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O NOVO SNA: AVANÇOS, DESAFIOS E FRUSTRAÇÕES

Walter Gomes de Sousa, psicólogo judiciário e supervisor da Seção de Colocação em Família


Substituta da Vara da Infância e da Juventude do Distrito Federal – SEFAM/VIJ-DF

Indiscutivelmente o recém-lançado Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento


(SNA), vinculado ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vem se mostrando como uma
exímia ferramenta digital que aglutina em nível nacional informações e dados mais precisos
sobre crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional, os que se
encontram aptos para adoção, todos os candidatos habilitados e as vinculações
automáticas entre potenciais adotantes e adotandos. Todos os tribunais de justiça
estaduais do país passaram a operar e a alimentar, desde o dia 12 de outubro de 2019, o
novo sistema, que foi editado pelo CNJ em agosto deste ano. Sua plataforma possui um
inédito sistema de alertas, com o qual os magistrados e as corregedorias poderão
monitorar todos os prazos referentes às crianças e aos adolescentes acolhidos e em
processo de adoção, bem como aos pretendentes. Objetiva-se a partir dessa inovação
tecnológica criar mais celeridade e efetividade na resolução dos casos e garantir maior
controle dos processos e seus eventuais incidentes. Regido pela Resolução CNJ nº 289/2019,
o SNA traz um panorama cronométrico do processo da criança e do adolescente a partir de
sua entrada no sistema da Justiça Infantojuvenil até a sua finalização, seja pela adoção, seja
pela reintegração familiar, balizando-se sempre pela observância ao princípio do superior
interesse da criança e do adolescente.

Tão logo foi anunciada, a nova ferramenta digital catapultou as expectativas das
pessoas de norte a sul do Brasil e fomentou a crença a respeito da possível redução do
tempo de espera para a concretização de uma adoção e de maior agilidade na tramitação
de processos no âmbito da Justiça Infantojuvenil. No imaginário de muitos, a partir de
agora eventuais entraves, barreiras ou óbices desaparecerão e a tão desejada adoção se
concretizará em um curtíssimo espaço de tempo. Entretanto, sem querer frustrar os
anseios legitimamente alimentados, necessário se faz que todos compreendam as
peculiaridades e especificidades que circundam o instituto da adoção em nosso contexto
sociocultural, pois só assim ficará descortinado aos olhos de todos que não basta apenas
mudar sistemas ou implementar a legislação sem que a cultura de adoção no país também
passe por modificações, isto porque prevalece ainda entre a maioria das famílias habilitadas
o forte desejo de acolher adotivamente crianças com o chamado perfil clássico: de tenra
idade, saudável e sem irmãos. Destaque-se que tanto o novo sistema quanto a legislação
vigente, por mais avançados e contextualizados que sejam, não são suficientes para alterar
essa cultura de adoção já consolidada, na qual se prioriza um perfil restrito para o
acolhimento.

Sendo assim, devemos agir com realismo e objetividade e ter a coragem de destacar
que, enquanto o perfil desejado para adoção não for flexibilizado, a espera continuará a ser
longa. Para entender essa realidade, basta conferir os relatórios estatísticos gerados pelo
novo SNA: a quantidade de requerentes habilitados em todo o Brasil e o número de
crianças e adolescentes disponíveis para adoção. O primeiro grupo envolve cerca de 42.500
famílias inscritas que aguardam uma adoção; e o segundo, cerca de 4.920 disponíveis à
espera de uma família. O referido relatório estatístico também informa a quantidade de
famílias habilitadas e interessadas por cada faixa etária e sua leitura nos leva a concluir que,
à medida que a faixa etária dos aptos para adoção avança, decresce o interesse dos
candidatos por sua adoção. A faixa etária com menos interesse por parte dos candidatos
habilitados é a que envolve pré-adolescentes e adolescentes, ou seja, entre 10 e 18 anos
incompletos. De outro lado, essa é a faixa etária predominante no SNA e a que mais tem
merecido desatenção por parte do candidato que almeja concretizar uma adoção. Diante
disso indaga-se: de quem é a culpa por essa equação não fechar? Da legislação? Do novo
sistema? Dos magistrados e das equipes técnicas?

O SNA/CNJ apresenta um perfil de aptos para adoção diametralmente oposto ao


pleiteado pelas famílias habilitadas. E que perfil é esse? A maioria é composta por pré-
adolescentes e adolescentes com idades entre 10 e 18 anos incompletos, como acima
destacado, sendo que grande parte deles possuem irmãos. Esse é o perfil predominante no
SNA. O relatório estatístico do citado sistema destaca que, dos 4.921 disponíveis para
adoção, apenas 18,32% estão inseridos na faixa etária entre zero e 9 anos, enquanto 81,68%
estão distribuídos na faixa etária entre 10 e 18 anos incompletos. Depreende-se portanto da
leitura dos mencionados números que a maioria dos aptos para adoção é formada por pré-
adolescentes e adolescentes. Por outro lado, dos 42.495 pretendentes disponíveis, apenas
3,47% demonstram interesse em adotar jovens entre 10 e 18 anos incompletos, enquanto
96,53% concordam em adotar uma criança entre zero e 9 anos.

Convém destacar ainda que a Lei 13.509/17, que alterou vários dispositivos do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), especialmente no que tange ao tempo de
tramitação processual, fixou o prazo máximo para a conclusão da ação de adoção em 120
dias, prorrogável por uma única vez por igual período, mediante decisão fundamentada da
autoridade judiciária (artigo 47, § 10, do ECA), assim como fixou também, por igual período,
o prazo máximo para conclusão do processo de habilitação (artigo 197-E do ECA). Há que se
considerar ainda que a mesma legislação abreviou o tempo de reavaliação da criança ou
adolescente em acolhimento familiar ou institucional, determinando que a autoridade
judiciária competente, a cada três meses, com base em relatório elaborado por equipe
interprofissional, decida pela reintegração familiar ou pela inserção em família substituta
(artigo 19, § 1º, do ECA).

Fica evidente, portanto, que não é por ausência de previsão legal que a celeridade
processual envolvendo feitos adotivos não poderá efetivamente ser alcançada. O que se
deve acrescentar é que outras variáveis também estão constelando em torno dessa
matéria, e delas também depende a almejada agilidade e brevidade do processo de adoção,
sendo que a principal, sem dúvida alguma, é o perfil de criança desejada apresentado pelos
candidatos à adoção. Nesse particular, o Poder Judiciário não pode se imiscuir por se tratar
de âmbito privativo. Ele há de respeitar as deliberações, escolhas e tomadas de decisões
intimamente elaboradas pelos postulantes, entretanto não poderá se comprometer em
atendê-los a tempo e a hora, pois isso foge a sua competência e dever. A responsabilidade
da Justiça Infantojuvenil neste particular se encontra bem delineada no artigo 19, § 1º, acima
mencionado. A depender de cada caso concreto e de suas especificidades, o juiz decidirá ou
não pelo cadastramento de uma criança ou jovem para adoção, e isso ocorre dentro de um
processo judicial, com prazos a serem observados, o respeito ao contraditório e à
manifestação do Ministério Público, considerando sempre o primado do melhor interesse
da criança. Uma vez sopesados todos os aspectos técnico-legais, o juiz poderá, mediante
decisão fundamentada, determinar o cadastramento de uma criança ou adolescente para a
adoção.

Além da necessidade da própria sociedade mudar a cultura de adoção do país,


flexibilizando e ampliando o perfil da criança desejada, de maneira que pré-adolescentes e
adolescentes, grupos de irmãos e aqueles com problemas graves de saúde possam também
ser adotados e vivenciar o pertencimento familiar, é imperativo que as varas da infância e
juventude de todo o país sejam melhor providas de recursos humanos, em números
adequados e capazes de atender uma demanda que cresce exponencialmente ano após
ano. Os magistrados que atuam na área da infância e juventude precisam de equipes
psicossociais que lhes garantam o devido assessoramento psicossocial por meio da
avaliação técnica das crianças e dos jovens em acolhimento institucional, da preparação
desses para eventualmente serem inseridos em famílias substitutas, da preparação
psicossocial e jurídica dos candidatos à adoção, assim como da avaliação técnica e do
acompanhamento dos estágios de convivência entre adotantes e adotandos. Há que se
ressaltar ainda o trabalho de acompanhamento das gestantes e mães que aderem à
entrega voluntária em adoção e a alimentação diária do SNA. São muitos procedimentos,
protocolos e diligências que devem ser rigorosamente cumpridos pelas equipes técnicas, e
se não estiverem suficientemente providas de servidores, a tão esperada celeridade não
poderá ser viabilizada.

Convém destacar ainda uma veemente crítica que vem sendo apresentada pelas
famílias habilitadas a respeito da presença de um campo no SNA destinado ao registro das
chamadas adoções diretas ou intuito personae, caracterizadas exatamente por se
materializarem em um contexto alheado à intermediação judicial e na maioria das vezes
envolvendo postulantes não previamente habilitados e crianças não cadastradas para
adoção. Ou seja, no entendimento dessas famílias habilitadas, o referido sistema
homologará a coexistência de quem se submeteu a todas as regras e etapas de habilitação
para o acolhimento adotivo de uma criança cadastrada com aqueles que por meios
próprios, sem o escrutínio jurídico e psicossocial, lograram êxito no acolhimento de uma
criança mediante tratativas informais com a própria família biológica e depois acorreram ao
Judiciário para regularizar o arranjo parental já formatado. Para muitos postulantes, o SNA
está a enviar uma mensagem ambígua de que há dois caminhos e você escolhe um deles: o
primeiro é o da habilitação e da espera para receber uma criança pelo próprio Poder
Judiciário; o segundo é o da procura do adotando por meios próprios, sem a mediação
estatal, e que pode resultar em um acolhimento informal com um futuro e possível
provimento judicial. No primeiro caminho, a Justiça realiza a mediação da adoção; no
segundo, a própria família realiza a adoção sem a mediação da Justiça.

A respeito dessa modalidade de adoção chamada direta ou intuito personae, já me


manifestei em outros artigos publicados pelo TJDFT, nos quais procurei destacar que se
tem verificado com crescente preocupação que, a despeito dos incrementos legislativos,
esse tipo de acolhimento adotivo continua a ocorrer em números elevados em todo o
Brasil. Esses atalhos impactam diretamente o SNA, causando-lhe desprestígio e descrédito.
Enfatize-se também que cada criança destinada a essa modalidade é uma a menos com
possibilidade de ser inserida no SNA, e isso resulta no maior tempo de espera por parte das
famílias habilitadas.

Essa realidade inglória de adoções que nascem a partir da priorização do interesse


de adultos, do desprezo às regras e procedimentos legais e da tentativa de redução do
adotando a um objeto de desejos deve ser revertida. Ora, o SNA foi engendrado
exatamente para tornar o sistema de adoção mais seguro, ético e legal, garantindo assim
que candidatos habilitados e crianças e adolescentes aptos pudessem vivenciar encontros
afetivos e a consequente integração familiar de maneira mais célere e segura. Que os
referidos encontros ou vinculações fossem operados por meio do devido respeito à ordem
cronológica de habilitação conforme preconizado pelo artigo 197-E do ECA: "Deferida a
habilitação, o postulante será inscrito nos cadastros referidos no artigo 50 desta Lei, sendo a
sua convocação para a adoção feita de acordo com ordem cronológica de habilitação e
conforme disponibilidade de crianças ou adolescentes adotáveis". Há que se destacar ainda
que a Lei 13.509/17 determinou que "a habilitação à adoção deverá ser renovada no mínimo
trienalmente mediante avaliação por equipe interprofissional" (ECA, artigo 197-E, § 2º)”.

Reitero que o SNA é uma extraordinária ferramenta digital a serviço da Justiça


Infantojuvenil; entretanto, para que mais adoções ocorram em prazos mais abreviados, não
basta apenas um novo sistema ou uma nova legislação. É fundamental também que haja,
no âmbito da sociedade, mudança substancial no perfil da criança desejada para adoção, de
maneira a se contemplar aqueles disponíveis no SNA, que são predominantemente pré-
adolescentes e adolescentes, além de grupos de irmãos e os que apresentam graves e
complexos problemas de saúde. Além disso, é imprescindível ainda que as varas da infância
e juventude de todo o país sejam providas com mais recursos humanos para que os prazos,
procedimentos e protocolos sejam rigorosamente cumpridos e o SNA adequadamente
alimentado. Por fim, que os esforços do sistema de justiça sejam redobrados no sentido de
se reduzir em nível nacional o número de adoções diretas ou intuito personae, e que disso
possa eventualmente resultar um maior número de crianças potencialmente adotáveis
inseridas no SNA.

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