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RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA: COMBATENDO O RACISMO

RELIGIOSO NA SALA DE AULA

Prof. Walter Lippold

As religiões de matriz africana no Brasil possuem uma importância cultural


que muitas vezes é ocultada por nossa sociedade racista e eurocêntrica. O
espaço sagrado da terreira, da casa de religião, assim como suas redes de
sociabilidade, foram historicamente zonas de resistência cultural negra, onde
saberes tradicionais africanos foram guardados e muitas vezes ressignificados
através de hibridizações com a cultura indígena, e também por meio das tensões
e imposições religiosas do cristianismo professado pelos colonizadores brancos.
Os povos africanos que vieram para o Brasil, através dos circuitos do
tráfico escravista colonial, empreenderam um verdadeiro processo civilizatório
ao trazerem técnicas de mineração, construção, criação de gado, arte, culinária,
entre tantas outras contribuições culturais. Cabe lembrar que o colonizador
europeu não só saqueava as riquezas materiais: antes da chegada dos africanos
já explorava a força de trabalho de indígenas, apropriando-se assim de uma série
de conhecimentos topográficos, aprendendo como viver nestas terras, o que
comer e como se deslocar no interior do Brasil. Antes da invasão europeia, os
Tupis, através de sua marcha pelo Brasil, já haviam nomeado rios, montanhas,
praias. Mesmo com todas suas contribuições evidentes na formação da
sociedade brasileira, estes processos de inventividade e produção de saberes
efetivados pelos indígenas e africanos, foram subalternizados1 e ocultados pela
História colonialista que ainda influencia nossas salas de aulas, sob a égide do
eurocentrismo.
A grande função ideológica do racismo foi justificar e perpetuar o núcleo de
relações de produção do sistema colonial, ou seja, o escravismo. Os crimes históricos do
colonialismo europeu são bem conhecidos pelo mundo: etnocídio, saque, roubo e
exploração predatória dos recursos naturais, epistemicídios. Primeiramente construído

1
Para saber mais sobre o conceito de subalternidade, clique aqui para ler o ensaio “Pode o Subalterno
Falar? da pensadora indiana Gayatri Spivak
sobre bases religiosas cristãs2, a partir do século XIX, o racismo passa a ser intitulado
de científico, dentro de uma concepção que afirmava a existência de raças superiores e
inferiores. Obviamente o branco colonizador se colocava no topo desta hierarquia racial.

RACISMO E EUROCENTRISMO NO BRASIL

A sociedade brasileira está marcada pela ideologia da democracia racial, um


mito fundador que projeta o Brasil como um paraíso de harmonia racial, onde o racismo
é retratado como ameno ou até inexistente. Diferenciando-se do racismo segregacionista
que imperou nos Estados Unidos, no Brasil podemos afirmar um elemento
assimilacionista como núcleo fundamental das estruturas racistas. Um processo de
branqueamento que visa destruir a identidade negra brasileira, através de mecanismosde
epidermização3 que atacam e despersonalizam os sujeitos negros. Neste sentido as
crianças negras são o alvo mais constante neste processo de epidermização: a imposição
de uma normatividade estética baseada em uma hegemonia e imposição da beleza
branca eurodescendente como padrão estético; a destituição e ocultamento da História
Africana e dos negros brasileiros; o embranquecimento de personalidades históricas
afrodescendentes; a demonização das religiões de matriz africana e da cultura
afrobrasileira em geral; um olhar que fixa a cultura negra dentro dos moldes do exótico,
do pitoresco, do demoníaco; a subalternização da população negra através da intersecção
das opressões de raça, classe e de gênero, colocando a mulher negra no último degrau da
escala de subalternidade. Este processo de epidermização encontra na mídia e na escola
dois aparelhos orgânicos de reprodução e manutenção do racismo, dos mecanismos de
poder da branquitude.
O racismo brasileiro não é fruto da ignorância ou de uma minoria de racistas
fanáticos: é um fenômeno de primeira importância social que está calcado em bases

2
Na Europa medieval criou-se o mito da Maldição de Cam. Segundo a Gênesis, Noé teve três filhos: Cam,
Sem e Jafé. Cada um destes filhos teria dado origem aos povos do mundo. Jafé seria o ancestral da Europa,
Sem da Ásia e Cam da África. Noé plantou uma videira, fez vinho e ficou embriagado e nú. Seu filho Cam
viu o pai nú o que acarretou a maldição sobre seu filho Canaã. Mas criou-se a explicação de que a origem
dos negros seria a Maldição de Cam, a pele de Cam teria enegrecido pela ação da maldição. Veja o trecho
bíblico acerca deste tema: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/9/18-25 .
3
Conceito criado por Frantz Fanon, um dos mais importantes pensadores do século XX. Fanon em sua
obra Pele Negra, Máscaras Brancas, explica que a epidermização é o processo de internalização do racismo
no próprio negro, que acaba se alienando pelos padrões impostos pela branquitude. Desenvolveu sua teoria
sobre alienação, racismo e descolonização atuando como protagonista na Revolução Argelina. Clique aqui
para ler o livro Pele Negras, Máscaras Brancas.
estruturais, institucionais. Assim, mesmo aquele indivíduo branco que não se identifica
com o discurso racista, que inclusive visa combatê-lo e ser radicalmente contra o
preconceito e a discriminação de cunho racial, não pode fugir das vantagens obtidas
pela sua condição de branco. O que quero afirmar é que um branco no Brasil reproduz
os mecanismos racistas mesmo sendo contra o racismo. Muitos brancos querendo apoiar
a luta negra acabam por reproduzir um sentimento paternalista, uma “síndrome de
Princesa Isabel”, inclusive disputando espaços de protagonismo negro.
A Educação brasileira, em todos os níveis, está perpassada pelo eurocentrismo,
uma ideologia que está presente nos currículos, conteúdos ministrados, nas práticas
pedagógicas, principalmente no ensino de Ciências Humanas. O eurocentrismo coloca a
Europa como única protagonista da História Mundial, ocultando as contribuições
históricas fundamentais dos povos africanos, asiáticos e americanos.
A escola como um não lugar para os negros constituiu-se pela
invisibilidade, pelo esquecimento. E também pelas políticas de
negação do reconhecimento direito às diferenças. A história da
educação do negro traz para o nosso convívio determinações
históricas de exclusão. Mas, também, traz possibilidades pelas
identidades que revela, pelas formas de resistência cultural, pela
tradição da história resguardada pelas práticas educativas populares,
pelos valores ancestrais perpetuados pela memória dos mais velhos.
(ROMÃO, 2005, p.17)

O ensino de História da África, antes do advento das Leis n° 10.639/2003 e n°


11.645/2008, era praticamente nulo nas aulas de nível fundamental e médio: o continente
africano e seus povos só eram citados quando o europeu branco e cristão entrava em
contato com eles. O eurocentrismo está presente em livros, em formas de dividir a História
e também em mapas geográficos.
O racismo é reforçado pelo eurocentrismo, esta ideologia que coloca a Europa
como centro de uma “História Universal” e em algumas versões é colocada como única
civilização possível e como detentora de um destino civilizador. Na formação de
professores e pesquisadores, ou seja, no Ensino Superior, incluindo os programas de pós-
graduação, o eurocentrismo se materializa como descaso e invisibilidade dos estudos
sobre a África e os afro-brasileiros.
Nesse cenário, surge o desafio de se pensar em como efetivar a superação do
eurocentrismo e do racismo em sala de aula se na sua formação inicial os professores e
professoras foram alijados de estudar a história e cultura africana e afro-brasileira? Como
pensar essa superação, observando o número ínfimo de professores e estudantes
negros no Ensino Superior? Ainda, podemos nos desafiar a pensar em como nossas alunas
e alunos representam o continente africano?
“País dos Negros”, leões, girafas e elefantes, guerras, epidemias de Aids e Ebola,
pobreza e atraso cultural, selva, canibalismo são as representações mais comuns.
Problematizar estas representações, os estereótipos ligados ao exótico e selvagem, as
visões de uma África homogênea, é nosso trabalho primordial.
Para que estas representações se manifestem em nossa sala de aula, não é
necessário grande esforço: faça um exercício de livre associação com a palavra África
ou com imagens do continente africano. Peça aos estudantes que escrevam tudo o que
vem em sua cabeça sobre a África. Verás como é definidor o papel da mídia, dos desenhos
infantis, filmes e da publicidade na construção e reprodução destas representações, destes
estereótipos degradantes.
A África é um continente que abarca 54 países e uma profunda diversidade de
povos, línguas, culturas, espaços geográficos. Esta enorme diversidade é apagada através
do processo ideológico que cria a visão de uma África homogênea e este é o mesmo
fenômeno que se manifesta quanto às religiões de matriz africana no Brasil: designadas
de modo homogêneo sob os termos “macumba”, “saravá”. Vemos a ignorância sobre a
diversidade afro-religiosa ocultar as diferenças que existem entre estas religiões.
Certamente podemos elencar muitos elementos em comum que perpassam as religiões
afro-brasileiras: a oralidade, a musicalidade, o culto aos ancestrais, a crença em uma
energia vital. Por muito tempo classificadas como manifestações do
fetichismo/animismo, hoje estes conceitos são duramente criticados como
homogeneizadores e eurocêntricos.
Durante o escravismo atlântico, era almejada pelo projeto colonialista a destruição
da memória e da cultura dos africanos escravizados. Nestes termos, as religiões dos povos
africanos escravizados eram vistas pelo colonizador como elementos culturais
identitários que poderiam colocar em perigo a ordem escravista colonial. Imbuídos por
uma visão cruzadista católica de combate ao outro “infiel” ou “pagão” ou pela ideologia
do destino manifesto ligado a certos grupos protestantes, os colonizadores na América do
Sul (portugueses e espanhóis) e na América do Norte (ingleses), usaram o cristianismo
como arma ideológica na tentativa de destruir as possibilidades de sociabilidade e
resistência dos africanos.
RACISMO RELIGIOSO E SALA DE AULA

Um dos grandes desafios para a aplicação das Leis n.º 11.645/2008 e n.º
10.639/2003 na sala de aula é o combate ao preconceito e discriminação contra as
religiões de matriz africana. Este desafio se torna cada vez maior quando levamos em
conta o crescimento de discursos preconceituosos, por parte de certos grupos religiosos
que além de intolerantes, possuem um crescente e perigoso poder político e midiático,
elegendo bancadas nos espaços do legislativo que demonstram ter como um de seus
principais interesses, entre outros, a imposição do ódio e da aversão às religiões de
matriz africana sob a forma de Leis. Neste contexto, faz-se necessário na sociedade
brasileira um profundo debate sobre as relações entre religião e política, educação e
laicidade, temas de extrema importância e atualidade para nós professores e professoras.
Em certo dia, em uma sala de aula do Bairro Restinga, em Porto Alegre,
questionei a turma sobre quais religiões professavam. Logo alguns alunos responderam
que eram católicos, evangélicos, espíritas e até mesmo ateus. Foi então que um aluno
apontou para outro - rindo - e disse: “aquele ali é batuqueiro sor.”
Risadas ecoaram em toda a sala e o aluno “acusado” de ser batuqueiro ficou
cabisbaixo e incomodado com a situação. Prontamente, eu disse que gostava muito das
religiões de matriz africana e que frequenta estes espaços religiosos. Alguns alunos me
olharam com espanto, no entanto outros demonstraram identificação: logo após assumir
minha proximidade com o Batuque e a Umbanda, algumas alunas e alunos sentiram-se
encorajados e também assumiram que eram afro-religiosos, mostraram suas seguranças
e comentaram sobre suas experiências pessoais.
Os alunos afro-religiosos possuem receio de assumir sua crença na escola por
serem estigmatizados, motivo de chacota e até mesmo em razão de terem consciência das
discriminações que suas religiões sofrem. Não são poucas as notícias4 que circulam sobre
atos violentos contra pessoas e espaços de religiosidade de matriz africana. Deste modo,
acabam por criar este mecanismo de defesa, principalmente em espaços onde a
branquitude opera com grande poder. Constantemente essas pessoas são vítimas de
ataques contra seus símbolos sagrados, que são destruídos por adeptos de instituições
religiosas racistas. No Brasil a liberdade religiosa é garantida por Lei, através da

4
Um exemplo destes ataques pode ser visto neste vídeo: https://youtu.be/rLPm_BhDT6A . Leia
também esta reportagem sobre o assunto: https://www.sul21.com.br/jornal/religioes-de-matriz-
africana-enfrentam-ataques-e-lutam-para-preservar-cultura-e-territorios-negros/
Constituição Federal - mais precisamente nos incisos VI e VII do Artigo 5°. No entanto,
devido a nossa história marcada pelo colonialismo, escravismo e racismo, os preconceitos
acerca das religiões de matriz afro se manifestam na sociedade brasileira, reforçando a
intolerância religiosa.
Mas será o termo intolerância adequado para designar esse fenômeno? O
Professor Munanga nos ensina que, racismo religioso, é mais apropriado para se referir
ao
[...]que muitos denominam intolerância religiosa. Mas o que buscam as vítimas
da chamada intolerância não é ser tolerada, pois tolerar subentende que há um
grupo de pessoas ocupando uma posição superior e que aceitam que as outras,
numa posição inferior, possam ter a liberdade de cultuar seus deuses.
Visto deste ângulo, eu considero impróprias as palavras tolerar e intolerar, pois
ninguém luta, trabalha e constrói para ser tolerado por outro, mas no mínimo
para ser respeitado e tratado igualmente em termos de direitos humanos
fundamentais, entre os quais se inclui a liberdade de crenças, cultos e religiões.
O que as religiões de matriz africana vivem no Brasil, hoje, não é a intolerância
em si. É uma discriminação racial embutida no racismo à brasileira e que visa
sua eliminação total do universo religioso brasileiro, que é por definição plural.
É um crime inominável que deve ser combatido e condenado pelas leis do país.
(MUNANGA, 2020, p.21)

Posso afirmar, após 15 anos como professor no Ensino Fundamental, Médio e


Superior, que a sala de aula é um dos espaços onde o racismo e o eurocentrismo se
reproduzem, assim como o racismo religioso e a afroteofobia.

O termo afroteofobia aqui apresentado foi usado e discutido pela


primeira vez pelo professor e teólogo afro Jayro Pereira de Jesus , e
se refere à postura de medo das tradições de matriz africana incutida
culturalmente nas pessoas, tornando-as discriminatórias,
preconceituosas e intolerantes a todo e qualquer símbolo, signo, rito e
valor da matriz civilizatória africana. (SILVEIRA; CUSTÓDIO, 2017, p.
38).

A afroteofobia em sala de aula, assim como a perpetuação de uma visão de mundo


eurocêntrica nos conteúdos e nos métodos pedagógicos, são elementos de um processo
maior de sistemática tentativa de destruição das possibilidades de construção de uma
identidade negra no Brasil. Mesmo com todo rol de mecanismos reprodutores do
racismo, a população negra resistiu criando novas identidades afro-diaspóricas.

DIÁSPORA AFRICANA E RELIGIÕES


O termo diáspora significa dispersão de um povo. No caso da Diáspora Africana,
foi um fenômeno de extrema importância histórica, base para a acumulação primitiva que
deu origem ao capitalismo e a uma contracultura da modernidade, seu verdadeiro lado B5.
A modernidade com suas bases iluministas, buscava calcar-se na razão, no humanismo,
mas, contraditoriamente, por outro lado não via os povos colonizados como detentores
dessa possibilidade de emancipação: o Homem cantado pelo projeto iluminista-moderno,
na verdade não era universal, era uma abstração

ideológica, mais precisamente era visto como um europeu do gênero masculino.


Para combater a intolerância contras as religiões de matriz africana é importante
conhecer as bases culturais de onde surgiram, ou seja, quais os povos africanos que vieram
para o Brasil. Assim podemos compreender a sua diversidade, complexidade e
sofisticação cultural-religiosa. Em primeiro lugar, os povos africanos são classificados
como sudaneses e bantus: os sudaneses vivem na África Ocidental, para o Brasil vieram
os iorubá, os ewe-fon e os hauça; os bantu ocupam a parte centro-sul africana, vieram
para cá os bakongo, os ambundos, os ovimbundos e os quíloa. Em uma música de Jorge
Ben chamada Zumbi6, podemos ouvir os nomes como eram conhecidos estes povos no
Brasil, nomes dados pelos colonizadores levando em conta o porto de embarque em
África.
Observe a tabela abaixo:
5
Sobre este tema indico duas obras fundamentais: a obra do inglês Paul Gilroy, Atlântico Negro e a obra
do camaronês Achille Mbembe, Necropolítica.
6
CLIQUE AQUI para ouvir a música.

Mapa Sudaneses e Bantus na Diáspora Africana


Fonte: Internet (
Após participar, ao longo das últimas duas décadas, de cursos e palestras sobre
História e Cultura Afro-Brasileira, percebi que muitos palestrantes, colegas professores,
ativistas, trocavam nomes de povos por sua língua ou afirmavam serem diferentes o
mesmo povo. Um dia ouvi em uma palestra que os nagôs e o iorubás eram dois povos
diferenciados, por exemplo. Assim, decidimos produzir um material que pudesse apoiar
os professores na aplicação da Lei n.º 10.639/2003. Mas, de onde partir? Foi então que,
ouvindo a música Zumbi, de Jorge Ben, anotei todos os povos que ele nomeava:Angola,
Congo, Benguela, Monjolo, Cabinda, Mina, Quíloa, Rebolo… Com esta base partimos
para os livros, encontrando muitas informações na Enciclopédia Brasileira da Diáspora
Africana, de Nei Lopes (2004).
Estima-se que mais de 10 milhões de africanos foram trazidos para as Américas
pelo tráfico escravista. O Brasil recebeu cerca de 4 milhões de africanos, sendo que 75%
dos que aqui chegaram pertenciam aos povos de língua bantu7.
A influência dos povos bantu no Brasil foi profunda e abrangente: traziamsaberes-
fazeres ligados a economia (mineração, metalurgia, criação de gado, etc.); marcaram o
modo como falamos a língua portuguesa; criaram as bases da cultura afro- brasileira,
inclusive em termos de religiosidade. Vindos principalmente durante o século

7
Segundo Adriano de Melo. Ver http://www.palmares.gov.br/archives/2889?lang=es
XVII, devido ao tempo que aqui já estavam, suas religiões foram diluídas formando
uma religiosidade híbrida de cunho popular. Além do mais, o Reino do Congo já no
final do século XV, sofria um processo de cristianização com a chegada dos portugueses.
Os povos bantu acreditam no Deus que chamam de Zâmbi (Nzambi), o ser
supremo incriado, criador de todas as coisas, de todos os seres. A religiosidade bantu é
“antropocêntrica e vital”8, já que no centro da criação está o muntu, o ser humano. Além
do culto a ancestrais, os bantu acreditavam em entidades intermediárias que chamaram
de nkisis (inquices), divindades abaixo de Zâmbi ligadas às forças da natureza. São
comparadas aos orixás de origem iorubá e aos voduns de origem ewe-fon.
Pambu Njila é o nkisi que faz a intermediação entre os seres humanos e os demais
nkisis: é o senhor do movimento, dos caminhos e encruzilhadas, sendo muitas vezes
comparado ao orixá Exú, de origem iorubá. Kisimbi é a nkisi que representa a fertilidade
feminina e tem sua morada nas águas doces. Nkosi é o senhor da metalurgia, das
tecnologias, o guerreiro que muitas vezes é aproximado do orixá Ogum.
As religiões de origem bantu são a base de onde se originaram a Umbanda, a
Quimbanda e os Candomblés Bantu (Congo-Angola). Devido a imposições do
cristianismo dominante e as influências mútuas com a religião nagô (iorubá), pode-se
afirmar que a religiosidade bantu foi relegada a segundo plano no Brasil: certamente os
orixás são muito mais conhecidos do que os nkisis.
Os povos iorubá vieram em massa para o Brasil, principalmente para Salvador,
a partir do século XVIII até o início do século XIX. Talvez por terem vindo em tempos
mais recentes, puderam manter viva na memória a sua religião. Acreditam em um Deus
chamado de Olorum, criador do mundo espiritual (Òrun) e do mundo físico (Àiyé).
Olorum também criou o axé, que é a energia, a força responsável pela vida. Criou os
orixás, forças da natureza que também aparecem como ancestrais divinizados. Os nagô,
como eram chamados os iorubás no Brasil, também cultuavam os mortos, chamados de
Eguns.
Os ewe-fon são originários da região do atual Benin, anteriormente ali estava o
Reino de Daomé. No Brasil eram conhecidos como jeje-mina. Vizinhos dos iorubá,
cultuavam os voduns, entidades semelhantes aos orixás e tinham Mawu como deusa
criadora. Influenciaram na criação de religiões como o Vodu haitiano e o Tambor-de-

8
Informação retirada do documentário Matriz Afro em O Povo Brasileiro, para vê-lo CLIQUE AQUI.
Mina no Brasil. No Vodu Haitiano, os voduns são chamados de loás: Legbá é geralmente
aproximado com o orixá Exú: senhor dos caminhos, da sexualidade, do movimento e dos
mercados.
A Diáspora Africana nas Américas foi um processo violento de desumanização
dos africanos, mas mesmo sob condições de dominação escravista, eles trouxeram seus
saberes tradicionais e souberam mantê-los e recriá-los: demonstraram sua criatividade ao
reinventar e adaptar suas tradições. No caso das religiões de matriz africana há um grande
debate sobre pureza, sincretismo e hibridismo cultural.
Será que estas religiões mantiveram intactas suas bases africanas, sendo
reproduções em solo americano de suas formas em África? Seriam novas religiões, que
mesmo mantendo aspectos fundamentais das tradições africanas, foram recriadas nas
Américas através de hibridismos culturais? Seriam fruto do sincretismo religioso, pois
para poderem se manifestar adotaram santos católicos que representavam seus orixás,
como no caso do povo iorubá? Nei Lopes afirma que o conceito de sincretismo é
inadequado para compreender…
No mapa abaixo é possível visualizar algumas das religiões de matriz africana
criadas na Diáspora:
Criei este mapa para demonstrar três aspectos fundamentais quanto às religiões de matriz
africana: primeiro, sua grande diversidade; segundo, sua dispersão por toda a América; terceiro,
suas conexões e aproximações.
Quanto ao primeiro aspecto, como já afirmei anteriormente, um dos
preconceitos fundamentais acerca das religiões de matriz afro é a generalização,
a sua homogeneização sob termos hoje pejorativos como macumba. Como
vocês podem observar no mapa, há uma uma grande diversidade destas
religiões, compostas por diferentes bases religiosas vindas da África. Em relação
ao segundo aspecto, as religiões de matriz africana estão presentes em muitos
países do continente americano: na América do Norte, no sul do Estados Unidos
(Santeria, Louisiana Voodoo); no Caribe, em Cuba (Regla de Ocha, Lukumí,
Palo), no Haiti e República Dominicana (Vodu); na América do Sul, no Brasil
(Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Batuque, Jurema, Catimbó, Tambor-de-
Mina, Xangô). Atualmente pode-se observar um fenômeno de
transnacionalização de religiões afro-brasileiras como o Batuque, a Umbanda e
a Quimbanda para o Uruguai e Argentina (ORO, 1999). Oterceiro aspecto que
destaco relaciona-se com elementos que aproximam as religiões afro-
diaspóricas, devido às suas origens africanas. Assim como no Brasil o Batuque
e o Candomblé cultuam os orixás, o mesmo ocorre na Regla de Ocha cubana,
pois estas três religiões possuem uma base comum deorigem iorubá. O Vodu
haitiano cultua os loás, nome que dão aos voduns da religião de raiz africana
ewe-fon, cultuados também pelo Tambor-de-Mina no Maranhão. O sincretismo
entre orixás iorubanos ou voduns ewe-fon com santos católicos é outro
fenômeno que perpassa estas religiões.

Existem outros elementos importantes que aproximam as religiões afro-


diaspóricas e estão presentes no modo como seus adeptos vivenciam a
religiosidade, em sua organização religiosa e rituais. A aprendizagem ocorre
através da vivência e da oralidade, os segredos são revelados somente aos
iniciados. O poder da palavra é um dos seus fundamentos, assim como a
musicalidade e a corporeidade que se manifesta na dança das entidades que
incorporam nos iniciados durante o transe. Os chamados “aparelhos”, “cavalos
de santo” ou médiuns, recebem as entidades por meio do toque dos tambores,
de suas rezas e pontos cantados. No caso dos orixás, cada um possui o seu
toque de tambor, as suas rezas, seus trejeitos, cores, ferramentas e símbolos.
A questão da sacralização de animais é certamente um dos elementos
mais atacados nas religiões de matriz africana, principalmente por discursos
hipócritas de pessoas que aceitam a morte e sofrimento serializado de animas
na indústria de alimentos ao comer carne. Organizações de defesa dos direitos
animais e indivíduos ligados ao veganismo atacam os afro-religiosos ao invés de
empreender ações contra matadouros. Um dos argumentos existentes neste
ataque é o suposto desperdício e a futilidade do ato de matar um animal para
fins religiosos (SILVEIRA; CUSTÓDIO, 2017).

Na Teologia do Sacrifício, os animais sacralizados são completamente


utilizados: o sangue e algumas partes não comestíveis são entregues
em oferenda aos Orixás e depois de um tempo são enterradas; as
carnes e miúdos são preparados em pratos típicos para alimentação;
outras partes não comestíveis são enterradas para alimentar a Terra;
o couro dos quadrúpedes são utilizados para encourar os tambores.
Não há desperdício. (SILVEIRA; CUSTÓDIO, 2017, p. 45)

Resta o argumento dos vulgarmente chamados “despachos” na rua. Há umdebate


interno nas religiões afro-brasileiras que envolve a defesa da natureza, já que, como diz
o provérbio iorubá: Kó si ewé, kó sí Òrìsà, sem folha não há orixá. Estas religiões possuem
sua base vital no culto a natureza e seus arquétipos, ou seja, utilizar materiais plásticos ou
que não sejam biodegradáveis nas oferendas não seria adequado pois fere a ética das
tradições religiosas de matriz africana.

RIO GRANDE DO SUL: O ESTADO MAIS AFRORELIGIOSO DO


BRASIL

Na constituição de uma identidade cultural em nosso Estado, destaca-se de modo


predominante, a influência europeia em nossa formação. Exalta-se o papel econômico e
cultural dos açorianos, dos imigrantes de origem alemã e italiana, mas pouco ou nada se
fiz sobre as contribuições dos africanos. Poucos sabem que o Rio Grande do Sul é o
Estado mais afro-religioso do Brasil!
Quanto ao número de indivíduos que se declaram pertencentes às religiões
afro-brasileiras, chamou a atenção no recenseamento realizado pelo IBGE no
ano 2000, o fato de o Rio Grande do Sul aparecer como o Estado brasileiro em
que, em termos proporcionais, mais indivíduos disseram pertencer a essas
religiões. Era, então, 1,62% da população gaúcha, contra 1,31% da população
do Estado do Rio de Janeiro, que ocupava o segundo lugar. A Bahia aparecia
somente com 0,08% da população que se declarou seguidora das religiões afro-
brasileiras. No Brasil como um todo, 0,3% da população se manifestou como
pertencente ao segmento religioso afro-brasileiro.
No Censo de 2010, realizado também pelo IBGE, a média nacional de
identificação de pertencimento ao segmento afro-religioso se manteve em
0,3% da população. Novamente o Rio Grande do Sul apareceu como oEstado
com o índice mais elevado de indivíduos que se declararam pertencentes às
religiões afro-brasileiras. Desta feita, o Rio Grande do Sul também aparece
como recordista nacional em números absolutos de indivíduos vinculados às
religiões afro-brasileiras. De fato, são 157.599 indivíduos deste Estado, o que
corresponde, a 1,47% da população total, que reivindicaram o seu
pertencimento religioso afro-brasileiro. Esta porcentagem sobe para 2,52% se
tomarmos como referência a Região Metropolitana de Porto Alegre e para
3,35% se nos restringirmos somente a Porto Alegre. [...] (ORO, 2012, p. 558).

No Rio Grande do Sul, além da Umbanda e da Quimbanda, presentes em todo


Brasil, encontra-se uma religião genuinamente afro-gaúcha, o chamado Batuque, aNação.

A Linha Cruzada, ou Quimbanda, constitui uma das expressões que compõem


o complexo afro-religioso gaúcho, ao lado do Batuque e da Umbanda. Ela se
caracteriza, fundamentalmente, pelo culto às entidades tipificadas como Exus
e Pombagiras. Já o Batuque representa a face mais africana do complexo, pois
a língua litúrgica é a nagô, os símbolos utilizados são aqueles dos antepassados,
as entidades veneradas são os orixás e há uma identificação às “nações”
africanas. Enfim, a Umbanda, tal como no resto do país, representa o lado mais
“brasileiro” das três modalidades afro-religiosas, pois consiste num importante
sincretismo que agrega em seu repertório simbólico elementos do catolicismo
popular, do espiritismo kardecista e das religiosidades indígenas e africanas.
Seus rituais são celebrados em língua portuguesa e as entidades veneradas
são, sobretudo, os “caboclos” (índios), os “pretos-velhos” e os “bejis”
(crianças), além das “falanges” africanas. (ORO, 2012, p.557)

As origens do Batuque se remetem à região das grandes charqueadas, Pelotas e o


porto de Rio Grande, principalmente pela grande presença de escravizados nas
charqueadas. Um dos personagens históricos mais importantes para a religião afro-
riograndense é o Príncipe Custódio1, vindo de Daomé (hoje Benin), após residir em
diversas cidades do Brasil, fixou-se em Porto Alegre e em algumas narrativas
sobre ele aparece como o criador do Bará do Mercado Público, espaço sagrado
de fundamental importância para o Batuque.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2004.

MUNANGA, Kabengele. Apresentação. CIRNE, A. Racismo religioso em escolas da


Bahia autoafirmação e inclusão de crianças e jovens de terreiro. Ilhéus: Editus, 2020.
Disponível em: <https://books.scielo.org/id/qfnhd/pdf/cirne-9786586213294.pdf>
Acesso em: 02 fev. 2023.

ORO, Ari Pedro. Axé Mercosul: As Religiões Afro-Brasileiras nos Países do Prata.
Petrópolis: Editora Vozes, 1999.

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