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Enigma em Tizangara
Enigma em Tizangara
ENIGMA EM TIZANGARA:
O FANTÁSTICO EM O ÚLTIMO VOO DO FLAMINGO, DE MIA COUTO
1.Introdução
Caderno Seminal Digital Ano 17, nº 15, V. 15 (Jan.- Jul/2011) – ISSN 1806 -9142
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² A partir dessa citação, só indicaremos o número da página do romance, visto que utilizamos a
seguinte edição, COUTO, Mia. O último vôo do flamingo, São Paulo: Cia. das Letras, 2008.
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uma mulher idosa (pois fora castigada pelos espíritos) e o corpo de uma jovem
sensual, cuja idade era indefinida. “(...) corpo (...) de moça polpuda e
convidativa. (...) Pode uma velha com tamanha idade inspirar desejos num
homem (...)?” (p.39)
A presença dessa mulher estranha, jovem e velha, não causa espanto
aos habitantes de Tizangara, que a veem de modo natural, assim como
encaram os outros fatos insólitos que acontecem no lugar como algo que faz
parte de seu cotidiano. Apenas o italiano espanta-se com o que vê. “_Ah, essa
é Temporina. Ela só anda no corredor, vive no escuro, desde há séculos. “
(p.39)
Ainda referindo-nos à “mulher escamosa”, atentemos também para a
sua tia Hortênsia. Já havia falecido, mas visitava a sobrinha e para isso,
tomava a forma de um inseto. “Hortênsia, a falecida, (...) visitava a pensão em
forma de louva-a-deus (...) iria visitar os vivos em outras formas.” (p. 62)
Isso posto, importa mencionar a relação dos vivos com os mortos no
romance. É como se não houvesse uma fronteira entre o mundo dos vivos e o
dos mortos. Estes “convivem” com os vivos, o que faz parte da crença dos
moçambicanos. O tradutor de Massimo Risi também reencontra a mãe. “Me
virei: era minha mãe. (...) há muito passara a fronteira da vida, para além do
nunca mais, (...) ela surgia nas folhagens, envolta em seus panos escuros,
seus habituais.” (p. 111)
A presença do elemento fantástico dá-se também com o pai do tradutor,
o velho Sulplício, cujo nome já é um indicativo de todo o sofrimento pelo qual
ele e também toda a população moçambicana passaram durante as duas
guerras. Sulplício possuía uma singularidade. Já falara com o filho sobre o
assunto, mas este não acreditara. Pôde crer apenas depois que presenciou a
transformação do pai.
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4. Considerações finais
3 Op. Cit.
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Referências Bibliográficas
COUTO, Mia. O último voo do flamingo. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
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Mia Couto proferiu estas palavras por ocasião da entrega do Prémio Mário Antônio, da
Fundação Calouste Gulbenkian, em 2001. Este discurso vem anexado ao livro O último voo do
flamingo, no Brasil, na edição utilizada por nós.
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Arguedas aquém da literatura”, lista o que ele pensa ser os elementos básicos
da escrita arguediana:
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(separado de sua terra e de sua vida autóctone pela cultura “criolla”); um velho
negro afroamericano (separado de sua origem e também de sua vida autóctone
pelos condicionamentos históricos e pelo homem branco).
O conto termina em chave poética e com uma pergunta retórica
impossível de ser respondida, senão simbolicamente e apontando (como um
índice) em direção a outra estranheza ou alteridade: “-- ? De dónde me dijo que
era? Sólo recordaba un nombre, como indicio; la extraña palavra cóndor.”
(ARGUEDAS: 1972, p. 89) Há, aí, uma tensão telúrica entre o forasteiro e o
seu espaço de vivência, entre a possibilidade de vivência autóctone ou social e
o seu local de cultura, entre sujeito híbrido e concepção mística, eco-lógica,
desse mundo desterritorializado. Em suma, “El Forastero” se inscreve no
contexto de migração e se insinua (de forma autobiográfica?) na obra de José
María Arguedas não como um texto/sujeito aculturado, mas sim como um
texto/sujeito transculturado.
É nesse processo quando culturas se chocam como resultado da
presença do migrante, do sujeito híbrido ou desterritorializado, que se abrem
portas para a transculturação; o espaço recuperado é também a história
recuperada. Como nos adverte Fernando Ortiz (1983), pesquisador cubano,
devemos estar atentos ao processo transitivo das culturas. Ortiz nos ensina
que “transculturação” não definiria apenas o ato de adquirir uma cultura como
era subentendido pelo termo “aculturação”, senão que, além da perda
(“desaculturação”), poderia haver a criação de uma nova cultura, o que seria
denominado “neoculturação”. Podemos acentuar que diante da transculturação,
processo pelo qual a cultura do dominado se faz presente com a do dominador,
outros temas se interligam dando suporte também para a representação do
resgate cultural. Quando na narrativa, a trama desenvolve situações onde o
personagem, ao estar preso a uma recordação, se volta ao passado e vem ao
presente trazendo à tona seus desejos, o resgate cultural tende a se
concretizar via alegrias, saudades e decepções. Não seria esta a organização
estrutural do conto “Hijo Solo”?
Sim, “Hijo Solo” (1972) é a história de Singu, o pequeno servente numa
fazenda de nome “Lucas Huayk’o”, que deseja manter e cuidar de um cachorro
errante: “Singu buscaba un nombre. Recordaba febrilmente nombres de perros.
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--! Hijo Solo! – le dijo cariñosamente --.” (ARGUEDAS: 1972, p. 62) No entanto,
Singu sabe que “Lucas Huayk’o” é um inferno odioso: “? Cómo, por qué
mandato ‘Hijo Solo’ había llegado hasta ese infierno odioso? ?Por qué no se
había ido, de frente, por el puente, y había escapado de Lucas Huayk’o?”
(ARGUEDAS: 1972, p. 64) E o menino continua: “—Gringo! !Aquí sufriremos!
Pero no será de hambre – le dijo--. Comida hay, harto.” (ARGUEDAS: 1972, p.
64) Por seu lado, “Hijo Solo” parecia compreender qual era a condição de seus
donos: “? Sabía también que los doños de la hacienda, los que vivían en esta y
en la outra banda se odiaban a muerte? ?Había oído las historias y rumores
que corrían en los pueblos sobre los señores de ‘Lucas Huayk’o’?”
(ARGUEDAS: 1972, p. 66) Os “mistis” desse conto, Don Adalberto e Don
Angel, dois irmãos “caínes”, se enfrentam numa guerra sem trégua, uma
maldição autodestrutiva ao invés de uma luta de interesses, onde a rivalidade
se dá mais por monstruosidades, como arrasar colheitas, aniquilar animais e
torturar quem quer que seja.
A estratégia escritural de Arguedas em “Hijo Solo” se evidencia quando
um acontecimento simples, um encontro de dois excluídos ao acaso, dá início a
um conjunto de transgressões monstruosas e violentas que podem ser lidas
como um deslocamento de conteúdos, quais sejam: descrição de mundos
antagônicos; ações sujeitas a uma ordem de motivações cerimoniais e culturais
que estão enraizadas em tradições cujo veículo comunicacional é uma
linguagem fragmentada, ocupada e por demais, tencionada; estruturas verbais
“em trânsito” entre o espanhol e o Quéchua; expressões que manifestam
claramente o entrecruzamento de uma oralidade quebrada, fragmentada
interiormente, com a possibilidade de sua materialização na construção
escritural arguediana. “Hijo Solo” parece ser o espaço onde todas essas
tensões se dão a ver, onde o universo de sentido é uma luta pela
representação, pela voz de todo um povo.
Seguindo o pensamento de Marcos Natali, teríamos o seguinte:
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Referencias Bibliográficas
______. Agua. In: Estuardo Núñez, Los Mejores Cuentos Peruanos (Tomo
II). Peru: Latinoamericana, 1958. P. 15-43.
______. Hijo Solo. In: José María Arguedas, El Forastero y Otros Cuentos.
Uruguai: Sandino, 1972. P. 59-76.
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