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5. As leis do discurso Convencées tacitas Como acabamos de ver, a derivacao do subentendi- lo baseia-se num conjunto de normas, numa espécie de cédigo que Grice chama de “maximas conversacionais" ¢ outtos, de “postulados de conversac’o". Aqui empregare- mos o termo de O. Ducrot, leis do discurso. Essas “leis” desempenham um papel considerdvel na interpretagao dos enunciados definem uma espécie de competéncia pragmatica (outros dizem "competéncia ret6rica”). Nao se trata de leis comparaveis as que regem a gramaticalida- de das frases, mas de uma espécie de codigo de bom comportamento dos interlocutores, de normas que se su- poe sejam respeitadas quando se joga 0 jogo do inter- cambio verbal. Grice faz com que todas dependam de uma espécie de metaprincipio, o principio de coopera- Go: “que a sua contribuigao para a conversaclo corres- ponda a0 que é exigido de vocé, no estigio atingido por esta, através do objetivo ou da directo aceita do inter- cambio falado no qual voce esta envolvido”, Porém ainda € necessatio nao se enganar a respeito do sentido dessas regras. Foram censuradas por postular uma visio ilusoriamente harmonioss dos intercambios verbais, por fazerem acreditar que os locutores colabo- ram do melhor modo possivel para 0 @xito de enuncia- Oes conformes a um ideal. Na realidade, nao se trata de saber se, de fato, os locutores sempre respeitam essas 6 PRAGMATICA PARA 0 DISCURSO LITERARIO regras, mas de perceber que intercdmbio verbal, como aualaser atividade social, repousa num “contrato" tito ¢ varia evidentemente de acordo com os discurso), oi . Detenhamo-nos por um instante nessa nocdo de ‘contrato tici Fala-se de “contrato”, mas nao so con- las € conscientes. O fi , como dois semaclores que sincronizam sta ca- Diante de uma situagdo int 1, OS SUj de acordo com o que, segundo sua experién Sef @ comportamento dos outros numa situagio desse ti- po. E desse modo que se instituem normas de comporta- mento relativamente estaveis, vinculadas a sistemas de expectativas miituas: vocé realiza algo adequando-se a uma regra espera que os outros fagam 0 mesmo. Vimos gue Iecitor e autor na “cooperagao narrativa” se baseavam em expectativas desse género; numa conversa, os cutores baseiam-se nas les do discurso, , convengées tdcitas nada tém das regras obriga- tras ¢ incouscientes que regem & marlogss os sees xe, que T. Pavel’ prefere chamar de convencdes constitu- tivas, que sao para a linguagem 0 que as regras de xadrez ‘ou de damas sio para esses jogos: leis de funcionamento. As listas de leis do discurso e sua organizacio inter- fa varia consideravelmente de um autor para outro, mas enicontramos tis ou’ menos 0s mesmos elementos em asear-nos aqui na classificacdo propos por C. Kerbrat-Orecchioni, que procede.a os iaventaelo racional das que sto mais cOrrentemeate invocadas. “> Comegaremos por distinguir trés principios muito gerais (principios de cooperacio, de pertinéncia, de sin- ceridade), antes de destacar leis mais especificas 1. Convention, Cambridge (Mass, Harvard University Press 2. Univers de ia fiction, Seuil, 1986, p. 157 elites 3. Limplice, WV, 4 AS LEIS DO DISCURSO 7 0 principio de cooperacio Como disse, esse principio apresenta em Gi taruto de um metaprincipio. Isso € compreensivel j4 que ele se contenta em colocar que 0s sujeitos falantes que se ‘comunicam se esforcam por ndo bloquear o intercambio, por fazer a atividade discursiva ter éxito. Por definigao, cada um dos protagonistas reconhece a si € a seu co- enunciador os direitos e os deveres vinculados 4 elabora- ao do intercmbio. Na medida em que é preciso ser dois para conversar, 0 sujeito mais egoista € obrigado a se submeter a eles. Na definicio de um. isantropo, poden-se tomar al- gumas liberdades com relagao a tal principio. Assi quando Oronte dirige uma vibrante declaragao de amiza de a.Alceste, o iiltimo “parece nao ouvir que Oronte esti falando com ele”: ORONTE: £ a vés, por favor, que esse discurso se dirige. ALCESTE: A mim, senhor? ORONTE: A vés. Achais que ele vos Fere? aD Oronte comporta-se como se ndo considerasse que seu destinatirio pudesse ndo cooperar; se Alceste no res- ponde, & porque ndo sabe que alguém esti falando com ele. Mas € possivel pensar que Alceste esta violando del beradamente 0 principio de cooperagao para respeitito num segundo nivel, Finge nao ser o destinatirio para dar a entender a Oronte que seus propésitos sio mentirosos , conseqiientemente, nulos para ele. Desse modo, Alces- te coopera discursivamente, embora de um modo para- doxal. O interesse de sua atitude é que ele de certa forma mostra com gestos © que quer fazer entender: nao presto atengdo em suas palavras, ndio porque me recuso a Coo- perar, mas porque € impossivel que tais propésitos se di- Hjam’a mim, A bola desse modo € mandada de volta para ‘© campo de Oronte sem que Alceste tenba dito o que quer que seja. Alceste vai portanto mais longe que Arle us PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO quin em A ifha dos escravos com relagio a Iphicrate: en- quanto o escravo se contentava em dar respostas sem ne- xo, em contestar as modalidades do intercdmbio dlissimé- trico que Iphicrate pretendia impor, o misintsopo contes- ta 0 proprio principio do intercambio. © principio de pertinéncia £ um principio de uma importancia to grande quanto 0 principio de cooperacao. Para D. Sperber ¢ D. ‘Wilson, seria até o axioma fundamental do interedmbio verbal: De maneira muito intuitiva, um enunciado ¢ tanto m: pertinente quanto com menos informagio leva 0 ouvinte fa enriquecer ou modificar a0 méximo seus conhecimen- tos ou stias concepgdes. Em outras palavras, a pertinencia ido € diretamente proporcional para o ouvinte e inversamente proporcional a riqueza de informagao que ele contém.+ Esses autores desenvolvem portanto uma concepeto mais informativa da pertinéncia, avaliada segundo suas conseqiiéncias. Assim, "est chovendo” seria menos perti- nente dito como uma simples constatacao do que em res- posta a pergunta de um locutor que quer saber se-deve ou nao fegar seu jardim. Segue-se que a avaliagio da per- tinencia depende dos destinatirios: de acordo com os co- nhecimentos de que j4 dispdem num determinado con- texto, julgarao um enunciado mais ou menos pertinente. Para interpretar os enunciados do locutor, o destinatario presume que ele respeita o axioma de pertinéncia: “o lo- cutor faz © melhor que pode para produzir © enunciado mais pertinente possivel”, levando em conta 0 género de discurso envolvido, ev 4. comn salions, of 30, p88. | AS LEIS BO DISCURSO 9 Pode-se ter uma concepgdo mais ampla da pertinén- cia na medida em que é dificil conceber que um entincia- do ndo seja apropriado, de uma maneira ou de outra, 2 situagao. Se, por exemplo, o locutor diz algo que todos supostamente conhecem, é sempre possive! calcular uma interpretagdo que o tornara pertinente, independente- mente de sua falta de informacao aparente. A dimensio informativa e a do “a propésito” s6 convergem tendencio- samente, Tudo depende da autoridade da qual o locutor se beneficia, As palavras de uma pessoa reconhecida se- ro sempre presumidas pertinentes, enquanto as de uma Pessoa sem crédito serio desqualificadas com facilidade, E 0 que sucede neste diilogo de as As artimanbas de Es- capino (Ml, V: GERONTE: Por Deus, senhor Argante, quereis que vos di- 82? A educacto das crianeas € algo a que & preciso se apegar com forca ARGANTE: Com certeza. Por que esiais dizendo isso? GERONTE: Porque 0 mau comportamento dos jovens provém na maioria das vezes da mi educagao que seus pais thes dao. ARGANTE: Isso as vezes acantece, Mas o que quereis éi- er com isso? Manifestamente, Aigante nao di muito crédito a Géron- te, a0 qual coloca por duas vezes em posigiio de infra- cao declarando suas palavras nao pertinentes, £ uma de- cisto de Argante, uma estratégia de agressio bem mais do que a conseqiiéncia de uma constatagao objetiva Talvez essa transgressio das regras de conveniéncia (ver infra o respeito das “faces” do interlocutor) seja destina- da a liberar um subentendido como “suas palavras no me interessam’, Por esséncia, uma enuunciagao coloca-se como perti- nente. Falar a respeito € simplesmente falar, as “palavras” fazem coincidir 0 dizer € a pertinéncia, como se vé em Argante: “Por que estais dizendo isso?” A partir do mo- mento em que explicita seu direito A palavra, em que 120 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO marca sua pertinéncia, a enunciagao pode produzir um efeito paradoxal: justificando-se, revela um defeito de le- gitimidade, Nada mais significativo a esse respeito do que ‘© emprego de “a propésito” quando serve para introduzir © que precisamente ndo vem a propésito. O “a propésito” empregado absolutamente pode se enfraquecer em *a propésito de...”, que seleciona um elemento do contexto verbal ou ndo-verbal para colocar a pertinéncia do enun- ciado que se segue: DORANTE: Estés zombando de mim, tens razao; nao sci © que estou dizendo, nem o que estou te pedindo. Adeus. SILVIA: Adeus, estés tomando a decisio correta... Mas a propésito de teu adeus, ainda me falta saber uma coir sa: estais partindo, disseste-me; € sério? 0 jogo do amor e do acaso, Il, 9) Aqui, Silvia deseja continuar a conversa com Dorante, embora ela the declare que nao quer ter qualquer relacdo com ele. Quando 0 jovem diz que vai embora, ela é pega em sua propria armadilha. Como encadear em “adeus” sem deixar de salvar as aparéncias a seus olhos ¢ aos Ihos de Dorante? Ao dizer “a propésito de teu adeus”, cla joga a responsabilidace de seu dizer para as palavras de Dorante € afirma a pertingneia ce uma pergunta cujo contetdo, contudo, trai a vacuidade: “€ sério?” Ao fazer isso mais uma vez, ela revela o que se esfor¢a por escon- der no proprio movimento para escondé-lo, © principio de sinceridade A questo de Silvia sobre a sinceridade dos enuncia- dos de Dorante trai sua mé fé, precisamente porque se presume que toda enunciagao € sincera. Os locutores su- postamente s6 devem afirmar © que consideram verda- deiro, s6 devem ordenar 0 que querem ver realizado, s6 devem perguntar aquilo cuja resposta desejam de fato co- |AS LEIS DO DISCURSO 121 nhecer, etc. Em outras palavras, supde-se que os locuto- res aderem a suas palavras, Mas isso ndo passa de uma espécie de regra do jogo, e nao € uma tese sobre a since- ridade “efetiva” dos sujeitos. De fato, oscila-se entre uma concepgio “cinica” desse principio (nao existe nem since- ridade, nem falta de sinceridade, mas sujeitos que dizem ‘© que € necessario para serem integrados numa coletivi- dade) e uma concep¢ao psicol6gica ou ética (ser sincero é dizer 0 que se pensa) A célebre cena do soneto de Oronte ilustra bem a complexidade do manejo desse principio. Oronte quer estabelecer um contrato de sinceridade com Alceste: ALCESTE Tenho 0 defeito De ser um pouco mais sincero do que 0 necessitio, “ORONTE Eo que pego ¢ teria do que me quetxar Se, expondo-me a v6s para que me faldsseis sem fngimentos, Fosseis me trair © disfargar alguma coisa. aD Ora, nesse tipo de situacdo, ritual mundano exige que se pega que os ouvintes sejam sinceros. Alceste (por im- pulso? por ingenuidede? por provocacio?...) viola as con- veniéncias para respeitar o principio de sinceridade: age como se 0 pedido de Oronte fosse um pedido verdadei- 10, 00 seja, um pedido sincero. Mas quem pode saber se © pedido de Oronte é sincero ou nao? O teatro mostra- nos uma situagao de discurso sem oferecer um sitio a par- tir do qual seria possivel decidir com toda a certeza. Curiosamente, ao mesmo tempo que supostamente © discurso € regido pelo principio de sinveridade, a lin- ua dispde de modalizadores, como “francamente” ou sinceramente". O que faz supor que existam diversos ni- veis de sinceridade. Mas, afora Alceste (que diz do soneto de Oronte: “francamente, é de se jogar na privada"), to- dos sabem que a falta de sinceridacle mascara-se também 122 PRAGMATICA PARA © DISCURSO LITERARIO por tris dos “francamente"; “nao estou lisonjeando”, diz, Filinto para acompanhar suas lisonjas; “é verdade", diz a raposa da fabula ao corvo. Esse jogo sutil € bem ilustraclo por Celimena quando acothe sua inimiga Arsinoé com as seguintes palavras: Senhora, é verdade, estava com pena de vos. Enunciado pérfido que é construido a partir dé uma Con- tradicdo enuneiativa. “Estava com pena de vos" implica de fato que Celimena tem afeicio por Arsinoé, enquanto que 0 “é verdade* da a entender “sei que estais pensan- do que nao gosto de vés”, Se Arsinoé achava que Celi- mena era sua amiga, perde as ilusdes, “E verdade” pres- supée pragmaticamente que, sem essa precisio, a enun- ciagdo poderia ser interpretada como mentirosa; a0 mes- mo tempo, o simples fato de empregé-la faz. pairar uma suspeita sobre um enunciado que normalmente no de- veria despertar suspeitas, pois se trata de uma formula convencional. A maneira como Celimena maneja o principio de sinceridade € sintomatica de um fendmeno mais geral. Através do discurso, os locutores negociam constante- mente entre injuncdes contradit6rias. Para se ferirem, Ce~ limena e Arsinoé s6 dispdem do discurso; devem nao romper 0 fio, respeitar os principios da conversacio, ao mesmo tempo que se agridem com dureza, Nesse teatro, enquanto para o mundo masculino a palavra pode ser substituica pela violencia fisica (Rodrigo desafia o conde, Oronte envia suas testemunhas a Alceste), as mulheres dli- laceram-se permanecendo no circulo da linguagem. A lei de informatividade Ao lado desses principios muito gerais, podemos mencionar algumas leis do discurso mais especificas, quie se referem ao contetido dos enunctados, a lei da informa- AS LEIS DO DISCURSO 123 tividade € uma das mais utilizadas. Seu campo de aplica- cdo @ extremamente vasto, pois exclui que se fale “para nao dizer nada”. Seu manejo porém nao € simples. A no- cdo de informatividade varia em fun¢do dos destinatirios e dos contextos, Para Alceste, Oronte viola a lei de infor- matividade quando, em vez de ler seu soneto, profere um certo ntimero de frases preliminares 7 ORONTE. *Soneto...” & um soneto. “A esperanca...” E uma dama Que com alguma esperanca lisonjeara minha chama, “A esperanca...” Nao sao esses grandes versos pomposos Mas versinhos doces, ternos, langorosos, ete. Alceste nao parece admitir que a exigéncia de informati- vidade seja combatida pelos rituais de decéncia, pela preo- cupagao de desarmar as criticas de antemao, Para o piblico, qualquer transgressdo manifesta da lei de informatividade provoca um efeito cémico certo: DU BOIS Senhor, é preciso bater em r ALCESTE da, Comer DU BoIs E preciso sair daqui sem alarde ALCESTE E por que? Du BOIS Estou vos dizendo que ¢ preciso aban- ddonar esse local ALCESTE Por qué DU BOIS £ preciso partir, senhor, sem dizer adeus, ALCESTE Mas por que motivo me falnis desse modo? 124 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO DU Bors Pelo motivo, senhor, de que € preciso pér-nos a0 fresco, (O misantropo, IN, 4) Esse fragmento de uma comicidade um tanto meca- nica destoa nessa pega. E provavel que sua funcao seja dramatic, Como 0 espectador acaba de assistir a uma longa cena de explicagdes tempestuosas entre Celimena e Alceste, 0 contraste entre esses dois usos do discurso, pa- tético € cmico, lembra ao espectador que se trata de fato de uma comédia e no de uma tragicomédia ou de uma tagédia, Numa poética como a do século XVII, onde a definicao dos géneros tem um alcance ontolégico e social, essa lembranga nada tem de acess6rio. Em contraste, evocaremos de novo o inicio de O Cid, no qual Chimena pede que sua confidente repita sua narrativa. Dessa vez a repeticao é cuplamente justificada: pela verossimilhanca psicolégica (Chimena esta apaixo- nada) e pelo comentario de Elvira (ja que ainda é preci- 80 vos contar..."). Ao empregar ja que e é preciso, a confi- dente liberta-se com relacao a sua senhora da transgres- sio da lei do discurso, Alei de exaustividade A lei de exaustividade pode parecer redundante com relagao a lei de informatividade. De fato, ela prescre- ve que um enunciado fornega a informacio pertinente “maxima”, E em virtude dessa lei que o criado que disser que “um lacaio" veio estaré cometendo um ero se co- nhecer a pessoa: devendo identificar o individuo, nio leu todas as informagdes que seu senhor tinha o direito de esperar. Apés ter transgredido a lei de informatividade, o ctiado Du Bois viola a da exaustividade, comecando por dizer que “um homem negro, tanto de roupa como de ca- ra" deixou um papel, s6 anunciando em seguida que vie~ ram dizer a Alceste que ele ia ser detido pela policia. Ao LAS LEIS DO DISCURSO 125 nao dar de imediato a informagao mais importante, em- prega 0 procedimento da famosa cangdo “Mas, além dis- so, senhora marquesa...”. A transgressao € atribuida 4 toli- ce do criado, isto é, a um preconceito social cristalizado em convengao teatral. Com essa lei de exaustivicade, apreende-se até que uuin logico, “vi Paulo dez vezes" implica que “vi Paulo cinco vezes” € verdade; em compensagao, se um locutor diz. “vi Paulo cinco vezes” quando o viu dez, isso pasar, exccto em contextos particulares, por uma espécie de me: ‘A Iei de exaustividade € subordinada ao principio de pertinéncia, isto €, supde-se que o lecutor deva dar um maximo de informacdes, mas apenas as que sdo suscet veis de convir 20 destinatério. Submergir detalhes € to repreensivel quanto reter a informacao. A esse respeito, a injungdes vinculadas aos géneros de discurso dese penham um papel decisive, pois indicam aos protagonii tas o que € exigido dizer € nao dizer, O excesso de preci- so, assim como o laconismo, provocam um efeito cémi- 0, sinal de que, ainda ai, uma norma social f é violada. E © caso na célebre cena de Os /itigantes de Racine (II, em que 0 advogado, para defender uma causa irris. declara como preambulo: ‘Vou, sem nada omitir € sem prevaricar, Compendiosamente enunciat, explicar, Expor a vossos olhos a idéia universal De minha causa ¢ 0s fatos encerrados nela, Querendo evocar 0 que ocorreu “antes do nascimento do mundo’, ‘ele atrai a réplica do juiz “passemos ao dil vio". Por tras do absurdo dessa tirada, € colocado um problema real: o do limite além do qual nao convém ir, Na tradicao literaria francesa, os homens de justiga encar- nam a transgressio da lei de exaustividade. Provavel- mente porque sao homens de leis escritas e de arquivos, enquanto a deontologia da conversa viva privilegia os valores mundanos do momento oportuno, do ajuste ime- 126 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO. diato a situago e ao interlocutor. As leis do discurso va- lorizam desse modo sua flexibilidade as custas da pesada acumulacao das leis positivas. Em compensacio, quando ‘© tamanho € a preciso das palavras 140 deveriam tidi- cularizar seu enunciador, é possivel encontrar justificagoes que estabelecem sua conformidade com o principio. de pertinéncia: Dir-me-vis: “por que essa narragio?" E para que saibais de minha precaucéo. (Amnolphe em 4 escola de mulheres, 1; 1) Para o “homem de bem’ da literatura Classica, o *pe- dante’, que nfo perdoa qualquer detalhe constitui um contraste ideal. Por isso, em As preciasas ridiculas, Mas- carille vangloria-se de nao escrever com pedantismo: “Tu- do 0 que fago parece galante; absolutamente nao cheira a pedante (cena X)". O estilo “galante” convém a alguém que escreve “improvisos”. Embora seja um personagem cémico, Mascarille defende valores de uma literatura im- pregnada de mundanalidade, a que domina os séculos XVII e XVIII na Franca. A lei de modalidade Por ela sto condenados os miiltiplos tipos de obscu- ridade na expressdo (frases complexas demais, elipticas, vocabulario inint |, titubeios, etc.) e a falta de eco- nomia nos meios. A condenagio do “jargao", da “confu- sio”, € universal, € sua encenagio constitui um procedi mento cOmico garantido. Muitas vezes, contudo, traduz mais divergéncias ideolégicas do que uma transgressao objetiva. Quando, em As preciosas ridiculas, apés ter fe to Madelon expor sua concepcio das relagdes amorosas, Gorgibus lhe declara: “Que diabo de jargao ouco aqui? Eis um estilo bem elevado” (V), exprime sobretudo sua tejeicdo pelo universo precioso (um pouco além, dird AS LEIS DO DISCURSO 127 “nada consigo compreender dessa algaravia"). De fato, nas palavras de Madelon, nem o Iéxico, nem a sintaxe se afastam do emprego mais corrente, SO & possivel cestacar © emprego de “visio” em vez de “idéia” (“me da néuseas a simples visdo que isso me sugere”). Gorgibus baseia-se na lei de modalidacle para condenar o que esse tipo de enunciacdo supée, isto €, a existéncia de pequenos gru- pos, nos quais reina um discurso privado. Ele, o “bom burgués”, que quer abrir sua familia, dar sua filha em ca- samento a um bom..rapaz, rejeita 0s usos lingiifsticos fe- chados das preciosas, cujos circulos subvertem a divisto tradicional da sociedade. De um modo geral, existe uma (ensio permanente entre © uso restrito da lingua e seu uso universal. Da mesma maneira que Gorgibus zomba do jargao das pre- ciosas, em suas primeiras Provinciais, Pascal ridiculariza © léxico supostamente equivoco dos tedlogos antijanse- nistas; assim, suficiente, na expresso a graca suficiente seria um termo enganador, pois designaria uma graca que de fato nJo “basta” para salvar o homem. Mas nao existe equivoco aqui, porque Pascal traduz para o fran- cés corrente um termo de vocabulario especializado, um conceito latino usado no discurso teolégico, Como Molié- re, ele toma como testemunhas 0 piiblico dos homens de bem, que supostamente coincide com o dos caucionado- res das normas discursivas. Tais condenagdes, porém, pressupdem a existéncia de um cédigo lingiiistico de re- feréncia, que se imporia a todos. £ revelador que o autor da primeira Provincial apele para a autoridade da Acade- mia; “nao vejo mais remédio se os senhores da Academia, por um ato de autoridade, nao banirem da Sorbonne es- se termo barbaro que provoca tantas divisbes”, O fran cés dos homens de bem deve prevalecer sobre os em- pregos restritos. DB PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO Leis de discurso e comportamento social _ Acabamos de evocar algumas regras propriamente discursivas; existem outras que dizem respeito ao conjun- to dos comportamentos sociais, 6 aqui em geral que se fax intervir a célebre teoria das faces, saida dos tabalhos do socidlogo americano E. Goffman’, Face € aqui consi- derada numa acepeao bem ilustrada pelas expressées “salvar/perder a face [a caral". Na vida em sociedade, to- dos tentam defender seu territério (chamado face negati- va) ¢ valorizar, fazer com que os outros reconhecam e apreciem a qualidade de sua propria imagem (face positi- va), Esse objetivo egoista, porém, s6 pode ser atingido quando se poupam as faces negativa e positiva do ou- tro: quando se agride alguém, ele ndo teri uma imagem ra de voce, etc. sé a alguém, dar-lhe uma or- dem, interrompé-lo... tudo isso so incursdes em seu ter- ritério. Inversamente, titubear, desculpar-se, etc., desvalo- rizam a face positiva do enunciador. £ contudo necessi- tio se autodesvalorizar um pouco para valorizar 0 outro ¢ ser, em compensagio, valorizado por ele. Dai um traba- Iho incessante de negociacao entre forcas contraditorias. Falaremos de ameaga a face positiva ou contra o territé- rio do outro (termo mais claro que “face negativa”). Ha nisso mais do que um calculo egoista: € a condigio de qualquer comunicagao, Exceto numa situacao particular, © arrasamento do outto se volta contra o enunciador. Pa- fa sepetir um termo filos6fico, $6 existe sujeito quando reconhecido por um outro sujeito. O personagem do misantropo de Moliére aparece precisamente como aquele que denuncia esse “comércio” gerado pela necessidade de valorizar 0 outro para valori- zar-se a si mesmo. Ao ler sua obra, Oronte ameaca o ter- Titétio de Alceste, mas também sua propria face positiva (arrisca-se a passar por impertinente ou por escritor medio- cre). Para conjurar o duplo perigo, comeca a fazer gran- 6. Ver em panieular Le rites AS LEIS DO DISCURSO 129 des protestos de amizade € cumprimentos exagerados a Aleeste (“o Estado nada tem que no esteja abaixo / Do métito brilhante que se descobre em vés"), de modo a valorizar sua propria face positiva e a de seu destinatario (um homem que reconhece meu mérito s6 pode ser dora- do de grandes qualidades, Alceste deveria se dizer). Uma vez que Alceste de certo modo ficou em divida com Oronte, este acredita poder ler seu poema sem perigo. E compreensivel que cumprimentos demasiado veementes criem uma suspeita naquele que € seu objeto. Em Doi Juan, 0 sedutor cobre seu credor, o senhor Dimanche, de flores; anulando através do discurso uma divida em ouro, paga-o desse modo com 0 ouro dos tolos. De fato, as coisas so ainda mais complexas, pois, atério um devedor, o cumprimento S40 essas inversdes perpétuas que constituem toda a sutileza das interagdes discursivas. Em geral, os compostamentos tém efeitos contradit6rios: Oronte ameaca 0 territério de Alceste forcando-o a escu- t4-lo, mas também valoriza sua face positiva colocando-o em posicao de juiz, de homem de gosto. Firmando com ‘Aleeste um contrato de sinceridade, ameaga sua propria face positiva (se 0 soneto for julgado rim), mas valoriza-a também, jé que se confere a imagem de um homem que coloca a verdade acima de tudo, Como sua experiéncia dés uso8 mindanos the ensinou que de qualquer modo seria cumprimentado e como acha ter *aprisionado” Al- ceste com seus oferecimentos de amizade, afinal os riscos sio minimos, Nao pode contudo impedir que o desvalori- zem em sua auséncia (alias, um dos attificios da pega sio essas maledicéncias perpétuas as costas dos envolvides), mas, na medida em que os papéis S30 ir mutiveis Caquele que maldiz. torna-se por sua vez da maledicéncia, aquele que Ié um soneto seri em segui- da levado a ouvir o de outro, etc.), produz-se uma espé- cie de neutralizagao, de anulagio de déficits na escala do conjunto dessa pequena sociedade. . 130 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO. Poupar 0 outro Poupar a face positiva e o territ6rio do outro é uma preocupacio fundamental dos interlocutores. A tradigéo literéria conhece o personagem do *impertinente” que, sem atentar contra a face positiva de seu destinatario, ‘ameaga com constancia seu territério (obriga-o a ouvir, toma seu tempo...), As miultiplas formulas de polidez. vi- sam fazer o destinatério reconhecer a intencao que se tem de poupi-to, isto €, a consciéncia que o locutor tem de estar ameacando-o, de fato, 0 co-enunciador que € envolvido, pois ameagar a face positiva de uma pessoa ausente nao se compara com ameacar a de seu interlocutor. Essa diferen- ca € notavelmente ilustrada em O misartropo, onde se vé por exemplo Celimena no mesmo verso passir da inais negra maledicéncia contra Arsinoé ausente a formulas de Fla € impertinente a ndo mais poder. E. Ah! Que bons ventos vos trazem a esse lugar? «aml, 3-4) Quando as duas mulheres dirigem maldades uma a outra, adotam estratégias de indiretas € s6 em tltima instincia renunciam a civilidade. Embora se odeiem e saibam que a outra sabe disso, evitam 2 agressio verbal direta. Colo- car em questéo as leis do discurso seria atravessar a fron- teira que separa 0 universo social e um exterior sem pon- tos de referéncia. Até Alceste hesita por muito tempo an- tes de criticar com franqueza 0 soneto de Oronte e utiliza um desvio, fingindo evocar as criticas que teria feito a al- guém de suas relacdes. Deixa Oronte cecifrar sua critica sob forma de subentendido. © efeito cdmice fica garantido se o destinatario, em vez de se perturbar com a ameaca, fica contente com ela. £0 caso de um outro misantropo, o de Lal AS LEIS DO DISCURSO 131 MACHAVOINE: Esté combinado?.... Um instant els ser um vigaristal, CHIFFONNET, @ parte. Ble estd me chamando de vigaris- tal... que encantador. 1... Poderi- (E. Labiche, O misantropo e 0 homem da Auvergne, 7) Se a ameaca a sua face positiva alegra tanto Chiffonnet é porque o tiltimo est’ estabelecendo com Machavoine um contrato estranho, que consiste em privilegiar a qualquer preco o principio de sinceridade. A grosseria da réplica do homem da Auvergne aparece-lhe como a prova de que ele é capaz de respeitar um contrato que contradiz a deontologia discursiva usual, A conclusto da peca, adivi- nha-se, sera de que somente essa deontologia usual € compativel com as exigéncias da vida social. Notaremos que esse contrato de sinceridace se parece com 0 que Oronie estabelece com Alceste, mas 0s papéis esto in- verticos, Nas duas pecas, s6 um ser colocado no limite da sociedade policiada e com uma suposta natureza pura (um rabugento, um risstico) pode efetivamente aceitar ameacar a face positiva de seu interlocutor. Poupar asi mesmo Toda medalha tem seu reverso. Como sempre nas leis do discurso, ndo se devem reverté-las demais. Um lo- cutor que deixa que ameacem demais sta face positiva ou seu territ6rio se desvalorizaria, As desculpas excessi- vas voltam-se contra aquele que as profere, a humildade pode degradar-se em baixeza. O que nao significa que se deva elogiar a si proprio. O vaidoso Oronte, ele proprio, 6 ousa valorizar sua face positiva C*Actedito que um amigo caloroso e de minha qualidade/Nao deve com cer- teza ser rejeitado” {, 21) apés ter vangloriado Alceste, ou seja, quando acha que pode permitir-se isso. Existem contudo situagdes em que a transgressio dessas leis € nao apenas tolerada como exigida, quando se quer ofender 0 destinatério. Para ofendé-lo, deve-se de 132, PRAGMATICA PARA 0 DISCURSO LITERARIO. fato fazer com que reconheca a intengo que se tem de ofendé-lo e, para isso, ameagar deliberadamente seu terri t6rio e a sua face positiva ou glorificar a si mesmo a custa de outro. A cena de O Cid em que 0 conde e Dom Diego brigam, assim como aquela em que Rodrigo desafia 0 conde s4o exemplares a esse respeito. Na primeira, ve- mos os dois homens cantarem seus proprios méritos com uma auséncia de contenco que se explica pelo carater ri- tual das justas oratérias feudais, cujo resultado € 0 duclo. Quando 0 conde dé uma bofetada em seu concorrente, acompanha-a com um Tua impudéncia, Ancito temeratio, terd sua recompensa A passagem do “vés” para o “tu”, acompanhada da apés- trofe “ancido” atesta o golpe a face positiva de Dom Die- g0: 0 “tu” o exclui da esfera de reciprocidade, enquanto “anciao” o faz cair de sua posig2o social nobre para re- duzi-lo apenas a sua realidade fisica. A bofetada na cara (literal) assinala © paroxismo da ingeréncia no territério, Toda essa cena supde um intrincamento estreito entre o fazer verbal e o fazer fisico; a agressio € codificada, pois a bofetada, no cédigo de honra, € 0 gesto que significa a rencdo de lancar a infimia, enquanto a palavra insul- tante fere mais incisivamente do que tudo. Esse tipo de cena transgressiva mobiliza as leis de comportamento social de maneira univoca. Mas so casos extremos. Como se disse, a regra geral é a dosagem sutil entre injungdes contraditérias. Desse modo, quando, apés ter matado 0 conde, Rodrigo vai até a casa de Chi- mena, ameaga gravemente a face positiva ¢ o territétio da moga. Ao entrar na casa dela num tal contexto, conjuran- do-a a falar com cle, faz uma incursao violenta em seu territério ¢ ofende tanto sua reputaco quanto a imagem, que ela tem de si mesma. Mas ofende também sua pro- pria face positiva, Portanto, esti condenado a um jogo muito cerrado, Para reparar a ameaga a Chimena, oferece nada menos do que a sua vida, reparando indiretamente AS LEIS DO DISCURSO 133, sua propria face positiva através de sua obla¢o. Contudo nao pode ir longe demais no sentido da humildade, pois isso se voltaria contra ele € contra Chimena; ele tem de permanecer um cavalheiro perfeito. Dai uma oscilacao constante entre a submissao e a recusa de enrubescer pe- los seus atos: ago 0 que quiseres, mas sem abandonar a vontade De minha deplorivel vida acabar por tuas maos;, Pois enfim nao espere de minha afeigo ‘Um arrependimento covarde de uma boa ago... Faria tudo outra vez, se tivesse de fazé-o. Ele esta tomado pela necessidade de se desvalorizar e de valorizar-se 20 mesmo tempo, as mesmas palavras em- pregando-se simultaneamente nos dois sentidos. Como Chimena € prisioneira de paradoxos simétricos, isso con- duz a uma casuistica sutil: ‘Ao me ofender, mostraste-te digno de mi Devo, por tua morte, mostrar-me digna de Um teatro pedagogico Quando se trata de pecas como O Cid e O misantro- po, percebe-se com muita nitidez a dimensao pedayogica> desse teatro: as transgressdes de Alceste, assim como a perfeita conformidade de Rodrigo ao codigo aristocritico, mostram ao piiblico 6 qué convém dizer. ou nao dizer? Nessa dramaturgia essenciaimente verbal, tudo se resolve em intercAmbios que sio ao mesmo tempo © modelo e 0 reflexo da deontologia discursiva de uma certa sociedade. © teatro, foco da vida cultural, d4 corpo as normas dis- cussivas com tanto mais eficdcia por nao dizero que con- vém fazer, mas 0 demonstrar através do drama. Basta que patrées e criados invertam seus papéis pa- 1a que esse valor pedagogico apareca com nitidez. Em O 134 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LITERARIO. jogo do amor e do acaso, Arlequin revela sua verdadeira condicdo por seu-mansjo defeituoso das leis do discurso._ Ao contratio, o falso criado oferece 0 espeticulo do que um ctiado ideal deveria dizer. De fato, 0 criado ideal 6, por definigio, aquele que se exprime como seu patrao gostaria DORANTE: Esou procurando o senhor Orgon; nlo € a ele que tenho a honra de fazer reveréncia? SENHOR ORGON: Sim, meu amigo, @ a ele mesmo, DORANTE: Senhor, com certeza recebestes noticias nos- a5; sirvo ao senhor Dorante que esti me acompa- nhanclo e que sempre me envia diante de vos para garantir-vos seu respeito, enquanto espera garantir- vos ele préprio. ; SENHOR ORGON: Desempenhas tua missio com muito boa vontade. Lisette, que me dizes desse rapaz? SILVIA: Eu, senhor, digo que bem-vindo € que pro- mete. DORANTE: £ muita bondade vossa; Faco 0 melhor que POsso, i ‘ao O pseudocriado exibe 9 modelo do bem dizer, poupando ‘a face positiva € o territério de seu destinatario quando obriga o senhor Orgon a ouvi-lo, mostrando-se idealmen- te informativo quando deve dar sua mensagem. O que permite que o senhor Orgon Ihe outorgue uma espécie de brevé de bom comportamento em linguagem, cumpri- mentando-0 por isso... Para C, Kerbrat-Orecchioni’.o cumprimento é um ato de linguageni “locutoriamente duplo 1) enquanto assercao, pretende fazer o destinatario admitir seu contetido como verdadeiro; 2) enquanto presente verbal, visa agradar. Porém 0 cumprimento ameaca igualmente o territério do destinatario, pois supde uma ingeréncia em seus negécios 7. “La description des échanges en analyse conversationnell exemple di conipliment’, DREAV, 0" 46-37, 1987, p. 15. AS LEIS DO DISCURSO 135 © © coloca em posigio de devedor, obriga-o a fornecer uma compensacao. Decerto, valoriza a face positiva do cumprimentado, mas o tiltimo dificilmente pode aceité-la sem violar a regra que manda que ndo se glorifique a si mesmo, Por outro lado, uma rejeico pode atentar contra © cumprimentador, fazer pensar que estio recusando seus presentes, que estio duvidando de sua sinceridade, etc, £, portanto, uma questio de dosagem. A estratégia de Dorante € das mais clissicas; ao dizer “€ muita bondade vossa’, aceita 0 cumprimento e resolve dois problemas de uma sé vez; retribui com um outro cumprimento (va- loriza, portanto, em contrapartida, o cumprimentador) ¢ inclica que 0 elogio € exagerado. Notaremos que nao é sem um bom motivo que o se- hor Orgon incita sua filha a cumprimentar © rapaz. Por 1a valor oblativo, por sua intengao de agradar, o cumpri- mento possui um valor erético virtual, abundantemente explorado por aquele que pretende cortejar. Ao agir des- se modo, o senhor Orgon, que quer ajudar Dorante, colo- a Silvia numa relacdo com 0 rapaz que tende a inscrevé- los no registro amoroso. © contraste com Arlequin € elogiiente. Ele agride seu destinatario acreditando estar respeitando as leis do discurso: SENHOR ORGON; Meu caro senhor, peco-vos mil perdées por vos ter feito esperar, mas s6 neste instante fiquei sabendo que estiveis aqui ARLEQUIN: Senhor, mil perdées € demais! Basta um 86, quando s6 se cometeu um erro, 10) © senhor Orgon realiza um ato de desculpa que funciona a0 mesmo tempo como uma estratégia destinada a entrar no assunto, isto é, a anular a ameaca sobre o territério que 0 ato de tomar a palavra constitui. Ao fazer isso, obri- ga seu destinatério a compensar por sua resposta. 5 exa- tamente o que Arlequin quer fazer, mas, como ele pressu- pde aquilo que deveria negar (ou seja, que o senhor Or- 136 PRAGMATICA PARA O DISCURSO LTTERARIO gon cometcu um erro), desemboca no resultado inverso, atentando contra a sua face positiva ¢ a de seu ouvinte. Sua falta de habilidade revela, portanto, ao senhor Orgon que ele no domina as leis do discurso, E precisamente a0 cortigir a hipérbole polida do senhor Orgon, a0 acre- ditar pega-lo em flagrante delito de manejo defeituoso do discurso, que mostra sua propria falta de dominio. © autor escolheu portanto um modo de apresenta- cao de Arlequin que o ridiculariza, mas no 0 exclui pu- tae simplesmente do exercicio bem-edueado do discur- so, E decerto a conseqiiéncia de uma injungdo ao mesmo tempo social e estética: como ndo € 0 caso de 0 criado tomar o lugar do senhor (Arlequin nao é Ruy Blas), € preciso dar um jeito para assinalar sua nao-pertinéncia esfera dos senhores. Por definigio, 0 criado € uma figura instivel que oscila de acordo com os géneros, os auto- res, as épocas, entre o ristico que teria seu cédigo de polidez especifico € 0 senhor. Torné-lo um conversador desajeitado é uma solucdo de compromisso que permite fazer a peca funcionar: um Arlequin grosseiro demais no seria verossimil ¢ bloquearia © desenvolvimento 'da comédi Esse tipo de teatro inscreve-se num universo im- pregnado dos valores da sociedade de corte, Como N. Elias mostrou bem, nesse mundo, os ritos de polidez ndo io absolutamente gestos acess6rios: ‘Sto bagatelas numa sociedade em que a realidade da existéncia social consiste em fungdes financeiras e profis- sionais. Na sociedade de corte, essa8 “bagatelas” so, na realidade, a expressio da existéneia social, do lugar que ‘cacla um ocupa na hierarquia em vigor.” Arlequin € obrigado a jogar um jogo cujas regras nao do- mina. Se 0 objetivo desse jogo é mostrar através de seu dis- curso que se € qualificado para pertencer a uma certa es- fera, pode-se dizer que fracassou. Em compensagao, no 8.N. lias, La société de cous, tad, fr, 1985, Flammarion, p. 84, AS LEIS DO DISCURSO 137 topo da escala social, € possivel transgredir, caso se dis- ponha de uma autoridade suficiente na sociedade. Pois cessas leis do discurso no so como as regras da sintaxe ou da morfologia: o enunciador define sua relagao com elas definindo sua identidade. Ter poder, ser 0 senhor € precisamente poder realizar dentro de certos limites © que o comum dos locutores ndo pode se permitir: ser cumprimentado sem oferecer compensacdo, ndo respon- der a alguém que fala com vocé, nao ser claro, etc. Na Em busca do tempo perdido proustiana, 0 personagem do bardo de Charlus ilustra bem esse caso. Diferentemente de Alceste, ele nao contesta as leis do discurso, mas trans- gride-as para montar roteiros perversos ou humilhar aqueles que sdo de uma categoria mundana inferior, Po- rém suas afirmagdes indiretas de superioridade s6 so efi- cazes enquanto a ‘cotagao” mundana do bario esti em alta, Num universo assim, ninguém jamais tem certeza de sua posigao; é uma das principals ligoes de Em busca do tempo perdido:

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