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Paradoxos da Resolução CFO 196/19

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Revista Brasileira de Odontologia Legal – RBOL


ISSN 2359-3466 http://www.portalabol.com.br/rbol

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Deontologia Odontológica

PARADOXOS DA RESOLUÇÃO CFO N. 196/2019: “EU TÔ TE


EXPLICANDO, PRÁ TE CONFUNDIR”.

Resolution CFO N. 196/2019: a paradoxal regulation.

Leandro Brambilla MARTORELL1, Mauro Machado do PRADO2, Mirelle


FINKLER3.

1. Departamento de Saúde Oral, Odontologia Coletiva, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Goiás;
Curso de Odontologia, Centro Universitário de Anápolis – UniEVANGÉLICA, Goiás, Brasil.
2. Departamento de Saúde Oral, Odontologia Legal, Faculdade de Odontologia, Universidade Federal de Goiás, Goiás,
Brasil.
3. Departamento de Odontologia, Programa de Pós-Graduação em Odontologia, Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva, Universidade Federal de Santa Catarina, Santa Catarina, Brasil.
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Informação sobre o manuscrito Autor para contato:
Leandro Brambilla Martorell
Recebido em: 06 Abril 2019
Faculdade de Odontologia - UFG.
Aceito em: 13 Abril 2019 Av. Primeira Avenida, s/n - Setor Leste Universitário,
Goiânia, Goiás, Brasil. CEP: 74605-020.
E-mail: lbmartorell@gmail.com.
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RESUMO
Em janeiro de 2019, o CFO publicou a Resolução n. 196/2019 que autoriza a divulgação de selfie e de
imagens relativas ao diagnóstico e ao resultado final de tratamentos odontológicos. Este artigo visa
analisar o conteúdo desta resolução a partir de referenciais do Direito, da Deontologia Odontológica e da
Bioética, a fim de fomentar uma reflexão crítica na categoria e, por conseguinte, um posicionamento
moralmente autônomo de cada profissional frente às decisões do órgão de classe. A análise realizada
identificou maior vulnerabilização do paciente em relação à sua exposição; evidenciou a desvalorização
do diálogo e deliberação entre os pares por parte do CFO; aumentou a confusão entre os profissionais da
categoria sobre assunto candente; bem como a atenção e a intervenção de outras categorias
profissionais; e ainda, dificultou o trabalho de fiscalização dos Conselhos Regionais ao permitir díspares
interpretações da norma. Entende-se prudente a revogação imediata da resolução e a convocação de
uma nova CONEO, onde as discussões se pautem, fundamentalmente, nos valores que a profissão deve
proteger em relação a todos os envolvidos em sua prática (pacientes – profissionais – sociedade –
corporação/profissão), para somente então deliberar pelas normas deontológicas que devem promover e
resguardar tais valores.

PALAVRAS-CHAVE
Odontologia legal; Bioética; Códigos de ética; Rede social.

INTRODUÇÃO confundindo/ Prá te esclarecer/ Tô


O cantor e compositor brasileiro, iluminado/ Prá poder cegar/ Tô ficando
Tom Zé, em sua música “Tô”, brinca com cego/ Prá poder guiar”. Em meio a um
uma série de paradoxos. O título deste contexto complexo em que, por um lado, há
trabalho se vale de um deles. Segue o inúmeros casos de exposição de pacientes
trecho em que está inserido: “Eu tô te odontológicos em redes sociais e
explicando/ Prá te confundir/ Eu tô te manifestações públicas de entidades

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odontológicas defendendo tais ações, e, por Somente o posicionamento acima


outro lado, entraves legais e normativos transcrito já seria capaz de dar elementos
para a efetivação desta prática, o Conselho robustos para a perspectiva da análise que
Federal de Odontologia (CFO) posicionou- seguirá. A legislação com mais de cinquenta
se. E, como se pretende ressaltar neste anos é nada menos do que a Lei
3
trabalho, o CFO o fez de modo ética e n.5.081/1966 , que regulamenta o exercício
juridicamente questionável, a ponto de profissional do cirurgião-dentista no Brasil,
alcançar exatamente o que a canção entoa: diga-se de passagem, com idade muito
uma explicação (“considerandos...”) que próxima daquela da lei que criou o próprio
mais trouxe confusão que esclarecimento sistema Conselho Federal de Odontologia
aos que exercem e fiscalizam a Odontologia (CFO)/Conselhos Regionais de Odontologia
4
no território nacional. (CRO), a Lei n.4.324/1964 . Um leitor mais
O fato é que, em 29 de janeiro de otimista pode acreditar, diante de tal
2019, o CFO publicou a Resolução depoimento, que estas “jurássicas” leis
n.196/2019 (R196), que “Autoriza a foram revogadas e que, agora, “leis” novas,
divulgação de autoretratos (sic) (selfie) e de enxutas e libertárias tomaram o seu lugar,
imagens relativas ao diagnóstico e ao ocupando merecido espaço. Entretanto, não
resultado final de tratamentos é o caso. O que a análise hermenêutica e
1
odontológicos, e dá outras providências” . contextualizada do discurso acima permite
Além desta, outras quatro resoluções foram entender é que a legislação “antiquada” não
anunciadas no dia 30 de janeiro, na será submetida a um processo de
abertura do 37º Congresso Internacional de reformulação, democrático e que respeite o
Odontologia de São Paulo (CIOSP). Em rito legislativo pertinente, mas sim será
notícia veiculada pelo site oficial do CFO, há “consertada” por meio de “mudança”:
descrição do posicionamento do Presidente Resoluções do CFO.
em relação às normativas em geral: Este artigo visa analisar o conteúdo
A Odontologia é uma das áreas da da R196 a partir de referenciais do Direito,
saúde que mais evoluiu nos da Deontologia Odontológica e da Bioética,
últimos anos e nós, Cirurgiões- a fim de fomentar uma reflexão crítica na
Dentistas, vivíamos reféns de uma categoria e, por conseguinte, um
legislação com mais de cinquenta posicionamento moralmente autônomo de
anos, o que engessava a cada profissional frente às decisões do
divulgação do nosso trabalho e da órgão de classe.
nossa atuação enquanto
profissional de saúde. Nosso A ARTE DO DESCUIDO: REMOVENDO
trabalho precisa acompanhar a ESTE GESSO CHAMADO DE LEI
evolução da profissão. É tempo de Da participação da categoria
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mudança . Ao publicar a R196, o CFO, embora
não tenha explicitado no documento,
limitando-se apenas a mencionar que

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estavam revogadas “as disposições em julgamento das infrações à Lei e à Ética” .
contrário”, modificou o teor do Código de De igual forma, o referido Decreto (artigo 9º,
I 6
Ética Odontológica - CEO , uma vez que alínea “d”) também evidencia ser atribuição
aspectos relacionados à exposição de do CFO “votar e alterar o Código de Ética
paciente, sua imagem e casos clínicos são Profissional Odontológica, ouvidos os
ali descritos e normatizados. Cerca de um Conselhos Regionais”.
terço deste documento normatizador da Sobre a previsão de alterações no
atuação profissional odontológica trata CEO, vale transcrever o artigo 10 do
9
justamente das questões de publicidade e Regimento Interno do CFO :
7
propaganda . Aqui, a primeira questão a ser Através de sua Assembleia
analisada é a da competência e do rito (ou Conjunta, constituída pelos
procedimento) para alteração do CEO. Para membros efetivos e suplentes do
que a resolução em comento pudesse ser Plenário, juntamente com os
adequadamente elaborada, haveria que ser Presidentes dos Conselhos
4
observada a Lei n.4.324/1964 e seu Regionais, compete ao Conselho
respectivo Decreto regulamentar de Federal de Odontologia: I –
8
n.68.704/1971 , bem como o que Estudar e propor alterações do
internamente disciplina o próprio regimento Código de Ética Odontológica,
do CFO. Nesse sentido, quanto ao rito, esta síntese das normas básicas de
Lei que institui o CFO e os CRO aponta, já relacionamento profissional com a
em seu artigo 4º, como atribuição do CFO, comunidade, os poderes
dentre outras: “d) votar e alterar o Código de constituídos, as entidades de
9
Deontologia Odontológica, ouvidos os classe e os colegas (grifo nosso).
4
Conselhos Regionais” .
O Decreto acima referido aponta, Voto, ouvir, assembleia, plenário...
logo de início, em seu artigo 1º, que o CFO pressupõem atuação e deliberação
e os CRO têm a finalidade de supervisionar conjuntas de ambos os órgãos como
a ética profissional em todo o país pressuposto de validade de uma dada
“cabendo-lhes zelar e trabalhar pelo bom medida. Aparentemente, houve algum tipo
conceito da profissão e os que a exercem de estratégia que aproximou o CFO dos
legalmente”, e, ainda, “como órgãos de CRO nesta discussão, haja vista a
seleção, a disciplina e a fiscalização da publicação de algumas Portarias da
Odontologia em todo o País, a defesa do Secretaria do CFO, como, por exemplo, a
10
livre exercício da profissão, bem como o Portaria CFO-SEC-17/2017 , que constituiu

I
“Comissão Especial para recebimento,
Sempre importante ter em mente que “Os
códigos profissionais, em regra, não dizem análise e padronização das propostas de
respeito à ética, propriamente, mas sim à
regulamentação de comportamentos e atitudes,
alteração do CEO - Código de Ética
apesar de, geralmente, serem equivocadamente Odontológica, resultantes das reuniões dos
denominados códigos de ética”. Tratam-se de um
“conjunto de normas jurídicas que quando muito presidentes de Conselhos Regionais de
irão embasar-se em princípios éticos, sem ter,
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contudo, o poder de normatizar a ética” . Odontologia, previamente realizadas por

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região”. Todavia, o que se pretende aqui claro esforço para a participação e debate
refletir não é exatamente o rito próprio, mas pela categoria.
sim a abertura para discussão pública da A título de comparação com os
matéria. pares, cabe lembrar que a Medicina tem
Teriam sido as reuniões por região novo Código de Ética Médica (CEM),
realizadas de forma aberta ao público estabelecido pela Resolução do Conselho
interessado, ou seja, profissionais inscritos, Federal de Medicina (CFM) de
12
entidades de classe, instituições de ensino, n.2.217/2018 , que entrará em vigor 180
etc.? Tomando como exemplo as últimas dias após sua publicação no Diário Oficial
reformulações dos CEO, destacamos a da União (DOU – 01/11/2018). É relevante
figura da Conferência Nacional de Ética apontar que esta revisão decorreu de
Odontológica (CONEO), que representa iniciativa do CFM, que coordenou a
proposição de dar transparência e criar participação de Conselhos Regionais de
oportunidades de participação democrática Medicina (CRM), entidades médicas (locais
no processo de (re)formulação do conteúdo e nacionais), entidades de ensino médico, e
do CEO. contou também com a participação de
A última edição da CONEO foi experts convidados, tudo a partir da
11
definida pela Decisão CFO-5/2011 , a qual formação de Comissões Estaduais e de
determinou que, em Plenária Geral, com uma Comissão Nacional, com trabalhos em
direito a voz e voto, encontrar-se-iam: reuniões locais e nacionais, bem como
01 (um) representante das encontros regionais e nacionais (três cada),
Entidades Odontológicas; 01 (um) sob amplo debate e deliberação conjunta
representante das Universidades; para, então, haver exclusão, alteração e
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01 (um) representante da adição de preceitos e dispositivos ao CEM .
profissão de auxiliar de prótese Ressalta-se que todos os médicos
dentária; 01 (um) representante da regularmente inscritos, as entidades
profissão de auxiliar de técnico em representativas e até mesmo organizações
saúde bucal e auxiliar de saúde das sociedades civis e de classe tiveram a
bucal; 02 (dois) representantes oportunidade de envio de sugestões, em
escolhidos nas pré-conferências ampla e qualificada participação na
13
estaduais; os Conselheiros- elaboração do novo texto de ética médica .
Federais Efetivos e Suplentes, Neste contexto, voltamos a
bem como os 09 (nove) outros questionar: não seria a matéria da R196
representantes dos demais sensível o suficiente para emanar interesse
11
Estados no CFO . em ampla discussão da categoria, seguindo
o processo de transparência e democracia
Destacando-se que, nas pré- estabelecido nos últimos anos, trazendo
conferências municipais e estaduais, era como desdobramento convocação para uma
facultada a presença de todo e qualquer 5ª edição da CONEO?
profissional inscrito, ou seja, que houve um

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II
Merece destaque também que, ao que a resolução estaria “muito clara” , que
final da R196, há somente a assinatura do basta sua leitura e interpretação pelos
Presidente do CFO e que o faz “ad colegas cirurgiões-dentistas, esta missão
referendum”, carecendo a norma, portanto, não é exatamente facilitada pelo CFO. Este
de referendo do Plenário do órgão que deveria se preocupar com a divulgação de
preside. O já citado Regimento Interno do informações precisas, especialmente
CFO, no Capítulo III – Estrutura e quando se trata de normativas que carecem
Competência – artigo 8º, evidencia a de orientação e comentários para seu
necessidade de homologação pelo Plenário melhor entendimento, e ainda mais quando
dos atos da Diretoria praticados “ad seus inscritos estão ávidos pela novidade.
referendum” por motivo de “urgência”. Vale ressaltar que este cuidado não
Sobre a urgência, neste caso, cabe é raro e não seria inédito ao CFO. Por
debate. Seriam os objetos das últimas exemplo, quando das alterações da
Resoluções do CFO (Resoluções n.195, Resolução CFO n.42/2003 (CFO, 2003) - o
196, 197, 198 e 199, todas de 2019) CEO em vigência à época - o CFO publicou
14
decisões de implacável urgência? Ainda, a a Resolução n.71/2006 , a qual deu novo
urgência requerida pelo assunto obrigou a teor ao capítulo “Da Comunicação”, não
providência em ordem afoita, preterindo restando dúvidas sobre o que estava sendo
debates e posicionamento dos diferentes revogado, assim como sobre o que era
atores da Odontologia? Por fim, dentre aspecto novo. No caso atual, a R196, além
tantas possíveis perguntas, mais esta: um de não apontar o que está sendo revogado
congresso (ainda que internacional) é foro e nem propor reescrita da norma, ainda
pertinente, ou mesmo legítimo, para anúncio insere outros pontos de confusão.
de tais medidas? A seguir são transcritos e
analisados o que haveria de ser reescrito no
Da explicação que não se CEO e os desalinhamentos com a nova
encontra: o que muda no CEO? resolução, lembrando que esta omissão ou
Uma segunda questão a ser descuido do CFO dificulta, quando não
analisada se relaciona com a invalida, a utilização do código como
incompreensão sobre quais pontos do CEO instrumento doutrinador e disciplinar para as
seriam contrários à resolução em tela e que, fiscalizações realizadas pelos CRO de todo
portanto, deveriam ser minimamente citados o Brasil.
e, idealmente, especificamente revogados
(ab-rogados – no todo, por completo;
derrogados – em parte) e reescritos, dando-
se nova redação, em adequação à R196.
II
Trecho transcrito do vídeo divulgado em redes
Apesar de veiculado um vídeo não sociais (WhatsApp). "A resolução é muito clara e
institucional nas mídias sociais afirmando veio justamente para beneficiar o cirurgião-
dentista e a odontologia, divulgando o seu
trabalho e a qualidade dos serviços
odontológicos".

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Capítulo VI – Do sigilo profissional inscrição do responsável técnico
Art.14 - Constitui infração ética: - (grifos nossos).
III fazer referência a casos clínicos
identificáveis, exibir paciente, sua Aqui há mais um fator de confusão,
imagem ou qualquer outro uma vez que a R196 determina em seu
elemento que o identifique, em artigo 4º que “Em todas as publicações de
qualquer meio de comunicação ou imagens e/ou vídeos deverão constar o
sob qualquer pretexto, salvo se o nome do profissional e o seu número de
cirurgião-dentista estiver no inscrição”. Em outras palavras, a nova
exercício da docência ou em normativa omite a necessidade de item
publicações científicas, nos obrigatório na publicidade odontológica,
quais, a autorização do paciente qual seja a expressão/designação
ou seu responsável legal, lhe “cirurgião-dentista”.
permite a exibição da imagem ou Além disso, não aborda as
prontuários com finalidade postagens realizadas por CD em perfis de
6
didático-acadêmicas (grifos redes sociais associados a clínicas e outros
nossos). tipos de pessoas jurídicas. Nestes casos, a
figura do responsável técnico e o número de
O que a R196 permite é justamente inscrição no CRO da clínica deixam de ser
que qualquer cirurgião-dentista (CD) faça a itens obrigatórios? Antes da R196, a
exibição de imagem de paciente. Sendo questão parecia pacificada, uma vez que o
assim, este artigo estaria revogado (ab- atual CEO determina que “Os anúncios, a
rogado ou derrogado?), requerendo-se propaganda e a publicidade poderão ser
inevitável adequação do CEO em sua feitos em qualquer meio de comunicação,
redação ou que fosse de estrita clareza a desde que obedecidos os preceitos deste
nova norma. Código” (artigo 42). Deste modo, ficava
explícito que as postagens em redes
Capítulo XVI – Do anúncio, da sociais, sendo um meio de comunicação,
propaganda e da publicidade também deveriam cumprir o mínimo
Art.43 - Na comunicação e obrigatório e, obviamente, abster-se do
divulgação é obrigatório constar o proibido.
nome e o número de inscrição
da pessoa física ou jurídica, bem Art.44 - Constitui infração ética: -
como o nome representativo da V- dar consulta, diagnóstico,
profissão de cirurgião-dentista e prescrição de tratamento ou
também das demais profissões divulgar resultados clínicos por
auxiliares regulamentadas. No meio de qualquer veículo de
caso de pessoas jurídicas, comunicação de massa, bem
também o nome e o número de como permitir que sua
participação na divulgação de

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assuntos odontológicos deixe pacientes como uma espécie do gênero


de ter caráter exclusivo de “expor propaganda para granjear clientela”.
esclarecimento e educação da O que teria mudado nesta concepção?
6
coletividade (grifos nossos). Como sustentar a ideia de que a exposição
de imagens selfies (acompanhadas ou não
Haveria necessidade de nova de imagens de outrem), isto é, “um retrato
15
redação deste dispositivo, uma vez que a de um indivíduo feito por ele mesmo” , não
publicização dos resultados clínicos passou seria uma manifestação muito concreta do
a ser permitida com a R196, ainda que sob que essencialmente é a autopromoção? Se
o disfarce semântico, ora denominado não isto, o que poderia caracterizar a
“conclusão dos tratamentos odontológicos”. autopromoção, o benefício profissional ou
Além disso, a R196 permite que o CD mesmo concorrência desleal? Assim, não
divulgue assuntos odontológicos sem o haveria também a necessidade de se
objetivo de esclarecimento ou de educação reescrever o artigo 44 do CEO? Em um dos
da coletividade, apresentando apenas casos incisos deste artigo, caracteriza-se como
clínicos, o que invariavelmente remete à infração ética:
autopromoção. A experiência nos permite VI - divulgar nome, endereço ou
afirmar que o que frequentemente constam qualquer outro elemento que
nestas publicações são convites ou frases identifique o paciente, a não ser
de efeito que buscam seduzir seus com seu consentimento livre e
receptores para a realização de esclarecido, ou de seu
procedimentos, geralmente com objetivos responsável legal, desde que não
estéticos e indicação técnico-científico- sejam para fins de
epidemiológica questionável. autopromoção ou benefício do
profissional, ou da entidade
Art.44 - Constitui infração ética: - prestadora de serviços
XII - expor ao público leigo odontológicos, observadas as
6
artifícios de propaganda, com o demais previsões deste Código
intuito de granjear clientela, (grifo nosso).
especialmente a utilização de
imagens e/ou expressões antes, Destarte, qual o sentido de publicar
durante e depois, relativas a uma selfie ou um “antes e depois” em uma
6
procedimentos odontológicos rede social que não seja o de autopromoção
(grifos nossos). e benefício do profissional? Teria como
fazê-lo sem concorrência desleal ou
Neste ponto, fica evidente a mercantilização da profissão?
dificuldade de se sustentar a coerência
argumentativa da R196. Pela normativa
acima, o CFO entendia a divulgação de
imagem do tratamento odontológico de

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Capítulo XVIII – Das penas e suas Conselhos de Classe, uma vez


aplicações que existe profunda discussão em
No artigo 53, “Considera-se de relação a sua compatibilidade com
manifesta gravidade, principalmente: VII - o texto da Lei Federal nº 5.081/66,
veiculação de propaganda ilegal” (CFO, em seu artigo 7º, alínea ‘a’, além
2012). Há que ser levantada, portanto, a de existir expressa vedação na
potencial ilegalidade da R196, por ser atual redação do Código de Ética
contrária à Lei n.5081/1966 no que diz Odontológica, no artigo 44, incisos
16
respeito a ser vedado ao CD “expor em I e XII .
público trabalhos odontológicos e usar
de artifícios de propaganda para granjear Além do inciso XII do artigo 44 já
3
clientela” (alínea a - artigo 7º) (grifo nosso). comentado, é interessante explicitar que, na
A ilegalidade desta prática ou, interpretação que emerge deste ofício do
minimamente, o importante questionamento CFO, a prática atenta também contra o
que a mesma levanta já foi evidenciado pela inciso I do mesmo artigo, que define como
atual gestão do CFO. Quando, em momento infração ética:
anterior, manifestou-se o Presidente do I - fazer publicidade e
CFO em recomendação ao Presidente do propaganda enganosa, abusiva,
CRO de Minas Gerais, por meio do Ofício inclusive com expressões ou
16
n.637/2018/CFO , em que afirmou: imagens de antes e depois, com
2. Conforme já é de conhecimento preços, serviços gratuitos,
público, o Conselho Regional de modalidades de pagamento, ou
Odontologia de Minas Gerais outras formas que impliquem
editou a Nota Técnica nº comercialização da Odontologia
001/2018, que dispõe sobre a ou contrarie o disposto neste
6
utilização de imagens antes e Código (grifos nossos).
depois de pacientes nos perfis
privados dos cirurgiões-dentistas Ora, neste inciso, o enfoque (ou fato
em redes sociais e álbuns de fotos típico) é sobre publicidade e propaganda
virtuais. enganosa ou abusiva e não especificamente
3. Pois bem, não obstante a a exposição de “antes e depois”. Quando,
utilização de imagens antes e em nota técnica, o CFO tipifica a questão
depois ser praticada em perfis desta maneira, faz supor que toda
privados nas redes sociais e divulgação de imagem de paciente com
álbuns virtuais, ainda que “antes e depois” seria um caso de
mediante a autorização do propaganda enganosa e/ou abusiva. Em
paciente, este Conselho Federal verdade, uma ocorrência não implica
de Odontologia vem informar que necessariamente na outra. Seria, então,
o presente tema não está esta a tipificação correta no caso de uma
devidamente pacificado entre os publicidade que demonstra “antes e depois”,

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mas sem com isso trazer engodo ou prática Além disso, o CFO determinou o
abusiva? A interpretação de outrora do CFO meio pelo qual a autorização de uso da
implica o reconhecimento de que se trata de imagem deve ser feita, o TCLE – Termo de
comercialização/mercantilização da Consentimento Livre e Esclarecido.
Odontologia? De todo modo, faz lembrar as Entretanto, no preâmbulo desta resolução,
III
muitas resoluções (de idas e vindas, de encontra-se que apenas é necessária
muitos e mutáveis “considerandos”, de “autorização prévia e expressa de utilização
revogação em tempo curto) relativas ao uso por quem de direito”, assim, não parece
de toxina botulínica e de materiais de coerente determinar que a autorização seja
preenchimento, e que, vale evidenciar, dada apenas por tal formato de documento,
deram no que deram: demandas judiciais, já que esta autorização poderia estar
ainda sob análise. descrita em contrato ou autorização de uso
de imagem, por exemplo. Mas, como houve
Dos outros pontos cegos da R196 a recomendação do TCLE, seria oportuno,
A palavra selfie já foi incorporada para não gerar mais dúvidas aos cirurgiões-
por dicionário da Língua Portuguesa e dentistas, que o próprio CFO recomendasse
significa: “Fotografia que uma pessoa tira de um modelo de documento com estrutura e
si mesma, geralmente com um celular, e informações minimamente necessárias.
15
publica nas redes sociais” . A divulgação O primeiro parágrafo do artigo 1º
de selfies de cirurgiões-dentistas nunca foi também traz muita confusão: “Ficam
expressamente proibida por Resoluções do proibidas imagens que permitam a
CFO, diferentemente do CFM, que já identificação de equipamentos,
normatizou a questão. instrumentais, materiais e tecidos
A construção do texto em pauta se biológicos” (CFO, 2019a). O que não pode
descuida ao permitir a interpretação de que, ser identificado? Equipamentos como o
mesmo em selfie sem o acompanhamento próprio equipo, fotopolimerizadores,
de paciente, a autorização do mesmo seria aparelho de raios-X? Ou um simples
necessária. Explica-se. Faltou aplicação de equipamento de proteção individual (EPI)
expressão como “neste último caso / para estaria contemplado – diga-se, um jaleco,
este caso”, para o devido entendimento de uma máscara, um gorro? Ou instrumentais
que a autorização prévia do paciente (ou como fórceps, limas, motores de alta
representante legal) fosse aí necessária. rotação? Materiais como resinas, alginato,
Incipiente ou insipiente que seja tal cimentos? Qual o sentido de se proibir a
apontamento, escreve-se uma norma com identificação de objetos comuns à prática da
primor linguístico e em técnica de texto, tal Odontologia? O que se queria legislar era
IV
qual manda o debate atual sobre legística .

metódica e sistemática, consubstanciada num


III
Menção à Resolução CFO-176/2016, conjunto de regras que visam contribuir com a
revogando as Resoluções CFO-112/2011, adequada elaboração e o aprimoramento da
145/2014 e 146/2014. qualidade de atos normativos. De forma simples,
IV
Legística é a “área do conhecimento que a legística pode ser conceituada como ‘a arte de
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estuda e se ocupa de como fazer normas, bem fazer normas’” .
envolvendo sua concepção e redação, de forma

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sobre a proibição da divulgação de marcas cientificamente, assim como instalações e


comerciais de produtos odontológicos? Ou equipamentos que não tenham seu
de partes biológicas do corpo de um registro validado pelos órgãos
paciente? Não se podem publicar imagens competentes” (CFO, 2012, grifos nossos).
que permitam a identificação de tecidos Ou seja, até então, a proibição de
biológicos? Não se pode postar o dente divulgação estava restrita aos equipamentos
extraído, já que dente é órgão, ainda que sem registro validado por órgãos
composto por tecidos? Em contrassenso, a competentes, contudo, a partir de agora,
exposição da figura completa de um nem estes podem ser divulgados. Ou a
paciente (constituído de tecidos biológicos) proibição seria pontual e restrita a sua
é permitida? A exposição de uma lâmina de associação com divulgação de imagens de
exame histopatológico que dê o pacientes? Ou restrita a sua associação
“diagnóstico” de um tumor como ocorrência com divulgação de marcas comerciais?
em um paciente seria o caso vedado? Vale Art.2 - Fica autorizada a divulgação
a máxima: tudo é relativo; nada é simples. de imagens relativas ao diagnóstico e à
18
Na visão de Edgar Morin : uma realidade conclusão dos tratamentos odontológicos
sempre complexa. quando realizada por cirurgião-dentista
Aqui, apesar da crítica sobre a responsável pela execução do
imprecisão da norma, é possível identificar procedimento, desde que com autorização
preocupação para boas práticas no uso das prévia do paciente ou de seu representante
redes sociais. Primeiramente, em relação ao legal, através de Termo de Consentimento
conflito de interesses na divulgação de Livre e Esclarecido – TCLE (CFO, 2019a).
marcas comerciais por profissionais que se O conceito de diagnóstico pode ser
valem de seu prestígio social/profissional definido como “uma série de procedimentos
para “recomendarem” algum material de ordem intelectual e operacional através
específico, embora possam receber dos quais se obtém uma resposta a um
19
vantagens por isso, o que suspende a determinado problema clínico” . Neste
imparcialidade possível de uma avaliação sentido, como estaria configurada a
técnica. Em segundo lugar, ao sinalizar a publicação de um diagnóstico? Diagnóstico
proibição de exposição de partes do corpo é um processo ou um aspecto clínico,
humano, ainda que esta respeite a radiográfico, histológico? Pode-se postar
vontade/autorização do paciente, estão exame laboratorial? Uma lâmina
sendo protegidos outros valores histológica? Em um caso de diagnóstico de
relacionados à profissão e ao necrose pulpar, feito por meio de um teste
profissionalismo. de vitalidade pulpar, poderia se postar a
Ainda, este item obrigaria à reescrita imagem do teste? Mesmo com a exposição
do CEO porque o artigo 44 considera falta da pinça? Mas, a pinça não pode ser
ética: “III - anunciar ou divulgar técnicas, exposta e identificada na imagem, conforme
terapias de tratamento, área da atuação, o parágrafo anterior. Pode-se ter por certo
que não estejam devidamente comprovadas que se trata de permissão para expor a

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Paradoxos da Resolução CFO 196/19

boca ou o arco dental ou a face e sorriso do CEO, não se pode admitir que toda
paciente? Ou não? Como não lembrar da promessa de resultado assim o seja. A
música mencionada no início do texto? inclusão desta categoria na R196 parece,
Neste mesmo artigo, também se desta forma, mais um descuido do CFO.
nota um esforço do CFO em não utilizar as Esta abordagem sobre a promessa
expressões outrora abomináveis “antes e de resultado representa outra fragilidade da
depois”, sendo substitutos úteis norma em debate por tratar de um conceito
“diagnóstico” e “conclusão de tratamentos”. de âmbito jurídico desconhecido por muitos,
Como fora anunciado: “É tempo de inclusive (não obstante a nobre disciplina de
mudança”. Questão semântica? Ou seria Odontologia Legal). Como os Conselhos
tempo de eufemismos? Regionais poderiam interpretar se há ou não
Vale lembrar que críticas já promessa de resultado? Apenas quando
apontaram a manipulação da linguagem esta promessa estiver expressa por meio de
com objetivos de contornar as normas éticas palavras (escritas ou faladas)? Parece que
para a publicação de imagem de pacientes esta categoria teria mais interesse prático
em redes sociais. A “Carta de Natal” buscou em situações de pactuação de serviços ou
flexibilizar as normas do CEO, de litígio entre profissionais e pacientes, a
descaracterizando as publicações de ser interpretada e avaliada pelo juiz ao
cirurgiões-dentistas em redes sociais como analisar cada caso. Por que um juiz não
um tipo de publicidade por não serem entenderia promessa de resultado ao
publicações patrocinadas. Na ocasião, analisar as publicações de um cirurgião-
ressaltou-se: “caracterizar uma ação como dentista com vários casos de “diagnóstico”
propaganda ou não segundo a existência de (antes) e de “conclusão do tratamento”
patrocínio é exercício retórico mais do que (depois) publicados em sua rede social, que
20
lógico” . certamente têm intuito comercial? Por que
O parágrafo primeiro do artigo 2º este mesmo juiz não se valeria do Código
taxa que “Continua proibido o uso de de Defesa do Consumidor para determinar
expressões escritas ou faladas que que a publicidade integra o contrato a ser
possam caracterizar o sensacionalismo, a celebrado entre o prestador de serviço e o
autopromoção, a concorrência desleal, a consumidor?
mercantilização da Odontologia ou a A autopromoção, também conforme
1
promessa de resultado” (grifos nossos). o dicionário de Língua Portuguesa, é
Se continua, é porque já era estabelecido. definida como “promover a si mesmo;
Contudo, apesar do CEO proibir alardear ou divulgar seus próprios méritos e
15
sensacionalismo, autopromoção, qualidades” . Não teria a selfie, em si, o
concorrência desleal e a mercantilização da sentido de autopromover-se? Ao se realizar
Odontologia, ele jamais proibiu a promessa e divulgar um retrato de si próprio, a
de resultado. Ainda que se possa imaginar intenção seria a de promover outrem ou
que algumas promessas de resultado sejam ninguém? Este posicionamento é oposto ao
enganosas, daí ilegais e proibidas pelo defendido pela categoria médica, que, em

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21
sua Resolução CFM n.2126/2015 , proíbe esta proibição poderia existir, visto que
selfies justamente compreendendo sua protegeria o público leigo da exposição a
potencialidade para o “sensacionalismo, imagens que podem ser chocantes e
autopromoção ou concorrência desleal”. nauseantes, o que pode afastar as pessoas
Como não interpretar a fotografia de um CD do cuidado odontológico, reforçando o medo
ao lado de um ator famoso, um astro do da população frente à figura do cirurgião-
esporte ou um digital influencer como dentista. Entretanto, esta última
autopromoção, sensacionalismo e até argumentação sobre a proibição ética
mesmo concorrência desleal? também incluiria, principalmente, as
O artigo 3º determina que: “Fica imagens do “antes”, também
expressamente proibida a divulgação de frequentemente repugnantes (vide
vídeos e/ou imagens com conteúdo relativo publicações na área de Cirurgia e
ao transcurso e/ou à realização dos Traumatologia Bucomaxilofacial).
procedimentos, exceto em publicações No artigo 5º, determina-se que “Em
1
científicas” . Aqui, talvez se encontre a todas as hipóteses, serão consideradas
maior incoerência observada nesta infrações éticas, de manifesta gravidade, a
resolução. Ora, se o preâmbulo se baseia divulgação de imagens, áudios e/ou vídeos
na autonomia do paciente e de seu de pacientes em desacordo com essa
representante legal, no Código Civil e na norma” (CFO, 2019a). Significa que a
Constituição Federal, e, se nestes não há exposição do equipo, instrumental, material
limites para a autorização do uso de e tecidos biológicos será apenas falta ética,
imagem por terceiros, isto é, segundo a sem manifesta gravidade? Tal redação
lógica da legislação, o paciente pode também acarretaria a necessidade de se
autorizar o uso da sua própria imagem em atualizar o CEO em relação ao que é
qualquer circunstância. Assim, qual seria o considerado falta ética de manifesta
sentido de se proibir a divulgação do gravidade.
transoperatório quando esta é autorizada
pelo paciente? Este artigo protegeria o que? Da insegurança jurídica
Neste ponto, apesar da incoerência Além da insegurança jurídica
argumentativa, definida pela ausência de causada pelo fato da R196 desconsiderar a
explicações do CFO sobre os fundamentos Lei n.5.081/1966, desconsiderando
da norma, também é possível identificar interpretação basal sobre ordenamento
intencionalidade de proteção aos interesses jurídico no Brasil, regra geral, quando se
da profissão, uma vez que os vídeos, ao publicam normativas que interferem no
ensinar ao público leigo as etapas de um modo de se tipificar as faltas éticas, é usual
procedimento, podem contribuir para o se estabelecer um prazo para início de
estímulo do seu exercício ilegal. Além disso, vigência. Desta forma, tanto é possível um
ainda que do ponto de vista legal não seja trabalho de divulgação das novidades,
coerente o impedimento da divulgação do quanto preparar e capacitar os profissionais
transoperatório, de um ponto de vista ético que realizam a fiscalização ética do

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exercício profissional. Mas, não foi este o CONSIDERAÇÕES FINAIS


caso. A R196 entrou em vigor no dia de sua Em oportuno, a cada ação, uma
publicação. Iluminou a temática, mas cegou esperada reação. Daí, as já publicadas
os CRO. Manifestação concreta disso é a manifestações de associações ou entidades
nota publicada pelo CRO de Alagoas, em com interesse nos desdobramentos
que a Plenária de 07 de fevereiro de 2019 advindos das novas resoluções.
23
decidiu por suspender “todos os processos A manifestação em nota conjunta ,
éticos em andamento neste Regional, cujo do dia 01 de fevereiro de 2019, da
conteúdo esteja exclusivamente vinculado Associação Médica Brasileira (AMB), da
à Resolução 196/2019 (...) enquanto não se Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica
dirimirem todas as dúvidas sobre o processo (SBCP) e da Sociedade Brasileira de
22
legislativo no âmbito desta autarquia” . Dermatologia (SBD), denunciou carecerem
Assim, a Resolução n.196/2019 foi as resoluções do CFO de “qualquer alicerce
editada e publicada sem observar prudente legal”, bem como de “ultrapassar a lei” e de
e pertinente andamento, rito, procedimento, afrontar “os limites de urbanidade, convívio
o que suscita questionamentos sobre científico e harmonioso das entidades de
eficácia e validade jurídica, uma vez ter saúde”. Quanto a esse último aspecto,
alterado assuntos atinentes ao CEO. E evidencia-se a relação com a resolução que
mais, de forma não específica, sem trata da criação da especialidade
apontamento dos dispositivos a que se odontológica de Harmonização Orofacial e o
referem a buscada mudança, trouxe consequente debate sobre competências de
insegurança jurídica ao invés de solução a cada profissão, o que impende detido
temas de inegável impacto profissional e debate, mas fora do propósito deste texto.
social. Já quanto aos dois primeiros, há que,
Em termos jurídicos, há que se infelizmente, reconhecer-lhes certa razão ao
considerar que quaisquer celeumas ou classificarem as medidas como “Verdadeiro
conflitos de interesses envolvendo a prática desalinho jurídico” e sob “interesses
odontológica, em especial relacionados à escusos e mercantis”, ainda que a objeção
publicidade, que venham a gerar discussão da Medicina possa igualmente ser tida como
ou medidas punitivas em desdobramentos em reserva de mercado, pois difícil crer que
dos ditames da resolução em comento, seja em pueril defesa do interessado-mor –
devem ser processados e julgados tanto o paciente ou a sociedade. Fato é que,
junto ao Sistema CFO-CRO, somada a esta crítica acirrada, tais
administrativamente, quanto à Justiça entidades médicas definiram por medidas
Federal, judicialmente, que é a competente futuras, as quais justificaram como busca
quando forem envolvidos o CFO e os CRO, “de restabelecimento da ordem e proteção
seja na condição de réu, autor, assistente social”, ainda que sob a falácia de não
ou oponente. corporativismo (o que também cabe críticas,
mas igualmente para outra elaboração que
não esta, e que urge).

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Também a Associação Brasileira de Ao modo de conclusão, afirmamos


Ética e Odontologia Legal (ABOL), no dia 01 que a publicação da R196: vulnerabilizou
de fevereiro de 2019, com pertinência, ainda mais o paciente em relação à sua
propriedade e representatividade, alertou exposição; evidenciou a desvalorização do
para a “série de inconsistências de cunho diálogo e deliberação entre os pares por
ético e jurídico” que permeiam a publicação parte do CFO; aumentou a confusão entre
24
destas cinco resoluções do CFO . Em os profissionais da categoria sobre assunto
prudente apontamento, reconheceu o candente; bem como a atenção e a
anseio da classe odontológica por intervenção de outras categorias
normativas que contemplem o exercício profissionais; e, ainda, dificultou o trabalho
profissional em tempos atuais, mas de fiscalização e de verificação ético-
propugnou pelo amplo debate e pela disciplinar dos Conselhos Regionais ao
observação das normas jurídicas vigentes e permitir díspares interpretações da norma.
dos princípios éticos e bioéticos que Desta forma, seria prudente a
norteiam as profissões de saúde. Na nota revogação imediata da R196 e a
da ABOL, restou evidente o convocação de uma nova CONEO, em que
encaminhamento ao CFO de suas as discussões se pautem,
considerações e busca de audiência em fundamentalmente, nos valores que a
defesa da sociedade e do cirurgião-dentista. profissão deve proteger em relação a todos
Cabe ressaltar que, em 25 de março os envolvidos em sua prática (pacientes –
deste ano, o CFO carregou, em seu site, um profissionais – sociedade –
FAQ - do Inglês, frequently asked questions corporação/profissão), para somente então
- para responder dúvidas sobre o pacote de deliberar pelas normas deontológicas que
resoluções aprovadas no início do ano. devem promover e resguardar tais valores.
Segundo o site, “A criação do FAQ foi um Dever-se-ia aproveitar esta Conferência não
compromisso assumido pelo presidente da apenas para atualizar o CEO, mas também
Autarquia (...) durante a transmissão ao vivo para aperfeiçoá-lo no sentido de centrar
#CFOResponde, no dia 26 de fevereiro atenção no sujeito da assistência
25
(...)” . Apesar de não ter sido objeto de odontológica. A ausência desta ampla e
análise deste artigo, em uma leitura adequada discussão, a partir de referenciais
flutuante da página, percebe-se que o e métodos verdadeiramente éticos, ameaça
mergulho seria arriscado, já que se trata de a qualidade de qualquer decisão colegiada.
"águas rasas". O que se encontram são O desequilíbrio na proteção dos valores e
respostas por vezes mais confusas do que a dos interesses dos envolvidos mancha o
própria R196. O CFO demonstra não estar profissionalismo ao desvalorizar a profissão
sendo capaz de reconhecer as divergências frente a toda a sociedade. Tudo isto poderá
evidentes entre esta resolução e o CEO. ser um aprendizado, a depender dos rumos
Recomenda-se que os argumentos que o CFO adotar em relação a esta
apresentados na página sejam objeto para problemática.
análise futura.

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Paradoxos da Resolução CFO 196/19

ABSTRACT
In January 2019, the CFO authorized the disclosure of selfie and images related to the diagnosis and the
final result of dental treatments. This article aims to analyze the content of Resolution CFO n. 196/2019 in
order to promote a critical reflection in the category and, therefore, a morally autonomous position of each
professional in front of the decisions of the class organ. The analysis identified greater vulnerability of the
patient in relation to their exposure; evidenced the devaluation of the dialogue and deliberation among
dentists enrolled in the CFO; increased the confusion among professionals of the category on hot topic; as
well as the attention and intervention of other professional categories; and also made it difficult to
supervise the Regional Councils by allowing disparate interpretations of the norm. It is prudent to
immediately revoke the resolution and convene a new CONEO, where the discussions are basically based
on the values that the profession must protect in relation to all those involved in its practice (patients -
professionals - society - corporation / profession), only then to deliberate on the deontological norms that
should promote and safeguard such values.

KEYWORDS
Forensic dentistry; Bioethics; Codes of ethics; Social networking.

REFERÊNCIAS
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l508 10. Conselho Federal de Odontologia. Portaria
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Institui o Conselho Federal e os Conselhos recebimento, análise e padronização das
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01 de outubro de 2015, Seção I, p. 131).
Altera as alíneas “c” e “f” do art. 3º, o art. 13
e o anexo II da Resolução CFM nº
1.974/11, que estabelece os critérios
norteadores da propaganda em Medicina,
conceituando os anúncios, a divulgação de
assuntos médicos, o sensacionalismo, a
autopromoção e as proibições referentes à
matéria.
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Alagoas. Nota aos inscritos no CRO-AL.
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frequentes-sobre-resolucoes-editadas/>.

Rev Bras Odontol Leg RBOL. 2019;6(1):74-89 89

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