Schm itt
declarava já em sua prim eira frase: “ O conceito de Estado pres­
supõe o conceito de política.” 158 Era de certo m odo censurar
Kelsen por não ter visto que a po lítica tem m ais profundidade
ontológica do que o Estado. O ju rista de V iena teria esquecido
totalm ente que, se o Estado viesse a desaparecer, a p o lítica, por
sua vez, se perpetuaria. Para Schm itt, como para Hobbes que,
em m uitos pontos, o inspirou, é a sociedade, m ais do que o Es­
tado, que é politicam ente organizada; sem política, não havéria
sociedade.

157. C. Schm itt, Théologie politique, 1922, trad, fr., G allim ard, 1988,
p. 15.
158. C . Schm itt, L a notion de politique (1927), trad, fi:., C alm ann-Lévy,
1972, p. 59.
268 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Por conseguinte, nos antípodas do norm ativism o do Estado


do direito segundo Kelsen159, Schm itt, por preocupação com o
realism o, opta por um institucionalism o em que ele insiste no
organicism o social e na dimensão historicista do direito, postos
em evidência por Hegel e Savigny. Fazendo, como diz, sua “b í­
b lia constitucional” do pequeno livro que o jo vem H egel havia
dedicado a A Constituição da Alem anha, ele considera que um
Estado e sua Constituição, longe de exprim irem o dever-ser de
um a exigência racional pura (cujo significado transcendental
ele desconhece), são uma realidade viva e histórica, manifestação
de lim a “ vontade” é reflexo do “ espírito de um povo” . Schm itt,
censurando Kelsen por sua preocupação com a “ pureza” , o acusa
um a vez m ais de ter esvaziado sua teoria do Estado D O direito
de qualquer elemento socioem pírico.
Claro, a incom patibilidade intelectual é total entre Schm itt
e Kelsen. M as, na tese kelseniana, Schm itt crê poder discernir
“ a m aneira m oderna de ver a organização [do Estado]” . Sua
polêm ica assume deste m odo m aior am plitude e acusa todos os
juristas do Estado m oderno. Eles só falam , hum m undo dora­
vante “ desencantado” e esvaziado de qualquer sopro espiritual,
em nom e de um a racionalidade que se pretende tão “pura” que
é vazia de qualquer substância. Seu voto é realizar no Estado
um a “unidade babilónica” , nò que Schm itt vislum bra o desejo
que o hom em moderno tem de se fazer ele mesmo Deus.
Nesse ponto da controvérsia que Schm itt in ic io u contra
Kelsen, duas temáticas m uito m ais amplas se entrecruzam para
finalm ente se identificarem : a crítica da p o lític a dos tempos
modernos e a crítica da m odernidade nessa política. D e fato,
marcado pela sociologia weberiana, Schm itt não se contenta
em criticar o rigorism o “puro” que Kelsen e seus adeptos her­
daram dos neokantianos. Denuncia também a instituição parla­
mentar, na qual vê concentrar-se o espírito do racionalism o

159. Essa hostilidade sistem ática provém em grande parte da incom ­


preensão da obra de Kelsen e de seu alcance epistem ológico: pois, segundo
Kelsen, a purézá cáíacteriza - e é isso que Schm itt não vê - não o direito, mas
a teoria do direito.
SEGUNDA PA STE 269

m pdem o. O parlamentarismo, que ele considera preso aos prin­


cípios form alistas da razão, não reflete a realidade do m undo
social. A democracia, que pretendem “ representativa” , é cega;
obcecada por sua preocupação com racionalidade e com a von­
tade de ter razão, atola-se na “ discussão perpétua” ; como tal,
revela-se totalm ente inepta para exp rim ir a essência “ decisio-
nista” da p o lítica que deve sempre estar presa ao real. N o lib e­
ralism o que pretendem democrático, e do qual estim am geral­
m ente que o parlam entarism o é a tradução institucional, está
escondida a perversidade do Estado D O direito (Rechtsstaat)
cujo raciqnalism o m oderno, pretensamente “ depurado” pelo
Ilu m in ism o , depois por K ant e por Kelsen, traz a responsabili­
dade. H á aí “ a im agem m etafísica que um a época tem do m un­
do” . Ora, segundo Schm itt, essa época está terminada. A seu ver,
o liberalism o e o parlam entarism o160, a representação e a de­
mocracia, por seu form alism o e sua obsessão com a norm ativida-
de, carecem da natureza específica da po lítica e do direito que a
traz: a saber, sua capacidade de decidir até nas situações excep­
cionais. Que exem plo revela m elhor as fraquezas da racionali­
dade triunfante dos “modernos” do que a República de W eim ar?
Q ue ela tenha sido incapaz de im pedir a ascensão do nacional-
socialism o é um fato que fa la por si mesmo: cie revela, nas
suas certezas jurídicas fundadas em razão, sua m iop ia fatal
diante da realidade. Todos os racionalism os dos “m odernos” se
comportam assim. Parece ser essa a sua falha aos olhos de
Schm itt, pois não é interrogando as engenhosas construções nor-
m ativistas dos “modernos” que o direito público pode fazer fren­
te às situações extremas qué não deixam de surgir na im previ-
sibilidade do m ovim ento da história.
A pesada acusação lançada por Schm itt contra o direito
público m oderno leva-o a um a conclusão radical. A partir de
1933, não hesita, obcecado como é pelo tema do decisiõnism o
com o antítese do norm ativism o, em declarar que toda p olítica
“ autêntica” quer “ um Estado qualitativam ente total” , ou seja,
absolutamente autoritário. Conhece-se a sim patia que devotou

160. C . Schm itt, Parlementarisme et démocratie, 1923.


270 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ao regime nazista de 1933 a 1936... Através desse envolvim ento,


lê-se a afirm ação da “ubiqüidade potencial” e da “requisição
existencial” da po lítica diante do “ in im ig o ” que, de algum a
maneira, sempre se p erfila como a figura-m odelo do mundo po­
lític o . O fato de a tensão dialética ser assim permanente entre a
vid a cotidiana e a po lítica é suficiente para provar, segundo ele,
que o critério do direito político não reside na pura racionalidade
da norm atividade juríd ica, mas, ao contrário, na “ distinção en­
tre o am igo e o in im ig o ” .
Indo ao fundo das coisas, fic a claro - é o que ressalta dos
dois textos aos quais, com m eio século de intervalo, Schm itt deu
o mesmo título: Teologia p o lític a 161-q u e a secularização moder­
na da política tem como inevitável conseqüência que, em nossa
terra doravante “ desencantada” , a legitimação teológica ou axio-
lógica da ordem política se tom ou im possível e, aliás, perfeita­
mente inútil. “A política é O destino” : é preciso entender que ela
é nosso destino de homens ligados a um solo profano...
 “ filo s o fia ” po lítica de C ari Schm itt revela-se assim, na
severidade de seus tons polêm icos, bem afastada das perspecti­
vas críticas da epistem ologia ju ríd ic a de Kelsen. Seu èrro de
apreciação e de ju íz o , m antido com inegável complacência, con­
siste em acreditar que Kelsen d ilu iu â form a do Estado num a
m ultiplicidade de regras disparatadas, ao passo que o Estado
D O direito, ao contrário, descrito e explicado pela “ teoria pura”
kelseniana, im plica u m ordenamento ju ríd ic o unificado r cha­
m ado, porque é um a disposição sistemática de norm as, de um a
“ ordem norm ativa” 162.
Contudo, precisamente sobre esse ponto, fo i dirigida um a
grave objeção à concepção kelseniana do Estado: não poderia
ela, indagou-se, servir para ju s tific a r o regime nazista e, por ex­
trapolação, qualquer regim e “ totalitário” ?

161. Esses dois textos, datados respectivam ente de 1922 e de 1969,


foram traduzidos com seu títu lo Théologie politique, G allim ard, 1988.
162. Kelsen, Théorie pure du étroit, p. 257.
SEGUNDA PARTE 271

O ponto de vista de H . H a rt: o espectro do totalitarism o

O argumento segundo o qual a teoria de K e ls e n ,id e n tifi­


cando o Estado com o direito, corre ò risco de abrir cam inho
para o totalitarism o fo i especialmente form ulado por H . H art163.
Essa crítica reveste um duplo aspecto: de um lado, apóia-
se nó corte aceito por Kelsen entre a m oral e o direito; do outro,
conta com a identidade entre o direito e o Estado. N ão se pode
negar a justeza do prim eiro argumento, já que a “ pureza” da
teoria kelseniana im p lica a autonom ização integral do direito,
portanto sua independência dos ideais da m oral e da idéia
m etajurídica do direito natural. N o entanto, não se devem con­
fu n d ir os planos: a autonom ia que o procedim ento kelseniano
requer não tem nem dimensão ontológica nem alcance a xio ló -
gico; é a exigência epistem ológica da ciência do direito. - O
segundo argumento avançado por H . H art consiste em dizer
que o Estado m oderno, por ser um a organização ju ríd ic a h ie ­
rarquizada e centralizada, reclama necessariamente um po siti­
vism o form alista cujo caráter coercivo é discricionário. Conse-
qüentemente, a estrutura piram idal da ordem estatal-jurídica
conduziria no plano prático a tomadas de decisão autoritárias e
opressoras. A ssim estaria teoricamente justificado, em virtude de
sua própria form a, um Poder arbitrário, ilim itad o e totalizante.
Então seria fá c il a passagem para o Estado totalitário, ou seja,
para o im perialism o do direito estatal que - ó paradoxo! - K e l­
sen teria condenado m oralm ente e ju stifica d o juridicam ente,.
Essa crítica perturbadora é duplamente suspeita, e de modo
tão grave que se revela privada de pertinência. D e um lado,
desconhece a natureza do “totalitarismo” : não só este não perten­
ce ao direito político m oderno, mas aos desvios deste, e consti­
tui, num clim a teratológico, “ a form a extrema da antipolítica” 164,
mas também, quando acumula, mesmo pretendendo dar-lhes
form a ju ríd ica, decisões arbitrárias e atos de opressão, ele so-

163. Herbert H art, P ositivism and the Separation o f L aw and M orals,


Harvard Law Review, 1958, pp. 593-629.
164. D ic k H ow ard, L a politisation de la politique, Carrefour, 1996,18-1,
p. 35.
272 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

çobra na violência, como aconteceu na Alem anha nazista ou na


U nião Soviética; sob o dom ínio de um a ideologia totalizante,
ele disfarça a força em direito, mas, sob esse disfarce, não he­
sita em agir à margem do direito; as pretensas justificações
jurídicas que invoca são na realidade dó não-direito. A ssim , o
recurso a um a p o lícia secreta não tem outro sentido senão o do
m onopólio da força; ou ainda o recurso a um a propaganda que
doutrina as massas não tem outro sentido senão o do m onopó­
lio da m anipulação, que é violência psicológica. Nessas condi­
ções, falar de “Estado totalitário” é, do ponto de vista de Kelsen,
um a contradição nos termos que não podia deixar de denunciar,
já que a ideologia desses regimes esmaga ou suplanta nelas to­
das as form as jurídicas e institucionais da autoridade ju ríd ic o -
política. D o outro lado, na acusação lançada contra Kelsen de
ju stific a r, com sua teoria, os regimes totalitários, está um a le i­
tura m uito duvidosa de seus trabalhos. Quando Kelsen iden ti­
fic a o Estado e o direito, ele não se pergunta nem sobre o que
deveriam ser as finalidades do Poder p o lítico nem sobre os
m eios que a prática p o lítica deveria u tiliza r para realizar esses
fin s : tais questões, ideológicas e praxiológicas, não se inserem
em sua pesquisa; ele descreve e explica o que é o direito posi­
tivo do Estado, mas não ju s tific a regim e algum . Adem ais, se é
verdade que não permaneceu indiferente à política, como pode­
ria ter pleiteado a favor da po lítica totalitária cujos efeitos dele­
térios fo i um dos prim eiros a sofrer?
Descartada essa censura inaceitável, resta sublinhar, assim
como faz Norberto B obbio, a dimensão de sistematicidade e de
form alism o que, caracterizando o Estado D O direito, provoca
na filo s o fia ju ríd ic o -p o lític a “um a inversão de perspectiva” 165:
como nenhuma norm a ju ríd ic a é auto-suficiente, a soberania
não é a “ substância ou a essência do Estado” . Essa concepção
m etafísica do direito p o lítico é “um a máscara” atrás da qual por
m uito tempo se esconderam reivindicações de potência166. O

165. N orberto Bobbio, Teoria delVordiríamento giuridico , T urim , 1960.


166. Kelsen, Théoriepure du droit, p. 383: “A potência do Estado não é
um a força ou um a instância m ística que estaria dissimulada atrás do Estado ou
atrás de seu direito. E la nada m ais é do que a eficácia da ordem jurídica estatal.”
SEGUNDA PARTE 273

Estado moderno - é assim que aparece para Kelsen por volta


de 1930 - se caracteriza pela ju rid ic iza ç ã o da autoridade p o lí­
tica, portanto, pela unidade de ordem que a Constituição fix a
para determinar não só as competências do Poder e de seus ór­
gãos, mas também os elementos do Estado, tais como o povo e
o território1®7.

M esm o que se adm ita que Q Estado coincide com o direi­


to - fórm ula que nem sempre é aceita, mesmo por certos discí­
pulos de Kelsen, pelo m otivo de que, se o Estado é um a ordem
ju ríd ica, nem toda ordem ju ríd ic a (por exem plo, os costumes
nas sociedades prim itivas ou os tratados no direito internacio­
nal contemporâneo) é um Estado - um a questão não deixa de
se apresentar a respeito da legitim idade da ordem ju ríd ic a esta­
tal. D e fato, nás estruturas lógico-jurídicas do Estado moderno,
a competência dos órgãos chamados a criar e a aplicar ó direi­
to se determina e se define pelo ato específico da habilitação,
Esse ato, que Kelsen considera o poder objetivo do Estado,
confere a um indivíd uo ou a um órgão institucional “ o poder de
criar normas jurídicas” 168 e, na m edida em que esse poder,
enquanto especificam ente ju ríd ic o , se insere no aparelho h ie­
rárquico das normas, fornece-lhe um a base legal leg ítim a sem
a qual seria nulo. É preciso, portanto, indagar-se sobre o lugar
dessa noção criteriológica da legitim idade na ordem norm ativa
do direito p o lítico m oderno.

3. A questão da legitim idade no direito político moderno

E m sua acepção m ais larga, o conceito de legitim idade


constitui úm a proteção contra o capricho ou a anarquia, contra
a arbitrariedade ou a insensatez. E le responde à necessidade

167. Kelsen, Allgemeine Staatslehre, p. 143; cf. General Theory ofLaw


and State. “U m Estado: u m território, um povo, um poder” , p. 255. C f. C.
Friedrich; La démocratie constitutionnelle, pp. 72 -3, em que o autor, que pre­
tende refutar a oposição de Schm itt a K elsen, define a Constituição com o um a
“ decisão sobre a organização do governo” .
168. Kelsen, Théorie pure du droit, p. 76.
274 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

que os homens têm de segurança, confiança e coerência. Dado


que a legitim idade traduz a recusa da fantasia e do im aginário
na esfera da ação cotidiana, é u m fator de seriedade e de credi­
bilidade: assim, um a desculpa ou um a pretensão legítim a é acei­
tável; um salário leg ítim o, sendo ju stifica d o , não é criticável;
um a união ou uma filiaç ão legítim a recebe a chancela e a garan­
tia do direito. A legitim idadê traz em si a marca do ju sto . É,
portanto, acompanhada de autoridade.
A ssim , concebe-se facilm ente que a exigência de le g itim i­
dade dos poderes estabelecidos se im põe particularm ente no
direito p o lítico . Pode-se m esm o dizer que está no cerne da re­
flexão m oderna sobre o direito p o lític o 169: Se, de fato, a ordem
ju ríd ico -p o lítica, com suas regras, estabelece a dom inação dos
órgãos governamentais, esta deve ser suscetível de ju stifica ção
ou, çomo se d iz geralmente, de “ reconhecimento” . E m outros
termos, o poder do Estado precisa da adesão dos cidadãos. A s ­
sim , é a legitim idade que lhe dá sua plenitude e sua força. M a x
Weber m ostrou que, sem legitim idade, o poder soberano do
Estado fic a paralisado e acaba por im plodir; G uglielm o Ferrero
ressaltou o fato de a legitim idade exorcizar o medo que atena-
za governantes e governados. H annah Arendt explicou que a
legitim idade conjura, no Estado, a violência e a m entira... Esses
efeitos não são m uito duvidosos. M as é preciso explicá-los, e
isso só é possível se se apreende a pregnância filo s ó fic a de um
conceito cuja lim pidez, em suma, é m ais ilusória do que real.
Certamente, a emergência da necessidade de legitim idade
da autoridade po lítica sig n ifica que, mesmo nos horizontes re­
m otos do nascimento do direito político, o Poder não parece
ser sim ples potência. Com o assinalava Cícero, a potência (po-
tentia) é da ordem do fato, aõ passo que o Poder (Potestas) é da
ordem do direito; ao passo que a potência se mede pela força,
o Poder se m anifesta pela autoridade que se diz c iv il ou política.

169. Assinalem os contado que já Platão reconhecia (sem empregar a pa­


lavra legitim idade, que não tem equivalente em grego) que a autoridade p o líti­
ca tem necessidade, para ser válida, de u m fundam ento sólido. Les lois, III,
pp. 689 ss.
SEGUNDA PARTE 275

Sempre fo i assim, e o Estado D O direito não é exceção. A


autoridade p o lítica não pode nem deve ser absorvida nele, nem
no fato da dominação, nem mesmo no fato do governo; deve cor­
responder ao direito de governar, o que quer dizer que deve ser
líc ita e bem fundamentada. A autoridade p o lítica tem necessi­
dade de legitim idade para ser o que deve ser. H á portanto, ne­
cessariamente, no poder político algo que, para além dele mesmo,
o fundamenta justificand o -o .
Só que a questão de saber qual é o princípio de legitim a­
ção da autoridade po lítica se revela delicada. N o curso da his­
tória, longa e sobretudo m uito fluente, da noção de legitim ida­
de, foram cinzelados vários “m odelos” que, longe de lhe trazer
um a transparência conceituai, enredaram -lhe as dimensões e
atrapalharam -lhe o sentido. Para chegar à clareza dos p rincí­
pios que fazem a legitim idade do direito p o lítico m oderno, não
é in ú til retraçar as grandes linhas das tentativas de compreen­
são que o conceito de legitim idade ocasionou.

A ) D os m odelos antigos às prim eiras


m odificações modernas

Lim itar-nós-em os aqui à evocação dos “m odelos” antigos


da legitim idade; Se estão longe de apresentar somente um inte­
resse m enor para o historiador de idéias, eles só servem de
pano de fundo na pesquisa dos princípios filosóficos, do direi­
to m oderno, que é o objeto deste estudo. É im possível, contudo,
desprezá-los, se se quiser avaliar a problem aticidade que, no
direito p o lítico m oderno, está ligada à legitim ação de suas
diversas engrenagens e de sua ação.
Os gregos antigos não tinham um a palavra para exprim ir a
legitim idade da autoridade política. M as, como ensinam o m ito
de Cronos e a lenda de Deucalião relatados por Platão, reco­
nheciam o caráter sagrado do poder p olítico. Isso im plicava,
para o pensamento p o lítico dos gregos antigos, um necessário
recurso à idéia de um poder teocrático. E m Rom a, a aliança
entre o ju s e o fa s fo i tão profunda que o Caesar Im perator era
276 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

reputado d ivin o , e era-lhe destinado um culto após sua morte.


Seria contudo uma interpretação intempestiva procurar no m un­
do antigo a teorização teológica da legitim idade. E m compen­
sação, à sombra da Igreja Católica Rom ana, desenvolveu-se,
durante quinze séculos, um a doutrina teológico-política que,
atribuindo explicitam ente ao Poder u m fundam ento d ivin o , só
encontrava sua legitim idade num horizonte m etafísico de trans­
cendência. A teoria do direito d ivin o dos reis, desenvolvendo a
frase de São Paulo, N u lla potestas n is i a D eo, fundam entava e
justificava o Poder, definindo-o como a prerrogativa que o “m an­
damento de Deus” confere. Certamente, a doutrina possui ên­
fases diversificadas mas, de Santo A gostinho a Bossuet, adm i­
te que a Providência governa tudo, inclusive os reinos da terra:
apenas Deus concede aos que os homens escolheram como
chefes o “ direito” de governar. M esm o que o term o “ le g itim i­
dade” não seja pronunciado, essa concepção da autoridade po­
lític a encontra seus fundamentos num contexto deliberada-
mente teológico e eclesial, ou mesmo neotestamentário: o po­
der régio é o poder legal de lig ar e de desligar (potestas lig an d i
et solvendi) que encontra sua razão de ser na “virtude e no se­
creto desígnio da Providência d ivina” 170. A clericalização da
função do rei, saudado como vicarius D e i ou como imago D e im ,
era o indício sagrado de sua legitim idade: ela lhe conferia um
m inisterium de essência sacerdotal e sacramental172 no qual ele
era “ fonte de justiça” por sua referência a Um “valor-etem ida-
de” 173. Se ela o envolvia tam bém nas enigmáticas brumas de
que usaram e abusaram os reis taumaturgos174, colocava a C o­
roa sob o signo da ideologia dinástica a fim de assegurar sua

170. Jonas d ’Orléans, In stitu tio regia (século IX ) , cap. V U , citado por
A . Lem aire, Les lois fondam entales de la m onarchie française, Paris, 1907.
171. D izia -se também do rei que era Deus in terris ou Deus terrenus.
172. E . K antorow icz, Les deux corps du roi, trad, fr., G allim ard, 1989,
p. 84; cf. tam bém F . B latt, M inisteriu m -M ysterium , Archivum latinitatis
medii aevi, 1928, IV , p. 80.
173. E . K antorow icz, Les deux corps du roi, trad, citada, p. 199.
174. E . K antorow icz, M ysteries o f the State and its Late M e d ie va l O ri­
gins, Harvard theological Review, 19 55,48, p. 71.
SEGUNDA PARTE 277

perpetuidade: “ O rei nunca m orre” e seu “ im pério” é eterno. A


continuidade p o lítica - “ O rei m orreu. V iv a o re i!” - era assim
inserida na concepção escolástica da eternidade do m undo.
A partir do século X II, um a leve m odificação da doutrina
se esboça de m aneira com plexa no Policraticus de João de Sa-
lisbury, onde aparecem intuições de laicism o acentuadas por
diversas glosas do direito romano e, depois, pelas obras de Dante
e de M a rs ílio de Pádua. M as, já no século X V I, um a outra sen­
sibilidade intelectual se m anifestou em relação ao m undo p o lí­
tico e, embora por m uito tempo ainda na am bivalência, afas-
tou-se dos antigos m odelos de validade do Poder. Apesar de ser
ainda m uito cedo para que um a verdadeira teorização da le g iti­
m idade po lítica encontre lugar nas obras do Renascim ento, a l­
gumas delas deixam transparecer um a n ítid a desconfiança para
com o paradigma teológico cuja erosão é amplamente empreen­
dida. Esse é um sinal dos tempos: enquanto, para a tradição teo­
lóg ico-política que im pregna a escolástica m edieval, a única
coisa que ju stific a va o Poder como Poder não era deste m undo,
começa-se a já não buscar no céu, nos m istérios insondáveis da
Providência, o princípio que o tom a legítim o. Com o mostra L a
Boétie, acreditar na potência quase divin a de Pirro, nas v irtu ­
des mágicas da flo r-d e -lis, do frasco do óleo santo e da aurifla­
m a175 é a atitude de um a consciência mergulhada num estado
de menoridade: isso sig n ifica sua incapacidade e sua irrespon­
sabilidade. O julgam ento é categórico: apenas um a consciência
infrapolítica aceita os pretensos m ilagres em que se acreditou
detectar os fundamentos teológicos do poder p olítico. Sua re­
cusa atesta o despertar da consciência política.
A ssim , com um a poderosa intuição que começa a abalar
as bases da doutrina da p o lítica e de suas regras, L a Boétie ex­
plica que se, no reino, o tirano não fosse sustentado pela coni­
vência calculista de um a horda de aduladores e pela passividade
cúmplice de um povo apático, ele se encontraria “ só” : não acima

175. E. de L a B oétie, Discours de la servitude volontaire (1548), F la m ­


m arion, 1983, pp. 159-60.
278 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de todos, mas abandonado por todos. É totalm ente in ú til qué


aquele que governa apele à graça d ivina; esse apelo é somente
um a astúcia dos príncipes com problemas de autoridade para
Chamar a atenção e dom inar a im aginação das massas176. A
autenticidade do poder daqueles que governam exige a investi­
dura e o apoio daqueles que são governados; a legitim idade e a
perenidade deles têm esse preço. D izendo isso, L a B oétie não
lançava u m engenho de guerra contra o “ direito d ivin o ” dos
reis. Q ueria apenas mostrar que, sem o consentimento do povo,
m esmo um gigante p o lítico desmorona e que, em consequên­
cia, a legitim idade do poder soberano não se explica segundo a
relaçãq vertical da transcendência: trata-se de um a fábula e ela
é m istificadora. A Cidade terrestre não deve refletir a Cidade
celeste: não é tarefa de Deus, mas sim dos homens.
A ssim fic a esboçada um a outra problem ática do Poder e,
correlativam ente, tom a-se possível, na aurora dos tempos m o­
dernos, um a nova concepção da legitim idade.
M u ito se discutiu sobre saber se Hqbbes, cuja filo s o fia
marca, para a modernidade, um ponto de não-retom o, levanta­
va a questão da legitim idade do Poder no Estado177. D eixem os
de lado as exegeses que, lim itando-se a inserir a doutrina de
Hobbes no contexto histórico da Inglaterra do seu tempo, a fir­
m am que o filósofo pretendia elogiar a legitimidade da república
de C rom w ell178. A ambição de Hobbes era acima de tudo filo ­
sófica, e não se pode duvidar que sua obra ateiide à sua am bi­
ção. M as os comentadores não chegam a um acordo para deci­
frar seu sentido. Uns, sublinhando a inspiração m ecanicista do
filó so fo , dão à noção de força um papel de prim eiro plano, o que
tem como conseqüência lógica estim ar legítim a toda posse de
fa c to 179 do Poder; como “toda regra de governo eficaz [é] eo ipso

176. Ibid., p. 158.


177. C f. Frank Lessay, Souveraineté et légitim ité chez Hobbes, P U F,
1988, particularm ente pp. 137 ss.
178. Essa é a tese sustentada por exem plo por Christopher H ill ( The
World Turned Upside Down, 1972; trad. ff., Payot, 1977).
179. C f. Raym ond P o lin , Politique etphilosophie chez Thomas Hobbes,
P U F, 1953, V rin , 1977, p. 151.
SEGUNDA PARTE 279

leg ítim a” , isso acarreta que um a república de usurpação (mes­


m o que se tom e despótica) é nem m ais nem menos leg ítim a do
que um a república de instituição180. Outros comentadores re­
cusam, ao contrário, o axiom a segundo o qual a força faz o
direito (m ight is rig h t); porque apenas um contrato “ autoriza”
o soberano a legislar, é na delegação do poder ou “ autorização”
que lhe concederam todos os cidadãos que reside a condição da
legitim idade do Poder181. Certos leitores de Hobbes conside­
ram que, no artificialism o hobbesiano, a questão da legitim ida­
de - portanto, da conform idade com o direito - do Poder não
pode se colocar em razão de seu caráter m etafísico: é nula e
inexistente, até m esm o “ absurda e contraditória” 182. A s diver­
gências entre as diversas posições adotadas são sinal da d ifi­
culdade que há, não tanto em comentar o discurso de Hobbes,
quanto em d e fin ir o conceito de legitim idade. N o m ín im o fic a
claro, com Hobbes, que um poder “ leg ítim o ” se origina de um
procedim ento contratualista puramente racional. N ão somente
essa racionalização dó Poder varre as fundações m ístico-teoló­
gicas que um a longa tradição lhe havia atribuído mas descarta
as configurações indecisas nas qüais ainda se embaraçavam os
discursos de L a B oétie e dos monarcômacos.
N a “ investigação fundam ental da filo s o fia p o lítica” que é
“ a busca de um a base legítim a do Poder” 183, Rousseaü e depois
a Revolução Francesa não tardarão em confirm ar, na teoria e na
prática, que a autoridade p o lític a só encontra sua fundamenta­
ção e sua justificação nos poderes da razão. M as W eber pode
portanto dizer que, doravante, a idéia da “ legitim idade racional”
destronou as imagens da “ legitim idade carismática” e da “ le g i­
tim idade tradicional” 184. Dentre as “ três razões internas” que,

180. Leo Strauss, The P o litic a l Philosophy o f Hobbes, p. 68.


181. H ow ard W arrender, The P o litic a l Philosophy o f Hobbes. H is
Theory o f O bligation, O xford , 1957.
182. Clém ent Rosset, L ’anti-nature, éléments pour une philosophie,
P U F , 1973, p. 204.
183. A . Passerai d ’Entrèves, La notion de l ’É la t, p. 185.
184. M a x W eber, Économ ie et société, trad, citada, p. 222.
280 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

no curso dos séculos, justificaram a dominação185, os “ moder­


nos” escolheram: a justificação do Poder (e, correlativam ente,
da obrigação de obediência que ele im põe) já não está ligada,
como no m undo grego ou rom ano, ao caráter, prestigioso e
sagrado ou às qualidades exemplares de um a pessoa; sua v a li­
dade deixa de ser enxertada na santidade do “ eterno ontem” que
a continuidade dinástica, os usos e os costumes estabeleciam; no
m undo m oderno, o “portador do poder” é racionalm ente leg i­
tim ado pelas regras que definem as competências dos órgãos
do Estado.
Desde então, é um traço do m undo m oderno que, na p o lí­
tica, a legitim idade se una à legalidade. N ão é de espantar. M as
não basta dizer - o que é um a tese correntemente afirm ada -
que, sob a égide da razão, se tenha consumado, ao mesmo tempo
que o “desencanto do m undo” e “ o recuo do patos grandioso da
ética cristã” , a juridicização ou, m ais precisamente, a legaliza­
ção da ordem política. A s coisas são m ais complexas. D e fato,
qualquer que seja a diversidade dos “ m odelos” da legitim idade
que se podem retirar da história, seu conceito parece sempre
ser procedente da exigência de ordem que está no princípio do
direito p o lítico : é preciso um a regra para conjurar a violência e
a arbitrariedade. É por isso que a referência norm ológica (co­
m o indica aliás a etim ologia: legitim idade vem de lex) é o axio­
m a com um de todas as teorias da legitim idade. Ter-se-ia assim
bons m otivos para atribuir um critério puramente ju ríd ic o para
a legitim idade. Entretanto, a dificuldade provém do fato de a
palavra le i ser igualm ente a raiz do termo legalidade. A ques­
tão, portanto, é saber qual é a relação existente entré a le g itim i­
dade e a legalidade. Pode-se propor a equação que id e n tific a a
legitim idade racional com a legalidade, ou devem-se procurá-las,
ambas, em registros diferentes?
A questão é m ais d ifíc il do que parece, e convém, antes de
respondê-la, precisar bem os seus termos..

185. M a x W eber, Le savant et le p o litiq u e (trad. da conferência P o liti


ais B eruf(1919), ed. 1 0 /1 8 ,1 9 6 3 , p. 102).
SEGUNDA PARTE 281

B ) A equação da legitim idade racional


e da legalidade segundo M a x Weber

A s análises que M a x W eber apresenta da legitim idade não


são análises filo só fic a s especulativas; para além das com bina­
ções que a história forneceu dós diversos “ m odelos” da le g iti­
m idade, elas visam acima de tudo a “ compreender” os s ig n ifi­
cados que veiculam . Ora, assinala Weber, enquanto a le g itim i­
dade carismática firm ou-se sobretudo em períodos de mutação
política, ou mesmo de revolução e, portanto, não pode prorro­
gar-se por m uito tem po, a legitim idade tradicional e a le g itim i­
dade racional trabalham , ao contrário, para a estabilidade dos
regimes. M as atingem -no por caminhos antagônicos, porque si­
tuam a ordem ju ríd ic ò -p o lític a em dois registros diferentes de
sentido e de valor: essa ordem se estabelece é se ju s tific a oU
recorrendo à duração e à experiência, oü fundamentando-se na
regulação ju ríd ica que um a razão teórica e construtiva elabora.
Segundo a interpretação de Weber, o segundo esquema é o que
prevalece na m aior parte das sociedades políticas modernas, de
m odo que, d iz ele, “ a base m ais usual da legitim idade é a cren­
ça na legalidade” .
N ão é m uito contestável que, desde a n o m o filia do século
X V III, um verdadeiro culto fo i dedicado à le i, e que a legalida­
de - dura lex sed le x - pareça ser o princípio m ais atuante do
direito p o lítico : um a ordem ju ríd ic a não leg ítim a assim como
um a legitim idade não legal seriam, no Estado m oderno, con­
traditórias em seus próprios termos e se configurariam m ons­
tros. Com o a prevalência do direito no Estado se traduz - o que
é ensinado m uito claramente, segundo Weber, pelo liberalism o
de B. Constant ou de E . Laboulaye - por um sistema constitu­
cional no qual se inserem todas as leis, apenas a conform idade
das regras e das ordens a esse dispositivo lhes confere valida­
de. A legitim idade é a regularidade form al das decisões e das
ações do Estado. O Rechtsstaat dos juristas alemães, o Govern­
m ent under L aw dos anglo-saxões, o sistema constitucional
instituíd o na França pela Terceira República vão nesse sentido
(que ainda hoje é fortalecido pelo controle de constitucionali-
282 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

dade das leis). A legalidade seria assim, segundo a exigência


lógica da racionalidade, o m odelo moderno da legitim idade. N a
doutrina, o “positivism o ju ríd ic o ” proporcionaria sua expres­
são m ais brilhante, na qual a legitim idade não só se confunde
com o form alism o da regularidade ju ríd ic a mas decorre de um a
postulação técnico-racional que se crê segura de sua“ neutrali-
dade axiológica” . Que o princípio da legitim idade racional e a
sistematicidade ju ríd ic a tenham chegado à coincidência e xp li­
caria que, no desenvolvim ento do Estado m oderno, o aspecto
processual da p o lítica , a fim cionarização do Poder, a especiali­
zação de suas tarefas, a inflação adm inistrativa etc. - outros
tantos fenômenos ligados, assinala Weber, ao desenvolvim ento
da econom ia c a p ita lis ta - não tenham tardado a fazer de “ Santo
Burocratius” o a u xilia r obrigatório da legitim idade. A conclu­
são é pouco serena: na im pessoalidade de tal sistema, está
aberta a v ia para a democracia de massa.
A teoria kelseniana, à prim eira vista - numerosos são os
comentadores que se detiveram nesse prim eiro olhar - , parece
confirm ar a interpretação de Weber. Segundo Kelsen, o p rin cí­
p io de legitim idade se id en tifica com a noção de validade que
tom a sentido, sob a Constituição entendida como basic norm m ,
na estrutura norm ativa do ordenamento ju ríd ic o 187: expressão
da norm atividade ju ríd ic a - o que explica a obediência devida
à autoridade do Estado - , a legitim idade é assim ilável à regula­
ridade requerida, hic et nunc, por u m sistema de direito. Por­
tanto, quando um transtorno, por exem plo um a revolução, pro­
voca a m odificação ou a substituição de um a Constituição por
outra, a antiga legitim idade desaparece, instala-se Uma nova
legitim idade conform e à nova ordem ju ríd ic a 188. “ Õ princípio
de que as norm as de um a ordem ju ríd ic a valem enquanto sua
validade não term ine de um a form a que é determinada por essa
ordem ju ríd ica, ou que não dê lugar à validade de um a outra
norm a dessa ordem, é o princípio de legitim idade.” 189 Isso quer

186. H . Kelsen, G eneral Theory ofL aw and State, p. 110.


187. Ib id ., p. 117.
m .Ib id .,p . 118.
189. H . Kelsen, Théorie pure du d roit, p. 278.
SEGUNDA PARTE 283

dizer claramente que “ o governo efetivo, que estabelece normas


gerais e normas individuais eficazes, com base numa Cons­
tituição eficaz, representa o governo legítim o do Estado” 190. O
governo legítim o é, portanto, aquele que prom ulga e aplica um a
ordem de coerção norm ativa191 e, nessas condições, o “princípio
de legitim idade” fica necessariamente restrito ou lim itado pelo
“princípio de efetividade” 192. A verdade é que, no âm bito geral
da teoria pura do direito, o critério da legitim idade do Estado e
de sua ação nunca reside em um a ideologia ou em valores de
m oral ou de justiça, mas na legalidade, ou seja, na conform ida­
de à ordem juríd ica “ estabelecida” pela Constituição.
Seria, no entanto, dar prova de cegueira intelectual a fir­
mar sem m atizes a identidade, no Estado m oderno, entre a le g i­
tim idade e a legalidade. N em W eber nem Kelsen tiveram essa
falta de probidade: Weber porque traçou um ideal type que,
sem dúvida, corresponde, na reconstrução ideal que lhe dá, aos
traços essenciais do Estado m oderno, mas não pretende refletir
a realidade com plexa que, como sempre na política, as bifurca­
ções e os conflitos fazem surgir nele; Kelsen porque, na pers­
pectiva epistem ológica da teoria pura do direito, é im possível
não caminhar, segundo o procedim ento crítico de um a lógica
transcendental, até a hipótese da G rundnorm como condição
de inteligib ilidad e do sistema ju ríd ic o que o Estado é. Portanto,
reduzir o sentido das análises desses autores à equação da le g i­
tim idade e da legalidade representa, curiosamente, truncar essas
análises. Cada um a dessas duas derivadas da le i (le x) não pos­
suirá um a especificidade que tom a a legitim idade irredutível à
legalidade?
Para responder a essa pergunta, im põe-se um encaminha­
m ento delicado do pensamento: não é suficiente, de fato, notar
que a oposição à idéia da “ legitim idade racional” do Poder p o lí­
tico fo i penetrante em autores que a filo s o fia do direito político
não poderia considerar menores; é necessário também avaliar, na

19 0. /t e /., p. 280.
191. /t e /., p. 290.
19 2. /t e /., p. 367.
284 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

própria “ legitimidade racional” , o que são, no direito público que


estrutura a política, os poderes e lim ites da racionalidade.

C) A irredutibilida.de da legitim idade à


legalidade segundo G. Ferrero

D e um prim eiro ponto de vista, que é o da história das


idéias p o líticas e ju ríd icas, não é possível menosprezar as teses
que, já no século X V III, traziam um a contradição à teoria racio-
nalista que defende a idéia segundo a qual a legitim idade do
poder do Estado se enraizava no contrato e na soberania do povo.
A ssim , M ontesquieu, sem expor em termos expressos o
problem a da legitim idade, retom ava um a idéia de B o d in e con­
siderava que “ o espírito geral das nações” , em seus componen­
tes físicos e m orais193, é u m elem ento fundam ental para a base
ju ríd ic a de um Estado. A validade de um governo repousa no
equilíbrio desses diversos fatores e, para estabelecer as leis ci­
vis e políticas, o legislador deve agir sempre em harm onia com
eles e, mesmo, respeitar a eficiência causal deles.
Hum e, com sua crítica do contrato social, cujo duplo erro
axiom ático e processual denuncia, situa deliberadamente seu
pensamento do direito p o lítico à m argem do racionalism o teó­
rico e abstrato da filo s o fia do Ilum inism o. Segundo ele, nenhum
raciocínio é suscetível de conferir um fundamento ou uma
garantia à autoridade dos governos. Portanto, a legitim idade do
Poder não encontra sua base na postulação abstrata e dogm áti­
ca de um a razão especulativa com pretensão teórica e científica;
ela só pode enraizar-se nos costumes, nas tradições, nas opi­
niões e nos hábitos de vid a dos povos. M a is precisamente, a
legitim idade do Poder se fundam enta na sua longa posse: é co­
m o a in fin d á ve l paciência do político . É assim que ela extrai

193. Segundo M ontesquieu, o clim a, a religião, as m áxim as gerais do


governo, o exem plo das coisas passadas, os costumes e as m aneiras etc. com ­
põem , tanto quanto as leis, “ o espírito geral” de um a nação: cf. L ‘esprit des
lo is, X IX , IV , p. 558; M espensées, n? 1542 e 854.
SEGUNDA PARTE 285

sua consistência da im ensa reserva da experiência histórica e


das crençás tradicionais. A legitim idade precisa da história con­
creta e viva dos povos. Contra o dogmatism o racionalizante
que, vindo de Hobbes e elogiado pelo Ilu m in ism o , não sabe
levar em conta os valores burilados e veiculados pelo tempo da
história, Hum e traça o bosquejo de um a teoria da instituição que
é o antídoto sutil da doutrina do contrato social194.
D e certa m aneira, Hum e, opondo-se, como que por ante­
cipação, à doutrina de Rousseau e ao uso (m ais ou menos fie l,
mas esse é outro problem a) que lhe deviam dar os homens da
Revolução Francesa, preludiava as concepções da “ leg itim ida­
de tradicionalista” que no século X I X os rom ânticos, os parti­
dários da Restauração (os “ legitim istas” ) e os defensores do
historicism o desenvolverão. É assim, por exem plo, que a rea­
ção alemã - a de Rehberg ou de G entz - dá grande espaço à tra­
dição como fundam ento da legitim idade; na França, Chateau-
briand e D e M aistre estim am que a história e o costume são os
únicos capazes de conferir vaüdade ao direito político. A o mes­
m o tempo, a Restauração e o Legitim ism o se remetem ao con-
servantismo que encara as idéias e os sím bolos da França ante-
revolucionária. U m pouco m ais tarde, Blanc de Saint-Bonnet se
louvará, para defender sua idéia da legitim idade, no m isticism o
providencialista e num naturalism o colorido de rom antism o que
são, d iz ele, “ as leis áureas da política” 195. O historicism o trará
a marca da filo s o fia hegeliana da história e, em geral confusa­
mente, utilizará os filosofem as das doutrinas anti-racionalistas
da legitim idade; porque o direito p o lítico repousa em ú ltim a
instância em postulados não racionalizáveis, M einecke verá
nele a m ais profunda compreensão das coisas humanas196.
A resistência à idéia da “ legitim idade racional” id en tifica­
da, no Estado m oderno, com a legalidade, devia encontrar sua
consumação, no m om ento da Segunda Guerra M u n d ial, na obra

194. D . Hum e, Essaispolitiques, V rin , 1972; Quatre discours politiques,


Caen, 1986.
195. A . B lanc de Saint-B onnet, La lég itim ité, 1873, p. 193.
196. F . M einecke, D ie Entstehung des H istorism us, M im iq u e e B erlim ,
1936.
286 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de G uglielm o Ferrero, intitulada Poder. Os gênios invisíveis da


Cidade197. Esse autor, historiador m ais do que filó so fo , sustenta
que “ o princípio de legitim idade” é um a das idéias mestras que
foram enunciadas por Talleyrand por ocasião do Congresso de
V iena em 1815. E la traduz o fruto do “ antigo estado de posses­
são” ; é “ a obra-prim a da duração” . O princípio de legitim idade
que, segundo Ferrero, bem como segundo H um e, apela assim à
história de um povo e à força da idéia dinástica, é a pónta de
lança dos doutrinadores da restauração monárquica. N ele estão
atuantes “ os gênios in visíveis da Cidade” ; estes temperam o
m edo que atenaza reciprocamente governantes e governados.
Ferrero se opõe decididamente às teses constitucionalistas pre­
gadas pela Revolução Francesa; mas, embora as denuncie como
m istificadoras, recusa lim ita r o princípio de legitim idade ao
contexto doutrinal do legitim ism o.
D e fato, nunca se vangloriando de p o lito lo g ia ou de filo ­
sofia, essé historiador interroga-se sobre as razões da instabi­
lidade po lítica que, estim a ele, ating iu seu paroxism o logo após
a Revolução Francesa e depois do Congresso de V iena. Sua ar­
gumentação é assaz fascinante. Se o Poder, d iz ele em substân­
cia, encontrasse sua legitim idade em sua racionalidade subs­
tancial, não daria origem às tensões e aos conflitos perpétuos
que o fazem vacilar. O otim ism o racionalista do Ilu m in ism o é
desmentido pela história: a estabilidade p olítica universal é, co­
m o a paz perpétua, um a ilusão m etafísica. Contudo, o pensa­
m ento de Ferrero não cai no rom antism o. Esquadrinhando os
exemplos políticos que a história oferece, ele distingue quatro
p rin c íp io s-h e re d itá rio , eletivo, aristo-m onárquico e democrá­
tico - que ju stifica ram no decorrer dos tempos a subida e o
exercício do Poder. Ora, nenhum deles, afirm a ele, se im põe de
m aneira absoluta: “A legitim idade nunca é um estado natural,
espontâneo, sim ples, im ediato. É u m estado ao m esm o tempo

197. G ug lielm o Ferrero publicou um a trilo g ia histórico-política m uito


original: Aventure. Bonaparte en Ita lie (1796-1797), P lon, 1946; Reconstruc­
tion. Talleyrand à Vienne (1814-1815), P lon, 1940; Pouvoir. Les génies in v i­
sibles de la C ité, publicado em 1943.
SEGUNDA PARTE 287

a rtific ia l e acidental; o resultado de um longo esforço que pode


fracassar. N enhum governo nasce leg ítim o; alguns se tom am
legítim os conseguindo ser aceitos.” 198 Apesar de o tempo não
ser suficiente, ele é necessário: “ É preciso que um povo se habi­
tue a seu princípio de legitimidade.” 199 A “ consagração dos sé­
culos” e o vasto consenso do povo perm item realizar “ o m ila ­
gre da obediência” . M as essa realização necessita de um a condi­
ção sine qua nom pois, se é exato que a legitim idade é a antítese
da usurpação e da impostura, ela não é ligada, por natureza, a um
modo de governo. Ter acreditado nisso fo i precisamente o erro
dos “legitim istas” : só há legitim idade para um governo se ele for
“ simples, claro e sobretudo coerente consigo mesmo, na teoria e
na prática”200. A legitim idade estabelece assim uma relação sutil
entre o Poder que manda e os homens que obedecem: variável
seguramente conforme as épocas, ela é sempre “um exorcismo
tdo medo” . D e fato, emergindo, firm ando-se e estiolando-se até
sua extinção, ela é um desses “ gênios invisíveis da Cidade” , que
se levantam juntos contra a dissolução do direito p olítico num
conservantismo passadista e contra a aventura revolucionária
que se embriaga com as esperanças futuristas.
Contudo, se G . Ferrero considera que cada período tem seu
princípio de legitim idade e que o século X X , herdeiro da m o­
dernidade dos revolucionários franceses, se encanta com o
princípio da legitim idade democrática, descobre nele um a in ­
versão trágica A m áxim a democrática fo i cinicamente aplicada,
diz ele, “ às avessas” (dá o exemplo de Bonaparte como prim eiro
cônsul): o Poder, em vez de se fundam entar na soberania do
povo, se autolegitim ou ao inventar um a pretensa vontade popu­
lar. E m tais condições, um governo é somente um falsário. A s­
sim como todo falsário, tem medo, cada vez m ais m edo; arro­
ga-se novos poderes, de tal form a que, n o interior, a revolução
da qual nasceu gera a contra-revolução e a restauração, enquan­
to, no exterior, sua vontade de potência conduz à guerra.

198. G . Ferrero, P ouvoir, p. 124.


199. Ib id ., p. 129.
200. Ib id ., p. 55.
288 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A obra de Ferrero pretende mostrar que a idéia de le g iti­


m idade é fundam entalm ente um princípio p o lítico - e não ju r í­
dico - destinado a enganar tanto os absolutos teológicos dos
“transcendentes” entusiasmados com a restauração quanto os
im pulsos libertários dos “ fin ó rio s” ávidos de revolução. N as
últim as páginas do livro , o autor colore esse princípio p o lítico
de otim ism o m oral, sendo provavelmente isso que m ais fra g ili-
za sua teoria, pois nada autoriza a crer que as modernas dem o­
cracias de nosso século são leais e incorruptíveis.
É por isso que, para além da polêm ica que opõe os parti­
dários e os adversários da equação entre legitim idade e legali­
dade, assim como para além do panorama histórico-político
soberbamente desenhado por Ferrero, é necessário adotar um
outro ponto de vista - o da filo s o fia do direito p o lític o - para
sondar o alcance teórico da idéia de legitim idade.

Desse segundo ponto de vista, que é o da filo s o fia do d i­


reito p o lític o , a idéia de legitim idade não se firm a nem como
puramente ju ríd ica nem como histórico-política; num a pers­
pectiva que demonstraremos ser sintética, ela se firm a como o
que faz a legitim idade dos princípios jurídicos do político.
O ju rista italiano Norberto B obbio assinala com pertinên­
cia que “ a legitim idade e a legalidade têm, em relação à Teoria
do Poder, a mesma função que a justiça e a validade em relação
a um a teoria geral da norm a ju ríd ic a ” . E acrescenta: “ Gom o a
justiça é a legitim ação da regra, assim, ao contrário, a validade
é sua legalidade; como a legitim ação é a justiça do Poder, a le ­
galidade é, ao contrário, sua validade.”201 Noutras palavras, as­
sim como um a regra de direito pode ser válid a sem ser justa,
assim também o Poder pode, em um Estado, ser legal sem ser
legítim o202. Essa idéia, à prim eira vista, pode parecer clara e
filosoficam ente significativa daquilo que o hum anism o ju ríd i­
co m oderno tem de profundo: se o hom em renuncia a se ques­
tionar sobre o que é justo, renuncia com isso a ser hom em . A s-

201. N . B obbio, Sur le principe de la lég itim ité , in La légitim ité , P U F,


1967, p. 51.
202. N . B obbio, Teoria délia norma giuridica, Turim , 1958, pp. 35 ss.
SEGUNDA PARTE 289

sim se esconderia, no m ais recôndito do problem a da le g itim i­


dade, a espinhosa questão da justiça que, desde sempre, perse­
gue a filo s o fia do direito e, singularm ente, a filo s o fia do direi­
to político. M as sabe-se a dificuldade de um debate em que o
pensamento oscila sem saída verdadeira entre o jusnaturalism o
e o positivism o. Portanto, deve-se considerar com outro olhar a
questão da legitim idade enquanto conform idade ao direito de
um a política.
A história nos ensina ora que o princípio da legitim idade
é invocado contra o direito estabelecido - fo i o caso dos parti­
dários de L u ís X V I I I que defendiam , contra o direito positivo
da Revolução e do Im pério, o valor da tradição dinástica - , ora
que o governo é declarado ileg ítim o por ser ilegal - fo i o caso
do regim e de V ic h y na m edida em que derivava da le i de 10 de
ju lh o de 1940, aplicada em violação da Constituição. Invocado
ora em apoio da legitim idade, ora contra ela, o critério legalista
não parece, portanto, decisivo para designar a legitim idade de
um governo. “É perfeitamente jud icioso e por vezes necessário
falar de leis ou de decisões injustas” m , constata Leo Strauss.
M as essa constatação deve ser interpretada. Sua interpre­
tação se efetua segundo vias divergentes.
Segundo Strauss, isso im p lica que “ há um padrão do justo
e do injusto [...] independente do direito positivo”204, e esse pa­
drão só pode ser, a seu ver, o horizonte m etafísico do direito
natural. A q u i, portanto, está o vasto debate entre jusnaturalis­
m o e juspositivism o que ressurge e que, por não ser dirim ido
por demonstração, sempre recorreu a um a opção filo só fic a . Só
que essa opção é m uito delicada e ameaçada de esterilidade.
E m outro estudo205 mostramos o que tem de desesperador o
co nflito secular que fechou a filo s o fia do direito, inclusive a f i ­
lo s o fia do direito p olítico, no círculo dos dualism os condenan­
do-a, ao sabor das controvérsias, ao choque sem escapatória
das contradições que a segurança dogmática dos doutrinários
provoca.

203. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, P lon, p. 15.


204. Ib id .
205. Les fondem ents de l ’ordre ju rid iq u e , P U F , 1992,
290 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E ITO

A lguns autores, pretendendo sair do impasse, recentemen­


te acreditaram possível, na esteira de M ic h e l Foucault, extrair
argumento da existência de leis injustas para condenar os “u n i­
versais abstratos” , que a legalidade constitucional m anifestaria,
e tom ar a defesa do antijuridicism o requerido, segundo eles,
pela p olítica contemporânea. Eles declaram que o “ direito” não
existe, que é apenas um a palavra e que “ aquilo a que se chama
direito” não cobre nada além de “ certas experiências” ou certas
“práticas” vinculadas a categorias do pensamento que a histó­
ria m odela206. Ora, essa dissolução “ arqueológica” do direito
p o lítico no pluralism o e no relativism o historicistas, longe de
renovar os esquemas tradicionais da filo s o fia do direito e de
arrancar o debate do entrave que o fez oscilar, por séculos, en­
tre jusnaturalism o e juspositivism o, é a máscara “pós-m odem a”
do dogm atism o; não somente esse tip o de pensamento priva as
sociedades políticas de ideal, mas a rejeição das norm as u n i­
versais só pode conduzi-la ao n iilis m o . Ora, sem seguir Leo
Strauss em todas as suas conclusões, parece-nos que o hum a­
nism o se orgulha, com razão, de o pensamento hum ano ser “ ca­
paz de transcender suas lim itações históricas ou de atingir algo
de trans-histórico”207. A interpretação historicista erra portanto
em d ivid ir a própria idéia da legitim idade do direito p o lític o no
“ tribunal da história” , já que não se chega verdadeiramente a
distinguir o direito do fato.
U m a outra interpretação pode ainda ser avançada sobre a
existência de leis injustas: a saber, que a legitim idade, na m edi­
da em que é exclusiva das desordens da anarquia e da anom ia,
não se instala no âm bito positivo da ordem ju ríd ica, cujos con­
tornos ela ultrapassa. Noutros termos, a legalidade não é s u fi­
ciente para assentar a legitim idade. Certamehte, com o explica
Ch. Eisenm ann208, existe um critério ju ríd ic o da legitim idade

206. Essa é a tese defendida em particular por François E w ald em L ’État-


Providence, Grasset, 1986.
207. L . Strauss, D ro it naturel et histoire, p. 39.
208. Charles Eisenm ann, L a lég itim ité ju rid iq ue des gouvernem ents, in
La légitimité, op. cit., P U F , 1967, pp. 97 ss.
SEGUNDA PARTE 291

de u m governo (sendo esse critério ju ríd ic o o que fundam enta


o direito de governar), particularm ente v is ív e l no âm bito de um
dado Estado que situamos em relação a regimes anteriores ou
que - trata-se do direito internacional - comparamos a outros
Estados209. Atendo-se às perspectivas do direito interno, fiç a
evidente que a legitim idade im plica um “ acordo com um a ordem
norm ativa” e que a ilegitim idade sig n ifica “ desacordo, não-
conform idade, contrariedade com esse sistema de norm as”210.
Nessas condições, “É óbvio” , escreve Ch. Eisenm ann, que cada
sistema de normas ou de valores determine, defina um a le g iti­
m idade ou um a ilegitim idade [...]. H á portanto, naturalmente,
tantas legitim idades e ilegitim idades quantos são os sistemas
de normas ou de valores.” 211 Se, em conseqüência, a le g itim i­
dade encontra seu critério ju ríd ic o na legalidade - sua confor­
m idade às leis ela precisa de um fundam ento axiológico -
que, enquanto tal, evidentementè não é ju ríd ico . É por isso que
se lim ita r a ver na conform idade às leis constitucionais, e mes­
m o às leis ordinárias, o padrão que dirim e a legitim idade de um
governo leva à concepção de um “ legitim ism o form alista, ou
processual” que só se prende ao “ nascimento im ediatam ente
regular” ou não do direito de m ando dos órgãos governantes. A
dificuldade provém do fato de o filó s o fo do direito não poder
concluir daí que é preciso fazer in te rvir ou um a “ opção ideoló­
gica” ou um ju íz o m oral como princípio de legitim ação: tal
confusão teria fortes possibilidades de simplesmente reativar a
corrente jusnaturalista e de esbarrar nos equívocos que surgem
no seu horizonte m etajurídico - o que só faria baralhar as pers­
pectivas. Com o não existe critério ju ríd ic o da legitim idade,
um a “ cláusula de valor” , como ressalta A . Passerin d ’Entrèves,
deve ser in serida em algum a parte no sistema: “ a detenção do
Poder não é, para o Estado, a ú ltim a palavra” 212.
Nesse ponto que, uma vez afastados o impasse das contro­
vérsias tradicionais e as m iragens dissolventes do historicism o,

209. Ib id ., p. 108.
210. Ib id ., p. 123.
211. Ib id ., p. 123.
212. A . Passerin d’Entrèves, La notion de l ’É tat, op. c it., p. 185.
292 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

toca m ais de perto ao problem a do direito p o lítico m oderno,


encontramo-nos num a encruzilhada: um a prim eira v ia é aberta
pela definição polêm ica do conceito de p o lític a dado por C ari
Schm itt; um a segunda v ia se empenha, m ais modestamente, em
dar conta, com Jürgen Habermas, da legitim ação do poder po­
lític o . Sigamos sucessivamente essas duas vias.

D ) Legitim idade e legitim ação

C om evidente intenção polêm ica, dirigida m ais um a vez


contra Kelsen, C. Schm itt sustenta em L eg alität und L eg itim i­
tät (1936), como na Verfassungslehre, que “ a legitim idade de
um a Constituição não im p lica que esta tenha sido instaurada
em conform idade com as leis constitucionais em vig o r ante­
riorm ente”213. Cabe ao sujeito do poder constituinte, d iz ele,
determinar o gênero e a form a de existência do Estado entendi­
do como a unidade p o lítica de um povo. É , portanto, soménte
“por razões históricas” que se pode falar, num Estado, da le g i­
tim idade de um a Constituição. Para o ju rista C. Schm itt, não é
esse o axiom a de um a filo s o fia do direito historicista. A seu
ver, a história ensina que são possíveis dois tipos de legitim id a­
de: ou a legitim idade dinástica, em conseqüência da qual a
autoridade do rei é reconhecida; ou a legitim idade dem ocráti­
ca, na qual, sendo reconhecida a majestas p o p u li, a validade da
Constituição repousa na vontade do povo. A legitim idade de
um a Constituição provém , em consequência, do poder consti­
tuinte e da “ vontade existencial” que o anim a, mas não da con­
form idade com as regras constitucionais. A ssim , por exem plo,
a Constituição de W eim ar repousa no poder constituinte do
povo alemão; então, é in ú til, e mesmo “ totahnente im possível” ,
ju lg ar sua validade peiguntando-se “ se fo i produzida no respeito
das regras e form alidades legis-constitucionais anteriores” 214.

213. C. Schm itt, Théorie de la C onstitution, trad, citada, p. 225. Sobre


esse problem a, cf. H . H ofm ann, L egitim ität gegen Legalität, der Weg der po­
litischen Philosophie C arl Schm itts, B erlim , 1964.
214. Ib id ., p. 226.
SEGUNDA PARTE 293

Nesse questionamento só haveria “ um a necessidade m al com ­


preendida de norm atividade” : “U m a norm a não pode le g iti­
mar-se em si.”215
Todavia, prossegue Schm itt, o erro estaria em assim ilar a
relação entre legalidade e legitim idade à antinom ia entre a norm a
e o fato. O conceito de legitim idade remete ao conceito de so­
berania que, por sua vez, remete ao conceito de política, os quais
são incompreensíveis se não nos reportamos à capacidade que o
Estado tem de “ decidir” até nas condições de exceção216, ou seja,
de fazer le i quando a legislação em vig o r não previu a situação
que se apresenta, ou mesmo de fazer le i contra a legalidade
vigente. Essa capacidade decisória se define como “ legítim a” ,
pois atende à necessidade de perpetuar a existência da com uni­
dade p o lítica diante da adversidade ou em face do in im ig o . A s
situações excepcionais, enquanto de exceção, são portanto o
verdadeiro revelador da legitim idade. Longe de ser a ocasião
de “ crim inalizar” o in im ig o , elas são, ao contrário, o que perm i­
te apreender as m ais altas razões do direito, que mostram assim,
de m aneira exemplar, como irredutível à le i positiva. E m p o lí­
tica, a legitim idade não é caso de “ le i constitucional” ou, m ais
geralmente, de direito positivo. A ssim como a análise da p o lí­
tica im plica a superação da política, assim também a com ­
preensão da legitim idade do direito p o lítico não pode se incor­
porar num norm ativism o form àlista e juridicista: essa incorpo­
ração a esvazia do seu sentido filo só fic o , o qual se situa para
além da legalidade em suas formas, bem como em seus conteúdos.
A legitim idade participa desse algo “ fundamental” , que Schm itt
d iz “ específico” , “ irredutível” , “ inelutável” e que, no espaço
p o lítico , é a hostilidade ou a inim izade217 - aquilo que se pode­
ria denom inar o estatuto existencial de um Estado ou, m ais cor-

215. Ib id ., p. 227.
216. C . Schm itt, Théologie p olitiq u e, 1922, trad. fr.,p . 15.
217. C . Schm itt, La notion de p o litiq u e, 1932, trad, ft., C alm ann-Lévy,
1972, pp. 97-8: ‘“N o d ia ... em que até a sim ples eventualidade de um a discri­
m inação am igo-inim igo tiv e r desaparecido, já não haverá [...] nem p o lític a
nem listado.”
294 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

retamente, de um povo. Os povos são, de fato, os verdadeiros


sujeitos da po lítica e sua requisição existencial (p sa lu s p o p u li)
está no próprio princípio da p o lítica, de sua autoridade e de sua
sobrevivência.
Avalia-se assim não o alcance ju ríd ic o , mas a radicalidade
filo só fica da idéia de legitim idade: ela é o centro de gravidade da
política. Longe das “ abstrações norm ativas” da legalidade, ela
sig n ifica o “ grau de união” ou “ de intensidade” da associação
política. A ssim , aparenta-se com o destino cuja expressão, no
concreto da H istória em que “ o espírito luta contra o espírito e
a vid a contra a vida” 218, é o p o lítico 219. Essa idéia lança um a
singular clareza no fenôm eno que é a revolução, pois, se é ver­
dade que um a revolução (ou um golpe de Estado) instala um
governo fora dos procedimentos constitucionais, ela se revela
sempre prenhe das potências de um a eventual restauração. Isso
quer dizer que a legitim idade do Poder escapa, como o destino,
a um a sistematização integral. N ão é possível colocar seu con­
ceito sob o signo da racionalidade puramente jurídica. E la é,
como a própria política, um conceito polêm ico que conota um a
situação exposta a inevitáveis sobressaltos e a discórdias trágicas.

Tomando consciência da carga polêm ica que, no espaço


político, inelutavelm ente anim a a noção de legitim idade, somos
levados a deslocar o problem a filo s ó fic o que ela levanta: em
vez de procurar em vão o critério decisivo da legitim idade, não
será m ais pertinente questionar-se sobre o processus da le g iti­
mação do Poder nas sociedades políticas modernas? É o que
faz Jürgen Habermas220, remetendo ao problema de fato da acei­
tação de um m odelo ou de u m tip o político.

21B. G. Schm itt, L ’ère des neutralisations et des dépolitisations, tradu­


ção em seguida de La notion de politique, p. 153.
219. É nessa perspectiva filo só fic a , bem m ais do que ideológica, que
S chm itt fa la de “ o Estado total” e da “ ubiquidade potencial” do p o lític o que,
por sua própria essencialidade, pode e xig ir que seus m em bros dêem a m orte
ou estejam eles mesmos prontos a m orrer; cf. Parlementarisme et démocratie.
220. Jürgen Habermas, Legitimationsproblem in Spãtkápitalismus, 1973;
Traduzido em inglês sob o títu lo Légitimation Crisis, Londres, 1973, e em fran­
cês sob o títu lo Raison et légitim ité, Payot, 1978.
SEGUNDA PARTE 295

O procedim ento de J. Hábermas tem seu ponto in ic ia l na


crise do m undo ju ríd ic o -p o lític o de nosso fin a l de século. Im ­
p lica o estudo - m uitas vezes m ais sociológico221 do que filo ­
sófico - dos fatores e dos mecanismos que provocam o consen­
tim ento dos governados a um m odo de governo. Em bora de­
pendente no essencial da crítica, de obediência m arxista, das
ideologias, ele lhe perm ite igualm ente - é nisso que nos inte­
ressa aqui captar (assim como um fenôm eno patológico m uitas
vezes esclarece a norm alidade) o sentido e o alcance do pro­
cesso de legitim ação dos governos.
Tendo notado que, de um ponto de vista histórico, o con­
ceito de legitim idade é invocado sobretudo quando surgem
contestações provocadas pela instabilidade da situação política,
X Habermas constata que hoje se aprofunda a distância entre o
crédito que a autoridade soberana do Estado reclama e as ju s ti­
ficações que ela é capaz de trazer às suas exigências. O que
Paul R icoeur chama de “um afastamento de legitim ação” (a le -
gitim atio n gap)222 levanta, segundo J. Habermas, “ o problem a
da legitim ação” , essencialmente anim ado pela noção de crise.
A fim de compreender o problem a da legitim ação no d i­
reito p o lítico m oderno, é preciso èm prim eiro lugar notar a
extraordinária extensão tomada pelo conceito de “ crise” nas so­
ciedades democráticas ocidentais: ele se aplica à ordem política
ou ju ríd ica, mas tam bém à ordem social, econômica ou cultu­
ral. A o m esmo tempo, o fenôm eno geral do nosso tempo é que,
em todos esses campos, insinuou-se a dúvida, levando a pôr no
banco dos réus ao m esm o tempo os procedimentos racionais de
legitim ação e a existência de valores universais, ou, pelo m e­
nos, bastante largamente partilhados para que, referindo-se a
eles, possa estabelecer-se um consenso223. Ora, é na hora em

221. C f. igualm ente sobre esse aspecto sociológico T . Parsons, A utho­


rity , leg itim ation and p o litic a l A ction, in Structure and Process in Modern
Societies, 1964; S. Castignone, L eg ittim ita, Legitim azione, in Sociologia del
D iritto, 1977.
222. Paul Ricoeur, La raison pratique in Rationality to-day, Ottawa, 1979,
p. 242.
223. Jurgen Habermas, Raison et légitimité, pp. 150-6.
296 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

que a idéia de legitim idade atingiu sua m ais larga conotação que,
simultaneamente, entrou em crise.
J. Habermas explicita essa noção de “ crise” . N ão se trata
aí de um procedim ento inédito para a filo s o fia p o lítica: desde
Aristóteles, os fenômenos patológicos pareceram tão sig n ifica­
tivos quanto os fenômenos da norm alidade. Sua originalidade,
contudo, é sublinhar qüe “ Quando concebemos um processo
como um a crise, dam os-lhe im plicitam ente um sentido norm a­
tivo” 224; da mesma form a, um a crise nasce em um sistema quan­
do os im perativos estruturais internos deste são sacudidos a
ponto de serem contraditos por im perativos inconciliáveis: isso
evidentemente cria um problem a de regulação225. Ora, no seio
do direito p o lítico , ta l crise que, em termos gerais, se m anifes­
ta pela contestação do Poder, assume duas feições. Pode ser no
in ício uma perturbação grave, tão grave que introduz no siste­
m a ju ríd ic o um a quebra lógica ou form al: trata-se então de
um a crise de racionalidade nascida do choque entre im perati­
vos de regulação inconciliáveis. M as a crise pode tam bém pôr
em perigo de m orte a identidade do sistema ju ríd ic o do Estado
e pode conduzi-lo à explosão: então, a crise, não se situando,
como no caso precedente, no plano lógico, é concreta e vivid a
e tende à “perda de legitimação” do sistema226. Essa explosão pro­
vém do fato de a opinião pública, abalada em suas próprias bases,
já não dar sua adesão às regulações que form alizam p direito
constitucional e as leis positivas. H á ao mesmo tempo erosão
do sistema das regras estabelecidas e necessidade de regras no­
vas. A crise não é nada menos do que tuna crise de identidade'.
é um deslocamento da regulação, ligado à subversão das m o ti­
vações atestada pela interrogação que se instala na opinião pública.
Esta desconfia das prerrogativas da autoridade que lhe pare­
cem opacas e cuja justificação, o m ais das vezes, ela entende
m al. Então, para sair do m al-estar, a opinião ou apela a um tra­
balho inventivo que pode tom ar a form a de um a revolução ou

224. Ib id ., p. 12.
225. Ib id ., p. 42.
226. Ib id ., p. 68.
SEGUNDA PARTE 297

se abebera nas reservas da tradição para escapar das regras do


m om ento, e esse conservadorismo conduz, por u m m ovim ento
de reação, a um a restauração.
O significado que J. Habermas atribui à crise que gangrena
o direito p o lítico m oderno é grave. N um a prim eira abordagem,
a crise sig n ifica que um sistema ju ríd ic o -p o lític o é dependente
de u m sistema sociocultural. Sendo o problem a examinado par­
ticularm ente o do capitalism o avançado nas sociedades m oder­
nas, o autor deduz daí que um a crise de legitim idade, enquanto
crise de identidade, reflete as estruturas e as relações de classes
de lim a sociedade. N um a segunda abordagem, cuja tonalidade
é m ais política, a crise sig n ifica que a opinião pública tende
sempre a um “planejamento ideológico”227. Assim , em razão das
m otivações dissonantes, revolucionárias ou restauradoras, que
rom pem a ordem ju ríd ic o -p o lític a estabelecida, um a crise de
legitim ação indica a tendência não a superar ou a resolver as
dificuldades de um regime, mas a deslocar a legitim idade de um
aparelho de Estado para outro atendendo a outros m otivos ideo­
lógicos. De qualquer form a, um a crise de legitim idade é sempre,
como efeito de um a dicotom ia das m otivações, u m bloqueio
das instituições existentes, porque as estruturas norm ativas que
representam já não atendem às necessidades e aos ideais da
opinião. A s sociedades modernas regidas hoje pelo capitalism o
avançado viveriam um a crise de identidade desse tipo, devida
ao fracasso da legitim ação racional, incapaz de assumir o patri­
m ônio acumulado pela cultura tradicional. Entendamos que,
nas sociedades industrializadas, um consenso relativo aos valo ­
res éticos, aos ideais políticos e m esmo aos interesses sociais já
não existe. N o lugar do sistema dos valores tradicionais, insta-
lou-se o jogo da concorrência, irracional, pluralista, individua­
lista, até mesmo egoísta e sempre im placável. Sobretudo, a ideo­
logia da eficácia, portanto o u tilitarism o, engendra um a desin­
tegração axiológica: o universalismo racionalista do Ihim inism o
e a herança m oral do cristianism o perderam seu sentido.

227. Ib id ., p. 101.
298 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Recònhecem-se nessa análise alguns dos temas avançados


por Husserl na conferência proferida em 1935 no K ulturbund de
V iena sobre A crise da hum anidade européia é da filo s o fia . A
crise da razão in iciou um processo de decomposição e de deli-
qüescência. Certos pensadores, na esteira de Nietzsche e de H e i-
degger, im putam essa crise de legitim ação à “m orte de Deus” :
quando o n iilis m o se espalha, nada m ais tem im portância. O u­
tros denunciaram “ o reino do hom em ” e predisseram sua m orte...
E m todo caso, a crise da legitim idade na qual patinha a socie­
dade p o lítica do m undo m oderno provém do fato de que a ra­
zão se autodestrói ao sacrificar sua universalidade: ela se frag­
m enta em uma pluralidade de idéias, de crenças, de interesses
ou de valores que fendem e m inam o ed ifício do direito público.
A análise da crise de legitim idade que obceca as in stitu i­
ções da m odernidade decadente esclarece o fenôm eno da leg i­
tim ação no direito p o lítico no m om ento em que, não se valen­
do m ais nem de uma fundação transcendente nem das forças da
tradição, ele é confrontado com as dificuldades, até m esmo
com o fracasso da racionalidade. Segundo J. Hábermas, a le g i­
timação é pura e simplesmente, num mundo secularizado obce­
cado pela preocupação democrática, a resposta que um a socie­
dade dá às necessidades e às exigências que sente necessárias à
sua coesão. T. Parsons228 vê nessa resposta “ o processo de m e­
diação-valorização” pelo qual se estabelece uma relação de con­
fiança entre a ação social-política e o conjunto dos valores nos
quais as massas sociais procuram pontos de referência, um sen­
tido e um a eficácia. Se a confiança se instaura naqueles que
encarnam esses valores, ela tom a possível a obediência daqueles
que eles governam. Isso é suficiente para indicar a precariedade
e a vulnerabilidade do m undo juríd ico -p olítico em que as expec­
tativas, cada vez m ais numerosas, cada vez m ais exigentes e por
vezes contraditórias das populações incessantemente correm o
risco de ser decepcionadas pelos desempenhos dos governos.
O fenômeno da legitim ação não poderia se fechar no “ cír­
culo m ágico” descrito por Weber. O consenso e a aceitação que

228. C f. art. citado supra, n. 222.


SEGUNDA PARTE 299

o Estado obtém estão longe de pressupor somente a racionali­


dade da ordem ju ríd ico -p olítiea. Pode-se falar, com segurança,
como H . Kelsen e E. D iaz, de um a “ legitim idade constitucio­
n al” que, identificando-se com a noção de validade do sistema,
só adquire sentido em relação à estrutura norm ativa do ordena­
m ento ju ríd ic o do Estado, considerado hic et mine. M as isso
equivale a só considerar a legitim idade no seu aspecto form al e
não substancial, ou seja, na sua dimensão puramente racional,
que é alheia aos fin s e aos valores do direito p olítico. Ora, as­
sim como ensinam as pesquisas de opinião - certamente num e­
rosas demais, mas isso é outro problem a - , inúmeros elementos
irracionais intervêm no processo de legitim ação (ou de desle-
gitim ação) do Poder. A esse respeito, a distinção que J. Habermas
faz entre “norm a” e “princípio” - sendo o princípio a m etanor-
m a que perm ite produzir normas229 - lança um a grande clare­
za no problem a da legitim ação. Que se considere a sucessão
dos regimes engendrada por um a crise de legitim idade, abs­
traindo-se qualquer ideologia po lítica: por exem plo, na In g la­
terra, a chegada de C rom w ell ou a de G uilherm e de Orange,
ou, na França, a reconquista do trono por L u ís X V I I I ou a ins­
talação do general D e G aulle depois da guerra. À lu z da distin­
ção entre norm a e princípio, fic a claro que, para além das nor­
mas jurídicas form ais, o direito p o lític o im p lica referência a
princípios fundam entais de natureza axiológica e cultural, por­
tanto, transjurídicas. Desde então, a insuficiência criteriológica
do que W eber denom ina de m aneira ideal típica a “legitim idade
racional” fic a patente: “U m procedim ento” , escreve J. Haber­
mas, “não pode por si só fornecer um a legitim ação. Pelo con­
trário, o procedim ento legalista é ele próprio subm etido à coer­
ção da legitim ação.”?30 Portanto, é que “ a crença na legalidade
se deduz da crença da legitim idade” e não o inverso231. M esm o
quando o direito p o lítico tende a se racionalizar, existem prin­
cípios de ação que são insuscetíveis de justificação racional.
Considerada filosoficam ente, a im possibilidade de não recor-

229. J. Habermas, op. c it, p. 124.


230. Ib id ., p. 137.
231. Ib id ., p. 140.
300 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

rer a eles levanta a questão, verdadeiramente abissal, da possi­


bilidade da razão prática. Sem entrar nessa problem ática que
ultrapassa nosso assunto, notemos contudo o qué o sentido dessa
questão tem de perturbador. D e um lado, ela indica que a idéia
de legitim idade não será esclarecida enquanto a reportarmos
somente a um a racionalidade do tipo lógico-instrum ental, cuja
h ipertrofia arruma as sociedades e as políticas atuais. Ater-se a
essa perspectiva é esquecer que as atividades racionais são p lu ­
rais e determinam estratégias, modos e normas de comunicação
tanto quanto form as lógicas de coerência. D o outro, essa ques­
tão, por si só, deixa pressentir que a idéia de légitim idade, re­
colocada no âm bito da razão prática, remete à contingência das
“ escolhas iniciais” que seu funcionamento supõe. A razão é sem­
pre “razão decidida” e, como tal, sempre parcial, já que tom a
partido. Portanto, a legitim idade p o lític a tanto quanto o direito
que estrutura o Estado encontram suas raízes nas “normas fu n ­
damentais do discurso racional que supomos em cada decisão” .

: E m Seu estatuto filo s ó fic o , o processo de legitim ação do


Poder rias sociedades políticas modernas revela a am bigüidade
essencial da idéia de legitim idade: nem legalism o, nem em pi­
rism o, riem tradicionalism o, nem convencionalism o, nem deci-
sionism o levam -no em consideração. A idéia de legitim idade,
irredutível a um esquema unitário, traz a marca da am bivalên­
cia em razão da im pureza origiriáfia dá razão prática. Por isso,
como a própria política, ela é por essência agônica, não porque
leva a expor em termos de direito o problem a da sucessão dos
regimes ou porque desperta as rivalidades dos homens ou dos
partidos, mas porque é o teatro daquilo à que W eber chama “ a
guerra dós deuses” : a idéia de legitim idade é filh a das “brigas
do O lim p o” .
Dessa form a, seria inconveniente, ao term o dessa análise,
ver avançar-se o reitíadó da suspeita. A legitim idade não englo­
ba o que J. Bouverèsse denom ina u m “ cinism o racional” ; não é
um a testemunha da falência da razão num a “ condição pós-
m odem a” em que culm inariam a dissensão e a deslegitimação.
É incontestável que não traduz, como acreditara a filo s o fia do
Ilu m in ism o , o im perialism o da razão, e que a ideologia vem o
SEGUNDA PARTE 301

m ais das vezes preencher a distância entre as pretensões de um


sistema ju ríd ico -p olítico e a adesão de que é objeto. M as a com ­
plexidade da idéia de legitim idade assim como a indecisão de
seus critérios não indicam um destino. E xprim em m ais um
estatuto, o próprio estatuto do direito p o lítico que, nq moderno
Estado D O direito, escapa, desde o in íc io e sempre, à neutrali­
dade axiológica.

Quando nos indagamos sobre o Estado D O direito através


dos problemas levantados pela pluralidade das form as de gover­
no e pela norm atiyidade das instituições estatais, fic a patente
que o direito p o lítico é sempre relacionado com a interdepen­
dência entre a p o lítica e as idéias. N ele se decifram portanto
sempre, com m aior ou m enor nitidez, mas bem presentes, sinais
cujo significado remete ao paradigma de um a cultura. A ssim ,
o erro estaria em compreender o Estado D O direito de m aneira
puramente abstrata e form al. Por m ais indiscutível que seja a
racionalidade do m undo moderno desde seu advento, o direito
p o lítico nele não se deixa reduzir a um sistema de m áxim as
lógicas de que, em suma, a racionalidade tecnocrática determ i­
naria um Estado planejador. Os princípios do direito p o lítico
moderno não escapam á fin itu d e da razão hum ana e não são
absolutamente alheios à experiência v iv id a das sociedades con­
cretas. É por isso que o Estado D O direito, longe de responder a
um form alista ju ríd ic o sistematizante, pouco a pouco se m ani­
festou como a expressão de um hum anism o pluralista. Este,
longe de esmagar o direito p o lítico sob o m anto de chumbo das
estratégias racionais e das técnicas de controle, exige dos go­
vernantes, e mesmo dos governados, um a consciência de res­
ponsabilidade e a vig ilân cia do senso crítico. Segue-se que, de
um lado, a consistência prática do direito político, para o filó ­
sofo que se indaga sobre o m undo m oderno, assume m ais im ­
portância do que sua dimensão teórica e que, do outro, a preo­
cupação com os valores que fazem a dignidade do hom em tor-
nou-se m ais atuante e m ais profunda dó que a exigência de coe­
rência lógica da arquitetônica juríd ica.
302 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

O próprio Kelsen - que é erradamente Considerado, sem


m ais m atizes, um “positivista” , pois elaborar um a “ ciência do
direito p ositivo” não im p lica aderir à postulação do p o sitivis­
m o232 - reconheceu essàs duas reclamações de princípio do
direito p o lítico m oderno, e há certa m á-fé na crítica qué lhe d i­
rige seu adversário C. Schm itt. Kelsen, como Spengler ou Cas­
sirer233, tam bém não insiste na decadência do direito p o lític o e,
de m odo m ais geral, na deliqüescência cultural que afetam o
m undo ocidental. M as sabe que o racionalism o do qual o Ilu -
m inism o fizera o cadinho do direito p o lítico está em crise: as
duas grandes guerras m undiais do século X X e a experiência
histórica dos totalitarism os mostraram cruelmente que inúm e­
ras determinações - econômicas, psicológicas, históricas, ideo­
lógicas: o dinheiro, o m edo, a tradição, a propaganda - rebel­
des a sua racionalização integral pesam na elaboração e na
realização do direito p o lítico , não somente na escala estatal,
mas também na escala internacional, cuja consideração se im ­
põe cada vez m ais. Contrariam ente ao que escrevem num ero­
sos comentadores, Kelsen não ignora de form a algum a o “ con­
teúdo” das normas do direito. E m conseqüência, se o desdo­
bramento dos princípios do direito p o lítico se efetua por m eio
da hierarquia das habilitações e dos pontos de im putação que
define a form a da legalidade, ele não poderia lim itar-se à ordem
processual de edição das normas. O direito político não procede
da abstração de um racionalism o construtivista. A s reflexões
que Kelsen dedicou à democracia234 são, nesse ponto capital,

232. É equivocar-se totalm ente sobre o sentido de um a frase de Kelsèn


freqüentemente citada (A teoria pura do direito é a teoria do positivism o ju r í­
dico, in L a méthode et la notion fondam entale de la théorie pure du droit,
Revue de la métaphysique et de morale, 1934, 41, p. 204) sustentar que
K elsen cumpre o projeto positivista. Rigorosam ente, m io e xistiu nenhum
exem plo do positivism o ju ríd ic o form alista e cego que a ele é atribuído.
233. Spengler, La décadence de FOccident, 1915; E . Cassirer, Le mythe
de l'É ta t (1946), trad. fr., G allim ard, 1993.
234. E m 1920, Kelsen publicou nos Archiv fu r Sozialwissenschaft und
Sozialpolitikvm prim eiro texto dedicado à democracia. R em anejou-o profun­
damente entre 1920 e 1929 e fe z nessa data, sob o títu lo Wom Wesen und Wert
der Demokratie (trad. fr. de Charles E insenm annem 1932; reed. por M ic h e l
SEGUNDA PARTE 303

particularm ente elucidativas e fecundas. Pelo menos o conhe­


cim ento delas deveria contribuir para apagar a parcialidade das
interpretações a que a incompreensão da “teoria pura do direi­
to” freqüentemente ocasionou.
A originalidade do texto de Kelsen sobre “ a natureza e o
valor da democracia” está em adotar uma perspectiva criticista e
em submeter a democracia ao tribunal da razão235. Tendo renova­
do a idéia kantiana da “insociável sociabilidade” e lembrado que
existem no hom em “dois instintos fundamentais” - a liberdade e
a igualdade Kelsen procura compreender como se conciliam -
pois, afinal, são antitéticos236 - esses “ dois postulados de nossa
razão prática”237; é essa, segundo ele, a problemática profunda da
política, à qual o direito político deve trazer um a solução.
A fim de encontrar essa solução, Kelsen procede em duas
etapas, datadas respectivamente de 1929 e de 1955. E m 1929,
as últim as páginas do texto d e fin itivo sobre A democracia
salientam a necessidade de adotar um “ esquema crítico relati-
vista” para apreender o sentido do direito político. A ssim como
K ant quisera evitar o escolho “m ístico-m etafísico” em que
esbarra o dogmatism o, assim tam bém Kelsen repudia a con­
cepção “m etafísico-absolutista” do m undo pois, d iz ele, ela é
um convite ao despotismo e contradiz a fin itu d e do hom em .
Sendo o ser humano um ser dos lim ites, o absoluto da verdade
ou dos valores está fora de seu alcance238. Apenas um a “ filo s o ­
fia relativista” 239 contém a po lítica e o direito que a estrutura

Troper, Econom ica, 1986) um a exposição d e fin itiva de suas idéias (que, aliás,
se repetirão nas suas obras e artigos posteriores).
235. Isso im p lica que ele não considera a democracia com sendo, no
seio de um a tip olo g ia dos regim es, o m elhor dentre eles. Essa concepção a xio -
lógica da política, mesclada de m etafísica, não pode evitar o erro do dogm a­
tism o ideológico que substitui a verdade científica pela m entira m ilitante.
23 6. A necessidade de liberdade se ergue em cada pessoa, “ contra o tor­
m ento da heteronom ia” ; a necessidade de igualdade se exprim e no “ an ti-
heroísm o” pelo qual são rejeitadas as figuras do patrão ou do chefe e seu
comando, absolutamente recusado.
237. H . Kelsen, La dém ocratie, trad. cit., p. 17.
238. Ib id ., p. 90.
239. Ih id ., p. 92.
304 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

im pondo-lhes receber, com o pluralism o, a relação dialética en­


tre m aioria e m inoria que o parlamentarismo exprim e240. - E m
1955, no artigo intitulado “ Foundations o f Democratie”241, K e l-
sen aprimora essa idéia na qual, entrementes, a G eneral Theory
o f Law and Stàte havia insistido242. Segundo o procedim ento
criticista que o norm ativism o kelseniano adota, transparece que
a exigência de liberdade que confere à democracia parlamentar
sua unidade norm ativa é “um a necessidade da razão” , pura e a
p rio ri. A lógica da teoria p o lítica, como a da teoria do direito,
só pode ser um a lógica transcendental. Nesse ponto, é im por­
tante não se enganar: nas perspectivas fúndacionais que essa
lógica pura desenha, o m odo de produção da norm atividade
ju ríd ic a é o único critério de validade do direito p o lítico e, por­
tanto, da p o lítica que ele rege. Segundo esse critério, só podem
existir dois modelos de p olítica243: a autocracia, que instala a
heteronom ia no Estado, já que são as normas que a autoridade
p o lítica, chefe ou partido, produz nela e que são im postas pela
coerção aos cidadãos, que são apenas súditos; e a dem ocracia,
que im p lica autonom ia porque os criadores das norm as (direta
ou indiretam ente, esse é apenas um problem a de técnica in s ti­
tucional) também são seus destinatários. Por conseguinte, K e l-
sen leva ao apogeu a concepção kantiana da razão prática, na
qual a Idéia de liberdade aparece no horizonte num enal como
o axiom a regulador e legitim ador da democracia.
Assum indo assim a herança do criticism o kantiano, Kelsen
suprime de sua concepção do direito p o lítico toda dim ensão de
em piricidade e toda referência m etafísica. M as - e isso é m uito
m ais im portante para a compreensão de sua teoria - , ele não a
situa na trilh a de um a racionalidade triunfante, construtiva e

240. Ib id ., pp. 21 ss.; p. 38: “O parlam entarism o é a única form a de rea­


lização da id é ia democrática” ; nele, a liberdade é um a liberdade-participação.
C f. tb. Allgem eine Staatslehre, p. 370.
241. H . Kelsen, “Foundations o f Dem ocratie” , in Ethics, 1955, vo l. 66,
pp. 1-101.
242. H . Kelsen, General Theory o fLaw and State, p. 444.
243. Essa tese é constante em Kelsen: Théorie pure du d ro it, pp. 186 e
371; Allgem eine Staatslehre, p. 62; General Theory o f Law and State, p. 283.
SEGUNDA PARTE 305

absoluta, porque sabe que a sistematização rígida que ela co­


manda é a recusa, antecipada, de toda conflitualidade. Sua con­
cepção do direito político se situa nos “ simples lim ites da razão”
e atende à preocupação de pôr em evidência a norm a sem a
qual a p o lítica seria im pensável. Só cabe, de fato, à capacidade
reguladora (e não constitutiva) da razão pura prática ordenar o
ed ifício ju ríd ic o necessário à p o lítica do Estado m oderno. So­
m ente a le i da razão, em sua função reguladora, faz penetrar a
norm atividade na diversidade das situações que o direito p o lí­
tico é levado a reger.
O direito p o lítico não poderia corresponder, como pensa­
va G. Jellinek, aprovado por C. Schm itt, a um a “ força norm a­
tiva do factual”244. E m sua unidade, ele só pode encontrar sua
funcionalidade na vocação organizacional e arquitetônica que
caracteriza sua fundação racional pura e transcendental. O erro
estaria em esquecer que a Idéia da razão, à qual corresponde o
direito político, não se objetiva: ela serve de guia e de compas­
so ao funcionam ento das instituições e ao desenrolar da prática
política. P rincípio regulador, essa “ Idéia” tem um sentido “m e­
tódico” e, como tal, é “ evidentemente irrealizável” . O Estado
D O direito, como m ostra a reflexão crítica de Kelsen sobre a
democracia, possui um potencial norm ativo tal que é preciso
que os homens ajam em p o lítica como se o que, talvez, nunca
será, devesse ser.
Tal m áxim a não deixa de causar angústia. M as, longe de
poder trazer, como por vezes se afirm ou, o terror n iilis ta que,
na história, obcecou os m ais odiosos regimes totalitários, ela
sig n ifica ao contrário que a exigência de liberdade pôs no fun­
damento do direito p o lítico a força organizacional e ordenado-
ra da razão prática. Se o direito p o lítico não atendesse à voca­
ção puramente arquitetônica da necessidade da razão, seria en­
travado por noções errôneas e, sem bússola, teria o p e rfil de
um navio à deriva, ao sabor do desatino dos homens.

244. G . Jellinek, Allgem eine Staatslehre, pp. 3 4 1,3 60 e 371; C . Schm itt,
Über drei Arten des rechtswissenschaftlichen Denkens, Hanseatische V erlag­
anstalt, 1934.
306 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A ssim fic a evidente que o ideal da liberdade, em que se


exprim e a aspiração m ais profunda da razão pura prática, é,
para o Estado D O direito, no rigor coercivo do aparelho ju r íd i­
co, a esperança e a intenção últim a. O Estado D O direito, no qual
se opera a síntese entre a ordem e a liberdade, é portanto tam ­
bém considerado com outro olhar, o que se chama na nossa
época, sublinhando a inspiração lib eral que lhe cabe veicular, o
Estado D E direito.
Para apreender os princípios filo só fic o s que tom am pos­
sível a articulação entre o Estado D O direito e o Estado D E d i­
reito, convém agora indagar-se sobre a síntese entre a ordem e
a liberdade que se opera no direito p o lítico moderno.
C apítulo I I

O Estado D E direito, síntese dos


princípios de ordem e de liberdade

A s análises anteriores mostraram que o direito p o lítico é o


sustentáculo dos atos de poder institutivos e organizacionais
que dão à existência hum ana u m caráter público. A coexistên­
cia dos homens, em todos os seus setores, é sujeita à legislação
e à regulamentação dos corpos constituídos do aparelho d iri­
gente que é o Estado. H oje, o poder produtor das normas ju r í­
dicas adquire até, no direito público, um a envergadura européia
e internacional. N o espaço p olítico-jurídico assim am pliado, o
direito im põe a obrigatoriedade de seus preceitos e de suas re­
gras, e a executoriedade deles, que lhes comanda a aplicação, não
poderia se dar sem coerção.
Contudo, o surto da consciência p o lítica, já no século X V I
e, sobretudo, desde o século X V III, fo i acompanhado por um a
m etam orfose espetacular: a luta pelo Poder, característica dos
dois prim eiros séculos da M odernidade, pouco a pouco deu lu ­
gar, por efeito do dinam ismo do progresso, à luta contra o Poder,
e as reivindicações de liberdade tom aram -se cada vez m ais in ­
tensas. Certamente, como assinalava M ontesquieu, nada é m ais
incerto do que o significado da palavra “ liberdade” 1, cuja p o lis-
semia se cerca, ainda por cima, no idealism o moderno, de um a
ilusão de transparência. M as, à m edida que os homens se apro­
xim am m ais de sua hum anidade, e que a hum anidade é re fle ti­
da no seu próprio espelho, assiste-se a um a mudança do olhar
ju ríd ic o para a esfera pública e, sim ultaneam ente, para o m odo
como o indivíd uo e as relações interindividuais se situam nela.

1. M ontesquieu, L 'esprit des lo is , X I, n , p. 394.


308 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A s relações entre as autoridades dirigentes e os cidadãos se


transform am à m edida que se desenvolve a ética m oderna dá
autonomia; dessa maneira, falar, no direito político moderno, das
relações de dominantes com dom in ados tom a-se um a expres­
são sim plificadora a ponto de ser falaciosa. Tudo acontece como
se o centro do direito p o lítico estivesse deslocado: certamente,
a ordem ju ríd ic a interna do Estado continua a se iden tificar
com a potência pública, mas, no m undo ocidental m oderno, as
exigências do in dividualism o se traduzem pelo crescimento tão
intenso das exigências da condição c iv il e p o lítica dos cidadãos
que a partir de então elas se im põem como o problema central do
direito público.
Esse problem a assume um a face dupla.
D e um lado, a preocupação de ponderar ou de lim ita r o
Poder constitui, para o hum anism o ju ríd ic o dá modernidade,
um princípio inerente ao próprio direito político . Este princípio
se firm a de m aneira tanto m ais im perativa porque se sabe dora­
vante que, para rem ediar os m alefícios da vontade de potência,
é preciso, a um só tempo, consolidar os âm bitos do Poder ê lhe
atribuir lim ites fixan d o ás competências das instituições. “ Para
que não se possa abusar do Poder” , d izia M ontesquieu, “ é pre­
ciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o Poder.”2
A m áxim a de M ontesquieu é vista como a chave do constitu­
cionalism o, cujo dispositivo fo i burilado, de B . Constant a Toc-
queville e Laboulaye, pela corrente liberal. Quaisquer que sejam
os m atizes, muitas vezes importantes, entre os autores, a doutri­
na deles repousa num a postulação com um que os liberais clás­
sicos, e depois os neoliberais da segunda metade de nosso sé­
culo, m ais precisamente erguidos contra os totalitarism os, con­
tinuam a adotar: a saber, que é necessário proteger os direitos
do ind ivíduo contra toda usurpação, real ou possível, do Poder.
Contudo, já no in íc io do século X I X , aparecera um a term ino­
logia específica na Alem anha, onde a teoria do Rechtsstaat tinha
grande repercussão. N a França, fo i preciso esperar um século
para que Carré de M alberg introduzisse a expressão “ Estado de

2. Ibid., X I, V I, p. 395.
SEGUNDA PARTE 309

direito” ?; ainda assim esse autor não fo i m uito atendido em seu


tempo, m esmo por juristas clássicos como H auriou ou Barthé-
lem y que, aliás, critica D uguit. E m compensação, em nossa
época, é de bom -tom associar “ a m odernização democrática do
Estado” à noção de Estado de direito. N o m undo anglo-saxão,
a expressão R ule o f L a w (que não traduz exatamente a palavra
alemã Rechtsstaat) conheceu, da mesma form a, um evidente
sucesso em todas as últim as décadas. Sejam quais forem as
variações doutrinais ou léxicas, e possível -p e lo menos se ex­
cluirm os de nosso campo de investigações os Estados que per­
manecem sob um a autoridade ditatorial - dizer que o conceito
Estado de direito, trazido pela exigência de liberdade do sujei­
to de direito, fornece um eixo p rivilegiado para o direito p o líti­
co m oderno, que concilia (ou reconcilia) assim os dois p rin cí­
pios fundam entais, aparentemente antitéticos, da ordem e da
liberdade.
M as, por outro lado, a evidência aparente do princípio de
liberdade, que dizem constituir a ponta de lança do Estado D E
direito, não é suficiente para a elaboração de um a teoria u n ívo ­
ca e forte. O idealism o do Ilu m in ism o se traduziu, já no século
X V III, num a certa idéia do hom em , por aspiração à felicidade
e ao progresso. O pensamento burguês lib eral da época revolu­
cionária, m ovido por um a inspiração filosoficam ente hetero­
gênea, celebrou ao mesmo tempo os “prodígios da le i” prom ul­
gada pelo Poder e as virtudes dos “ direitos-liberdades” oponí­
veis ao Poder. A Declaração dos direitos do homem e do cida­
dão não fo i somente um exercício do pensamento: marcou na
história do direito p o lítico o advento triu n fa l das liberdades e
dos direitos individuais; daí em diante, a autonom ia intelectual
conquistada pela razão, a um só tem po constituinte e m ilitante,
se exprim ia pelâ proclamação solene segundo a qual “ os homens
nascem e permanecem livres e iguais em direitos” . A função
do direito p o lítico era, portanto, não somente rejeitar, por seu
próprio dispositivo, o im perialism o do p o lítico , mas assegurar,

3. R . Carré de M alberg, Contribution à la théorie générale de l ’État, 1922;


1.1, pp. 293 ss.
310 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

por suas instituições públicas, a proteção dos direitos e das l i ­


berdades de todos os cidadãos. A ssim , à m edida que crescia a
repercussão da idéia dos “ direitos do hom em ” e se m u ltip lie a -
vam , aliás mudando de nâturéza, as reivindicações da liberdade,
definiu-se, não sem dificuldades, a vocação daquilo a que logo
se deveria cham aro Estado D E direito.
Em bora a problem ática do Estado D E direito possa pare­
cer clara, são soluções em geral confusas que lhe correspondem
e que, m uito particularm ente, deixâm perceber as dificuldades
institucionais provocadas pela proteção das liberdades in d iv i­
duais no e pelo direito público4. D e fato, se o EStado D E direi­
to, em seu princípio e teoricamente, nada m ais é que á figura
que o Estado D O direito deve assum ir a fim de proteger as l i ­
berdades individuais, ele tem , na sua realidade e praticamente,
provocado por seu próprio desenvolvim ento, um inchaço in fla ­
cionista dos direitos em que se decifra um desvio do direito. O
fenômeno, é tão grave que nos podemos perguntar se, do prin ­
cípio do Estado de direito a seu desvio efetivo, não estamos as­
sistindo à diluição do conceito de direito.

Após retraçar a genealogia da idéia de Estado D E direito e


form ulado sua problem atização, examinarem os a m aneira pela
qual se efetua nele a organização institucional dos direitos e das
liberdades, a fim de avaliar as dificuldades nas quais, sob a sim -
bologia republicana, esbarra, na nebulosa democrática, a sínte­
se da ordem e da liberdade.

4. Sobre o Estado de direito, cf. A . A lbrecht, “Rechtsstaat’, S taatlexi­


kon, V I, ed. Görres-Gesellschaft, 6. A uflage, Friburgo, 1961; Norberte Bobbio,
Stato, Governo, Società. P er una teoria generale delia p o lític a , T u rim , 1985;
D om inique Colas (sob a direção de) L ’É ta t de d roit, P U F , 1987; Jacques
C hevallier, L 'É ta t de droit, Revue du d ro it p ub lic, 1988, pp. 313-80; M . J.
Redor, D e l ’É tat lég al à l ’É ta t de droit. L ’évolution des conceptions de la
doctrine publiciste française (1879-1914), Econom ica, 1992; L ’É tat de d roit
(sob a direção de M ic h e l Troper), Cahiers de philosophie p o litiq u e etju rid i­
que, n i 24, Caen, 1993.
SEGUNDA PARTE 311

1. A idéia de Estado D E direito:


de sua genealogia à sua problem atização

N a m edida em que a idéia de Estado D E direito exprim e


as reivindicações da liberdade que os indivíduos têm razão de
opor às coerções do Poder, ficar-se-ia tentado a pensar que não
é im próprio procurar suas raízes nos m ovim entos de resistên­
cia à autoridade p o lític a que se m anifestaram nos séculos X V I
e X V I I 5. N as diatribes do poeta M ilto n , nos libelos dos N iv e ­
ladores bem como nas filíp ic a s dos monarcômacos, levantam -
se de fato os prim eiros gritos da liberdade contra o poder p o lí­
tico. N o entanto, nos prim eiros albores da modernidade, só pode
tratar-se de longínquas prim ícias. A noção de “ direito de resis­
tência” sig n ifica a oposição dos povos ao tirano: o títu lo do
m ais célebre panfleto dos m onarcômacos — os Vindiciae con­
tra tyrannos - é, nesse sentido, eloquente. E , m esm o quando
Locke, na hora da G lorious R evolution, tom a a defesa do direi­
to dé oposição6, é contra os reis-tiranos e os usurpadores que se
levanta: o tirano em exercício e o tirano de origem ignoram de
fato, d iz ele, o “ campo legítim o” do Poder7 e exigem do povo
um a “ obediência passiva” 8. N o entanto, se é verdade que Locke
encontra na le i d ivina de natureza e na razão razoável (reason­
ableness) dos homens o fundamento do direito de resistência
dos povos - e não dos indivíduos considerados ut sin g u li - , es-

5. A lguns autores procuram as origens do Estado de direito nas teses do


jusnaturalism o, segundo as quais o direito do Estado é submetido a um direito
superior ou, em sua figura “ clássica” , desejado por Deus e derivado da natu­
reza das .Coisas ou, na sua versão “moderna” , ligado essencialmente à nature­
za do hom em . Outros procuram as origens do Estado de direito num sistema
com o o de Licurgo ou de Sólon, segundo o qual, em um procedim ento que,
por um anacronismo evidente, poder-se-ia qualificar de “positivista” , é o pró­
prio Estado que enuncia os preceitos ju ríd ic os que todo governante, longe de
ser solutus legibus, deve observar. C f. N . B òbbio, op. c it, pp. 86 ss.
6. Remetemos nesse ponto à nossa obra John Locke et la raison raison-
nable, V rin , 1986, pp. 160 ss.
7. L ocke,Trazíé du gouvernement civil, § 199.
8. Ibid., § 228: no antro do P olifem o o C iclope, U lisses e seus compa­
nheiros, em extrem a passividade, esperam ser devorados.
312 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tabelecendo nisso um a das bases doutrinais do liberalism o, não


tem idéia algum a daquilo que será denom inado Estado D E
direito.

A ) O aparecimento do conceito de Rechtsstaat

A filo s o fia política francesa do século X V III e o pensamen­


to dos homens da Revolução encaminharam em grande parte o
direito p o lítico , pela vontade apaixonada que os anim ava de
prom over institucionalm ente a Uberdade dos cidadãos, para as
estruturas jurídicas do Estado de direito. É banal lem brar que,
embora em registros filo só fico s m uito diferentes, M ontesquieu
e Rousseau, mas também os pensadores do Ilu m in ism o , unem -
se em sua defesa da Uberdade contra os abusos e os desvios
de poder da autoridade poHtica. N um a m istura surpreendente de
universalism o racionalista e de individualism o, de “ antigo” e de
“moderno” , de jusnaturaHsmo e de sinais “juspositivistas” , de u ti­
litarism o e de sentim entalism o, de intelectualism o e de vo lu n -
tarism o etc., característica da paisagem intelectual da época re­
volucionária, preparou-se, em um longo trabalho marcado por
hesitações e oposições, a Declaração dos direitos do homem e
do cidadão de 26 de agosto de 17899. Tantas influências se con­
fundem nesse célebre texto que seu ecletism o, m esmo em m eio
às exegeses m últiplas que ocasionou, tom a penoso um comen­
tário que lhe esgote o sentido. Está claro, no entanto, que a idéia
da Uberdade, ontologicam ente fundamentada e institüçional-
m ente garantida, é seu conceito-mestre e chama como corolá­
rio “a resistência à opressão” . Apesar disso, e m esmo que o es­
pírito de Uberdade seja a ponta de lança da Declaração de 1789,
esta, em sua Uteralidade, não comporta a expressão “ Estado de
direito” .
F o i na Alem anha que nasceu, com a palavra, o conceito de
Rechtsstaat - ao qual correspondem hoje, em outras línguas,

9. Sobre essa longa gênese da Declaração de 1789, ver a substancial In ­


trodução de Stéphane R iais, in La D éclaration des droits de l ’homme et du
citoyen, Hachette, 1988.
SEGUNDA PARTE 313

os termos É ta t de d ro it [Estado de direito], L aw State, Stato d e i


d iritto , Estado de derecho etc. M esm o que se possa ter m ostra­
do que diversos elementos que entram na compreensão desse
conceito pertencem ao pensamento ju ríd ic o -p o lític o desde o
século X V I, é preciso repõrtá-lo à cultura alem ã do século X I X
para captar rigorosamente seu sentido original. D e fato, é para
fazer oposição à noção de O brigkeitsstaat que se traduz usual­
m ente — de m aneira m uito aproxim ativa - por “ Estado de p o lí­
cia” 10,, que a idéia do Rechtsstaai, que se traduz por “Estado de
direito” , fo i avançada. D e acordo com H ein z M onhaúpt11, a
aliança entre duas palavras Recht e Staat teria aparecido em
1798 em Placidus - cujo verdadeiro nom e era Johann W ilh e lm
Petersen - que a aplicava à doutrina do direito de K ant12, N á ver­
dade, o autor da Rechtslehre (1796) em nenhum de seus escri­
tos emprega a expressão Rechtsstaatl i ; mas 0 estatuto que, na
sua filo s o fia norm ativo-crítica, K ant dá ao Estado14 tom a este
inseparável das estruturas jurídicas que, pela institucionaliza­
ção da trias p o lític a (os três poderes), tom am possível a coe­
xistência das liberdades15. Gom o a Id éia racional prática de l i ­
berdade é, segundo Kant, o princípio regulador do direito p o lí­
tico, o Estado, em seu próprio conceito, im p lica a recusa da
autoridade absoluta e arbitrária do Poder e, ao m esmo tempo,
da vocação adm inistrativa e gestionária qüe, como tal, ela não

10. U m a tradução m ais satisfatória da palavra Obrigkeitsstaat poderia


ser “Bstado autoritário” .
11. H einz M onhaúpt, L ’Etat de droit en A llem agne, L ’État de droit, in
Cahiers de Philosophie politique etJuridique, art. citado, p. 76.
12. J. W . Petersori Placidus, Literatur des Staatslehre. Ein Versuch, 1.
Ableitung, Estrasburgo, 1798, p. 73 e pp. 105 ss.
13. E m compensação, Kant emprega a expressão Staatsrecht (direito
estatal) para opor, claro, ao direito natural (Naturrecht, tanto quanto natürli­
ches Recht) e para o distinguir do direito cosrnopolítico ( Völkerstaatrecht ou
Welíhürgerrechf).
14. Rem etem os ao nosso estudo La philosophie du droit de Kant, V rin ,
1996.
15. Lem brem os que, para Kant, a coexistência das liberdades é o “p rin ­
cípio universal do direito” , cf. Doctrine du droit, Introduetion, '§ C,-Plêiade, t.
III, p. 479; AK, V I, 231.
314 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

deixaria de se outorgar. A coerção, que é o critério do direito e


o caracteriza como ordem, cria nó Estado um obstáculo a tudo
que cria obstáculo à liberdade16. O destino in fe liz da Rechts­
lehre de K ant que costumam apresentar, na época em que redi­
ge essa obra, como um velho cansado e intelectualm ente des­
gastado, explica em grande parte que nem o tema do Estado de
direito nem o term o Rechtsstaat se tenham firm ad o na im edia­
ta descendência do filó so fo . A teoria do Rechtsstaat só encon­
trou sua form a cie ntífica no lib eral Robert von M o h l, cuja obra
D ie Polizei- Wissenschaft nach den Grundsätzen des Rechtsstaates
(A ciência p o lic ia l segundo os princípios do Estado de direito),
publicada em 1832 e 1834, teve certa fama. O autor, referindo-se
principalm ente a M ilto n , Hobbes, Locke e K ant, considera que
“ O Estado de direito dos tempos modernos [...] protege e enco­
raja o desenvolvim ento de todas as forças naturais, desenvolvi­
m ento reconhecido pelo povo como objetivo de vid a do in d iv í­
duo e do conjunto da sociedade17.” A in d a que essa definição
permaneça explicitam ente tributária, sob a pena desse autor,
das form as da “m onarquia constitucional” , ela prefigura em seu
alcance a da “Estado-providência” , que se carregará, nas déca­
das posteriores, de tantas esperanças. Contudo, embora a sorte
do conceito de Rechtsstaat tenha desde então sido selada na
Alem anha pelas obras de Friedrich Julius Stahl18 e de R udolph
von G neist19, o significado de “ o Estado de direito” perm ane­
cia impregnado de m uita indecisão. Certamente, os autores con­
cordavam em sustentar que o Estado de direito é uma garantia
para a liberdade dos indivíduos. M as, se fica relativamente claro
que o Estado de direito era oposto ao Estado absolutista - sem-

16. Kant, ib id ., § I), p. 480; A K , V I, 231.


17. Robert von M o h l, Encyclopädie der Staatswissenschaft, 21 ed.,
Friburgo e Tübingen, 1872, p. 106; citado por H . M onhaupt, de quem tiram os
as referências bibliográficas que seguem, a rt c it , p. 79.
18. F . J. Stahl, D ie Philosophie des Rechts, t. II: Rechts und Staatslehre
a u f der Grundlage christlicher Weltanschauung (a obra teve cinco edições
entre 1837 e 1878).
19. R . von G neist, D er Rechtsstaat und die Verwaltungsgerichte in
Deutschland, B erlim , 1872.
SEGUNDA PARTE 315

pré autoritário, seja ele p o lic ia l ou adm inistrativista - para sal­


vaguardar a liberdade e os direitos do in d ivíd u o tais como a
propriedade e a segurança?0, a superposição, ou mesmo o em ­
baralhamento, desordenado, de temas como a constitucionalida-
de, a autolim itação do Poder do Estado, a separação dos poderes,
a independência do aparelho de justiça, a cidadania-participa­
ção, o princípio da legalidade, a conform idade da administração
às leis, a proteção ju d ic iá ria etc. contribuíam para confundir
sua conotação, tanto form al quanto m aterial. Nessas condições,
às quais deviam juntar-se, até a Segunda Guerra M u n d ia l, as
vicissitudes da p o lítica alemã, adm itir-se-á que C ari Schm itt
tenha tido algum a boa razão para denunciar a aberração do Es­
tado de direito, designando-o como “ um a form a vazia” da arte
política.
Contudo, quando Carré de M alberg, por volta dos anos
1920, vincula sua reflexão à noção de Estado de direito, ta l co­
m o a expuseram os autores alemães, ela lhe parece - caso, ao
menos, estim a ele, se queira fazer um esforço, de aclaramento
categorial e conceituai - digna de interesse - mesmo que fosse
necessário m atizá-la, até mesmo recusá-la.

B ) A teoria de Carré de M alberg

. 0 aclaramento que Carré de M alberg empreende versa


principalm ente sobre dois pontos.
Prim eiram ente, ele precisa a oposição entre “ Estado de
direito” e “Estado de polícia” . O Estado de polícia, explica ele,
é “ fundamentado na idéia de que o fim ju s tific a os m eios” 21;
em consequência, aparenta-se com as teorias da H errschaft e
da dominação que im plicam . A ssim , porque o poder do Estado

20. N isso, ele corresponde à ideologia da Declaração francesa dos


“ direitos do hom em e do cidadão” : cf. art. 2: “A finalidad e de toda associação
p o lític a é a conservação dos direitos naturais e im prescritíveis do hom em . Esses
direitos são a Uberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à opressão.”
21. R . Carré de M alberg, Contribution à la théorie générale d e l’É tat, 1.1,
p. 488.
316 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

só se estabelece ao se im por, a autoridade adm inistrativa, de


m aneira discricionária, nele pode decidir aplicar aos cidadãos
medidas que ju lg a necessárias ou úteis para realizar seus desíg­
nios õu fazer frente às circunstâncias. Claro, um Estado assim
tem o culto da força e serve às ideologias belicistas do naciona­
lism o. A o contrário, o Estado de direito, que não se atribui como
critério a capacidade de dominação, e sim um a soberania en­
raizada no contrato social, “ é um Estado que, êm suas relações
com seus súditos e para a garantia do estatuto in d ivid u al deles
submete a s i mesmo a um regime de direito, é isso na m edida
em que sujeita sua ação sobre eles por regras” . Dentre essas
regras, umas determinam Os direitos reservados aos cidadãos;
as outras fix a m as vias e m eios da ação estatal. Essas duas es­
pécies de regras têm o efeito de “ lim ita r a potência do Estado
subordinando-o à ordem ju ríd ic a que elas consagram”22. D e
fato, a autoridade adm inistrativa é obrigada a agir em relação
aos administrados sómente em virtude de habilitações legais,
sempre secundum legem e nunca contra legem. Adem ais, o E s-
tadode direito assegura a seus administrados o poder jurídico de
agir diante de um a autoridade jurisdicioxíal, com o feito de obter
a anulação, a reform a ou a não-aplicação de atos adm inistrati­
vos que teriam infring id o a regra legal. Portanto, o regim e do
Estado de direito, sem jam ais renegar as exigências da ordem
pública que colocam sua potência acim a da violência e da anar­
quia das relações de fórça, “ é concebido no interesse dos cida­
dãos” ; pelo equilíbrio e pela m edida de suas competências, ele
os premune e os defende, na ordem e na estabilidade, contra a
arbitrariedade das autoridades estatais25.
E m segundo lugar, Carré de M àlberg precisa as diferenças
que aparecem entre os dois perfis do Estado que são, conform e
o ponto de vista de quê sejam considerados, de um lado, o E s­
tado D E direito tal como acaba de caracterizá-lo, e, do outro,
aquilo que ele denom ina o Estado legal tal como é determ ina­
do pelo artigo 3 da Constituição francesa de 25 de fevereiro de

22. Ib id .j p. 489.
23. Ib id ., p. 490.
SEGUNDA PARTE 317

1875 (e que corresponde ao que chamamos, no capítulo prece*


dente, o Estado D O direito). Prim eiro, enquanto o Estado legal se
vin cula à concepção p o lítica da organização fundam ental dós
poderes segundo a qual a autoridade adm inistrativa é, em todos
os casos, subordinada ao órgão legislativo, o Estado D E direito,
de m aneira m ais estrita, tende a prom over e a proteger os d irei­
tos. e as liberdades (isto é, o estatuto ju ríd ic o ) dos indivíduos.
E m seguida, enquanto a hierarquia das funções sob a autoridade
do legislador im plica, no Estado legal ou Estado D O direito,
um regim e democrático, o Estado D E direito, que visa a pro­
porcionar aos cidadãos certas garantias individuais, pode con­
ciliar-se com todas as formas governamentais. E n fim , enquan­
to o Estado legal tende a assegurar a supremacia de um a legis­
lação à qual a administração é subordinada, o regime do Estado
de direito “ é um sistema de lim itação, não somente das autori­
dades adm inistrativas [subordinadas ao mesmo tempo às leis e
aos próprios regulamentos, inffalegislativos], m as tam bém dp
corpo legislativo”24. É por isso, constata Carré de M albqrg, que
os juristas alemães e, particularm ente, Jhering25 de bom grado
associaram as noções de Rechtsstaat (Estado D E direito) e de
Selbstverpflichtung, Selbstbindung, ou Selbstbesçhrãnkung (au-
tolim itação do Estado), entendendo assim que o Estado só pode
fic a r atado ou lim itado por sua própria vontade. O Estado, para
realizar a ligação sintética.entre a ordem pública e as liberda­
des individ uais, subordina a si m esm o à sua própria organiza­
ção ju ríd ica26.
M as Carré de M alberg levanta-se contra à tese de. Jhering.
D irig e -lh e duas objeções27. E m prim eiro lugar, d iz.ele, não é
“ da essência da regra de direito ligar ao m esmo tempo os sujeis
tos e o próprio Estado” ; o Estado, de fato, pode in fring ir, por
um a le i particular, a legislação geral em vigor. E m seguida, o

24. M d ., p. 492.
25. V o n Jhering, D er Zweck im Rèchts, L eip zig , 1877.
26. Ib id ., 3 ! ed., 1.1, p. 358: “ O direito, na plena acepção do term o, é a
força bilateralm ente obrigatória que a le i tem para o in divíduo e para o Estado:
é a auto-subordinação da potência estatal às leis que emanam dela própria.”
27. R . Carré de M alberg, op. c it., 1.1, p. 232.
318 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

erro de Jhering, prossegue Garré de Malberg, é confundir a ques­


tão do interesse dõ Estado, que é p o lítico , com a questão da
lim itação do Estado, que é ju ríd ica. Jellinek, em compensação,
compreendeu bem , acrescenta ele, a diferença de natureza das
duas questões quando escreve que “ a potência êstatal possui a
faculdade exclusiva.de se ligar ou de se lim itar juridicam ente a si
mesma”28. Feitas essas importantes reservas, Carré de M alberg
subscreve a teoria da autolim itação permanente do Estado -
que, aliás, tam bém é objeto de um exame m atizado por parte dos
m aiores juristas franceses da prim eira metade do século X X ,
como D ug uit, M ichoud ou H auriou: cabe ao próprio Estado,
dizem eles, regular as condições de exercício de sua própria
potência. D e fato, toda lim itação extrínseca do Poder do Estado,
vinda por exem plo dé im perativos m orais ou de considerações
religiosas, proviria de um a ideologia que fa lsific aria o caráter
ju ríd ic o do direito público, submetendo-o á regras reputadas su­
periores. E m compensação, o Estado, determinando de m aneira
constitucional as competências de sua própria competência,
atribui a si próprio, juridicam ente e segundo sua im anência pró­
pria, lim ites especificam ente jurídicos. A automoderação do
Estado, que é prevista e organizada pelo próprio direito estatal,
em nada se aparenta com algum tip o de resistência ao Poder.
Para Carré de M alberg, não há “ direito” anterior ao Estado que
venha controlar sua potência; apenas a autolim itação do Estado,
ju ríd ic a de parte a parte, confere-lhe sua vocação de proteção
aos cidadãos. Essa é a idéia fundamental que perm ite compreen­
der que “ os direitos” dos cidadãos, longe de proceder de e xi­
gências m etafísicas ou m orais, são definidos - ou seja, ju rid i­
camente criados - pelo “ direito” do Estado, nos lim ites objeti­
vos que ele atribui a si próprio.
A ssim estaria realizada, em conform idade ao idealism o
do Ilu m in ism o encarnado pelas Declarações norte-am ericana
e francesa de 1787 e 1789, a síntese da ordem pública e das l i ­
berdades ind ivid uais; sim ultaneam ente, m anifestar-se-ia, pela

28. G . Jellinek, Gesetz und Verordnung, trad. fr., L ’E tat moderne, 1 1 ,


pp. 549 ss.; t. II, p. 136.
SEGUNDA PARTE 319

conciliação do direito (cuja positividade é a m atriz da ordem)


com os direitos (cujo reconhecimento é a glória do in d ividua­
lism o hum anista), a aliança entre o cidadão e o indivíd uo, isto
é, o acordo das áreas do público e do privado. O Estado de d i­
reito não parece, portanto, ser um “regime” p olítico, mas um a
m odalidade constitucional na qual se artipulam a universalida­
de (ou, pelo menos, a generalidade) da regra ju ríd ic a e a singu­
laridade da existência individual.
D e certa maneira há, no esquema do Estado D E direito, o
reflexo da dialética (hegelianà, se se quiser) pela qual, estando o
ponto de vista abstrato do direito privado inserido no campo ra­
cional do direito público, a liberdade individual se constrói como
um a sublimação objetiva das coerções da ordem estatal. É isso,
aliás, que Hegel - a esse respeito mais adepto de um liberalism o
emancipador do que do estatismo sufocante que em geral lhe atri­
buím os - mais admirava no Código c iv il francês, se bem que em
1804 não se tenha falado de ‘‘Estado de direito” .

Contudo, é preciso confessar que se, exposto dessa form a,


o significado do Estado D E direito pode parecer claro e se con­
centrar na ligáção sintética entre a ordem e a liberdade, ele se reve­
lou, do ponto de vista ju ríd ico bem como do ponto de vista filo ­
sófico, não só d ifíc il mas m uito confuso. A expressão “Estado
de direito” , pela qual se traduz de m aneira unívoca o termo de
Rechtsstaat, está longe, mesmo quando a distinguim os ^ o que é
raríssimo na doutrina - das expressões de “ Estado legal” (ou dè
“Estado do direito” ), de abrangeruma noção clara e distinta. D a í
nasceram os equívocos que ela suscita há algumas décadas.

C ) Um conceito repleto de equivocidade

Antes de qualquer análise lexicográfica, afastemos o m al­


entendido nascido de uma ortografia o m ais das vezes d e fi­
ciente. Se a palavra “ estado” é escrita, na expressão “ estado de
direito” , com letra m inúscula, essa expressão só pode designar
um a situação oposta ao “ estado de natureza” . Ora, corresponda
320 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

o conceito de estado de natureza a um a hipótese m etodológica


ou a uma realidade em pírica, reporta-se a essa condição exis­
tencial dos homens, que Locke d izia “ defectiva” porque não
possui nem leis positivas nem regras jurídicas para a governar,
e porque nela não há nem ju iz nem poder ju risd icio nal para
d irim ir eventuais contendas entre os homens. A condição natural
dos homens é anômica, o que im p lica que se caracteriza pouco
ou m uito, como entre os bichos, pelo reinado da força bruta.
Por oposição, a expressão “ estado de direito” designa no caso
o estado c iv il (status c iv ilis ) que se caracteriza pela existência
de regras e de normas de direito cuja finalidade o rig inal e fu n ­
dam ental é represar o desfraldar da violência e canalizar a tor­
rente da espontaneidade. - Quando, na expressão “ Estado de
direito” , a palavra Estado está ortografada com um E m aiúsculo,
trata-se, por um a especificação do status c iv ilis , da instituição
estatal no sentido estrito do term o {C ivitas, Res pu b lica, Esta­
do), em cujo seio um corpo de regras jurídicas tem um a função
constitucional e organizadora. Essas regras que, evidentem en­
te, não são naturais mas positivas, São hierarquicamente subor­
dinadas umas às outras: leis constitucionais às leis ordinárias e
à regulamentação infralegislativa cuja vocação é reger a aplica­
ção da le i e d e fin ir os procedimentos de sua execução, elas fo r­
m am um sistema de direito, um ordenamento piram idal que dá
ao p o lítico sua estrutura ju ríd ica. Nessa perspectiva, o direito
comanda os diversos setorés da vid a pública. Noutras palavras,
em ta l Estado a condição e a atividade dos cidadãos são gover­
nadas por um conjunto de norm as estabelecidas pelo legisla­
dor, ou sej a, determinadas em sua existência e em seu teor pela
potência soberana do Estado. Entendido assim, o Estado é o
que chamamos de “ o Estado D O direito” , na m edida em que im ­
plica um a estrutura ju ríd ic a essencial na qual se articulam a
soberania que é legisladora e a cidadania que é subm etida às
leis do Estado. - Evidentem ente, “ o estado de direito” enquan­
to estado c iv il e “ o Estado D O direito” não são estranhos um ao
outro. Contudo, não se confundem . O conceito de estado c iv il
permanece ainda vago na sua oposição ao estado de natureza:
abrange sim plesmente a idéia de que um a comunidade p o lítica
SEGUNDA PARTE 321

precisa de um a organização intrínseca específica que a d istin­


gue da sim ples comunidade natural (a fa m ília , por exem plo).
Está claro que a organização c iv il deve proceder de regras e de
norm as que não são linhas de força espontâneas; mas seu con­
ceito não indica por s i que devem ser o conteúdo e a natureza
dessas normas reguladoras. E m compensação, o termo de Estado
conota, de m aneira técnica, isto é, institucional e m esm o cons­
titucional, o conjunto de regras cuja função é organizar a co­
m unidade política.
D e Cícero a H egel ou ao direito público de nosso tempo,
ta l conotação nunca fo i contestada. Pode-se mesmo ser m ais
preciso, já que o acordo se faz sobre o seguinte ponto: as regras
juríd icas do Estado não são preceitos m orais que obrigam em
consciência, in fo ro interno; são m áxim as reguladoras que im ­
põem aos cidadãos, in fo ro externo, um a coerção legal adequa­
da, em caso de falta, de uma escala de sanções. Segue-se que o
Estado, na m edida em que é juridicam ente organizado, está sob
o signo da legalidade: im plica um Poder que sua autoridade so­
berana habilita a legislar e que, pela mediação do corpus das leis,
se m anifesta como um a instituição de comando e de dom ínio.
N o entanto, como já vim os, a doutrina alemã, opondo o
Rechtsstaat ao Obrigkeitsstaat, fez surgir um a terceira acep­
ção, geralmente conhecida pela expressão “ Estado D E direito” .
Sua tecnicidade ju ríd ic a se lastreia de significado e de vonta­
de políticos. N o Estado autoritário, a potência adm inistrativa
age não somente de m aneira autoritária - a autoridade perten­
ce à essência de todo Estado - mas de m aneira discricionária,
com um a total liberdade de apreciação e de decisão. A o contrá­
rio, o Estado D E direito encontra sua inspiração na reivindica­
ção p o lític a do liberalism o individualista: os “ direitos-liberda­
des” do in d ivíd u o nele são oponíveis às decisões do Estado.
“ Para que o Estado de direito fiq ue realizado, é indispensável
que os cidadãos estejam armados de um a ação em justiça, que
lhes perm ita atacar os atos estatais viciosos que lesariam seu
direito individ ual.” 29 A idéia é incisiva: é preciso proteger as li-

29. R . Carré de M alberg, op. c it., t . I , p. 492.


322 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

herdades individuais contra qualquer fo rin a de arbitrariedade


estatal e represar todo apelo à “razão de Estado” . E tn outros ter­
mos, o princípio básico do Estado de direito é a inalienabilidade
dos direitos fundam entais reconhecidos aò hom em .
Apreende-se assim a diferença entre o Estado D O direito
e o Estado D E direito: se o Estado D O direito se caracteriza es­
sencialmente por suas form as e suas estruturas jurídicas, é, no
Estado D E direito, a participação ideológica qué prevalece so­
bre a arquitetônica ju ríd ica e lig a a esperança da liberdade à sua
realização.
Essas considerações são suficientes para indicar a sobre­
carga semântica da expressão “ Estado de direito” , no entanto
hoje “ empregada em toda parte e por todos [...], desde os liberais,
o que não poderia surpreender, até os antigos comunistas dá
Europa O riental que, âpós ter pretendido conciliá-lo com o m ar-
xism o-leninism o, pretendem presentemente tom á-lo u m ins­
trum ento de passagem para a econom ia de mercado” 30. Seme­
lhante equivocidade cerca evidentemente de suspeita a adesão
quase unânim e à qual dá azo a idéia do Estado de direito. A fim
de apurar os desvarios dessa situação, conservemos aqui so­
mente a ú ltim a acepção do Estado D E direito, na qual os ho­
mens do século X X , que a vinculam naturalmente à sim bologia
republicana e à idéia de democracia, hospedaram - não sem
provocar, como veremos, ilusões e problemas - a im ensa espe­
rança de prom over seus direitos e suas liberdades.

2. D a defesa das liberdades


à em briaguez dos “ direitos do hom em ”

m o não se traduziu sómente pelos ím petos da n o m o filia conse­


cutivos à Revolução Francesa; mas como o pensamento liberal
depositou um a enorme esperança no sistema norm ativo que or-

30. M ic h e l Troper, L e concept d ’É tat de droit, in Cahiers de p hilo so -


phie p olitiq u e etjurid iq u e, xf.24, 1993, p. 25.
SEGUNDA PARTE 323

ganiza o espaço político do Estado, ele se atribuiu o programa, e


tam bém o combate, de realizar a promoção e a salvaguarda dos
“ direitos do hom em ” .
H á evideutemente aí um sinal dos tempos: a filo s o fia do
direito político clássico, de Platão a B od in e mesmo a Hobbes,
procurava num a “ boa Constituição” o m eio institucional de trans­
por, à Res publica, a problemática m etafísica do U no e do M ú l­
tip lo ; para tanto, insuflava no “m elhor governo” um princípio de
ordem traduzido, como base do Estado, por sua soberania una e
in d iv is íve l31. À m edida que a filo s o fia p o lítica m oderna adqui­
riu m ais segurança, fez-se iconoclasta e pretendeu-se inovadora.
Então, deslocou o m ó b il fundam ental do direito político.
Com o é um a m áxim a prim ordial que um governo tenha
princípios e regras, ela logo estabeleceu o critério de validade
de um regim e na sua capacidade de defender o espírito de l i ­
berdade. Assim , na hora que ó Hum inism o se acendia na Euro­
pa, a idéia de Uberdade, m ais ou menos estreitamente associada
à idéia de progresso, adquiriu u m lugar em inente no pensa­
m ento do direito político. Certamente, lembravam-se bem, como
M ontesquieu dissera, de que “ não há palavra que tenha recebi­
do m ais significados diferentes e tenha atingido o espírito de
tantas maneiras quanto a de liberdade” 32. M as tam bém com ­
preenderam que “ a liberdade p o lítica não consiste em fazer o
que se quer” e que não sé confunde com a independência. N a
época da Revolução da Inglaterra, Locke entrevira a necessidade

31. Será preciso lem brar que, para B odin por exem plo, á “m onarquia
real” é o m elhor regim e porque reflete a ordem u nitária da grande Natureza, e
que a autoridade do m onarca é análoga à “ indiscutível prim azia” que se m ani­
festa em todos ps campos da Criação: o diam ante dentre as pedras preciosas,
o S o l dentre os astros ou o carneiro à frente dò rebanho? D e m aneira geral, a
prevalência da U nidade ainda era reconhecida, nos albores da m odernidade,
com o um penhor de harm onia, de estabilidade e de duração: assim Descartes,
no seu racionalism o, preferia, pára o governo de u m Estado bem com o para a
arquitetura de um a cidade, a obra que apenas u m concebe e constrói; R iche-
lie u e L u ís X T V querem que a m onarquia encarne, sob sua autoridade sobera­
na e legicentnsta, a unicidade centralizadora do Poder.
32. M ontesquieu, L 'esprit des lo is, X I, II, p. 394.
324 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de construir mediante as leis a liberdade dos cidadãos, e abrira


assim a v ia à corrente liberal do direito p olítico, preocupado em
pôr as instituições a serviço da liberdade-autonom ia dos in d i­
víduos. Por seu lado, Rousseau, m ais ou menos bem compreen­
dido, perm itiu aos homens da Revolução Francesa inventar um a
form a de liberdade c iv il cuja herança fo i recebida pela teoria
jacobina e, m ais tarde, pelas doutrinas socializantes. Q ualquer
que tenha sido, no curso dos tempos, o antagonismo continua­
m ente ressurgente dos liberalism os e dos socialism os, eles t i­
veram a pretensão de ser, uns e outros, defensores da liberdade;
e se, nas críticas recíprocas que não pararam de se dirigir, fic a
evidente que não entendem a idéia de Uberdade da mesma m anei­
ra, é sempre, contudo, contra a dominação do Poder que. apre­
sentam sua defesa.

A ) A defesa lib e ra l das liberdades individuais

E m sua defesa da.liberdade, a razão liberal não organiza o


direito para uma finahdade transcendental que o superaria: quais­
quer que sejam as m odificações m últip las que descobrimos de
Locke ou de M ontesquieu a Adam Sm ith, de Tocqueville a F.
Hayek ou aos “ libertários” anglo-saxões de nossa época, a ra­
zão liberal se pauta pelo hum anism o caro aos filó so fo s do
século X V in e, em seu nom e, p rivile g ia um individualism o no
qual devem ser respeitados na im anência os “ direitos e liberda­
des” de cada um . Para exem plificar, interroguemos B enjam in
Constant, de quem se disse que era “ o corifeu do liberaUsm o” .
Logo após a Revolução Francesa, a exigência mestra do
hum anism o liberal tom ou aos olhos de B. Constant â form a de
um a evidência histórica: com o o direito d ivin o já não tem sen­
tido, como o princípio de autoridade está caduco, chegou o
tempo da liberdade dos homens. Isso, sem dúvida algum a, sig­
n ific a que a soberania do povo é doravante a m áxim a funda­
m ental do direito político. Portanto, tem-se razão em dizer, gos­
ta de repetir B . Constant, que Rousseau compreendera m agni-
ficam ente o sentido dessa premissa. M as, apesar de ter partido
SEG UNDA PARTE 325

do princípio verdadeiro, que quer que a vontade geral seja le­


gisladora, ó autor do Contrato social deSviou-se tanto do caminho
por conta de sua “ eterna m etafísica” que sua doutrina constitui
“ o m ais terrível a u xilia r de todos os gêneros de despotismo” .
D e fato, explica Constant33, a abstração m etafísica pren­
deu Rousseau no irrealism o e explica a repugnância que sem­
pre m anifestou pela lim itação da soberania. E m vez de destruir
o que, no Poder, é opressor ou pode sê-lo, Rousseau só pensou
em deslocar o centro de gravidade do Estado, transportando a
autoridade do rei para o povo. Fazendo isso, não compreendeu
que a jurisdição da soberania, m esmo quando se trata da sobe­
rania do povo, deve find ar onde começam a existência e a inde­
pendência individuais. Aos olhos de B. Constant, o campo da
individualidade tem algo de sagrado e de inviolável. E m conse-
qüência, assim que o direito político atravessa no seu dispositivo
a linh a demarcatória entre o in d ivid u al e o público, ou entre o
privado e “ o espírito objetivo” , tom a possíveis e prepara even­
tuais abusos de poder. O erro consistiria em acreditar, como f i ­
zeram tantos pensadores do século X V III, que somente o tira­
no comete esse erro; um governo que, conduzido em nom e da
soberania do povo, tem a pretensão de d irig ir as condutas p ri­
vadas assim como os comportamentos públicos, incorre na mes­
m a falta. B. Constant, como M ontesquieu no seu tempo, conclui
daí que a democracia não é a liberdade, e que nem sequer é ga­
rantia da liberdade dos indivíduos.
Para compreender isso, não basta constatar que o que se
chama de “ a liberdade dos modernos” , tantas vezes elogiada pelos
“ im itadores das repúblicas da Antiguidade” , é repleto de ilusão
e de m istificação. É preciso tom ar consciência do princípio f i ­
lo sófico segundo o qual “nenhum a autoridade sobre a terra é
ilim ita d a ” : nem a dos reis, nem a do povo, nem a dos seus re­
presentantes; a própria autoridade da le i necessita ser lim itada.
Antes de Tocqueville, Constant insiste no que é á idéia-m estra
da doutrina liberal: im porta, claro, que o direito político conjure

33. B enjam in Constant, Principes de p o litiq u e (1815); in Pléiade,


pp. 1066 ss.
326 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

os riscos inerentes ao absolutism o monárquico, mas, sobretudo,


ele deve, por suas disposições, im pedir a inflação do poder do
póvò obcecado pela democracia. Enunciando a diferença essen­
cial existente entre O direito como conjunto de normas organi­
zadoras e reguladoras no Estado, e OS direitos que são liberdades
individuais, B . Constant repete incansavelmente que, por sua
natureza, o direito público do Estado é alheio aos direitos das
pessoas privadas. Nada, portanto, ju s tific a que a autoridade da
le i, m esmo que emanada da “ vontade geral” do povo, sejá o ni­
presente e ilim itada. A absorção da vid a privada, até m esm o de
um setor desta, pela v ia pública - como está inserido na lógica
do Contrato social de Rousseau - provém de um desvio de
competência que, ainda m ais do que um erro ju ríd ico , é o erro
filo só fic o que consiste em ignorar os direitos originários essen­
ciais à humanidade de todas as pessoas. Adem ais, mesmo quan­
do não se pudessè contestar que o hom em , sendo cidadão tanto
quanto indivíduo, tem o dever de consentir em “ m uitos sacrifí­
cios” para á tranquilidade pública, não se segue daí que, em
todas as situações, ele deva obedecer estritaménte apenas às leis
positivas. Locke tem razão, nesse ponto, contra Rousseau. N ão
entendamos, no entanto, que a le i m oral que fala à consciência
de A ntígona é, em cada um , um a “ le i natural” superior ou ante­
rio r a todas as leis positivas. Segundo Constant, essa m aneira
de pensar tem , por seu m oralism o m etafísico, algo de sim plis­
ta e de m istificador. B em m ais concretamente, é preciso que o
filó s o fo do direito compreenda que o civism o acaba onde co­
meçam a irresponsabilidade e a cegueira do jurislador para com
os princípios que governam a natureza humana: aquejes que têm
competência para fazer as leis positivas ficam desonrados se
não respeitarem, em todo indivíduo, a form a in ic ia l da liberdade.
N o seu liberalism o, Constant entende, portanto, que o d i­
reito p o lítico , nos Seus princípios e no seu exercício, respeita o
que se pode considerar a verdade ontológica do hom em e se
empenha em nunca achincalhar os direitos im prescritíveis da
natureza hum ana (e, evidentemente, em restaurá-los quando fo ­
ram atacados). A tarefa, adm ite o autor dos P rin cíp ios de p o lí­
tica, é in fin ita . M as, apesar de suscitada pela antinom ia entre a
SEGUNDA PARTE 327

liberdade privada e a le i c iv il, ela não se insere, segundo Cons-


tant, diferentem ente do que pensa H egel, num procedim ento
dialético destinado a superar sinteticamente a antítese entre o
in d ivid u al e o geral. A tarefa que o liberalism o deve cum prir é,
segundo B. Constant, a mesma do direito constitucional34, cujos
princípios devem remeter à fundamentação ontológica, até mes­
m o axiológica, da liberdade na individualidade: “ Por liberdade,
entendo” , repete continuamente, “ o triunfo da individualidade.”

Seguramente, cumpre reconhecer que, tanto nas análises


como nos projetos dos “ liberais” , existem variantes tão profun­
das que o liberalism o filo s ó fic o e constitucional dos “ fundado­
res” - Locke, Montesquieu, Jefferson, Gonstant, Laboulaye, Toc-
queville - na verdade se fragm entou nas correntes do “ o rd o li-
beralism o” alemão, conservador no conjunto, assim como nos
ím petos do “ libertarism o” norte-am ericano que, m uito m ais
radical e levando o individualism o ao extrem o, enfatiza, m istu-
rando temas m uito diversos, os direitos e as liberdades in d iv i­
duais, o Estado m ín im o , o indeterm inism o histórico, a livre
empresa etc., e se revela bem m ais p o lític o e ideológico do què
ju ríd ic o e filo s ó fic o . E m todo caso, e digno de nota que o flo ­
rescimento dos liberalism os se apresente sempre como um a
reação contra a vontade do estatismo centralizador e legiscen-
trista. M esm o que, desde o século X I X , as idéias liberais se
choquem com o surto pletórico das diversas correntes soçiali-
zantes, bem decididas, eih nom e do “progresso” , a fazer dos
“ direitos sociais” , baseados em positivism o e em cientificism o,
o contraponto dos “ direitos individuais” (e, politicam ente, do so­
cialism o, a antítese do liberalism o), o tema segundo o qual o
dispositivo institucional e legislador do Estado moderno deve
assegurar a proteção e aprom oção dos “ direitos do hom em ” se

3 4 .0 ju rista Édouárd Laboulaye, herdeiro espiritual de M ontesquieu e


adm irador da Constituição americana, não tardará em elaborar m inuciosa­
m ente o programa ju ríd ic o do regim e constitucional de liberdade ao qual B .
Constant aplicou sua reflexão. E le oporá categoricamente seus princípios aos
“preconceitos” da Revolução Francesa, geradores, estim a êle, da ilusão nefas­
ta da onipotência do Estado.
328 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

fu m a de um a maneira que declaramos naturalmente indiscutível.


M as, então, vim os as defesas das liberdades ind ivid uais serem
progrèssivamente substituídas pelo credo dos direitos do homem.

B ) Os “direitos do homem ’’ no Estado D E direito

N a ideologia norm alizadora do século X V III, a idéia dos


“ direitos do hom em ” fo i cercada de tal prestígio que em geral
se reconhece nela o berço do Estado de direito, no sentido v ia de
regra utilizado hoje em dia, segundo o qual este tem o encargo
de promover e de salvaguardar os “ direitos e liberdades” dos
cidadãos. Entretanto, ainda aí, um a tese aparentemente clara e
sim ples envolve tremendas dificuldades filo só ficas que a evo­
lução das idéias políticas e do direito positivo só fa z crescer.
A idéia dos “ direitos do hom em ” não cabe no pensamento
antigo, e não se encontra esboço algum de seu conceito nos In s ­
titutos ou no Corpus ju r is civilis. D e acordo com M ic h e l V ille y ,
a expressão ju ra hom inum teria aparecido pela prim eira vez em
1537, na H isto ria diplom ática rením Bataviarum 35. A data des­
se texto indica por si só que o vocábulo e a idéia dos “ direitos
do hom em ” pertencem à aurora da m odernidade e se inserem
na evolução progressiva que acompanha a vid a do direito e m o­
d ific a seu conceito. M as não indicam eih nada um programa
por realizar e, ainda m enos, um combate por travar para fazer
triunfar certa idéia do hom em e dos “ direitos subjetivos” que
lhe seriam naturalmente inerentes. N o entanto, no terreno em
que M aquiavel pisa, e n o qual logo avançará sistematicamente
Hóbbes, devia desenvolver-se a idéia e, como nota H egel, colo­
car-seno século X V I I I sob o signo do hedonism o para se tor­
nar “ o catecismo dos direitos do hom em ” . É como ta l que ela
se im põe ao direito p o lítico na hora que a liberdade e a coexis­
tência das liberdades constituem seu m ó b il essencial.

35. M ic h e l V ille y , Le d ro it et les droits de l ’homme, P U F , 1983, p. 159,


nota.
SEGUNDA PARTE 329

O sentido das Declarações dos direitos

N inguém poderia contestar que a Declaração dos direitos


do homem e do cidadão tenha marcado, em 1789, um a data
séria da história do direito político. Apesar das críticas que seu
conceito, de Burke ou de J. de M aistre, a Proudhon ou a M a rx ,
fo i objeto em nom e do providencialism o, do historicism o ou
do m aterialism o, apesar das controvérsias suscitadas, ainda no
in íc io do século X X (por exem plo, entre G. Jellinek e E . B out-
m y)36, pela célebre Declaração de 1789, a idéia dos direitos do
hom em firm ou-se contudo como um a categoria in elim inável
do direito p o lítico moderno: não só o reconhecimento dos “ d i­
reitos do hom em e do cidadão” , solenemente proclam ado pelas
Constituintes já em 26 de agosto de 1789, devia configurar-se
um m odelo perante o m undo, mas esses direitos foram objeto,
sob a Convenção, em m aio e ju n ho de 1793, prim eiro, do pro­
je to de declaração dos G irondinos, e depois da “ declaração do
A n o I ” , cujo texto se deve aos Jacobinos. Certamente, esses
textos declaratórios não possuíam por si sós valor constitucio­
nal. M as já em 1791, a necessidade de conferir valor ju ríd ic o
aos direitos assim declarados era tão intensamente sentida que
disposições afirm ando sua garantia deviam ser incorporadas à
Constituição. A ssim , a Constituição do A no I I I (1795) fará da
D eclaração dos direitos o Preâm bulo de seu texto. D epois, no
século X I X , a Constituição de 1848, reconhecendo “ os direitos
fundamentais do hom em ” , alargará seu campo e dará ao Estado
a m issão de os proteger. As Constituições francesas de 1946 e
de 1958 (esta rege ainda a França contemporânea) dispõem que
a República garante o exercício individual ou coletivo dos direi­
tos37. A Declaração universal dos direitos do homem de 1948

36. C f. os textos dessa polêm ica na.Revuefrançaise d ’H istoire des idées


politiques, n? 1,199 5, pp. 99-178.
37. O Preâm bulo da Constituição de 27 de outubro de 1946 d iz expres-
samente: “ Logo após a vitó ria obtida pelos povos livres sobre os regim es que
tentaram subjugar e degradar a pessoa hum ana, o povo francês proclam a no­
vam ente que todo ser hum ano, sem distinção de raça, de religião ou de credo,
possui direitos inalienáveis e sagrados. E le reafirm a solenemente os.direitos e
330 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

insiste no alcance supra-estatal do princípio igualitário que ins­


pira os textos o ficiais da França, adm itindo im plicitam ente que
os Estados-membros da comunidade internacional se cotiipor-
tem como Estados de direito. A juridicização dos direitos é
incontestável.
Contudo, se a letra dos textos atesta, até no universal, o
progresso da consciência p o lítico-juríd ica, este é acompanhado
de interrogações filosóficas complexas. D e um lado, fic a paten­
te que, para a m oral universal, o não-respeito dos direitos do
hom em , na França ou no m undo, levanta um doloroso proble­
m a ético (mas não cabe à lógica de nossa proposta exam iná-lo
nestas páginas). D o outro, o estudo dos p rin cíp io s filo só fic o s
nos quais repousa o reconhecimento ju ríd ic o dos direitos do
hom em é um a questão que se insere m uito precisamente em
nossa indagação sobre os postulados do Estado de direito.
Com o veremos, ela não se dá sem problemas.

Apesar de certos autores a terem contestado38, a idéia dos


direitos do hom em pertence ao horizonte específico da m oder­
nidade ocidental; mas essa posse não basta para a transparência
do seu conceito. Se se pode adm itir que, num sentido m uito
am plo, a preocupação com os direitos do hom em e com aquilo
a que tem direito enquanto hom em está presente, já em 1215, na
M agna Carta de João sem Terra, foram os Tempos Modernos que
produziram os textos mais significativos: A Declaração francesa
de 1789 fo i precedida, na Inglaterra, pela Petition o fR ig h ts de

as liberdades do hom em e do cidadão consagrados pela Declaração dos direitos


de 1789 e os princípios íim dam entais reconhecidos pelas le is da R epública.”
O segundo parágrafo do Preâm bulo proclam a, ademais, como particular­
m ente necessários ao nosso tem po, certos princípios políticos, econôm icos e
sociais que enumera.
É nesse m esm o espírito que é redigido o Preâm bulo da C onstituição de
1958, que remete explicitam ente ao texto de 1946.
38. U m certo culturalism o pluralista sustenta que se trata de um a idéia
“ transcultural” que se encontra no Corão è na cultura africana tradicional: cf.
John D tm elly, Universal human Rights in Theory and Practice, Ithaca e Londres,
1989, pp. 49-65. Sobre essa questão, cf. Pierre Laberge, in L a p o litiq u e et les
droits, Cahiers de philosophiep olitique etju rid iq u e, n°. X X I , Caen, 1992.
SEGUNDA PARTE 331

1628, pelo A ct do habeqs corpus de 1679 e pelo B ill o f Rights


de 1689, e depois, na Am érica, pela D eclaração de Indepen­
dência de 1776. N ão obstante as diferentes tonalidades, m uitas
vezes assinaladas, que esses textos o fic ia is deixam entender f i ­
losoficam ente, eles têm um ponto com um que é bastante per­
turbador: até na Declaração francesa de 1789 que, no entanto,
é o texto m ais n ítid o e m ais incisivo, transparece a origem com ­
plexa e m ultívoca da idéia dos direitos do hom em , na qual se
cristalizam temas cuja conjunção provoca um a inevitável inde­
cisão conceituai.
O hum anism o de que procede a idéia dos direitos do ho­
m em é, na realidade, um antropocentrismo totalm ente am biva­
lente. Certamente, tende a mostrar que o hom em , sob a in flu ê n ­
cia do racionalism o dos séculos X V I I e X V H I, como d iz K ant,
atingiu sua “ m aioridade” . M as, sim ultaneam ente, m o rom pe
com as teorias jusnaturalistas cujas tonalidades diferentes os
redatores da Declaração francesa de 1789 não haviam percebido,
mesmo quando falavam dos direitos “naturais” do hom em 39.
M esm o que o individualism o pareça ser um dos princípios m ais
fortes do texto declaratório de 1789, esse princípio permanece
confuso dado o ecletism o que m istura nele o racionalism o de
Descartes, o elementarismo mecanicista de Hobbes, o natura­
lism o ético de Locke, um a certa im agem da m onadologia de
L eib n iz, o logicism o hipotético-dedutivo de W o lff, então m uito
na m oda nos salões parisienses. A in d a por cim a, esse in d iv i­
dualism o, que m uitos comentadores pretenderam ser a chave dos
“ direitos subjetivos”40, não se caracteriza, como se poderia espe-

39. P or exem plo, não via m as diferenças filosóficas que separam o inte­
lectualism o de G rotius do voluntarism o de Pufendorf; ignoravam autores
com o Cum berland e Burlam aqui. Durante longos debates preparatórios da
Declaração, a concepção do “direito natural” e da “ le i natural” por que se pau­
tavam M irabeau, M ounier, L a Fayette e Sieyès permanecia m uito vaga, e desig­
nava sim plesm ente “ os sentim entos que a natureza gravou no coração de cada
in d ivíd u o ” .
40. H á aí, stricto sensu, um erro histórico: o term o “ direito subjetivo” ,
enquanto designador da capacidade .de ação reconhecida ao súdito, só apare­
ce no século X D £ nas obras de S avigny e de W indscheid. A interpretação des-
332 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

rar em razão de suas fontes, por sua tonalidade ético-naturalis­


ta: na Declaração francesa, e mesmo, ainda que num grau m è-
nor, na D eclaração norte-americana, ele vai depor com um
legiscentrism o m uito forte. N ão se poderia desprezar, aliás, o
fato de a Declaração de 1789 proclam ar os direitos do homem
e do cidadão. Os redatores do texto revolucionário têm um a
concepção c ivilista dos direitos: são os que a Constituição e.a
le i devem incum bir-se de in stitu ir e de protego:. A ssim , é sur­
preendente que a idéia dos direitos do hom em ta l comô se fir ­
m a no fin a l do século X V I I I resulte do amálgama de compo­
nentes heterogêneos. A lé m disso, a ambição (ou a esperança)
universaiista que o racionalism o herdado do H um inism o traz
em si vem pateticamente aumentar sua im precisão. Esse sin -
cretism ó sem dúvida algum a se explica pelo fervor com que os
hom ens da Revolução queriam preparar o “ nascer do sol” da
França nova. M as, nos ímpetos que acompanham a proclamação
solene dos direitos do hom em , condenava sua noção, desde seu
reconhecimento, aprofundas mudanças.
Essas transformações ocorreram, vertiginosas e proble­
máticas.

As mutações do conceito dos direitos do homem

M esm o desenvolvendo as virtualidades semânticas conti­


das no ecletism o original do conceito deles, as transformações
da idéia dos direitos do hom em m anifestam , no corpo das re­
gras do direito p olítico em que se insere te a v a n te a idéia dos
direitos do hom em , a mudança de estado de espírito sobrevin­
da no decurso dos dois últim os séculos. São elas, sobretudo, que
explicam a torrente de reivindicações dirigidas, na segunda
metade do século X X , aó Estado de direito.
Quando as Declarações nòrte-am ericana e francesa sela­
vam o reconhecimento dos direitos de que o hom em é porta-

ses comentadores só é portanto aceitável se entendemos lato sensu a conota­


ção da expressão “ direito subjetivo” como se referindo aos direitos que todo
in d ivíd u o possui; mas então será m uito vaga.
SEGUNDA PARTE 333

dor, o sentido histórico e os objetivos políticos eram, aqui e ali,


m uito diferentes. Os Estados U nidos, fundam entalm ente lib e­
rais, acreditavam, como a Inglaterra de Locke e de H um e, nos
direitos naturais e nos interesses individuais. A França também
aspirava à liberdade, mas, ligada por sua história e por suas
doutrinas políticas à idéia de le i, considerava, com Rousseau,
que cabe ao Estado forçar o cidadão a ser livre. Tam bém os
homens de 1789 associavam à nobreza dos direitos naturais a
eminente dignidade dos direitos cívicos. M ais preocupados com
direito p o lítico e com legislação do que com ética, os redatores
do texto de 26 de agosto de 1789, sem nunca negar as liberdades
fundam entais inseridas na natureza hum ana, queriam sobretu­
do proclam ar os direitos que a le i vincula ao sujeito de direito e
què, como a integridade física da pessoa, a liberdade de expres­
são ou de circulação, a propriedade etc., são, para cada um na
m edida em que é igual a qualquer outro, inalienáveis e sagrados.
N em por isso pensavam em exp rim ir os ím petos de um a ideo­
logia igualitarista, fundada num a filo s o fia individualista e u n i-
versalista. Os constituintes, que procuravam sobretudo os m eios
de fazer um a barreira contra os abusos da m onarquia francesa,
cujo absolutism o se tom ará opressivo, queriam , na França v in ­
doura que tinham consciência de preparar, salvaguardar os d i­
reitos dos cidadãos franceses. Com o escreve Raym ond A ron, a
D eclaração de 1789 não se separa “nem da revolta burguesa
contra o A n tig o Regim e [...] nem da filo s o fia particular, e não
universal, que a inspira”41. É im portante portanto prestar aten­
ção à literalidade do seu título, notar que o artigo 3 se refere à
soberania nacional, que o artigo 6 define o direito p o lític o de
cada cidadão, que o direito à segurança é um a liberdade c iv il,
que o artigo 16 sublinha a obrigação do poder constituinte de
garantir os direitos. M esm o que o texto de 1789 não tenha, no
momento de sua edição, valor constitucional - será diferente com
as disposições que garantem os direitos incorporados na Cons­
tituição de 1791 ele reconhece acima de tudo os direitos que

41. R a y m o n d A r o n , P e n s é e s o c io lo g iq u e e t d r o its d e l ’h o m m e , i n Étu­


des politiques , G a llim a r d , 1 9 7 2 , p . 2 3 2 .
334 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cabem ao elemento c iv il do povo-nação. O respeito que os d i­


reitos im põem é inseparável da lealdade dos cidadãos e da obri­
gação cívica que é o testemunho de sua liberdade-responsabili­
dade. Os direitos do homem, que dizemos da “prim eira geração” ,
exprim em , sob o m anto da le i c iv il, a liberdade in vio lável im ­
plicada pela dignidade de todo cidadão. Longe de se inspirar so­
m ente ém um a ideologia ind ivid ualista projetada ou projetável
no universal, eles correspondem principalm ente a um a orienta­
ção civilista. Quando as virtualidades éticas da pessoa hum ana
forem transpostas para o registro constitucional, a Declaração
situará explicitam ente os direitos num âm bito ju ríd ic o -p o lític o
em que existem , m ais do que indivíduos no sentido naturalista
(ou jusnaturalista) do term o, homens-cidadãos, por definição
integrados no corpo público e ligados ao Estado do qual depen­
dem. Os direitos cujo reconhecimento é solenemente procla­
m ado designam as liberdades que, em conform idade com a
Constituição e com os próprios termos da le i, cada cidadão po­
de opor a todo abuso de poder, venha ele de outrem ou da auto­
ridade p olítica42. Somente nesse sentido pode-se cham á-los,
com Jean Rivero, de “ direitos-liberdades” : a liberdade reconhe­
cida pela Declaração de 1789 e pelos textos o ficiais que se ins­
piram nela ou a integram no seu dispositivo não é a indepen­
dência natural do ind ivíd u o ; é, para todo cidadão, com o d izia
M ontesquieu, em um a frase m al compreendida no seu tempo,
a possibilidade, juridicam ente garantida, “ de fazer tudo o que as
leis perm item ”43.
N o século X IX , a marcha da história fez aparecer nos tex­
tos juríd icos outro tip o de direitos: os chamados da “ segunda
geração” , que têm um a conotação social e econômica. D e um
lado, no que se refere aos sujeitos de direito coletivos ou “pes­
soas m orais” , como as fam ílias, as comunas, as associações, os

42. Nesse sentido, M ontesquieu escrevia: “ Os legisladores estatuam m ais


sobre... o cidadão do que sobre o hom em .” L 'esprit des lo is, X X V II, I, p. 786.
43. Ib id ., liv . X I, cap. I II, p. 395. Charles Péguy, citado por R aym ond
P o lin num a recente obra, L 'ord rep ub lic, P U F , 1996, p. 9, d izia no m esmo sen­
tid o: “A ordem , e somente a ordem , fa z a liberdade. A desordem faz a servi­
dão. Só é leg ítim a a ordem da liberdade.”
SEGUNDA PARTE 335

agrupamentos profissionais etc., m anifestou-se um a tendência


cada vez m ais nítid a direcionada à consagração não só legisla­
tiva mas constitucional da existência ju ríd ic a deles. A ssim , a
Constituição de 1848, insistindo, nos § § I e I I de seu Preâmbulo,
no caráter democrático da República francesa, atribuiu-lhe “ co­
m o base” , no § IV desse mesmo Preâmbulo, o trabalho e a ordem
pública que ela pôs no mesmo plano que a propriedade e a
fam ília. Fazendo-lhe eco um século depois, a Constituição fra n ­
cesa de 1946 tam bém dispôs em seu Preâm bulo que a Repú­
blica devia garantir o exercício in d ivid u al ou coletivo dos direi­
tos. D e outro lado, os textos fizeram menção a esses direitos a
que chamamos “ direitos econômicos e sociais”44, e que haviam
sido julgados, desde meados do século X I X 45, particularinente
im portantes não só em m atéria de trabalho mas também no que
se refere à educação.
A am pliação do conceito dos direitos do hom em em sua
extensão m o d ifico u sua compreensão. T al transformação cor­
respondia seguramente aos progressos, que conhecera a ideo-
logia socializante desde as revoluções européias de 1848 e a d i­
fusão das teses marxistas, e traduzia um estado de espírito hostil
à “ soberania do ind ivíd uo” . M as correspondia também , tanto
em sua expressão quantitativa como em sua form a qualitativa,
ao desenvolvim ento das form as sociais de existência - ao que
o direito p o lítico do Estado não podia ficar indiferente. O legis­
lador devia doravante adm itir que, tendo os direitos do hom em

44. O projeto de Constituição redigido depois de outubro de 1945 pela


prim eira A ssem bléia C onstituinte do pós-guerra era aberto por um a “Declara­
ção dos direitos do hom em ” que expunha, nos seus dois títu lo s, prim eiram en­
te as “liberdades” , depois, os “direitos sociais e econômicos” . Apesar de o
projeto constitucional ter sido rejeitado em m aio de 1946 por referendum (por
causa da evidente ideologia social-com unista que o inspirava), a id é ia dos d i­
reitos sociais devia se instalar duradouramente nos espíritos.
45. O pensamento socialista dos anos 1848 - quer se aparente ao m ar­
xism o ou ao catolicism o social - reclam ava um “ direito ao trabalho” e a
C onstituição de 1848 (art. 13), cuja inspiração socializante é n ítida, fa z m en­
ção à “ liberdade do trabalho e da indústria” , das “ instituições de previdência
ou de crédito” , de m edidas de “ assistência” destinadas “ às crianças abandona­
das, aos doentes e aos idosos sem recursos” .
336 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

assumido um a conotação social e econômica, cabia ao direito


não só assegurar por suas disposições, como em 1789, a prote­
ção das “ liberdades fundam entais” , de todo cidadão, mas per­
m itir a decência do n íve l de vid a dos trabalhadores e, correlati­
vamente, referir-se às condições econômicas de sua existência.
Tal evolução provocou interpretações diversas. Certos auto­
res de orientação m arxista opuseram, não sem intenção ideoló­
gica e m ilitante, as “ liberdades reais” da segunda geração às “ l i ­
berdades form ais” da prim eira geração, na qual denunciaram
ruidosamente a “m istificação liberal” : qual a utilidade, eles per­
guntaram, de proclamar a igualdade diante da le i e de reconhecer
para todos os direitos fundam entais do ind ivíd uo, se a pobreza
de certos hom ens é tamanha que não têm os m eios de alcançar
sua realização? - Outros autores defenderam que a ideologia
liberal de 1789 e a ideologia socializante de 1848 geraram dois
tipos de direitos: os “direitos-liberdades” que definem a parte
do hom em que o Poder do Estado não deve reger, e os “ direi­
tos-créditos” que correspondem à d ívid a que o Estado deve sal­
dar para com seus membros, individuais ou coletivos. Se esses
créditos são denominados “ direitos” , é porque apelam, comen­
tam eles, ao poder que tem um cidadão ou um grupo de obrigar
o Estado a lhe fornecer prestações e serviços46. E m todo caso,
esse é o princípio do Estado de direito que, num passado recente,
não deixou de assim ilar-se ao Estado-providência, valendo-se,
num a curiosa mistura, das idéias de direito natural, de igualdade
e de solidariedade social.

46. Nesse sentido, é sintom ático que os textos constitucionais franceses


de 1946 e de 1958 tenham consagrado a expressão liberdades públicas (esse
p lural não tem o m esm o sentido que o singular “ a liberdade pública” que se
encontra na Declaração dos direitos [art. 9], fazendo as vezes de Preâm bulo à
Constituição de 24 de ju nh o de 1793 e que encontramos na Carta de 4 de
ju n h o de 1814). “ O que tom a pública um a liberdade, qualquer que seja seu
objeto, é a intervenção do Poder para reconhecê-la e organizá-la” , Jean R i-
vero, Libertes publiques, P U F , 1.1: Les droits de Vhomme, p. 23. — Isso equi­
va le a ad m itir que m esmo “ os direitos-liberdades” são, enquanto entendidos
juridicam ente, “ direitos-créditos” e que, assim, sua dicotom ia - tom ada, por
um desvio de sentido que certamente Jean R ivero desaprovaria, um clichê se­
dutor sob a pena de certos autores contemporâneos - é extremamente frág il.
SEGUNDA PARTE 337

' Nesse novo contexto, cabe sempre áo Estado D E direito


ser u m a defesa contra o im perialism o do poder político, mas o
objetivo é acima de tudo perm itir que, em nom e da radicaliza­
ção da liberdade, os direitos dos indivíduos e dos grupos sejam
oponíveis à autoridade do Estado, Então, como declara M . V il-
ley, “ os direitos do hom em passam a ter só amigos” 47! Só que,
no m esmo tempo que se louva, contra todo princípio de autori­
dade, na autonom ia da razão política, pede-se ao Estado, a des­
peito da contradição, que preste aos cidadãos um núm ero cada
vez m aior de serviços. A inflação dos “ direitos do hom em ” no
Estado de direito assim tornado Estado-providência provocou,
em m eio a dificuldades teóricas e práticas, inúmeras perdas de
controle do governo. Ocorre hoje, por im precisão da verdadei­
ra natureiza dos “ direitos” , que se deturpe o sentido do preceito
enunciado no Preâm bulo da D eclaração universal dos direitos
do homem de 1948: “É essencial que os direitos do hom em se­
ja m protegidos por um regim e de direito” , e chega-se a consi­
derar que o Estado legislador deve prover a tudo.
Com o não ver que o intervencionism o do Estado-provi­
dência em todos os campos an iq uila a autonom ia das vontades,
ou seja, a responsabilidade dos sujeitos de direito? N ão será
um sofism a reclamar tudo do Estado, quando se pretende pro­
m over o respeito à dignidade própria da pessoa humana? A de­
m ais, à proliferação dos “ direitos” provoca sua desvalorização,
de sorte que, se tudo é direito, nada m ais é direito. A ssim como
H egel denunciava a vertigem do nada que ameaça a absolutiza-
ção da liberdade, assim também é preciso denunciar o vazio
criado pelo exagero dos direitos do hom em. Esse pluralism o
sem lim ites gera um desamparo trágico: desamparo ju ríd ic o já
que o conceito de direito se dissolve no m ovim ento descontro­
lado dé infindáveis reivindicações48; desamparo ontológico pois

47. M ic h e l V ille y , op. c ií.,p . 17.


48. Os direitos fundam entais do hom em não podem se m ultiplicar indefi­
nidam ente, nem que fosse pelo fato de que a coexistência im põe a com patibili­
dade das liberdades de ação e a reciprocidade no exercício e no uso dos direitos.
M esm o num Estado de direito a organização dos direitos é, por natureza, restri­
tiv a dos direitos, J. M ourgeon, Les droits. de 1’homme, P U F, 1978, p. 68.
338 OS PR IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

o fato de o ser hum ano declinar de sua responsabilidade pes­


soal em proveito de um a responsabilidade dita coletiva gera a
irresponsabilidade: como o que é fundamental no hom em já não
é reconhecido como valendo a pena ser proibido ou protegido, é
um a demissão; desamparo axiológico pois a perm issividade
total que está no horizonte da superprodução delirante dos d i­
reitos contém o germe de um a passagem aos extremos em que
o descomedimento e o excesso acarretam pesos que se aparentam
com um a torrente niilista. Avalia-se a gravidade do risco corrido:
ou só há direito pela autoridade do Estado devedor e então a
ameaça do totalitarism o, ainda que “ fle x ív e l” , surge inevitavel­
m ente no horizonte; ou a liberdade fic a exposta a um a distor­
ção que, sob os ímpetos orquestrados pelos protestos dos grupos
sociais, conduz da liberdade liberal à liberdade libertária. A
ameaça é dupla: ou o g ulag ou a anarquia.
A s metamorfoses dos direitos do hom em parecem, por­
tanto, ser o espelho em que se reflete a problematicidade ineren­
te ao Estado de direito.

C ) D o caráter problem ático do Estado D E direito

A problematicidade do Estado de direito, posta em evidên­


cia pelo episódio tum ultuoso dos direitos do hom em , suscita
no filó s o fo dois temas de reflexão.
D e um ponto de vista realista ou objetivista, ninguém po­
deria contestar que o Estado D E direito, defensor das liberdades
contra a opressão ou a suspeição, aparenta-se com o lib eralis­
m o. M as também não há dúvida que, por sua inspiração demo­
crática e socializante, ele se aparenta com as teses progressis­
tas. Seu conceito é, portanto, am bivalente e, em ú ltim a análise,
contraditório, o que explica que as políticas de esquerda assim
como as políticas de direita o invoquem igualm ente; o que ex­
p lica tam bém que o liberalism o denuncie nele a regulam enta­
ção juríd ica e, em conseqüêncià, o excesso do Estado, enquanto
os socialism os lhe censuram um a m istificação ligada ao seu
form alism o: ele declara proteger as liberdades e os direitos, mas
SEGUNDA PARTE 339

não o faz. Terrível dilem a: onde está então a verdade do Estado


D E direito? Seria u m m ito?
D o ponto de vista das idéias, o Estado D E direito ensina
que os direitos do hom em , em razão da neeessária mediação do
direito positivo, são diferentes de um a pura exigência ética.
M esm o que se tenha de adm itir que, no plano m undial, sua rea­
lização padeça não somente das insuficiências de um poder
ju risd ic io n a l porém, ainda m ais, da pobreza dos m eios de que
dispõem as instituições internacionais para sancionar as falhas
que, no entanto, constatam e condenam, o m érito do Estado D E
direito poderia ser o de ter instituído, na m aioria dos Estados
ocidentais, um a garantia constitucional dos direitos e liberdades
fundamentais. Nisso, é trazido um desmentido às proclamações
tonitruantes que anunciam “a m orte do hom em ” . O hom em e o
hum anism o são reconhecidos como tendo dignidade e valor
suficientes para que sejam defendidos, até e inclusive no e pelo
dispositivo do direito político. Nunca será demais repetir que
cabe à positívidãde da le i e do direito objetivo conferir aos d i­
reitos do ind ivíduo sua dimensão ju ríd ic a e m ediatizar assim a
efetividade deles, ou seja, a produção dos efeitos juríd icos v in ­
culados a eles. E m outros termos, os direitos que são definidos,
determinados e fixad o s pela le i são, ao m esm o tempo, protegi­
dos pela le i: os direitos privados estabelecidos pelo direito pú­
blico estatal são garantidos pela le i pública. Isso sig n ifica por­
tanto que, no Estado D E direito que assume de certa m aneira a
herança filo só fic a do século X V III, o Poder é menos a fenom e-
nalização de um conceito p o lítico (isto é, de um instrum ento
decisório absoluto e exclusivo) do que de um conceito ju ríd ico
(isto é, de um a competência organizacional, subm etida por sua
vez a suas próprias regras e às suas leis). A idéia do Estado D E
direito corresponde dessa form a às exigências de um a norm a-
tividade form al de alcance geral, cuja vocação é articular ju r i­
dicamente um ao outro, sem sacrificar nem um nem outro, os
dois parâmetros da ordem pública e da liberdade das pessoas.
Se devemos ver nisso um a certeza, esta se acompanha con­
tudo, convém reconhecer, de um a inquietude pesada proveniente
da indecisão que cerca o conceito de hom em nos “ direitos do
340 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

hom em ” Se está claro que, no direito p o lítico m oderno, o ho­


m em não é n em o sujeito pensante d efinid o por Descartes, nem
o ind ivíduo insular Caracterizado pelo am or a si descrito por
Hobbes: por tòdâ parte, de fato, reina a intersubjetividade, a
existência entre e com os outros. M as é precisaniente nisso que
está a dificuldade. O hom em m oderno está preso num a rede de
relações que não basta caracterizar, com Kant, como sua “ inso­
ciável sociabilidade” . O entrelaçamento de comunicações que
se estabelece no mundo m oderno é tal que, de um lado, o in d i­
vidualism o liberal apresenta o risco de conduzir, no Estado D E
direito, a um a crise de sociedade, pois está'é m uito diferente de
um a associação de indivíduos e, do outro, os socialism os pro­
gressistas, por sua vez, apresentam o risco de provocar uma cri­
se do sujeito, pois este, preso nas arm adilhas da comunicação,
já não é exatamente ele mesmo. Seria, em conseqüência, neces­
sário que o Estado D E direito conseguisse resolver essa dupla
crise endêmica, e, se quer funcionar^ teria de levar em conta ao
mesmo tempo im perativos axiológicos do in d ivíd u o e interes­
ses ou estratégias pragmáticas dos grupos sociais. M as, como os
valores liberais e os reclamos sociais são, o m ais das vezes, an­
tagonistas, o arranjo se m ostra penoso.
À s dificuldades filosóficas com as quais se choca a teoriza­
ção do Estado D E direito provêm, portanto, menos da extensão
e da compreensão, de seu conceito do que do uso que se dá a ele,
embriagando-se com a idéia perversa do “ direito aos direitos”
cuja realização, como gostam de dizer, lhe competiria. Os desvios
que ele provoca nascem assim da m á compreensão do postulado
no qual se fundamenta, a saber, que cada um é detentor de direi­
tos sagrados e invioláveis. E m tom o desse postulado, acumula-
ram-se m uitas confusões, aumentadas pela crença pretensamen­
te m etafísica na existência de inumeráveis “ direitos naturais” , e '
ainda por cim a tomadas maiores pela dicotom ia falaciosa, ape­
sar de na moda, entre “ direitos-liberdades” e “ direitos-crenças” .
Resulta disso que, para o Estado D E direito, á realização do lou­
vável e generoso projeto de superar a antinom ia entre os valores
liberais e os reclamos sociais é provavelmente uma aposta.
A liás, a aposta fic a m aior ainda porque o aspecto propria­
m ente ju ríd ic o dos direitos no Estado D E direito é, desde o in í-
SEGUNDA PARTE 341

cio do século X X , ocultado pela dimensão p o lítica, inevitavel­


mente conflituosa, que lhe damos. Colocando no prim eiro plano,
na organização institucional do Estado, os m eios de defesa da
liberdade individual, o Estado D E direito correspondería à sim -
bologia republicana; mas essa idéia, resgatada pelas correntes
de opinião de esquerda, se tom a, na m edida em que se pensa que
a liberdade das pessoas está relacionada çom a segurança dos
bens, o ferro de lança de um a certa idéia da democracia.

3. Sim bologia republicana edem ocracia

A sim bologia republicana se estabeleceu e se aprim orou no


fin a l do século X I X e no in íc io do século X X . Tem componen­
tes diversos, mas só é compreendida se reportada às duas gran­
des orientações que se chocam na p o lític a e na história desde
1848: de um lado, a recusa lib eral do absolutism o e, de outro, a
recusa social-m arxista do individualism o liberal. É nessa dupla
recusa, exatamente quando esta é inseparável de u m contra-
senso na leitura das obras doutrinais ou filo só ficas, que repou­
sa o Estado D E direito, e compreende-se que seus defensores
tenham gostado de se valer das fortes im agens da liberdade que
acompanharam a idéia republicana. M as, por um desvio ideo­
lógico que mostra o quanto é fácil, no campo político, substituir
a força das demonstrações pelos argumentos de justificação, a
idéia de República encontrou-se associada a um a esperança
democrática. Nessa associação, em cujo seio o sentido dos con­
ceitos se cerca de um espesso halo de im precisão, a doutrina do
Estado D E direito só podia perder süa clareza e sua alma.

A ) O id ea l republicano

Por um lado, a doutrina do Estado D E direito, na sua fo r­


mulação alemã original, estava destinada, como já vim os, a
opor-se à idéia do Estado autoritário, reputado p o lic ia l e arbi­
trário, tal como se acreditara v ê -lo desenhado - provavelmente
342 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

por engano, mas esse é um outro problem a - pelas filo so fia s de


FiChte e de Hègel. Acreditara-se descobrir em Fichte, oposto às
idéias liberais de Loeke, um a inclinação m aquiavélica. Isso era
não 0 ler corretameiite. M as via-se nele o defensor do Estado
p o licial; A ssim também, H egel, d ifíc il e m al compreendido,
m uitas vezes passava pelo filó s o fo segundo o qual a realização
universal do direito im plicava um a m onarquia que, pòr m ais
constitucional que fosse, não deixava de ser autocrática. Chega-
va-se m esm o a acreditar que, no Estado prussiano, Frederico I I
corporifícava, no dizer de Hegel, o Príncipe de M aquiavel. Claro,
estavam errados. Hegel não d iz absolutamente isso. M as o erro
era tônico, e guardava-se a idéia m obilizadora segundo a qual,
no universal concreto do Estado, todos os interesses privados
deviam ser-lhe submetidos: o que acarretava o papel capital do
funcionalism o. Apesar de cientificam ente erradas, essas le itu ­
ras constituíram potentes catalisadores para os doutrinários do
Rechtsstaat, preocupados em se opor a tudo o que, de perto ou
de longe, se aparenta com o despotismo ou com a tirania.
Por outro lado, a rejeição das teses m arxistas explica, para
além das teorias alemãs do Rechtsstaat, seus prolongamentos na
doutrina francesa. O pensamento alemão compreendeu m uito
depressa que as teses m arxistas se inseriam logicam ente, ape­
sar de seus autores negarem, “ no projeto de instauração de um a
dominação total do Estado sobre a sociedade” . Depois, na Fran­
ça, no in íc io do século X X , Jaurès decifrou em M a rx, que se
levantava contra a luta de classes, “ a vontade ditatorial” do pro­
letariado ou do Partido. Logo depois da Segunda Guerra M u n ­
dial, M erléau-Ponty m ostrou como o hum anism o que alim en­
tava o pensamento de M a rx tinha, com L ê n in e, Sobretudo, com
Stálin, descambado no terror. Para todos esses autores, era pre­
ciso portanto romper com o m arxism o, ou seja, recusar o comu­
nism o, rejeitar seus desvios m aterialistas que inclinavam para
a coisificação dos homens, suspender as terríveis conseqüên-
cias políticas: deportações, campos de trabalho, execuções, gu lag
etc. M as, nessa recusa do com unism o m arxizante, nem Jaurès,
nem B lu m , nem M erleau-P onty renunciavam a ser hom ens de
esquerda: diziam -se e eram republicanos. O socialism o de Jean
SEG UND APARTE 343

Jaurès, o democratismo de Léon B lu m , o “novo-liberalism o” de


M erleau-P onty são, não obstante seus m atizés, figuras do Es­
tado D E direito. E m sua com um inspiração republicana, esses
pensadores p olíticos consideraram, sem propor verdadeira­
mente um a teoria do direito político, que o Estado deve encarnar
a soberania do povo, pautar-se pelo contrato social, pela repre­
sentação nacional, pelo sufrágio universal, pelo laicism o; esti­
m aram que, por sua função, o Estado, inspirando-se na D ecla­
ração dos direitos herdada da Revolução Francesa, deve recusar
a existência dos p rivilégios, assegurar a liberdade ind ivid u al,
garantir a propriedade, prover à educação de todos. A ssim , a
ordem republicana, fundamentada em razão e penhor das lib er­
dades, parece ser a pedra angular do Estado de direito. E m con­
form idade com a definição do ideal republicano que quer a in ­
d ivisib ilidad e da nação, a igualdade de todos perante a le i, o
respeito das liberdades essenciais, a confidencialidade da vid a
privada etc., o Estado D E direito pode se firm ar como “ a Cidade
das consciências autônomas” .
Entretanto, nesse contexto m ais p o lítico do que ju ríd ic o , o
componente democrático do Estado D E direito pouco à pouco
prevaleceu sobre sua inspiração republicana. M as, como a no­
ção de democracia, pela superabundância de seu emprego, se
atolou, no decurso dos tempos modernos, em espessas névoas
conceituais, a aliança da sim bologia republicana com o culto da
democracia fe z surgir numerosos equívocos cuja repercussão
tem efeitos jurídicos.

B ) A s am biguidades do entusiasmo dem ocrático

N u m prim eiro m om ento, poder-se-ia pensar que a concep­


ção da democracia, à qual se refere o Estado D E direito, tem
um sentido claro e específico. E la se louva fundam entalm ente
no sufrágio universal e, se objetassem que esse critério não é
novo, cum priria responder que ele adquiriu hoje um a am plitu­
de cuja conotação é significativa: o voto das mulheres, o d irei­
to de voto aos 18 anos, a questão do voto dos im igrantes etc.,
344 OS p r in c íp io s f il o s ó f ic o s d o d ir e it o

apesar de dependentes de problem áticas heterogêneas, são da­


dos que indicam a compreensão m uito larga do conceito de cida­
dania, ao qual a idéia de sufrágio p o lític o remete hoje. A ssim ,
não é por acaso que se avançou há pouco à expressão “ nova
cidadania” . Em bora a noção abrangida por esse vocábulo seja
obscura, já não se deve procurar seu m ó b il no âm bito ju ríd ic o -
p o lítico do Estado; de m aneira m uito vaga, invoca-se para am ­
pará-la, prim eiro, o poder das massas e da opinião pública; de­
pois, a exigência igualitária em que se embasa um a referência
à igualdade estrita, puramente aritm ética, entre todos os in d iv í­
duos, venham de onde. vierem . Fica evidente, em consequência,
que o apelo ao sufrágio universal, o reconhecimento de um a
nova cidadania que poderia tomar, no lim ite , o je ito da cidada­
n ia do m undo, um a igualdade com utativa que apaga as diferen­
ças etc. supõem um á concepção vulgar e niveladora da justiça:
cada um , independentemente do m érito ou dos valores, é, em
todos os aspectos, reputado igual a todos os outros, de m odo
que a justiça nada tem de distributivo. A ssim , sob o enigm a de
pseudoconceitos e com a deformação que pseudovalores insta­
lam no direito político, encontra-se novamente questionado o
Estado da burguesia liberal, que se alim entara do ideal republi­
cano: suspeita-se que ele contém sequelas “ das classes e das
diferenças” que constituíam nele um a hierarquia social e m o­
ral; é declarado conservador e, em razão das discrim inações de
que seria ao mesmo tempo o princípio e o lugar, é denunciado
pelos defensores da nova democracia como quase feudal.
Nessa lin h a ideológica, afirm a-se portanto que o Estado
D E direito deve ser aquele que instaura um a democracia pro­
gressista na qual todos os direitos do hom em , absolutamente,
devem ser protegidos - o que acarreta o grande risco de fazer
rebentar, pelo excesso das liberdades libertárias (ou seja, em
razão da incompreensão da idéia de Uberdade), um a crise da
ordem púbüca. D a mesm a ideologia procedem, ainda por cim a,
as práticas de descentralização adm inistrativa, o laxism o da no­
va po lítica penal que não deve nem reprim ir nem punir, a dem o­
cracia na empresa etc., e, no lim ite sem um a passagem, um a per-
SEGUNDA PARTE 345

m issividade total que prepara o “retom o de D io niso”49. Sob o


rosto que assim a democracia assume, esconde-se uma d ific u l­
dade que o Estado D E direito terá sem dúvida m uita dificuldade
em superar: nesse programa democrático-progressista, a unani­
m idade não é possível e, mesmo que se invoque a soberania do
povo como regra da legitim idade, m esm o que se apele à ig u al­
dade estrita como regra da justiça, é sempre, de fato, o governo da
m aioria, mesmo que fraca, que decide e age. Então, o Estado
D E direito, em sua vontade exacerbada de total democracia,
não estará condenado à contradição?
Com o, enfim , não denunciar as confusões que embaralham
as pretensões democráticas do Estado D E direito assim com ­
preendido? Certamente, por esse ideal proclam ado dem ocráti­
co, ele poderia levantar-se, dizem , contra todo Estado que fosse
“p o lic ia l” , “ absolutista” pu “ totalitário” . M as esses três perfis
não pertencem a. um a categoria homogênea do direito político.
D e um lado, não é um a diferença de grau, mas de natureza a
existente entre o Estado absolutista de L u ís X I V e a Rússia to­
talitária de Stálin, ou, da mesma form a, entre a polícia de R iche-
lie u e os delírios hegemônicos de H itle r; um Estado ditatorial,
evidentemente absolutista, difere essenciahnente desses regi­
mes totalitários nos quais os homens, como mostraram H . A rendt
e R . A ron, são condenados ao esmagamento. Se, por outro lado,
é preciso reconhecer que o Estado de p o líc ia e o Estado abso­
lutista se caracterizam como autênticas form as do direito p o lí­
tico, convém, em compensação, assinalar com ênfase que os
regimes totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda, são
um a perversão do político que chega à desnaturação. Não se cria
obstáculo da mesma m aneira a um regim e absolutista e à pato­
log ia totalitária. E n fim , se é exato que o Estado adm inistrativo
procede de um centralismo legislador, e que, como tal, é vig ia ­
do pela tecnocracia e pela burocracia, é preciso confessar que
m esm o assim constrói e põe em andamento as diversas engre­
nagens que são necessárias ao funcionam ento da m áquina p o lí-

49. C f. R aym ond P o lin , La liberté de notre temps, 1977; Jean B run, f e
retour de Dionysos, Desclée, 1969.
344 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

apesar de dependentes de problem áticas heterogêneas, são da­


dos que indicam a compreensão m uito larga do conceito de cida­
dania, ao qual a idéia de sufrágio p o lítico remete hoje. Assim ,
não é por acaso que se avançou há pouco à expressão “nova
cidadania” . Em bora a noção abrangida por esse vocábulo seja
obscura, já não se deve procurar seu m ó b il no âm bito ju ríd ic o -
p o lítico do Estado; de m aneira m uito vaga, invoca-se para am ­
pará-la, prim eiro, o poder das massas e da opinião pública;, de­
pois, a exigência igualitária em que se embasa um a referência
à igualdade estrita, puramente aritm ética, entre todos os in d iv í­
duos, venham de onde vierem . Fica evidente, em conseqüência,
que o apelo ao sufrágio universal, o reconhecimento de um a
nova cidadania que poderia tomar, no lim ite , o je ito da cidada­
n ia do m undo, um a igualdade com utativa que apaga as diferen­
ças etc. supõem um a concepção vulgar e niveladora da justiça:
cada um , independentemente do m érito ou dos valores, é, em
todos os aspectos, reputado ig u al a todos os outros, de m odo
que a justiça nada tem de distributivo. A ssim , sob o enigm a de
pseudoconceitos e com a deformação que pseudovalores insta­
lam no direito p o lítico , encontra-se novamente questionado o
Estado da burguesia liberal, que se alim entara do ideal republi­
cano: suspeita-se que ele contém sequelas “ das classes e das
diferenças” que constituíam nele um a hierarquia social e m o­
ral; é declarado conservador e, em razão das discrim inações de
que seria ao m esmo tem po o princípio e o lugar, é denunciado
pelos defensores da nova democracia como quase feudal.
Nessa lin h a ideológica, afirm a-se portanto que o Estado
D E direito deve ser aquele que instaura um a democracia pro­
gressista na qual todos os direitos do hom em , absolutamente,
devem ser protegidos - o que acarreta o grande risco de fazer
rebentar, pelo excesso das liberdades libertárias (o u seja, em
razão da incompreensão da idéia de liberdade), um a crise da
ordem pública. D a mesm a ideologia procedem, ainda por cim a,
as práticas de descentralização adm inistrativa, o laxism o da no­
va po lítica penal que não deve nem reprim ir nem punir, a demo­
cracia na empresa etc., e, no lim ite sem um a passagem, um a per-
SEGUNDA PARTE 345

m issividade total que prepara o “retorno de D ion iso ”49. Sob o


rosto que assim a democracia assume, esconde-se um a d ific u l­
dade que o Estado D E direito terá sem dúvida m uita dificuldade
em superar: nesse programa democrático-progressista, a unani­
m idade não é possível e, mesmo que se invoque a soberania do
povo como regra da legitim idade, mesmo que se apele à ig ual­
dade estrita como regra da justiça, é sempre, de fato, o governo da
m aioria, mesmo que fraca, que decide e àge. Então, o Estado
D E direito, em sua vontade exacerbada de total democracia,
não estará condenado à contradição?
Gomo, enfim , não denunciar as confusões que embaralham
as pretensões democráticas do Estado D E direito assim com ­
preendido? Certamente, por esse. ideal proclamado dem ocráti­
co, ele poderia levantar-se, dizem , contra todo Estado que fosse
“p o lic ia l” , “ absolutista” ou “ totalitário” . M as esses três perfis
não pertencem a um a categoria homogênea do direito p o lítico .
D e um lado, não é um a diferença de grau, mas de natureza a
existente entre o Estado absolutista de L u ís X I V e a Rússia to­
talitária de Stálin, ou, da mesma form a, entre a polícia de R iche-
lie u e os delírios hegemônicos de H itie r; u m Estado ditatorial,
evidentemente absolutista, difere essencialmente desses regi­
mes totalitários nos quais os homens, pomo mostraram H . A rendt
e R . A ron, são condenados ao esmagamento. Se, por outro lado,
é preciso reconhecer que o Estado de p o líc ia e o Estado abso­
lutista se caracterizam como autênticas form as do direito p o lí­
tico, convém, em compensação, assinalar com ênfase que os
regimes totalitários, sejam eles de direita ou de esquerda, são
um a perversão do p olítico que chega à desnaturação. N ão se cria
obstáculo dam esm a m aneira a um regim e absolutista e àp ato -
logia totalitária. E n fim , se é exato que o Estado adm inistrativo
procede de um centralismo legislador, e que, como tal, é vig ia ­
do pela tecnocracia e pela burocracia, é preciso confessar que
m esm o assim constrói e põe em andamento as diversas engre­
nagens que são necessárias ao funcionam ento da m áquina p o lí-

49. C f. R aym ond P o lin , La liberte de notre temps, 1977; Jean B run, Le
retour de Dionysos, Desclée, 1969.
346 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tica. Portanto, não se pode, sem m atizes e pelo único m otivo de


que, democraticamente, ele prom ove e garante os direitos e l i ­
berdades, opor o Estado de direito ao Estado administrativo: este
é um arranjo técnico das funções estatais, aquele im p lica um a
idéia que, como acabamos de ver, não desaparece no esquema
sim p lificad or do governo do povo pelo povo. O Estado D E d i­
reito não pode prescindir das instituições e das engrenagens do
Estado adm inistrativo; não se pode, portanto, opô-lo a ele.
E m razão de seus m últiplos componentes e da inevitável
m obilidade què os anim a, o Estado D E direito se revela, por­
tanto, no contexto da m odernidade política, repleto de com ple­
xidade e de ambigüidade. A relação qüe m antém com a idéia
democrática, tantas vezes m encionada hoje50, é particularm en­
te equívoca. Se se reconhece que o Estado D E direito repousa
na exigência dâ liberdade política, é preciso adm itir que todos
os países que se pretendem democráticos nem sempre são res­
peitosos dos direitos e das liberdades; há, no mundo, regimes què,
em nom e dos princípios democráticos, fizeram o hum anism o
descambar no terror; e nada garante que a le i, que os filósofos do
século X V I I I pensavam ser um instrum ento de liberdade, não
será tirânica e opressora. E m outro registro, Tocqüeville v ira as
ameaças de esmagamento que rondam na opinião pública pre­
parando nas democracias esse “novo despotismo” que esfria e
gela homens que começam a ficar todos semelhantes51; então,
som em os direitos e as liberdades que deveriam ter fe ito a
hum anidade dos homens. Lembrar-nos-em os de qüe, segundo
Rousseau, seria necessário um povo de deuses para sé governar
democraticamente?
Parece portanto que, remetendo à aliança da sim bologia
republicana e dó ideal democrático, o conceito de Estado D E

50. Costum a-se considerar què “ o prim eiro desenvolvim ento do Estado
dem ocrático e a instituição dos direitos do hom em ” são correlates e até que os
direitos do hom em são “ constitutivos da democracia” , Claude Lefort, L ’in­
vention démocratique, pp. 63 e 29. A obra de Jürgen Habermas, Faktizitãt und
Geltung pode passar por um tratado que, a propósito do Estado de direito,
desenvolve um a concepção pragm ática e processual da democracia.
51. A le x is de T ocqueville, La démocratie en Amérique, v o l. 1 ,1? parte,
cap. X X I.
SEGUNDA PARTE 347

direito veio atender às aspirações dos homens de “ esquerda” ,


preocupados com sua reputação progressista. M as, já que o
Estado de direito im plica a defesa dos valores de liberdade, de
propriedade, de respeito ao ind ivíduo etc., supõe tam bém um
liberalism o de que se orgulha a tradição das políticas de “ direi­
ta” . N o entanto, seria vão considerar que o Estado D E direito
estabelece um acerto entre essas duas tendências políticas, pois
a divisão esquerda-direita, ou progressismo-conservadorismo,
não é m uito pertinente na m atéria: depende de um a ideologia
que, certamente, podé presidir a um a tipologia dos regimes;
mas que não pode ajudar a pôr em evidência os princípios fu n ­
damentais e reguladores do direito p olítico.

, A dificuldade m ais tem ível em que tropeça o filó s o fo do


direito quando se indaga sobre o Estado D E direito não reside
na sua inspiração política, apesar de ela ser, como acabamos de ver,
penosa de definir. E la se deve à concepção do sujeito de direito
e dos direitos e das liberdades que ele pretende proteger.
D e fato, a idéia dos direitos inerentes à natureza hum ana
remete à doutrina jusnaturalista que, ainda hoje, pode ser con­
siderada como constituindo o necessário horizonte m etajurídi-
co do direito p o lítico . M as, porque o sujeito de direito não
poderia ser, no Estado D E direito, o “ E u” substancial da m eta­
física, seus direitos “naturais” necessitam, para adquirir algu­
m a efetividade, de um corpo de regras positivas, as únicas aptas
a realizá-las. Só há direitos, no sentido ju ríd ic o do term o, m e­
diante o direito. Todavia, confiar na doutrina positivista signi­
ficaria que, no Estado D E direito, o sujeito de direito é definido
apenas pelas qualidades que o direito positivo lhe reconhece ou
lhe atribui.
A ssim enunciado, o dilem a parece sim ples. N a realidade,
é m uito problem ático. Q uâl deve ser o estatuto ju ríd ic o de
sujeitos como o pródigo, o alienado m ental, o im igrante? Que
acontece com o embrião, o toxicôm ano, o doente em estado de
coma term inal? Se considerarmos que a determinação ju ríd ic a
deles é apenas questão de qualificação e não abrange nenhuma
realidade ontológica, não será necessário adm itir que é d ifíc il,
348 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

no caso, descartar sempre m otivos éticos e ju ízo s de valor e


que, de qualquer form a, a autonom ia ,da vontade, portanto, a
responsabilidade e a capacidade de imputação são essenciais
ao reconhecimento do sujeito de direito? E m consequência, os
“ direitos subjetivos’’ de que o Estado D E direito se fa z garante
e defensor - a liberdade de fazer ou não fazer, o direito à .im a­
gem, a capacidade de contratar obrigações, os direitos patrim o­
niais etc. - só têm sentido e consistência se m ediatizados pelo
conceito de “pessoa ju ríd ica” na m edida em que é inserido nu­
m a ordem ju ríd ic a que o determ inou como tal.
N o entanto, a juridicização do sujeito jam ais poderá ser,
no Estado D E direito, nem um a sim ples form alização lógica
nem um a naturalização objetivista dele. Os direitos que lhe são
reconhecidos só podem resultar da objetivação da liberdade
que é vinculada, em todo in d ivíd u o , à vontade prática da razão.
Compreende-se assim que o sujeito de direito se defina, no plano
do universal, como um fim e que, portador de valor, não possa
ser tratado como um m eio. Sua hum anidade dá a m edida da
norm atividade ideal sem a qual a própria idéia de seus direitos
não teria Sentido. Equivale a dizer que o hom em como fim tem
a liberdade como tarefa. Nessas condições, form alism o ju ríd i­
co e hum ànism o vão de par na exata m edida em que a exigên­
cia hum anista que culm ina na autonom ia é inerente ao próprio
conceito de direito.
D ir-se-á então que o tema do Estado D E direito é, em ú lti­
m a análise, tributário, nas margens que d elim itam seu concei­
to, da m etafísica do hom em que um a época se atribui. Isso não
será um erro. A idéia de Estado D E direito reflete um a m anei­
ra que o hom em tem de existir: marcada por um coeficiente
que se pode qualificar, à m aneira heideggeriana, de “h istorial” ,
essa idéia corresponde, rio direito p o lítico m oderno, à “ m etafí­
sica da subjetividade” . Traz então a marca, profunda, da vontade
de racionalização da condição hum ana. O esforço feito nesse
sentido é tão intenso que os componentes dos sujeitos que vivem
essa mutação existencial parecem “ naturais” . Esse fenôm eno
basta para explicar o m ovim ento pelo qual se operam ain flação
dos direitos e a exacerbação das liberdades.
SEGUNDA PARTE 349

N isso residem o paradoxo do Estado D E direito e a d ifi­


culdade que há em aclarar filosoficam ente seu conceito: ele
repousa num a contradição, que tem todas as possibilidades de
ser m ortal. Enquanto, por seu dispositivo ju ríd ico , ele reflete his­
torialm ente a m etafísica da época m oderna, nele tudo se passa
como se os direitos e as liberdades que defende pertencessem
à “ natureza” do hom em . O resultado desse estatuto contraditó­
rio é inelutável: o Estado D E direito, por seu próprio desenvol­
vim ento, desum aniza o hum anism o ju ríd ic o por que se pauta e
que tem o projeto de promover.

* .

Sob as duas figuras do Estado D O direito e do Estado D E


direito, o direito p o lític o do Estado m oderno parece condena­
do a um a terrível vertigem : se, de um lado, os princípios de le ­
galidade e de legitim idade dão azo, sob o signo do republica^
nism o, às esperanças de liberdade que a ordem pública contém
ao se opor às forças m aléficas da anarquia e do não-direito, do
outro, a síntese da ordem e da liberdade para a qual tende a
racionalidade prática dq direito p o lítico m oderno se choca com
um obstáculo m aciço na inflação irracional dos direitos que se
supõe que ela promove. A ssim , o direito p o lítico m oderno pa­
rece im pregnado pela am bigüidade, tão frequentemente assi­
nalada desde G rotius, do term o “ direito” , d ividido entre o d i­
reito objetivo e os direitos individuais. A querela entre o singular
e o plural - O direito e Os direitos - é, na verdade, prenhe de
significado.

O Estado D O direito, nascido da filo s o fia do Ilu m in ism o ,


deu ao direito p o lítico um p e rfil firm e e claro. D e fato, desde o
in íc io do século X I X , os problemas constitucionais ocuparam
um lugar de prim eiro plano na doutrina ju ríd ic o -p o lític a dos
países europeus e, m ais largamente, do m undo ocidental52 H oje,

52. Dentre um a bib lio g rafia que é im ensa, citem os algum as õbras m ar­
cantes na doutrina do direito constitucional francês: B enjam in Constant, Cours
350 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a forte corrente constitucionalista, até mesmo neoconstitucio-


nalista que percorre a teoria do Estado, afirm a a supremacia do
texto constitucional reconhecido como fundam ento de toda a
ordem jurídica. Sob a Constituição, a catedral ju ríd ic a se orga­
niza como sistema. E m seu significado filo s ó fic o , esse sistema
é a expressão ju ríd ica de um a racionalidade lóg ico-form al. E m
sua eficiência prática, a ordem constitucional é portadora de
norm atividade, de tal form a que as regras de direito se c o n fi­
guram, no âm bito estatal, m odelos de diretividade. O espaço
público fic a assim dom inado pelo m odelo estrutural da pirâ m i­
de ju ríd ic a à qual se dá menos um valor de representação do
que um a finalidade heurística. A le i, na composição da ordem
ju ríd ic a estatal, determina seu esquema de distribuição de
m odo que a autodeterminação do direito form a a unidade lógica
do siStema organizacional do Estado: “A validade de um a nor­
m a não pode ter outro fundam ento além da validade de um a
outra norm a .” 53 A dimensão de racionalidade que dá à ordem
ju ríd ic a do Estado moderno suá unipluralidade exclui a possi­
bilidade de contradições, de conflitos entre normas e lacunas.
Essa racionalidade, que sig n ifica que a superlegalidade consti­
tucional é, no Estado m oderno a chave de todas as leis e deci­
sões de direito, faz a força im anente do sistema do direito p o lí-

de politique constitutionnelle, 1818-1819, Paris, G u illau m in , 1861; B erriat


S ain t-P rix, Théorie du droit constitutionnel, Paris, V idecoq, 1851-1853;
Édouard Laboulaye, Questions constitutionnelles, Paris, Charpentier, 1873;
reed., Caen, 1993; Léon D u gu it, Traité de droit constitutionnel, Paris, Fon -
tem oing, 1911; Raym ond Carré de M alberg, Contribution à la théorie géné­
rale de l ’État, 1920-1922; ed. do C N R S , 1962; M aurice H auriou, Précis de
droit constitutionnel, Sirey, 1923; 2? e& , 1929; Joseph Barthélem y, Traité élé­
mentaire de droit constitutionnel, D alloz, 1926; Georges V edel, M anuel élémen­
taire de droit constitutionnel, Sirey, 1949; M ic h e l Troper, La séparation des
pouvoirs et l ’histoire constitutionnellefrançaise, LG D J, 1973; BernardChante-
bout, D ro it Constitutionnel et science politique, Econom ica, 1979; René Ca­
p ta n t, Écrits constitutionnels, prefácio de M arcel W aline, C N R S , 1982; P h i­
lip pe Ardant, D ro it constitutionnel et institutions politiques, Les cours de
droit, 1982-1983; Louis Favoreu, Le constitutionnalisme aujourd’hui. Propos
d ’un néo-constitutionnaliste, Econom ica, 1984.
53. Hans Kelsen, Théorie pure du droit, p. 256.
SEG UNDAPARTE 351

tico e, para além dele, de todos õs setores do direito em geral.


D e fato, o form alism o sintático da criação do direito, lembrando
o m onism o da Stufenbautheorie da doutrina alemã e a lógica da
“ formação do direito por graus” defendida por Carré de M alberg,
confere coerência e segprança não somente ao edifício do direi­
to p o lítico mas à prática ju ríd ico -p olítica.
N o Estado m oderno, o constitucionalism o, de acordo com
as idéias que os Constituintes 54 defendiam , é como que o m otor
do destino do seu povo; À Constituição, adquirindo valor, assim
como d izia Sieyès, de “ le i fundam ental” , contém “ as razões se­
m inais” do direito: é ao mesmo tempo a regra de in te lig ib ilid a ­
de e a regra dè validade do sistema ju ríd ic o que exprim e os
poderes teóricos e práticos da razão. Essa racionalidade, que
im plica o abandono de todo critério norm ativo exterior, signi­
fic a sua autonom ização 55 e sua coerência56; determina tam bém
as promessas de segurança da ordem pública57.

Ora, contra as certezas da antropologia raeionalista que


embasam “ o princípio de constitueionalidade” do direito p o lí­
tico, levantaram-se dúvidas e críticas. Invocando, na condição
hum ana, o prim ado da liberdade in d ivid u al, a im portância das
necessidades éticas e a necessidade do pragm atism o sócio-his-

54. C f. Constituição de 1791, títu lo prim eiro.


55. C f. K ant, Doutrina do direito, § 15.
56. É por isso que todas as Constituições prevêem sanções penais no
caso em quê ou um a de suas disposições, oü, sobretudo, um a le i ou um regu­
lam ento, fosse viola d o; numerosas são tam bém as Constituições que prevêem
a anulação das decisões inconstitucionais; com portam até regras processuais
e de com petência para um a eventual revisão do texto fundador. Nesses dispo­
sitivos, as Constituições respondem portanto ao prin cíp io lógico de não-con-
tradição.
57. Com o quiseram os homens da Revolução Francesa, a Constituição de
um Estado m ódem ó é um baluarte contra os riscos de arbitrariedade e de
absolutism o, considerados logicam ente com o os sinais do desatino que acom ­
panha, com o sua sombra, a individualização do Poder. N os term os do texto
constitucional, o poder dos governantes existe apenas na razão da investidura
que receberam, e só pode ser exercido no respeito às regras enunciadas pela
Constituição: qualquer outro comportamento é irregularidade ou v íc io ju ríd ic o.
352 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tórico, a doutrina do Estado D E direito reclamou, em nom e dos


fatos, contra o construtivism o racional, um a “ superação da le ­
galidade” . Enquanto o Estado D E direito só devia ser um outro
“ ponto de vista” sobre o Estado D O direito, a racionalidade
objetiva deste fo i acusada pelos ím petos subjetivistas daquele.
Com o a realidade contradiz os princípios, o Estado D E direito,
aureolado das potências do irracional, tendeu a ocupar a frente
do palco. D a í nasceu, na incompreensão, ou por m otivos ideo­
lógicos què estão longe de ser inocentes, a crise do direito p o lí­
tico moderno, que se costuma designar como a “ crise do direito”
ou a “ crise da razão” .
M u itas vezes se repete que o Estádo D E direito, protetor
dos direitos do hom em , invoca a tradição ind ivid ualista e lib e­
ral, ela própria arraigada num voluntarism o cuja base funda­
m ental a filo s o fia do direito natural forneceria. Estando assim
a legitim idade do Estado D E direito enraizada na soberania do
indivíduo, os direitos sagrados e inalienáveis de todos os homens
sempre poderiam ser opostos às decisões do Poder. O Estado D E
direito, defensor das liberdades e dos direitos individuais, não
seria então um a das duas figuras do direito do Estado, mas o
outro do Estado D O direito, construtor da ordem pública e, co­
m o tal, form aria um díptico com ele. S im p lificand o m uito ás
coisas, acreditou-se portanto poder opor o m oralism o e o sub­
je tivism o do Estado D E direito ao form alism o ju ríd ic o e ao
objetivism o do Estado D O direito.
A partir dessa antinom ia, era fá c il tom ar um a resolução:
contra o Estado D O direito, representado como um legalism o
opressor que destila um autoritarism o voluntarista, louvou-se a
capacidade libertadora do Estado D E direito, depois efetuou-se
a passagem do princípio filo s ó fic o para a experiência ju ríd ic o -
política: o discurso dos direitos do hom em in d u ziu um a p o líti­
ca na qual um liberalism o exacerbado, de liberal, tom ou-se l i ­
bertário. Ora, esse fenôm eno com manifestações m últip las 58 é
um desvio do Estado D E direito. Assiste-se nele não somente à

58. A s manifestações dessa transformação são numerosas: assim , assis­


te-se ao crescimento quantitativo da regulamentação destinada a proteger os
SEGUNDA PARTE 353

revolta dos fatos contra a regra ou à invasão dp direito pelo


fato, mas ao conflito da liberdade (ou do que se acredita como
tal) contra a ordem.
H á nisso um gigantesco m al-entendido, que encerra um
duplo erro. O prim eiro erro é a perversão da ordem legal do
Estado pelo princípio de subjetividade: o direito público é gan­
grenado pela consideração dos casos particulares e das situa­
ções singulares; o rigor do direito objetivo e a generalidade da
le i são gravemente oçultados. A lógica em pírica do pragm atis­
m o ju ríd ic o -p o lític o vem rebater a lógica racionai do aparelho
legislativo. Nessa nebulosa, em que um estranho confusionis-
m o embaralha as categorias e os conceitos, os direitos adquirem
m ais im portância do que o direito. Q antiform alism o ju ríd ic o e
o m ilitantism p antipplítico rondam no Estado D E direito, e
um a crítica generalizada é dirigida contra o norm ativism o.
Nesse processo, decifra-se o segundo erro com etido pela reali­
zação do Estado D E direito: em vez de efetuar a síntese entre a
ordem e a liberdade, ele opõe a liberdade à ordem. Então, o
irracionalism o que parece cada vez m ais necessário para a efe­
tivação concreta e para o pluralism o dos direitos e das liberda­
des só pode inserir a dissolução do direito na transformação das
perspectivas jurídico-políticas. O efeito norm ativo do direito fic a

direitos in dividu ais ou categoiiais; p Estado-providência deve prover a tudo;


na desracionalização das regras, m anifesta-se a in flu ên cia crescente dos inte­
resses particulares dos indivíduos ou dos grupos; a extensão dó fenôm eno ju -
risprudencial tem origem na contingência da vivên cia cotidiana. Sem se de­
clarar h o stil à razão racional do Estado legal, o próprio ju rislado r prefere as
vias pragmáticas de um a “ estratégia” que procura sempre evitar a im pessoali-
dáde e o rigor (confundido com o rigorism o); p rivile g ia , sob a máscara do “ra­
zoável” , e recoríéndo a tática da “ argumentação” , o que parece “ conveniente”
ou “desejável” . Por conseguinte, em nóm e dos direitos do hom etn, das lib er­
dades individuais, do “direito à diferença” e até do “direito aos direitos” , m u l­
tiplicam -se as maneiras de agir a-jurídicas que resultam na inaplicação de
um a regra, na anulação de um a decisão tomada com base num texto de alcance
geral, nas negociações, nos compromissos, nos regulamentos transacionais, nos
quais se perfilam , m ais ou menos bem compreendidos, os temas da “ com uni­
cação” , da “ solidariedade” e do “hum anitarism o” que pretendem ser, no fin a l
do século X X , as conquistas filosóficas do m undo po lític o.
354 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tão d iluído que sua obrigatoriedade some diante das considera­


ções de oportunidade. Certos autores pretendem que se m ani­
feste dessa form a “ o processo autodestruidor do Ilu m in ism o ” 59.
N ão haverá nisso antes um a incompreensão da síntese entre a
ordem e a liberdade?

C onciliar a ordem pública e a liberdade in d ivid u al é, como


mostrava K aht60, tarefa do direito p o lítico m oderno, que só re­
vela seu sentido nà sistematicidade de sua empreitada, ou seja,
em conform idade com a arquitetônica da razão prática. Ôs fíh s
que ó direito m oderno se propõe realizar não poderiam ser so­
m ente fin s subjetivos; ou, pelo menos, estes devem ser suscetí­
veis de se inserir num âm bito objetivo, em que adquirem , ipso
fa c to , um valor objetivo. A força e a grandeza do direito p o líti­
co moderno está em mostrar que o direito ultrapassa necessa­
riam ente o ponto de Vista do particular - os interesses, os “d i­
reitos” e as “ liberdades” dos egoísmos individuais - e que, na
ordem objetiva das instituições que ele constrói, se projeta a
aspiração da razão ao universal. Temos, portanto, base para d i­
zer que, nas transformações que afetam hoje o direito p o lítico ,
assistimos ao esquecimento do im perativo racional que atesta a
hum anidade do hom em. E m menos de dois séculos, o direito
p o lítico - que, na aurora do pensamento m oderno, encontrava
seus princípios, segundo a fórm ula de H egel, na “vontade obje­
tiva in fin ita ” da le i (Gesetz)61 - converteu-se num pluralism o
que traz em si os m iasmas de um a subjetividade anárquica.
Portanto, atestando a fragilidade das instituições diante da pres­
são das opiniões individuais e das forças contingentes, a evolu­
ção do direito político traz à plena lu z o risco que corre de já
não ser adequado ao seu conceito. N o m undo ocidental, os sis­
temas do direito p olítico são pouco apouco corroídos pelo cor-

59. J. Hãbermas, Le discours philosophique de la modernité, trad, fr.,


G allim ard, 19, p. 128.
60. Sobre esse problem a fundam ental, remetemos ao nosso liv ro L á p h i-
losophie du droit de Kant, V rin , 1996.
61. H egel, Principes de la philosophie du droit, § 13.
SEGUNDA PARTE 355

te que se vai alargando ,entre os im perativos da racionalidade


im pessoal e unificadora que os ed ificou e as pressões, da subje­
tividade que tendem à fragmentação pluralista.do direito.
Se a distância cada vez m aior que se constata em nosso
tempo entre o Estado D O direito e o Estado D E direito traduz
assim a incompreensão da relação entre os direitos e o direito,
ela atesta igualm ente a dificuldade inerente da mediação que
quer conciliar o universal e p particular assim como a ordem e
a liberdade. Sob form as diversas, com tonalidades e acentos
m últiplos, o conflito entre o universal e o particular ressurge
sempre: Hegel tinha razão em dizér que a liberdade in d ivid u al
“ leva em sua fronte o ódio pela le i” ...

H oje, no direito p o lítico , triu nfa o relativism o. A le i já não


está, segundo o desejo de Rousseau, “ acima dos homens” . N o ho­
rizonte, nas brumas de um a fragmentação pluralista que alguns
pretendem “ cultural” , vemos adiantar-se e crescer, ameaçadora,
a “ crise” do direito p o lítico moderno. A questão será saber se
essa crise pode ser superada.
TERC EIRA PARTE

A crise do direito político


moderno e seus ensinamentos

N o direito p o lítico m oderno, a soberania do Estado, que


designa os princípios de suâ independência e de sua ohicom pe-
tência, rege-lhe ao m esmo tempo as características e a evolu­
ção: os reclamos da ordem e da autoridade, substituídos pelos
princípios de legalidade e de constitucionalidade, serviram pouco
a pouco às exigências básicas da cidadania e da liberdade, que
surgiram como suas seqüências necessárias. À s Constituições
da França que se sucederam a partir de 1791 fundaram e orga­
nizaram a potência do Estado, buscando efetuar um equilíbrio
entre os poderes das instâncias que governam tanto os direitos
como as liberdades dos cidadãos. Essa noção de eq uilíbrio, que
exclui tanto os abusos de autoridade do absolutism o como os
excessos de liberdade do anarquismo, constitui o eixo do Estado
liberal m oderno. N o âmago da constitucionalidade do Poder,
ela sig n ifica que o direito p o lítico , cuja função é organizar um
aparelho eficiente de órgãos e de competências com finalidade
legislativa, governamental, ju d iciária, financeira, policial, m ili­
tar, diplom ática etc., é portador dò significado filo só fic o que ó
jurislad or vincula à condição humana.
Ora, o pensamento m oderno, ao se desenvolver, colocou a
idéia de liberdade no centro de suas preocupações. A in d a que
a palavra “ liberdade” se cerque, como observava M pntesquieu,
das brumas de sua polissem ia, ela assumira no direito político,
iio século XVin, um a ressonância lím pida. Locke mostrara que
a liberdade só pode existir se a autoridade do Poder fo r contida,
se for lim itada pelo consentimento do povo e se o “ direito natu­
ral” dos indivíduos á v id a e à propriedade fo r salvaguardado e
protegido. N o mesmo espírito, M ontesquieu havia cinzelado
358 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

um a teoria do governo moderado, que considerava válid a tanto


para as repúblicas como para as m onarquias. O Estado liberal
pelo qual Sieyès clamava em 1789 se baseava em três parâme­
tros: a unidade in d ivisíve l da nação, o regime representativo e
a autonom ia dos indivíduos. O fato de a história da época revo­
lucionária, na sucessão de sua inspiração p o lítica liberal, do
Estado jacobino e das tentações cesaristas de Napoleão, ter
abalado o esquema doutrinário do prim eiro liberalism o p o líti­
co, nada tirou das exigências de liberdade dos indivíduos dian­
te da autoridade do Poder. A partir de então, inerente ao d irei­
to político, a grande dificuldade estava em manter a autoridade
do Estado soberano sem prejudicar as liberdades dos in d iv í­
duos que lhe cabe governar.
V im os que, nessa dificuldade, o espírito se choca com a
anfibologia contida pelo term o “ direito” , dividido, com o pro­
gresso da consciência m oderna, entre a sistematiçidade do ra-
cionalism o constitucionalista e as reivindicações ético-sociais
de um individualism o que, cedendo às forças do irracional,
desfigurou a idéia da liberdade. Esse fenôm eno de divisão não
podia deixar de produzir efeitos devastadores. D e fato, como as
certezas racionalistas que anim avam o direito p o lítico quando
o A ufklãrung ilum inava a m odernidade ficaram abaladas pela
descoberta de um Lebensweít às vezes desordenado mas pode­
roso, os princípios filo só fic o s sobre os quais se edificara o Es­
tado moderno foram alvo de acusações. A crítica, m ultid im en­
sional e sem concessão, atacou os próprios fundamentos do
direito político. Por cam inhos diversos, até m esmo contrários,
criticaram -no por se ter construído, segundo procedim entos
racionalistas cheios de presunção, sobre bases m etafísicas abs­
tratas que o condenaram a se fechar num idealism o cujo cará­
ter utópico devia inevitavelm ente, d iziam , gerar um a m is tific a ­
ção. O direito p o lítico m oderno fo i assim julg ad o em nom e de
ideologias m uito diferentes entre si, mas que tinham um deno­
m inador com um : a denúncia, em nom e do ind ivíd u o , em nom e
da sociedade ou em nom e da nação, do centralism o estatal que,
desde B odin, fizera a força de seu dispositivo.
Os ataques à doutrina, que m isturava pretensões filo s ó fi­
cas com considerações políticas e argumentos ju ríd ico s, foram
TERCEIRA PARTE 359

violentos e repetidos durante todo 0 século X IX . M as o histo­


riador das idéias não tem dificuldade para relatar como se opõem
entre si as diversas correntes ideológicas cujo objetivo era sola­
par os fundamentos do direito do Estado moderno. Se, logo após
a Revolução Francesa, o pensamento contra-revolucionário
buscou, de Burke a D e M aistre e D e Bonald, restaurar, contra o
hum anism o racionalista das Constituições, o direito p o lítico
natural comandado pelo provideneialism o e pelo tradicionalis-
m o, fo i contra essa “ volta às fontes” que se ergueram, ainda
que se opondo uns aos outros, tanto os liberalism os quanto os
socialism os: aos olhos de seus porta-vozes, qualquer restaura­
ção de um a ordem antiga só podia ser um a regressão. Contudo,
o desabrochar da ideologia do progresso, constantemente invo­
cada na crítica do direito p o lítico m oderno, não fo i nem fecun­
do - pois trazia nele a herança do Ilu m in ism o que, precisamen­
te, ele levava à desgraça -n e m coerente - já que invocava con­
traditoriam ente ou o in d ivid ualism o liberal ou o socialism o
planejador. A crítica doutrinária se revelou de tal m odo c o n fli­
tuosa que assum iu a feição de um torneio ideológico, no qual
os princípios filo só fic o s do direito p o lític o do Estado m oderno
acabaram passando para o segundo plano.
E m compensação, a crise endêmica que, pouco a pouco,
veio abalar e às vezes m inar os princípios fundam entais do
direito do Estado moderno suscitou, a partir do fim do século
X I X , um a perturbadora indagação filo só fic a , cujos prolonga­
m entos, em certo pensamento contemporâneo, são deletérios.
A crise de que padece o direito p o lític o proviria nada menos
que da ilusão m etafísica com que, a partir do século X V II, se
alim entou o hum anism o do pensamento ocidental. A crítica do
direito p o lítico do Estado m oderno encontraria seus m otivos
num a crise dupla: a de seus princípios, denunciados com o dog­
m áticos e inadequados, portanto m istificadores, e a de seus efei­
tos que, dizem , deixariam entrever as rachaduras de um e d ifí­
cio que não corresponde às necessidades da vid a política. Por
conseguinte, se o hum anism o do direito p o lític o m oderno não
passa de ilusão m etafísica, é porque os princípios sobre os quais
se ed ifico u envolvem um a im ensa m entira sobre a V id a e o Ser:
essa é a tese nietzschiana cuja repercussão, m isturada com os
360 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

ecos da filo s o fia de Heidegger, deixa pressagiar, depois da


“ m orte de Deus” , a “m òrte do hom em ” . Se, além disso, como
dizia Hegél, a história é o tribunal do mundo e se, em conseqüên-
cia, para ju lg a r o direito é preciso relacionar seus princípios
com a consciência do tem po, a crise do direito p o lítico m oder­
no não passa de um desabamento axiológico que acarreta a “ m or­
te do Estado” e a “m orte do direito” . O anti-hum anism o é o
antiform alism o ju ríd ic o exprim em assim o caráter paroxístico
de um a crise que, um dia, será fatal para a humanidade.
Os tons de desesperança visionária que pontuam a dem o­
lição do direito político moderno põem claramente em evidência
as falhas de que, p o r sua aplicação, ele se revela com o o lu ­
gar. M as, mesmo que as insuficiências do direito estatal sejam
reais no século X X que está term inando, isso não sig n ific a o
desmoronamento do m undo e do hom em . Sem dúvida, a racio­
nalização exagerada do direito p o lític o pode às vezes passar
por sua desvitalização. E o discurso filo s ó fic o de nossa época,
m ais p ro lixo do que nunca, nem sempre está errado ao denun­
ciar o condicionamento do hom em pela m áquina burocrática
que o devora, o desamparo dos sistemas institucionais e, corre­
lativam ente, o aumento da agressividade e do terrorism o, inte­
lectual ou físico; o reino da violência, mesmo quando perm a­
nece aquém do fenômeno revolucionário; é certamente sinal de
um a sociedade fragmentada, cujas engrenagens jurídicas já não
são adequadas para resolver ós problem as do m om ento; o es­
pectro da opressão totalitária se desenha às vezes no fin a l dos
caminhos de um direito tecnocrático qüe proviria de um a “ teo­
ria dos jogos” . .. Nessas críticas, fic a claro que Os princípios
em que repousa o ed ifício do direito p o lítico m oderno já não
têm m uita pertinência e são ultrapassados pela marcha dó tem ­
po. Eles mostrariam, portanto, um a “ cultura” Ou um a “ visão do
m undo” (Weltansschauung) atingida pela obsolescência. Desse
m odo a crítica e a crise que abalam o direito p o lítico m oderno
conduziram a que se tom e consciência de sua transformação
necessária: não só o direito p o lítico Se encontra, no Estado,
confrontado com problemâs gerados por Uma nova concepção
da “nação” , mas também atualmente vâ i além das fronteiras
estatais e, ampliando-se à escala da Europa e do mundo, é levado
TERCEIRA PARTE 361

a aperfeiçoar, até mesmo a renovar, o esquema antigo do con­


trato social e do “ federalism o” . N o plano interno bem como no
plano internacional, surgem assim questões espinhosas que
requerem um reajustamento dos conceitos e das categorias
definidos pela doutrina moderna.
Essas transformações, do direito p o lític o não são estranhas
às transformações da filo s o fia . Estas seguramente fornecem ao
pensamento do direito o ponto de apoio de um a postulação
revista, m ais bem adaptada, diante do olhar lúcido da crítica,
ao m undo atual. M as, ao mesmo tempo, como se agrava a crise
que atingiria o direito moderno, m uito especialmente quando
ele se am plia às dimensões da intem acionalidade, a crítica se
tom a por vezes tão radical que diversos autores propuseram
fu g ir para fora dos âmbitos intelectuais da modernidade a fim
de escapar de suas aporias trágicas. A ssim é que a antim oder-
nidade ou tom ou os caminhos de um a antemodemidade, evi­
dentemente problem ática na sua vo lta às fontes, ou tentou abrir
cam inho para um a pós-m oderhidade, enigm ática em razão de
suas incertezas.
Enveredarmos pelos novos cam inhos tomados pela filo s o ­
fia contemporânea va i além dos objetivos que nos atribuím os.
N ão obstante, as soluções propostas perm item , seja em sua
contribuição positiva, seja através das dificuldades encontra­
das, compreender m elhor, nas im plicações fundam entais do d i­
reito p o lítico m oderno, o que constitui ao m esm o tem po sèu
valor e seus lim ites.
N u m prim eiro m om ento, relembraremos as críticas que
abriram um a brecha no direito p o lític o m oderno e suscitaram,
com questionamento, por diversos m otivos, do princípio de ra­
cionalidade, a crise que hoje o atinge. N u m segundo mom ento,
depois de constatar as transformações do direito p o lític o que,
ao mesmo tempo, está ameaçado pelas pressões nacionalis tas e,
no entanto, se am plia à escala m undial, não sem provocar terrí­
veis fissuras na soberania até então reconhecida como a essên­
cia do Estado, investigaremos os ensinamentos dessa crise que
afeta o m undo ocidental m oderno e o alcance das soluções an-
tim odem as que foram propostas para superá-la.
C apítulo I

D a crítica à crise do direito


p o lític o m oderno: o p rincíp io
de racionalidade em questão

F oi na mesma ocasião que os princípios do direito p o lítico


m oderno se firm avam com m ais força tanto entre os filó so fo s
esclarecidos do século X V III como na obra de legislação da
época revolucionária que a crítica começou a admoestar. E n ­
tretanto, os m ovim entos contra-revolucionários dos emigrados
e dos monarquistas, m ais preocupados com ação do que com
teoria, praticamente não invocavam um a crítica filo s ó fic a refe­
rente aos princípios fundamentais ou reguladores do direito
político. A liás, longe de procurar elaborar um corpo doutrinário
unitário, a crítica contra-revolucionária assum iu o p e rfil de um a
oposição fragmentada: ora exprim ia um a “reação” essencial­
m ente po lítica que pretendia ser “restauradora” do A n tig o R egi­
m e, ora acumulava proposições de reform a governamental. E m
qualquer caso, só raramente oferecia tentativas ou mesmo reta­
lhos de análise filo s ó fic a relativos aos fundamentos do direito
político. Evidentem ente, há interesse, para a história das idéias,
de indagar, na França e fora dela, a respeito da ideologia con­
tra-revolucionária, e de buscar em seu discurso os princípios
im p lícitos nos quais ela se apóia para ju s tific a r sua oposição ou
seu ideal de “ restauração” . M as logo fic a aparente que ela cor­
responde m ais a um a vontade polêm ica do que a um a preocupa­
ção de reflexão crítica.
A crítica do direito p o lítico assumirá outra feição com as
objeções que M a rx levantará contra os P rincípios d a filo s o fia do
direito de Hegel. Entretanto, o conflito que, no cam inho assim
aberto, ergue, em meados do século X I X , as doutrinas sociali-
zantes contra o Estado e o direito burguês, edificados sobre os
364 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

princípios do humanismo moderno, se enrola muitas vezes num a


argumentação repetitiva com finalid ad e m ilitante, na qual ser
d ilu i a crítica propriam ente filo só fic a .
Sob o olhar agudo de N iètzsche se rasgará o véu das ilu ­
sões dogmáticas que, declara ele, fizeram a filo s o fia descam­
bar na ideologia e abafaram a crítica sob a polêm ica. U m a vez
afastado esse véu deformador, Nietzsche, descendo aos lab irin ­
tos subterrâneos do Estado moderno, descobrirá neles a “m enti­
ra m etafísica” que vic ia suas estruturas até em seus princípios
fundamentais. A gangrena que consome a modernidade toda se
encaminha para o abismo do nada,
O crescendo da crítica explica por si só, apesar das ton ali­
dades diversificadas que se entrechocam nele, a crise em que o
direito p o lítico moderno se afundou e fic o u atolado no curso
do século X X . M as quando, aí também , o filó s o fo exam ina as
aporias de um direito p o lítico que, a despeito de sua vontade de
progresso e de seus esforços de adequação, os jurisladores não
conseguem superar, é levado a interpretações plurais. D e Husserl
a M erleau-Ponty ou a Heidegger, de L . Strauss a H . A rendt ou
a K . Popper, a crítica, sempre virulenta, tem m uita dificuldade
para encontrar um ponto de eq uilíb rio. É preciso apreender as
razões desse “ conflito das interpretações” quando elas têm um
objetivo comum': desmontar peça por peça (“ desconstruir”) a
arquitetônica ju ríd ica do Estado m oderno a fim de colocar co­
m o réu o hum anism o, com o qual, no entanto, ele se enalteceu.

1. Os acentos polêm icos


da id eolog ia c o n tra-revo lu cio n ária

Se, quanto ao essencial, o pensamento contra-revolucio­


nário é pós-revolucionário, não obstante é necessário sublinhar
que, de um lado, não é apanágio de autores franceses e, do
outro, os doutrinários da contra-revolução reencontram e reati­
vam temas que, em seus aspectos m ais críticos, haviam sido de­
senvolvidos por toda um a tradição filo s ó fic a clássica, anterior
aos acontecimentos na França.
TERCEIRA PARTE 365

N ão está entre os objetivos deste estudo traçar o am plo pa­


norama do pensamento contra-revolucionário: esse trabalho de
história das idéias fo i realizado muitas vezes. Parece-nos m ais
oportuno destacar, nas diversas tendências que se expressam nes­
se pensamento hostil não só à Revolução Francesa, más também
à própria idéia de revolução, certo número de denominadores co­
muns que, em comportamentos intelectuais diversificados, expli­
cam as reservas e as queixas formuladas com constância contra
os princípios filosóficos do direito político moderno.

A ) A oposição ante-revolucionária
ao direito p o lític o moderno

A s reservas e as oposições formuladas contra a arquitetura


jurídica do Estado moderno procedem de um estado de espírito
que a noção de conservadorismo pode resumir, com a condição
de não a sobrecarregar, em sua m ultivalência, com o sentido pe­
jorativo que atualmente se lhe atribui com tanta facilidade.
M u ito antes de os homens da Revolução elaborarem, para
a França do futuro, um direito p o lítico que atendesse aos prin ­
cípios do hum anism o racionalista, leigo e liberal dos Tempos
M odernos, o apego aos fundamentos teológicos do direito p o lí­
tico e aos costumes ju ríd ico -p olítico s consolidados pela histó­
ria tinha defensores ardentes. Com o não evocar aqui prim eiro a
discussão na qual se opuseram, a partir da prim eira metade do
século X V I, o conde de B o u lain villiers e o abade Dubos, e de­
pois os argumentos anti-racionalistas desenvolvidos por H um e
e Herder contra a modernidade jurídica?

A discussão entre B o u lain villiers e Dubos

E m 1708, o conde H enri de B o u lain villiers (1658-1722),


em suas Cartas sobre os antigos Parlam entos da França que se
nom eiam Estados gerais', se indagara - como historiador m ais

1. A p rim eira versão dessas “ cartas” data de 1708; um a p rim eira edição
fo i lançada em 1727, m as sua edição d e fin itiva é póstum a e data de 1753.
366 OS PRINCÍPIOS FILOSÓFICOS DO DIREITO

do quê como ju rista ou filó s o fo - sobre a origem do Poder e


sobre o princípio de sua legitim ação2. Opondo-se acirradamen-
te a Bossuet, ãcusava-o de ter, em sua P olítica extraída da
H is tó ria sacad a, utilizado os Textos sagrados para defender o
aumento da autoridade dos reis e aprovar que se colocassem
correntes nos homens a fim de entravar sua liberdade naturâl.
Invocando a obra prodigiosa de Carlos M agno, B o u lain villiers
buscava os princípios do direito p o lític o na vontade de afirm a­
ção dos Parlamentos, cuja função era, a seu ver, im pedir, com
o apoio da nobreza, as tentações absolutistas do Poder real.
Pleiteando a reunião dos Estados gerais (que não tinham sido
convocados pelo rei da França desde 1614) e sublinhando as
virtudes dos Parlamentos, ele se fazia o defensor dos direitos
de um a nobreza das armas que, firm em ente arraigada na histó­
ria já que descendente dos invasores francos, m ergulhava suas
raízes na sociedade e no direito germânicos.
Entretanto, em 1734, o abade Dubos, em H is tó ria crítica
do estabelecimento da m onarquia francesa na G á lia , replicava
a B o ulain villiers, bem como, aliás, ao Judicium Francorum de
L a Roche-Flavin, publicado dois anos antes. E le fazia de C lóvis,
respeitador das instituições romanas im plantadas na G ália, o
pai fundador do direito da m onarquia francesa. E xplicava que
a autoridade dos reis da França tinha como única m atriz a auto­
ridade dos Césares, de tal form a que nela sempre se v iu se aliar,
sustentava ele, a burguesia e o rei, m uito decididos a lutar con­
tra os “ direitos” d e um a aristocracia nobre que D ubos denun­
ciava como p rivilégios usurpados.
Se a discussão entre os dois autores teve grande repercussão
na sua época3, fo i porque representava o choque das tendências
no espírito da época. D e um lado, o m ovim ento do Ilu m in ism o
se am pliava: M ably, Voltaire, os Enciclopedistas, os Fisiocratas
e outros aderiam ao hum anism o esclarecido pelas palavras de

2. H enri de B o u la in villie rs iria igualm ente publicar, em 1732, Précis


historique de la monarchie française e, no m esmo ano, Essai sur la noblesse.
3. M ontesquieu o m enciona no L ’esprit des lois, liv . X X X : criticando
B o u la in villie rs, nem por isso aceita a tese de Dubos e lam enta a parcialidade
demonstrada pelos dois adversários.
TERCEIRA PARTE 367

ordem de um a razão legislativa que os “ filó so fo s” pretendiam


pôr a serviço da ordem pública e da liberdade dos cidadãos. D o
outro, as idéias conservadoras que Fénelon. expressara nas suas
célebres Aventuras de Telêmacó, bem comò o apego m anifesta­
do pelo duque de Saint-Sim on à polissinodia, m antinham adep­
tos fervorosos de um a eoneepção do direito e da p o lítica que
encontrava sua justificação, no passado, na história, m àis do
que, no futuro, num progresso que julgavam problem ático.
N e m sempre sabendo, os turiferários de um direito p o líti­
co arraigado num a tradição que, segundo eles, era im portante
salvaguardar de tudo e contra tudo, aproxim avam -se dos prin ­
cípios filosóficos de que H um é e Herder, porta-voz de um a “rea­
ção” ante-revolucionária, faziam a base de sua reflexão p o lítico -
jurídica.

O anti-racionalism o de H um e e de H erder

A s observações um tanto dispersas que H um e dedica em


sua obra ao direito e à p o lític a estão longe de fazer dele um teó­
rico exem plar da filo s o fia do direito p o lítico 4. M a s sua crítica,
como que por antecipação, do tema contratualista tal como Rous-
seau desenvolveria em 1762, sua defesa do costume e da tradi­
ção, sua tese da legitim ação do Poder por sua longa posse5, seu
“ conservadorismo reform ador” 6 prudente e moderado que nu-

4. Podem os contudo reportar-nos a várias obras de D a vid H um e para


apreender o sentido de sua concepção do direito p o lític o , não sem observar
que ela conservou, ao longo de toda a vid a de H um e, um interesse suficiente
para que ele tratasse desse problem a em numerosas ocasiões. C f. Tratado da
natureza humana, liv . H l, 1740; Ensaios políticos, 1741-1742; Discursos po­
líticos, 1752; Investigação sobre os princípios da moral, 1751; H istória da
Inglaterra, 1754-1756; Três ensaios morais e políticos (em especial, D o con­
trato original), 1748; D a origem do governo, 1774 (publicado na ú ltim a edi­
ção dos Ensaios, em 1777).
5. C f. Sim one G oyard-Fabre, H um e et la critique du contrat social. Es­
quisse d ’une théorie de P institution, Revue de métaphysique et dé morale, 1988,
3, pp. 337-63.
6. R aym ond P o lin , Introdução a Essais politiques de Hume, V rin , 1972,
p. 21.
368 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

triu com lições da história, etc., são temas que dizem como, no
seu em pirism o, H um e cerca de ceticism o a racionalidade triun­
fante que, do outro lado da M ancha, se estende pelo continente.
Recusa igualm ente as tentativas de explicação das m etam orfo­
ses do Poder apresentadas por Bolingbroke em termos de p si-
cologismo e propostas por Harrington em termos de economia; na
contramão das idéias “progressistas” de seu tempo, considera
que esses esquemas, não passando de reconstruções a rtificiais
da realidade p o lítica e ju ríd ica, elaboram normas que transfi­
guram - ou desfiguram - a experiência e a vida. H um e denun­
cia assim a postulação dogmática abstrata na qual se apoiam
tanto a pretensão de cientifieidade que inspira as teorias ju ríd i­
cas “ modernas” de G rotius e de Hobbes, como a vontade m eta­
física de P ufendorf e de Locke: de fato, quando esses autores
“ estabelecem” as estruturas constitucionais da sociedade c iv il
com base em premissas individualistas, cometem o erro, d iz
Hum e, ainda que como filo so fia s de inspirações divergentes, de
reduzir a existência ju ríd ic o -p o lític a , segundo procedimentos
especulativos, a simples “ fórm ulas” destituídas de substância.
O anti-racionalism o que H um e apóia graças à sua filo s o ­
fia das paixões encontrará na Inglaterra um eco relativo nos
projetos reform istas da “ doutrina u tilitária” exposta, algumas
décadas m ais tarde, por Jeremy Bentham em Introdução aos
princípios de m oral e de legislação1. Entretanto, Hum e se apro­
xim a sobretudo, em grande parte sem se dar conta, da “reação”
alemã contra o Aufklärung. Este se expressava, costumava-se
dizer, na Popularphilosophie e no Sturm und D rang que, defen­
dendo ambos, com ím petos inflam ados, a crença, o sentim ento
e a paixão, inçlinavãm -se, em m atéria política, para um a litera­
tura do desmedido e do irracional, depreciadora da le i e apologis­
ta do nacionalism o. Assinalou-se menos que toda um a linhagem
de juristas se opunha tam bém de m aneira m uito vigorosa ao

7. A s intenções inseridas por Bentham em Introdução aos princípios d


m oral e de legislação (obra publicada em 1789) estão transparentes em Os
sofismas políticos (1795) que são um a denúncia, no estilo irônico, da filo s o ­
fia dos “ direitos do hom em ” .
TERCEIRA PARTE 369

racionalism o ascendente8. Entre eles, Georg Achenw all, in fluen ­


ciado pela idéia de prudentia c iv ilis professada no século pre­
cedente por H . C onring na Universidade de G öttingen, expri­
m ia, sem o ardor dos literatos e poetas, a desaprovação com
que cercava as teses do racionalism o ju ríd ic o cara aos E n c i­
clopedistas franceses. E le lhes contrapunha a idéia de um direi­
to p o lític o dependénte do conhecimento concreto dos Estados
e de sèus costumes9. Por temperamento, H üm e não era próxim o
dos Stürm er. A lé m disso, em m atéria po lítica, era m ais histo­
riador do que ju rista e provavelmente não conhecia A chenw all.
E m compensação, sua coincidência com as idéias de Justus
M öser e de Herder é im pressionante10.
Hum c, falecido em 1776, não pôde conhecer às obras pu­
blicadas por Herder. M as a consonância dos temas desenvolvidos
pelos dois filó so fo s é representativa do m ovim ento de idéias
que se opõe então ao racionalism o do Ihuninism o. O valor atri­
buído por um povo às crenças, à rehgião, à língua, às instituições,
à tradição, aos costumes, à história etc., constitui, segundo eles,
a originalidade criativa do espírito nacional. D izendo isso, to­
m am um a am pla distância das teses, do universalism o abstrato
e teórico que o hum anism o “ esclarecido” desenvolve. Conside­
ram que, num Estado, o bom legislàdor é apenas aquele que
sabe respeitar a contribuição indelével da tradição. Por m ais d i-

8. Sobre esse aspecto da teoria ju ríd ic a alemã, ver Pascale Pasquino, Po­
litisches und historisches Interesse “Statistik” und historische Staatslehre bei
G. Achenwall, m Aufklärung und Geschichte, G öttingen, 1986, pp. 144-68.
9. Georg A chenw all, Staatsklugheit, G öttingen, 1761.
10. Justüs M öser (1720-1794) era advogado; cuidava da adm inistração
de Osnabrück e, interessando-se pela história de sua cidade, publicou em 1780
um a H istória de Osnabrück. Johan G ottfried vo n Herder (1744-1803) p u b li­
cou duas grandes obras: em 1774, Uma outra filo so fia da história e, d e l 7 8 4
a 1791, Idéias para uma filo so fia da história da humanidade. Sobre Herder,
cf. M a x Rouché, La philosophie de l ’histoire de Herder, B elles-Lettres, 1940;
Introdução à tradução de Auch eine Philosophie der. Geschichte zur Bildung
der Menscheit, sob o títu lo Une autre philosophie de l ’Histoire, A u b ie r-M o n ­
taigne, s.d.; Roger A yrau lt, La genèse du romantisme allemand, 1.1, A ub ier-
M ontaigne, 1961; Isaiah B e rlin , Vico and Herder. Two Studiesin the History
o f Ideas, Londres, 1976.
370 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E ITO

ferentes que tenham sido as “ filo so fia s ” de H um e e de Herder,


esses autores, por seu estado de espírito, racham o m onism o
característico do racionalism o do Ilu m in ism o . Com o recusam
o gosto pela abstração e a tendência a p rivileg iar as generalida­
des menosprezando o peso das individualidades, são sensíveis
ao valor que assumem, na alm a nacional, os preconceitos e o
sentimento de religiosidade. Portanto, para eles, a in te lig ib ili­
dade da p o lítica e do direito só é possível por referência a con­
figurações mentais que nada pedem ao orgulho racionalista.
Portanto, parece que, já em meados do século X V III, um
pensamento das sombras, que ju lg a falaciosas as clarezas de
que se jactava m uito particularmenté o Ilum inism o francês, con­
sidera que a autonom ia da razão está longe de ser a norm a da
qual depende a validade do direito político. U m pouco m ais
tarde, a volta da tradição e a explosão das esperanças que, re-
trospectivàmente, podemos qualificar de “pré-rom ânticas” , en­
trarão até nos debates das Àssem bléias revolucionárias. Esse
fenôm eno, longe de ser desprezível, demonstra a insatisfação
dos espíritos diante das reivindicações de um a razão onipre­
sente. D e fato, as tensões e as ambigüidades da racionalidade
que, não sem contradição, se m ostra nos im pulsos passionais e
que, no desenrolar do acontecimento revolucionário, chegará
às vezes a traduzir-se por seu contrário, fazem nascer a incerte­
za e á suspeita sobre os dogmas do Ilu m in ism o . Essa suspeita
segrega uma “reação” que, mesmo quando não fica inebriada
com o “ discurso da sombra” 11, dá provas dos ím petos de um a
consciência histórica m ovida pelo sentim ento e pela empatia.
A s reservas manifestadas de H um e a Herder para com um
direito p o lítico que, nascido dos cálculos da razão, desenca­
deou o culto racionalista da le i, não tiveram dificuldade em se
transform ar num a oposição m uito polêm ica. A o desmentido
passional que os Stürm er dirigiram aos A ufklärer, se sobrepôs
um a crítica sistemática dos princípios que a Revolução France­
sa teria extraído da filo s o fia do Ilum inism o.

11. A expressão é de Georges G usdorf, Naissance de la conscience ro


mantique au siècle des Lumières, Payot, 1976, p. 39.
TERCEIRA PARTE 371

B )A “reação” contra-revolucionária

Sustentar que o acontecimento revolucionário que marca,


na França e na Europa, o fim do século X V I I I é conseqüência
do m ovim ento do Ilu m in ism o é, claramente, um a tese em inen-
temente sim plificadora procedente de um a inform ação ao mes­
m o tempo insuficiente e inexata. N enhum historiador e nenhum
historiador das idéias aceitam hoje um julgam ento assim. E n ­
tretanto, ainda que fosse aproxim ativa e tendenciosa, essa m a­
neira de apreender a Revolução Francesa explica em m uitos
aspectos o am plo m ovim ento de crítica que, das prim eiras in ­
tuições do rom antism o p o lítico à doutrina da Escola histórica
do direito, combateu as pretensões da razão que m ilitava para
construir um a ordem de direito sobre as bases do intelectualis­
m o a rtificialista e universalista cujo lugar por excelência é a
corrente do Ilu m in ism o . À q u ilo que Rehberg logo considerará
um a “p olítica especulativa” apoiada num direito público form al
anim ado pelo, “ espírito de geometria” , se oporão, logo após á
Revolução, os princípios de um a ordem ju ríd ic a ligada à tradi­
ção e à experiência histórica dos séculos. D e Burke a Rehberg
e de G entz á Savigny, a “reação” contra-revolucionária, ado­
tando vias filo só ficas diferenciadas, instruiu com um a severi­
dade taxativa o processo da racionalidade jurídica.

A s Reflexões de Burke

Já em novem bro de 1790, Edm und Burke (1729-1797)


inaugurou, com suas Reftections on the Revolution in Frdnce12,
o am plo m ovim ento de oposição ao novo direito p o lítico elabo­
rado pelas Assembléias revolucionárias. Essa obra é um trabalho

12. Salvo m enção expressa, referim o-nos à tradução francesa fe ita por
P hilip p e Raynaud, R éflexions sur la R évolution de France, Hachette, P luriel,
1989. A propósito de Burke, ver Léo Strauss, in D ro it naturel et histoire, cap. V I,
b, (1953), trad, fr., P lon, 1954; Hannah A rendt, Essai sur la Révolution (1963),
trad, fr., G allim ard, 1967; M ic h e l G anzin, La penséepolitique d ’Edmond Burke,
LG D J, 1972; C. B . Macpherson, Burke, O xford U niversity Press, 1980; M a rily n
B utler (ed.), Burke, Paine, Godwin and the Revolution Controversy, Cam bridge
U n ive rsity Press, 1984.
372 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de circunstância, mas as críticas que contém têm origens lo n ­


gínquas, pois o próprio Burke d iz ter tid o m uita desconfiança,
desde a prim eira viagem que fez à França em 1773, pará com
as idéias políticas, econômicas e religiosas que então eram ven­
tiladas nos salões de Paris: o contrato social, o constitucionalis­
m o, a generalidade da le i, a reform a das instituições, a fisiocrá-
cia, a laicidade, os direitos do hom em etc. Deputado w hig na
Câmara dos Com uns, adotou aS grandes causas do liberalism o
p o lítico ; defendeu, contra os abusos da Coroa, ôs direitos do
Parlam ento e lutou contra todas as form as de injustiça; argu­
m entou em favor dos Insurgentes da Am érica qüe se levanta­
ram contra a Coroa da Inglaterra; denunciou os abusos perpe­
trados nâs índias pela colonização, ergueu-se contra as fraudes,
lu to u contra a corrupção eleitoral etc. Só qué ele se pretendia,
acima de tudo, realista: declarava em alto e bom som detestar a
m etafísica, as idéias gerais, as abstrações filo só ficas e â razão
raciocinante13. Com u m bom senso repleto de em pirism o, sem­
pre considerou que as condições particulares tinham m ais im ­
portância do que os grandes princípios teóricos e as especulações
dos filó so fo s, que não hesita em qualificar de “ sofistas tagare­
las” . Exam inando os problemas da p o lítica inglesa, recusou-se
cónstantemente a procurar a solução deles no form alism o ju r í­
dico racional e no dogmatism o leig o dos filó so fo s franceses. O
direito p o lítico , declara ele, não poderia provir dó pensamento
abstrato e generalizador, que se baseia no axiom a necessitarista
e se perde num universalismo utópico. Com o M ontesquieu, pen­
sa que as leis de que um a nação necessita devem corresponder
ao espírito de seu povo, a seus costumes, à sua religião., à sua
vid a interior etc., em suma, à sua individualidade concreta.
Com o Thom as Paine14, valoriza a ordem tradicional em que se
reflete a natureza específica de um povo e denuncia o artificio

13, N um discurso de 1775, B iirke já declarava: “N ão quero entrar em


discussões m etafísicas, detesto-as.” E m outrò lugar, exclama: “ Q üe pena, o que
podem as especulações teóricas contra os fatos?” . E , quando da Declaração
da Independência dos Estados U nidos da A m érica, escreveu que o problem a
dos direitos é, a seu ver, despido de interesse.
14. C f. Thom as Paine, The Common Sense, 1776.
TERCEIRA PARTE 373

da ordem racional, que tem a frieza da im pessoalidade; elogia


o espírito de cavalaria15 que a aridez da razão fez desaparecer.
O legado recebido, a Constituição antiga de um povo, o costu­
me, as crenças etc., são a substância de um a sabedoria prática cuja
im agem calorosa a Inglaterra, diante do constm tivism o e das
especulações gélidas do espírito francês, apresenta a seus olhos.
Burke não se lim ita , contudo, à análise de u m estado de
espírito que constituiria a diferença entre a Inglaterra insular e
a Europa continental. N ão é jurista, mas sua experiência p o líti­
ca no Parlam ento e suas idéias de w hig “ avançado” revelaram,
m uito antes da Revolução da França, sua proxim idade com as
teses de H um e e de Herder. Sempre acreditou na força das tra­
dições veiculadas pela história das nações; atribui im portância
prim ordial ao papel dos costumes e dos precedentes e, como
confere m uito valor à jurisprudência, considera que as regras
do direito, tanto público quanto privado, só têm eficiência pelo
realism o prudente que os lig a à experiência de cada povo. Tudo
o m ais é sofism a.
A ssim se explicam não só sua cólera contra o discurso do
Dr. Price, elogiando, em novem bro de 1789, a Revolução Fran­
cesa, mas tam bém a severa crítica da Assem bléia C onstituinte
francesa que ele lança na Câmara dos Com uns algumas sema­
nas m ais tarde e de que sairá, em 1790, a obra densa que cau­
sou sua celebridade tom ando-se “ o breviário da Contra-Revo­
lução ocidental” 16. Tendo proposto um a leitura conservadora
da G lorious R evolution de 1688, considerada um a restauração
da hereditariedade do rei e do pariato consagrado pelo direito
antigo, levanta-se com um a viru lên cia im pertinente e repetiti­
va contra os princípios filo só fic o s da Revolução Francesa que
ele assim ila aos temas filo só fic o s do Ilu m in ism o . O racionalis-
m o deles, em todas as suas expressões - o individualism o, o pro­
gresso, a ordem, a igualdade, a laicidade etc. - , tem a “nudez de
um a abstração m etafísica” . E m tom o desse leitm otiv, ele d ilu i
o discurso de um panfletário atacando os direitos do hom em ,

15. Edm ond Burke, Réflexions sur la Révolution de France , p. 96.


16. J. Godechot, La contre-Révolution, P U F, 1961, p. 65.
374 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

“m ina preparada sob a terra” , cuja explosão, a curto prazo, fará


ir pelos ares tudo o que a história conquistou pacientemente:
as virtudes dos grandes exemplos, òs usos, as cartas, as leis do
Parlamento. Pretender que os homens têm “ direito” à liberda­
de e à igualdade é a opinião dos “ niveladores” que ignoram , ao
mesmo tempo, a pluriform idade da liberdade e “ os níveis e as
diferenças” que a natureza e a história estabeleceram em qual­
quer sociedade. N inguém pode amar nem sequer respeitar a
sim plicidade e a im pessoalidade dessas instituições “ geom étri­
cas” que tendem à democracia: a Constituição de um Estado
não é “ um problem a de aritm ética” . Burke denuncia, por con­
seguinte, a desnaturalização daquilo que é natural pois, repete
ele, a natureza não tem a universalidade abstrata de um a idéia
geral: aquilo que é natural em um povo reside naquilo que a
história e o legado dos séculos inseriram na particularidade
concreta das situações que ele vive. Burke denuncia tam bém a
depreciação raciónalista dos “preconceitos” : eles, ao contrário,
tiram o valor, sustenta ele, do “ instinto” m odelado pela história
em cada povo17. Portanto, fazer tábula rasa do passado, como
querem aqueles que, diz Burke, se consideram cartesianos, é “ in ­
sultar a natureza” . D a mesma form a, longe do programa ju ríd i­
co-político que os filó so fo s elaboraram na França, Burke louva
os m éritos da Common Law , feita da prudência adquirida ao
longo do tempo. Encontra a legitim idade dos príncipes do d i­
reito político na hereditariedade da Coroa e na continuidade da
história. E m seu conservadorismo - que, contudo, nada tem de
im ob ilism o - declara-se h o stil ao voto popular, que ju lg a iluso ­
riamente fundamentado na “idéia m etafísica de vontade geral” .
Se aprova o regime representativo cujo m odelo, acha ele, a Cons­
tituinte encontrou na Inglaterra, nem por isso deixa de fustigar-

17. Burke se aproxim a exatam ente de Herder: “ O preconceito é bom , no


seu tempo, porque deixa fe liz . Traz os povos de vo lta ao seu centro, prende-os
com m ais solidez à sua base, tom a-os m ais florescentes segundo seu próprio
caráter, m ais ardorosos e, por conseguinte, tam bém m ais felizes em suas ten­
dências e suas metas” (Une autre philosophie de l ’histoire, trad. fr., A u b ier-
M ontaigne, s.d., p. 185). N u m tom idêntico, M aurice Barrés dirá que os pre­
conceitos de u m povo o “m antêm quente” .
TERCEIRA PARTE 375

lhe os “princípios” que, sim bologia fabricada no abstrato por


um intelecto que pretende reconstruir a ordem social segundo
esquemas universais, deixam de lado a contingência e a relati­
vidade da experiência nacional.
Pode-se dizer que. Burke inverte a doutrina de Rousseau
que, segundo ele, inspirou inteiram ente a Revolução Francesa:
ao contrário da Revolução Inglesa de 1688, que preservou a Cons­
tituição do reino, a Revolução da França só teve o objetivo de
tum ultuá-la: fo i esse o seu grande erro18.

A crítica da Constituição francesa:


Brandès, Rehberg e Gentz

Quando F. G entz traduziu para o alemão o livro de Burke,


Rehberg v iu nele os tons proféticos da Contra-Revolução. A
seu ver, os “ direitos do hom em ” proclamados tão alto pelos
homens da Revolução são, segundo a expressão, perturbadora
de Burke, “m oral e politicam ente falsos, mas verdadeiros m e-
tafisicam énte” e, sobretudo, a obra ju ríd icá da Constituinte e da
Legislativa sofreu as consequências dessa filo s o fia desnatura­
da que o m itiu nada menos do que os “ lim ites da sim ples ra­
zão” . Toda um a corrente do pensamento alemão é tragada por
esses ju íz o s 19. E la se aproxim a, para além de Burke, das idéias

18. O liv ro de Burke, como era de esperar, d iv id iu os membros do Par­


lam ento britânico é, coisa m ais surpreendente, os próprios whigs; suscitou
réplicas veementes de Thom as Paine {The R ights o f M an), de M a ry W o llsto -
necrafl (A Vindication o fth e Rights o f M an) e de M ac Intosh {V indiciae
G allicaé). N ão obstante, ele teve n a Inglaterra um a acolhida de m odo geral fa­
vorável. A prevalência do m undo v iv id o e da tradição sobre o poder constru­
to r da razão atrairá, m ais perto de nós, a reflexão crítica de H . A rendt e de G .
Gadamer.
19. Num erosas revistas publicaram resenhas da obra de Burke. A ind a
que Georges Forster, bibliotecário do biSpo de M ogúncia e correspondente de
K ant, tenha-o ju lgad o severamente, a m aioria dos professores da U niversi­
dade de H anover em G õttingen, leitores aplicados de M õser e de Herder e
hostis ao despotism o esclarecido, foram favoráveis às idéias de Burke. F rie -
drich vo n G entz traduziu a obra já em 1791; fo i um grande êxito editorial. N as
suas pegadas, Gõrres, Brandès e Rehberg elaboraram um a Verdadeira doutrina
da Contra-Revolução.
376 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de Herder e das intuições de H unte para declarar que, sob a in ­


fluência do racionalism o do Ilu m in ism o , o direito político se
extraviou. A iniciativa juríd ica revolucionária, tendo rom pido a
longa cadeia das tradições e da história, não podia ser, como
pretendia, progressista e emancipadora. M u ito pelo contrário,
dava in ício ao declínio m ortal da ordem social e do direito. N em
podia ser de outra form a, já que desprezava 0 terreno da histó­
ria no qual se enraíza a validade das instituições20.
A ugust W ilh e lm Rehberg (1757-1836) não adota nas suas
Untersuchungen über die Französische R evolution (Pesquisas
sobre a Revolução Francesa)21 os tons polêm icos ou a ironia cor­
tante de Burke; desenvolve, com o ju rista m eticuloso, um a crí­
tica sistemática da Constituição francesa de 179122, deplorando
“ os princípios m etafísicos” que ela invoca. Aprova o colega e
am igo Georg Brandès por ter criticado, em suas Considerações
p o líticas sobre a Revolução Francesa, escritas já em 1791, antes
da leitura do livro de Burke, a obra da C onstituinte e da Legis­
lativa. Brandès, como publicista, se indaga sobretudo a respeito
da questão constitucional tal com o ela se apresentava na Fran­
ça23. E m sua análise, separa-se de Burke e considera que, como
as leis constitucionais da antiga França eram defeituosas, deviam
inevitavelm ente, mais dia menos dia, ser mudadas. Com efeito,

20. A s palavras de Burke num Discurso na Câm ara dos Com uns em 7 de
m aio de 1782, im pressionaram m uito, ao que parece, os espíritos: “A ciência
da jurisprudência, que é o orgulho da inteligência hum ana [ ...] é a razão reco­
lh id a ao longo das eras; ela com bina os princípios da ju stiç a p rim itiva com a
variedade in fin ita dos interesses hum anos.”
21. A obra (2 vo ls .) fo i publicada em H anover e em Osnabrück em
1793; o prefácio tem a data de 4 de setembro de 1792. N ão existe tradução
francesa. A respeito de Rehberg, cf. U . V o g ei, Konservative K ritik an der
bürgerlichen Revolution. A. W. Rehberg, Darm stadt-N euw ied, 1972.
22. Éssa crítica, escrita em 1792, é anterior - o que merece ser assinala­
do - ao episódio do Terror.
23. U m a segunda obra de Brandès, D e certaines conséquences de la
R évolution française dans ses rapports avec l 'Allem agne, publicada em 1792,
é m ais “p o lític a” . N ela o ju íz o de Brandès é ferozm ente h o s til ao aconteci­
m ento revolucionário, ! ideologia por ele veiculada e à propaganda, conside­
rada perigosa para a A lem anha, que o acompanhava.
TERCEIRA PARTE 377

explica ele, o rei da França era outrora o ú nico detentor do po­


der de legislar; por isso, o povo não devia deixar de considerar,
ainda que por interm édio de seus deputados nos Estados Gerais,
que estava condenado a um a submissão passiva, já que não lhe
era concedida participação algum a nos assuntos políticos do
país. N a França - diferentem ente do que ocorria na Inglaterra -
o fenômeno revolucionário era inevitável. M as, prosseguia Bran-
dès, a Revolução, ao dar um a nova Constituição à França, se
enganara seriamente: não só, sem discernim ento e por falta de
cultura jurídica, “ destruiu-se tudo antes de saber o que se coloca­
ria no lugar” , mas também os homens que form aram a Assem ­
bléia constituinte utilizaram çonfusamente os chavões extraídos
de Rousseau, do exem plo nòrte-am ericano, do Ilu m in ism o , da
Fisiocracia etc. “Não se pode deixar de encarar essa Constituição
como um a experiência m etafísica que cai m uito bem na espe­
culação, mas da qual não se pode;esperar m uito que a tentativa,
tal como é feita, adquira um a consistência duradoura na reali­
dade.” 24 Rehberg envereda pela mesma v ia e sua obra participa
da “ literatura de historicidade” que já fo i exposta de Herder a
Brandès. M as, se exalta o valor da nação, da tradição e da língua,
se elogia a capacidade de ação contida nos preconceitos porque
se opõem à generalidade das idéias da razão, se sublinha o que a
ordem espontânea, a produtividade e a m udança têm de p o liti­
camente fecundo, não se lança num patos anti-revolucionário
alim entado por temas românticos com os quais se encantará a
ideologia conservadora da antim odem idade.
Rehberg certamente hão cala sua ressalva ao fervor igua­
litá rio que anim a o pensamento dos direitos do hom em ; ele é,
diz, repleto de hipocrisia em razão de seu universalism o abstra­
to e, por seu construtivism o, só pode gerar para os cidadãos a
ilusão de sua emancipação: “ N ão é da razão - enquanto princí­
p io de ordem e de intelig ib ilid ad e universais - mas da observa­
ção do m undo que se podem deduzir as leis de um Estado.” 25

24. G itado por Jacques Godechot, La C ontre-Révolution , op. c it., p. 123.


25. Rehberg, Recherches sur la révolution française, I, p. 1 2 (citad o p o r
Pascale Pasquino in F . Châtelet, O. D uham el, E . Pisier, D ictionnaire des oeu­
vres politiq ues, P U F, T. ed., 1989, p. 856.
378 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

M as Rehberg é menos filó s o fo do que jurista: assim, é à dou­


trina de A chenw all que ele se reporta para assinalar o caráter
praticamente quim érico e teoricam ente errôneo da Declaração
dos direitos do homem e do cidadão que, por suas “ m áxim as
gerais” , só teria sentido, segundo ele, num a “república platôni­
ca” que não é deste m undo. A lé m disso e sobretudo, ele critica
o m al-entendido que os revolucionários franceses inseriram no
term o “Constituição” : baseando-o nos conceitos de vontade ge­
ral e de soberania nacional26, esvaziaram-no do valor substancial
que “ as leis fundamentais” haviam conferido aô príncipe m o­
nárquico enquanto Constituição não escrita arraigada na longa
duração. A ssim , Rehberg se aproxim a de Burke, von Stein, G.
de H um boldt e, embora num outro registro, de Bentham , para
pensar que a infelicidade estava inserida na esteira da C onstitui­
ção escrita: “A m etafísica destruiu a m onarquia francesa.” 22
Esse é o leitm otiv constantemente repetido pelos autores da
Contra-Revolução que acusam especialmente Sieyès de perm i­
tir, com seu conceito do cidadão, com suas idéias da representa­
ção e da Onipotência da Assem bléia N acional, com sua recusa
das leis fundamentais e da prerrogativa real, etc., que fosse in ­
troduzida na Constituição a anfibologia fatal que a priva de
qualquer referência substancial e prudente para m ergulhá-la nó
prosaísmo e no form alism o do vazio. Essa ideologia conhece na
Alem anha um crescendo n ítid o nas M em órias com as quais
Gentz, em 1793, acompanha sua tradução das Reflexões de Burke

26. Poder-se-ia pensar que Rehberg visa particularm ente ao D iscours


sur la C onstitution de la France pronunciado por Saint Just na Convenção em
2 4 de ab ril de 1793, no qual, apesar de seu antí-rousseaunism o, o orador
declarava que as idéias do povo como um corpo de inalienabilidade da vonta­
de geral, de ind ivisib ilid ad e da soberania etc., são os pilares do direito p o líti­
co da nova França. Á s datas obrigam a descartar essa interpretação polêm ica.
E m compensação, a Constituição de 1791 e o projeto de Constituição apre­
sentado por Condorcet em nom e da Com issão de Constituição já com porta­
vam esses mesmos temas - aos quais Rehberg acrescentava a consagração do
interesse com um , a crítica do individualism o, a defesa do voto universal e a
m áxim a da subordinação dos m inistros à representação naCiünâl. O ju rista
que era Rehberg não o ignorava.
27. Rehberg, op. c it, 1.1, p. 5. .
TERCEIRA PARTE 379

e, em 1794, sua tradução das Considerações sobre a Revolução


da França de M a lle t du Pan. A sucessão dos acontecimentos da
França pode explicá-lo: a queda da realeza, a proclamação da
república, os massacres de setembro, a influência de Robespierre
quando da Convenção Jacobina, o Terror por fim .
Entretanto, G entz, no alvorecer do século X I X , se dedicará
sobretudo, ao criticar o Ensaio sobre a p a z perpétua de Kant28, a
aprimorar a idéia européia de equilíbrio que M ettem ich adotará.
O problem a do direito político, longe das controvérsias constitu­
cionais suscitadas pela Revolução, ultrapassa assim as fronteiras
do Estado. A o mesmo tempo, o debate, até então p olítico e ju r í­
dico, é levado ap terreno específico da filo s o fia do direito: con­
tra a doutrina que adquirimos o hábito (contudo discutível) de
designar como a do “jusnaturalism o moderno” , que será invoca­
do pelo novo direito político francês para ju stific a r a religião da
le i e o culto dos direitos do hom em, eigue-se a Escola alemã do
direito histórico que, de certa maneira, resgata para si diversos
filosofem as do pensamento contra-revolucionário.

C ) A escola do historicism o

A obra de Savigny

Apesar da im portância de sua obra, Friedrich K a rl v o n Sa­


vigny (1779-1861) é um autor bem pouco conhecido na França29.

28. F . von G entz, D e la p a ix perpétuelle (1800), tradução e apresentação


de M . A oun, Thésaurus de philosophie du droit, Paris H , Duchem in, 1996.
29. Assinalem os entretanto as poucas páginas que lhe consagrou Eugène
Lenninier, Introduction à l ’histoire du droit, Paris, 1829 e o Essai sur la vie et
les oeuvres de M . de Savigny, Paris, 1842. A segunda parte da recente obra de
A lfre d D ufour, D roits de l'hom m e, d roit naturel et histoire, P U F , 1991, ofere­
ce um belíssim o estudo do pensamento de S avigny e, de m odü m ais am plo, da
Escola histórica alemã. C f. iguahnente A . D ufour, D ro it et langage dans l ’École
historique du droit, Archives de philosophie du d ro it, 1974, pp. 158 ss.; L ’his­
toire du droit dans la pensée de Savigny, Archives de philosophie du droit,
1984, pp. 227 ss.; Jean-Marc Trigeaud, D u droit naturel dans la rom anistique
savignienne, S c rittiA . G aurino, Nápoles, 1984, p. 3565.
380 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Seria m uito evidentemente tendencioso e falso apresentá-lo e o - .


m o um adversário declarado do direito p olítico edificado pelos
revolucionários franceses. O projeto que ele concebeu aos vinte
anos de idade não era de polêm ica político-jurídica, ainda que a
crítica ocupe nele um lugar não desprezível; seu projeto era, de
maneira explícita, o de “reformar a ciência do direito” . Esse pro­
jeto, concebido contra o espírito geral do Aufklärung, precisâ-se
em dois textos fundamentais: o panfleto que Savigny publica em
1814 sob o títu lo Vom B e ru f unserer Z e it Jur Gesetzgebung und
Rechtswissenschaft30 e o artigo programático “ Über den Zweck
dieser Zeitschrift” com que se abre o prim eiro volum e da Zeitsch­
rift fü r geschichtliche Rechtswissenschaft de 181531.
O Vom B e ru f... é essencialmente dirigido contra a crítica
do direito consuetudinário e o elogio dá codificação feitos em
1814 pôr A . E J. Thibaut em Über die Notw endigkeit eines a ll­
gemeinen bürgerlichen Rechtsfü r D eutschland (Sobre a neces­
sidade de um direito c iv il geral para a Alemanha). Nesse textö,
Thibaut se situava na corrente do jusnaturalism o de C hristian
W o lff e de Christian Thom asius; defendia a idéia de um direito
natural que, tirando da razão sua universalidade e sua perenidade,
constituía o pólo em tom o do qual se podia construir, segundo
um procedim ento lógico-dedutivo, um sistema ju ríd ic o geral
em que o m aterial do direito seria reunido, a partir de princí­
pios e de definições, nas categorias que o englobam de m aneira
exaustiva segundo um rigor absolutamente form al32. Clam ava
por um a “ codificação” que conferiria à fenom enalidade hete­
rogênea dos elementos pluralistas do direito a homogeneidade

30. A tradução francesa dessa obra, publicada em H eidelberg em 1814,


fo i prevista por A . D ufour, para o Thesaurus de p h ilosophie du droit, sob o
titu lo D e la vocaüon de notre tem pspour la lég islation et la Science du d roit.
31. Esse “ Journal pour la Science historique du droit” fo i fundado por
Savigny, E icchom e Goeschen.
32. Filosoficam ente, esse procedim ento corresponde ao esboço da siste­
m atização ju ríd ic a apresentado por L e ib n iz no seu Codexju ris gentium d ip lo -
m aticus(1693). J. B . V ic o pleiteava, no m esm o sentido, em D e m o universi
ju ris p rinc ip io e tjin e una (1720), um ordenamento sistem ático e por catego­
rias de todo o m aterial ju ríd ic o.
TERCEIRA PARTE 381

de um “ conjunto” e, segundo esquemas organizadores, perm i­


tiria a edificação de um a arquitetônica juríd ica. A tese avança­
da por Thibaut não comportava novidade revolucionária; tradu­
zia a vontade de racionalização do corpus ju ríd ico , que já se
havia m anifestado há m uito tempo na redação dos “ consuetu-
dinários” e que se podia, de qualquer m odo, perceber em in ú ­
meros autores do século X V III. A Teoria das leis civis (1767)
de Linguet, os P rin cíp ios de moral, de p o lític a e de direito p ú ­
blico publicados na história de nossa m onarquia (1777-1789)
de J.-N. M oreau, a Introdução aos p rincíp ios da m oral e da le­
gislação (1789) de Bentham , os trabalhos de Cambacérès, de
Portalis e de Fenet procedem desse espírito. Hegel m enciona
essa vocação epistem ológica da codificação quando escreve,
em 1821, nos P rin cíp ios da filo s o fia do direito: “ É preciso que
o direito seja conhecido por um ato do pensamento, é preciso
que seja um sistema em si mesmo, e somente sob essa form a é
que pode desempenhar um papel decisivo nas nações c iviliza r
das.” 33 R eunir um a profusão de leis num “ sistema coerente” já
é a “ elevação ao universal” que é a aspiração m ais profunda do
racionalism o ju ríd ic o m odem ô. Hegel indica claramente aqui­
lo que Thibaut se contentava em pressupor: a saber, que há nas
perspectivas da codificação um a escolha filo s ó fic a pelo que
ela procede do racionalism o hum anista que, seguindo o m o vi­
m ento da m odernidade, libertou o direito de qualquer referên­
cia m etafísica para enfatizar sua autonom ia ..
A esse esquema que reflete as tendências “ modernas” do
direito, Savigny dirige críticas virulentas com base nas quais
ele elabora a carta filo só fica do que denomina a Escola “históri­
ca” do direito34. Se os princípios racionais do direito político m o­
derno apresentam globalm ente o defeito de ser, d iz ele, “ a-his­
tóricos” (ungeschichtliche), esse defeito revela sua nocividade
quando se põem em evidência suas diversas facetas.
Savigny, como H uriie, Burke e G entz, sublinha a h isto ri­
cidade do direito: longe de resultar de um poder legislativo ar-

33. H egel, Principes de la philosophie du droit, § 211, adendo.


34. Savigny, Über den Zweck..., pp. 2-3.
382 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

bitrário, que fic a preso na inércia35, o direito de um a época é,


diz ele, necessariamente condicionado pelo direito da época
precedente. D e fato, a liberdade das decisões ju rislativas não
possui dimensão etem itária; assim como o espírito se insere na
natureza, assim tam bém a liberdade m ergulha no tempo. D isso
resulta que um a filo s o fia do direito que se fecha no rigo r de
um a m etodologia puramente racional se condena, por sua con­
duta lógico-dedutiva, a um a estática ju ríd ic a qüe carece de tudo
o que faz o valor do direito. E m conseqüência, distanciándo-se do
racionalism o empedernido de um a ciência ju ríd ica que reduzi­
ria o direito a sistema, a Escola histórica de Savigny, de Puchta
e de Beseler valoriza o “direito.Consuetudinário” (por mais “ ina­
dequada” que seja essa expressão)36 como fazem m uitos rom ân­
ticos alemães. O a rtifício de um “ aparelho” legislativo e de um
“ código” desnatura o direito que é “prim eiro gerado pelos cos­
tumes e pelas crenças populares, depois pela jurisprudência,
portanto, em qualquer caso, por forças internas que agem em
silêncio” 37 na totalidade viva do povo38. Quando, portanto, Sa­
vig n y busca aS fundações do direito no que chama de das na-
türliche Recht, pretende refutar a teoria jusnaturalista do
A ufklãrung que defende a equação do “direito natural” e do
“ direito racional” ( Vemunftrecht) cujos elementos apriorísticos
abstratos atestam a ignorância da “ realidade existente” 39: a na­
turalidade do direito não é a expressão da natureza racional do
hom em , mas exprim e a vid a da totalidade orgânica que um a
nação é40, O olhar com que Savigny considera o “povo” não é
estranho à filo s o fia da natureza de Schelling nem ao rom antis­
m o alemão: segundo ele, um povo, longe de resultar de um con­
trato social edificado no âm bito atom ístico do individualism o,
é um todo, com plexo, in d ivisíve l, cujas partes são solidárias e

35. Ibicl., p. 6.
36. Ibid., p. 14.
37. Ibid., p. 14.
38. Ibid., p. 17.
39. Ibid., p. 18.
40. Ibid., pp. 3-4; cf. igualm ente Vom B e r u f cap. II: “ Entstehung des
p ositiven Rechts” , p. 8.
TERCEIRA PARTE 383

cujas vid a e cultura desafiam as rupturas e as descontinuidades


do mecanismo racional. Se é de fato preciso adm itir que o d i­
reito comporta um aspecto “ técnico” (pois é preciso um m éto­
do rigoroso para prom ulgar leis), não se pode confundir esse
elemento m etodológico do trabalho legislativo com a fonte fu n ­
dadora do direito político: esta reside no particularism o nacio­
nal cuja noção Savigny parece extrair de M ontesquieu ou de
Herder. O direito p o lítico deve ser a expressão da vida particu­
lar de um povo.
D os grandes temas que regem o historicism o de Savigny,
seria temerário concluir que o direito p o lítico tem por vocação
veicular, atribuindo caráter absoluto ao valor do costume, um
relativism o conservador ou, atribuindo caráter absoluto à espe­
cificidade dos povos, um relativism o diferencialista. Savigny
não se preocupa com essas considerações, que podem ser reto­
madas pelo m ilitantism o político . R efletindo sobre o exem plo
priviíegiado do direito romano, ele especifica que seu esforço
consiste em descobrir “ o princípio orgânico e vivo ” do quàl,
para um povo, procede o direito, a fim de expor a grande ilusão
das modernas filo so fia s jurídicas: o que elas postulam, a univér-
salidade abstrata e sistemática do direito p o lítico (e, aliás, de
qualquer direito, tanto privado como público), ocultou as iden­
tidades nacionais.
Sem dúvida, a crítica dirigida em 1821 por H egel à Escola
do direito histórico tende a provar que o aparelho ju ríd ic o
( Rechtspflege) da sociedade c iv il m oderna tende, pela legisla­
ção positiva, a realizar um a m eta universal. Certamente H egel
tem razão de d istinguir o conteúdo da le i, que é condicionado
por circunstâncias históricas, e a form a da le i que, sendo aquela
da universalidade41, im plica, para ser pensada, o senso do u n i­
versal: “Negar a um a nação culta ou a seus juristas a capacidade
de fazer um código seria tuna das m ais graves injúrias que se

41. H egel, L 'Encyclopédie, § 529 E , precisa que “a positividade das leis


só d iz respeito à sua form a [.,.] é evidente que o conteúdo dessas leis não
tem necessariamente de ser racional; pode m uito bem ser irracional, isto é,
injusto” .
384 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

poderia fazer a essa nação ou a Seus juristas.”42 Levantando-se


contra a oposição de Savigny e de H ugo à codificação elogia­
da por Thibaud, Hegel se recusa, contudo, a atribuir ao direito
um fundam ento consuetudinário. A seu ver, o historicism o, por
sua referência à tradição e ao costume, condena o direito ao
relativism o e im pede sua elevação ã um universal pensado; ele
o destina a um a Common L aw que não sai do m undo m edíocre
do em pirism o43. Seu erro é confundir “ a gênese exterior” é a
“ gênese conceituai” do aparelho ju ríd ico : um a “justificação ex­
traída das circunstâncias” não é Uma “justificação verdadeira” ;
é por isso que ocorre que “ a justificação histórica faça, sem
saber, exatamênte o Contrário daquilo a que visa” 44. Por conse­
guinte, a crítica que H egel form ula contra a Escola histórica o
leva a tom ar a defesa do código, não à m aneira dos A ufklärer,
como ed ifício lógicó-dedutivo do direito, mas como “ existên­
cia em pírica da le i” . O significado de sua oposição a Savigny -
que, à prim eira vista, pode evidentemente surpreender depois
da leitura de A fenom enologia do espírito - fic a portanto claro:
na econom ia geral de seu sistema, ela adquire sentido ao rela­
cionar o direito político, entre o espírito subjetivo e o E spírito
absoluto, com a Weltgeschichte ou “história universal”45 que,
“tribunal do mundo” (Gerichte), é a única realização da razão ao
longo dos conflitos que pontuam o curso acidental dos aconte­
cimentos46.

42. H egel, Principes de la philosophie du droit, § 211, Observação.


43. Ibid., § 211, adendo.
44. Ibid., § 3.
45. Ibid., § 341.
46. O Estado m oderno, considerado no direito p o lític o que o organiza e
o rege, é portanto, em sua essência, segundo H egel, expressão da razão. M as
o direito p o lític o racional, sem negar a historicidade, não se m odela pelos
conteúdos acidentais da história. Segundo H egel, ele transcende a substância
po lítico-histórica que não passa, em suma, còm o d iz E ric W e il, do “embasa­
mento indispensável à realização do E spírito absoluto” . L a philosophie du d ro it
et la philosophie de l ’histoire hégélienne, Hegel et la philosophie du droit,
P U F , 1979, p. 21.
TERCEIRA PARTE 385

A s ressalvas de C hateaubriand

Apesar das reservas form uladas por H egel, os temas com


que a Escola histórica alim entava sua crítica do direito p o lítico
concebido pela racionalidade m oderna continuaram a receber
um a grande audiência, o que era favorecido na A lem anha pelo
clim a rom ântico. E m sua obra, o próprio Savigny insistia cada
vez m ais no lugar ocupado, na “ gênese in visíve l do direito po­
sitivo” , pelo sentimento, evidentemente irracional, de um a “ne­
cessidade interna” que se abebera nas fontes divinas47; desen­
v o lv ia as noções de direito popular ( Volksrecht) e de espírito do
povo ( Volksgeist). Com o ele, os autores da Escola histórica -
H ugo, Puchta, G rim m , Beseler - utilizavam , emborah u m pen­
samento m atizado48, esses conceitos repletos de irracionalida­
de que ajudam a valorização do passado nacional e subordinam
o direito p o lítico ao desenvolvim ento orgânico dos povos se­
gundo o ritm o natural de sua história49. Tam bém é de notar que

47. Savigny, System des heutigen römischen Rechts, B erlim , 1840,1, § 7,


trad. fr., Paris, 1 8 4 0 ,1,p . 15; citado por A lfre d D ufour, op. c it., p. 185.
48. C f. A lfre d D ufour, op. c it., pp. 188-94.
49. Eugène Lerm inier, professor do C ollège de France, esboça nos anos
1830 u m quadro tão atraente quanto conciso das idéias da Escola histórica: In ­
troduction générale à l ’histoire du d ro it, lie d ., 1829; 2“ ed., 1835, cap. X V II.
Tendo recordado, ao invocar Justus M öser e G ustav H ugo (p. 265), que “ o
espírito histórico e nacional começara a resistir na Alem anha contra a filo s o ­
fia francesa que queria a li im provisar um a legislação no código prussiano” ,
ele se prende às teses de S avigny denunciando os códigos como “um a espécie
de program a leg al pelo qual o Estado abole tudo que não é ele” (p. 276); acim a
de tudo, ele sublinha a im portância assum ida nessas teses pela mediação da
história e pelas sucessivas contribuições nos séculos em qüe “sentem-se a vida
e o progresso” (p. 288).
Seguindo E . Lerm inier, Édouard Laboulaye destacará, no seu Essai sur
la vie et l ’oeuvre de Savigny (1842), o alcance, “m aior do que com um ente se
supõe na França” , das idéias da Escola histórica. “A jurisprudência” , escreve
ele, “ im o é de form a algum a seu único objeto, mas elas estão destinadas a apa­
recer num a esfera m ais am pla, quero fa lar da p o lític a, que verdadeiram ente
não passa de um a das faces m ais elevadas da jurisprudência” (p. 48 ), O m éri­
to de Savigny, prossegue Laboulaye, é ter com preendido que “ as le is são um a
parte da existência social” de um povo. A conclusão é lum inosa:. “A o trans­
portar para a p o lític a as doutrinas que Savigny aplicava às instituições civis,
percebe-se que há um a grande analogia entre as idéias do sábio alem ão e as
que M . de M aistre escreveu no começo do século” (p. 51).
386 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Chateaubriand, quando se levanta contra o racionalism o juríd ico


e o culto legislativista do direito p o lítico desejado pela Revo­
lução Francesa, tenha m uitas vezes se aproximado, embora sem
intenção doutrinária, da tem ática crítica da Escola de Savigny.
N ão hesita, de fato, num m ovim ento ao mesmo tempo irracio-
nalista e teológico, em condenar o racionalism o moderno.
Quando o em igrado Chateaubriand redigia, entre 1794 e
1797, sea Ensaio sobre as revoluções, estava convencido de que
o direito p o lítico da Revolução fora “ produzido em parte por
homens de letras” . N ão ocultava sua hostilidade para com as
“ palhaçadas voltairianas” que a filo s o fia do Ilu m in ism o propa­
gara e acusava O contrato social de ter “ feito m uito pouco bem
e m uito m al” , criticando especialmente Roüsseau por não ter
sabido recorrer à história como a “ um dos princípios do direito
p o lític o ” . Quando, em 1826, trabalhando na edição de suas
Obras completas^ ele anota seu E nsaio com m inúcia, conside­
ra, como anteriormente, que o progresso do Ilu m in ism o arrui­
nou a ordem m oral, porém , indo m uito m ais longe, pensa que,
em nõm e do povo e da liberdade, a Revolução gerou um direi­
to político destinado a descambar na tirania. F o i isso que ocor­
reu: daí em diante “um rio de sangue” separa o velho m undo do
novo50. A ssim é acusado o filo so fism o dos ideais que inspiram
o novo direito p olítico. Se este suplantou o direito dp A n tigo
Regim e, ao g lorificar contra a natureza o individualism o e a “ li­
berdade dos M odernos” , ele m atou o espírito republicano51:
O filo so fism o da M odernidade, avalia Chateaubriand, co­
m eteu o erro de separar o direito da m oral; então abriu perigo­
samente um a cisão entre o Estado e a sociedade. Essa cisão é
irreparável pois, se os tempos após a Revolução se ergueram
sobre as ruínas do passado, eles se abrem para um m undo p ri-

50. Chateaubriand, Mémoires d ’Oulre-Tombe>t\èi&à.&, 1.1, p. 213. .


51. São tons quase nietzschianos que já ressoam sob a pena de Chateau­
briand: “ O cinism o dos costumes traz de vo lta à sociedade, ao aniquilar o
senso m oral, um a espécie de bárbaros; esses bárbaros da civilização, apro­
priados para destruir como os godos, não têm a potência de fundar como eles;
estes éram os filh o s enormes de um a natureza virgem , aqueles são os abortos
m onstruosos de um a natureza depravada” (ibid., 1.1, p. 225).
TERCEIRA PARTE 387

vado de futuro. A ideologia anti-revolucionária de Chateaubriand


o orienta, por reação, para um rom antism o p o lítico profunda­
m ente religioso, expresso, em 1816, por A m onarquia segundo
a Carta. Nesse texto, contudo, o tradicionalism o não se confun­
de com o historicism o de u m Savigny. N a realidade, a história
é tão cheia de contingência, de incoerências, de artimanhas e de
mentiras, os partícularismos nacionais são nela tão repletos de in ­
compreensões e de intolerâncias, os costumes nela são tão car­
regados de contradições que, em razão da equivocidade assim
veiculada, é im possível encontrar nela o solo em que se enraíza
o direito p o lítico dós povos. E m sua particularidade, a tradição
e a história, sem dúvidà, conservam; mas tam bém dissolvem .
São portanto ò palcò ida ambivalência: se podemos, graças a elas,
reencontrar, por “reação” anti-revolucionária, os valores que o
direito p o lítico de um a Restauração legitim ista salvará, pode-
se tam bém cair Com elas no tédio m ortal que nasce da acumu­
lação de singularidades em que espreita a falta de sentido. C om
trário ao racionalism o vóluntarista do direito p o lítico da Revo­
lução, Chateaubriand não busca, portanto, as fontes do direito
no m ovim ento da história. Cóm o N apoleâo, pensa que “ a his­
tória é uma fábula combinada” , ainda qüe haja nela forças m en­
tirosas cuja nocividade é preciso saber evitar.
Para fazer isso, o cam inho é semeado de tantas emboscadas
que o pensamento dó direito p o lítico , em Chateaubriand - mas
tam bém em Fichte, B enjam in Constant ou Joseph de M aistre -
não avança sem oscilações e incertezas, m esmo quando se faz,
com o em 1816, o teórico do regim e parlamentar. Só que essas
hesitações, como as sutilezas que se inserem nas controvérsias
ju ríd ico -p olíticas do pensamento contra-revolucionário, fu n ­
cionam como um revelador: expõem o m al-estar filo só fic o que,
depois da segurança altaneira do racionalism o dos “ grandes sé­
culos” , invade o direito p o lítico e logo transform ará a crítica
num a crise m ultiform e.
388 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

2. A crise do d ire ito p o lític o :


da efervescência ao p aroxism o

N a onda da controvérsia anti-revolucionária, as ressonân­


cias ideológico-políticas m ais ou menos coloridas de rom antis­
m o em geral cobriram as tonalidades especificam ente jurídicas
da produção e do funcionam ento das regras do direito do Es­
tado moderno. Entretanto, panfletários, políticos ou juristas re­
conheceram todos, de um m odo ou de outro, no direito p o lítico
nascido com a Revolução Francesa, o ápice de um m om ento
filo s ó fic o em que triu nfa o racionalism o ju ríd ic o que fo i obra
da fração m ais radicalista do Ilu m in ism o . Ora, é esse orgulho
racionalista, esquecido dos lim ites que a fin itu d e hum ana im ­
põe à “ sim ples razão” , que é objeto de todas as críticas.
Quaisquer que sejam as inflexões particulares assumidas
por essas críticas segundo os diversos autores, têm um denom i­
nador comum: rebelam-se contra a alegoria quase m etafísica
do Estado D O direito cuja im agem m ais sim bólica é fornecida
pelo Im pério napoleônico, oriundo da R evolução, e cuja teo­
rização m ais rigorosa é dada pela filo s o fia de Hegel. Está por­
tanto aberto o processo contra os princípios filo só fic o s de
independência, de ordem pública, de legalidade constitucional,
de onicom petência etc., característicos do direito p o lítico do
Estado moderno. Para além da tonalidade polêm ica do rom an­
tism o p o lítico e da Escola histórica do direito que relem bra­
mos, não tardam a soar os tons m ilitantistas a fim de travar
combate contra “ o direito do Estado burguês” . Paralelamente,
a lógica do Estado-nação, cujo bosquejo Sieyès havia traçado,
é contrabalançada pelos ím petos da “ alm a dos povos” : êm
nom e da idéia de nação e do sentim ento de nacionalidade, os
princípios do direito serão atacados pelos assaltos dos naciona­
lism os. A s crises assim declaràdas não serão m uito construti­
vas, apesar das ambições de seus condutores. E logo Nietzsche,
lançando “ um a olhadela” sobre o Estado moderno, m edirá a
am plitude do desastre p o lítico -ju ríd ico : com u m olhar que des­
cerá até as entranhas dô “ m onstro m ais frio de todos os m ons­
tros frios” , ele mostrará o caráter paroxístico e inaudito da crise
que m ina o direito p o lítico da modernidade.
TERCEIRA PARTE 389

A ) A dem olição do direito do Estado burguês

A página da história filo s ó fic a na qual se instruiu o pro­


cesso do direito p o lítico do Estado burguês é bem conhecida
dos especialistas do pensamento m arxista. Encontra sua expres­
são m ais condensada na “reviravolta” da dialética hegeliana à
qual M a rx pretendeu consagrar seus esforços.

M arx, crítico de H egel

A s prim eiras obras de M a rx trazem a marca da filo s o fia


do direito de Hegel52que passava então, m ais errada do que acer-
tadamente, por ser “ a filo s o fia de Estado da realeza prussiana” .
N os prim eiros artigos sobre o direito p o lític o que publicou na
Rheinische Zeitung (A Gazeta Renaná), M a rx não hesitava em se
situar entre os jovens hegelianos de esquerda e, no D oktorklub
que freqüentava, sustentava que o direito p olítico encarna no Es­
tado a razão e a liberdade. Entretanto, de u m lado, fazia questão,
de marcâr sua diferença em relação aos hegelianos chamados
“ de direita” , cuja ortodoxia filo s ó fic a (para eles, o Estado, ra­
cional, encarna a idéia absoluta) caracterizaria como idealista e
conservadora; do outro, pretendia distanciar-se do pensamento
“ abstrato” de B runo Bauer e daquele que m ais tarde será co­
nhecido pelo nom e de M a x Stim er. A influência de L ud w ig
Feuerbach e de A m o ld Ruge devia fazer o resto .
D e fato, por vo lta dos anos 1840, quando desaprova de
m odo cada vez m ais categórico o absolutism o prussiano, M a rx
sonha com um a “ critica do direito p o lítico hegeüano” . Redigirá
seu texto em 1842 ou 184353, sob a form a de um comentário da

52. Solange M ercier-Josa, Retour sur le jeune M arx. D eux études sur le
rapport de M arx à H egel (resposta ao liv ro de G uy Haarscher, L ’ontologie de
M arx, B ruxelas, 1980), M éridiens-K lincksieck, 1986.
5 3 .0 manuscrito K ritik des Hegelschen Staatsrechts, sém data, fo i edita­
do pela prim eira vez em 1927: texto alemão, M arx Engels Werke, B erlim , 1961,
1 1 , trad. ff. in M arx. Oeuvres philosophiques, É d itio n Costes, trad. M o lito r,
Paris, 1948, vo l. IV ; É ditions Sociales, introdução e tradução A . Baraquin,
1975. C f. o com entário de M ic h e l H enry, D e H egel à M a rx: essai sur la C ri­
tique de la philosophie de l ’É tat de H egel de M a rx, in Hommage à JeanH yp-
p o lite , P U F , 1971, pp. 81-144.
390 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Terceira seção (O Estado, §§ 261-313) da Terceira parte (A m o­


ralidade objetiva) dos Princípios da filo s o fia do direito de B e rlim
dê 1821, ao lóngò do qual ele contesta inteiram ente, para além
dos desvios políticos da m onarquia constitucional, a concepção
ju ríd ic a do Estado elaborada por Hegel.
O comentário, que se tom a um a crítica profunda, visa ex­
plicitam ente à derrubada dò idealism o hegeliano. Contudo, um a
vontade de descrédito m ais do que um a vontade de ruptura es­
tim ula a reflexão que leva à dem olição teórica do direito hege-
liano. Já no comentáriõ do § 261, é dado o tom : se o Estado é,
como d iz H egel, o “ objetivo im anente” da fa m ília e da socieda­
de c iv il, e se, como tal, “tem sua força na unidade entre seu
objetivo fin a l universal e o interesse particular dos indivíduos” ,
é que ele se exprim e como “homogeneidade do particular e do
universal” . O próprio M a rx adóta essa tese, da qual faz a pre­
missa de sua crítica. M às condena H egel por ter sim plesmente
afirm ado a identidade entre o particular e o universal, sem ja ­
m ais estabelecer segundo qual processo a Idéia se realiza, isto
é, como o Estado determina as esferas concretas da sociedade
e da fam ília. “ Fam ília e sociedade c iv il burguesa parecem ser o
fundo sombrio da Natureza de onde se acende a luz do Estado.” 54
O sentido da crítica é claro: M a rx denuncia o caráter “ideal” do
Estado hegeliano no qual “ a le i da Idéia” permanece estranha
às atividades concretas que se m anifestam na fa m ília e na so­
ciedade. À “ objetivação” da Idéia de que fala Hegel não é a ati­
vidade real dos indivíduos. À mediação da objetivação é “ um a
mediação aparente” 55 que, em nada participando daquilo que
ocorre realmente, m antém um “m istério” especulativo56.
Reconheçamos sobretudo que o m érito de M a rx fo i ter
apreendido o projeto filo só fic o pelo qual Hegel insere os “prin ­
cípios” do direito político em seu sistema distinguindo a socie­
dade c iv il e o Estado. M as, urna vez ressaltado esse m érito, a
crítica de M a rx se condensa num a oposição radical ao caráter

54. M a rx, op. c it, com entário do § 262, in É ditions Sociales, p. 38.
55. Ibid., p. 39.
56. Ibid., p. 41.
TERCEIRA PARTE 391

especulativo do direito político de Hegel, ainda que, fechando-se


na circularidade do discurso hegeliano, ela esteja no mesmo
plano que ele, portanto, ela mesma m ais teórica do que prática.
E m outras palavras, para denunciar os “princípios filo só fic o s ”
do direito político, ela própria permanece “ filo só fic a ” e não é
um convite para “transformar ò mundo” . Por conseguinte, M a rx,
em sua crítica da filo s o fia do direito de H egel, no fin a l das
contas só ataca o princípio de subsunção do particular sob o
universal, ou, noutros termos, esse “ capítulo da lógica” ?7 segun­
do o qual H egel pensou o organograma ju ríd ic o do Estado:
“ Toda [a sua] filo s o fia do direito é apenas um parêntese da
lógica” 58 e só serve como “prato de entrada” para o estudo do
direito p o lític o ; descrever o poder legislativo como o pensa­
m ento do universal59 e reconduzir o poder do príncipe (o poder
executivo) à subsunção dos casos individuais sob esse univer­
sal60 não corresponde à efetividade constitucional.
Chega-se, aliás, à mesma constatação de fracasso quando se
indaga, prossegue M arx, sobre a soberania: Hegel a interpreta
como “ o idealismo do Estado”, como sua “autodeterminação
abstrata” que faz dele uma “individualidade” . Ora, de um lado, q
indivíduo-Estado corre o grande risco de se exprim ir na célebre
frase: “ O Estado, sou eu” 61, que é o pórtico do regime monárqui­
co em sua form a pura; e, do outro, quem quer que use essa lingua­
gem se esquece de que o povo soberano, sustentáculo da demo­
cracia, é um a realidade concreta e viva que só age consoante sua
imersão nas determinações particulares do m eio62. Portanto, tudo
no idealism o hegeliano funciona às avessas: “Hegel parte do Es­
tado e fa z do hom em o Estado subjetivado” ; ora, “ a democracia
parte do hom em e faz do Estado o hom em objetivado” 63.

57. Ibid., com entário do § 269, p. 52.


58. Ibid., p. 52.
59. Ibid., com entário do § 298, p. 101.
6 0 . Ibid., com entário do § 2 7 5 ,p p . 55 ss.
61. Ibid., com entário do § 279, p. 64.
62. “ Se H egel tivesse procedido a partir de sujeitos reais na m edida em
que são as bases do Estado, não se teria encontrado na obrigação de fazer com
que, de m aneira m istica, o Estado se subjetivasse assim ” {ibid., p. 60).
63. Ibid., p. 69.
392 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A filo s o fia hegeliana do direito p o lítico está assim conde­


nada, no dizer de M arx, a se atolar num “ form alism o p o lític o ”
cuja im agem nesse “ Estado im aginário ao lado do Estado real”
é dada pela burocracia64. A subsunção do singular sob o u n i­
versal esvazia o direito de todo conteúdo, de m odo que o Esta­
do, separado da sociedade c iv il concreta, se tom a um a form a
vazia. O m ais grave é que o form alism o estatal se afunda no
“ enigm a do m isticism o” 65. N ão é o que ocorre quando, no d i­
reito constitucional hegeliano, os diferentes estados sociais
(Stände) - os dos governantes, dos padres, dos m édicos ou dos
magistrados etc. — são considerados, sem que se possa com­
preenderp o r que, a mediação que, entre povo e governo, ou entre
sociedade c iv il e Estado, conduz à identidade filo s ó fic a entre o
particular e o universal66. H egel não deve ser censurado porque
descreveu o Estado m oderno ta l com o ele é; mas é im possível
segui-lo quando enuncia o axiom a segundo o qual o racional é
real, pois assim apresenta a natureza do direito político como cega
para a irracionalidade da realidade. Seu logicism o o condena ao
sistema dialético das mediações, que permanece inteiramente es­
tranho à vid a concreta.
N a argumentação, d iluíd a à vontade, que o “jo vem M a rx”
alinha no seu comentário crítico, frase a frase, dos P rin cíp ios
da filo s o fia do direito de Hegel, percebe-se facilm ente o quan­
to, no seu combate filo só fic o , ele ainda é tributário, ainda qüe
o negue, das categorias e do m odo de pensar espêcificam ente
hegelianos. Entretanto, é impressionante o acúmulo de acusa­
ções a Hegel, não só de obscuridades e de “m au sincretism o”
em seu discurso, como tam bém de “ argúcias m etafísicas” , de
complacências teológicas, até mesmo panteísticas, de m isticis­
m o lógico etc. A argumentação equivale a condenar o filó s o fo
por ter confundido o ontológico e o lógico, a esfera da essência
e a esfera do conceito, o que o leva, tal como um “ sofista” , a
situar o Estado na v ia do Absoluto: é isso que lhe perm ite de­
votar-lhe um culto.

64. Ibid., com entário do § 297, pp. 90 e 92.


65. Ibid., com entário do § 300, p. 109.
66. Ibid., com entário do § 302, pp. 118-9.
TERCEIRA PARTE 393

C om quinze anos de recuo, M a rx, julgando ele próprio sua


“revisão crítica” do direito p o lítico hegelianp, escreverá: “M i­
nhas pesquisas chegaram ao resultado de que as relações ju r í­
dicas - bem como as formas do Estado - não podem ser com­
preendidas nem por elas mesmas nem pela pretensa evolução
geral do espírito hum ano, mas que, ao contrário, têm suas ra í­
zes nas condições de existência materiais cujo conjunto Hegel, a
exemplo dos ingleses e dos franceses do século X V H I, abarca sob
o nome de ‘sociedade c iv il’, e de que a anatom ia da sociedade c iv il
deve ser buscada, por sua vez, na econom ia política.” 67 Nesse
m eio tempo, ele havia elaborado um esquema de trabalho qüe lhe
parecia insuscetível de discussão: organizar o direito p o lítico
segundo outro plano e com outros m ateriais, portanto, estourar
em pedaços o aparelho filo só fic o in ic ia l que constituía a axio ­
m ática do direito p o lítico hegeliano. Era isso que já deixava
entender o ensaio de 1844 publicado nos A nais franco-alem ães
sob o títu lo Z u r K ritik der hegelischen Rechtsphilosophie: E in -
le iíu n g que, apenas u m ano depois do m anuscrito inacabado de
1843, transportava o debate para outro terreno - o da práxis po­
lític a - e se apresentava como um m anifesto m ilitan te e revolu­
cionário. M a rx combate então a realidade p o lític a alemã, que
ele acredita ser a consumação da filo s o fia hegeliana do direito.
Fazendo iro n ia sobre a religião como o “ ópio do povo” , ele
protesta contra ã m iséria filo só fic a que ela gera e que, soman­
do-se à m iséria m aterial do povo, é deplorável. M u ito decidido
a assinar a. sentença de m orte do idealism o ju ríd ic o -p o lític o de
Hegel e de seus seguidores, M a rx exige então nada menos do que
a negação da filo s o fia . A dem olição dos princípios da filo s o fia
do direito de Hegel está a partir dé então consumada no pensa­
m ento de M a rx: ele tende para o m aterialism o dialético que se­
rá anunciado para o m undo, em 1845 e 1846, em Teses sobre
Feuerbach e A ideologia alemã.
M a rx teria portanto estabelecido - segundo ele, d e fin iti-
vamentê - que a filo s o fia especulativa do direito p o lítico hege-

67. M a rx, Contribution à la critique de l'économie politique, 1859. É d i­


tions Sociales, p. 4.
394 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

liano, que nada m ais é do que a análise do Estado m oderno,


não soube escapar às m iragens de um a modernidade que, con­
fundida c o iii a racionalidade, se ed ifico u unicam ente sobre
princípios considerados verdades da razão. Portanto, ela oca­
siona um a m istificação68: quando o direito do Estado m oderno
se d iz fundamentado na soberania do povo, portanto, na co-
soberania de todos os cidadãos, abstraindo-se a dependência
social, a instrução ou a riqueza deles..., quando proclama a ig u al­
dade e a liberdade, “ declarando” solenemente a elim inação das
desigualdades de nascimento, dê n ív e l, de raça, de riqueza ou
de re lig iã o ..;, não im pede que os cidadãos m ais instruídos ou
m ais ricos assumam no Estado os cargos m ais im portantes. Por
conseguinte, existe no direito p o lític o m oderno um a contradi­
ção flagrante entre a sociedade e o Estado, entre õ hom em e o
cidadão. A Contradição é ainda m ais insolente porque o Estado
m oderno, proclam ando-se leigo e ateu, é na realidade a “ reali­
zação do Estado cristão” . Tudo nele traz os estigmas da m enti­
ra da religião.
Gomo “hom em revoltado” , M a rx quis dissipar a grande ilu ­
são inserida, segundo ele, no direito p o lítico pretensamente
emancipador do Estado moderno. N ão basta, porém, dizer, como

68. Essa é a tese desenvolvida na A questão ju d aica, publicada nos An


nales franco-allem andes de 1843, na mesma época em que M a rx redigia sua
crítica dos Princípios dafilo s o fia do direito de Hegel. Opondo-se a B rüno Bauer
que, indagando-se sobre a questão dos direitos do hom em , considerava què, já
que a liberdade po lític a exige que 0 hom em renuncie à religião (portanto, o
ju d eu ao judaísm o), o Estado devia se laicizar, M a rx objetava que o Estado
pode m uito bem se libertar da teologia e da religião sem que nem por isso o
hom em seja livre.
C om tuna constância obstinada, M a rx faz, num gesto que ele pretende
espetacular, a crítica dos “ direitos do hom em ” , que interpreta como a sim bd-
lo g ia histórica do direito p o lític o m oderno, cujo erro, não pára de repetir, fo i
negar, a Uberdade hum ana m esmo quando a proclam ava. N os “ direitos do
hom em ” , trate-se de Uberdade, de propriedade, de igualdade ou de segurança,
ele vê a consagração ideal e form al das aspirações da burguesia, presa no
egoísm o e dedicando de algum m odo um culto ao “querido eu” . A ilusão é
im ensa; seus efeitos são deletérios, Uma vez que estão baseados no “postulado
cristão da soberania de cada hom em ” (Bernard Bourgeois, Philosophie et droits
de l ’homme de K ant à M arx, P U F, 1990, p. 103).
TERCEIRA PARTE 395

se repete ffeqüentemente, que M a rx reorganizou a dialética


hegeliana. Para abalar a ilusão que percebe no direito p o lítico
m oderno e evitar as miragens do idealism o ju ríd ic o , ele seguiu
os cam inhos praxiológicos do “novo m aterialism o” (o das Te­
ses sobre Feuerbach) e m ostrou que, com o o hom em é para o
hom em a “ realidade suprema” , a raiz do direito p o lítico tem de
residir no m ovim ento de transformação que leva o m undo hu­
m ano. Para isso, é preciso ultrapassar a “ crítica roedora dos
camundongos” , não afundar no n iilis m o à m oda de S tim er e
renunciar a qualquer filo s o fia especulativa... A “ decadência
do Estado” - é claro, do Estado racional burguês condenado a
negar a si m esmo pelo ind ivid ualism o, pela abstração dogm áti­
ca, pelo idealism o e pela religiosidade - está no fin a l do cam i­
nho69. O veredicto é inapelável.
Para arrancar os homens dos impasses do direito p o lítico
m oderno que é o lugar de sua alienação, segundo M a rx não há
outra saída além do estabelecimento de um a sociedade sem.
classes e da internacional com unista que unirá todos os prole­
tários. A questão é saber se o programa com unista resolve a
crise fatal denunciada no humanismo juríd ico moderno. Por m ais
diversas que sejam as respostas a essa questão, todas elas m os­
tram a fragilidade das teses m arxistas. Evoquem os aqui alguns
exem plos particularm ente instrutivos.

As dúvidas que pesam sobre o program a comunista

O antagonismo entre M a x W eber e K a rl M a rx constitui


um a prim eira resposta à indagação que acabamos de form ular,
já que, de m odo exp lícito , A ética protestante e o espírito do
capitalism o70 form ula a contestação das concepções m arxistas.
A racionalização do direito que W eber expõe ao in sistir naqui­
lo que a adaptação dos m eios aos fin s tem de necessário para

69. E le se tom a, de todo m odo, a palavra de ordem a que obedecerão E n ­


gels em A nti-D ühring e L ênin em O Estado e a revolução, clamando que a abo­
lição do Estado e do direito será obra da ação revolucionária do proletariado.
70. C f. M a x W eber, Sur l'éthique protestante et l ’esprit du capitalism e,
1904-1905, trad. P lon, 1964.
396 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

u n í direito p o lítico que quer prom over e salvaguardar as lib er­


dades é mesmo, m ais especificam ente, um a réplica à dem oli­
ção do Estado moderno empreendida por M arx. A inda que a cul­
tura m oderna se tenha encaminhado inexoravelm ente para a
dissolução do sagrado, o m érito do “Poder racional” é se exer­
cer, nò Estado moderno, sobre a base das habilitações e das com ­
petências reconhecidas aos titulares da autoridade71. E m E co­
nom ia e sociedade72 Weber, ao estabelecer um a tipologia dos
modos de dominação, não hesita em mostrar que a superioridade
do Estado moderno reside na “ dominação legal” : nele o Poder
procede, sob a Constituição, das regras legislativas e im põe á to­
dos um conjunto de regras racionalm ente codificadas73.
Nas críticas que Hans Kelsen form ula contra a “ ideologia” ,
M a rx e os marxistas são particularmente visados74 e basta um a
frase para dar seu tom , que se repete, aliás, como um leitm otiv:
suas teorias, diz Kelsen, “mascaram a realidade, seja transfígu-
rando-a para defendê-la e assegurar sua preservação, seja desfi­
gurando-a com vistas a atacá-la e substituí-la por outra” .
M erleau-Ponty, é verdade que escrutando a p o lítica m ais
do que o direito75, fa lo u do fracasso das teorias m arxistas e,
m uitas vezes em sua obra, vo lto u às razões desse fracasso. D e ­
pois dos processos de M oscou, dos campos de trabalho forçado,
do sistema de campos de concentração de S tálin etc., as contra-

71. V e r P hilip p e Raynaud, M ax Weber et les dilemmes de la raison


moderne, P U F, 1987.
72. M a x W eber, Économie et société (1922), prim eiro liv ro , 1982.
73. V e r C . C o llio t-T hélène , Le désenchantement de l ’É ta t D e Hegel à
M ax Weber, É ditions de M in u it, 1992, pp. 230 ss.
74. Hans Kelsen, Sozialismus und Staat: eine Untersuchung der p olitis­
chen Theorie des Marxismus, 1923; Théorie pure du droit, 1934, trad. Theve-
naz, 2? ed., N euchâtel, 1988, pp. 64 -5; The Communist Theorie ofLaw , 1955;
Aufsätze sur Ideologiekritik, 1964; Demokratie und Sozialismus, 1967. C f.
Stanley Paulson, in L a philosophie po litiq ue de Kelsen, Cahiers de philoso­
phie politique etjuridique, Caen, 1990, n? X V II, pp. 93-5.
75. M aurice M erleau-P onty, Sens et non-sens, N agel, 1947; Humanis­
me et Terreur, G allim ard, 1947; Les aventures de la dialectique, G allim ard,
1955; Signes, G allim ard, 1960. C f. Sim one Goyard-Fabre, M erleau-P onty et
la politique, Revue de métaphysique et de morale, 1980, n? 2, pp. 240-62.
TERCEIRA PARTE 397

dições do com unism o pareceram a M erleau-P onty ser flagran­


tes. Sem dúvida viveu dolorosamente o dilem a entre com unis­
m o e anticom unism o; mas, o que fo i a seu ver um impasse p o lí­
tico não redundou filosoficam ente num a aporia. N a discussão
dos Tempos modernos, ele se opôs a Sartre, reprovando-o por
incorporar o com unism o a seu próprio universo filo s ó fic o e
por desviar suas noções-chave de história, de proletariado, de
Partido, de relações de classe etc., para um subjetivism o inte­
gral. M erleau-Ponty censura Sartre por sua “loucura do cogito” 76
e por sua falta de lucidez quando, falando do direito e da p o lí­
tica, não sai do pensamento e “reduz a ação a ju ízo s” 77, caindo
assim no idealism o extremado. Seu erro é ignorar a intersubje-
tiyidade a ponto de o seu ultrabolchevism o não passar de um a
diáspora individualista. Com o, portanto, deixar de compreen­
der que há, no m arxism o e em seus prolongam entos com unis­
tas, um a contradição profunda cujas ações anti-hum anistas e
aterrorizadoras, levadas a cabo em nome do Partido, são um aten­
tado contra o hom em?
A vio lên cia à qual recorrem os seguidores do m arxism o é,
diz Hannah A rend f78, a “ expressão de um m undo deslocado” no
qual sopra o vento dos totalitarism os que traz consigo a “ deso­
lação” . H . A rendt vê no com unism o soviético e nos regimes
comunistas da Europa do Leste, nem m ais nem menos do que
no nazism o, um a lógica da demência que pulveriza as catego­
rias e os critérios do direito p o lítico que autores m odernos ha­
via m elaborado.
K a rl Popper denuncia duramente as contradições e os con­
tra-sensos filo só fic o s evidenciados pela controvérsia entre
m arxism o e hegelianism o. Os dois livros que publica quase si­
multaneam ente no fin a l da Segunda Guerra M u n d ia l - M isé ria

76. M erleau-P onty, Les aventures de la dialectique, p. 213.


77. Ibid., p. 236.
78. Hannah A rendt, Les origines du totalitarisme (1951) e particular­
m ente o terceiro volum e Le système totalitaire (trad, fr., S euil, 1972); La con­
dition humaine (1958), trad. C alm ann-Lévy, 1961; 2? ed. com um prefácio de
P aul R icoeur, 1983.
398 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do historicism o eA sociedade aberta e seus inim igos19- não dis­


sim ulam sua hostilidade para com o m aterialism o histórico: a
história jam ais indicará ô que é preciso fazer; as norm as são
totalm ente irredutíveis aos fatos; Pensa que, ao contrário, os
princípios filo só fico s do direito p o lítico moderno tinham o m é­
rito de proceder do horizonte de valor no qual se m anifestam o
racionalism o e o hum anismo universalista, em que se pode reco­
nhecer aquilo que fa z o orgulho do hom em . Só que, transporta­
dos para a história, esses grandes e belos princípios ficaram
carcomidos. Suas opções norm ativas, tão nítidas ainda no pen­
samento de H egel, não resistiram à prova da faetualidade. O
m aterialism o histórico de M arx, que nega os ideais e os valores,
é, nem m ais nem menos, um a heresia. N ão obstante, Popper se
pergunta se o racionalism o do século X V III, que enalteceu o
valor do Estado-nação e cinzelou, em conform idade com as e xi­
gências da razão, o estatuto constitucional do Estado moderno,
não continha veleidades secretas de irracional que eram os ger­
mes de um a tentação totalitária: sendo as instituições, na reali­
dade, “ como que fortalezas” , só são eficazes se têm guarnições
fortes. Felizm ente, isso é raro. M as basta para mostrar como é
d ifíc il desviar-se do peso dq real. A controvérsia entre M a rx e
H egel contribuiria, portanto, para mostrar que as instituições
são sempre am bivalentes e “podem perfeitamente cum prir fu n ­
ções exatamente contrárias àquelas que haviam sido previstas
por seus fundadores” 80. A ssim a Revolução, cheia de esperan­
ças, descambou no Terror. O que M erleau-Ponty denom ina “ as
aventuras da dialética” está inserido na natureza do Estado
moderno. A liá s , é o que também repete o destino do m arxism o,
até em suas form as revisionistas ou desviacionistas.

Com o não compreender, depois da crítica que M a rx fez de


Hegel e depois do fracasso histórico do m arxism o, que o direito

79. K arl Popper, The Poverty ofHistoriCism (1944-1945), trad, fi:., P lon,
1956; The Open Society and its Enemies (1945), trad, p a rtia l, L e S euil, 1979.
80. Jean B audouin, La philosophie politique deK arl Popper, P U F , 1994,
p. 198.
TERCEIRA PARTE 399

p o lítico é anim ado por tremendas tensões internas? A liá s, elas


podem ser identificadas diariam ente, de tal m aneira que tudo
se passa como $e “ a crise do direito” que atualmente ronda o
Estado fosse o resultado, para além das controvérsias doutriná­
rias, das contradições dialéticas de seus princípios imanentes.
A ssim , na hora que não paramos de invocar a democracia, pa­
rece que os conceitos do direito p o lítico m oderno - soberania,
representação proporcional, escrutínio m ajoritário, direito de
oposição etc. - são objeto de incessantes reexames: a idéia cons­
titucional é submetida a revisões; fala-se mesmo de “neoconsti-
tucionalism o” ; o legiscentrismo é o tempo todo m odificado por
decretos de aplicação ou pelas diretrizes das circulares m in is­
teriais, que, ainda por cim a, nem sempre são com patíveis entre
si; certos textos são quase inúteis: outros assumem a feição de
projetos m finitam ente examinados e remanejados pelas Câma­
ras; são inúmeras as derrogações; na onda das leis e das reformas
de leis, a generalidade do texto legislativo se desfaz, enquanto
se m ultip licam , com a proliferação das regras, das normas de
caráter interpretativo ou “ leis de orientação” que diluem o efei­
to norm ativo e corroem a obrigatoriedade do direito, A inda por
cim a, enquanto um pragm atism o ético-social desafia a lógica
da legalidade, as tomadas de decisão oscilam do rigor racional
à prudência recomendatória; a desracionalizaçãq é acompanhada
da influência crescente das intenções políticas, dos interesses de
certos grupos ou da pressão da opinião pública etc. Portanto
há que constatar, na evolução do direito p o lític o , um a deca­
dência e um recuo da lei, até mesmo, um a “ crise do direito” . M ais
lancinante do que nunca, ressurge a questão “ O que é o direi-
' to?” 81, mas procuramos em vão no direito p o lítico “u m núcleo
de certeza” .
Sem dúvida, não se poderia racionalm ente sustentar que,
depois da m orte de Deus e com a m orte do hom em , é o Estado
m oderno que, depois de M a rx e seus sucessores, m orre, dei-

81. É a pergunta que K ant fazia: Q uidjus?, não sem ter observado, já
em 1781, que “os jurisconsultos procuram ainda um a definição do direito” ;
cf. os n“ X e X I da revista Droits, 1989 e 1990.
400 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

xando no lugar do direito político moderno um campo social em


que forças m últiplas se defrontam em relações incessantemen­
te m utáveis82. Entretanto, na crise que sacode o direito político
moderno a partir de meados do século X IX , há um a “ força” com
a qual fic o u im possível deixar de contar: é a representada, p ri­
m eiro nâ póstèridade romana, depois no tabuleiro de xadrez ju ­
ríd ico -p olítico da história, pelo despertar fulgurante do senti­
m ento nacional.

B ) D a descoberta da nação ao despertar das


nacionalidades e aos nacionalism os

Os princípios fundam entais do direito p o lítico m oderno,


criticados em seu raeionalism o pela corrente historicista do
pensamento rom ântico e atacados por sua abstração form alista
tanto pelas doutrinas liberais como pelas correntes socializan-
tes do século X I X , deviam além disso sofrer o ataque das teo­
rias ligadas à idéia de nação. Essas teorias são m uito diversas e,
embora nasçam de um a idéia que, à prim eira vista, pode pare­
cer clara e homogênea, adotaram com o passar do tem po tons
diversificados que é im portante distinguir.
O problem a, em razão da história longa e densa da palavra
“nação” , é bastante com plicado. N ão seria o caso de retraçar
aqui essa d ifíc il genealogia. N ão obstante, é ú til reencontrar as
raízes de um m ovim ento de pensamento que contribuiu tanto
pára a formação do direito p olítico moderno como para seu aba­
lo e que, mesmo hoje, continua a fracioná-lo.

A nação no horizonte da h istória

Parece que o termo nação pertence ao. vocabulário antigo


do povo franco e que a célebre le i sálica, redigida em la tim em
sua prim eira form a no fin a l do reinado de C lóvis, em tom o de

82. Essa é a tese de Pierre B ourdieu em Le sens pratique, É ditions d


M in u it, 1980.
TERCEIRA PA R TE 401

508-510, tenha então condensado seu espírito. Pelo menos é


isso que ressalta de um a obra anônim a, o Grande tratado da
le i sálica, composta por volta de 1450, quando ia term inar a
Guerra dos Cém Anos. O problem a central que é tratado nesse
liv ro é o da sucessão ao trono e da exclusão das m ulheres na
transmissão da Coroa: M as é particularmente interessante obser­
var83 que, sè esse tratado pode ser considerado a redação dos
costumes do povo fianco, é também o esboço de um a verdadeira
Constituição m onárquica que reflete a especificidade do reino
da França. D e fato, em 1358, o historiógrafo P hilip p e Lescot,
contemporâneo de Carlos V, descobrira na biblioteca abacial de
S aint-D enis um m anuscrito earolíngio da le i sálica cujos sen­
tido e alcance residiam , sustentava ele, na expressão terra s a li-
ca. Esse documento constituía segundo ele - que traduzia ferra
sálica por “ terra do reino” - o indicador de um profundo apego
à terra e ao legado dos ancestrais. A in d a que a expressão terra
salica tenha um significado restrito, parecia-lhe corresponder.
à emergência de um “ sentimento” nacional. Sim bolizava o am or
pela pátria84 e, ainda que desprovida de conotação p o lítica ,
levantava as questões jurídicas da transmissão da Coroa ou da
defesa do território que daí em diante seriam inseparáveis da
p o lític a (na França como em toda a Europa ocidental).
Explica-se assim que, quando os legistas da antiga França
procuraram afirm ar, diante da autoridade do Sacro Im pério
Romano Germânico, a independência do direito político do reino,
tenham invocado, seguramente, os costumes que, do Beauvai-
sis à N orm andia ou à Bretanha e a Paris, continuavam vivazes,
mas que, sobretudo, tenham procurado libertar o droict fra n -
çois da influência do direito romano. A idéia do mos gallicus
assum iu, no século X V I, em particular na Escola de direito de
Bourges, um a im portância tão forte que grandes mestres, fié is
à inspiração dé André A lciat, se puseram então de acordo - quais-

83. C f. C . Beaune, Naissance de la nation France , G allim ard, 1985; R .


F o lz, Quelques éléments m ythiques dans la form ation du sentim ent national
français au M o ye n A ge, in L 'id é e de nation, D ijo n , 1986, p. 86.
84. E . K antorow icz, Pro p a tria m ori (1951), P U F, 1984, pp. 105 ss.
402 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

quer que tenham sido em outras áreas suas divergências, até


mesmo suas discussões - para criticar a compilação tribono-jus-
tiniana que é o C o rp u sju ris c ivilis. D iante da enorme massa de
glosas, eles dizem em substância que o espírito romano não
corresponde ao espírito francês, portanto, não convém ao direito
político do reino da França.
Sem dúvida, nessa época, os “m istérios dq Estado” - a re li-
g io ju ris dos séculos X I I e X I I I - conservavam, em seu contexto
teológico-político, um a opacidade im penetrável. M as a nação
estava “ em v ia de calçar as botas do Príncipe” 85 e os juristas,
depois de B aldo, já não relacionavam esses “ m istérios” , como
faziam Placentin e Àzon, com os Institutos de Justiniano. Charles
de Grassaille, em Regalium Franciae íib r i duo (1538), que evoca
a sagração do rei e ó anel real que sim boliza então o direito po­
lític o francês, expunha a im agem de u m casamento entre o rei
e sua “ re s p u b lic a R e x d icitu r m aritus reipublicae86. A m etáfo­
ra fo i retomada e acentuada por numerosos juristas do século
X V I 87 que â despojaram dos tons m ísticos de que a cercava o
direito canônico e do caráter instituciónalista tirado do direito
romano. Portanto, nos meandros de suas análises do “ direito dos
franceses” , desenhou-se em filig ra n a um a idéia sim ples, ainda
que estivesse oculta num a pletora de imagens e emblemas, m ais
ou menos difíceis de decifrar, que se invadiam mutuamente: no
corpo do reino cuja cabeça é o príncipe, vive um a alm a, com ­
parável à F ê n ix88, que é “ a alm a do povo” .:

85. F . W . M aitland, M o ra l P ersonality and Legal Personality, in Selec-


tedEssays, Cam bridge, 1936, p. 2.30.
86. Charles de G rassaille, Régalium Franciae tíb ri duo, ed. Paris, 1545,
p. 217.
87. A . Lem aire, Les lo is fondam entales de la m onarchiefrançaise, Pa­
ris, 1907, observa que René Choppin (De domanio Franciae, 1572, in Oeuvres,
Paris, 1635, II, p , 117) e Charles de G rassaille citavam no caso as próprias
palavras dó ju rista italiano Lucas de Pérma que, além da menção- do “ casa­
m ento m oral e p o lític o contraído entre o Príncipe e sua respublica” , define
esta ú ltim a como “um corpo cuja cabeça é o príncipe” . Encontra-se a mesma
term inologia em autores como Tiraqueau, Serviüs, Pierre RebufS, Jean de M o n ­
taigne e outros.
8 8 . 0 m ito da F ê n ix é em particular u tilizad o por Jean de Terreverm eille
em Tractatus de ju re fu tu ri successoris le g ititn i in regiis hereditatibus.
TERCEIRA PARTE 403

A demonstração m ais espetacular dessa idéia é dada pelo


L ’A n ti-T rib o n ian de François H otm an, provavelmente escrito a
pedido do chanceler M ic h e l de 1’H ospital, cuja ambição, ape­
sar dos m urm úrios que se faziam o uvir (ou por causa deles),
era selar a unidade do reino da França: une foy, une loy, un roy.
A tonalidade “ galicana” do livro é tão evidente que se pode sau­
dar nele “ um empreendimento patriótico” 89. N o m ín im o H o t­
m an, de quem uma outra obra, L a F ra n c o -G a llia , fala clara­
m ente, já no títu lo , do apego ao mos gallicus, cobre de sombra
a rom ana auctoritas. E le procura m ostrar que o direito - e isso
vale tanto para a Itá lia como para a França, para a Alem anha e
para a Suíça90 - é um direito territorial e consuetudinário: nele,
não é a razão eterna òu a universal le i da Natureza que fala,
oculta sob os Comentários, anotações, apostilas e glosas91 do
Corpus ju r is ju s tin ia n i. Com o o direito é portador dé um a
alm a, só pode ser entendido, segundo H otm an - que, seguindo
a lição hum anista de Lorenzo V alia e de G uillaum e Budé, se
encontra bem próxim o de Jean B od in - , relacionado com a his­
tória e com a “ geografia natural” , isto é, com o tempo e o espa­
ço92. H otm an se compraz, portanto, em destronar o academ i-
cism ò do mos italicus pela vitalidade do mos g allicus juris-,
este se exprim ia ainda em diversos consuetudinários regionais
m ais do que no corpus unitário - “ um costume, um a paz, um a
m edida” - com que sonhavam H otm an, D u M o u lin e D e Thou.
O im portante era que o direito conservasse o gosto da “França-
G ália” , ainda que, alguns anos após o L ’A n ti-T rib o n ian , o pan­
fleto antiabsolutista que é L a F ra n c o -G a llia devia passar por
ser a obra detestável de um “ ím p io ” .

89. H enri Duranton, reedição em fa c-sím ile do Anti-Tribonian, Saint-


Étienne, 1980, introdução, p, IV .
90. F . H otm an, Anti-Tribonian, ed. citada, pp. 100 e 145.
91. Ibid., p, 108.
92. É interessante assistir, na Alem anha, ao despertar da idéia de nação
- cf. Gunther G udiàn, N ation et nationalism e dans l ’histoire du d ro it allem and,
in L ‘idée de nation, op. c it, pp. 23 ss. - ta l com o a relatam H erm an C onring
(1606-1681) em seu liv ro D e origine ju ris Gerrnanici, objeto de tanta m edita­
ção p a ia Herder e S avigny e, um pouco m ais tarde para C hristian Thom asius
(1655-1728).
404 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Para H otm an, as origens do povo da França (com o, para


M aquiavel, as origens do povo da Itá lia ) e a vid a profunda da
nação são a base sobre a qual se ed ifica o direito p o lític o do
reino. Sem dúvida o L ’A nti-T rib onian continua sendo, como in ­
dica seu títu lo , um a obra de crítica e de polêm ica: reprova o
“ crim e de Triboniano” , além de acusar Justiniano e seus glosa-
dores. O tema “nacional” não é desenvolvido nem sequer tratado
por ele próprio. M as, falando do “ direito francês” , referindo-se
em “ língua francesa” aos usos das províncias francesas, H otm an
mostra (e, às vezes, demonstra) m elhor do que qualquer outro,
até mesmo que B odin em seu M ethodus, que existe um a alm a
do povo para a qual, desde o rei Dagoberto ou os filh o s de
C lóvis, “ a razão escrita” é um a estranha. “A meta deste discurso” ,
escreve ele na Epístola dedicatória a M . de Thum ery, “ não é
banir da França essas Pandectas, esse Código, esses A utên­
ticos, tampouco os outros textos dos antigos, mas sim mostrar,
a exem plo dos próprios romanos que curvaram a seu uso as leis
das outras nações, até onde o estudo desses livros pode servir
aos nossos franceses, que devem ter como pólo de sua navegação
nesse grande e vasto mar, não um a vã curiosidade de aprender
com um trabalho grande e demorado coisas infrutíferas, algu­
m as parecidas com as maçãs de Sodoma, belas por fora, cheias
de cinzas por dentro, mas a escolha daquilo que há de bom , de
sólido e que se pode relacionar utilm ente com o uso e com as
leis do país deles.” 93
N o entanto, a idéia de nação, que H otm an tom ava o eixo
da inteligibilid ad e do direito dos franceses, não devia ser ver­
dadeiramente tematizada antes de longas décadas. Com o subli­
nha o historiador norte-am ericano D . R . K e lley94, para isso
serão necessários “ dois séculos e m eio” e “um a revolução v io ­
lenta” . .. A in d a assim, a tem ática nacional só surgirá num con-

93. F . H otm an, L 'Anti-Tribonian, E pístola dedicatória, s.p.; cf. pp. 136
e 139.
94. D . R . K e lle y ,r i Revolutionary Ordeal, 1973; cf. também Foundations
o f Modem H istorical Scholarship Language, Law and History in the French
Renaissance, 1970.
TERCEIRA PARTE 405

texto intelectual confuso em que se defrontarão concepções f i ­


losóficas opostas.

As duas lógicas da nação na época m oderna

Quando o pensamento ju ríd ic o -p o lític o do século X V L H


se decide e apela para a idéia de nação, está longe de ser unívoco.
D e um lado, a idéia de nação condensa, na m ente dos filó so fo s
do Ilum inism o e da burguesia ascendente, todas as exigências do
direito político moderno, de tal maneira que os deputados do ter­
ceiro estado, em 17 de ju n ho de 1789, se proclamarão “Assem ­
bléia N acional Constituinte” . D o outro, a idéia de nação extrai
seu vig o r da carne da história e do sentim ento de pertencer a
um a comunidade, como se o coração, nela, falasse m ais alto do
que a razão. Por isso, vem os erguer-se, um diante do outro, o
Estado-nação pensado e desejado pelos homens da Revolução
Francesa e a nação-Estado na qual vibram as aspirações da al­
m a de um povo. Contra a segurança racional dos princípios do
Estado-nação, erguer-se-á o ardor belicoso do sentimento nacio­
nal, pronto, desde seu despertar, para solapar as bases do direi­
to p o lítico m ergulhado na fria abstração e na rígida coerção das
instituições estatais.

A vontade geral e o Estado-nação: o exemplo de Sieyès. —


Quando os Parlamentos do A n tig o Regim e adotam um tom crí­
tico definindo-se como “ os intérpretes da nação perante o rei” 95,
fic a claro que são os prim eiros a conferir um sentido p olítico,
até ju ríd ic o , ao term o “nação” e que prenunciam o entusiasmo
com que a burguesia acolherá essa mutação semântica. Desse
m odo, prepararam a prim eira fig ura da idéia nacional. E la se
desenha, na filo so fia do Ilum inism o francês, como o resultado de
um a racionalização do direito p o lítico . A intelligentsia esclare­
cida do século XVm acredita na legitim idade do Estado racio­
nal, que exprime a vontade soberana do corpo político edificado

/
95. J .-Y . G uiom ar, L 'idéologie nationale, 1974, pp. 27 ss.
406 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

pelo contrato num procedim ento m atem ático96. Esse esquema


geral é o que Sieyès, herdeiro de Rousseau sem ser adepto de
suas teorias, desenvolveu ao estabelecer a equação do Estado e da
nação. Com o tal, tem a paternidade do que J. Habermas deno­
m ina “ o patriotism o constitucional” .
A nação, d iz Sieyès, “ é u m corpo de associados que vive
sob um a le i com um e é representado pela mesma legislatura” 97,
sendo em conform idade com essa definição que o terceiro
estado — “nação completa” - se proclam ou “Assem bléia N a ­
cional” por 491 votos a favor e 89 contra. Sem dúvida a nação
tem , por suas raízes, um caráter originariam ente natural. M as
súa evolução, em três etapas sucessivas segundo Sieyès, é irre­
versível: de in íc io nascida do jo g o das vontades individuais
cuja associação é a fonte de todo o poder, ela se m anifestou,
num segundo m om ento, como a unidade de uma comunidade-,
mas, como esta era demasiado numerosa para agir com o von­
tade comum, atribuiu-se um governo que exerce por procura­
ção o poder da vontade geral98. D epois, num terceiro m om en­
to, a vontade da nação age por representação-, os delegados não

. 96. É preciso recordar aqui que, segundo Hobbes, o contrato resulta de


um cálculo teleológico de interesses efetuado pela razão e que, segundo Rous­
seau, a diferença entre a vontade geral gerada pelo contrato social e a vontade
de todos se pensa em termos matemáticos, m uito precisamente segundo os esque­
mas do cálculo integral: ela não é a sim ples “ agregação” ou soma aritm ética das
vontades individuais, mas resulta de sua “ integração” no corpo p o lític o (Le con­
traí social, liv . I, cap. V , p. 359). Essa idéia, sugerida por G . G urvitch em seus
cursos, fo i retomada e desenvolvida por A . Philonenko. C f. em particular Théorie
et Praxis, pp. 14 ss., que recorda o contexto m atem ático no qual se desenvolveu
o pensamento do contrato.
97. E . Sieyès, Q u’est-ce que le tiers état?, op. cit., p. 31.
98 . Ibid., p. 66. “Observemos a esse respeito várias verdades: 1. A co­
m unidade não se despoja do direito de querer. É sua propriedade inalienável.
E la só pode delegar seu e xercício ...; 2 , O corpo de delegados pode nem se­
quer ter a plenitude desse exercício. A com unidade só pôde confiar-lhe, de
seu poder total, aquela porção que é necessária para m anter a boa ordem.
N ada de supérfluo é dado, nesse ponto. 3. Portanto, não compete ao corpo de
delegados alterar os lim ites do poder que lhe fo i confiado. Concebe-se que
essa faculdade seria contraditória consigo mesma.”
TERCEIRA PARTE 407

agem em seu próprio.nom e, mas em nom e da nação in te ira ".


D a í em diante, não se pode dar marcha a ré: a nação é a entida­
de p o lític a form ada pelo povo. N ão se caracteriza pela antiga
hierarquia das três ordens; é o “ corpo público” em que todos os
membros são iguais100. E m conseqüência, só a nação tem o d i­
reito de fazer a Constituição na qual repousam todas as estrutu­
ras jurídicas da sociedade c iv il101. A ssim , um governo só exerce
o poder legítim o na m edida em que é constitucional e expressa,
pela mediação representativa, a vontade da nação inteira, “ gran­
de corpo de cidadãos” 102. Sendo a nação o próprio povo, é o
único princípio de legitim idade do Estado e, portanto, o único
princípio de validade de seu direito: “D e qualquer m aneira que
um a nação queira, basta que ela queira; todas as formas são
boas e sua vontade é sempre a le i suprema.” 103
N o seu m ilitantism o democrático, Sieyès afirm a que “ os
representantes do terceiro são os verdadeiros depositários da
vontade nacional” 104. M as sua lógica ju ríd ic a é m ais profunda
do que a ideologia já republicana que ele tom a o eixo do regi­
me p o lítico da França do faturo: ela expõe com todo rigor, na
perspectiva a rtificialista e construtivista do racionalism o con­
tratual, o axiom a de u m Estado-nação105: o Estado-nação é o
lugar da vontade geral nascido do contrato que, voluntariam en­
te, os súditos assinaram. A Declaração dos direitos do homem
e do cidadão* de 26 de agosto de 1789, consagrará essa con­
cepção do Estado: “ O princípio de toda soberania reside essen-

99. Ibid., p. 66. A “vontade com um representativa” tem duas caracterís­


ticas indeléveis: 1. E la “não é plena e ilim ita d a no corpo de representantes;
não passa de um a porção da grande vontade com um nacional” ; 2. O s delega­
dos “ não a exercerem como um direito próprio, é o direito alheio; a vontade
com um está a í apenas em comissão” .
100. É por isso que Sieyès invoca o “voto por cabeças” e não “por or­
dens” , pp. 37 e 49.
101. Ibid., p. 64.
102. Ibid., p. 31.
m . Ib id .,-g. 69.
104. Ibid., p. 82.
105. Ibid., p. 82: “ O terceiro abarca tudo o que pertence à nação e tudo
o que não é o terceiro não pode se considerar com o sendo da nação.”
408 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

cialm ente na nação” (art. 3 )106. Portanto, como a nação se iden­


tific a com o povo soberano, a nacionalidade coincide com a
cidadania. Toda um a litu rg ia pode assim envolver o conceito
do Estado-nação: as festas nacionais, a guarda nacional, a edu­
cação que Condorcet concebe como nacional, o Panteão nacio­
nal, 0 Louvre palácio nacional, logo o exército nacional que
C am ot criará etc.107, m ostram que o único fundam ento do Es­
tado é a comunidade pública. N em por isso a m onarquia é con­
denada. N ão obstante, o “rei dos franceses” só extrai seupoder
da nação, pois apenas ela é soberana; ele é o seu representante
(Robespierre chegará até a dizer que é “ o funcionário e o dele­
gado” dela)108. Para que assim seja, não há necessidade algum a
de considerar o rei imago D e i; na terra dos homens, o direito
p o lítico , baseado na realidade nacional, é edificado pela razão.
Sieyès tem , contudo, realism o suficiente para não invocar
a “ deusa razão” ; a razão, d iz ele, “não gosta do m istério” 109. E m
sua “busca da verdade” 110, a razão não é ávida de especulações
belas ou audaciosas; procura a utilidade prática. Nessa pers­
pectiva, a “ saúde” do Estado exige que já não se form em “essas
combinações m orbíficas, capazes de viciar os princípios m ais
essenciais da vitalidade” . Digam os, com outro vocabulário, que
a razão prática para a qual se volta Sieyès para pensar a França
do futuro tem a tarefa urgente de preservar “ os direitos do ho­
m em em sociedade” 111 e de prom over as liberdades dos cida-

106. Lê-se mesmo na Constituição de 1791, art. 2 , títu lo H l: “A nação,


a única de que emanam todos os poderes ...”
107. René Rém ond, La vie politique en France, 1.1, cap. IX , relata até
que a Convenção incum biu o p in to r D a v id de desenhar um traje nacional a
fim de fazer esquecer as vestim entas tradicionais das províncias.
108. Sieyès, que compreendeu bem Rousseau, ainda que “m uitas vezes
se separe dele, não entende que a soberania seja possuída pelos in d ivíd u os
que com põem o corpo público ou o povo. Conhece a diferença entre “ a vo n ­
tade de todos” e “ a vontade geral” . A nação, acha ele, é um “todo” e se d e fi­
ne juridicam ente como um a “pessoa m oral” cujos interesses não coincidem
necessariamente com os interesses dos indivíduos considerados utsinguli.
109. Sieyès, Qu 'est-ce que le tiers état?, op. cit., p. 92.
110. Ibid., p. 93 (essas são as últim as palavras do lib e lo ).
111. C f. o Second projet que Sieyès preparou para a “D éclaration des
droits” , Archives parlementaires, V T ÍI, pp. 422-4.
TERCEIRA PARTE 409

dãos. O Estado-nação repousa num princípio de autonomia: quer


um povo livre e responsável..
À s vésperas da Revolução, o Estado ao qual aspira a França
é portanto, como se quer dizer, o Estado do povo ou o Estado
da nação. Se, como constatava M irabeau, a França ainda era de
fa c to apenas “um aglomerado inconstituído de províncias de­
sunidas” , o objetivo visado por Sieyès em seu pensamento pro­
gram ático é fazer da idéia, de nação o cadinho da unidade e da
indivisib ilid ad e do Estado. A ssim compreendida, a nação não
se confunde nem com o território lim itad o pelas fronteiras
naturais nem com o caráter natural do povo considerado etnia:
é verdadeiramente um a idéia da razão. A ssim , não é pelo cora­
ção que nos apegamos a ela; é pela vontade cívica que subscre­
ve aos princípios da república. Pela lógica im anente que sus­
tenta seu conceito, o Estado-nação se pretende unitário e leg is-
centrista. A ssim está autorizado, para reforçar sua coesão, a
transferir para a nação os bens do clero, desse m odo transfor­
mados em “bens nacionais” , a form ar pelo recrutamento obri­
gatório um “ exército nacional” , a fazer que seus soldados de­
fendam “ causas nacionais” etc., o que sig n ifica que, Sob o
signo da razão, o Estado-nação, em seu conceito e em suas in ­
cidências práticas, é pensado como um princípio norm ativo cuja
realização, im pregnada de um im enso otim ism o ju ríd ic o , seria
a promoção do povo e da liberdade.
Entretanto, a mecânica conceituai e ideológica do Estado-
nação comportava em suas engrenagens um risco de contradi­
ção e de arrebatamento. A história do direito p o lítico é na rea­
lidade animada, como o próprio pensamento, pela “ le i de duplo
frenesi” que leva de um extremo ao outro, chocando-se sempre
com os lim ites do im possível. O Estado-nação tinha em seus
recônditos profundos a am bivalência de um m isto em que a
vid a e a afetividade ladeiam a racionalidade. Por isso, o racio-
nalism o construtor que inspira a concepção do Estado-nação
devia, como que por um a lógica dialética, chocar-se com as
forças ressurgentes do naturalism o. N o horizonte da idéia de
nação, o sentimento de nacionalidade era chamado a despertar
e a crescer, geralmente num clim a de hostilidade para com o
410 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

direito político edificado pela Revolução Francesa. In só lito mas


poderoso, anim ado por forças vivàs destinadas a desabrochar
num outro m odelo do direito p o lítico , o sentimento de naciona­
lidade inspirou um a reação crítica obcecada pela vontade de
provocar o enfraquecimento das form as racionalistas e idealis­
tas do direito político no Estado do contrato.

O despertar “n acio na litário Fichte e H egel - A in d a que


a história das idéias seja propícia ao jo g o das antíteses, precisa­
m os aqui escapar da arm adilha das alternativas taxativas. E m
sua segunda figura, a idéia nacional, no curso de seu desenvol­
vim ento, opôs-se sem dúvida ao Estado-nação, isto é, à nação-
contrato tal como se afirm ou, de Rousseau à época da Revolução.
Entretanto, ainda que ela tenha despertado graças à Contra-Re­
volução, ou tenha adquirido m uita intensidade na crítica alemã
do Ilu m in ism o francês, essa segunda form a da idéia de nação,
em sua lógica interna, não é a antítese da prim eira. É verdade
que seu conceito se alim enta de frêm itos de vid a que são estra­
nhos às certezas da razão. M as o novo sentim ento da nação não
nasceu de um em pirism o m edíocre m ergulhado na fac tib ilid a -
de: corresponde ao âmago da alm a dos povos.
Entre os antigos, não existia o sentim ento nacional. E m
compensação, para além das prim eiras intuições que se podem
perceber na obra de M aquiavel, que conclama os príncipes da
Itá lia a se livrarem dos bárbaros112, ou de B odin, que distingue,
no grande círculo natural das repúblicas, os povos do M e io -D ia ,
do M e io e do Setentrião113, ergue-se um a onda poderosa graças
à qual, de M ontesquieu a Fichte e a H egel, desperta o senti­
m ento da nacionalidade.
O bom legislador, observava M ontesqúieu114, tem como
prim eira obrigação “ estar atento para não m udar o espírito ge­
ral de um a nação” , para seguir seu “ gênio natural” . N a época

112. M aquiavel, O príncipe, cap. X X V I: “Exortação a tom ar a Itá lia e a


liv rá -la dos bárbaros.”
113. B odin, Methodus, V , pp. 313 ss.; Les Six Livres de la République,
V , I, pp. 663 ss.
114. M ontesquieu, L ’esprit des lois, liv . X IV e X V .
TERCEIRA PARTE 411

das glórias racionalistas do Ilum irdsm o, nem sempre se com ­


preendeu o que queria dizer o autor de O espírito das leis: algu­
mas pessoas acharam que ele se inclinava para um m aterialis­
m o que reduziria o direito p o lític o ao conjunto das determina­
ções naturais do solo, do clim a, do caráter ou do sangue; outras*
pelo m otivo de que “ o espírito geral de uma; nação” envolve
tanto elementos culturais (usos, língua, costumes, religião etc.)
como elementos naturais, m odificaram o pensamento de M o n -
tesquieu num sentido historicista; outras ainda denunciaram o
escândalo, acusando-o de sp inozism o... Entretanto, principal-
m ente na filo s o fia alemã, Fichte e Hegel apreenderam o alcan­
ce da tese defendida por M ontesquieu115.
A obra de Fichte, nesse campo116, não deixa de suscitar
delicados problemas de interpretação. M as renova vigorosa­
m ente a m aneira de se pensar a nação.

115. N a França, estabeleceu-se tam bém u m certo acordo, nos anos que se
seguiram à Revolução, para criticar a idéia do Estado-nação defendida por
Sieyès e a exigência do Estado m áxim o form ulada por m uitos jacobinos. Por
exem plo, em 1793, Joseph de M aistre advertiu seus companheiros dos perigos
que, segundo ele, a França corria e denunciava “o dogm a fatal e absurdo” da
soberania do povo-nação. Com o R ivaro l, embora com m ais moderação, queria
revelar ao m undo os riscos m ortais que envolvem “as verdades puramente espe­
culativas” , de que faz parte a idéia de Estado-nação. Chaieaubriand considerava
que, por sua racionalidade de raciocínio, O contrato social de Rousseau havia
“ feito m uito pouco bem e m uito m al” . M m e. de Staêl, próxim a de B . Constant
e dos irm ãos Schlegel, exercita séu talento crítico contra Rousseau. Os emigra­
dos, os ideólogos, os legitim istas e mesmo os republicanos constitucionalistas
acusam os defensores do Estado-nação de pensar como m etafísicos, isto é, co­
m o “ sonhadores” ! N os fracassos previsíveis do direito p o lític o revolucionário,
cresce o refrão: “À culpa é de Rousseau.” Essa culpa reside no caráter abstrato
do direito do Estado-nação, que ignora parâmetros concretos que lhe são neces­
sários; ele se enraíza num solò, se exerce sobre um território, é obra das gera­
ções passadas, é m odelado pela língua, é trazido pelo am or à pátria, é tributário
dos usos e costumes, traz a marca das tradições e da história, v iv e do apego e do
am or dos homens. Portanto, a nação não é o Estado. Seu conceito, no âm bito de
um vitalism o organicista, conota a especificidade, portanto, a individualidade
irreprim ível de um povo e a intim idade de sua alm a. São temas que, algumas
décadas m ais tarde, serão retomados por M içhelet, M a zzin i e Renan.
116. C f. principalm ente Considérations sur la Révolutionjrançaise, 1793;
Les dialogues patriotiques, 1805; SurMachiavel écrivain et s w despassages de
412 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

E m 1793, entusiasticamente, Fichte justificava, em Con­


siderações destinadas a re tificar os ju íz o s do p úblico sobre a
Revolução Francesa, o espírito de liberdade que anim ara “ o
acontecimento sem igual” , e aprovava sem reservas os p rincí­
pios organizacionais condensados, a seu ver, pela D eclaração
dos direitos do homem e do cidadão e pela Constituição de 1791.
E m 1796, em O fundam ento do direito natural, ele explicita a
base filo só fic a dessa justificação e propõe o esquema de um
“ideal republicano” 117, cujas peças-chave seriam o sufrágio u n i­
versal, o sistema de legislação e o controle do governo por um
eforado oriundo do povo. M as, a partir de 1805, Fichte adota
um novo tom que o afasta das teses “ revolucionárias” . Encontra
no pensamento de M aq uiavel o substrato realista da m issão
educativa da qual pensa, como Herder118, que está investida a
nação alemã. Depois, os célebres Discursos à nação alemã,
pronunciados em B erlim durante o inverno de 1807-1808, ex­
põem o que é - ou m elhor, o que deve ser, na hora que a Prússia
está ocupada pelos exércitos de N apoleão - a “ nação” , da qual
faz o objeto de um “patriotism o nacionalista” ardoroso.
Três temas, nos quais a paixão não está ausente, se desta­
cam desses Discursos em que a nação, identificada com um a
comunidade natural, se desenha como a expressão espontânea
da vid a de um povo: a língua, a história e a religião provariam
a naturalidade da nação. A força o riginal e viva da língua e xp li­
caria a “ geração” da comunidade nacional e o vín culo estreito
que a une num todo. A história, singularmente, a história m edie­
val, teria contribuído amplam ente para criar a alm a da nação
alemã. A religião aproxim aria os corações ao cham á-los à hu­
m ildade diante de DeuS. N um a argumentação assim, tudo se
opõe à audácia orgulhosa da razão, senhora do direito p o lítico
no Estado moderno e fundadora do ideal republicano fo rm ula-

ses oeuvres, 1807 (a tradução desses textos se encontra em Machiavel et autres


écrits philosophiques etpolitiques de 1806-1807, Payot, 1981); Discours à la
nation allemande, 1807-1808.
117. C f. A la in Renaut, Le système du droit. Philosophie et droit dans la
pensée de Fichte, P U F, 1986.
118. Herder, Lettres pour l ’avancement de l ’humanité, 1795.
TERCEIRA PARTE 413

do nas obras anteriores. Levanta-se então a questão da “ evolu­


ção” do pensamento do direito p o lítico em Fichte: depois da
justificação do direito moderno, cujos princípios culm inam na
obra legisladora da Revolução Francesa, teria Fichte, afastan-
do-se irrem ediavelm ente do Ilu m in ism o , realizado um a revira­
volta filo s ó fic a completa para condená-lo e ceder às sereias do
pensamento romântico?
O ponto é controvertido, tão d ifíc il é determinar “ a verda­
deira im portância dos Discursos à nação alem ã” 119. Contudo,
se é d ifíc il considerar que o jo vem Fichte de 1793 aderia pura
e simplesmente, para além dos valores defendidos pela Revo­
lução Francesa, ao artificialism o contratualista e à discursivi-
dade lógica do direito político do Aufklãrung (a obrigação m oral
era, para ele, m ais profunda e m ais verdadeira do que a coerção
legal; opunha-se à onipotência do Estado louvada pelos jacobinos;
refutava por antecipação a concepção “positivista” do direito
invocado por um racionalism o desenvolvido até seus extre­
m os), é ainda m ais d ifíc il sustentar que ele é, em 1807, o exal-
tador do rom antism o p o lític o 120. Seguramente, o desacordo do
filó s o fo com as ambições ju ríd ico -p olíticas dos  u jklãrer está
presente nos Discursos como estará na Staatslehre de 1813.
M as é um a atitude sim plificadora e errônea crer que, porque
“ o povo e a pátria [...] ultrapassam amplam ente o Estado” 121, a
crítica do direito constitucional burguês é efetuada por Fichte
“ do ponto de vista do rom antism o” 122. D e fato, se Fichte, na
lógica da sua crítica, atribui um substrato lingüístico, histórico
e religioso à comunidade nacional pensada como unidade or­
gânica e espiritual123, se considera que ela é, em sua unidade e
em sua autonom ia, anterior ao Estado, ele não arraiga de m odo
algum o direito político no sentimento in d ivid u al ou na espon-

119. R . Lauth, títu lo do artigo publicado na Revue théologique et philo­


sophique, Lausanne, 1991, III.
120. Blandine B arret-R riegel, L ’État et les esclaves, 1979, p. 159.
121. Fichte, Huitième discours, trad. fr., Im prim erie nationale, 1992,
p. 220.
122. A la in Renaut, Introdução à tradução citada dos Discours.,,, p. 38.
123. Fichte, Huitième discours..., p. 215.
414 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

taneidade m ais ou menos anárquica da vid a do povo; tampouco


nega o papel que cabe, sob a égide da razão prática, ao Estado
e à legislação naquilo que m ais lhe fa la ao coração: “ o am or do
ind ivíd uo pela sua nação” 124. Portanto, não se deve exagerar a
parte da polêm ica antim odem a nos Discursos à nação alem ã.
O fato de, nesses discursos, a idéia de nação não ser aquela de
Estado-nação defendida por Sieyès com base no contrato vo ­
luntário m ais ou menos explicitam ente dependente da m áquina
p o lítica do racionalism o especulativo125, não basta para que a
assim ilem os ao “ gênio nacional” celebrado pelos rom ânticos,
seja quando evocam a emergência de um a nação-Estado, seja
quando desejam ò desaparecimento das coerções da instituição
estatal. Portanto, é temerário apresentar Fichte como o crítico
incondicional, em nom e do paradigm a naturalista da nação, do
construtivism o que caracteriza a modernidade ju ríd ica. Isso
equivale a dizer quão falso soa arregim entá-lo, ao lado dos
irm ãos Schlègel e de N ovalis, na coorte daqueles que, alegan­
do a superioridade e a vocação histórica da alm a alemã, se tor­
nam os advogados do im perialism o pangermanista. A interpre­
tação que A . Renaut propõe em sua apresentação dos Discursos
situando a idéia de nação, segundo Fichte, num a terceira v ia -
aquela em que a nacionalidade é educabilidade126 - abre pers­
pectivas filo só fico-p olíticas m uito atuais. Talvez isso seja im ­
plantar a ambição de Fichte num profetism o em que não pen­
sava, preocupado como .estava com a corrupção e as deficiên­
cias da Alem anha de seu tem po127. Ocorre que, indo além dos
problemas da hermenêutica textual que se apresentam ao histo­
riador da filo s o fia sobre o ponto de saber se há continuidade
ou ruptura no pensamento p o lítico de Fichte128, a ênfase, na

124. Ibid., p. 211.


125. Ibid., p. 233.
126. A la in Renaut, Introdução citada, pp. 40 ss.
127. Fichte, Le caractère de Vépoque actuelle, 1804-1805.
128. X a v ie r Léon, Fichte et son temps, A . C o lin , 1927; M a rtia l G ueroult,
Études sur Fichte, A ubier, 1974: A le x is Philonenko, L'oeuvre de Fichte,
V rin , 1984, propõem um a leitura m onista à qual se opõe Charles A ndler, Le
pangermanisme philosophique (1800-1914), 1917, e Nietzsche. Sa vie et sa
pensée, 1.1: Les précurseurs-, G allim ard, 1958, liv . I, câp. 5, pp. 70-7.
TERCEIRA PARTE 415

filo s o fia dos Discursos, é dada problem aticam ente (e não m ais
dogmaticamente) à questão do fundamento do direito p olítico.
Isso basta para indicar que os âmbitos, e os esquemas do direito
p o lítico moderno oficialm ente consagrados pelas Constituições
da França revolucionária podem ser abalados, talvez até partidos.

F o i isso que compreendeu perfeitam ente H egel, com de­


masiada ffeqüência apresentado unilateralm ente como o filó ­
sofo do “ Estado racional” na m edida em que é a form a estatu­
tária da p o lítica do seu tempo - o que é esquecer que a razão é,
para H egel, a negação da abstração própria do entendimento
que promoveu a Revolução. D e fato, H egel sempre quis pensar
a vida. É por isso que, hostil ao form alism o, ao dogmatismo do
verdadeiro e do falso, às abstrações do entendimento que p in ­
tam tudo de cihzá, ele denunciou, já em suas obras de ju ventu ­
de, a invasão da sociedade e do direito p o lítico pelas form as do
pensamento mecanicista e elogiou as forças do Volksgeist que
fazem com que a Constituição de um Estado seja realmente a
obra de um povo.
O Volksgeist introduz no pensamento do direito p o lítico ,
se não um a dimensão nova129, pelo menos um parâmetro com
o qual fic a claro que, daí em diante, o governo dos homens deve
se im portar. O ponto in ic ia l de Hegel é sua vontade de volta ao
concreto - vontade em cujo nom e ele denuncia, como já fiz e ­
ram os críticos da Revolução Francesa, o caráter especulativo e
abstrato das teorias contratualistas, sua opção filo s ó fic a racio-
nalista e individualista, ou o a-historicism o de seu “ ilu m in is -
m o” . O Estado edificado segundo tais critérios é, como requer

129. M u ito jo ve m , H egel leu a H istória universal de Schrõckh, que


extraiu às. O espirito das leis de M ontesquieu a idéia do “ espírito geral de um a
nação” . A lé m disso, H egel disse adm irar M ontesquieu, em quem os temas da
honra, dos n íveis e das diferenças, da le i natural etc., prenderam sua atenção;
sobretudo M ontesquieu, disse ele, “baseou sua obra im ortal na intuição da
individualidade e do caráter dos povos” . Seu m érito, prossegue H egel, é não
ter “ deduzido pura e sim plesm ente as instituições e as leis singulares da pre­
tensa razão” , Les manières de traiter scientifiquement du droit naturel, 1802,
trad. fr., V rin , 1972, p. 97.
416 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a lógica intrínseca da determinação analítica, um Estado sem


substância130. O intelecto separador qüe concebeu o Estado do
contrato im pede a vida de se expressar nele, e esse Estado, des­
provido de vida, não corresponde às exigências do espírito: fic a
sem alm a. Ora, segundo H egel, a verdade do m undo ju ríd ic o -
p o lítico não reside num direito form al. Os textos de juventude
do filó s o fo dizem mesmo que o Estado deve ser um a produção
da vida, um a totalidade concreta que, integrando os diferentes
momentos de seu desenvolvim ento num a “ grande tragédia éti­
ca” 131, m ediatiza o conteúdo de sua própria história. Nessa visão
organicista que é dominada pelo espírito do Todo132, não se
pode portanto deixar de lado no Estado aquilo que faz a alm a
coletiva e específica de um povo. Desse “gênio” , único e in d i­
v is ív e l, nenhum atom ism o redutor jam ais dará conta. Sua espi­
ritualidade é irredutível. N em fator a p rio ri nem resultado da
soma das individualidades, um povo é anim ado por um alento
com um que, conform e a necessidade universal, veicula suas
aspirações e seus valores. “ O clim a determinado de um povo e
sua época na cultura do gênero universal pertencem” , escreve
Hegel, “ à necessidade e, da cadeia - que se estende longamente -
desta, somente um único elo escapa ao seu presente - este elo
deve ser concebido, segundo o prim eiro lado, a partir da geo­
grafia, segundo o outro, a partir da história.” 133
N a organização da individualidade ética, essa necessida­
de im anente m anifesta o in fin ito presente no fin ito ; o univer­
sal, no cerne do particular, requer um a verdadeira fé que um
povo exprim e com sua cultura134. Ora, os “modernos” - isto é,

130. C f. Jean-François Kervégan, L e citoyen contre le bourgeois. Le


jeune H egel et la quête de “l ’esprit du tout” , in Rousseau, die Révolution und
derjunge Hegel, H . F . Fulda e R . P. H ortsm ann (ed.), K lett-C otta, 1991, pp.
279-301.
131. E . Cassirer, Le mythe de l ’État (19 46), trad. fr., G allim ard, 1993,
p. 343.
132. H egel, Principes de la philosophie du droit, § 352.
133. H egel, Des manières de traiter scientifiquement du droit naturel;
1801, trad. citada, p. 95.
134. “A ssim como a totalidade da vid a está tanto na natureza do p ólipo
como na natureza do rou xino l e do leão, o espírito do m undo tem , em cada
TERCEIRA PARTE 417

para H egel, os hom ens desde o advento do cristianism o até o


A ufklãrung - ocultaram essa espiritualidade ao mesmo tempo
desprezando totalm ente a dim ensão histórica do direito p o líti­
co e cedendo, sob a ascendência de um a razão teórica inteira­
m ente abstrata, a um a obsessão positivista. Transform aram
um espírito em destino. Portanto, o hom em se v iu alienado e o
direito p o lítico , dilacerado: no Estado m oderno, a vid a acabou
m orrendo135.
A fim de conjurar “ a dissolução e a separação da totalida­
de ética” 136, portanto, do “ espírito do povo” , a tarefa da filo s o ­
fia e, singularmente, da filo s o fia do direito hegeliana, é recon­
c ilia r a abstração do conceito com a efetividade espiritual. E m
outras palavras, o filó so fo deve trabalhar para a união efetiva
entre o universal e o particular reativando todas as forças do
Volksgeist. Prosseguindo o desenvolvim ento dos temas que o
obcecavam em sua juventude durante os anos no seminário de
Tubingen, H egel explica longamente, em 1821, em P rin cíp ios
da filo s o fia do direito - tese bem conhecida - que um Estado
não se confunde com o form alism o ju ríd ic o de sua C onstitui­
ção e de suas leis positivas. E le envolve a realidade viva e espi­
ritu a l de um povo, realidade tão profunda que, mergulhada no
m ais profundo da comunidade, é sua interioridade e faz o seu
valor. Por esquecer que a objetividade da le i deve, para ter sen­
tido e eficiência, ser vivific a d a pelo “ costume ético em que se
firm a imediatamente a singularidade populaT’137, a Constituição
da A lem anha já é o “monstro frio ” que N ietzsche denunciará:

figura, seu sentim ento de si m ais surdo ou m ais desenvolvido, porém absoluto,
e, em cada povo, sob cada todo de conteúdos éticos e de leis, sua essência, e
ele a fru i de si mesmo” (ibid., p. 96).
135. “Pois leis que subtraem à dom inação soberana do todo determ ina­
ções e partes singulares, [que] excluem destas a autoridade daquele e consti­
tuem as exceções do singular em relação ao universal, são em si algo de nega­
tiv o e um sinal da morte in ic ia l que, para a vida, se tom a cada vez m ais amea­
çadora...” (ibid., pp. 99-100).
136. Ibid., p. 100.
137. Bem ard Bourgeois, Le droit naturel de Hegel. Commentaire, V rin ,
1986, p. 600.
418 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

edificada pelo cálculo contratualista138, estranha ao “ gênio da


nação” , ela não dá conta do que é, em sua essência, um Estado.
A Alem anha, m artela H egel, “já é um Estado” porque nela, sob
o signo do individualism o atom ístico, o direito público se dis­
solveu — se corrompeu, m esm o - no direito privado. D isso re­
sulta que a Constituição da A lem anha, em seus princípios bem
como no texto dos artigos que alinha e justapõe, tom ou-se, por
seu form alism o ju ríd ic o abstrato, a negação da constituição
real orgânica do povo alemão. N ela, arreganha os dentes e amea­
ça “ um sinal de m orte in ic ia l” e esse é, inexoravelm ente, o des­
tin o do direito do Estado m oderno.
Oposto ao individuahsm o gélido do Estado form al em que
“ a realidade do universal e do direito perdeu toda crença e toda
verdade” , o “gênio de um povo” , a um só tempo imanente e trans­
cendental, é o ím peto de vid a e de espiritualidade que fa z a sua
originalidade. E le o distingue dos outros e, m obilizando as ener­
gias que extrai da terra natal e n utriz, da im agem dos ancestrais
e das glórias do passado, da força das tradições e da comunidade
de interesses, ele confere, sozinho, um a alm a a u m Estado. A le ­
gando a comunidade popular e a unidade de sua destinação, ele
eleva então o pensamento do direito político a seu momento subs­
tancial. “ O espírito do povo” tom ou-se o autor de sua C onstitui­
ção e, idealmente, “pode-se conhecer o sistema inteiro no qual se
organiza a totalidade absoluta.” 139
Acreditar qüe, para Hegel, deve-se substituir um Estado
form al dos cálculos da razão por um Estado de tipo orgânico
fundado na energia profunda da raça é um grande erro que,
por parte de certos intérpretes, certamente não é inocente. A
“ dialética dos povos’’, recolocada, corno devido, na econom ia
geral do sistema hegeliano, significa que, para superar a cisão e
a infelicidade do hom em moderno, o direito político deve recon-

138. O contrato, segundo H egel, em razão mesmo de sua natureza, só


pode ter efeitos mecânicos e disciplinares, já que só d iz respeito a pessoas p ri­
vadas, em luta para fazer respeitar seus interesses.
139. H egel, Des manières de connaître scientifiquement le droit natu­
rel, p. 97.
TERCEIRA PARTE 419

c ilia r o universalism o abstrato do Estado prom ovido por um a


razão desencarnada com a particularidade viva e espiritual dos
gênios nacionais. Só então é que “ a ordem ética” conferirá subs-
tancialidade à ordem ju ríd ic o -p o lític a ; á reconciliação entre a
legalidade e a m oralidade é “ a vid a ética real e existente” pois,
nela, se efetua a unidade essencial do “ querer subjetivo” e do
“ querer geral” . O apelo à alm a dos povos é necessário para que
o racional e o real deixem de ser divididos.

Rum o à independência da nação

N o prim eiro quarto do século X I X , é extrema a descon­


fiança para com o direito político moderno. A s áridas idéias de
racionalidade, de ordem pública, de contrato social e mesmo
de progresso são postas no banco dos réus e há um entusiasmo
por tudo que é amor, calor e gênio. O Estado, em que reina a coer­
ção legal que para os cidadãos im p lica submissão à le i, é m ais
ou menos fustigado. Tem-se necessidade de sonho e, também,
de revolta. Aspira-se a substituir o “ saber totalizador” exigido
pelo direito p o lítico no Estado racional do contrato pela “ form a
fragmentada” de um direito que esposa a vid a e o m ovim ento.
N a verdade, essa aspiração, que pode parecer clara até nos ím ­
petos sentimentalistas que desencadeia, é repleta de m uitas am ­
biguidades e suscita, no m ovim ento da história e para a filo s o ­
fia do direito, um a hesitação bastante desconcertante. Com o o
estatuto conceituai e o alcance semântico da idéia de nação são
afetados pela am bivalência, abre-se um a brecha na compreensão
da “ coisa pública” e não tarda a criar na realidade p o lítica um a
ruptura de um novo tip o que apresenta o risco, por suas reper­
cussões, de provocar o abalo do direito nos Estados.
Sem ser necessariamente polêm ico e violento, o anti-racio-
nalism o pós-revolucionário esteia a idéia nacional num natura­
lism o espontaneísta que, afirm ando a prim itividade da nação,
reconhece-a anterior à associação que o Estado é, portanto, m ais
profunda do que o a rtificialism o constitucional e seu cortejo de
leis. A lguns afirm am m esmo seu caráter radical. Essa naturali­
dade da nação não chega apenas a se expressar em poetas ro­
m ânticos como N ovalis, mas tam bém em ensaios críticos como
420 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

os de J. Gõrres ou dos irm ãos Schlegel. D e todo m odo, para uns


e outros, ela se m anifesta pelo direito do sangue (ju s sanguinis)
e pelo direito do solo ( ju s s o li), tão profundam ente arraigados
num povo que, como se d iz comumente, são objeto de um amor
sagrado.
Sem dúvida, a idéia de nação, entendida como entidade
natural, continua em geral flu id a e indecisa. Por causa de suas
referências m últiplas, seu conceito é privado de critérios deci­
sivos a ponto de conter em si um a contradição. Com o se vê em
G uillaum e de H um boldt e em Fichte, o gênio nacional parece
só poder atingir sua plenitude politizando-se: é preciso que a
nação se tom e um Estado. O tema da nação-Estado, unitária e
independente, não tarda portanto, apoiando-se no caráter natu­
ral e irredutível da nacionalidade, a alim entar aspirações seces-
sionistas: a própria nação deve deixar a instituição em que se
sente sufocada e erigir-se em um novo Estado autônomo. Essa
ruptura, expressão de um a vid a com unitária que se elevou à
consciência de si mesma, é v iv id a e pensada como um a prom o­
ção e um a consagração. Portanto, contra o Estado-nação tal como
o pensava a França revolucionária - que, m ais do que nunca, é
declarada enrolada no form alism o ju ríd ic o e na abstração m e­
tafísica do racionalism o - é enaltecida a nação-Estado porque
é reconhecida como a expressão natural da vida.
Essa concepção “nacionalitária” consagra indubitavelm en­
te a tomada de consciência da unidade concreta da comunidade
nacional, u n ific a seus m últiplos componentes; separa-a dos ou­
tros povos, autonom iza-a e orienta-a para a independência de
um direito p o lítico novo. D e fato, opera-se facilm ente a passa­
gem da naturalidade nacional para a nacionalidade de tal form a
que, em meados do século X I X , o despertar das nacionalida­
des constitui “ a retórica da tribo” . Com as revoluções de 1848
na Europa, a idéia das “nacionalidades” parece ser o designa-
dor da substância dos povos; enriquece politicam ente a conota­
ção de idéia de “nação” e, na alm a coletiva, sempre pronta a se
inflamar, esta chegou a corresponder ao “ direito à independência”
ou ao “princípio da autodeterminação” . Para que um a nação,
por sua nacionalidade, afirm e verdadeiramente sua diferença
TERCEIRA PARTE 421

de m aneira concreta e tangível, deve defender-se contra qual­


quer form a de sujeição, rejeitar qualquer form a de dominação
exterior e, sobretudo, recusar integrar-se num Estado plurina-
cional. A reivindicação das fronteiras naturais ou da unidade
étnica - que, aliás, se m istura m ais ou menos com fatores eco­
nôm icos e demográficos - se tórna um tema de congregação140.

Ficar-se-ia tentado a pensar que, entre o Estado-nação,


oriundo do a rtifíc io calculador que é o contrato social e tendo
vocação para inventar a liberdade dos cidadãos, e a nação-Es-
tado para a qual tendeu, ao longo de todo o século X I X , o sen­
tim ento coletivo de um povo cujo gênio se m ostra naturalmen­
te decidido, há um a antinom ia que reflete pura e simplesmente
aquela, m ais am pla, entre o racionalism o e o rom antism o. Essa
tentação é sim plista e perigosa. Se é verdade que as idéias de
nação e de nacionalidade são, por sua naturalidade, um apelo
ao coração e à sentim entalidade, não é menos verdade que são
portadoras de um a carga m alsã de irracionalidade, evidenciada
pela exacerbação delas nas doutrin as nacionalistas.

C) A exacerbação nacionalista

A propensão da nação à sua autonom ização estatal, assu­


m indo o p e rfil de um a realização, gerou ambições expansio-
nistas cujos germes venenosos foram recolhidos pela ideolo­
gia. A concepção da nação-Estado, ligada ao sentimento da
nacionalidade natural de um povo, fo i logo sucedida, de fato,
num m ovim ento de exacerbação, por um a ideologia naciona­
lista. N a verdade, embora a exaltação dos valores nacionais
seja sempre um a comprovação do civism o e da lealdade, ela
não obedece a um m odelo doutrinário único e d efin itivo . Isso,

140. Pode-se pensar que no século X X a descolonização, que v ia de re­


gra se declara de form a geral erguida contraa colonização-civilização que teria
sido inspirada pelo pensamento racionalista do Ilum inism o, é um a conseqüên-
cia dessa concepção separatista da nação que tende a se erig ir em Estado.
422 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

aliás, não é m uito concebível em razão do caráter fluente e po-


lissêmico do termo nação. M as, apesar de seu pluralismo, as ideo­
logias nacionalistas se acompanham de um m ilitantism o que
constitui seu denom inador comum. Este pode resumir-se à m á­
xim a: “Quem quer o fim quer os meios.” A aplicação dessa m á xi­
m a atesta a gravidade da crise que dilacera o Estado-nação.
O pangermanismo forneceu um exem plo filosoficam ente
sig n ificativo da crise em que redunda o desenvolvim ento “ na­
cionalista” da idéia de nação em sua oposição ao racionalism o.

O exemplo do pangerm anism o

O pangermanismo é um a doutrina na qual, em nom e da


nação alemã, desenvolveram-se, com um a am plitude ve rtig i­
nosa, ambições colonialistas, sonhos expansionistas e im peria­
listas, apetites de anexação, um a vontade de conquista e um a
aspiração hegemônica que, cercados de elementos passionais,
como o racism o e a xenofobia, em geral levados até o m isticis­
m o, romperam os âm bitos constitucionais do direito p o lítico
m oderno141.
O pangermanismo pretendia fundamentar-se não apenas
no sentimento da grandiosidade intelectual, m ilita r e econômica
da Alem anha, mas tam bém na teoria da superioridade da raça
branca e, m uito especialmente, do povo alem ão142. Nesse povo,
como revela o livro de G obineau Ensaio sobre a desigualdade
das raças, desenvolveu-se, às vezes até o lugar-com um , um a
ideologia irracional cujas m otivações beiram um a m ística m al-
sã. O im perador G uilherm e I I se reportava - antes de M aurice
Barrès - à “ terra” e aos “m ortos” sublinhando que a nação é
fundamentalmente um fato da natureza; e, como não tinha outra
m eta além de fazer do I I R eich a revivescência do Sacro Im ­
pério Rom ano Germânico e a ressurreição dos Cavaleiros teutô-

141. E . Cassirer, Le mythe de l'É tat, D u culte des héros au culte de la


race, pp. 306 ss.
142. G f. A rthur de G obineau, Essai sur l ’inégalité des races, 1853-
1855, in Oeuvres complètes, Pléiade, 1.1, 1983: L ’histoire n ’existe que, chez
les nations blanches, liv . IV , cap. 1, p. 623.
TERCEIRA PARTE 423

nicos, ele professava um a concepção puramente racista do Es­


tado alemão. A superioridade do povo alemão, resumida na ex­
pressão “raça totalitária” , bastou para legitim ar um programa de
dominação po lítica que reivindica, em nom e da raça, o agrupa­
m ento de todos os povos de origem germânica (austríacos, ho­
landeses, ingleses, etc.) sob a tutela da autoridade do Estado
alemão. Com o “ a raça é tudo” e “ o deus da raça é um deus ciu­
m ento” , esse agrupamento se fará, se necessário, pela guerra,
já que é preciso destruir todos os valores que não sejam aque­
les da Grande Alem anha. A liá s, a guerra “ é a seleção natural
na qual os povos germânicos, perfeitos, triunfam sobre os povos
de valor medíocre, im perfeitos e fracos” . Para a Alem anha, sau­
dada como “nação condutora” , trata-se não só de exercer um
comando ao qual a força da vid a inserida na raça dá um caráter
irresistível, mas também de acrescentar a conquista à dominação.
F o i assim que o pangermanism o forjo u o sonho de um im pério
colonial que se estendia até B izâncio e Bagdá. Sua R e a lp o litik
devia, portanto, ser um a W eltpolitik.
Enaltecendo os traços específicos da alm a alemã, sua força
vital, sua capacidade de convencimento, sua extraordinária com­
petência para a dialética entre a afirmação e a negação, seu senso
de harmonia, sua necessidade de espaço v ita l etc., os teóricos do
pangermanism o, como A . G obineau e J. Cham berlain, preten­
diam reportar-se somente aos traços eternos da alm a alemã,
tais como haviam sido observados, diziam eles, por Lutero,
Fichte ou Hegel. H á m uito que dizer quanto à exatidão dessas
referências filo só fic a s 143... Convém , porém , observar que a
teoria pangermanista é o m odelo das doutrinas nacionalistas
tanto pelo conteúdo das idéias e dos slogans que defende quan-
to pelos procedimentos intelectuais aos quais recorre. Essas
doutrinas não são um a filo s o fia mas sim um a ideologia. E essa
ideologia é form ada integralm ente por um irracionalism o que,

143. D o m esmo m odo, quando os defensores do pangerm anism o h itle -


rista declararam encontrar em Nietzsche seu mestre, a usurpação filo só fic a
era gritante; mesmo quando m encionavam a “transmutação dos valores” , a “ ra­
ça dos fortes” ou o combate patético rum o ao “ super-humano” , arrancavam to­
das essas expressões de seu contexto nietzschiano e lhe deturpavam o sentido.
424 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

incapaz de se pautar por um critério rigoroso, acumula e am al­


gama referências heterogêneas - o sangue, a form a do crânio,
a cor dos olhos ou dos cabelos, a terra, a história, o uso ances­
tral, o costume, a inteligência, o senso artístico, as crenças, etc. -
para “provar” que se baseia na natureza e na raça, o que im plica
um a crítica radical das concepções políticas e jurídicas do E s­
tado m oderno (seja ele o da burguesia revolucionária ou o da
democracia igualitária em marcha no século X IX ) . A ssim sendo,
o radicalism o pangermanista, logo seguido pelas doutrinas na­
cionalistas de todos os feitios, não hesitarão em deturpar o sen­
tido da m aioria das idéias que G obineau expusera no livro-pan­
fleto - tão com plexo quanto denso, é bem verdade - que ele
d irig ia principalm ente contra a filo s o fia do Ilu m in ism o in sp i-
radora do Estado moderno, ao qual ela deu um caráter m aldito.

Essa deturpação de sentido, que é ao mesmo tem po in ­


compreensão de um texto144 e exacerbação de um sentim ento
malsão, devia agravar-se de m aneira aguda e dramática. Os na­
cionalism os se engolfaram rapidamente na v ia da agressivida­
de e da violência, em que via m os m eios para desafiar a univer­
salidade da razão, a racionalidade dos critérios juríd ico s e a es­
piritualidade dos valores. Jogando com “ a m agia do extrem o” ,
os nacionalismos não têm outra ambição, ainda que contraditória,
além de dominar, em nom e da singularidade e da suposta supe­
rioridade de um a “nação” , o m aior espaço possível, até mesmo
a terra inteira.
A exacerbação nacionalista, levando a crise do direito po­
lític o moderno a seu ponto m ais agudo, é a m atriz do fenômeno
totalitário que, ainda num período recente, enlutou o m undo.
M esm o que se adm ita, com Hannah Arendt, que se im põe um a
distinção entre totalitarism o e racism o, deve-se reconhecer que
a exacerbação da idéia nacional e o culto da raça constituíram

144. “A s idéias de Gobineau têm m uito pouco em comum com sua lenda:
sua hierarquia racial, especialmente, deveria ter, por boa lógica, condenado
seu Essai às fogueiras do I I I R eich” (L éon P oliakov, Le mythe aryen, C al­
m ann-Lévy, 1971, p. 240). G obineau, em todo caso, teria condenado o euge-
nism o dos nazistas que se pretendiam séus discípulos.
TERCEIRA PARTE 425

em grande parte, no século X X , aventuras deletérias e trágicas.


A in d a que o totalitarism o tenha sido “ o crepúsculo dos deu­
ses” , é preciso que essa página da história, que fo i o m ais arro­
gante dos desafios para o direito p o lítico , seja definitivam ente
virada.
N a equivocidade de seu profetism o, N ietzsche havia prog­
nosticado, para além do acme da crise do direito p o lítico do
Estado moderno, o enigm a dõ futuro: o u ... o u ...

3. O acme da crise: N ietzsche e sua descendência

Todos os ingredientes da crise que rachou o direito p o líti­


co moderno já logo depois da Revolução Francesa se conden­
sam na dialética entre a Physis e o Nomos: desde os tempos anti­
gos, a articulação entre o dado e o construído h o direito p o líti­
co sig n ifica que ele não se pode basear nem na simples espon­
taneidade das potências vitais nem na pura racionalidade da
le i. M as cada u m dos term os dessa in term inável dialética tra­
zia em si, como acabamos de lembrar, um a carga de exacerba­
ção, portanto de exclusivism o. Com o o hom em , em sua fínitude,
só raramente chega à sabedoria que estabelece um a proporção
certa entre a razão do direito e as coisas da vida, ele pontua sua
história com dramas gerados pelo frenesi dos extremos. A ssim
se explicam as invectivas da Contra-Revolução e do rom antis­
m o p o lítico contra o direito moderno e as estruturas constitu­
cionais da França revolucionária. Para além das tentativas de
derrubada do Estado-nação em nom e do princípio das naciona­
lidades, as críticas da m odernidade ju ríd ic o -p o lític a atingiram
seu paroxism o na filo s o fia de Nietzsche. O processo m etafísico
m ovido por N ietzsche contra o direito m oderno deu ao nacio­
nal-socialism o, à custa de pesados contra-sensos, tons aterrori-
zadores. U m a certa descendência nietzscho-heideggeriana se
dedica à “ desconstrução” da modernidade, na qual o hum anis­
m o e o racionalism o form alista jurídico são demonizados. Esses
empreendimentos de dem olição, por seu acirramento e seus ex­
tremism os, revelam a contrario o significado que se prende
aos princípios filo só fic o s contra os quais batalham.
426 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A ) A filo s o fia a “m arteladas ” de Nietzsche

Nietzsche, na vio lên cia de seu verbo cheio de “ dinam ite” ,


fez-se o denegridor do Estado m oderno, denunciando a farsa
do Poder, a hipocrisia dos governantes e a estultice dos gover­
nados. N o espelho das queixas acumuladas contra a doença
m oderna145 e contra “ o m ais frio de todos os monstros frios” 146,
o retrato do H om o ju rid ic u s desenhado pelo filó so fo revelaria a
debilidade do hum anism o do qual se vangloriaram os “m oder­
nos” : há “m uita feiúra para se ver” , clama Nietzsche, num Es­
tado idolatrado por todos.

O monstro Estado, novo íd o lo do “demasiado hum ano ”

Os argumentos que Nietzsche desfecha em seus aforismos


ou no poema de Zaratustra para descrever “ a casa dos m ortos” ,
em que triunfa a irrisão do “hum ano, demasiado hum ano” , são
evidentemente perturbadores: ainda m ais perturbadores porque
se d iz que “ a sociedade de esgotados” 147, que é a hum anidade
m oderna, se parece, em seu horrendo atavismo, com um tropel
de asnos e de gansos148 ou de carneiros balindo fanáticos pelas
idéias vindas do século X V I I I e da Inglaterra... Os homens m o­
dernos são seres sem nome, unipessoais e insossos, que se ape­
gam a tudo o que é superficial e ruidoso, à necessidade de segu­
rança, ao gosto pelo utilitário que é de m au gosto e, na esteira
dos padres cristãos que hipnotizam as almas a ponto de destruí-
las, à boa consciência e às pequenas virtudes. A democratização
é fascinante. A uniform idade se expande; o nivelam ento se ope-

145. Contra ela, N ietzsche, a partir de 1873, redigiu com um a pena rai­
vosa os Unzeitgemässe Betrachtungen, “ Inatuais” e “Intem pestivos” , nos quais
exala sua revolta contra a anticultura que se desenvolve na A lem anha e na
Europa. A escuridão que o idealism o e o cristianism o estenderam sobre ó
Ocidente se v a i am pliando; a inversão dos valores da vida, que a civilização
ante-socrática outrora enchia de lu z, é um “ charlatanism o” que prenuncia um a
agonia.
146. Nietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, D o novo ídolo.
147. N ietzsche, A g aia ciência, § 23.
148. /t e /., § 350.
TERCEIRA PARTE 427

ra na mediocridade; a europeização é massificação. A sociedade


está, portanto, doente de sua massa149. 0 espírito de lerdeza, m eio
anão, m eio toupeira, horrível m anquitola que tropeça nas pedras
do cam inho150, é a essência do povo em que pululam , com a d iv i­
nização do dinheiro, a vulgaridade e o absurdo. A existência das
homeomerias do mundo social é, no deserto que cresce151,u m a
sinistra comédia: em toda parte no Ocidente, a vontade de potên­
cia originária inverteu-se em im potência para a originalidade.
U m véu negro se estende sobre o m undo152; o horizonte é aquele
de um crepúsculo fúnebre.
N o âm bito m órbido da decadência generalizada, o Estado
se tom ou, segundo Nietzsche, um a monstruosidade ridícula e
perigosa. M inad o pela negatividade do “m oderno” , ele se desa­
grega num grotesco alarido de im potentes. Todos os “ ideais”
do direito p o lítico m oderno são o in d ício m ais eloqüente do
n iilism o . A “m orte de Deus” 153, que trazia para o hom em a m ais
alta esperança, só provocou o reinado de homens debilitados e
decaídos: na praça pública, só se escuta o zum bido das moscas
venenosas154; bufões barulhentos se agitam e, dizendo-se lib e ­
rais ou socialistas, adoram todos “ o novo íd o lo ” que o Estado é.
Liquidada toda a transcendência, chegou, num “ estalar de es­
queletos” , o reinado do contra-senso e da existência absurda155.
M as o teologism o antropocentrista expresso pelo direito p o líti­
co moderno é produzido por um hom em sem virilid ad e, que
perdeu a capacidade de afirm ação e de criação do hom em o ri­
ginal; “ demasiado hum ano” , ele é fem inino, fraco, desnatura­
do e já indica “ a m orte dos povos” .
N o ídolo monstruoso que o Estado é, tudo é m entira; não
apenas a m istificação liberal do direito burguês, mas um a “ m en­
tira extram oral” , antípoda das forças criadoras originais, por-

149. N ietzsche, Além do bem e do mal, § 241.


150. N ietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, I II, D a visão e do enigm a.
151. Ibid., IV , A s filh a s do deserto.
152. N ietzsche, A gaia ciência, § 23.
153. Ibid., § 125.
154. Nietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, I, Das moscas na praça pública.
155. N ietzsche, A gaia ciência, § 372.
428 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

tanto, m entira m etafísica sobre a vida. O monstro político, que


inverteu a vontade afírm adora, celebra, com suas instituições,
a negatividade do hom em decaído. M ó rb id o e im puro, opõe-se
ao “ sentido da Terra” . Quando se diz, por exem plo, que o direi­
to p o lítico tem como fim a ordem e a justiça, isso sig nifica que
ele se serve da coerção, que brande a espada e refreia a dança
dionisíaca da vida. A s instâncias que dizem “ governar” adorme­
cem as paixões e condicionam um rebanho gregário m ediante
as promessas, a propaganda, a im agem do conforto, os dogmas
igualitários, a doutrinação etc. É um “ comprom isso com a es­
cravidão” , e o hom em , apequenado, não é m ais que um aborto,
um m iserável pigm eu. Para adorar o íd o lo democrático, o so­
cialism o-rei recebe o legado do despotismo e recorre a um verda­
deiro “terrorismo” 156. A dialética estatal — legislar, administrar,
ju lg ar (outros dizem “ os três poderes”) - é comparável à razão
socrática que tem a clareza gélida da teoria, ou à fé cristã que tem
o peso do pecado. O direito do Estado moderno, em seus textos e
em sua aplicação, entoa a marcha fúnebre que clama a todos os
ventos, como dirá Heidegger, o significado histórico do O ci­
dente: o destino de morte instilado pelo humanismo.
O direito p o lítico é, sem dúvida, impregnado de boas in ­
tenções: assim, o Estado, para governar, quer “ grandes homens” ,
até mesmo “heróis” 157; faz leis para “ o bem com um ” ; no seu
aparelho adm inistrativo, promete tudo a todos e, sobretudo, aos
“ supérfluos” ( Überflüssígen). M as a arma é terrível: não só a
prerrogativa do grande núm ero sig n ifica demagogia, mas tam ­
bém favorece os instintos populares do ressentimento e do ódio;
o nivelam ento é rebaixam ento e, como os dogmas judaico-cris­
tãos, o direito público é instilado por “ m óedeiros falsos” 158.
Zaratustra estremece diante da “ grande feiúra do grande fracas­
so, da grande infelicidade” 159. Portanto, “ não é onde term ina o
Estado que começa o hom em ” 160.

156. Ibid., § 24.


157. Nietzsche, Humano, demasiado humano, § 469.
158. Nietzsche, A genealogia da moral, 1, § 16.
159. N ietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, IV , D o m ais fe io dos hom ens.
160. Ibid., I, D o novo íd o lo .
TERCEIRA PARTE 429

E m sua filo s o fia agônica, Nietzsche, com seu verbo ex­


plosivo, descreve os sinais do definham ento do hom em que seu
bisturi expõe no Estado moderno. O hum ano, demasiado hum a­
no, é o indício de um luto universal m uito próxim o. A cultura m o­
ribunda a que chamamos “ civilização” começou a queda niilista.
O filó s o fo é perseguido pelas “ gritarias infernais das nações
políticas” 161; essa “pequena política” 162 lhe dá a oportunidade
de declarar, com o antiestatismo clamado por Zaratustra - “ Que­
brem os vidros e saltem para fora!” - o antiform alism o ju r íd i­
co que acompanha o antiidealism o e, nas profundezas de seü
pensamento abissal, seu anti-hum anism o.

Um processo m etafísico

Iconoclasta e intem pestivo em sua febre de dem olição ju ­


rídico-política, N ietzsche põe no banco dos réus a Revolução
Francesa, da qual tantos outros extraem seus ideais. Sábe bem
que Bufke, Rehberg, Chateaubriand e D e M aistre levantaram um
protesto contra-revolucionário. M as o processo que ele instrui
é um processo m etafísico. Em bora veja na Revolução Francesa
o produto das “ idéias inglesas” 163, julgadas fiacas e medíocres164,
e “ odeie Rousseau na Revolução” 165, sempre percebe, para além
do liberalism o individ ualista de Locke e do form alism o ju ríd i­
co do Estado do contrato, o p e rfil do hom em debilitado. Locke
e Rousseau, pregando a liberdade e a igualdade, instilaram “ o
veneno m ais venenoso” que reduz a força organizadora, apaga
a acuidade e a segurança, solapa a vitalidade. Sua doutrina, que
parece pregada pela própria justiça, a qual, aliás, invocà com
grande estardalhaço, é a m orte da verdadeira ju stiça que, segun­
do N ietzsche, é u m sentim ento extram oral im anente à raça dos
fortes. Ora, o ideal de justiça dos m odernos, vingador e reati-

161. N ietzsche, Além do bem e do mai, § 241.


162. N ietzsche, A gaia ciência, § 371.
163. N ietzsche, Além do bem e do mal, § 252.
164. N ietzsehe, Vagares desatuais, § 12: “ Os ingleses são o povo do
cântico perfeito” .
165. Ibid., Crepúsculo dos ídolos, § 48.
430 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

vo, é o dos fracos. O vaudeville plebeu da Revolução não ape­


nas assume o legado do sentim entalism o inglês que nada com­
preende do orgulho da raça, mas exprim e, no hom em de R ous-
seau, o ressentimento do m oralista que, em suma, é o próprio
tipo do cristão decadente. Revolução e cristianism o são irmãos.
Falam a mesma língua - bem comum, povo, vontade geral, ju s ­
tiça, liberdade, igualdade, fraternidade, etc.; estão im pregna­
dos da mesma “m oralzinha” , cheios da mesma fé democrática
e filantrópica. O direito p o lítico da Revolução, legado do sa­
cerdócio universal166, m ina surdamente a vontade de poder,
erige em m oral o nivelam ento entre a montanha e o vale. E m seu
“ embandeiramento idealista” 167, o am or intellectuspopuli é um a
doença m ortal contra a qual nenhum rem édio é eficaz. A ssim ,
as utopias socialistas, em sua oposição ao direito burguês, são
m ovidas pela mesma rabugice e pelo m esmo rancor; acentuam
“ o pesado jú b ilo das massas” 168. A mutação à qual aspira a prá-
xis socialista prepara o governo do rebanho pelo rebanho (H e r-
denvertierung): é o últim o bastião da m oral judaico-cristã. Quanto
ao anarquismo, ele não passa da paixão “ reativa” de “retardatá­
rios não disciplinados” 169. Proudhon ou B akunin são iguais: fa­
zem estourar as instituições com os refrões e a m entira do m ito.
O banditism o dos valores da vid a é tal que os homens não são
m ais do que “ a doença de pele da terra” 170. E o próprio N apo-
leão171, “ o hom em superior” , que tentou conjurar os delírios
m ortais do humano, demasiado humano, falhou em seu lance172:
tal como “um tigre que errou o salto” , em sua anglofobia fez o
jogo dos nacionalismos. Insólito em sua ambivalência, trazia em
si o fracasso do super-humano.
É d ifíc il dar ao anti-hum anism o e ao antiestatism o tons
m ais violentos e m ais incisivos. Os ideais, as Constituições e as
leis do direito político m oderno, expressão de um a m etafísica

166. N ietzsche, A vontade de poder, § 765.


167. N ietzsche, A gaia ciência, § 359.
168. N ietzsche, Aurora, § 448.
169. Ibid., § 184.
170. Nietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, II, D os grandes acontecimentos.
171. H egel erig ia Napoleão em m odelo da modernidade.
172. Ibid., IV , D o hom em superior.
TERCEIRA PARTE 431

adulterada, secam todas as fontes da vida. Relacionada com a


ontologia nietzschiana que id en tifica o Ser e a V id a com a Von­
tade de poder, a arquitetônica do aparelho ju ríd ico moderno,
por seus princípios fundamentais, por suas estruturas racionais
e pelas pretensões axiológicas de seu idealism o, é o s in a l do
negativo. A m istificação está no auge: no m undo de que Deus
desertou, o direito p o lítico atesta a m orte próxim a do hom em.
O pensamento do declínio indica um destino inexorável.

B ) O pensamento do declínio

Tendo a dem olição do Estado m oderno e de seu direito, no


profetism o nietzschiano, anunciado um declínio fatal, os ecos
dessa “ novidade” não tardaram a se tom ar, em diversos regis­
tros, um a espécie de lugar-com um . N ão só o falecim ento da
“m odernidade” ressoa nas obras de Octave Spengler (O declí­
nio do Ocidente), de A lfred Rosenberg {O m ito do século X X ),
mas, de M a rtin Heidegger a seus discípulos como M ic h e l Fou-
cault ou G illes Deleuze, o anti-hum anism o e o antimodem isrno
ju ríd ic o ocasionaram u m descomedimento que cerca suas críti­
cas de um a espessa suspeita.
E m todos esses autores, a condenação do Estado m oder­
no, por m ais m ultiform e que seja, tende sempre a mostrar, na
esteira de Nietzsche, que, no direito, o recurso aos princípios
racionais significa a degenerescência do hom em às voltas côm
as forças “ reativas” que são as da decadência. U m a postulação
assim explica que um A lfre d Rosenberg tenha acompanhado
sua m ística racionalista de projetos eugenistas e im perialistas
que ressoarão no M e in K a m p fm . M a is filosoficam ente e com

173. O liv ro de Rosenberg, seguramente pouco filo só fic o , tom ou-se o


breviário do totalitarism o nazista e serviu a H itle r parã ju s tific a r a teoria do
espaço vita l, a po lític a das anexações territoriais às vésperas da Segunda
Guerra M u n d ia l, e, em nom e da superioridade da raça ariana, única depositá­
ria das forças vitais, a eugenia, a xenofobia, as perseguições, a depuração, cujo
exem plo aterrorizador é o holocausto judeu. A m otivação racial e vita lista é
acompanhada, como sugeria a insígnia m ilita r das Waffen SS, de um fascínio
pela m orte.
432 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

menos distorções, o anti-hum anism o nietzscMano encontra sen


prolongam ento nas críticas dirigidas por Heidegger âo p o siti­
vism o ju ríd ico que ele considera a única fôrm a do direito do
Estado moderno.

Os H olzw ege âo Estado moderno segundo Heidegger

Sem dúvida, é ao dom ínio técnico de que nasceu o carte-


sianism o que Heidegger im puta precipuamente a responsabili­
dade pela “ decadência espiritual da Terra” 174, aproxim ando-se
nisso da análise entristecida de Husserl em sua célebre confe­
rência do K ulturbund de V iena. M as, se Heidegger fa z da téc­
nica a própria essência da m odernidade, é porque o hom em , a
seu ver, nada m ais tem , no m undo moderno, de verdadeiramen­
te hum ano: tom ou-se o “ funcionário da técnica” 175; o Estado
fic o u técnico; a execução de seu direito tem algo de autom áti­
co. N u m a m áquina assim, o hom em não pode ser espírito, e a
Natureza inteira, no frenesi do G estell, é “chamada à razão” 176.
Portanto, como se espantar com que, num m undo em que ò
hom em está assim desumanizado, a técnica dispare? É o espe­
táculo que ocasionam todas as form as de totalitarism o, tanto a
oeste como a leste, pois elas são, Como N ietzsche pressentira,
um a busca de poder cada vez m ais opressiva que envereda ine­
vitavelm ente para um processo de violência177. 0 percurso triun­
fa l da técnica a partir de Descartes, no m ecanicism o do século
X V II, no pensamento dó Ilu m in ism o no século X V III, nos ca­
pitães de indústria no século X IX , entre os “políticos” do século
X X , é tributário dos princípios da m etafísica ocidental m oder-

174. Heidegger, Introduction à la métaphysique (1935), trad. fr., G a lli­


m ard, 1967, p. 49.
175. Heidegger, Chemins qui ne mènent nulle part, G allim ard, 1962,
p. 240.
176. Heidegger, Essais et conférences, p. 68. Assinalem os, seguindo tan­
tos outros exegetas de H eidegger, a dificuldade que existe para traduzir em
fiancés o term o Gestell, m as é preciso sublinhar intensam ente que designa o
em preendim ento da dom inação técnica em escala planetária.
177. Heidegger, Nietzsche, trad. fr., G allim ard, 19 71,1.1, p. 384.
TERCEIRA PARTE 433

na na qual o sujeito é ávido da produtividade econômica, cam i­


nho de sua autonom ia178. O hom em se tom a o aprendiz de fe i­
ticeiro que entrega o planeta às forças m aléficas da dominação
técnica. Por isso o Estado, ainda que invocasse a democracia
para ju s tific a r Poder e legislação, é obcecado pela “ form a tota­
litária” . Nessa obsessão, a realização da m etafísica coincide com
o n iilis m o europeu. O racionalism o, o individualism o liberal, o
positivism o ju ríd ic o vão no mesmo sentido que o hum anism o:
cedem à sedução do logos que, “ in im ig o do pensamento” , so­
çobra no “ esquecimento do Ser” .
Heidegger, dirão, não concentra sua meditação nos princí­
pios filo só fic o s do direito p olítico. Confere um a envergadura
totabnente diversa à sua crítica da m odernidade anim ada pela
obsessão humanista. Contudo, o anátema lançado à política m o­
derna179, na m edida em que é o sinal exem plar do declínio que,
há três séculos, corrói a história ocidental, é rico em ensinamen­
to sobre o significado do que ocorreu no direito p o lítico ao
longo de seu desenvolvim ento.
A ind a que o subjetivism o dos Tempos Modernos tenha sido
m uitas vezes incrim inado desde H egel, não é m enor a origina­
lidade de Heidegger ao relacionar a “dominação do sujeito” no di­
reito político moderno com a história da m etafísica: assim sendo,
é, no aparelho ju ríd ic o -p o lítiç o dos Estados modernos, o pro­
cesso da “razão centrada no sujeito” que ele instru i180. D e u m
lado, o direito moderno, dominado pela subjetividade (isto é, pela
m etafísica em v ia de se realizar), atribuiu ao hom em , dotado
de razão teórica e prática, o papel de fundam ento: é relegado

178. Jean-François M a tté i, L ’ordre du monde: Platon, Nietzsche, H ei­


degger, P U F , 1989, p. 167; M o uc hir À ou n, La Polis heideggerienne, A lte n -
berge, 1996, pp. 161-219.
Í7 9 . N ão discutirem os aqui o “ caso Heidegger” e o engajamento p o líti­
co do filó s o fo por ocasião do nacional-socialism o. Se abríssemos o debate
(ver, para isso, o liv ro recente de V . Vastas-Heidegger et le nazisme, trad. fr.,
V erdier, 1987 - e as reações por ele suscitadas), seríamos levados a constatar
que o pensamento p o lític o dè Heidegger é, em seus temas filosófico s, inde­
pendente desse engajam ento p o lítico.
180. Jürgen Habermas, Le discoursphilosophique de la modernité. Dou­
ze conférences (1985), trad. fr., G allim ard, 1988, p. 159.
434 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

assim à banalidade cotidiana, na qual a interpretação técnica do


m undo181 só podia suprim ir qualquer autenticidade. D o outro,
empurrando a autonom ia do hom em até seus lim ites extremos,
ã autoprodução das norm as tom ou-se um a auto-instititição ju ­
rídica. Nessas condições, abriu-se o cam inho de um “p ositivis­
m o ju ríd ico ” que, considerado “ contrapartida da m etafísica” 182,
não deixou de se incum bir do “ reino da Terra” 183. A o mesmo
tem po, estabeleceu-se o F ührerprinzip que, anim ado pela ilu ­
são de um dom ín io que só podia querer a potência cada vez
m aior da potência184, conduzia ao nacional-socialism o, protóti­
po do totalitarism o. O problem a aqui não é dissertar sobre a
cum plicidade p o lítica de Heidegger hás file ira s nazistas, e sim
compreender que sua crítica do com unism o, bem como do am e-
ricanism o, se baseia na mesm a acusação de dom inação m etafí­
sica da técnica - isto é, compreender como Heidegger decifra
nos efeitos fin a is do panform alism õ ju ríd ic o que se estende
pelo m undo contemporâneo as conseqüências paroxísticas da
técnica. O aspecto de utensílio do direito, que é acompanhado
pela tecnicização generalizada e pela inflação burocrática, vai de
par com o “ esquecimento do Ser’’’: esquecimento daquilo que é,
de suas razões de ser e, outrossim , daquilo que deve ser. Os es­
quemas técnicos da produtividade, da eficácia e do consumo,
as coerções operacionais e processuais confundidàs com fato­
res objetivos e com a dinâm ica do progresso provocam um á
hom ogeneização da vid a social que rompe com os valores m o­
rais da ordem e dá tradição. É um declínio espiritual que insere
no direito p o lítico um a derrota n iilis ta 185.

181. O tem a da “ razão instrum ental” que adm inistra nosso m undo, in ­
clusive na sua form a ju ríd ic a , é abundantemente retomado - em outro contex­
to filo só fic o - por H orkheim er. Essa razão “enfeixante” que pode até engen­
drar, Segundo A dorno, um a “ dom inação total” , é freqüentemente m encionada
tam bém por E. Levinas, J. D errida e M . Foucault.
182. Heidegger, Questions IV , trad. fr., G allim ard, 1986, p. 130.
183. Heidegger, Chemins qui ne mènent nulle part, trad. citada, p. 207.
184. Ibid., “ Querer é querer ser senhor” , p. 192.
185. Heidegger, Chemins qui ne mènent nulle part. A. palavra de
N ietzsche: Deus está m orto, p. 180: “ O n iilis m o é o m ovim ento dos povos da
terra engolidos na esfera de potência dos Tem pos M odem os.”
TERCEIRA PARTE 435

O antim odernism o da corrente inspirada


em N ietzschee Heidegger

Tendo-se varrido todas as referências e critérios da tradi­


ção ontológica, avalia-se a força que a filo s o fia seguidora de
Nietzsche-Heidegger situa em seu antim odernism o e em seu
anti-hum anism o. Com, “ o esquecimento do Ser” , o direito m o­
derno adquiriu a feição de “um a feitiçaria” 186 que está além do
otimism o, e dó pessimismo. Resulta, d iz M . Foucault, numa apo­
ria: se é verdade que “ o preconceito antropológico” destinou o
pensamento contemporâneo ao “ sono antropológico” , “já não se
pode senão pensar no vazio do hom em desaparecido” 187. É “ a
era do vazio” 188...
- N o m ínim o, a corrente de pensamento que se inspira em
N ietzsche e em Heidegger discerne no aparelho ju ríd ico da po­
lític a m oderna os sintomas de um a crise que, diam etralm ente
oposta às promessas de emancipação do hum anism o raciona-
lista, encontra sua origem nas tecnologias da dominação - crise
tão profunda que o direito, onerado de pesados entraves, teria
atingido seu ponto de esgotamento. A ssim , os grandes conceitos
do direito p o lítico dos Tempos M odernos - soberania e cidada­
nia, contrato social, Constituição, legalidade, representação, par­
lam entarism o, magistraturas etc. - são esvaziados de sua subs­
tância. Totalm ente esgotados, não passam de vacuidade. Então,
o direito cai na logom aquia dos “ direitos do hom em ” e da “ de­
m ocracia” , sem se perguntar sobre seus princípios nem sobre
seus lim ites. Portanto, não apenas o Estado constitucional edi­
ficado para responder aos ideais da burguesia do século X V H I
é um fracasso, mas o direito p o lítico , insuscetível, em seu m o­
vim ento de autofundação, de chegar à sua fixação conceituai,
se extraviou - como toda a cultura m oderna - no impasse mar­
geado pelas pretensões da subjetividade. E como, atualmente,
“ o sujeito da velha Europa está m orto” , pesa um a m aldição so­
bre as regras e as leis: por causa da dissolução dos princípios e

186. Heidegger, Introduction à la métaphysique, p. 46.


187. M ic h e l Foucault, Les mots et les choses, G allim ard, 1966, p. 353.
188. C f. G . Lipovetsky, L ’ère du vide, G allim ard, 1983.
436 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

dos paradigmas delas, tam bém por causa da inflação in d iv i­


dualista e do laxism o perm issivo que acompanha a desum ani-
zação do hom em moderno, o pensamento discursivo dá um pas­
so em falso fatal nelas. Sua validade é depreciada e sua desva­
lorização é tão flagrante que elas se cercam de um desprezo
radical. O direito político moderno está como que no fim . Nada
m ais é senão “ a estratégia da guerra em ação” 189 e, como tal,
acarreta o triu nfo do dom inante sobre os dominados. E le é, por
conseguinte, “ um a m aneira de exercer a violência” num m un­
do em que as falhas, as descontinuidades, as redistribuições e os
vazios encaminham para o reinado do negativo. O direito traz
em si a negação do d ireito190.
D a í em diante, as certezas do flum inism o seriam abolidas e
concluída a grande história da racionalização do direito político.
E la ensejaria o “pluralism o das estratégias de poder” que, contra
o direito, reabilitariam a força. O sistema do direito ficaria debi­
litado e a única le i de nossas sociedades desumanizadas seria
antijurídica, a ponto de culm inar num perfeito a-form alism o ju rí­
dico: ela seria a de um a concorrência de todos os instantes, por­
tanto, de um a guerra permanente, declarada ou latente.
N ão se pode levar m ais longe a constatação do fracasso da
cultura moderna: ele atesta “ a derrota do pensamento” 191.

A passagem da crítica do direito p o lítico moderno para a


crise na qual ele se teria atualmente afundado leva ao que se
pôde acertadamente denom inar “ o contradiscurso filo s ó fic o da
m odernidade” 192. Sublin h amos o acordo perturbador estabele-

189. M ic h e l Foucault, La volonté de savoir, G allim ard, pp. 1 1 3,1 17 e


135 f f
190. François Ew ald, L'État-providence, p. 30. É interessante assinalar
que, noutro registro, o neoliberalism o hiperbólico de Fr. H ayek repudia igu al­
m ente o construtivism o racional para encontrar seu fundam ento e sua ju s tifi­
cação na “ ordem espontânea” .
191. A . F inkielkraut, La défaite de la pensée, G allim ard, 1987.
192. Jürgen Habermas, op. e it, p. 329; A la in Renaut, L'individu, H atier,
1995, p. 68.
TERCEIRA PARTE 437

eido na filo s o fia de nosso tempo para incrim inar a aridez e de­
nunciar os impasses do racionalism o que fo i o cadinho do h u ­
manismo jurídico-político moderno. Portanto, não é de surpreen­
der que assistamos à cisão do direito estatal. N ão só seus prin­
cípios são novamente contestados mas o direito p o lítico , ao se
am pliar para a dim ensão da Europa e do m undo, adquire outro
p e rfil. Vivem os atualmente a m etam orfose do direito. A ques­
tão é saber se essa m etam orfose é a conseqüência ou a saída da
crise tão cruelmente denunciada. Convém , portanto, interpre-
tá-la, extrair seus ensinamentos e interrogar-se sobre o alcance
filo s ó fic o das perspectivas às quais ela conduz.
C apítulo I I

A metamorfose do direito estatal


e seu significado filo s ó fic o

O direito p o lítico moderno entrou em crise na hora que a


transparência da razão por si só e a liberdade soberana dos Es­
tados se cercavam de suspeição. O m odelo teórico institutivo,
no Estado, do direito p o lítico m oderno fo i de fato, como aca­
bamos de ver, contestado logo após a Revolução Francesa, que
transportara seu esquema para a prática ju ríd ico -p o lítica. A s
brechas então abertas no hum anism o ju ríd ic o traduziram e e xi­
biram a dúvida que, daí em diante, devia m inar cada vez m ais
profundam ente as categorias da racionalidade do direito m o­
derno: o idealism o fo i acusado de utopia; a discursividade do
direito fo i confundida com a sistematicidade dos códigos; viu-se
no contrato social um a arm adilha m etafísica; a vontade geral
fo i considerada um m ito; tacharam-se de irrealism o e abstração
as regras constitucionais; a coerção legal passa por opressão;
incrim ina-se de m istificação a generalidade da le i; a unidade
do direito público pareceu ser a máscara vingadora de um a
soberania bem decidida a ocultar, m ediante procedimentos e
artimanhas técnicas, o fenômeno da pluralidade do corpo so­
cial... O despertar das nacionalidades abalou, sob a onda do
sentimento e, às vezes, na exasperação passional, os âm bitos ra­
cionais do Estado-nação. A lé m disso, na ressaca da ondanietzs-
chiana repetiu-se m uito que a feição m etafísica do direito m o­
derno condenou a subjetividade, que é sua peça-chave, a se en-
viscar no caráter u tilitá rio de um a razão técnica e burocrática
que sig n ifica nada menos do que a relegação das estaturas ju ­
rídico-políticas. E m um a palavra, estaria próxim a a hora em que,
no plano institucional, deve soar “ a m orte do Estado” .
440 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A o mesmo tempo, porém, as ambições universalistas da


razão se fizeram o uvir como o apelo de um a transcendência
que, na ordem do direito p o lítico , devia ultrapassar o âm bito da
potência estatal e abrir-se o m ais amplam ente possível à euro­
peização, até à globalização das instituições e da regulam enta­
ção jurídicas. A norm atividade do aparelho do direito era, por­
tanto, chamada a cruzar as fronteiras e a instituir, em nom e da
sim ples coexistência dos Estados, um a réde de relações que
tecem o regime com um de u m direito internacional e mesmo
de um direito supranacional. Abrindo-se assim ao universal, a
norm atividade ju ríd ic a provocou a m etam orfose do esquema
estatal do direito.
O direito p o lítico do Estado m oderno viu -se confrontado,
no plano interno bem como no internacional, com a rem odela­
ção, até mesmo com um a rejeição de seus conceitos diretrizes.
M u ito particularm ente, as idéias de contrato social e de sobera­
n ia , essenciais à concepção do direito p o lítico do Estado m o­
derno, ocasionaram um reexame profundo. A s incidências e as
conseqüências dessas revisões, que são ao m esmo tem po con­
ceituais e categoriais, evidentemente não deixam de ter reper­
cussão filo s ó fic a . É por isso que atualmente se coloca a ques­
tão de saber por que novos cam inhos a filo s o fia do direito p o lí­
tico pode enveredar, um a vez que são revisados e às vezes refu­
tados os princípios do direito que estruturaram o Estado ao
longo dos séculos da M odernidade.

1. A renovação da idéia de contrato social

D e m aneira geral, a problem ática do contrato social inse­


riu-se no registro do pensamento m oderno como tributária do
racionalism o e do individualism o: que ela corresponda, como
na obra de Hobbes, à segurança da razão calculista, que consti­
tua, como segundo Rousseau, a chave do ed ifício estatal, o ú n i­
co capaz de garantir para os cidadãos a liberdade e a justiça, ou
ainda que esteja escrita, como em K ant, no horizonte da id e a li­
dade transcendental, a noção do contrato social envolve um a
TERCEIRA PARTE 441

das exigências essenciais da m odernidade ju ríd ico -p o lítica. Já


nos prim eiros sinais de abalo da M odernidade, seu esquema
constitutivo fo i contestado e exposto a eventuais rem anejam en-
tos estruturais.

A ) A crítica da idéia de contrato social

H um e e Burke não haviam escondido o m al-estar intelec­


tual provocado em seu pensamento por essa categoria arquite­
tônica do Estado moderno que é a idéia do contrato social. Hegel,
com um radicalism o intransigente, denunciou “ o atom ism o”
das teses contratualistas, atom ism o ainda m ais falso, a seu ver,
porquanto, transportando para o direito público esquemas pró­
prios do direito privado, o procedim ento contratualista despoja
o Estado, afirm a ele, de qualquer realidade substancial. D epois,
o contrato social, acusado de participar da ideologia in d ividua­
lista e burguesa própria do episódio revolucionário na França,
fo i denunciado como o arquétipo de um pensamento ju ríd ic o
m istificad o r e liberticida.
Essas críticas, bem conhecidas, têm um a dimensão filo s ó ­
fic a que será revelada pela crise epistem ológica por que pas­
saram as ciências da cultura na prim eira metade do século X X .
A fenom enologia husserliana descobriu que a existência hum a­
na, longe de obedecer a axiom as individualistas, é um M itsein
e que a comunidade dos homens se im põe na im ediatez como
um fato irredutível. Portanto, não é a subjetividade mas a inter-
subjetividade que constitui a trama da existência com unitária,
até e inclusive em sua form a ju ríd ic a e política. N a esteira da
fenom enologia husserliana, tam bém M erleau-Ponty denunciou,
porque “a guerra se realizou” 1, o erro do solipsism o ao qual con­
duziu a inflação racionalista do pensamento moderno. Dessas
críticas decorrem, para o direito m oderno, duas conseqüências
de grande alcance. D e um lado, o problem a essencial do direito

1. M erleau-Ponty, Sens et non-sens. “L a guerre a eu lie u ” , N agel, 1948,


pp. 281 ss.
442 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

p o lítico não é, como pensaram os filó so fo s modernos, o da ins­


tituição da sociedade c iv il, mas sim o de sua organização. D o
outro, como a racionalização do direito p o lítico , julgada exces­
siva, teve por efeito determ iná-lo como um sistema fechado de
conceitos, pareceu necessário e urgente fle xib iliza r essa a xio ­
m ática, adaptando-a à realidade com plexa e evolutiva da con­
dição humana.
Se, portanto, a idéia de contrato social conserva algum sen­
tido paira o direito político, a necessidade de rem anejá-la, con­
soante o novo olhar lançado sobre a existência humana, impôs-se
com bastante rapidez. O relativism o cultural, do qual o século
X X tom ou consciência à m edida que se revelava o “ declínio
dos absolutos” , exigia de fato, no direito político, a superação dos
cálculos puíam ente racionais e a rejeição das antinom ias esta­
belecidas pela filo s o fia m oderna do “m undo d ivid id o ” entre o
eu e o outro, o sujeito e o objeto, a necessidade e a liberdade etc.
Nessa nova perspectiva, que recusa o solipsism o idealista ao
qual, segundo Rousseau, se refere m uito especialmente o con­
trato social, estaria m ais do que na hora de compreender, disse­
ram, que a noção de contrato social, para ter ainda algum valor,
deve levar em conta a am bivalência fundam ental das experiên­
cias humanas em que se entrecruzam o lógico e o irracional, o
explícito e o im p lícito, o sentido e os subentendidos. A “p o líti­
ca da solidão” 2, cujos princípios Rousseau expôs e que deu ao
direito p o lítico moderno seus eixos e seus conceitos m ais fir ­
mes, já não teria cabimento no m undo atual3. Para que u m con­
trato social seja pensável para 0 futuro, deve levar em conta a
mutação existencial que ocorreu no século X X . Seu conceito
não deve, portanto, desprezar, nas situações concretas que o
direito p o lítico é incum bido de reger, as experiências, a contin­
gência, a temporalidade nem a relatividade das m últiplas expe­
riências humanas. N ão sendo o hom em nem um sim ples ego

2. R aym ond P olin, La p olitiq u e de la solitude, Sirey, 1971.


3. M u ito pelo contrário, aliás, poder-se-ia dizer que a idolatria da obje­
tividade im plicada por um m aterialism o de tip o m arxista-com unista tem tam ­
bém pouca pertinência.
TERCEIRA PARTE 443

nem um puro sujeito racional, o “ novo contrato social” que en­


contrará lugar na coexistência hum ana deve ser um a nova es­
crita da prosa do m undo.

B ) O remanejamento do conceito de contrato social

É m ais d ifíc il do que se poderia pensar escrever a prosa do


m undo segundo um m odelo novo, e poucos autores o tentaram.
Contudo, encontramos um ensaio teórico de remanejamento do
contrato social na obra de A lb e rt Camus, a que fazem eco, num
registro prático, as grandes linhas do projeto de “novo contrato
social” propostas, no prim eiro quarto de nosso século, por Edgar
Faure. N em esse ensaio nem esse projeto são “ filosóficos” . Ten­
dem, não obstante, a mostrar que o direito p o lítico chegou, no
m undo ocidental, se não a um ponto de ruptura, pelo menos a
um a fase em que deve adaptar-se aos reclamos que já não são, np
absoluto, os da “modernidade” .
E m 1948, A lb e rt Camus publicava um a crônica intitulada
“ O novo contrato social” 4. Nesse texto, publicado logo após o
segundo grande con flito m undial, ele não procurava elaborar o
estatuto do Estado, tampouco se interrogava, como filó so fo , so­
bre o fundam ento do direito p o lític o ; indagava-se qual “ estilo
de vida” perm itiria, a partir de então, esquecer as agruras do
tempo de guerra, pelo menos salvaguardar os valores de um a
hum anidade perigosamente ameaçada em sua existência e em
seus valores.
Parecia então a Camus que, no m undo-de-vários em que
tudo o que é aparentemente privado sempre tem um a dimensão
pública, a comunicação entre os homens, feita de trocas, de re­
tomadas, de oposições, de conciliações e de compromissos,
deve ser m antida com zelo. Esse “ diálogo” ou essa “ dialética” ,
aí está, d izia ele, “ o novo contrato social” . E m sua nova form a,
o “ contrato” participaria de um “cogito plural” que afirm a, até

4. Essa crônica de A lb ert Cam us está contida em Actuelles, É c ritsp oli~


tiques, G allim ard, 1950, pp. 138 ss.
444 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

na revolta e m uitas vezes por ela5, o ser do hom em como sendo


sempre e em todas as circunstâncias um ser-de-vários. A revolta,
considerava Camus, é essa experiência privilegiada que abre o
hom em a outrem. N a reciprocidade que ela faz nascer, os ho­
mens já não são “ estranhos” uns para os outros. Conquistam ju n ­
tos um a “ nova hum anidade” em que se encontram prom ovidos
e refletidos valores existenciais e éticos que, com unitários, são
os pontos de amarração e os critérios de um “novo liberalism o” .
D e fato, já não se poderia buscar a liberdade no arbítrio in d iv i­
dual; ela é obra, dizia Camus, de um “ socialism o liberal” que dá
as costas às aporias do individualism o. N a falta de certeza, ha­
veria pelo menos, nesse “novo contrato social” , um a esperança:
que o diálogo seja “m ais forte do que as balas” 6.
N ão é necessário que a mutação do tema contratualista se
opere sob a bandeira de um a ideologia de partido. É por isso
que um a comissão de estudos denom inada “ O novo contrato
social” esforçou-se, por Volta dos anos 1970, para reunir num a
“ encruzilhada de idéias” 7 homens de tendências políticas e
filo só ficas diversas, mas igualm ente preocupados em elaborar
um programa social prospectivo que perm itisse às sociedades
ocidentais se organizarem m elhor e apresentarem soluções ra­
zoáveis para os problemas, já candentes nessa época, do em ­
prego, da seguridade social, da poupança, da comunicação, das
relações européias etc. Sem pretensão doutrinária, Edgar Faure
procurou teorizar as pesquisas práticas realizadas por ocasião
de vários colóquios. O novo contrato social, afirm ava ele em
essência, deve ser elaborado em tom o dos temas conjuntos da
concertação ê do diálogo que, filosoficam ente, correspondem

5. “N a prova que nos cabe, a revolta desempenha o m esm o papel que o


cogito na ordem do pensamento... E u m e revolto, logo, sou” (A lb e rt Cam us,
L ‘homme révolté, G allim ard, 1951, p. 36).
6-Ibid ., p. 146.
7. Citem os, nesse contexto, os colóquios de M albuisson (1970) orien
tando as pesquisas no sentido da “ futurologia” ; de A nto ny (1971), em que a
palavra de ordem era o estabelecim ento de um a “ sociedade de consciência” ;
de Épem ay (1976), em que foram retomadas as teses que Edgar Faure expu­
sera em seu liv ro Pour un nouveau contrat social, S euil, 1973.
TERCEIRA PARTE 445

ao reconhecimento da intersubjetividade e da responsabilida­


de comum. O “ consentimento em marcha” que isso pressupõe
é seguramente trabalhoso em razão das disfünções que se ins­
talaram entre a classe po lítica e a sociedade em seu conjunto,
bem como entre as instâncias governamentais e os mecanismos
sociais. N ão obstante, são claras as grandes linhas do programa
de trabalho por fazer. A prim eira tarefa seria “ descristalizar” o
universo moderno, suprimir nele o individualism o (até o egoísmo)
e o sectarismo dos partidos8. U m a tarefa não menos im portante
consistiria no estabelecimento de relações constantes e estrei­
tas com “ a função técnica” 9 do Poder a fim de que, num “ con­
trato de promoção” , sejam levadas em conta as condições do
trabalho, a tip ologia social, as estruturas econômicas, a expan­
são técnica, a qualidade de vid a etc. A finalidade desse “novo
contrato social” seria, assim, a gestão da sociedade atual na com ­
plexidade de seus diversos setores. O im portante seria, em todo
o caso, que não correspondesse aos cálculos frios de um a razão
desencarnada e puramente teórica e que, por m eio de reform as
estruturais, adaptações institucionais, um planejam ento pruden­
te, ele expressasse ao m esmo tempo, de m aneira prática e con­
creta, a competência gestora e a vig ilân cia prudente daqueles
que são incum bidos do governo. Com o ta l, seria o sinal do “ es­
forço de adaptação” incessante que os órgãos do Poder devem
realizar tanto para respeitar os hábitos e os estados de espírito
do corpo social como para enfrentar o im previsto. Desse m odo,
se é verdade que “ o contrato social de Rousseau é um tema per­
manente” do direito p o lític o 10, é não obstante im portante que,
a fim de conservar a capacidade de um conceito diretriz do
direito político, ele se amolde aos contornos da história social
desenhados pelo tempo. Isso só é possível aliando Uma certa
dose de em pirism o às forças organizadoras da racionalidade; é
preciso mesmo não hesitar em se aprofundar na “ civilização
dos ensaios” que, segundo as palavras de Jean Fourastié, carac-

8. I b i d pp. 8, 73 e 76.
9. Ibid., p. 36.
10. Colóquio deÉpem ay, M asson, 1977, p. 37.
446 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

teriza a segunda metade do século X X . A s “ aproximações” e as


“ forças federativas” de que, daí em diante, o direito p o lític o ne­
cessita, não se alim entam do pensamento do absoluto, próprio
dos idealism os. Para “ gerir” a sociedade movente do fin a l do
século X X , seria vão ter as pretensões de um a m etafísica eter-
nitária; é preciso um pensamento “cronotônico” atento aos con­
tornos instáveis e evolutivos da sociedade e de seu m eio am­
biente. O fechamento das doutrinas abstratas acabou, o que
sig n ifica que o hom em está sempre na encruzilhada e o direito
p o lítico , que está o tempo todo tendo de ser corrigido ou trans­
form ado, retraça a dialética interm inável que caracteriza a fe -
nom enologia do m undo hum ano.
A intenção que preside a essa renovação estrutural e se­
m ântica da categoria de “ contrato social” é certamente genero­
sa. Tampouco deixa de ter lucidez. Tem sem dúvida o m érito de
querer arrancar o direito p o lítico da afirm ação de ipseidade do
cogito e, ao mesmo tempo, do dogmatismo do racional que o ins­
piraram durante os séculos da m odernidade. A “ conversão do
olhar” que perm ite descobrir que as relações do hom em com o
hom em não são o resultado de construções de entendimento, mas
nascem de um a lid a im ediata, profunda e longínqua que é, co­
m o d izia M erleau-Ponty, “ m ais velha do que a inteligência” , é
calorosa. M esm o que a abertura das consciências seja ao mesmo
tempo também sua luta recíproca, isso significa que chegou o tem ­
po em que os olhares se cruzam ; é preciso, portanto, que se de­
frontem as Uberdades, que se estabeleçam trocas, que se inicie o
diálogo, que, em suma, os homens se reconheçam mutuamente.
O progresso do direito p o lítico residiria assim em dois pontos:
de um lado, está m ais que na hora de tom ar consciência da in u ­
tilidade dos “pactos” de associação e de submissão que a filo s o ­
fia de outrora colocava em seu princípio; do outro, é necessário
que a afirmação da Uberdade, longe de ser o postulado que a tor­
na o predicado form al de um sujeito abstrato ou de um a “ bela
alm a” , passe pela mediação dos outros e se realize, no seio dos
próprios m ovim entos da comunidade, na coexistência, na cola­
boração e nas trocas com outrem.
Entretanto, apesar das perspectivas sadias desenhadas pelo
“novo contrato social” pensado por Camus ou por E . Faure, os
TERCEIRA PARTE 447

problem as suscitados pelo direito p o lítico do m undo atual não


encontraram, nessa via, suas soluções, provavelmente porque,
no programa de trabalho do “novo contrato social” , elas são
vistas, afinal, apenas em termos gerais, m uitas vezes imprecisos
e vagos, enquanto é necessário m uito precisamente construí-las
ponto por ponto.
Isso é pelo menos o que ensina, de m aneira exem plar pa­
rece, um a reflexão sobre o m al-estar que se prende à noção de
soberania, na ocasião que, hoje mesmo, o campo do direito po­
lític o se am plia para a dimensão européia e m esm o planetária.

2. A am pliação do d ire ito p o lític o


e o m a l-e sta r da soberania estatal

O direito p o lítico , em sua acepção filo ló g ic a estrita, regeu


a P olis, cuja form a m oderna é o Estado. Era nesse sentido que,
por exem plo, Burlam aqui entendia, em 1747, os P rin cíp ios do
direito p o lític o e Rousseau buscava em O contrato social, em
1762, os “princípios do direito p o lítico ” . Ora, o fenôm eno m ais
im pressionante de nosso tempo é que o direito público ou p o lí­
tico está longe de ser lim itado pelas fronteiras do Estado. Cer­
tamente, as longínquas conquistas de Alexandre, o Grande, ou
de Júlio César poderiam significar que o fenôm eno é bem anti­
go e que a vontade de hegemonia de um Estado - ou do príncipe
que o governa - sempre levou a am pliar o campo p o lítico além
dos lim ites do Estado. M as, com o advento dos Tempos M o ­
dernos, o problem a do “ direito da guerra” expôs em termos ju ­
rídicos, e não m ais somente políticos, a questão das relações
interestatais. Já no século X V I, mas sobretudo com o século
X V II, a “política exterior” teve necessidade de se apoiar em nor­
mas e regras de direito: em m atéria de comércio, de coloniza­
ção com objetivo dem ográfico ou econôm ico, de relações d i­
plom áticas, de circulação m arítim a, de “ equilíbrio” , de alianças
ou ligas entre as potências, de guerra e de paz, e mesmo de re­
lações culturais, convinha evitar as arm adilhas da contingência
e da aventura. Os grandes tratados de G rotius constituem, a esse
448 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

respeito, a obra de um pioneiro11. Embora o M are liberum (1609)


e o D e ju re b e lli ac pacis (1625) estejam longe de constituir
toda a obra de G rotius, e essas duas obras não sejam, com o se
disse às vezes, os prim eiros tratados de direito internacional,
são portadores de um a mensagem que todos os intem acionalis-
tas modernos entenderam: a saber, a necessidade de interrogar
a razão e a h istória para compreender que o consentimento u n i­
versal e a tradição são fatores decisivos em todas as relações
jurídicas entre os Estados. A in d a que, m eio século m ais tarde,
P ufendorf tenha construído o D e ju re naturae etgentium (1672)
sobre um a axiom ática na qual o voluntarism o m o d ifico u n iti­
damente o racionalism o de G rotius, ele avaliou, na história e
para o direito internacional, a problem aticidade inerente às fe ­
derações de Estados (systemata rerum publicarum foederata-
ru m )12, o que revela sua preocupação de aquilatar, para além do
direito p o lítico ligado aos “ interesses dos Estados” , as promes­
sas e os problemas do direito das gentes nas relações interesta-
tais. L e ib n iz e W o lff, por sua vez, refletiram de m odo m ais f i ­
lo sófico sobre a am pliação do direito para além das fronteiras
dos estados, num a C ivitas m axim a cujas dimensão e função cos-

11. N ão se deve, entretanto, subestim ar nem a im portância nem a n o v i­


dade dos trabalhos de Francisco de V ito ria (1486-1546), cujas Rejlectiones
theologicae, publicadas em L yo n em 1557, com portam duas lições interes­
santes : a segunda, D e potestate c iv ili, e a quarta, D e Indis et deju re belli, que,
tratando do direito das gentes, rom pem com o exam e escolástico da “ guerra
ju sta” - nem a força do pensamento de Suárez (1548-1617) que se separa dos
romanos para distinguir o direito das gentes e o direito natural e para decifrar
no “ direito das gentes positivo ” (De legibus, 1613, liv . II, òs quatro ú ltim os
capítulos) um ju s inter gentes e um ju s intra gentes, o que lhe deu a ocasião
de tratar, na esteira de Isidoro de S evilha (Etymologies, V , cap. 6), as questões
da ocupação, das fortificações, da guerra, do cativeiro, da servidão, das tré­
guas, da paz, da im unidade dos em baixadores etc. Cum pria igualm ente m en­
cionar aqui as obras, na Espanha, de A lberico G en tilis (1552-1608), na In g la­
terra, de R ichard Zouche (1590-1660) e, na H olanda, de Bynkershoek (16 73-
1743) que, acim a de tudo juristas e não filósofos, tentam não obstante extrair
da prática do direito das gentes alguns princípios teóricos gerais, principalm en­
te em m atéria de com ércio e de beligerância.
12. Pufendorf, De statu Im perii Germanici, 1667, cap. V III, § 4; D is-
sertatio defoederibus Sueciam et G alliam , 1689.
TERCEIRA PARTE 449

m opolíticas buscaram precisar. O século X V IU v iu também se


m ultiplicar, do abade de Saint-Pierre a K ant e a G entz, os pro­
jetos de paz perpétua entre os Estados europeus, ao passo que,
sim ultaneam ente, compêndios e tratados de direito das gentes,
de Ém eric de Vattel a Jean-Jacques M oser e a Georges F rie ­
drich de M artens, constituíam , por seus objetivos cosm opolíti-
cos, outros tantos passos rum o ao direito internacional público.

A ) A construção de um direito p úb lico internacional

A internacionalização do direito p o lítico fo i um a das m aio­


res preocupações do século X I X 13, mas, depois das Conferên­
cias e das Convenções da H aia de 1899 e de 1907, fo i sobretu­
do logo após a Grande Guerra e depois da Segunda Guerra
M u n d ia l que os esforços da comunidade internacional foram
impressionantes. A criação da Sociedade das Nações (S D N ) em
1919 e da Organização das Nações U nidas (O N U ) em 1945
inscreveram-se na história m oderna com o tentativas, às vezes
eficazes, de organizar as relações entre os Estados de m odo que
as armas, en fim , viessem a se calar. D ir-se-á que esses sistemas
de arbitragem para evitar os conflitos em geral se revelaram
bastante vãos e que, ainda em nossos dias, as ideologias, os fa ­
natism os religiosos, as paixões nacionalistas provocam o hor­
ror desumano das guerras e das violências terroristas. Essa é,
efetivam ente, um a constatação dolorosa. Entretanto, o direito
político internacional se am plia e se firm a cada vez mais, ao mes­
m o tempo para submeter a guerra ao direito, para refrear o de­
senvolvim ento dos conflitos e para organizar entre os Estados,
graças a instâncias especializadas, e em todos os campos, rela­
ções de cooperação. A ssim , por exem plo, foram criadas m ú lti-

13. C f. Fortuné Barthélem y de Felice, Leçons du droit de la natureetdes


gens, Paris, 1830. Para u m quadro am plo da doutrina do direito público inter­
nacional no século X IX , remetemos a A n to nio T ru yo l y Serra, Théorie du
droit internationalpublic, Académ ie de droit international (1981, IV , 1 .173),
Dordrecht, B oston e Londres, pp. 191-203.
450 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

pias instituições como o Fundo M onetário Internacional (F M I),


a Organização M u n d ia l de Saúde (O M S ), a Organização de
Cooperação e de Desenvolvim ento Econôm icos (O C D E ), a
U nião Internacional das Comunicações (U IT ), a Organização
Meteorológica M u n d ial (O M M ), a Organização das Nações U n i­
das para a Educação, a Ciência e a Cultura (U N ES C O ), etc., cujos
nomes são por si sós sugestivos. A s relações entre os Estados,
até em áreas específicas tom adas m uito técnicas, devem ser
regidas por regras de direito precisas que tendem a estabelecer
a m ais am pla cooperação possível. Os amplos objetivos dessas
organizações internacionais significam , por si sós, que as rela­
ções entre os Estados não são, necessariamente, relações de be­
ligerância, que o direito público internacional não atende, como
o ju s gentium de outrora, a uma vontade de legitimação da “ guer­
ra justa” e que - isso é o m ais im portante - a segurança e o
bem -estar dos povos dependem, em escala m undial, do enten­
dim ento político e diplom ático que os Estados estabelecem com
base em um direito público que o seu desenvolvim ento deveria
aumentar para a dimensão do universal.
Se é verdade que, a partir de G rotius, a am pliação do d irei­
to p o lítico , submetendo a guerra ao direito, até mesmo colo-
cando-a fora da le i, tem a finalid ad e essencial de tender para a
paz e para a segurança do m undo, não se poderia deduzir disso
que ele se apresenta num horizonte de um a utopia pacifista ou
de um a filantropia universal. Sem dúvida, a paz m undial im plica
a cessação dos conflitos armados, mas não tem nem um estatu­
to de negatividade que sig n ifica que os conflitos de todo tip o
desapareceram a partir daí e que o potencial de beligerância de
que é repleta a vid a dos povos está suprim ido definitivam ente,
nem o p e rfil m edíocre de um a idade de ouro irênica marcada
por um a sociabilidade e um am or universais. A paz entre os po­
vos exige a organização ju ríd ic a da coexistência dos Estados,
na qual, sempre, ferm entam ou rebentam os conflitos: K ant,
Hegel, M a x Weber ou Raymond Aron sublinharam m uitas vezes
que, na ausência de um direito p o lític o internacional, os Esta­
dos ficam entre si como indivíduos no estado natural e, portanto,
TER C EIR A PARTE 451

se guerreiam ou estão prontos para isso14. Portanto, são neces­


sárias normas para organizar em outras bases as diversas rela­
ções entre os Estados. É im portante, a fim de superar a c o n fli-
tualidade natural deles, estabelecer as regras de seu comporta­
m ento em matéria comercial e monetária, instituir regulamentos
que organizem a navegação m arítim a e aérea, fixe m a quanti­
dade e a natureza dos armamentos... Somente normas interna­
cionais reconhecidas pelo m aior núm ero possível de Estados
lhes perm itirá escapar de um a derrocada anárquica... Tal como
observava Raym ond A ron, a alternativa am ig o/inim ig o que,
segundo C. Schm itt, corresponde à essência do político, só tem
sentido no “ estado natural” e, longe de ter um a “permanência
fatal” , deve ser conjurada pelo direito internacional15. É por
isso que a elaboração de um corpo de regras válidas em escala
pluriestatal não deveria ser um a esperança vã. E la requer, por
parte dos diferentes Estados, discussões, conferências, nego­
ciações em cujo fin a l acordos e tratados, concluídos com base
em concessões recíprocas e às vezes acertos m ais ou menos
difíceis, deveriam tom ar possível um a coexistência sem tragé­
dias. N inguém , seguramente, poderia esquecer que o direito
p o lítico , em escala m undial, é o resultado de um a d ifíc il bata­
lha que, para além dos interesses específicos dos Estados, põe
em jo g o idéias e valores. M as a elaboração de um direito que se
abre ao universal corresponde à vontade de fazer dele o antídoto
da desordem e da violência entre os Estados. E le procura subs­
titu ir a condição de sim ples concorrência v ita l, em que o plura­
lism o caótico das relações de dominação e das tendências b e li-
cistas instila a anarquia, por um a ordem e um a racionalização da
sociedade m undial. M u tatis m utandis, pode-se dizer que, assim
como o. direito p o lítico do Estado procura manter nele a paz
c iv il, assim tam bém a am pliação m undial do direito p o lítico
tende a suprim ir entre os Estados os perigos de um a condição
anôm ica na qual ferm enta sempre a guerra. A ordem intem a-

14. C f. por exem plo H egel, Principes de la philosophie du d roit, § 333.


15. R aym ond A ron, P a ix et guerre entre les, nations, C alm ann-Lévy,
1962, p. 740.
452 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E ITO

cional, na m edida em que seria “um a ordem gerada” , atestaria


a vitó ria do direito sobre a força.

Ora, a am pliação do direito requerida por essas perspecti­


vas - e não pela vontade de hegem onia de um im pério - presi­
diu, já em tempos remotos, ao estabelecimento de um a m oda­
lidade específica da coexistência dos povos. Com um term o
genérico, designa-se essa m odalidade de existência como o “ fe­
deralism o” . M as essa denominação não deixa de ter um a am bi­
valência profunda que dá origem a d ifíceis problemas.

B ) Os modelos “federalistas ”

D e m aneira geral, segundo o esquema organizacional do


federalism o, o direito político não é o dos Estados independen­
tes sim plesmente justapostos ou concorrentes; procede de um a
união dos Estados, cuja m eta é in stitu ir os m eios para um a paz
e para uma cooperação generalizada. Entretanto, o m odelo “ fe -
deralista” não é unitário: traduz-se ou por um a confederação
de Estados ou pela instituição de um Estado fe d e ra l cujas for­
mas e cujo funcionam ento correspondem a exigências iniciais
diferentes.

As tentativas de aprim oram ento do conceito


de “federação o exemplo de K ant

A idéia de “ federar” Estados ou Cidades não é um a idéia


nova da qual pudesse orgulhar-se a segunda metade de nosso
século, na hora que se edifica a Europa política. Já as an fic tio -
nias da Grécia antiga correspondiam ao m odelo de uma asso­
ciação de cidades que, pelos acordos que concluíam em maté­
rias religiosa, m onetária, ju risd icio nal etc., podiam atingir um a
existência comum harmoniosa16. N os Tempos Modernos, os nu-

16. Já no século V II antes de nossa era, certas Cidades gregas, por ins­
tigação do re i A n fictião , se haviam agrupado em associações religiosas leigas,
que, aliás, eram aproximadas m enos por um a unidade de crença do que pelo
TERCEIRA PARTE 453

merosos projetos de paz elaborados por Ém eric de Crucé,


W illia m Penn, pelo abade de Saint-Pierre, entre outros, in sisti­
ram nas virtudes pacificadoras de um a “ federação” concebida
sim plesmente como um agrupamento dos povos. M ontesquieu,
em O espírito das leis, analisa o que chama de “ a república fe­
derativa” 17, “ sociedade de sociedades” cujos exemplos encontra
na Grécia e no Im pério romano, mas tam bém nas Províncias
Unidas, na “república federativa da Alem anha” , nas “Ligas suí­
ças” da Confederação helvética etc. Salienta o rigor organiza­
cional im plicado pela “ união federativa” para as diversas ins­
tâncias criadas e insiste particularm ente na função ju risd ic io -

desejo de participar, pela unidade dos cultos e das celebrações, de cerim ônias
comuns em que, em oferendas ao Deus, se realizavam ritos e sacrifícios.
N o in íc io , em especial na anfictionia F íle o D élftca, cujo centro ficava
no desfiladeiro das Term ópilas, e que era dom inada pelos povos da Tessália,
eram leis m orais e laços de am izade que caracterizavam essas alianças em que
as finalidades políticas tinham pouco espaço. N o século V I a.C ., um a outra
an fiction ia reuniu em D elfo s, em tom o do santuário de A p oio, doze povos da
G récia continental, entre os quais os beócios, os jô n io s da Á tica e da Eubéia.
D epois, a anfictionia de D elos, dom inada pelos atenienses, logo se tom ou a
m ais influente e constituiu um a espécie de m odelo.
Nessas uniões, a organização era rigorosam ente regulamentada: cada
anfictionia com portava um Conselho dos hierônim os, guardas do tem plo e do
tesouro que adm inistravam a fortuna dos santuários, dirigiam as construções,
em itiam um a m oeda com um , in flig ia m m ultas aos particulares ou às Cidades
que tinham violado as regras anfictiônicas. H avia duas sessões anuais do
Conselho e, a cada quatro anos, a festa pítica renovava o ato o fic ia l de união
dos povos (Foedus). É preciso sobretudo sublinhar que, além dos poderes adm i­
nistrativo e financeiro do Conselho, sua função ju risd icio n a l se desenvolveu
pouco a pouco. E m caso de infração das regras comuns (p o r exem plo, em caso
de pirataria, de conflitos armados ou de contencioso p o lític o entre as Cidades
unidas), era ao Conselho que cabia arbitrar os litíg io s ; as sentenças pronuncia­
das deviam ser executadas por todos os filia d o s. Por ocasião da festa pítica,
um a “trégua sagrada” era determinada; se qualquer um dos povos violasse essa
trégua, a “ guerra sagrada” lhe era declarada, o que podia arruiná-lo.
A pós os anos gloriosos que fizeram da an fiction ia de D elfo s um a espé­
cie de Sociedade das Nações, conflitos internos a dividiram . E m 353, F ilip e
da M acedônia a suprim iu. M as Alexandre retom ou a idéia anfíctiônica e, nas
O lim píadas de 324, fez dela a ponta de lança do pan-helenism o.
17. M ontesquieu, L ’esprit des lo is, liv . IX , caps. 1, 2 e 3.
454 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

nal que estas são chamadas á exercer tendo em vista um ideal


com um de paz e tranquilidade. Entretanto, é preciso esperar que
K ant insira o tem a “ federalista” no âm bito de sua filo s o fia cri-
ticista para que comecem a se esclarecer os princípios juríd icos
a partir dos quais podem elaborar-se as form as diversas de um a
federação dos povos.
A cronologia das obras de K ant nas quais a questão “ fede­
rativa” é Iratada deixa perceber um a evolução sensível das idéias
do filó s o fo sobre esse problem a. M as essa evolução é s ig n ifi­
cativa da dificuldade inerente ao problem a e, ainda que esteja
longe de conseguir elucidar a idéia de direito internacional, m os­
tra, até em suas fraquezas, a im portância da tarefa por realizar.
E m 178418, K ant concebia a federação como um a Völker­
bund, isto é, como um a “ sociedade das nações” cuja ‘Torça u n i­
ficada” , estabelecida com base em um foedus, seria provedora
da “ segurança pública dos Estados” . D epois, em 179319, ele a
d e fin iu como um a “ Constituição cosm opolítica” (w eltbürger­
liche Verfassung), isto é, como a norm a ju ríd ic a que, enquanto
horizonte de ordem, de sentido e de valór, subsume a hipótese
racional prática da filan tro p ia universal e desempenha assim o
papel de im perativo categórico da paz. E m 179520, pensa que
somente um a “ federação de Estados livres” (Foederalism us
fre ie r Staaten) - que nada tem de um “Estado federativo” ( Völ­
kerstaat) - é apta para tom ar a paz “possível” ou legitim am ente
“pensável” entre os povos. U m Estado federativo, explica ele,
seria apenas “um a república cosm opolítica sob um chefe” , isto
é, um super-Estado que im poria a todos os Estados pôr ele en­
globados normas jurídicas aniquilando pura e simplesmente a so­
berania deles; poderia até, a fim de reduzir os diferentes Esta­
dos à uniformidade, esforçar-se para apagar suas particularidades
nacionais. Então, a autoridade desse super-Estado, sinônim o de

18. Kant, Idée d ’une histoire universelle du p o in t de vue cosm opolitique,


7? proposta, Pléiade, t.TU , p. 199; A K , V III, 24.
19. K ant, Théorie et pratique, 3? seção, Pléiade, t ni, p. 297; AK, V III,
311.
20. K ant, Essai sur la p a ix perpétuelle, Pléiade, t. I II, p. 345; A K , V IH ,
354.
TERCEIRA PARTE 455

vontade de hegemonia, longe de suprim ir as guerras, acarreta­


ria um grande risco de engendrá-las e agravar sua duTeza. A o
contrário, prossegue K ant, um a “ federação de Estados livres”
deve repousar em pactos e tratados que perm itam aos Estados
selar entre si alianças voluntárias, em cujos termos eles se com ­
prometem mutuamente. Essa fórm ula “federativa” designa o que
chamaríamos, na linguagem ju ríd ica atual, um a “ confederação” .
Seja como for, em 1795 Kant, diferentem ente das perspectivas
que explorava em 1784, descarta por com pleto - e isso é im ­
portante - a idéia de um sistema ju ríd ic o abrangente e centrali­
zador, pois é im perativo, considera ele, salvaguardar a liberdade
e a soberania singular de cada um dos Estados-membros21. E m
outras palavras, estim a que um a “ federação” - na form a confe­
derai que ele lhe atribui com base em tratados de aliança m u l-
tilaterais - só será provedora de paz se respeitar a independên­
cia soberana dos Estados, expressão, através da vontade geral,
da liberdade e da cidadania de seus habitantes22. O estabeleci­
m ento de um a “ federação de Estados livres” repousa assim nu­
m a exigência consensualista: cabe aos Estados soberanos e res­
ponsáveis - portanto, “ livres” - decidir, apelando à autonom ia
que o republicanism o im plica, sua entrada nessa vasta aliança;
nela se colocarão sob normas jurídicas cuja im posição, longe
de provir, como num super-Estado (K ant então só considera, de
fato, essa outra possibiüdade), do arbítrio de um a autoridade su­
perior, decorrerá das disposições do tratado de aliança que t i­
verem celebrado. O que K ant denom ina um a “ federação de Es­
tados livres” , na qual vê “ o suplemento do pacto social”?3, é a
pedra angular do direito das gentes (ju s gentium , Võlkerstaats-
recht) que, emergindo de tratados m ultilaterais, tom a a paz do

21. K ant, Lose B lãtter, Á K , X X I II , 167-9.


22. K ant, Essai sur la paixperpétuelle, prim eiro suplem ento, Plêiade, t.
I II , p. 361; A K , V III, 367. Observem os neste ponto que, em nossa linguagem
ju ríd ic a contemporânea, diríam os antes “ confederação” do que “ federação” .
M as, na época de K ant, não estava estabelecida essa distinção term inológica
que recobre diferenças ju ríd ic as às quais voltarem os m ais adiante.
23. Ib id ., 2 a seção, 2? artigo d e fin itivo , Plêiade, t. I II , p. 348; A K , V III,
356.
456 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

m undo concebível e possível. Em Ensaio sobre a p a z perpétua,


de 1795, que marca na obra de K ant um a im portante guinada
no seu m odo de pensar a idéia federalista, o filó so fo afirm a
portanto, de m aneira apodíctica, que no tribunal da razão a
aliança pacífica dos Estados livres (foedus pacificum ) não é um
simples tratado de paz ( pactum p a d s )24: este põe fim a um a ú n i­
ca guerra, de m aneira pontual, aquela resulta do pacto ou fo e ­
dus que, nos Estados signatários, gera um estado de espírito
com unitário graças ao qual fic a possível “term inar para sem­
pre todas as guerras” .
Entretanto, a confiança que, nessa data, K ant deposita nos
homens para darem um a realidade objetiva ao conceito de Foe-
deralismus fre ie r Staates e form arem um Estado de nações (c i-
vitas gentium ) é m uito lim itada: “A s idéias que [os hom ens] fa ­
zem do direito público os im pedem totalm ente” , escreve ele,
“ de realizar esse plano.” 25 N ão se pense que o otim ism o ju ríd i­
co de 1784 fo i substituído pelo pessim ism o, mas que, na siste-
m aticidade da filo s o fia kantiana, o tem a federalista reveste a
idealidade de um princípio regulador necessário para a abertu­
ra planetária do direito p olítico.
É por isso que, em 1796, a D o u trin a do direito dá os ú lti­
m os m atizes à ampliação do direito político tal como o concebe
Kant. A expressão comumente u tilizad a de ju s gentium , que se
traduz por Völkerrecht ou “ direito dos povos” é, observa ele,
pouco correta26: já que se trata do “ direito dos Estados em suas
relações recíprocas” , dever-se-ia falar do ju s publicum c ivita-
tum, isto é, do Staatenrecht ou “ direito dos Estados” . Seja qual
fo r essa indeterminação term inológica que ele deplora, K ant

24. Ibid., Plêiade, p. 348; AK, V III, 356.


25. Ibid., Plêiade, p. 349; AK, V III, 357. “ Se não se quer perder tudo, só
se pode substituir a idéia p o sitiva de um a república universal pelo suplemen­
to negativo de um a aliança permanente, que im peça a guerra e se estenda
insensivelm ente para deter a torrente dessas paixões injustas e desumanas que
sempre ameaçarão rom per esse dique” (o g rifo é nosso).
26. K ant, Doctrine du drOit, § 53, Plêiade, t. I II, p. 615; AK, V I, 343.
N otem os a esse respeito a influência que m uito provavelm ente as obras de J.-
J. M oser e de G . F. de M artens exerceram sobre Kant.
TERCEIRA PARTE 457

pensa que, em suas relações recíprocas, os Estados devem ser


considerados “pessoas m orais” , isto é, entidades jurídicas ca­
pazes de concluir entre si alianças e pactos: esse direito de
aliança recíproca é - perfeitamente denom inado dessa vez - o
“ direito de confederação” (.Bundsgenossenschaft) que perm ite
(é preciso sublinhar) sua união puramente defensiva com a
exclusão de qualquer coalizão ofensiva ou com objetivo expan-
sionista27. Esse “ direito de confederação” tom a possível (isto
é, pensável) um a am pliação planetária do contrato social (pac-
tum unionis c iv ilis ) que tende, ainda que com comedimento e
moderação - pois a “ extensão demasiado grande” de um a con­
federação que fosse até terras longínquas faria surgir m uitos
prqblemas28 - para “ uma união universal dos Estados” (in einem
allgem einen Staatenverein)29. Com o tal - é o que nem Pufen-
d o rf nem Achenw all compreenderam - , o direito de confedera­
ção é para K ant um a “ sim ples Idéia da razão” : corresponde ao
im perativo racional que insta os povos a se arrancarem do esta­
do de guerra ligado à sua coexistência natural, agônica e injusta.
D ir-se-á, e o próprio K ant reconhece, que a Id é ia “ federativa” ,
com o qualquer Idéia racional prática, é, por seu estatuto trans­
cendental e puro, “ evidentemente irrealizável” 30. M as, os prin­
cípios que tendem à am pliação do direito p o lític o são, quanto a
eles, diz Kant, realizáveis: se, portanto, concluir alianças não
basta para instaurar para os homens um a condição irênica, um
ato confederai é necessário para se aproxim ar de um entendi­
m ento entre os povos. É por isso que K ant pede que um “ C on­
gresso permanente dos Estados” (perm anenter Staatenkon-
gress)31 traduza, na fin itu d e do m undo hum ano, a exigência
pura de um direito público internacional. Esse Congresso, a
exem plo daqueles que se realizaram em H aia em 1709 e em
Gertruydenberg em 1710, seria um Conselho confederai no qual

27. M d ., § 59, p. 623; AK, V I, 349.


28. M d ., § 61, p. 624; AK, V I, 350.
29. M d .
30. M d .
31. M d ., § 61, p. 625; AK, V I, 351.
458 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

deveriam ter assento os m in istros dos Estados-mem bros; em


caso de conflitos abertos entre certos Estados, ele assumiría um a
função de arbitragem. A qualquer m om ento, Estados vizinh o s
teriam a liberdade d e aderir a ele; a qualquer m om ento, tam ­
bém , esse Congresso poderia ser dissolvido. Essa instituição,
modesta em sua criação bem como em sua vocação, não seria
um fim em si mesma; por sua função prática seria, pura e sim ­
plesm ente, com base em tratados e acordos èntre os Estados, o
m eio para regulam entar o direito das gentes “tendo em vista a
manutenção da paz” .

A idéia “ federalista” que K ant desenvolve sonhando com


a am pliação cosm opolítica do direito p o lítico é interessante por
u m m otivo duplo, filo s ó fic o e ju ríd ic o , ainda que, nessas duas
perspectivas, ela se cerque a fin a l de certa negatividade.
Com preendido filosoficam ente, o tem a “ federalista” só
adquire sentido e relevância na obra de K ant se relacionado com
o horizonte num ênico. Longe de ter um caráter ético -filan tró ­
pico, ele designa, diz Kant, um “princípio ju ríd ico ” 32. É preciso
compreender que é o princípio de um estabelecimento ju ríd ic o .
Por esse estatuto in ic ia l, não pertence a este m undo: a C onsti­
tuição cosm opolítica perfeita, eis “ a própria coisa em si” 33. A
mediação “ federalista” , cujo conceito o filó so fo se esforçou
por aprimorar progressivamente, bem como por esculpir suas
figuras, se insere na v ia do “ soberano B em p o lítico ” e atesta a
possibilidade de um a marcha da espécie humana, por “ aproxi­
mação continuada” , rum o à paz do m undo34 — ainda que essa
marcha deva ser para sempre in fin d a. A filo s o fia transcenden­
tal arranca assim o “ direito das gentes” concebido pelos “ tris­
tes consoladores” que foram G rotius, P ufendorf e Vattel da “ es­
curidão dos arquivos” quando ele lhes é confiado sob a form a
de protocolo, bem como do b olor dos livros e dos velhos per­
gam inhos35. E m outras palavras, ela revela, no plano universal,

32. Ib id ., § 62, pp. 625-6; A K , V I, 352.


33. Ib id ., Apêndice, Conclusão, p. 649; A K , V I, 371.
34. Ib id ., Conclusão, Plêiade, t. I II, p. 630; A K , V I, 355.
35. Ib id ., § 61, p. 625; A K , V I, 351.
TERCEIRA PARTE 459

o poder objetivam ente prático - mas não em pírico-pragm ático


- do Ideal racional. A “ federação” dos povos exprim e, em suas
figuras cada vez m ais aprimoradas36, a aproximação do “ Ideal
de um vín culo ju ríd ic o entre os homens submetidos a leis pú­
blicas em geral” 37. Por isso é um dever (Aufgabe) que se pren­
de à esperança de um a Constituição cosm opolítica: num a “ta­
refa in fin d a ” , a am pliação do direito p o lítico à Terra inteira é
u m horizonte de esperança.
Ocorre que, considerada em sua dim ensão propriam ente
ju ríd ica, a idéia “ federalista” segundo a qual K ant vê o direito
p o lítico sê am pliar num direito cosm opolítico conserva, nesse
horizonte de esperança, m uita imprecisão. Apesar de seus es­
forços, K ant não consegue, por falta de um aparelho léxico e
conceituai adequado, distinguir às estruturas confederais e as
estruturas federais da união ju ríd ic a dos Estados. Essa distin­
ção é, contudo, capital. M as, na am pliação do direito político ,
ela tom a necessário um novo exame do conceito de soberania..

Confederação e federação

A idéia “ federativa” desenvolvida por K ant conota, lato


sensu, um a aliança interestatal que perm ita, m ediante pactos e
convenções, a aproximação dos Estados com vistas a um fim
com um que, geralmente, é a paz com as conseqüências felizes
que ela pode acarretar em m atéria econômica, cultural ou hu­
m anitária. Esse esquema é designado por nossa língua ju ríd ic a
contemporânea como confederação. Trata-se de uma associação
de Estados, operada, como sublinharam tanto o abade de Saint-
Pierre ou M ontesquieu como K ant, com base em um a adesão
voluntária e, aliás, revogável.
A confederação é, portanto, um ed ifício ju ríd ic o -p o lític o
construído pela adição, m ais ou menos am pla, de elementos

36. Recordemos as quatro fases da análise kantiana: Völkerbund (Socie­


dade das Nações); Foederalismus fre ie r Staaten (Federação de Estados L i­
vres); Völkerstaatsrecht (d ire ito das gentes); Weltbürgerrecht (direito cosm o­
p o lític o ).
37. Kant, Doctrine du droit, Conclusão, p. 629; AK, V I, 355.
460 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

partes extra partes, com cada Estado-m em bro, que conserva


sua própria soberania. Correspondente, como mostra a análise
kantiana, a um a concepção orgânica da comunidade humana, ela
tende não apenas a arrancar os Estados, se essa é sua vontade,
da individualidade insular que os expõe à rivalidade dos outros,
mas também a favorecer entre eles relações recíprocas de coo­
peração e ajuda mútua. Longe das vias do individualism o estatal
que, m ais dia menos dia, serão as do enffentam énto, essa alian­
ça dos Estados os faz, de m aneira concertada, refletida e razoá­
vel, co-responsáveis por süas decisões e por seus compromissos
- o que se pode ver atualmente, em certa m edida, num a in s ti­
tuição como a G NU.
Enquanto tal, a form a ju ríd ic a da confederação exclu i a
im agem aterrorizadora de um Estado m undial que sua vontade de
potência m onopolista tom a prenhe das ameaças da dominação
im perialista do mundo. D epois de M ontesquieu38, K ant perce­
beu perfeitamente esse significado39. Sabemos igualm ente, em
nossos dias, que a form a confederai da união dos Estados per­
m ite excluir a divisão dualística do universo em dois “blocos”
cujo antagonismo seria inevitavelm ente feroz e im placável.
 am pliação do direito p o lític o em sua form a confederai
comporta l im ites e carências que seus prim eiros teóricos certa­
mente não haviam avaliado quando as aparentavam, num a pers­
pectiva m etajurídica, com a unidade do gênero hum ano, em que
via m um penhor de compreensão e, no m ín im o , de com unica­
ção entre os povos. Ora, a experiência e a história nos ensinaram
que o direito internacional, m esm o repleto de boas intenções, é
frequentemente desprovido de eficácia: as resoluções da O N U ,
quaisquer que sejam sua lucidez e sua pertinência, em geral não
têm caráter obrigatório e, por conseguinte, não são executórias;
podemos, ademais, perguntar-nos para que servem as decisões
dos ju ízes de um tribunal internacional se não é possível, por
m eio de procedimentos precisos com vocação instrum ental,

38. M ontesquieu, R éflexions sur la m onarchie universelle, Pléiade, t. II,


pp. 19 ss.
39. K ant, Théorie etpratique, 3? seção, p. 297; A K , V in, 311.
TERCEIRA PARTE 461

transform ar o dever-ser das sentenças num dever-fazer aplicado


e obedecido. N ão m ais na ordem interestatal do que na ordem
interna, o direito p o lítico não pode satisfazer-se com intenções
ou idéias generosas de alcance sim bólico; necessita de m eios
m ateriais para que suas decisões sejam executadas e produzam
efeitos jurídicos. É preciso que, num m undo em que a obediên­
cia consentida é rara, haja m edidas que venham sancionar a
desobediência dos Estados ou dos indivíduos: por exem plo, não
basta que a consciência universal reprove os crimes de guerra,
as perseguições ou os atos de terrorism o; cumpre que o direito
p o lítico possa atribuir-se os m eios de punir os que, em qualquer
país que seja, atentem contra a dignidade do hom em e, m ais
ainda, os m eios de controlar a aplicação das decisões tomadas.
N ão obstante, apesar da escassez, até da carência de m eios
que, mesmo no nosso tempo, oneram com m uita freqüência o
direito p o lítico internacional, há que reconhecer qüe a lógica
da idéia geral de confederação se aproxim a da concepção filo - .
sófica da comunidade hum ana universal. E la pode fazer os po­
vos antes solidários entre si do que solitários; com base em
acordos e tratados que selam entre si voluntária e livrem ente,
eles são aliados e não rivais. A m pliando-se assim, o direito po­
lític o é rico de promessas dé um a solidariedade que deveria ser
o caminho da segurança. A idéia de confederar um certo número
de Estados a fim de tom á-los menos vulneráveis não participa,
portanto, do rom antism o de um a idade de ouro ressuscitada ou
de um solidarism o utópico. Contudo, ainda que correspondam
a um a vontade poderosa e generosa, as confederações de Esta­
dos têm apenas um a eficácia lim itada. N em pode ser diferente,
já que essas associações provêm de um intérestatism o no qual
cada Estado conserva, em todas as circunstâncias, sua sobera­
n ia plena e inteira.

É diferente com a idéia de “ federação” quando, em seu


sentido ju ríd ico , é entendida stricto sensu: nesse caso, ela se en­
carna num a outra fig ura do direito p o lític o caracterizada pela
emergência de um Estado federal ou de um a organização par­
cialm ente federal. Instituição íw pranacional, esse novo m odelo
462 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

do direito p o lítico conduz ao reexame do destino da soberania,


até então considerada, no cerne do direito político m oderno, a
essência do Estado. A m etam orfose ju ríd ic a assim produzida é
filosoficam ente interessante.
Neste fin a l do século X X , observamos a existência, ao
lado das grandes organizações internacionais relacionadas com
0 m odelo confederai, de agrupamentos de Estados que se pau­
tam por outro esquema ju ríd ic o qúe sobrepõe aos Estados da
U nião um a instância central específica. Essa figura federalista -
por exem plo, a da Com unidade Européia - seguramente nasce,
como uma confederação, de tratados e convenções. M as, a U nião
âssim form ada não é zwterestatal, é swpra-estatal. Por isso é
preciso dizer que sua gênese e seu funcionam ento correspon­
dem a um a espécie de mutação ju ríd ica: aquela se opera por
um processo contratual, mas este resulta de atos norm ativos
cujo autor é ò órgão federal, no exercício das competências que
lhe foram delegadas pelos Estados, e que são, por sua vez, atos
unilaterais, qué im põem aos Estados-mem bros vínculos ju ríd i­
cos de subordinação.
Nessa concepção federalista, encontra-se certamente, e até
de m aneira expressa quando se fala de “ comunidade” européia
ou de instituições “ com unitárias” , o sentido de um a existência
ju ríd ic o -p o lític a “ comum ” aos diferentes Estados que entraram
na federação. Contudo, do ponto de vista ju ríd ic o o im portante
está em outro ponto: a instituição do m odelo supra-estatal do
direito político faz nascer não, como o m odelo confederai, um
agrupamento de Estados, mas sim um Estado federal ou, no
m ín im o , um a organização em parte federal. Ora, à emergência
desse novo m odelo do direito p o lítico e, m uito especialmente,
do “ direito europeu” que lhe corresponde, certos autores - pelo
m otivo de que os Estados-mem bros devem necessariamente
consentir na transferência, pelo menos parcial, das prerrogati­
vas de sua soberania para a autoridade supra-estatal - associa­
ram a idéia de “ crise da soberania” , ou seja, no fundo, a idéia de
um a “crise do Estado” . O problem a é grave o suficiente para ser
m inuciosam ente examinado.
TERCEIRA PARTE 463

: Atualm ente, não m ais do que na época de M ontesquieu ou


de K ant, seria im possível criar um Estado m undial que, como
super-Kstado planetário, im poria de m aneira coerciva as mes­
mas norm as a todos os Estados: a unidade orgânica de um a
legislação im posta pela soberania de u m Estado m undial seria
o triu nfo da ideologia im perialista, e o m onism o de um Estado
planetário que abrangesse todos os povos da Terra ressuscitaria
o espectro da “ m onarquia universal” . N a m elhor das hipóteses,
estar-se-ia diante de um a utopia. D e todo m odo, a existência de
u m super-Estado que abrangesse todos os países do m undo sig­
n ific a ria que já não há Estados no m undo.
O problem a se apresenta portanto em outros termos. Para
que um a federação de Estados possa firm a r juridicam ente sua
autoridade e produzir efeitos de direito - nos campos econôm i­
co, cultural, p o lic ia l, m ilitar, ju d iciário , agrícola etc. - , é neces­
sário que os Estados que são membros dela aceitem voluntaria­
m ente, pelo menos nos setores em pauta, lim ita r sua soberania
e delegar um a parcela dela à instituição supranacional que cria­
ram acim a de si mesmos m ediante sua adesão aos tratados fun­
dadores da Federação. A am pliação européia, até m undial, do
direito p o lític o é portanto incom patível com o exercício total e
discricionário da soberania dos Estados. E xig e um a partilha e
um a repartição das competências jurídicas, continuando umas
o apanágio específico dos Estados, as outras dependentes da
autoridade federal. A ssim , os tratados que, a partir do tratado
de Rom a, de 1957, instituíram por etapas a Com unidade Euro­
péia (C E ), elaboraram e continuam a elaborar um “ direito co­
m unitário” que prim a sobre as legislações e até sobre as Cons­
tituições nacionais - o que acarreta, por exem plo, em m atéria
agrícola ou na área m onetária, um a lim itação da soberania dos
Estados, isto é, de suas iniciativas próprias nesses setores da vid a
pública. É essa lim itação que certos autores interpretaram co­
m o um a “ crise” .
Seria m ais justo, parece-nos, falar de “transferência” de so­
berania e não de crise. D e fato, o que caracteriza o direito das
federações não é a alteração do conceito de soberania, mas o
deslocamento de seu lugar, de m odo que cada Estado-m embro
464 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

deve se dobrar à disciplina com unitária. A ssim , por exem plo,


nas áreas da agricultura, dos transportes aéreos, da comunicação
televisual etc., as regras e os mecanismos supranacionais se im ­
põem aos diferentes Estados, m esm o quando estes consideram
que estão em contradição com seus interesses nacionais. Essa
noção de “ disciplina” é essencial. Indica que, mais além da ques­
tão de técnica ju ríd ic a do deslocamento da soberania, apresen-
ta-se, no plano de um a federação bem como no plano de um
Estado, o problem a filo só fic o do fundamento da obrigatorieda­
de vinculado às regras do direito.
Sem dúvida, não se pode ocultar que o direito p o lítico , na
sua am pliação e na sua m etam orfose estrutural, incorre num
risco de com prom etim ento com um a administração poderosa
cujas decisões emanam de um areópago de funcionários. Assim ,
o “ mercado sem fronteiras” que as instituições européias que­
rem fazer prevalecer ocasiona, em grande parte, um a “ eurocra-
cia” que im põe normas aos Estados, provocando um a erosão
do princípio de independência deles. Todavia, seria pecar por
precipitação concluir daí que a potência dos Estados europeus,
na m edida em que expressa “ a racionalidade do querer [deles]” 40,
está alterada, até abolida. É indubitável que a funcionarização
tecnocrática das m ais altas instâncias do direito internacional
faz pairar sobre o m undo o grave risco de èrodir os valores e de
encobrir qualquer horizonte de sentido. M as, no seio dessas
próprias instâncias, o direito é - ou, pelo menos, deve ser - algo
diferente de arranjo de m eios instrum entais destinados à gestão
do m undo. E le provém de um “potencial norm ativo origin al” e
não é possível, tanto na ordem ju ríd ic a internacional como na
ordem ju ríd ica interna, cortar as raízes da norm atividade. O
im portante não é, portanto, indagar se a soberania dos Estados
está em crise, mas sim compreender que a m etamorfose do d i­
reito p o lítico não poderia afetar a capacidade norm ativa que
ele traz em si.

40. H egel, Principes de la philosophie du droit, § 254.


TERCEIRA PARTE 465

Ocorre que um m al-estar invade o m undo contemporâneo.


Tudo se passa hoje como se as referências do direito p o lítico
“m oderno” tivessem sido erodidas nas últim as décadas marca­
das por dois fenômenos contraditórios: a intensificação de um
direito transterritorial que se g lobaliza e o crescimento dos m o­
vim entos pluralistas de inspiração diferencialista. C om patibi­
liza r essas duas tendências parece, quando se reflete a esse res­
peito, tão d ifíc il que, para além dos debates teóricos da doutrina
ju ríd ica, o problem a se colocou em termos concretos: se os es­
forços realizados pelas instituições internacionais colidem , sem
grande esperança de conciliação, com as reivindicações, às
vezes m ortíferas, de certos povos, não será porque as catego­
rias do pensamento ju ríd ic o “m oderno” estão, se não em crise,
pelo menos padecendo de obsolescência? A ssim sendo, não
conviria rom per com elas? A lguns filó so fo s do direito, cons­
cientes das dificuldades que frag ilizam o direito político em
seus últim os desenvolvim entos supranacionais, levaram o de­
bate para um terreno m ais vasto. Com o “ a essência do moderno”
lhes parecia cada vez m ais im pura, buscaram um a saída para as
antinomias e os bloqueios que, m ultiplicando-se, dividem o m un­
do contemporâneo. Indagaram-se quais princípios filo só fic o s
seriam amanhã suscetíveis de arrancar o direito político dos pân­
tanos nos quais se atola.

3. A rejeição dos princípios do direito político moderno

N ietzsche, há um século, denunciava em seu profetism o


veemente a debilidade do Hom o p oliticus dos Tempos Modernos
e a m entira m etafísica que rondava os subterrâneos do Estado.
A m onstruosidade do direito p o lítico , por influência da doença
n iilista , significava para ele a desvalorização dos valores supre­
mos. Zaratustra estremecia diante “ da grande feiúra, do grande
fracasso, da grande infelicidade” 41 e, reivindicando “ o m ínim o

41. N ietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, IV , O m ais feio dos homens.


466 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de Estado possível” , exclamava: “ Quebrem os vidros e saltem


para fora!”42
Esse brado atravessou o século X X . A in d a que a filo s o fia
esteja longe de enveredar sempre pelos caminhos hipotéticos
que Zaratustra apontava, ela m anifesta uma desconfiança tão
profunda para com os princípios filo só fic o s do direito p o lítico
moderno que procurou fug ir daquilo que, neles relacionado com
“ modernidade” , constitui, no dizer de certos pensadores, um a
tara indelével. A ssim se desenvolveu um pensamento antim o-
derno que, acirradamente hostil às contribuições do direito
p o lítico dos três últim os séculos, ou se orientou para a antem o-
dernidade ou fo ijo u os temas daquilo a que se chama a pós-
m odernidade. Vejamos como, entre numerosos meandros e ao
sabor de m últiplas variações, essas duas orientações antim o-
demas encontraram seus traços m ais incisivos de um lado no
pensamento de Leo Strauss e, do outro, nas teses de Jürgen H a-
bermas. Sem retraçar as trajetórias desses dois filósofos, recor­
daremos aqui em nome de quais parâmetros ambos buscam a
relegação dos princípios da m odernidade juríd ico -p olítica.

A ) O retorno aos horizontes antemodernos


do d ireito: a tese de Leo Strauss

Leo Strauss (1899-1973)43, em sua recusa da “m odernida­


de” , se opôs vigorosam ente sobretudo à dissolução historicista
do direito, que ele percebe no que outros consideram um “ pro­
gresso” .

Os erros do historicism o

Sem dúvida, Strauss não é o prim eiro a fo rm ular um a


crítica im placável contra as diversas figuras assumidas, desde
Savigny, pelo historicism o. M as, detendo-se, a exem plo de E.

42. Ib id ., I, D o novo idolo.


43. C f. L a pensée de Leo Strauss, Cahiers de philosophie p olitiq u e et
ju rid iq u e , Caen, 1993, n? X X III.
TERCEIRA PARTE 467

Troelsch44 e de F. M einecke45, no significado filo só fic o do his­


toricism o ou, como K arl Popper46, no alcance epistem ológico
das teses historicistas, Strauss fic o u impressionado com o enre-
damento dos argumentos heterogêneos apresentados, pelos pro­
cedimentos invocados e, mais ainda, pelo m obilism o e pelo re-
lativism o que nelas são vinculados ao direito e à política. Então,
dando um m ergulho filo s ó fic o nos “ problemas fundam entais” ,
ele mostra que o historicism o, que deriva do positivism o47, ele
próprio filh o da exacerbação racionalista dos “modernos” , des­
truiu o sentido do mundo e seu gosto.
Com o Nietzsche, Strauss faz de sua crítica do racionalis-
m o moderno um a das idéias capitais de sua meditação. Porém,
diferentem ente de Nietzsche, não lança anátemas e não mane­
ja a ironia como um a arma. Constata que, desde que M aquiavel
chegou às terras do m undo m oderno, as “três ondas da moder­
nidade”48 - por m ais problemáticas que sejam do ponto de
vista da história da filo s o fia 49 - carregaram em seu bojo o pre­
dom ínio racionalista com uma força sempre crescente. N o his­
toricism o, seja ele c ie ntífico ou ju ríd ico , o racionalism o teceu
um a teia de relações e de leis sobre o m undo das coisas e dos

44. E. Troelsch, D er Historismus und seine Problème, Tübingen, 1922.


45. Fr. M einecke, D ie Entstehung des Historismus, M unique, 1936.
46. K a rl Popper, cf. os dois artigos publicados em Economica, X I, 1944
e X II, 1945, reunidos e traduzidos em francês sob o títu lo Misère de Thisto­
ricisme, P lon, 1956; edição inglesa, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1957.
47. E m What is P o litical Philosophy?, U niversity o f Chicago Press,
1959, Strauss explica que o positivism o - “o espírito de nosso tempo” , p. 57
- se transform a em historicism o, pp. 25 e 56 ss.
48. Leo Strauss, The Three W aves o f M odem ity, in P olitical Philosophy;
SixEssays by Leo Strauss, Indianápolis e N ova Y o rk, 1975; trad. ff. in Cahiers
philosophiques, setembro de 1984, n? 20.
49. Se, de M aquiavel a Hobbes, o parentesco filo só fic o não constitui de
fato um problem a e se N ietzsche inaugura um m ovim ento inédito do pensa­
m ento, em compensação, é m ais delicado colocar Rousseau, K ant e H egel
num campo filo só fic o -ju ríd ic o homogêneo. Entretanto, ver a interpretação
hom ogeneizante de Pierre M anent, Naissances de la politique moderne, op.
cit., p. 9, para quem os filósofos idealistas da segunda onda operam todos a
“ sacralização do direito” , em oposição àqueles, realistas, da prim eira onda, que
sacralizaram os fatos.
468 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

homens, e a razão acabou por não “ tolerar autoridade algum a


ao seu lado ou acima dela” 50. N ão obstante, declara Strauss, que
acusa m uito especialmente M a x Weber, considerado - não sem
parcialidade - “ o m aior representante do positivism o nas ciên­
cias sociais” 51, as glórias racionalistas foram , na verdade, um
fracasso, não apenas porque as ciências humanas não podem se
gabar da “neutralidade axiológica” 52, mas porque nelas se de­
senha a sombra do n iilism o . É assim que o positivism o ju ríd i­
co e o historicism o, por sua rejeição de qualquer referência
axiológica, redundam na m orte do direito. Fechando o hom em
“ no que Platão denom inava a Caverna” 53, procuraram em vão
“ neste m undo” as normas objetivas que pretendiam pôr no
lugar dos princípios transcendentais e eternos da filo s o fia clás­
sica. Estando o processo histórico assim privado de sig n ifica­
do, a história parece então “ contada por um idiota” . Essas teo­
rias se tom aram absurdas e, inevitavelm ente, encaminharam-se
para “ um fracasso estrondoso” . Os esforços pelos quais o ra-
cionalism o vitorioso pretendia “ instalar o hom em em casa nes­
te m undo” acabaram por e xilá -lo dele54. A crise da racionalida­
de m oderna conduz a um a paisagem de ruínas: o espetáculo é
“ deprimente” . Leo Strauss, tal como N ietzsche e Heidegger,
percebe a “ le i da historialidade da história do Ocidente ” 55 co­
m o um a queda estrepitosa: “ o aniquilam ento dos valores até
então supremos” . N os m ovim entos da po lítica e do direito m o­
dernos, Strauss reconhece, portanto, apenas um prenúncio da
m orte: a m etafísica agoniza; a inflação racionalista sufoca as
“ questões fundam entais” ; a a n tifilo s o fia dos “modernos” ocul­
ta a philosop hia perennis.
N a crise do m undo m oderno, Strauss, que prestou atenção
na psicologia desmascaradora empregada por Nietzsche, dis-

50. Leo Strauss, Études de philosophie politique platonicienne, trad. fr.,


B erlim , 1992, p. 49.
51. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, cap. II, Plon, p. 52.
52. Ibid.: como não pode haver conhecim ento autêntico do dever-sér e
dos valores (p. 57), não é possível prescindir de juízos de valor.
53. Ibid., p. 26.
54. Ibid., p. 32.
55. Heidegger, Nietzsche, trad. fr., G allim ard, 1971, t. II, pp. 224 e 226.
TERCEIRA PARTE 469

cerne um a outra tendência, igualm ente m aléfica. Desde M a -


quiavel e Hobbes, a antropologia afirm o u incessantemente a
prim azia do instinto de conservação que m ove o hom em não só
na banalidade cotidiana mas até nas construções m ais sutis do
direito p o lític o a partir dos reclamos de u m sujeito que se pare­
ce, como um irm ão, com o ego cogitans de Descartes. A ssim , o
individualism o ganhou um a força exem plar na filo s o fia de
Locke, na qual cada um é dito, por sua natureza, “ senhor abso­
luto” 56. D epois dele, a doutrina, baseada no direito natural in ­
serido na natureza hum ana ind ivid u al, construirá um a teoria
dos “ direitos do hom em ” entendidos como “ direitos subjetivos” .
Segundo essa lógiea da subjetividade, o cam inho estava aberto
para a “ liberdade dos modernos” , isto é, a curto prazo, para os
delírios individualistas e a perm issividade total.
Gs m alefícios do individualism o, considera Strauss, são
ainda m ais perversos do que os do racionalism o. D e um lado,
as teorias que defendem perante e contra tudo os direitos do
indivíd uo dissolvem o direito no fato e, varrendo a transcen­
dência e o ideal, condenam-Se a só tom ar como padrão os fatos
na determinidade de seu contexto tem poral57. D o outro, o in d i­
vidualism o, insistindo no parâmetro de um “ direito da natureza”
inerente ao ind ivíd uo, destrói desde o princípio a dimensão co­
m unitária do m undo humano para desenvolver um a filo s o fia
do interesse e da liberdade cujo epicentro é o “ eu” . Sob um céu
vazio, a autonom ia chega assim a se confundir com o egoísmo58.
Strauss não pode aceitar o duplo fracasso que representam,
no pensamento m oderno, o racionalism o e o individualism o.
Seu fracasso flagrante sig nifica m uito particularm ente que,
sob o efeito dissolvente deles, o direito p o lítico se destruiu, já
que fo i esvaziado de exigências axiológicas e só é aguilhoado
pelo desejo de um a liberdade libertária. A ssim sendo, a obra de
Strauss é perpassada de ponta a ponta pela oposição entre m o­
dernidade e classicism o. Por isso existe apenas um a saída para

56. Léo Strauss, D ro it naturel et histoire, pp. 245 ss.: Strauss se référé a
Locke, Traité du gouvernement civil, § 6.
57. Léo Strauss, What is P o litical Philosophy?, p. 70.
58. Léo Strauss, Pensées sur Machiavel, trad. fr., Payot, 1982, pp. 245-6.
470 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a crise de dissolução que nasceu, nos Tempos Modernos, da his-


toricização dos princípios do direito p olítico: como o progresso
da consciência de si e a inflação da razão vão de par ao longo da
história, é preciso, para sair do impasse, percorrer o cam inho
em direção inversa. Sendo o naturalism o ju ríd ico dos antigos,
aos olhos de Strauss, o único antídoto contra o hum anism o dos
modernos, o filósofo preconiza uma volta às fontes em que a natu­
reza, em seu despertar, tinha, antes de qualquer história, a face da
Eternidade. A aníim odem idade reside na arctemodemidade59.

N a radicalidade dessa volta às fontes, dois textos perm item


apreender o insubstituível valor de fundamento que Strauss atri­
bui à filo s o fia grega. O prim eiro é a “ explicação” com que
Strauss, em 1948, responde às objeções que Alexandre Kojève
form ulara contra sua interpretação do H ierão de Xenofonte60.
O segundo é o estupendo capítulo que Strauss consagra a A Guer­
ra do Peloponeso, de Tucídides61.

As lições de Xenofonte e de Tucídides

O debate entre Strauss e K ojève é um debate “ fundam en­


tal” no sentido forte do term o. A . K ojève, m arcado pela filo s o ­
fia de Hegel, tem uma visão globalizante da história, da p o líti­
ca e do direito: ele pensa no “universal concreto” que o Estado
é e nessa universalidade em que, segundo Hegel, se completa­
rá a fig ura do m undo. Strauss, h o stil às concepções sistem ati-
zantes e factuais do m undo ju ríd ic o e p o lítico , tem de lhes opor
um a reflexão norm ativista e paradigm ática em busca de chaves
e de princípios. Essa é a mensagem transmitida por seu estudo

59. Parece-nos que não é necessário recorrer, como fazem A . Renaut e


L . Sosoe {La philosophie du droit, P U F, 19, p. 112), aos esquemas heidegge-
rianos da “ desconstrução” da filo s o fia do direito para apreender a lógica do
procedim ento filo só fic o de Strauss: como a m odernidade ju ríd ic a criou um
impasse, é antes que este comece que convém buscar os princípios de um direi­
to autêntico e eficiente.
60. Leo Strauss, On Tyranny: An Interprétation o f Xenophon 's Hiero,
1948, reed. 1968; trad. ff., G allim ard, 1954 e 1983.
61. Leo Strauss, La Cité et 1’homme, Chicago, 1977; trad. ff., Agora,
cap. III.
TERCEIRA PARTE 471

das tiranias, as de ontem e as de hoje. É verdade que essas duas


figuras da tirania não se parecem: as tiranias modernas, carre­
gadas dos tons totalitários do nazism o e do stalinism o, têm uma
única palavra de ordem: a dominação, a cujo serviço põem a ideo­
logia, a ciência e a tecnologia. Os tiranos antigos, por sua vez,
não eram ávidos de cesarismo e dessa potência que quer “ a con­
quista da Natureza” 62: para o tirano perfeito que é H ierão, tal
como para o rei perfeito que é C iro63, o direito político faz parte
não da carne da história mas do Ser essencial do m undo; só po­
de ser compreendido em relação a um ideal contem plativo. É
isso que Platão d iz adm iravelm ente em sua tese do filó so fo -re i.
A dificuldade do texto de Xenofonte vem de que, quando
Hierão, o tirano, discute com Sim ônides, o sábio, e, ó paradoxo,
o tirano ataca a tirania, ao passo que o sábio faz seu elogio64, o
autor m aneja sutilm ente a ironia socrática e dissim ula assim
seu pensamento. É preciso decifrar seu sentido oculto.
Xenofonte pretende mostrar que não há direito p olítico que
não encarne uma norma. Portanto, não basta, comenta Strauss,
dizer que a tirania é monstruosa e que nela a ausência de Cons­
tituição ou sua violação permanente é odiosa ou insensata; é pre­
ciso compreendê-la como “ o contrário do m elhor regime” 65.
Ora, segundo Strauss, o “m elhor regime” ou a “ m elhor Cons­
tituição” - problem a central do direito p o lítico , para ele como
para Aristóteles - é aquele cuja norm a é fornecida pela nature­
za ou pela essência do Ser. Unicam ente o respeito da natureza
das coisas legitim a um a Constituição, portanto, um regime. A o
contrario, quando os princípios da Natureza são abalados ou per­
vertidos, a Constituição, portanto o regim e, são corrompidos.
D e m aneira geral, a vid a é boa e os costumes são retos quando
são “ conform es com a Natureza” , isto é, quando refletem a or­
dem e a hierarquia imanentes ao cosmos66.

62. Leo Strauss, De la tyrannie (Hiéron ), trad, citada, p. 284.


63. A lusão à Ciropedia de Xenofonte.
64. “ O Hierão representa a defesa clássica da tirania por um hom em sá­
b io ” , Pensées sur Machiavel, p. 314.
65. De la tyrannie, p. 309.
66. A ssim se explica, diga-se de passagem, a preferência de Xenofonte
e, de m odo m ais geral, dos gregos, pela aristocracia.
472 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

A existência da tirania cria portanto um problema defu n d o,


um problem a profundo ou, nos próprios termos de Strauss,fun-
dam ental. E la vai contra a Natureza cuja ordem fornece seu
paradigma à norm atividade juríd ico-p olítica. A ind a que o gran­
de Todo cósmico conserve algum m istério67, é somente nele e
até nos “ enigmas” do fundo do Ser que se enraízam as normas.
Ora, é a voz da natureza que os “ modernos” , em sua von­
tade de poder, já não sabem escutar: a supressão da referência
cosm o-ontológica gerou a corrupção moderna. N o caso, Strauss
pensa em M aquiavel e em Hobbes que, fazendo o hom em
avançar para a frente do palco, arrancaram as normas de seu
solo originário. Desenraizadas, as normas perderam então sua
norm atividade, isto é, sua autenticidade. A seqüência é fá c il de
adivinhar. Afogadas naquilo a que K ojève chama “ o Estado
universal e homogêneo” , elas tom aram a opinião como critério.
Isso lhes causou a m orte, pois o acordo que se baseia na o p i­
nião jam ais se pode tom ar um acordo universal68. “ Tudo o que
se poderia esperar no sentido da universalidade é u m poder
absoluto exercido pelos insensatos que controlam cerca da m e­
tade do globo, sendo a outra metade governada por outros ho­
mens insensatos.” 69 Nos antagonismos e nas contradições que
a m inam , a condição hum ana m oderna, vangloriando-se do hu­
m anism o, está de fato sem princípios, sem objetivo e totalm en­
te desnorteada.
Para Strauss, não é portanto perder-se em utopia retom ar
aos antigos. N ão buscavam, como os modernos, realizar o ideal,
pois sabiam que u m ideal, por natureza, jam ais se realiza, ju s ­
tamente porque conserva a altitude inacessível da idealidade70.
Para eles o ideal era um farol pelo qual se guiava o direito p o lí­
tico. Significava um m odo de vida, “ a busca da ordem etema ou
das causas eternas de todas as coisas” 71.

67. Leo Strauss, What is P o litical Philosophy?, p. 38.


68. De la tyrannie, p. 311.
69. Ib id .,p . 312.
70. A realização do m elhor regim e dependeria da sorte, ibid., p. 340.
71. Ibid., p .3 4 3 .
TERCEIRA PARTE 473

Tucídides, em A Guerra do Peloponeso, colocou os m ar­


cos dessa pesquisa arqueológica.
G capítulo que Leo Strauss consagra a Tucídides é um dos
mais belos de sua obra72. A Guerra do Peloponeso é decerto um a
obra de historiador e considerou-se mesmo Tucídides “um his­
toriador científico ” à m aneira dos do século X I X . M as, segun­
do Strauss, isso é um completo equívoco pois, assim como P la­
tão descobria o universal na vida singular de Sócrates, assim
também Tucídides “perm ite-nos ver o universal no, e pelo, acon­
tecim ento particular que relata”73. Por essa razão, já não é his­
toriador e sim filó so fo . Seu relato não é a narração feita por um
historiógrafo que “transm ite” o conhecimento dos fatos; é a ex­
pressão de normas e a busca da fundação delas. Quando fa la do
direito de Esparta ou da Constituição de Atenas, não relata,
avalia, ju lg a tom ando sempre a Cidade como horizonte de seu
pensamento. “ Todo ser humano e toda sociedade são o que são
somente em virtude daquilo que têm por m ais elevado. A Cidade,
se é sadia, alça seu olhar, não às leis, que ela pode desfazer do
mesmo m odo que as fez, mas às leis não escritas, à le i divina,
aos deuses da Cidade. A Cidade deve alçar-se acima de si mes­
m a .” 74 A ssim como entre as leis civis e as leis não escritas, é
n ítid a a demarcação entre a h istória em pírica e a radicalidade
de seus fundamentos: de um lado, d izia Tucídides, existem “ as
causas confessas” , de outro, “ as causas ocultas” 75, e só aquelas
são verdadeiras: indicam o direito enquanto que as outras só
m anifestam a força.
Isso requer portanto um a arqueologia: é exatamente isso
que ensinam as páginas consagradas à batalha de M an tin éia e
à expedição da S icília. Elas são menos um relato do confronto

72. Leo Strauss, La Cité et l 'homme, cap. I II: “ Sur la guerre des P élo -
ponnésiens et des Athéniens de Thucydide” , pp. 182 ss.
73. Ib id .,p . 183.
74. Ibid., p. 196. U m pouco m ais adiante lem os: “ O problem a m ais
im portante é o do que ultrapassa a Cidade ou do que está m ais alto que a
Cidade” , p. 197.
75. Tucídides, A Guerra do Peloponeso, caps. 24-28 para as “ causas
confessas” , caps. 89-118 para as “causas ocultas” .
474 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

entre Esparta e Atenas do que um a indagação da relação entre


guerra e paz, m ovim ento e repouso, barbárie e qualidade grega76,
a fim de mostrar que Atenas devia em ergir “ da barbárie, da fra­
queza e da pobreza o riginal” 77 para se tom ar “ á morada da sa­
bedoria” e “ escola da Grécia” . E m sua singularidade, ela sempre
procurou, “ à lu z do permanente e dó sempiterno” 78, os “ prim ei­
ros princípios” que são a ordem do d ivin o e que ela projetou na
ordem da Cidade. A grandeza dé Atenas não fo i, portanto, cons-
truir-se seguindo o curso da história. F o i compreender que o
que é “prim eiro por natureza” é o fundam ento de v a lo r do que
é “ prim eiro para nós” e que, portanto, a ordem do d ivino funda a
ordem da Cidade. Escrutando o exem plo de Atenas, Tucídides
indicava de antemão, contra todos os artificialism os da razão
moderna, que à Natureza, no seu despertar, tin h a a feição da
pura norm atividade.
E is por que, segundo Strauss, o filó s o fo do direito p o líti­
co do futuro deve olhar a aurora origin al que, aquém da racio­
nalidade transportada pelas ondas sucessivas da modernidade,
outrora se erguera em todo o seu esplendor. Strauss defende
assim um a filo s o fia na contramão quê deve voltar à Natureza,
“ entendendo-se o natural por oposição àquilo que é hum ano,
demasiado hum ano” 79.

Uma filo s o fia na contram ão:


a volta à norm atividade natural

A m odernidade, que repudiou toda teleologia m etafísica,


já não sabe olhar o m undo sob a claridade das estrelas: os
homens modernos se acham senhores das coisas; consideram
que são superiores aos antigos; afirm am que o passado está
superado para sempre; pensam que a única verdade é a histórica.
Com o seu racionalism o sintetista se crê capaz de, ao mesmo
tempo, vencer a contingência e o acaso e de dar ao ideal o per-

76. Leo Strauss, La Cité et l ’homme, p. 290.


77. Ibid., p. 291.
78. Ibid., p. 297.
79. Leo Strauss, What is P o litic al Philosophy?, p. 24.
TERCEIRA PARTE 475

f i l do real, entregam-se ao cálculo utilitarista do m aior lucro e


constroem normas destinadas a regulamentar sua existência da
m aneira pela qual se fabricam ferramentas pu máquinas. N a so­
berba de sua antim etafísica, os hom ens modernos declaram e
decidem; não se interrogam ; não procuram. Strauss não contra­
põe ceticism o a esse auge do dogm atism o; a dúvida erigida em
doutrina é, também ela, um dogmatismo. E le considera neces­
sário que, aquém da rede das normas jurídico-políticas modernas
que não passam de invenções humanas, portanto de representa­
ções80, seja reabilitado o direito natural clássico que o raciona-
lism o histórico, em todas as suas versões marcadas de p o siti­
vism o e de hum anism o, ocultou. Convém , portanto, recusar as
pretensões da norm atiyidade racional e devolver à norm ativi-
dade natural a preem inência original que possuía na ordem im a­
nente do cosmos. Essa volta às perspectivas da cosm ologia an­
tiga é a única v ia para recuperar, no direito político , a consciên­
cia dos “problemas fundam entais” , sem o que tudo não passa
de deriva.
O empreendimento de L eo Strauss não deixa de ter gran­
deza e sedução. A questão é saber se um a vo lta ao naturalism o
cosm ológico é um a solução pertinente para paliar os rebaixa­
m entos do direito p o lítico m oderno. O problem a é d ifíc il. A
resposta não é sim ples e seu teor já está, em grande parte, no
fato de fazer a pergunta. E xam inem o-la do duplo ponto de vista
da prática e da teoria, interrogando-nos, sob esses dois ângulos, de
um lado sobre a efetividade, até sobre a eficácia, das normas
jurídico -políticas, e do outro, sobre, sua fundação.
D o ponto de vista da p rática do direito político , é preciso
confessar que a recusa da historialidade tem uma figura insólita
que desafia as necessidades de nosso tempo. A suspeita recai im e­
diatamente nessa volta às fontes naturais do direito da Cidade.
A esse respeito, conhece-se a im pressionante “ crítica da filo s o ­
fia ” feita por Richard R o rty81: um a filo s o fia ju ríd ico -p olítica,

80. Leo Strauss, La persécution et l ’art d ’écrire, trad, fr., Press Pocket,
1989, pp. 304-5.
81. Richard Rorty, Philosophy and the M irro r o f Nature, Princeton,
1979.
476 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

especulativa com o é a de Strauss é incapaz de se adaptar ao


real presente e de cum prir em relação a ele o m enor papel e fi­
ciente. D e fato, Strauss, ao olhar o m undo hum ano num a pers­
pectiva a-histórica ou trans-histórica, pretende poder arrancar
as norm as do direito p o lítico da dinâm ica da história. Ora, é
quase im possível adm itir que as regras jurídicas ou os cânones
políticos do século X X sejam, quanto à sua origem , ao seu con­
teúdo e à sua finalidade, intercam biáveis com as normas da
Cidade grega, da Respublica christiana ou do Estado napoleô-
nico. A s sociedades industriais avançadas de hoje têm necessi­
dade de regras diferentes daquelas das sociedades feudais; as
próprias regras éticas não podem permanecer alheias às e xi­
gências dos tempos. As normas m antêm necessariamente um a
relação com os fatos e, na existência humana, os fatos são
acontecimentos ao longo do tempo. A liá s, quando Strauss des­
creve a periodização por “ ondas” da m odernidade, ou quando
contrapõe “ o liberalism o dos m odernos” ao “ liberalism o dos
antigos” , refere-se, m ais do que im plicitam ente, ao flu x o histó­
rico que traz as idéias e conduz o m undo. A ssim , a função nor­
m ativa, que fa z com que os hom ens im o sejam anim ais como
os outros, está destinada - salvo se fo r um jog o estéril do espí­
rito - a se aplicar ao m undo da experiência, portanto, à evolu­
ção e às mutações que lhe cadenciam o ritm o. Se, por exem plo,
as regras da representação não tin h am nem sentido nem exis­
tência na Idade M éd ia ou na França de L uís X IV , se as “ liber­
dades públicas” ou a proteção do patrim ônio m arítim o não eram
concebíveis pelo hum anism o renascentista, se a ajúda hum ani­
tária assume, atualmente, um a fig u ra “pública” etc., é porque a
norm atividade ju ríd ic a deve, de certa m aneira, esposar a histo­
ricidade se quer ter um a oportunidade de tom ar efetiva e eficaz
a regulamentação que é seu objetivo. O direito p o lítico se adap­
ta à conjuntura; segue, ainda que com atraso, a lógica da histó­
ria. Os conteúdos norm ativos m udam . Sua form a e sua lógica
evoluem : assim se explica o caráter “ histórico” do Código c iv il
ou da Declaração universal dos direitos do homem.
Portanto, visto em sua função prática, o direito p o lítico traz
a marca do m ovim ento e da historicidade. Suas categorias e
suas regras são m óveis. O enunciado delas, em m atéria legisla-
TERCEIRA PARTE 477

tiva por exem plo, traduz a relação entre o pensamento e o m o-


vente. A substância das normas do direito não pode ser in d ife ­
rente nem à m em ória nem ao esquecimento. O que chamamos
hoje (de m aneira pouco fe liz) de “ a ontologia do direito” leva
em conta essa dim ensão de m obilidade das regras jurídicas; a
mudança é o acelerador da diversificação e da com plexificação
da ordem ju ríd ico -p o lítica. N um a “ sociedade aberta” , as trans­
form ações históricas do direito p o lítico são incontestáveis: o
que é um a boa coisa na m edida em que o im obilism o é um a coi­
sa ruim .
N ão obstante, duas ressalvas se fazem necessárias aqui.
Julgar o valor das norm as do direito p o lítico exclusivam ente
por seu coeficiente de adaptação ao seu contexto histórico é
um a atitude m ais estratégica do que filo só fic a : por essa razão,
é sim plificadora e superficial em vez de ser problem atizante.
A lé m disso, criticar Strauss em nom e da m obilidade factual
das norm as que se autoproduzem e da relatividade cronológica
dos códigos e dos sistemas não pode atin g i-lo : prim eiro, por­
que ele sabia m uito bem que, de fato, o tem po, mesmo na bus­
ca das regras, jam ais susta seu vôo; depois, porque não é de um
ponto de vista praxiológico, mas sim especulativo e m etafísico,
que ele considera a problem ática das norm as ju ríd ico-p olíticas.
D o p onto de vista teórico que portanto é necessário não
desprezar, voltar à idade de ouro do direito natural inserido num
cosmos finaliza d o não é, para Strauss, o leitm o tiv de um a defe­
sa dos antigos, contra os modernos. É verdade que o naturalismo
antigo se apresenta mesmo em seu pensamento como o outro
do racionalism o moderno e a retidão da ordem natural é mesmo
o antim odelo das astúcias construtivistas da razão. M as Strauss
não põe o direito p o lític o diante dessa alternativa demasiado
fácil. Através do seu pensamento do norm ativo, é o próprio es­
tatuto da filo s o fia que ele cinzela.
A seu ver, a filo s o fia p o lítica antiga problem atizava aquilo
que os dogmatismos m odernos erigiram em sistemas sintéticos
e discursivos. H á nisso duas maneiras de pensar. M as elas não
convidam à polêm ica, atitude sem saída em que se oscila sem­
pre de um pólo ao outro. Os racionalism os modernos seguem,
478 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

como é norm al, a ordem das razões; são claros e, de seu conhe­
cim ento seguro, extraem ensinamentos práticos. O naturalism o
antigo seguia os caminhos sombreados da m etafísica para a
qual “ o m undo é m ais profundo do que o dia pensava” 82. Ora,
só é possível fundar o direito p o lítico deixando os cam inhos
dos cienticism os que, tendo postulado que a natureza é o in im i­
go que é preciso vencer83, julgaram possível alcançar a dom i­
nação do m undo e do hom em pelos cálculos e pelos artifícios
da razão. Esses caminhos não levam a lugar algum . E preciso,
por conseguinte, aquém de todas as construções racionais,
encontrar o ponto de partida do pensamento84, isto é, fazer o
esforço arqueológico que desvendará as raízes engolidas pelas
sedimentações da razão e do tempo. É, de fato, no m istério o ri­
ginal das normas que reside o princípio da validade delas. Esse
m istério é aquele mesmo contido pela “bela totalidade grega” ,
reflexo da “ grande Natureza” celebrada por Platão e Aristóteles.
Strauss deplora que os cálculos e o decisionism o da razão m o­
derna tenham obliterado esse m istério do fundo do Ser e ocul­
tado sob a face da experiência a questão da essência. O m ergu­
lh o nas técnicas, de que se orgulha a razão, im pede de olhar o
céu das Idéias.
Por certo foram levantadas objeções. Acusaram Strauss
de ter compreendido m al M a x Weber, de ter decaído num “ dog­
m atism o supra-histórico” ; reprovam-lhe a unidim ensionalidade
de sua filo s o fia . Essas críticas têm um a parte de verdade, mas
não atingem a força de sua escolha filo só fic a . Seu m érito é, de
fato, mostrar que as normas do direito p o lítico não são ferra­
mentas com finalidade prática, mas sim exigências do pensa­
m ento, e que são inconcebíveis sem se recorrer às metarregras
que se im põem aquém de todas as regras convencionais. Elas
correspondem ao horizonte de pureza que as representações e
os artifícios do pensamento m oderno, sempre lim itados e im ­
puros, obscureceram. O direito natural dos clássicos oferece ao

82. N ietzsche, Assim fa lo u Zaratustra, IV , O canto da em briaguez.


83. Leo Strauss, La Cité et Vhomme, p. 59.
84. Leo Strauss, What is P o litic al Philosophy?, p. 75.
TERCEIRA PARTE 479

direito p o lítico - M ontesquieu o compreendera m agnificam en-


te85 —o ideal de harm onia e de eq u ilíb rio que assume feição de
verdade cósmica e se tom a, na Cidade, o padrão da norm ativi-
dade: “H á um padrão do justo e do injusto que é independente do
direito positivo e lhe é superior.” 86 Se adm itim os, que “ o pensa­
mento humano é capaz de transcender suas lim itações históricas
ou atingir algo de trans-histórico” , compreendemos ao mesmo
tempo que o racionalism o moderno e seu séquito de doutrinas
redutoras são “ a consumação da crise do direito natural” 87.
U m direito não prescritivo, no qual as exigências ou as
esperanças não descendem de um a concepção teleológica da
Natureza, é, segundo Strauss, destituído de sentido e de valor;
é então im postura e caricatura. Considerá-lo apenas em sua ho­
rizontalidade é um procedimento in frafilo só fico . O hom em não
fic a filó s o fo mergulhando na história, mas captando, na regu­
lação im anente da natureza, sua força norm ativa do direito na­
tural. A ordem cósmica oferece, para quem sabe ler no grande.
livro da natureza, o paradigma do direito p o lítico , portanto, do
“m elhor regim e” .
Leo Strauss é um “ verdadeiro filó s o fo ” 88, não porque, an -
hm odem o, tivesse pura e sim plesmente sonhado em voltar à
ingenuidade «wíemodema, mas porque, num a visão elitista,
condenou os sincretismos e as logom aquias da esfera ju ríd ic o -
p o lítica moderna, demasiado esquecida da idealidade norm ati­
va dos albores do m undo.

Ocorre que, para a m aioria dos “modernos” , voltar atrás


para os horizontes awíemodemos do jusnaturalism o clássico é
não só um a im possibilidade - não se anda para trás na linha do
tempo - mas também constituiria um erro im enso: a obrigação
à le i natural seria um desafio tanto ao progresso da consciência
po lítica quanto à responsabilidade e à liberdade, portanto, à hu-

85. M ontesquieu, L ’esprit des lois , liv . I, cap. I.


86. Leo Strauss, D ro it naturel et histoire, p. 14.
87. Ibid., pp. 34 e 42.
88. A lla n B loom , Leo Strauss, un vrai philosophe, in Commentaire,
1 9 7 8 ,1,pp. 91-105.
480 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

m anidade do hom em . É por isso que outros pensadores, a fim


de escapar da crise do direito p o lítico moderno, preferiram tra­
çar, referindo-se a outros parâmetros, o cam inho daquilo a que
chamam a pós-m odem idade em vez de seguir a v ia do jusnatu-
ralism o ante m oderno, que pretendem repleta de irisão.

B ) As perspectivas pós-modemas do direito p o lític o :


as proposições de J. Haberm as

Jürgen Habermas (nascido em 1929), depois de sondar “ o


discurso filo só fic o da m odernidade” 89, procurou “um a outra
via ” para sair das arm adilhas e das aporias às quais, a partir do
século X V II, o direito p olítico, tributário do racionalism o e da
“ filo s o fia do súdito” , se condenou. E le reconhece que, nos anos
1970-1980, “ a crítica radical da razão praticamente viro u m o­
da” 90: a partir de Kant, que já atribuíra a essa crítica “ a form a de
um a autolim itação estritamente discursiva da razão” , e sobre­
tudo depois de Nietzsche que deu o tom de um a “hostilidade
m etodológica para com a razão” , tom ou-se um a banalidade ata­
car o racionalism o dos modernos. Entretanto, graças a essas
críticas, pôde-se avaliar de diversas maneiras “ o que custa a
razão” . A “nota” é pesada e, caso se efetue - o que não fo i feito
de verdade - a passagem de um a “ razão exclusiva (do tipo kan­
tiano)” para um “ conceito m ais am plo, um conceito compreen­
sivo da razão” , fic a ainda m ais pesada.

O paradigm a da comunicação

A crítica da razão constantemente repetida até nossos dias


parece ligada, diz Habermas, a uma “ ingenuidade histórica” : se­
guindo o kantism o que quis “ ilum inar o Ilu m in ism o por seus
próprios lim ites” 91, ela errou o caminho. “U m paradigma só per-

89. Jürgen Habermas, Le discours philosophique de la modernité. Dou­


ze conférences, 1985; trad. fr., G allim ard, 1988.
90. Ibid., p. 357
91. Ibid., p. 358.
TERCEIRA PARTE 481

de sua força na m edida em que outro o negue .” 92 Ora, “ querer


revisar o Ilu m in ism o por m eio do Ilu m in ism o ” é um empreen­
dim ento de demarcação bastante vão, já que pratica o tempo
todo a auto-referência ao sujeito. A in d a por cim a, recorrer ao
legado rom ântico para ju s tific a r a autodestruição da razão é
igualm ente vão pois isso conduz à “ m itologia” de um a subjeti­
vidade centrada no corpo. De fato, a razão in serida no sujeito é
“ o produto de uma fissão e de uma usurpação, isto é, o produto
de um processo social que viu , em seu desenrolar, um m om en­
to subalterno tom ar o lugar do todo, sem contudo ter a energia
suficiente para absorver a estrutura do todo” 93. Outrossim,
enquanto a crítica não se desviar radicalm ente do logocentris-
mo e da filo s o fia da consciência que se instalaram no pensa­
m ento ocidental moderno, ela se perderá em caminhos que não
levam a parte alguma: tem de tom ar “um a nova direção” . Essa
“ outra via para sair da filo s o fia do sujeito ” 94 é a da “razão co-
m unicacional” . Isso se compreende por um raciocínio sim ples
que Habermas form ulava já em 196395: se, no âmago de um a
filo s o fia da consciência, o paradigma de um a razão centrada
no sujeito é o do direito p o lítico m oderno em v ia de se exaurir,
então, “passando para o paradigma da intercompreensão, os
sintomas de esgotamento devem efetivam ente desaparecer” 96.
Já em 1963, Habermas explicava 97 que, apartir de Hobbes,
até a partir de M aquiavel, a doutrina clássica do direito natural
fora suplantada na filo s o fia pela obsessão do pensamento prá­
tico que, sob a égide do cartesianismo, logo fora confundida
com um a technè. O direito p o lítico então se “ c ie ntifizo u ” e,
obediente na sociedade moderna à lógica de um a rede de pres­
sões e de recomendações prático-técnicas, assumiu a fig ura da

92. Ibid., p. 366.


93. Ibid., p. 373.
94. Ibid., p. 348.
95. Jürgen Habermas, Theorie und praxis. Sozial-philosophische Studien,
1963 e 1971; trad. fr. da segunda edição, sob o títu lo Théorie et pratique,
Payot, 1975.
96. Le discours philosophique de la modernité, p. 351.
97. Théorie et pratique, cap. I.
482 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

“ arte pragm ática da técnica do Poder” . O programa contido na


teoria m arxista seria a realização da m odernidade pela prática.
Habermas não esconde sua sim patia por u m projeto assim; mas
é preciso, considera, revisá-lo98.
Para paliar os riscos de vacuidade de um a modernidade
reduzida à dim ensão tecnocrática das decisões e das ações, é
necessário elaborar seu estatuto reflexivo. Habermas encontra
então a chave de sua “teoria social crítica” na noção de “ agir
com unieaeional” expressa, em 1981, por sua Theorie des kom -
m unikativen H an d eln s" cuja idéia diretriz ele resume nos se­
guintes termos: “A razão com unieaeional [...] é de saída m is­
turada com o processo da vid a social pelo fato de que os atos
de intercompreensão desempenham o papel de um m ecanismo
que tem o objetivo de coordenar a ação. A s ações com unicacio-
nais form am um tecido que se alim enta dos recursos do m undo
v iv id o e constitui, por isso m esm o, o m eio a partir do qual se
reproduzem as form as de vid a concretas.” 100 O sentido do “ agir
com unieaeional” va i contudo, por sua função norm ativa espe­
cífica, além do “pertencer com um e incontom ável” , ao destino
da coletividade humana. M a s Habermas, que contesta a u n i­
versalidade da razão e a unidade do sujeito em nom e dos p arti-
cularismos e da pluralidade das form as da vid a social, opõe-se
às im plicações nom ológicas do pensamento moderno pois elas
são, diz ele, “m onológicas” . N ão nega a im portância da racio­
nalidade nas produções sociojurídicas, mas considera que a ra­
zão não poderia se expressar unicamente, como se dá na filo ­
sofia moderna, no modo técnico-prático. N o campo social e,
notadamente, na esfera ju ríd ic o -p o lític a , o trabalho da razão é
inseparável de um a intersubjetividade que, no essencial, é m e-

98. Jürgen Habermas, Zur Rekonstruction des historischen M aterialis­


mus, 1976.
99. Jürgen Habermas, Theorie des kommunikativen Handelns, Frankfurt-
sobre-o-M eno, 1981; trad. fr. Théorie de l ’agir communicationnel, Fayard,
1987: cf. Jean-Marc Ferry, Habermas. L ’éthique d e là communication, P U F,
1987.
100. Jürgen Habermas, X e discours philosophique de la modernité, pp.
373-4.
TERCEIRA PARTE 483

diatizada pela linguagem e, m ais precisamente, pela prática da


discussão. Esta ú ltim a, que é o lugar por excelência em que se
entrecruzam o m undo v iv id o e a ação cotidiana da com unica­
ção, desempenha o papel de m ediação que o m arxism o ociden­
tal reservara para a práxis e o trabalho - no que ele não havia
conseguido apartar-se verdadeiramente da m oderna filo s o fia
da consciência. O m érito da razão “ com unicaeional” é duplo:
de um lado, ela recusa o solipsism o, pois a discussão não pode,
evidenteménte, fechar-se na subjetividade,m esm o praxiológica;
do outro; não se pauta por exigências lógicas* pois estas perma­
neceriam puramente form ais, portanto desencarnadas e sem
substância. A intersubjetividade é necessariamente o campo
no.quál, sobre fundo de integração social, a razão “ discursiva”
e “ comunicacional” apresenta* visando a outros e num a busca de
consensualidade, um a conduta “processual” de argumentação
e de justificação: “ É o acordo obtido de m aneira com unicacio­
nal, avaliado à lu z do reconhecimento intersubjetiyo das pre­
tensões à validade, que tom a possível a reticulação das intera­
ções sociais e dos contextos procedentes do m undo v iv id o .” 101
E m consequência, como essa razão qualificada de “proces­
sual” - em oposição à razão “ moderna” , reputada técnica ou
“ instrum ental” - anim a um a prática cotidiana ligada ao contex­
to e às estruturas do m undo v iv id o 102, ela refuta as construções
especulativas e dogmáticas do Estado e de seu dispositivo ins­
titucional. A própria Constituição, longe de ser o momento funda­
dor das regras do direito positivo, tem necessidade de ser fundada
ou, pelo menos, requer uma “validação crítica” que, segundo H a­
bermas, só pode e só deve provir da “discussão prática” . A o poder
de decisão e à onicom petência que caracterizam o Estado sobe­
rano em suas estruturas modernas, Habermas opõe, portanto, as
capacidades de argumentação que pertencem à comunidade so­
cial e condicionam a “ intereompreensão” .

101. Ibid., p. 381. Por “reticulação” deve-se entender, parece, a consti­


tuição de um a rede.
. 102. Essa é igualm ente à tese defendida por Charles T a ylo r, Philoso-
p hical Papers, Cam bridge, 1985, vols. I e IL
484 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

N em por isso devemos concluir que o direito p o lítico de­


ve ser tributário integral dos acontecimentos e da resposta da
comunidade à atualidade hic et nunc. Certamente com pete-lhe
regular os comportamentos políticos, aqui e agora, em contex­
tos determinados e mesmo tendo em conta “ conseqüências fac­
tuais” que ele é suscetível de provocar. M as a validade de suas
regras não reside na em piria; transcende os lugares e as épocas,
pois no direito político se efetua, segundo a expressão de K . O.
A p el, “ o entrecruzamento das comunidades real e ideal de co­
municação” 103. Sem dúvida a coesão entre o real e o ideal é das
m ais difíceis na argumentação que a razão processual tem de
desenvolver e, em conseqüência, a discussão é com mais ffeqüên-
cia “ poluída” do que “ depurada” . M as o im portante é sublinhar
a relação interna que a razão com unicacional estabelece entre a
gênese e o valor do direito p o lítico , submetendo-o ao “ entendi­
m ento intersubjetivo e ao reconhecimento recíproco” 104. É por
isso que se pode dizer de um a norm a ju ríd ic a - e também ética
- que só é aceita se aqueles a quem d iz respeito “ consentem”
em reconhecê-la. Esse consentimento, obtido e m anifestado pela
discussão no espaço público, é o princípio da “ ética do discur­
so” - princípio pelo qual o espaço público teria, segundo Haber-
mas, um valor prim ordial insubstituível e comparável, m utatis
mutandis, às condições transcendentais nas quais repousa a aná­
lise kantiana105. Reportando-se assim à “norm atividade im a­
nente dos processos de discussão prática a fim de abrir as pers­
pectivas dos participantes sobre o horizonte pragmático de nos­
sos ideais políticos” 106, Habermas (num a perspectiva, é verdade,

103. Jürgen Habermas, Le discours philosophique de la modernité, p.


382, cita K . O. A pel, Transformation der Philosophie, Frankfurt, 1973, t. H,
pp. 358 ss.
104. É preciso evidentem ente recordar aqui que Habermas v iu na o p i­
nião pública, desde sua tese (Strukturwandel der Öffentlichkeit, 1962), um a
dimensão constitutiva das sociedades.
105. Jürgen Habermas, M orale et communication, trad, fr., É ditio ns du
C erf, 1986, p. 105.
106. Jean-Marc Ferry, Philosophie de la communication, vo l. 2, É d i­
tions du Cerf, 1994, pp. 119-20.
TERCEIRA PARTE 485

m ais ética do que propriam ente ju ríd ic a ) “remete m ais a um a


liberdade com unitária e positiva do que a urna liberdade in d iv i­
dual e negativa” . Nessa liberdade com unitária se aloja, d iz ele,
“ um potencial de razão” que, confundido com os “recursos do
mundo vivid o sempre particular”, substitui aquilo que, na moder­
na filo s o fia do sujeito, era o apanágio da consciência107.

Os riscos de uma pós-m odernidade consensual

Pode-se indagar se, nessa renovação do direito p o lítico


pela racionalidade com unicacional e pelos procedimentos d e li­
berativos, Habermas não opta, à sua m aneira, pela “ sociedade
contra o Estado” 108. A prática não consensual apresentará o
risco, como tem ia Tocqueville, de dar m uito peso, nos disposi­
tivos ju ríd ico -p olítico s, à opinião pública e, com m uita fre-
qüência, às manifestações de rua? Recusar “ os cam inhos da
autoridade” política e a soberania do Poder pelo m otivo de serem
a expressão do dogmatismo e da dominação provém , é claro,
de um a “razão crítica” que rejeita a tonalidade “m etafísica” das
fundações que a filo s o fia moderna atribuiu ao direito político.
Entretanto, não se deverá recear que, no universo filo só fic o con­
temporâneo, cujo projeto é renegar nosso legado da m oderni­
dade, o direito p o lítico fique ameaçado pela desordem e pela
anarquia? Recusar, ju n to com a universalidade unificadora da
razão, as formas centralizadoras e as potências norm ativas do
Estado, não será correr o risco de condenar a vid a social a seguir
os m ovim entos e os im pulsos da m ultidão, portanto, a afundar
m ais dia menos dia no caos? N o lim ite , subordinar o direito
p o lítico ao consenso social equivale à ausência de governo e de
aparelho jurídico para regular a vida social: é uma utopia suicida.
J. Habermas não pôde ignorar a força de ta l objeção e, de
antemão, quis dar-lhe resposta sublinhando que a com plem en-

107. Jürgen Habermas, Le discours philosophique de la modernité, p.


385. “ São as form as de vida concretas que substituem a consciência transcen­
dental unificadora” , p. 386.
108. Extraím os essa expressão do títu lo da obra de Pierre Clastres (La
société contre l ’État, É ditions de M in u it, 1974) dando-lhe u m outro significado
- j á que essa obra é um estudo antropo-sociológico das sociedades ameríndias.
486 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

taridade dos conceitos de atividade comunicacional e de m undo


v iv id o tom a possível a racionalização da condição dos homens,
não sobre o horizonte m òdem o de um universalism o abstrato
que privilegie, com a subjetividade, a lógica centrada no sujei­
to e na auto-reflexão, mas através dos elementos cada vez m ais
diferenciados da cultura e do espaço social. Nessa perspectiva
“pós-modema” , “o espaço público político” não se reduz à “ auto­
nom ia sistêmica” do Poder; é “ domesticado” , o que im p lica
que se tom e consciência da “ diferença entre problemas de re­
gulação e problemas de intercompreensão” : “É preciso que os
im pulsos vindos do m undo v iv id o possam in flu ir sobre a auto-
regulação dos sistemas funcionais .” 109 Noutras palavras, não se
trata de negar no direito p o lític o os reclamos da norm atividade,
mas é preciso deslocar seu ponto de amarração. A questão toda
está entãq em saber se o deslocamento das fontes da norm ati­
vidade ju ríd ica requerido, segundo Habermas, pelo esgotamen­
to do paradigma do sujeito, não redunda, no universo com uni­
cacional, em outras aporias. Para eclipsar a racionalidade e a
subjetividade do hum anism o que até então prevaleceu na e d ifi­
cação do direito político e do Poder do Estado, não será perigoso,
num a sociedade obnubilada por preocupações dispersas e cam­
biantes, seguir o dédalo das correntes de opinião e das modas?
N ão será perigoso para o direito p o lítico curvar-se, ainda que
de m aneira consensual, antes às pressões das massas do que à
soberania do povo e tentar responder (sem, aliás, nunca conse­
guir) antes aos desejos dos consumidores e dos usuários do que
ao idèal da cidadania? N o plano de intem acionalidade, não será
também um a aposta procurar um a consonância inalterável entre
povos e culturas nas quais as diferenças superam a dimensão de
universalidade?
Pode-se adm itir que o m odelo de subsunção do particular
pelo universal peque, no direito p o lítico moderno, por um for­
m alism o excessivo. E m contraste, pode-se pensar que as noções
de intersubjetiyidade e de comunicação são não só calorosas

109. Jürgen Habermas, X e discours philosophique de la modernité,


pp. 429-30.
TERCEIRA PARTE 487

como abrem o cam inho, com a discussão, a um a síntese con­


creta da individualidade e da comunidade. N ão obstante, per­
manece incerto que a razão com unieacional possa fundar s o li­
damente um a concepção nova do direito p o lític o 110 - pelo m e­
nos enquanto não tiver aprimorado o estatuto da “racionalida­
de dialógica” como “ outro” da “ racionalidade instrum ental” ,
sempre m onológica no m undo moderno. Ora, é nesse ponto,
parece-nos, que culm ina a dificuldade da visão pós-m odem a do
direito político. N ão apenas, de fato, o pós-m odem ism o incorre
assim no risco de se perder num pluralism o sem lim ites, como
o aprim oram ento do estatuto da razão dialógica e da palavra
dialogai exig iria que fosse reestudado o problem a fundam ental
da socialidade - do que Habermas teve consciência ao louvar,
ó paradoxo, os m éritos do m odelo da Cidade grega111... Quer
dizer que a />ós-m odem idade do direito p o lítico só revelaria
seu sentido np espelho da /tré-m odem idade?
N ão haveria, por conseguinte, m uita precipitação no dis­
curso que proclam a o advento da pós-m odem idade?

E m sua divergência, os exemplos de Leo Strauss e de Jürgen


Habermas nos ensinam que é bem d ifíc il “ quebrar os vidros”
do Estado m oderno para saltar para fora dele como queria
Nietzsche-Zaratustra. E se, ainda por cim a, os amanhãs pós-
m odem os do direito p o lítico só se ilum in am no horizonte lo n ­
gínquo do m undo pré-m oderno, ao qual o retom o é, para os ho­
mens, a im possibilidade absoluta que já mencionava Rous-
seau112, não estaremos diante de um enigm a ou, com todos os
perigos que isso representa, não estaremos diante de um salto
para o desconhecido?

110. Essa é basicamente a pergunta que M c ln tyre form ula em After Vir-
tue, Londres, 1981, e em Whose Justice? WhichRãtionality?, U niversity N otre-
Dam e Press, 1988.
111. Jürgen Habermas, L ’espace public, trad. fr. de Strukturwandel der
Öffentlichkeit, Payot, 1978, PP- 15-6.
112. “A natureza hum ana não retrocede e jam ais rem onta aos tempos de
inocência e de igualdade iim a vez que se tenha deles afastado” ( Ròusseau,
juge de Jean-Jacques, terceiro diálogo, in Pléiade, 1.1, p. 935.
488 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

D a crítica do direito p o lítico m oderno, que já era latente


antes da Revolução, à crise que o atinge neste fim do século
X X , o questionamento do princípio de racionalidade sobre as
capacidades construtivas do qual se erguerá a arquitetura ju r í­
dica do Estado repetiu-se obstinadamente, como um a constante.
O anti-racionalism o assim oposto aos esquemas constitutivos
da ordem ju ríd ic a decerto enveredou por vias diversificadas e
adotou tonalidades m uito diferenciadas. M as o fenôm eno m ais
im pressionante é que, no curso dos dois últim os séculos, ele se
èxpressou de maneira cada vez m ais virulenta e, sobretudo, cada
vez m ais radical. O fato de ter tid o o objetivo de atribuir um
lugar, no direito político, ao sentim ento e à tradição veiculados
pela historialidade dos povos, não é em si um elemento despre­
z ív e l na história das idéias. N ão obstante, o que im porta p rin ci­
palm ente é que a “reação” contra-revolucionária, no in íc io m ais
ou menos tingida de rom antism o, tenha aberto um a brecha no
próprio âmago da racionalidade jurídico-política, fazendo-a des­
de logo mostrar-se incapaz de ser auto-suficiente. Por conse­
guinte, encetou-se um processo de crise, que a crítica m arxista
e os temas nacionalitários, engolfando-se na fratura, deviam
acentuar e acelerar. Em m eio às controvérsias doutrinárias, mas
também no flu xo irracional das esperanças e das reivindicações,
não se dem orou em anunciar a debilitação do Estado construí­
do pela racionalidade m etafísica e abstrata dos m odernos; e,
logo, a m orte próxim a do direito p o lítico se delineou como o
acontecimento tão inelutável quanto necessário. O processo m e­
tafísico do monstro estatal, denunciado como estranho ao m undo
da vid a e cheio da m entira extram oral que conduz ao esqueci­
mento do Ser, entoava a marcha fúnebre do Ocidente. A crítica do
racionalism o ju ríd ic o m oderno encontrava assim seu paroxis­
m o na constatação do n iilis m o europeu.
Entretanto, apesar do profetism o com que üm verbo amea­
çador anunciava a morte do direito e do Estado, até mesmo a
m orte do hom em , nem o direito, nem o Estado, nem o hom em
m orreram ... A o tempo mesmo que os princípios racionais do
TERCEIRA PARTE 489

Estado moderno eram postos no banco dos réus e condenados


irrem ediavelm ente, o direito p o lítico se am pliava, atravessando
as fronteiras. O desenvolvimento do direito internacional fo i um a
das conquistas m ais notórias do século X X e poder-se-ia pensar
que, nesse fenômeno ju ríd ico novo, os princípios filo só fico s da
razão construtiva encontraram a confirm ação de sua veracida­
de. N ão obstante, enquanto se d efiniam e se aprimoravam os
m odelos de um direito confederai pluriestatal e de um direito
federal supraestatal, fo i a essência mesma do Estado moderno -
a soberania - que se v iu abalada. Quaisquer que tenham sido e
sejam atualmente os esforços realizados pelas instituições in ­
ternacionais para assegurar aos homens a segurança e a paz, a
superação do direito p olítico do Estado moderno por um direito
novo, que m etam orfoseia algumas de suas estruturas, não ocor­
re sem criar, em tom o do conceito fundam ental da onicom pe-
tência do poder soberano, problemas m uito delicados. A s d ifi­
culdades reveladas por um a reflexão sobre os mecanismos su­
pranacionais são bastante graves, em todo caso, para que o
espectro das “ crises” atormente o fin a l de nosso século. U m a
vez m ais, instrui-se o processo dos princípios filo só fic o s fu n ­
dadores da m odernidade ju ríd ic o -p o lític a e o veredicto é d e fi­
n itivo : chegou a hora, dizem , de substituir o discurso filo só fic o
da m odernidade por um contradiscurso filo só fic o . A ssim se de­
senvolveu um a certa filo s o fia contemporânea que se empenhou
em traçar os esboços salvadores de um a pré-m odem idade ou de
um a pós-m odem idade ju ríd ico -p olítica.
M o vid a com m uita freqüência por um a vontade de o rig i­
nalidade m ais iconoclasta do que construtiva, geralmente im ­
pregnada de m ilitantism o e de demagogia, cedendo tam bém às
vezes às sereias das glórias da m ídia, essa filo s o fia nova trans­
põe para as estruturas jurídicas do Estado m oderno o m al-estar
da civilização contemporânea m anifestado por inúm eros m ovi­
mentos sociais e políticos. Essa transposição, que arranca o d i­
reito político moderno de sua ordem própria e lhe ignora “ o espí­
rito” m ais arnda do que a letra, resulta da confusão entre os con­
teúdos e os princípios do direito. O m al-entendido é profundo.
490 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

M u ito evidentemente, não se poderia sustentar que as re­


gras do direito p olítico, em seú conteúdo e em seus objetivos,
devem permanecer im utáveis: o legislador não poderia fiirtar-se
à adaptação e ao progresso requeridos pela evolução das socie­
dades. A o im obilism o é necessário contrapor um veto categó­
rico, pois ele é sempre um a esclerose destrutiva. M as os p rin ­
cípios sobre os quais se ed ifica a arquitetônica ju ríd ica das so­
ciedades são de outra ordem e, portanto, são irredutíveis às
determinações empírico-pragmáticas. O m érito do pensamento
m oderno - cujo legado a antim odem idade do pensamento con­
temporâneo, queira ou não, recebeu - é de lhes ter atribuído o
estatuto filo só fic o de exigências transcendentais, isto é, a p rio -
r i e universalm ente necessárias. Estas, longe de se curvarem
sob a pressão dos pluralism os e da m obilidade sociopolítica, ao
contrário a dom inam im pondo-se, como veremos, como o im ­
perativo categórico do direito p olítico.
C O N C LU SÃO >

O espírito do direito p o lític o m oderno:


as exigências transcendentais
da razão ju ríd ic a

N a hora qüe está term inando o século X X , indagar-se so­


bre os princípios filo só fic o s do direito m oderno aos quais se
prenderam, durante três séculos, tantas certezas e esperanças,
pode fazer nascer todas as suspeitas e suscitar todos os temores.
Entretanto, a antim odem idade que se rebela contra as form as
estatais da cultura ju ríd ic a m oderna carece do espírito do d ire i­
to s oculta a força inexpugnável dos princípios que a m oderni­
dade nos lègou,

1. Os denegridores dam odem idade costumam repetir que


o direito político que rege tanto a vida interna dos Estados quan­
to as relações que eles m antêm entre si é, apesar de suas certe­
zas, atormentado por sua fraqueza e que o m om ento idealmente
objetivo que seu desenvolvim ento racional lhe p erm itiu atingir
é, na realidade, o espelho de um a derrota m ultidim ensional. O
direito p o lític o m oderno ofereceria não só um a obra institucio­
n al inacabada mas essa obra seria insuscetível de conclusão,
pois estaria sempre duplamente ameaçada: de um lado, perm a­
necerá sempre onerada em sua dim ensão em pírico-pragm ática
pela vio lên cia que ronda entre os homens e que ela não conse­
gue erradicar; do outro, a razão, que se alim enta de ilusões e de
mentiras, instila, mesmo pretendendo conduzir à liberdade, m ú l­
tiplas form as de alienação e, por conseguinte, está prenhe de
suas contradições imanentes.
O hum anism o liberal que era o orgulho dó direito p o lítico
construído pela razão dos “modernos” se teria portanto trans­
form ado no seu oposto. A postulação racionalista e a filo s o fia
492 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

da consciência que constituíam os eixos de sustentação dos sis­


temas ju ríd ico -p olítico s da M odernidade teriam sido conduzi­
das ao fracasso, de m odo que, do im enso otim ism o ju ríd ic o
que aureolava a filo s o fia do Ilu m in ism o e a obra dos homens
da Revolução, sobraria apenas um gosto de cinzas. Os grandes
princípios de ordem pública, de independência e de autonom iza­
ção do Estado, de soberania estatal, de representação e de par­
lam entarism o, a arquitetura constitucional do Estado, o p rincí­
p io de legalidade, a idéia de legitim idade, os reclamos de liber­
dade e igualdade im plicados pelo reconhecimento dos direitos
do hom em e do cidadão, a exigência de “ publicidade” inerente,
como d izia Kant, ao republicanism o, etc., estariam num estado
de degenerescência tão avançado que se encam inhariam inexo­
ravelmente para o cem itério do direito político. N o fim do ca­
m inho, num horizonte estreito e som brio, a crise do direito, a
debilitação do Estado, a falência da le i, a morte das instituições,
até mesmo a morte do próprio hom em , estarão m uito próxim as.
A o Estado moderno, que o aumento dos perigos teria levado,
dizem , à beira do traspasse, contrapõe-se correntemente a im a­
gem de tuna sociedade não diretiva em busca de utilidade e de
facilidade: lugar eleito das liberdades e das iniciativas, ela se
abriria à intérsubjetividade e, na discussão, à comunicação. M a is
ou meúos impregnados, num a fidelidade às vezes duvidosa, das
teorias marxislas e da filo s o fia inspirada em Nietzsche e H eideg-
ger, todos esses temas, no curso dos últim os anos, foram repi­
sados em registros diversos a ponto de se transform arem num
código retórico de lugares-comuns.
O inchaço pletórico da literatura antiform alista ju ríd ic a
corresponde sem dúvida algum a à banalidade do m al e ao as­
pecto trágico da condição hum ana qüe, faz m eio século, é, se­
gundo a expressão de André M alraux, “ a tentação do Ocidente” .
Tampouco é inteiram ente errado que, no Estado secularizado
do m undo m oderno, a racionalização do direito tenha provoca­
do, já no século X V III, um a inflação legislativa, depois regula-
mentadora que, necessariamente coerciva —não há direito sem
coerção - , pode ser compreendida como um a form a dogmática
e pesada do Poder e suscitar, num a reação de rejeição, um cre­
do libertário.
CONCLUSÃO 493

M as, sem negar que a inquietação filo s ó fic a que engen­


drou a antim odem idade contemporânea corresponde às incer­
tezas e às im perfeições dos conteúdos do direito p o lítico m o­
derno, as críticas desesperançadas (e desesperadas) de que ele
é objeto não atingem nem seus princípios nem , sobretudo, seu
espírito. D e fato, a ideologia com grande frequência eclipsa nela
a interrogação filo s ó fic a de tal m aneira que, na espécie de l i ­
turgia sociopolítica que se apresenta, o sentido da regulação es­
trutural requerida pelo direito moderno, arrancado de sua ordem
própria fic a obliterado ou incom preendido. Convém , portanto,
encontrar o sentido ou o espírito dos princípios que perm itiram
a instituição das ordens jurídico-políticas da modernidade e com ­
preender por que, apesar das evoluções e das mutações de seus
conteúdos, subsiste neles um a dignidade filo s ó fic a perene.

2. N ão se trata de contrapor às críticas antimodem as do


direito p o lítico um a defesa incondicional da m odernidade ju r í- .
dico-política. N ão é perm itida a cegueira do filó s o fo diante da
necessidade das mudanças que a factualidade histórica exige.
A lé m do m ais, o filó s o fo sabe que a p o lític a e o direito são ani­
mados por um forte potencial polêm ico. N ão obstante, se se
adm ite que um a das tarefas da filo s o fia é indagar-se sobre os
princípios de inteligibilid ad e do direito político , é forçoso re­
conhecer que a contribuição do pensamento “moderno” é, a esse
respeito, insubstituível porque, progressivamente, ele trouxe para
a lu z o im perativo ra c io n a lprático sem o qual a ordem ju ríd ica
da vid a pública seria im pensável e im possível. È por isso que,
em seus temas diretrizes mais Significativos, o direito político
m oderno merece ser defendido contra qualquer rejeição, tanto
antem odema como pós-modema.

M aquiavel, a quem é sempre preciso retom ar para encon­


trar âs plagas da Modernidade, cinzelou um m odelo da condição
hum ana sobre cujos eixos pôde elevar-se o ed ifício do direito
p o lítico . A im agem do hom em, separada do âm bito cosm ológi-
co em que até então estava inserida, depois liberta dos vínculos
teológicos que a m antinham em subordinação, explica por si só
494 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

a indispensável organização das Cidades. O alcance de tal pos­


tulação, que põe em evidência a autarquia do hom em , extrava­
sa amplam ente a obra de M áquiavel: de Hobbes a K ant ou a
Hegel, e até de Husserl a R . A rón Ou a R . N ozick, ela abre a v ia
do hum anismo ju ríd ic o que é o denom inador com um de todas
as modernas doutrinas do direito. S ignifica que a ordem política
dos Estados modernos, principados ou repúblicas, não poderia
ser à im agem da ordem natural e que, m esm o que a vontade
onipotente de Deus regesse o grande Todò cósm ico, não é no
horizonte teológico que se deve escrever doravante o direito
político. Sendó toda transcendência da Natureza ou de Deus
assim reputada in ú til para a ordem ju ríd ic a das Cidades, esta só
extrairá seu princípio ativo da própria condição dós homens.
Portanto, a antropologia é a base sobre a qual - apesar das hesi­
tações que ainda m anifesta o pensamento de transição de Jean
B o d in - se ed ifica e funciona o dispositivo m oderno do direito
político . '
O pensamento sutil de M aquiavel indica um outro vetor
que orientará a gênese do direito p o lítico moderno e deixará
despontar seu espírito: como o hom em é m au - ou, pelo menos,
é preciso considerá-lo tal em sua com plexidade psicológica - ,
ele tem , como dirá Kant, “ necessidade de um Senhor” . A ne­
cessidade de um a ordem pública coerciva é, portanto, um a das
prim eiras exigências que se im põem ao direito político: sua fun­
ção prim ordial é barrar o cam inho, com a força norm ativa dé
seus mandamentos, à licença e à corrupção, à hybris belicosa e,
igualm ente, à indiferença é ao descaso qüe são os caminhos das
agitações e dá anarquia.
Sobre esse fundo antropológico, a prevalência das potên­
cias da razão não tardou a se afirm ar. A regulação do m undo
político só podia se efetuar segundo um m odelo de comedimen­
to e de equilíbrio elaborado sob o signo da dom inação racio­
nal. G lo rific a r a ordem e louvar os m éritos da racionalidade
qüe não demoraram em mostrar-se os m aiores valores dos dois
“ grandes séculoS” da m odernidade ocidental fo i a preocupação
dom inante do direito político até a época da Revolução France­
sa. Com o as construções da doutrina ju ríd ic a faziam repercutir
CONCLUSÃO 495

no conjunto dos preceitos do direito o sim bolism o do m ito so­


lar ao qual correspondia a teoria da soberania, una e in d ivisíve l,
legisladora onipotente e absoluta (soluta legibus), a potência
soberana do Estado moderno era chamada, por sua onicom pe-
tência, a transcender as circunstâncias e a operar um a espécie
de racionalização do contingente. O vasto m ovim ento de nor-
m atividade, qúe dispôs um a rede de regras e de leis sobre o
m undo dos acontecimentos e da história, tendeu a fazer preva­
lecer a unidade e a homogeneidade do in te lig ív e l sobre a m u l­
tiplicidade e a heterogeneidade do sensível. O legiscentrism o
que era acompanhado pelo caráter obrigatório da ordem nor­
m ativa tendeu não apenas à regulação da vid a pública mas tam ­
bém , já no século X V III, fo i o sinal im ponente de um im pera­
tivo absoluto: na vid a pública, o direito não se deduz da fo rça.
Compreendeu-se não só que “ a razão do m ais forte” é diam e­
tralm ente oposta aos reclamos do direito mas tam bém que um
uso desregrado da razão, recaindo na violência, era contraditó­
rio em si mesmo. Com o devia mostrar Rousseau, a força sozi­
nha, que nada tem de legítim o, não pode produzir direito algum .
É um princípio filo só fic o eminente do direito p o lítico moderno
pôr em evidência a fraqueza da força pois “ o m ais forte nunca
é bastante forte para ser sempre o senhor se não transform ar sua
força em direito e a obediência em dever” 1.
N o m undo m oderno, o direito p o lítico , aquém das form as
regulamentadoras e adm inistrativas dos poderes instituídos,
tem, em sua fig ura fundam ental, um a vocação de princípio que
é anteconstitucional: no espaço da vid a pública, sua função é
organizar a força.

No. caso, o perigo seria, seguramente, hipostasiar as regras


do direito político no Estado m oderno. Por isso, é im portante
não esquecer que nele elas form am um díptico còm a obriga­
ção cívica.
A conjunção do direito p o lític o com deveres cívicos é es­
sencial para a manutenção da comunidade social estatal. Longe

1. Rousseau, X e contrai social, Eléiade, t I II , p. 354.


496 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de im por uma obediência passiva e cega aos mandamentos do


Poder, ela sig nifica que a ordem pública depende da vontade de
coexistência dos seres responsáveis que são os cidadãos. Se,
por essa razão, im plica a lealdade de cada um no Estado do
contrato, é não obstante a superação do individualism o egoísta.
Com o a virtude cívica - no sentido em que a entendia M ontes-
quieu - faz com que cada um seja para si mesmo e para os ou­
tros o autor e o fiad or do direito, firm a-se como a condição de
um Estado de liberdade. O princípio-chave do liberalism o m o­
derno é que o amor das leis e o da liberdade vão de par. “A
liberdade só realiza sua existência nos vínculos da obrigação e
pela universalidade da lei.”2 O direito político moderno im põe
a todos, pela coerção legal que cria obstáculo a tudo o que cria
obstáculo à liberdade - isto é, que im pede a anarquia a obri­
gação racional a que K ant chamava um “ dever de direito” .
Por conseguinte, o direito político m oderno não é de parte
a parte, como se repetiu m uitas vezes, a expressão de um sim ­
ples individualism o cuja substância residiria, num igualitaris-
m o radical, nos “ direitos naturais” de cada um . Se o in dividu a­
lism o constitui um a premissa inevitável dele, ele o atravessa,
pois, pela obrigação que se prende às regras do dispositivo ju r í­
dico do Estado, ele reconhece, ao contrário, o caráter social
fundam ental do hom em e, pela ordem que instam-a, regula a
coexistência das liberdades. Curvando o ind ivíduo às necessi­
dades da comunidade política, a obrigação cívica nada tem de
uma coerção imposta; procede de uma vontade reflexiva e racio­
n al de m aneira que a ligação sintética entre o direito e a obriga­
ção é aquela, essencial ao hum anism o moderno, entre a ordem
e a liberdade. Portanto, como a ordem pública, enquanto prin ­
cípio de coexistência das liberdades, exige, ao mesmo tempo
que a autonom ia das vontades, sua autolim itação recíproca, a
ligação sintética entre o direito e a obrigação é um desafio tanto
para o anarquismo libertário quanto para a opressão totalitária
que ameaçam pesar sobre a experiência de um mundo dilacerado.

2. Raym ond P olin, L ’obligation politique , P U F , 1971, p. 26.


CONCLUSÃO 497

M as é im portante compreender que esse desafio, longe de


se originar num a doxocracia que inevitavelm ente reflete a con­
tingência da opinião pública, só encontra sentido e força nas
exigências - e nos lim ites - da razão. O “republicanism o” que
K ant concebia tom a perfeitamente in te lig íve l o que constitui a
m ais alta tem ática do direito p o lítico m oderno.
N o Estado do direito edificado pelo pensamento moder­
no, a Constituição republicana não tem apenas a fenom enali-
dade do texto fundam ental e prim eiro do aparelho ju ríd ic o e
dos poderes públicos. E la ser o resultado de um trabalho cons­
trutivo pelo qual as categorias, os conceitos e os procedim en­
tos do direito político se precisam e se articulam não está em
questão: é claro que o aparelho do direito p o lítico do Estado
m oderno edificou-se sobre bases racionais que faziam contra­
peso à espontaneidade. M as, além da realidade objetiva das
cláusulas que ela enuncia hic et nunc de m aneira diferenciada,
ela é um a Id éia - ou um Ideal racional puro - que, como toda
Idéia da razão, serve de princípio não constitutivo, mas regula­
dor. A “ República perfeita” na qual o direito p o lítico realizaria
plenamente suas virtualidades de ordem e de liberdade não exis­
te e jam ais existirá: sua Idéia é transfenomenal. M as ela nada
tem de sonho ou de ilusão. Para todos os jurisladores, e qual­
quer que seja, na hierarquia das normas jurídicas, o n ív e l das
regras que eles elaboram, ela serve de referência e de guia: ilu ­
m ina-os como a lu z de um farol ilu m in a os m arinheiros. O
caminho que baliza sua clareza pura e numênica é o da “retidão”
ideal da qual o direito político, para ser o que deve ser, não deve
afastar-se. É isso que Rousseau queria dizer quando declarava
que a vontade geral “não pode errar” - o que significa que,
para ele, a “ legalidade” é o princípio regulador da ordem ju r í­
dica. E isso mesmo que Kant, seguramente m ais “m oderno” do
que Rousseau, repete ao fazer da Constituição perfeita “ a coisa
em si mesma” 3. O que quer que se possa ter escrito seguindo a
m oda anti-racionalista contemporânea, nisso não há dogm a­
tism o. A Idéia republicana tem a idealidade pura do princípio

3. Kant, Doctrine du droit, Apêndice, Plêiade, t. III, p. 649 ;A K , V I, 371.


498 OS PR IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

de universalização que é, como d iz K . O. A p el4, a “ fundação


ú ltim a ” é transcendental da coexistência pacífica dos hom ens e
dos povos. A elevação dessa Idéia explica, em todo caso, por
que contendas e conflitos só poderiam encontrar solução le g í­
tim a nas vias do direito: a violência e m esmo a guerra são con­
denadas expressamenté do alto do “tribunal supremo do poder
legislativo” 5. E não é a m enor iro n ia do republicanism o fundar,
a m il léguas do individualism o abstrato pelo quàl tão freqüen-
temente se culpou o direito p o lítico moderno, a possibilidade,
na intefsubjetividade, da intercompreensãò e da comunicação
entre os homens. A ssim como O tfried H ö ffe sublinhou còm
m uita pertinência em diversas ocasiões, a comunicação, longe
de constituir o contraparadigma do individualism o, gerahnênte
considerado â pedra angular das modernas teorias do direito,
está incluída na exigência de “publicidade” do direito “p ú b li­
co” e, de m aneira ainda m ais forte, no princípio käntiano de
universalização que é sua viga mestra.

3 . 0 espírito do direito p o lítico moderno deve portanto ser


buscado na relação entre ò antropológico e o transcendental.
Encontra sua expressão no im perativo que requer categorica­
m ente, tanto na escala do Estado com o no plano do universal,
a com patibilidade das liberdades.
A ssim compreendido, o direito p o lítico , até em sua am p li­
tude internacional, é “ a estrutura fundam ental e a form a u n i­
versal da. coexistência hum ana” 6. É nesse sentido que, no tribu­
n a l da crítica, convém entender não a “ subjetividade” que esta­
ria no princípio do direito m oderno - aí está o erro: os direitos
do hom em que se dizem fundam entais não são fundadores - ,
mas sim sua objetividade ou, m ais exatamente, sua validade
objetiva: o direito político moderno é a obra positiva para a qual

4. K . O. A pel, Penser avec Habermas contre Habermas (1989), trad,


fr., L ’Éclat, 1990.
5. K ant, Essai sur la p aix perpétuelle, Pléiade, t. IH , pp. 347-8; AK,
V III, 356.
6. O. H öffe, Les principes du droit, L e C erf, p. 34.
CONCLUSÃO 499

a razão crítica, nos lim ites que reconhece a si própria, ultrapas­


sa as determinações da natureza das coisas e da natureza do
hom em e se esforça por responder, num a tarefa in fin d a, às e xi­
gências ideais que traz em si.
O problem a filo s ó fic o do direito p o lítico moderno é assim
o de sua fundam entabilidade universal transcendental. Com o o
universalism o dos princípios do direito se opõe ao relativism o
histórico-cultural, só se pode ju lg a r a validade de suas regras à
lu z da idealidade pura desses princípios. D isso resulta que a
evolução legislativa e jurisprudencial que é necessária para se
adaptar aos costumes não deve sèr Obra dos “ vitoriosos do m o­
m ento” , quê está sempre exposta a um desvio em pírico-prag­
m ático - o que sig n ifica que a história não poderia ser, com o
risco de provocar um incontrolável processo contínuo, a instân­
cia dom inante do direito político. Portanto, quando a reflexão
crítica sè empenha em compreender o estatuto filo s ó fic o dos
“princípios” sobre os quais o direito p o lítico ed ifica a ordem
pública do espaço público, encontra nêles - apesar da evolução
e às vezes das revoluções de que suas categorias e seus concei­
tos são o objeto ou o lugar - esse algo que, para o hom em , é in ­
superável: a exigência de um a regulação cuja chave é a autono­
m ia. Essa é a condição sine qua non da justiça - que, desdê os
prim órdios do tempo, o direito procura instaurar—e da liberdade
- que a M odernidade reconheceu como a m ais alta exigência
do homem. M esm o que justiça e liberdade sigam, no mundo m o­
derno, caminhos sinuosos, a dupla esperança contida no que
Rousseau considerava “ os prodígios da le i” encontra suas raízes,
m ais além da rede das regras do aparelho ju ríd ic o , nos p rin cí­
pios racionais práticos, puros e a p rio ri, que obrigam incondi­
cionalm ente os homens em sua humanidade.
Apesar da dúvida radical que hoje conduz os “pós-m oder-
nos” aos ataques da “ desconstrução” anti-hum anista e antifor-
m alista ju ríd ic a desfechados pelos céticos ou pragmáticos con­
tra o direito p o lítico a pretexto de ultrapassar os paradigmas da
M odernidade, um a reflexão filo s ó fic a sobre os fundam entos
ensina que o hum anism o ju ríd ic o dos modernos sempre vai
além da fenom enalidade das fronteiras do espaço e do tempo
500 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

em virtude das aspirações ideais que ele expõe no horizonte da


crítica transcendental. N ão se deveria deduzir disso que os prin ­
cípios filo só fic o s do direito p o lítico provêm de um fix is m o
essencialista, evidentemente estranho ao programa autofunda-
cional da razão prática num a filo s o fia transcendental. M as é
preciso concluir daí que a reflexão sobre os princípios filo s ó fi­
cos do direito p o lítico tem necessidade de recorrer à energia
total e ao mais profundo do pensamento. A razão não é, como se
gosta tanto de dizer em nosso tempo, a in im iga do pensamen­
to. K ant - que se sabe pouco inclinado a usar metáforas - dizia
contudo,, num a im agem forte: “U m a doutrina do direito sim ­
plesmente em pírica (com o a cabeça de pau na fábula de Fedro)
é um a cabeça que talvez seja bela, só que é pena que não tenha
cérebro.” 7 Toda legislação positiva repousa em princípios im u ­
táveis e categóricos cuja autoridade suprema tem a elevação e
a universalidade das exigências práticas expressas pelo im pe­
rativo categórico da razão. Se, portanto, a evolução dos concei­
tos do direito p o lítico é indispensável ao longo dos desenvolvi­
mentos da história e da cultura, a idealidade pura na qual se en­
raízam os princípios da m odernidade ju ríd ic a - autonom ia do
direito, ordem pública, soberania, autoridade, legalidade, le g iti­
m idade, eq uilíbrio e moderação dos poderes, igualdade e lib er­
dade - constitui, no plano do universal, o núcleo inabalável de
sua validade norm ativa.

7. Kant, D octrine du d roit, p. 478; ÁK, V I, 230.


Referências bibliográficas

Egta bibliografia não tem a pretensão de ser exaustiva. Sua fina­


lidade é fornecer ao leitor pontos de referência e um guia de leitura. É
por isso que, no que diz respeito às obras escritas originalmente noutro
idioma, só indicamos aqui, por preocupação com a utilidade, e cada
vez que isso seja possível, as traduções feitas em língua francesa.

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1989: N? X V I: La Révolution française entre Lumières et ro­
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Le Débat.
La philosophie qui vient, novembro-dezembro de 1992, n? 72.
Dictionnaire de philosophie politique (S. Riais e Ph. Raymaud), PUF,
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mel), T. ed., PUF, 1989.
Nation et république: les éléments d ’un débat, Colóquio de 6 e 7 de
abril de 1994, PU d’Aix-en-Provence, 1995.
Droits-.
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1991: N? 14: L ’Europe et le droit;
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Índice onomástico

Accursio, 125. Atias, Ch., 48 n.


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457. Ayrault, R., 369 n., 506.
Adomo, Th., 34 n., 434 n., 505,
508. Bacon, F., 74, 85-6.
Agostinho (Santo), 8,56, 71,160, Baechler, J., 506.
276. Bakunin, 430.
Albrecht, A., 310 n. Baldo, F., 117, 122, 132,402 n.
Alciat, A., 23 n., 125, 401. Barbeyrac, J., 34,94, 97 n., 101,
Alembert (d’), 212, 215. 152 n., 181.
A lferi, P., 5 n. Barclay, W ., 151.
Alquié, F., 153. Bamaud, N., 173 n.
Althusius, J., 127 n.,172, 174-5. Barrés, M ., 374 n., 422.
Andler, Ch., 414 n. Barret-Kriegel, B., 413 n.. 506.
Aoun, M ., 433 n. Barthélémy, J., 309, 350 n.
Apel, K. O., 197, 484, 498, 501, Bartolo, 117, 122, 125.
505. Bastid, P., 102 n., 506.
Ardant, Ph., 350 n. Bastit, M ., 6 n., 506.
Arendt, H., 73 n., 196 n., 208, Battista, A. M ., 20 n.
274, 345, 364, 371 n., 375 n., Baudouin, J., 398 n.
397,424, 505-6. Baudrillart, H., 21 n., 506.
Aristóteles, 7,9, 15, 30, 55-6,60, Baudry, L., 5 n.
64, 71, 76, 79, 83, 85, 102-3, Bauer, B., 389, 394 n.
115, 123-4, 128, 150-1, 157, Bauer, O., 501.
208,211,234-5, 266 n., 471, Bayle, P., 15 n., 236.
478. Bayley, C., 5 n.
Aron, R., 196, 333, 345, 450-1, Beaud, O., 9 n., 21 n., 23 n., 107,
494, 506. 110 n., 506.
Arquillière, J., 5 n. Beaumanoir (Senhor de), 116,
Atger, F., 164 n. 165.
518 OS P R IN C ÍPIO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Beaune, C.. 401 n. Boutmy, R., 163, 329.


Beauté, J., 176 n. Bouveresse, J., 300, 506.
Belarmino (cardeal), 167, 174 n. Bovelles, Ch. de, 144 n.
Belieferest, J. de, 174 n. Bracton, H. de, 131, 133.
Belloy, P. de, 174 n. Brandès, G., 375-7.
Bénéton, Ph., 234 n., 250 n., 506. Bruaire, C., 507.
Benoist, Ch., 14 n. Brun, J., 345 n.
Bentham, J., 99, 368, 378, 381, Brunei, P., 507.
501. Bruno, G., 83 n.
Bergson, H., 80. Brutus, Julius, 173 n.
Berlin, I., 369 n., 506. Buchanan, G., 174 n.
Bernhardt, J., 77 n. Budé, G., 403.
Beseler, G., 382, 385. Burdeau, G., 44-5 n., 93 n., 198 n.,
Bèze, Th. de, 129 n., 173 n. 202, 507.
Birnbaum, P., 506. Burg, P., 507.
Blackstone, G., 99. Burke, Ed., I l l , 189, 329, 359,
Blanc de Saint-Bonnet, 170, 285. 371-6, 378, 381, 429, 441,
Bloch, E., 506. 501, 509.
Bloom, A., 479 n. Burlamaqui, J.-J., 100,169, 180-1,
Blum, L., 342-3. 331 n., 447,501.
Bobbio, N ., 272, 288, 310 n., Butler, M ., 371 n.
311 n.
Böckenförde, E. W ., 169 n. Caio, 58 n., 89 n.
Bodin, J., 1, 9, 13, 21-6, 31, 43, Calvino, J., 151.
49, 71, 74, 76, 115, 117 n., Cambacérès, J.-J. de, 381.
118-59, 166, 171-4, 201,208, Camus, A., 443-4,446, 507.
211, 214, 215 n., 236, 247, Capitant, R., 264 n., 350 n.
255,264,284,323,358,403-4, Carbonnier, J., 3 n.
410,494, 501. Cardin, Le Bret, 137, 150, 161,
Bolingbroke, H., 368. 166, 171,229.
Bonald, L. de, 170, 359, 501. Carlos Magno, 8, 366.
Borelli, G., 28 n. Carlos II, 30.
Bossuet, J.-B., 34, 160, 167 n., Carlos V , 21,401.
171-2, 199,276, 366. Carlos V I, 12.
Boucher, J., 174. Carlos V II, 12.
Boudon, R., 506. Carnot, L., 408.
Boulainvilliers, H. de, 365-6,501. Carré de Malberg, R., 75, 105,
Bourdieu, P., 400 n. 106 n., 176 n., 194, 252 n.,
Bouretz, P., 506. 264,308,309 n., 315-8,321 n.,
Bourgeois, B., 34-5 n., 394 n., 350 n., 351.
417 n., 506. Carrive, P., 176 n.
IN D IC E O NOM ÂSTICO 519

Cassirer, E., 37 n., 69-70, 147, Crucé, É. de, 453


152, 201, 302, 416 n., 422 n., Cujas, J., 23 n., 118.
507. Cumberland, R., 34, 88, 331 n.
Castel, Ch. I. (abade de Saint- Cumming, R., 73 n.
Pierre), 241, 449, 453, 459, Cyrano de Bergerac, 175 n.
501,504.
Castignone, S., 295 n. Dagoberte, 404.
Chamberlain, J., 423. Dante Alighieri, 254 n., 277.
Chantebout, B., 350 n. David, M ., 9 n., 507.
Chartier, E. (Alain), 76, 507. De Gaulle, Ch., 299.
Chasseneuz, B. de, 20 n. Deleuze, G., 42,431.
Chateaubriand, A . de, 218, 285, Descartes, R., 27, 32,72, 82, 84,
385-7,411 n., 429, 502. 153, 155, 201, 212, 323 n.,
Châtelet, F., 162 n., 377 n., 511. 331,340,432,469.
Chauviré, R., 22 n., 120 n. Destutt de Tracy, A. L. C., 29 n.,
Chevallier, J., 310 n. 71 n., 250.
Cicero, 57-9, 64, 90, 97 n., 128, De Thou, J. A., 403.
139, 274, 321. Derrida, J., 434 n.
Clastres, P., 485 n. Diaz, E., 299.
Clausewitz, C. von, 71, 506. Diderot, D., 16 n., 92 n., 95-6 n.,
Clavreul, C., 507. 97-8, 163, 177,215-7, 236.
Clovis, 366, 400, 404. Dilthey, W ., 44 n.
Coke, E d , 166 n , 176. Dion Crisóstomo, 177.
Colas, D., 310 n. Dionisio de Halicamasso, 124,
Colliot-Thélène, C., 396 n., 507. 151.
Colombo, Ch., 14, 30, 59. Domat, J., 97 n., 244.
Condorcet, A .-N . de, 378 n., D ’Hondt, J., 35 n., 507.
408. Donelly, J., 330 n.
Connan, F., 118. Dubos, abade J.-B., 365-6, 502.
Conring, H., 369,403 n. Dubouchet, P., 35 n.
Constant, B ., 81, 94, 105 n., Dufour, A., 379 n., 380 n., 385 n.,
188-90, 250, 281, 308, 324- 507.
7, 349 n., 411 n., 502, 508. Duguit, L., 309, 318, 350 n.
Copémico, N., 156. Du Haillan, B., 174 n.
Coquille, G., 134 n., 164 n., 174 n. Duhamel, A., 507.
Coras, J. de, 118. Dumont, L., 507.
Cornette, J., 62 n., 507. Du Moulin, Ch., 21 n., 23 n., 403.
Courtine, J.-F., 160 n. Duns Scot, 5.
Cromwell, O., 70, 177 n., 278, Dupeyroux, H., 265 n.
299 Du Plessis-Momay, Ph., 173 n.
Cropsey, J., 61 n. Duranton, H., 403 n.
520 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Duso, G., 183. Folz, R., 401 n.


Duverger, M., 44 n., 507. Forster, G., 375 n.
Duvemet, 217. Fortescue, J., 176.
Dworkin, R., 49, 507. Foucault, M., 42,290,431,434 n.,
435,436 n., 502.
Eisenmann, Ch., 112 n., 290-1, Fourastié, J., 445.
302 n., 507. Fowler, D. H., 145 n.
Elkan, A., 17 n. Francisco 1,21,70.
Ellul, J., 44 n., 507. Franklin, J. H., 22 n., 128 n.,
Enegren, A., 507. 131 n., 137,140 n.
Engels, Fr., 395 n. Frederico II da Prussia, 217,342.
Erasmo, D., 20. Frederico Guilherme IV , 38.
Etchegoyen, A., 507. Freud, S., 502.
Euclides, 77 n. Freund, J., 507.
Everard, R., 177. Friedrich, G , 252 n., 273 n., 507.
Ewald, F., 290 n., 436 n., 507. Furet, F., 507-9.

Farias, V., 433 n. Gadamer, H. G., 375 n.


Faure, Ed., 443-4,446. Galilei, G., 30, 78 n., 152,156.
Favoreu, L., 350 n. Galbraith, J. K., 508.
Felice, F. B., 449 n. Ganzin, M., 371 n.
Fénelon, F. (de Salignac de La Gardies, J.-L., 508.
Mothe), 34,367. Gassendi, P., 78 n.
Fenet, 381. Gauchet, M., 508.
Ferguson, A., 507. Gaudemet, J., 11 n.
Fermat, P. de, 78 n. Gauthier, D. P., 28 n.
Ferrault, J., 20 n., 117,173 n. Gelásio, 8.
Ferrero, G., 274,284,286-8,502. Gentili, A., 15, 448 n.
Feny, J.-M., 198 n., 482 n., 484 n., Gentillet, I., 20,70 n.
507. Gentz, Fr., 111, 285, 371, 375,
Feuerbach, L., 389, 393, 395. 378-9,381,338,502.
Feyerabend, P. K., 507. Gierke, O. von, 9 n., 78, 195 n.,
Fichte, J.-G., 14 n , 17,24,37,69, 258.
79,185, 342, 387, 410-4,420, Gilmore, M. P., 122 n.
423,502,509. Gilson, E., 5 n.
Filangieri, G., 99. Glaziou, Y., 96 n.
Filipe, o Belo, 12. Gneist, R. von, 314.
Filmer, R., 178. Gobineau, A. de, 422-4, 502.
Finkielkraut, A., 436 n. Godechot, J., 373 n., 377 n.
Finley, M., 507. Godwin, W., 371.
Fleischmann, E., 34 n., 38 n. Goodwin, Th., 177. '
ÍN D IC E O NOM ÁSTICO 521

Görres, J. von, 375 n., 420. 342, 354-5, 360, 363, 381,
Goulart, S., 173 n. 383-5, 388-93, 398, 410-1,
Gousté, Cl., 173 n. 415-8, 423, 430 n., 433, 441,
Grassaille, Ch. de, 20 n., 117, 450, 451 n., 465 n., 467 n.,
173 n., 402. 470,494,502,507-10.
Gregório VU, 8. Heidegger, M ., 40 n., 42, 298,
Gregório Magno, 8, 10. 360, 364, 428, 430-5, 468,
Grimm, F. M., 383. 492.503.
Grotius, H., 7, 26-7, 72, 74, 76, Helvetius, Cl. A., 97,216 n.
87, 97 n., 100-1, 150-3, 158, Henrique II, 21 n., 119.
161, 166 n., 167, 171, 180-1, Henrique IV , 4.
215, 331 n., 349, 368, 447-8, Henrique IV da Alemanha, 8.
450,458, 502. Henry, M ., 389 n., 508.
Guastini, R., 259 n. Herder, J. G. von, 365, 367,
Gùeroult, M., 414 n. 369-70,373, 374-5 n., 376-7,
Guilherme II, 422. 383,403 n., 412,503.
Guillherme de Orange, 299 H ill, Ch., 177 n., 278 n.
Guiomar, J.-Y., 405 n. Hitler, A., 345,431 n.
Guizot, F., 92 n. Hobbes, Th., 1,7,13,27-37, 59,
Gurvitch, G., 406 n. 62,71-101, 107, 117 n., 118,
Gusdorf, G., 370 n. 136, 153-9, 161, 165-9, 171,
199, 208, 264, 267, 278-9,
Haarscher, G., 389 n., 508. 285, 314, 323, 328, 331, 340,
Häberle, P., 508. 368, 440, 467 n., 469, 472,
Habermas, J., 49, 52,197-8, 292, 481,494,503,509.
294-9, 346 n., 354 n., 406, Höffe, O., 498, 508.
433 n., 436 n., 466, 480-7, Hofmann, H., 292 n.
502. Holbach, P. H. (barão d’), 92 n.
Haggenmacher, P., 26-7 n., 87 n., Holmes, S., 508.
101,152 n. Hooker, R., 176 n.
Hamon, L., 44 n. Horkheimer, M ., 434 n., 508.
Hare, R. M., 508. Homius, J. Fr., 160.
Harrington, J., 368. Hotman, F., 126 n., 129 n., 132 n.,
Hart, H., 271,508. 173 n., 174,403-4.
Hauriou, M ., 105, 195 n., 196, Howard, D., 271 n.
261,309,318,350 n., 502. Hugo, G., 384-5,503.
Harvey, W „ 78 n. Humboldt, G. de, 191, 264, 378,
Hayek, Fr. von, 324,436 n., 508. 420.503.
Hegel, 17, 24, 34-40, 52 n., 76, Hume, D., 176 n., 284-6, 333,
186, 190, 208, 218-9, 265, 365, 367-70, 373, 376, 381,
268, 318, 321, 327-8, 337, 441,503,508.
522 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Husserl, Ed., 298, 364, 432, Klossovski, P., 40 n.


494, 503. Kojève, A., 470,472,508.
Kroner, R., 508.
Imola, 122.
Inocêncio HI, 8,131 n. Laberge, P., 330 n.
Labica, G., 509.
Jacobi, F. H., 508. La Boétie, E. de, 20, 163, 172-3,
Jaime I, 161,167. 186,199,277-8,503.
Jaucourt (cavaleiro de), 215-6, Laboulaye, Éd., 105 n., 189-91,
232. 207, 264, 281, 308, 327,
Jaurès, J., 342-3. 350 n., 385 n., 503.
Joana d’Arc, 13. Lagarde, G. de, 6 n., 10 n.
João de Paris, 117. Languet, H., 174 n.
João de Salisbury, 277. Lapierre, J. W., 509.
João sem Terra, 12,103, 330. Largeault, J., 6 n.
Jefferson, Th., 327, 503. La Roche-Flavin, 366.
Jellinek, G., 176, 194, 252, 258, Lauth, R., 413 n.
305,318,329,508. La Taysonnière, 144 n.
Jhering, R. von, 11 n., 195,317-8. Lavau, G., 44 n.
Joly, Cl., 179 n. Lefort, Cl., 14 n., 346 n., 509.
Jonas d’Orléans, 276 n. Leibniz, G. W., 101,331,380 n.,
Jouvenel, B. de, 53,56 n., 508. 448,503,510.
Julliard, J., 187 n. Lemaire, A., 276 n., 402 n.
Jurieu, P., 172,181. Lênin, V. I. Oulianov, 342,395 n.
Justiniano, 134,404. Lenoble, J., 509.
Lenoble, R., 78 n.
Kant, É., 52,76,79-80, 88,94,98, LeâoX., 414 n.
100, 110-3, 171, 185-6, 199- Lerminier E., 379 n., 385 n., 509.
200, 205 n., 213, 214 n., 218, Leroy-Beaulieu, P., 509.
231,249,251,263,265, 269, Lescot, Ph., 401.
303, 313-4, 331, 340, 351 n., Lessay, F., 278 n.
354, 375 n., 379, 399 n., 440, Levinas, E., 434 n.
449-50, 452, 454-60, 463, Linguet, S. N. H., 97 n., 99, 504.
467 n., 480, 492, 494, 496-7, Lipovetsky, G., 81 n., 435 n., 509.
498 n., 500,503,507-10. L ’Hospital, M . de, 119, 174 n.,
KantorowiCz, E., 9 n., 116 n., 403.
276 n., 401 n. Lilbume, J., 177.
Kelley, D. R., 404. Locke, J., 34, 79, 88, 99, 104,
Kelsen, H., 57, 75, 106, 112-3, 167 n., 169, 178, 188, 191,
208, 251-73, 282-3, 292, 200,208,311,314, 320, 323-
299, 302-5, 350 n., 396, 503. 4, 326-7, 331,333, 342, 357,
Kervégan, J. F., 35 n., 508. 368,429,469,504.
ÍN D IC E O NOM ÁSTICO 523

Löwith, K., 34 n., 509. Martens, G. Fr. de, 449,456 n.


Loyseau, Ch., 121 n., 148-9, Marx, K., 250, 329, 363,389-96,
150 n., 164 n., 171,504. 398-9,506,508.
Louis d’Orléans, 174. Mattéi, J.-F., 40 n., 433 n.
Luís da Baviera, 6. Maury (Deão), 264 n.
Luís X I, 12. Mazzini, G., 411 n.
Luís X II, 21 n. Mendès-France, P., 509.
Luís X IV , 34 n., 162 n., 178, Meinecke, Fr., 285,467.
217,241,323 n., 345,476. Mercier-Josa, S., 389 n.
L u isX V m , 289,299. Merle, M ., 45 n.
Lukács, G., 504. Merleau-Ponty, M ., 15 n., 69 n.,
Lutaud, O., 104 n. 71, 76, 196 n., 342-3, 364,
Lutero, M ., 70,423. 396-8,441,446,504.
Lyotard, J.-F., 42,509. Mersenne, M., 78 n., 156.
Mesnard, P., 121 n., 122-3.
Malby (G. Bonnot, abade de), 99, Metternich, Cl. W., 379.
200,366,504. Michel, P. H., 145 n.
Maquiavel, N., 13-20, 22, 24-6, Michelet, J., 411 n.
30-1,39,49, 57,59-75,77,85- Michoud, L., 318.
6, 95, 114, 117 n., 129, 207, Milton, J., 104,177,311,314.
217,229,236-7,243,328,342, Mirabeau (conde de), 99, 223 n.,
404, 410, 412, 467, 469, 472, 331 n., 409, 504. '
481, 493-4, 504, 509. Mohl, R. von, 314.
Mac Intosch, 375 n. Monhaupt, H., 313, 314 n.
Mac Intyre, A., 487 n., 509. Montaigne, J. de, 402.
Macpherson, C. B., 371 n. Montaigne, M . de, 16.
Mairet, G., 162 n. Montesquieu (barão de), 82, 92,
Maistre, J. de, 170,285,329, 359, 97 n., 100, 104-5, 111, 184,
385 n., 387,411 n., 429, 504. 188, 191, 196, 199-200, 208-
Maitland, F. W „ 402 n. 9, 218, 225-6, 237-46, 250,
Malebranche, N. de, 167 n. 264, 284, 307-8, 312, 323-5,
Malherbe, M., 28 n. 327, 334, 357, 366, 372, 383,
Mallet du Pan, J., 379. 410-1, 415 n., 453, 459-60,
Malraux, A., 492. 463,479, 496, 504.
Manent, P., 13-4 n., 467 n., 509. More, Th., 20, 70, 126, 176,201,
Manzoni, A., 71. 504.
Marcel, E., 12 Moreau, J.-N., 381.
Mariana, J. de, 171, 174 n. Moreau-Reibel, J., 22 n.
Maritain, J., 509. Moser, J.-J., 449,456 n.
Marsilio de Pádua, 5-6, 8-10, 16, Möser, J., 369, 375 n., 385 n.
71, 162 n., 170,175, 277. Mounier, J.-J., 331 n.
524 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

Mounin, G., 14 n., 16 n. Pierre du Bois, 117.


Mourgeon, J., 377 n. Pitkin, H., 92 n.
Mugnet-Pollet, L., 509. Placidus (J. W. Petersen), 313.
Mussolini, B., 70. Plaisians, Guillaume de, 116.
Platão, 15, 60, 71,102,128,145-
Napoleão 1,37,70,358,387,430. 6,201,208,211,213 a , 234-5,
Naudé, G., 236. 274 n., 275, 322, 468, 473,
Nicole, P., 160. 478.
Nicolet, Cl., 509. Pocock, J. G. A., 14 n., 15.
Nietzsche, Fr., 40-2, 298, 364, Poliakov, L., 424 n.
388,414 n„ 417,423 n., 425- Polin, R., 28 n., 236 n., 278 n.,
32, 434 n., 435, 465, 467-8, 334 n., 345 n., 367 n., 442 n.,
478 n., 480, 487, 492, 504, 496 n., 509, 511.
509. Polibio, 18,124.
Novalis, Fr., 414,419.
Popper, K., 44 n., 364, 397-8,
Nozick R., 494,504,509.
467, 504,509.
Portalis, J. E. M ., 99, 381, 504.
Oakeshott, M., 252 n.
Poulat, D., 509.
Occam, G. de, 5-7,10-1, 79.
Prélot, M ., 44 n., 53.
Odet de la Noue, 173 n.
Price, Dr., 372.
Ost, F., 509.
Proudhon, P.-J., 329,430.
Overton, R., 177.
Proust, J., 96 n.
Puchta, G. F., 382,385.
Paine, W „ 372, 375, 504.
Panaccio, Cl., 5 n. Pufendorf, S., 34, 79, 88, 94 n.,
Pamomita, 122. 101, 127 a , 142, 181, 200,
Papiniano, 58 n., 125. 331 n., 368,448,457-8, 504.
Pareto V., 250. Pitágoras, 145.
Parsons, T., 295 n., 298.
Pascal, B., 165. Quaritsch, H., 9 n., 22 n.
Pasquino, P., 369 n., 377 n. Quillet, J., 6 n., 8 n.
Passerin d’Entrèves, A., 6 n.,
16 n., 18, 63 n., 278 n., 291, Rawls, J., 504, 509.
509. Raynaud, Ph., 371 n., 396 n.,
Paulo (São), 139,160,276. 504,509,511.
Paulson, S., 87 ri., 396 n. Reboul, O., 40 n.
Péguy, Ch., 334. Rebuffi, P., 402 n.
Pelletier du Mans, 144 n. Redor, M.-J., 310 n.
Penn, W., 453. Rehberg, A. W., 111, 189, 285,
Péricles, 102. 371,375-8,429,505.
Philonenko, A., 40 n., 231 n., Rémond, R., 408 n .:
406 n., 414 n., 509. Renan, E., 411 n.
ín d ic e o n o m á s t ic o 525

Renaut, A., 78 n., 412-3 n., 414, Saint-Simon (duque de), 241,367.
436 n., 470 n., 510. Saleilles, R., 195 N.
Renner, K., 253. Sandel, M ., 510.
Renouvier, Ch., 505. Sartre, J.-P., 397.
Rials, S., 312 n., 502, 510-1. Savaron, J., 164 n.
Ricardo n , 12. Savigny, K. von, 268, 331 n.,
Richelieu (cardeal de), 73, 137, 378-87,403 n., 466, 505.
152, 161,171,178,199,212, Schelling, F. G. J., 382.
229, 323 n., 505. : Schlegel, G. e F., 411 n., 414,420.
Ricoeur, P., 295, 397 n., 503. Schmitt, C., 49, 75, 106, 135-6,
Riley, P., 79 n. 163, 169, 194-5, 208, 255,
Ripèrt, G., 510. 265-70,273 n., 292-3, 294 n.,
Ritter, J., 34 n. 302, 305,315,324,451,505.
Rivarol, A. de, 411 n. Schnapper, D., 510.
Rivero, J., 334,336 n. Schütz, A., 56 n.
Roberval, G. de, 78 n. Schwarz-Liebermann, H. A., 510.
Robespierre, M ., 379,408. Senellart, M ., 210 n., 510.
Robinet, A., 510. Sérvio, 402 n.
Roederer, P. L., 190 n. Seyssel (Claude de), 21 n., 70 n.,
Römer, P., 252 n. 117,127.
Rosanvallon, P., 510. Shaftesbury A. (Lorde), 178.
Rorty, R., 475. Sieyès, E., 52,78 n., 80,92,93 n.,
Rosenberg, A., 431,505. 105, 107-10, 165, 171, 179,
Rosenfield, D., 34 n. 183-5, 200,266, 331 n., 351,
Rosset, CL, 279 n. 358, 378,405-9,411 n., 414,
Rouché, M ., 369 n. 505-7.
Rousseau, J.-J., 1,15,41,70,76, Silhon, J. de, 215 n.
79-80, 92, 94, 97 n., 100-2, Smith, A.,
107, 162-3, 165, 171-2, 179- Sorbière, S., 161.
86, 188-9, 195 n., 199-200, Sorel, G., 505.
208-9, 218, 220-32, 246-50, Sorgi, G., 28 n.
285, 312, 324-6, 333, 346, Spengler, O., 302,431, 505.
355, 367, 375, 377, 386,406, Spinoza, B., 15, 27, 91 n., 101,
408 n., 410, 411 n., 429-30, 177, 509.
440, 442, 445, 448, 467 n., Staël, G. de, 411 n.
487,495,497,499,505-6,509. Stahl, J., 314.
Ruge, M ., 389. Stálin, J., 342,345, 396.
Stanguennèc, A., 34 n.
Sabourin, P., 510. Strauss, L., 14, 16 n., 19, 28 n.,
Saint-Just, L. de, 378 n. 30 n., 31,40 n., 44, 59 n., 60,
Saint-Léger, J., 26 n. 61 n., 69 n., 70, 71 n., 73, 84,
526 OS P R IN C ÍP IO S FILO SÓ FIC O S D O D IR E IT O

88 n., 201, 208-9, 234, 245, Tyrrell, J., 178.


279 n., 289-90, 364, 371 n.,
466-79,487,505. Ulpiano, 125,134.
Stayer, J. R., 5n., 11 n., 67 n.,
116 n. Valla, L., 403.
Stein von, 378. Vasoli, C., 140 n.
Stimer, M ., 389,395. Vattel, E. de, 97 n , 449,458,505.
Suárez, F., 160,167 n., 172,175, Vaughan, C. E., 167 n.
448 n. Vecchio, G. del, 208, 510.
Summer Maine, H., 87 n. Vedei, G., 350 n.
Vico, J.-B., 99, 380 n.
Talleyrand, Ch. M . de, 286. Villey, M , 5 n , 58-9 n., 265, 328,
Taylor, Ch., 483 n. 337,510-1.
Tenzer, N., 510. Vitoria, F. de, 448 n.
Terrevermeille, J. de, 132 n., Voltaire, 98,163,217,250, 366.
402 n.
Thibaut, A. F. J., 380-1, 384. Walwyn, W „ 177.
Thomasius, Ch., 380, 403 n. Warrender, H., 279 n.
Tiraqueau, A., 402 n. Weber, M., 46,76,201,208,228,
Tito Livio, 67, 69. 252 n., 259, 267, 274, 279,
Tocqueville, A, de, 190, 193-4, 280 n., 281-3, 298-300, 395-
248, 308, 324-5, 327, 346, 6,450,468,478,505-6,509.
505,509. W eil E., 34 n „ 86 n., 384 n.,
Tomás (Santo), 5, 7, 10, 16, 71, 510.
266 n. Wilms B., 28 n.
Tõnnies, F., 28 n., 167 n., 510. Winstansley G., 177.
Trigeaud, J.-M., 379 n. W olff, Ch., 27, 97 n., 331, 380,
Troëlsch, E., 467. 448,505.
Troper, M., 254 n., 256 n., 302- Wollenstonecraft, M ., 375 n.
3 n., 310 n., 322 n., 350 n., W ycliff, J., 10.
510.
Truyol y Serra, A,, 449 n., 510. Xenofonte, 102,470-1.
Tucidides, A. de, 29, 150, 470,
473-4. Zarka, Y . Ch., 22 n., 28 n.

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