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Religiões de Matriz Africana - Versão 2023 - Ajustado
Religiões de Matriz Africana - Versão 2023 - Ajustado
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Para saber mais sobre o conceito de subalternidade, clique aqui para ler o ensaio “Pode o Subalterno
Falar? da pensadora indiana Gayatri Spivak
sobre bases religiosas cristãs2, a partir do século XIX, o racismo passa a ser intitulado
de científico, dentro de uma concepção que afirmava a existência de raças superiores e
inferiores. Obviamente o branco colonizador se colocava no topo desta hierarquia racial.
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Na Europa medieval criou-se o mito da Maldição de Cam. Segundo a Gênesis, Noé teve três filhos: Cam,
Sem e Jafé. Cada um destes filhos teria dado origem aos povos do mundo. Jafé seria o ancestral da Europa,
Sem da Ásia e Cam da África. Noé plantou uma videira, fez vinho e ficou embriagado e nú. Seu filho Cam
viu o pai nú o que acarretou a maldição sobre seu filho Canaã. Mas criou-se a explicação de que a origem
dos negros seria a Maldição de Cam, a pele de Cam teria enegrecido pela ação da maldição. Veja o trecho
bíblico acerca deste tema: https://www.bibliaonline.com.br/acf/gn/9/18-25 .
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Conceito criado por Frantz Fanon, um dos mais importantes pensadores do século XX. Fanon em sua
obra Pele Negra, Máscaras Brancas, explica que a epidermização é o processo de internalização do racismo
no próprio negro, que acaba se alienando pelos padrões impostos pela branquitude. Desenvolveu sua teoria
sobre alienação, racismo e descolonização atuando como protagonista na Revolução Argelina. Clique aqui
para ler o livro Pele Negras, Máscaras Brancas.
estruturais, institucionais. Assim, mesmo aquele indivíduo branco que não se identifica
com o discurso racista, que inclusive visa combatê-lo e ser radicalmente contra o
preconceito e a discriminação de cunho racial, não pode fugir das vantagens obtidas
pela sua condição de branco. O que quero afirmar é que um branco no Brasil reproduz
os mecanismos racistas mesmo sendo contra o racismo. Muitos brancos querendo apoiar
a luta negra acabam por reproduzir um sentimento paternalista, uma “síndrome de
Princesa Isabel”, inclusive disputando espaços de protagonismo negro.
A Educação brasileira, em todos os níveis, está perpassada pelo eurocentrismo,
uma ideologia que está presente nos currículos, conteúdos ministrados, nas práticas
pedagógicas, principalmente no ensino de Ciências Humanas. O eurocentrismo coloca a
Europa como única protagonista da História Mundial, ocultando as contribuições
históricas fundamentais dos povos africanos, asiáticos e americanos.
A escola como um não lugar para os negros constituiu-se pela
invisibilidade, pelo esquecimento. E também pelas políticas de
negação do reconhecimento direito às diferenças. A história da
educação do negro traz para o nosso convívio determinações
históricas de exclusão. Mas, também, traz possibilidades pelas
identidades que revela, pelas formas de resistência cultural, pela
tradição da história resguardada pelas práticas educativas populares,
pelos valores ancestrais perpetuados pela memória dos mais velhos.
(ROMÃO, 2005, p.17)
Um dos grandes desafios para a aplicação das Leis n.º 11.645/2008 e n.º
10.639/2003 na sala de aula é o combate ao preconceito e discriminação contra as
religiões de matriz africana. Este desafio se torna cada vez maior quando levamos em
conta o crescimento de discursos preconceituosos, por parte de certos grupos religiosos
que além de intolerantes, possuem um crescente e perigoso poder político e midiático,
elegendo bancadas nos espaços do legislativo que demonstram ter como um de seus
principais interesses, entre outros, a imposição do ódio e da aversão às religiões de
matriz africana sob a forma de Leis. Neste contexto, faz-se necessário na sociedade
brasileira um profundo debate sobre as relações entre religião e política, educação e
laicidade, temas de extrema importância e atualidade para nós professores e professoras.
Em certo dia, em uma sala de aula do Bairro Restinga, em Porto Alegre,
questionei a turma sobre quais religiões professavam. Logo alguns alunos responderam
que eram católicos, evangélicos, espíritas e até mesmo ateus. Foi então que um aluno
apontou para outro - rindo - e disse: “aquele ali é batuqueiro sor.”
Risadas ecoaram em toda a sala e o aluno “acusado” de ser batuqueiro ficou
cabisbaixo e incomodado com a situação. Prontamente, eu disse que gostava muito das
religiões de matriz africana e que frequenta estes espaços religiosos. Alguns alunos me
olharam com espanto, no entanto outros demonstraram identificação: logo após assumir
minha proximidade com o Batuque e a Umbanda, algumas alunas e alunos sentiram-se
encorajados e também assumiram que eram afro-religiosos, mostraram suas seguranças
e comentaram sobre suas experiências pessoais.
Os alunos afro-religiosos possuem receio de assumir sua crença na escola por
serem estigmatizados, motivo de chacota e até mesmo em razão de terem consciência das
discriminações que suas religiões sofrem. Não são poucas as notícias4 que circulam sobre
atos violentos contra pessoas e espaços de religiosidade de matriz africana. Deste modo,
acabam por criar este mecanismo de defesa, principalmente em espaços onde a
branquitude opera com grande poder. Constantemente essas pessoas são vítimas de
ataques contra seus símbolos sagrados, que são destruídos por adeptos de instituições
religiosas racistas. No Brasil a liberdade religiosa é garantida por Lei, através da
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Um exemplo destes ataques pode ser visto neste vídeo: https://youtu.be/rLPm_BhDT6A . Leia
também esta reportagem sobre o assunto: https://www.sul21.com.br/jornal/religioes-de-matriz-
africana-enfrentam-ataques-e-lutam-para-preservar-cultura-e-territorios-negros/
Constituição Federal - mais precisamente nos incisos VI e VII do Artigo 5°. No entanto,
devido a nossa história marcada pelo colonialismo, escravismo e racismo, os preconceitos
acerca das religiões de matriz afro se manifestam na sociedade brasileira, reforçando a
intolerância religiosa.
Mas será o termo intolerância adequado para designar esse fenômeno? O
Professor Munanga nos ensina que, racismo religioso, é mais apropriado para se referir
ao
[...]que muitos denominam intolerância religiosa. Mas o que buscam as vítimas
da chamada intolerância não é ser tolerada, pois tolerar subentende que há um
grupo de pessoas ocupando uma posição superior e que aceitam que as outras,
numa posição inferior, possam ter a liberdade de cultuar seus deuses.
Visto deste ângulo, eu considero impróprias as palavras tolerar e intolerar, pois
ninguém luta, trabalha e constrói para ser tolerado por outro, mas no mínimo
para ser respeitado e tratado igualmente em termos de direitos humanos
fundamentais, entre os quais se inclui a liberdade de crenças, cultos e religiões.
O que as religiões de matriz africana vivem no Brasil, hoje, não é a intolerância
em si. É uma discriminação racial embutida no racismo à brasileira e que visa
sua eliminação total do universo religioso brasileiro, que é por definição plural.
É um crime inominável que deve ser combatido e condenado pelas leis do país.
(MUNANGA, 2020, p.21)
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Segundo Adriano de Melo. Ver http://www.palmares.gov.br/archives/2889?lang=es
XVII, devido ao tempo que aqui já estavam, suas religiões foram diluídas formando
uma religiosidade híbrida de cunho popular. Além do mais, o Reino do Congo já no
final do século XV, sofria um processo de cristianização com a chegada dos portugueses.
Os povos bantu acreditam no Deus que chamam de Zâmbi (Nzambi), o ser
supremo incriado, criador de todas as coisas, de todos os seres. A religiosidade bantu é
“antropocêntrica e vital”8, já que no centro da criação está o muntu, o ser humano. Além
do culto a ancestrais, os bantu acreditavam em entidades intermediárias que chamaram
de nkisis (inquices), divindades abaixo de Zâmbi ligadas às forças da natureza. São
comparadas aos orixás de origem iorubá e aos voduns de origem ewe-fon.
Pambu Njila é o nkisi que faz a intermediação entre os seres humanos e os demais
nkisis: é o senhor do movimento, dos caminhos e encruzilhadas, sendo muitas vezes
comparado ao orixá Exú, de origem iorubá. Kisimbi é a nkisi que representa a fertilidade
feminina e tem sua morada nas águas doces. Nkosi é o senhor da metalurgia, das
tecnologias, o guerreiro que muitas vezes é aproximado do orixá Ogum.
As religiões de origem bantu são a base de onde se originaram a Umbanda, a
Quimbanda e os Candomblés Bantu (Congo-Angola). Devido a imposições do
cristianismo dominante e as influências mútuas com a religião nagô (iorubá), pode-se
afirmar que a religiosidade bantu foi relegada a segundo plano no Brasil: certamente os
orixás são muito mais conhecidos do que os nkisis.
Os povos iorubá vieram em massa para o Brasil, principalmente para Salvador,
a partir do século XVIII até o início do século XIX. Talvez por terem vindo em tempos
mais recentes, puderam manter viva na memória a sua religião. Acreditam em um Deus
chamado de Olorum, criador do mundo espiritual (Òrun) e do mundo físico (Àiyé).
Olorum também criou o axé, que é a energia, a força responsável pela vida. Criou os
orixás, forças da natureza que também aparecem como ancestrais divinizados. Os nagô,
como eram chamados os iorubás no Brasil, também cultuavam os mortos, chamados de
Eguns.
Os ewe-fon são originários da região do atual Benin, anteriormente ali estava o
Reino de Daomé. No Brasil eram conhecidos como jeje-mina. Vizinhos dos iorubá,
cultuavam os voduns, entidades semelhantes aos orixás e tinham Mawu como deusa
criadora. Influenciaram na criação de religiões como o Vodu haitiano e o Tambor-de-
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Informação retirada do documentário Matriz Afro em O Povo Brasileiro, para vê-lo CLIQUE AQUI.
Mina no Brasil. No Vodu Haitiano, os voduns são chamados de loás: Legbá é geralmente
aproximado com o orixá Exú: senhor dos caminhos, da sexualidade, do movimento e dos
mercados.
A Diáspora Africana nas Américas foi um processo violento de desumanização
dos africanos, mas mesmo sob condições de dominação escravista, eles trouxeram seus
saberes tradicionais e souberam mantê-los e recriá-los: demonstraram sua criatividade ao
reinventar e adaptar suas tradições. No caso das religiões de matriz africana há um grande
debate sobre pureza, sincretismo e hibridismo cultural.
Será que estas religiões mantiveram intactas suas bases africanas, sendo
reproduções em solo americano de suas formas em África? Seriam novas religiões, que
mesmo mantendo aspectos fundamentais das tradições africanas, foram recriadas nas
Américas através de hibridismos culturais? Seriam fruto do sincretismo religioso, pois
para poderem se manifestar adotaram santos católicos que representavam seus orixás,
como no caso do povo iorubá? Nei Lopes afirma que o conceito de sincretismo é
inadequado para compreender…
No mapa abaixo é possível visualizar algumas das religiões de matriz africana
criadas na Diáspora:
Criei este mapa para demonstrar três aspectos fundamentais quanto às religiões de matriz
africana: primeiro, sua grande diversidade; segundo, sua dispersão por toda a América; terceiro,
suas conexões e aproximações.
Quanto ao primeiro aspecto, como já afirmei anteriormente, um dos
preconceitos fundamentais acerca das religiões de matriz afro é a generalização,
a sua homogeneização sob termos hoje pejorativos como macumba. Como
vocês podem observar no mapa, há uma uma grande diversidade destas
religiões, compostas por diferentes bases religiosas vindas da África. Em relação
ao segundo aspecto, as religiões de matriz africana estão presentes em muitos
países do continente americano: na América do Norte, no sul do Estados Unidos
(Santeria, Louisiana Voodoo); no Caribe, em Cuba (Regla de Ocha, Lukumí,
Palo), no Haiti e República Dominicana (Vodu); na América do Sul, no Brasil
(Umbanda, Quimbanda, Candomblé, Batuque, Jurema, Catimbó, Tambor-de-
Mina, Xangô). Atualmente pode-se observar um fenômeno de
transnacionalização de religiões afro-brasileiras como o Batuque, a Umbanda e
a Quimbanda para o Uruguai e Argentina (ORO, 1999). Oterceiro aspecto que
destaco relaciona-se com elementos que aproximam as religiões afro-
diaspóricas, devido às suas origens africanas. Assim como no Brasil o Batuque
e o Candomblé cultuam os orixás, o mesmo ocorre na Regla de Ocha cubana,
pois estas três religiões possuem uma base comum deorigem iorubá. O Vodu
haitiano cultua os loás, nome que dão aos voduns da religião de raiz africana
ewe-fon, cultuados também pelo Tambor-de-Mina no Maranhão. O sincretismo
entre orixás iorubanos ou voduns ewe-fon com santos católicos é outro
fenômeno que perpassa estas religiões.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2004.
ORO, Ari Pedro. Axé Mercosul: As Religiões Afro-Brasileiras nos Países do Prata.
Petrópolis: Editora Vozes, 1999.