Você está na página 1de 6

Olá, terapeuta!

Há 30 anos, eu entrava numa sala de aula de Psicologia, numa universidade do

interior de Minas Gerais. Envolvi-me ao máximo sobretudo com a psicologia

experimental. Tinha, na ocasião, dois professores que se esmeravam por mostrar,

antes com rigor científico do que com qualquer preocupação ideológica ou

“doutrinária”, os efeitos de uma aplicação técnica que era muito atraente para

mim.

Ao final de um ano de curso, a vida me colocou nos trilhos da Filosofia. Abandonei

a Psicologia e passei praticamente 3 anos aos pés da “Amiga da Sabedoria”.

Todavia, um dia, numa aula de filosofia moderna, o professor passou 50 minutos

desenvolvendo o argumento filosófico kantiano segundo o qual a liberdade é uma

impossibilidade. Na minha jovem cabeça de um moleque de 20 anos, aqueles

longos minutos pareciam absurdos: qual a razão para ficar uma hora escutando

um adolescente de 40 anos medindo forças com um grupo de outros 30

adolescentes, valendo-se, para isso, tão somente do seu domínio de uma teoria?

Uma teoria que, aliás, negava a própria realidade: como negar o que eu já

experimentara? “Não, a liberdade não é impossível”. Lembro-me da reação do

professor: “Quem é você para se opor a Kant?”.

Saí daquela aula e daquele curso com uma certeza: um conhecimento que, como

aquele, se negava a olhar para a condição humana deve ter muito pouco valor.

Era preciso aprender algo que me permitisse olhar melhor e mais amorosamente

para a pessoa, e menos idolatricamente para um autor, um livro ou uma teoria, por

interessante que pudesse ser.

Eu, então, intuía o que a Psicologia que eu conhecera poderia me oferecer: seu

olhar parecia ser mais concreto do que aquelas abstrações kantianas. Ainda que

tudo, pelo pouquíssimo tempo em que estive em companhia da Psicologia,

parecesse se resumir a simples comportamentos e não avançasse para as águas

profundas da experiência existencial da liberdade. Mas, até ali, eu acreditava que

ninguém ainda me havia mostrado, na Psicologia, mais do que tão somente uma

porta de entrada para algo mais interessante. Convencia-me de que, se eu


atravessasse aquele umbral, poderia encontrar a pessoa humana: aquela que,

mais do que se comportar, vive a própria condição humana na sua integralidade,

inclusive a dor da perda da liberdade mas também a vive o desejo de se realizar no

exercício da própria liberdade e responsabilidade.

Foi quando caí numa sala de aula da UFMG, em agosto de 1995. Na primeira aula a

que assisti, a professora de Psicologia Geral e Experimental apresentou o já

conhecido por mim esquema básico de estímulo-resposta: “Se conhecemos a

resposta, podemos concluir qual foi o estímulo. Se dominarmos os estímulos

corretos, podemos fazer qualquer um se comportar conforme o nosso interesse”.

“Mas, e a liberdade, professora? Eu posso me negar a me comportar conforme o

que a senhora espera, apesar do estímulo que me dá”, lancei. “Não existe

liberdade. Essa é uma preocupação de poetas. E, se seguir ocupado disto, se

tornará um psicólogo medíocre”. Era o mesmo argumento do meu professor de

Kant, porém seguido de um vaticínio. Mas então, se a poesia me permitisse seguir

olhando para a pessoa humana, o melhor seria não me afastar dela, enquanto

atravessasse o umbral daquela porta. Tomei-a – e à literatura, à história, à

antropologia e à teologia – como guia, como lanterna que me poderia indicar o

caminho por aquele quarto escuro que, naquele momento, pareceu ser ainda mais

a Psicologia.

Por mais de três anos, segui naquelas penumbras, tropeçando aqui e ali,

interrompendo o passo, pensando em desistir: o lume da minha laterna era

vacilante ainda. Só não parava porque não queria ter que quebrar a cabeça em

outras sendas, mas também porque eu não estava sozinho – eu tinha uma

companhia que me lembrava constantemente da necessidade de prosseguir. E, de

alguma maneira, também o mistério da pessoa humana me atiçava a seguir.

Foi nos últimos semestres do curso que, finalmente, encontrei um professor que,

mais do que insistir nas sombras, iluminava o caminho. Com ele, descobri Edmund

Husserl, Edith Stein, Paul Ricoeur, Viktor Frankl... Encontrava neles bons

companheiros que sabiam avivar o lume da minha laterna, homens e mulheres

que sabiam por onde caminhar. E foram eles que me fizeram colocar a pergunta

correta: será que esta Psicologia é mesmo capaz de encontrar a pessoa humana?

Foi essa pergunta que me fez ir atrás de mais conhecimento: afinal, como esta
Psicologia se tornou o que se tornou? Por que ela aceitou caminhar às cegas?

Haverá formas de corrigir esse desvio de rota? Terá mesmo havido um desvio de

rota? Embrenhei-me, nesse momento, pelos caminhos da História, e esbarrei

numa Psicologia que olhava para a pessoa humana e considerava sua liberdade.

Nessa altura, eu estava na USP, fazendo meu doutorado.

Ainda não me arriscava na clínica, porque a prática que eu conhecia não me

parecia sólida o suficiente, exatamente por não saber para onde me impingia a

olhar: comportamento, disfunções cognitivas, neuroses, psicoses, sofrimentos de

ordem social? Sabia que era pouco demais: era como olhar para a unha da mão de

alguém e não conseguir ver este alguém. Além do que eu “aprendera” na

graduação ser, já naquela época, muito cheio de lacunas, também aquilo que eu

estava conhecendo no doutorado parecia não aplicável, pois cheirava a poeira:

temperamentos, psicologia-filosófica, teologia moral, retórica ciceroniana? Serviu

no passado, servirá agora? Como? É possível uma transposição? Não me parecia,

ainda, admissível trazer aquilo para a minha prática.

O fato é que, anos mais tarde, terminado o doutorado e o pós-doutorado em

literatura, quando comecei a atuar com orientação vocacional, cada um dos

encontros feitos com os gigantes de antanho foi se condensando num modo de

atuar e tudo começou a fazer sentido. Até ao ponto de, 18 anos depois de ter me

dedicado quase que exclusivamente à docência e à pesquisa, eu conseguir

alinhavar os anos de estudo num todo que me permitiu desenvolver um modo de

atuação em que nada do que conheci fosse deixado de lado.

Hoje, se olho para trás e me pergunto o que poderia ter sido diferente, fica-me

evidente que nada seria alterado. Mas, se não fosse um erro as tantas lamúrias que

resmungamos na vida, eu diria que lamento não ter encontrado, mais cedo,

alguém que me aconselhasse a, em primeiro lugar, não deixar calado o incômodo

com uma compreensão simplista e reducionista da pessoa humana; em segundo

lugar, a seguir com segurança os caminhos indicados pela longuíssima tradição

filosófica que precedeu o surgimento da Psicologia moderna; em terceiro lugar, a

me esforçar ainda mais na busca pelo humano em tudo aquilo que o homem

produziu e deixou como herança cultural para todas as gerações, ou seja, a


literatura, a poesia, o teatro, a arte etc.; e, finalmente, a confiar na experiência que

faço da minha própria condição humana, que é o filtro a permitir que sempre

considere de forma amorosa o que há de propriamente humano em cada pessoa

com quem eu me encontrasse. Tudo isto, talvez, se resumisse num só conselho:

“Não pare de se perguntar!”

Terapeuta, sei que cada um é convocado pela vida a fazer seu próprio caminho.

Não espero e nem quero – além de ser impossível – que você faça o caminho que

me foi dado fazer. Mas, espero que você não tenha nunca como companheira de

viagem a Tranqüilidade. O Incômodo é muito melhor companheiro: ele provoca, é

ele quem faz você perguntar, ele impulsiona a não desistir, é um guia que não se

satisfaz com as migalhas deixadas no caminho, ele quer mais e mais. E você irá

encontrá-lo, por incrível que possa parecer, nas entrelinhas de cada realidade

humana com a qual esbarrar – de um livro ao seu cliente, de uma poesia aos seus

próprios movimentos interiores...

Se eu puder ser, na sua vida, no espaço de tempo em que estiver ao seu lado, o

Espantalho da Tranqüilidade, darei por certo que, num pequeno âmbito da minha

vida – o trabalho –, eu cumpri o que me foi pedido.

Gosto de dizer uma coisa, para me despedir: “Te abraço”. E faço-o em segunda

pessoa porque, dessa forma fica mais evidente a sua condição, terapeuta, de “Tu”:

não haveria um “Eu” sem um “Tu”. Portanto,

Te abraço.

D.r Paulo Pacheco.

Você também pode gostar