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Novos RUMOS A RECOMPOSICAO DO MODERNO Umberto Cerroni A evoluedo politica do planeta permite hoje a retomada da experiéncia da ONU em bases novas. Trata-se de roformular o Estatuto da ONU para doté-lo nao somente de instrumentos mais eficazes de intervengao, mas de mecanismos processuais mais adequados para a tomada de decisoes. Estamos gravemente atrasados na busea das formas nfio-cconémicas de desenvolvimento. £ dbvio que, em grande medida, este atraso foi devido & nossa superestimagio do desenvolvimento econdmico duran- te muitos anos. No perfodo 1960- 1980, se pensou, demasiado unila- teralmente — um pouco em todas as posigdes ¢ em todos os campos =, que 0 desenvolvimento eco- némico permitiria resolver os pro- blemas sociais, na ilusio evidente de que os problemas sociais a se- rem resolvidos permaneciam os ‘mesmos ou que as variantes seriam irrelevantes. Os anos 80, entretan- to, nos colocaram diante de proble- mas qualitativamente novos: 0 meio embiente, por exemplo, rela- cionado a erosio justamente cau- sada pelo desenvolvimento, as no- vas imigragées em massa no Oci- dente, a ativagdo de novos povos € novos Estados do Terceiro Mun- do (Afeganistdo, Mundo Arabe, Oriente Médio, novos Estados afri- fom canos) e, por fim, 0s novos proble- mas gerados pelo desenvolvimento téenicoeconémico nos préprios paf- ses industrialmente evoluidos. O desenvolvimento no ofereceu so- mente os meios para enfrentar os problemas antigos: gerou outros . Criowse, assim, um efreulo que produz con- tradigoes graves, abertes a desfe~ chos imprevisiveis. O caso mais significativo parece ser o ofereci- do pelos paises do Leste europeu, nos quais 0 proprio mito do de- senvolvimento tinha motivado 0 fechamento politico ¢ cultural © @ propria propaganda tinha suscitado nas massas demandas que as institui- es fechadas néo podiam (ndo sa- no queriam) enfrentar. © conjunto destas contradicoes também esti presente no Ocidente, mesmo que de formas diferentes ¢ de consegiiéncias nao tao traumé- ticas. O custo progressivo do cres- nto téenico-econémico entrou a7 em curto-circuito com o crescimen- to da demanda ¢ as conseqtiéncias mais vistosas foram a inflacdo per- manentemente ecompanhada de uma periédica estagnacio, ¢ tam- bém de uma expansio desenfres- da da despesa pablica que causou arandes déficits no orcamento dos Estados. Mas os prdprios analistas que desvendaram este cfrculo vi- cioso em economia, etiquetado co- mo “crise do Estado de bem-estar”, no conseguem sugerit_remédios eficientes: a redugdo da inflagio ¢ dos déficits financeiros se choca, com efeito, com a “Iégica da busca do consenso”, ao mesmo tempo em que a “reducio de demanda” no pode ultrapassar os limites de um padrio médio que garanta 0 desen- volvimento da produgao e o inere- = ae aoe. Sova tone ae Be ee ee ieee See Se ae fous ——— mento da produtividade. Derivam disso os fatos politicos das. demo. ccracias marcadas pela coexisténcia de estimulos ao radicalismo libera lista (Thatcher, Reagan) e de mo- vimentos radicais de esquerda (mo- vimentos estudantis, feministas, ét- nicos, tegionalistas). As polticas Tiberalistas obtém sucessos econd- micos de curto prazo, mas parece fracassar longo prazo, a0 mesmo tempo em que os movimentos ra- dicals, que conseguem eviter ou conter o declinio do nivel de vida das massas, néo conseguem desem- bocar em projetos duradouros de gestdo politica alternativa. Se considcrarmos as implicagées internacionais destas situagdes € 0 sett entrelagamento com a “légica do subdesenvolvimento”, 0 quadro se torna ‘ainda mais obscuro. En- quanto a Idgica do desenvolvimen- to age em favor do respeito rigoro- so das regras “puras” do mercado € dos “custos e beneficios” — ava- liados em termos exclusivamente econémicos —, a légica do subde- senvolvimento despeja sobre 0 Oci- dente, de forma direta ou indireta, custos crescentes sem benefici no se trata somente das imigra- es, hoje imponentes, mas de rei- vindicagoes de ordem’ politica que cada vez mais desaguam em con- flitos bélicos que, as vezes, surgem exatamente nas areas ontle os pat- ses desenvolvidos encontram os recursos para o desenvolvimento. A guerra do Golfo € 0 caso mais significative. Este quadro geral induz a duas consideracdes metodoldgicas gerais. A primeira € que, do mesmo modo que um desenvolvimento econémi- 60 dirigido sem atengo, a longo prazo € a custos e beneficios “nfio- econémicos”, coloca a possibilida- de de riscos’ gravissimos (também econémicos!), uma evolucio poltti- ca equilibrada parece ser sempre ‘menos possivel dentro de uma ética “corporativa” nacional, local, do- minada pelos velhos critfrios de utilidade péblica de curto prazo. Tanto em economia quanto em politica, o cui prodest nao fornecé mais tanto respostas explicativas Novos RUMOS ‘quanto hipéteses baseadas em van- tagens durévels. desatamento dos “tagos grandes e pequenos” de uma gestio neoliberalista devers ajustar contas com aquilo que Nor- bert Elias chamava de “as corren- tes da interdependéncia” que ligam as economias do planeta bem abai xo (ou bem acima) das nossas de- cisées voluntaristas de politica eco- némicas, Tratase de uma interde- pendéncia que hoje domina total mente 0 contexto ecolbgico (pelo menos apés Chernobyl e 0 bura- co de czénio). Mas é impensavel que se esgote nisso. O proprio Elias notou que “em um mundo cada ver mais interdependente, a humanidade deixa de ser um ideal abstrato para se tornar uma reali- dade social”. Estamos exatamente diante deste’ novo “problema so- cial” e percebemos o nosso despre- Paro tedrico. Este novo problema articula alguns capftulos fundamen- tais: 1) crlacdo de um novo direito internacional cepaz de nos levar em diregio a um governo mundial eficiente, sem rupturas graves com as tradigdes culturais nacionais, isto €, capaz de tutelar as novas cculturas nacionais em formacio; 2) reestruturacéo da cidadania nos Estados nacionais de modo a “hos- pedar” 0s novos sujeitos que emer- gem “de baixo” ou que chegam “de fora”, evitando tanto os com- plexos de inferioridade dos “recém- chegados como 0 efeito de deses- tabilizacao dos valores que @ civk lizagio ‘moderna carrega. consigo; 3). promocio conseqiente de uma cultura realmente aberta que torne possivel a integragao sem * destrui- ‘¢a0" cultural €, por isso, torne pos- sivel uma proposta construtiva para ‘a integragdio permanente e, especial- mente, para o que se poderia cha- mar de auto-reducao da demanda, ‘ou melhor, o controle cultural cole: tivo da demanda e, 4) despotenci lizagao dos radicalismos intelectuais (e, a longo prazo, também poli cos) que hoje se alimentam exata mente da discriminacio, ou tio- somente da marginalizacdo, e que desigua nos integralismos politicos, nos fundamentalismos _religiosos, nos relativismos niilistas. Sobre 38 Saeed As politicas liberalistas obtém sucessos econdmicos de curto prazo, mas parece fracassar a longo prazo, ao mesmo tempo em que os movimentos radicais, que conseguem evitar ou conter 0 declinio do + nivel de vida das massas, nao conseguem desembocar em projetos duradouros de gestao politica alternativa, da um destes capitulos 6 possivel tecer algumas consideragées essen- ciais ‘A experiéncia da ONU A possibilidade de uma organi- zagio internacional eficiente foi pot muito tempo uma utopia, O fra- cassot da Sociedade das Nacées agravou a sensacio de impoténcia, mas a conclusio da 2° Guerra Mundial ¢ surgimento da ONU reacendeu a esperanca. Ainda que fa experidncia da ONU tenha marcada por eventos negativos (ouitas guerras em uma época de paz monitorada pelas grandes po- téncias!), a guerra nuclear, toda- via, foi evitada. A evolugao poll tica do planeta permite hoje a re- tomada da experiéncia da ONU fem bases novas. Trata-se de refor- mular o Estatuto da ONU para do- télo nflo somente de instrumentos mais eficazes de intervencao, mas de mecanismos processuais mais adequados para a tomada de deci- sbes. F preciso olhar com atengao a estrutura do Consetho de Segu- ranga ,0 direito de veto, 0 funcio- namento do principio majoritétio entre Estados e, de forma geral, a possibilidade de controles mais re- gulares com rela¢ao ao cumprimen- to das normas do Estatuto por par- te dos Estados membros (com rela s0, por exemplo, aos direitos dos cidadios). Em perspectiva, se_per- fila até 9 problema de como eleger uum Parlamento mundial. Finalmente, numa nova teoria da cidadania, & preciso inscrever ‘um preliminar diteito pablico in- ternacional, Esta necessidade aps- rece hoje claramente em funggo do surgimento de fenémenos politicos dificilmente classificdveis (e gover- nveis) segundo as antigas catego- rigs: basta pensar na guerra do Golfo, que em vio se procura cl sificar de acordo com o sistema metafisico-ideotégico em desuso de “guerra jusia”, herdado da tradi- fo das “guerras religiosas”, “guer- jcionais” ¢ “guerras ideol6gi cas” que pertencem 40 nosso pas- sado. Ninguém mais nega a neces- sidade, a utilidade, a possibilidade de uma intervengao internacional para resolver controvérsias intern cionais, e-parece-me que ninguém promove a guerra com “declaracSes de guerra” piiblicas. A intervengao legitima, apesar de ser legitima, ainda nio é obrigatéria e nem tor- nd obrigatoria a participagéo das ptéprias poténcias que a aprova- ram nas operagées de guerra (da guerra do Golfo nio participaram a URSS e outros estados do Pacto de Vars6via, e nem alguns estados da OTAN como a Alemanha e @ Espanha). De outro lado, a inter- vencio legitima ainda nfo é acom- panhada de normas detalhadas so- bre a formacio de um comando in- tegrado de operaco e 0 emprego de bandciras ¢ simbolos da ONU. Nio se trata somente de formalide- des: trata-se de impedir também, com estas formas, que uma opera- ‘so internacional tonese “apre- priaeao” indevida por parte de al- gumas poténcias ou. téo-somente que ela seja conduzida com crité- rios arcaicos (antes, bombardear © destruir, depois ocupar) derivados de critérios politicos-estratégicos das velhas guerras “nacionais” ou “ideolégicas”. Tais critérios so dificilmente aplicéveis a operacdes contra a lideranga quase sempre rinica que hoje caracteriza o Esta- do agressor: a punigéo volta a gol- pear 0 povo, ja vitima da tirania. Novos RUMOS Por isso (e por outros motivos), © novo direito internacional deve inscrever tanto a subjetividade co mo a soberania dos Estados nacio- nais entre as normas inspiradas em tuma cultura da democracia ¢ de- talhar procedimentos a fim de dis- tinguir governantes (ilegitimos) do povo oprimido, o qual a ONU de- ve, de qualquer modo, tutelar ¢ devolver & soberania, Cidadania e movimentos Hé muito, a reestrutiragio da cidadania “interna” dos Estados na- cionais estd-em curso sob a pressio dos “movimentos”. Porém, isso ge- ra um movimento muito singular da politica neste campo: a um pro- longado vazio inicial, no qual ope- ram pot inércia os vethos critérios, segue-se uma convulsiva ativacdo legislative, conduzida sob a pressio das reivindicagdes que a inércia inicial até exacerbou. Falta, mais exatamente, uma medida oportuna ‘que seja a conclusdo de uma obser- vagio atenta ¢ permanente dos pro- ceess0s politicos. Isso assinala a ne- cessidade de ligacdes mais eficazes entre os observadores cientificos e 6 institutos politicos e, mais pre- cisamente, de uma maior integra go entre cineia social ¢ politica Esta maior integragdo constituiria, entre outros, um aspecto mio se- cundério da “reforma da politica”, que subtrairia a politica parte do ‘megapoder de que dispde. Além do ‘mais, esta ligagdo permitiria uma indicagao mais rica dos problemas ‘urgentes que afloram na sociedade civil. Para esta finalidade, seria in- teressante uma reavaliagio geral do sistema universitério © da pes- quisa cientffica com financiamento piiblico. A estrutura universitéria deveria’ prever reuniées regulares dos érgios universitérios dedi dos & pesquisa (Departamentos), voltadas para os problemas de in- teresse pablico, ou relacionadas, de qualquer forma, a esses interesses. Mesmo uma inica reuniao. anual deste tipo permitiria dispor de and lises e coletas de dados muito tteis sobre os diversos sctores da vida piblica. De forma mais geral, uma 39 Parece grave o atraso da politica (e da legislagao) em todo setor, no qual os *movimentos” joram crescendo. politica de pesquisa cientifica de- veria ser elaborada com a ajuda de ‘um maior niimero de canais (poli ticos, administrativos, profissionais, sindicais, etc.). Um verdadeira acervo de pesquisas cientificas po- deria gerit, para finalidedes pabli- cas, a enormidade de pesquisas ho- je entregues a asfixiantes relagdes que tém fins meramente “académi- cos” ¢ burocréticos, Parece grave o atraso da politica (e da legislagao) em todo setor no qual os “movimentos” foram cres- cendo. Em geral, a politica oficial dew continuidade as tendéncias que tinham se consolidado com relagao a0 “movimento operério”, aten- dendo, de certa forma, 8 formacao de estruturas. verticals s6tidas e estiveis. Entretanto, 08 novos movi- ‘mentos parecem se caracterizar por sua “horizontalidade” persistente, isto 6, pela sua fluidez e escassa formalizacao. Esta tica distorcida 4a politica determinou uma subes- timagdo muito grave das reivindi- ‘cages que nao cram transmitidas pelos canais institucionais. Eo caso das reivindicagdes relativas a0 divércio, a0 aborto, ¢ das reivindi- cages expressas pelo movimento cestudantil. Muitas vezes, estas rei- vindicagses, & primeira vista seto- riais e€ marginais, revelaram um enraizamento profundo na opiniao piblica e revelaram também algu- mas Jacunas graves nas estruturas vigentes. A subestimacao da novi- dade, implicita nos movimentos, & demonstrada, alifs, pelo seus pré- prios grupos’ dirigentes. Estes gru- pos dirigentes, com efeito, tratam fas novas demandas quase sempre com critérios ¢ médulos culturais velhos. Isso explica também a sua curta duracio. Atentos em captar _ Aqui, 0 problema central é certamente o do resgate, criticamente rigoroso, das categorias fundamentais da civilizagao moderna que se resumem nos conceitos de laicidade, razo e ciéncia. a demanda politica emergente, nao foram capazes de desenvolver uma teoria adequada. No geral, aqueles movimentos se revelaram, de fato, positivos no plano politico mas ne- gativos ou pouco consistentes no plano cultural. Diente das. novas demandas colocadas pelo movimen- 10 feminista, por exemplo, ocorrew um desenvolvimento te6rico inspi- ado. substancialmente nos yelhos ideologismos extrafdos da tradicao “corporativa”. do operariado, € diante das demandas colocadas pe- lo movimento estudantil produziu- se freqlientemente um invélucro cultural politicista (“poder estu- dantil”). Devese notar também que uma ‘oportuna identificagio © compreen- slo dos fendmenos politicos pode- ria evitar, certamente, aqueles des- dobramentos te6ricos improvisados (além das lacunas legislativas que onei). Freqientemente, eles se perfilam como 0 produto de um certo tipo de complexo de inferio- ridade no declarado, com relagdo aos partidos, que extravasa em em “excessos” de teorizacio. O atraso com 0 qual, por exemplo, foi enfrentado o problema das imi- graces ¢ do pluralismo étnico tem conduzido & construcio improvise da de verdadeiros esterestipos cul- turais totalmente artificiais: a ne- gagio do cardter nacional da cultu- 1a, a teorizacio do cardter classista de qualquer fendmeno politico-so- cial, a equivaléncia geral de todas as culturas e, em geral, a elabora- do de um conceito de cultura au- sente de referéncias histéricas e ni- vyeis intelectuais distintos, Um es- Novos RUMOS cetitor (Giuseppe Pontiggia, Corrie- re della Sera, 24.01.91) assinalow, ironicamente, quanto ao conceito de “cultura”: “Facil de ser defini- da, Tudo 0 que nig pensamos ser cultura € cultura”, Naturalmente, tudo isso poe em evidéncia, tanto a novidade dos contedidos que aflo- ram na vida social, quanto as carén- cias de novos © rigotosos critérios te6ricos de organizagao conceitual. Deste . entrelacamento, nascem dois perigos graves que jé se mani- festaram: 0 relativismo cultural e © nillismo a ele ligado, A potencia- ‘go cultural desordenada dos fend- ‘menos s6cio-politicos destronow os valores velhos com o instrumento da relativizacdo e, em seguida, absolutizou este instramento. em um verdadeiro niilismo cultural. A. escala tradicional dos valores foi desestabilizada porque carente de um axiologia geral capaz de denun- ciar 0 caréter “eurocéntrico” ow “burgués” destes valores para, em seguida, assumir novos ideologis- mos ndo menos ficticios do que aqueles criticados. O limite talvez tenha sido atingido com o “tetcei- romundismo” contraposto ao et rocéntrismo, com a “cultura prole- téria” ‘contraposta (e, substanci mente, igualada) & “cultura bur © com os diversos funda- 308 contrapostos & cultura laica, denunciada como Iaicista ou no racional. Aqui, o problema central € cer tamente 0 do resgate, criticamente rigoroso, des categorias fundamen- tais da civilizagao moderna que se resumem nos conceitos de Iaicida- de, azo e ciéncia, © processo de secularizacéo da politica Este processo deve ser libertar, certamente, dos invélucros ideol6- zgicos que freqiientemente he fo- ram apostos. Mas isso somente possivel mantendo firme a distin- fio (quase sempre tornada duvido- sa) entre politica ¢ moral. Desta disting&o, com muita freqiiéncia te- mos dado, nfo uma versio maquia- veliana mas uma versio maquiavé- 40 Jica, nfo uma versio kantiana mas ‘uma versio kantista. E, aspecto muito significativo, a perversio da distingio se dew sob o signo de um “mau” positivismo juridico: um positivismo que, com Kelsen, redes- cobriu, de um’ Indo, 0 idealismo antiano, ¢ vineulou, de outro, » politica moderna (a democracta) ao relativismo cultural. A verdade ‘que estas duas culturas devem ser climinadas. Para este fim, deve ser mantida firme a idéia de que @ politica moderna & 0 process de edigdo-construclo da lei nia base do consenso universal € que, por- tanto, nao hé interesses exclusives na fundacio da subjetividade pol tica (sufrégio universal) e que so- mente sobre esta base é possivel uma lex generals, a Gnica possivel lex generalis ominum. Qualquet op- io cultural € obviamente possivel na argumentagdo da lei, desde que na base irrevogavel desta legitima- ‘gio geral de todos os interesses € com o fim irrevogével de editar uma lei aceita por todos, porque por todos elaborada e, por isso, por to- dos aceitével. Néo pot acaso, 08 rgios legistativos modernos so 6t- agios representativos baseados no suftdigio universal. Qualquer limita- gio formal da capacidade politica se coloca hoje do lado de fora das muralhas do Estado de diteito, fo que significa que o Estado de di- reito € hoje impensével nos termos tradicionais do liberelismo kantiano restrito, do mesmo modo como & impensével nos termos nfo menos tradicionais das “ditaduras de clas- se” socialistas. Portanto, o Estado de direito moderno forma hoje uma tunidade com a democracia politica, € neste circuito deve ser possivel desenvolver totalmente 0 discurso que vai dos interesses de todos aos direitos ¢ deveres de todos, a uma Tei que € igual para todos porque todos foram iguais na sua elabora- ‘gio. B, portanto, nao deve ser ad- mitida’ nenhuma intromissio que ameace este circuito Iaico, que pa rece © tinico capaz de ir dos inte- resses aos deveres — transforman- do-os em direitos —, 0 tnico capaz de levar a economia em diregao & politica, produzindo uma ética piblica laica. Trata-se de um cir- cuito, ali, que j4 é rico em muitas determinagbes éticas: gera o Estado de direito ¢ a sua liberdade, a so- berania popular, o sufrégio univer- sal, a igual participagéo no proces- so legislativo, a obrigatoriedade de uma lei baseada no consenso ¢ a igual representacéo dos interesses. © problema é, exatamente, conju- gar todos estes teoremas da dog- ‘dtica juridiea com a pritica da democracia para se chegat a uma ética piiblica sistémica, consensual racional que, a esta altura, na parece precisar de quaisquer inje- ges ideol6gicas neocontratuais, neojusnaturalistas, neojusticialistas € neo-utopistas. Nesta base, desmerona o parado- xo Kantiano da necessidade de uma fundagio moral do Estado de di- reito, nio porque — como acon- tece ina versio liberablaicista do Estado de direito — 0 formalismo da dogmética juridica substitui ¢ fecha qualquer abertura para o mundo extrajuridico, mas, pelo ‘contrério, porque exatamente a in- tegracto democritica do Estado de direito habilitou este Estado a cons- truir uma “casa comum” para to- dos os membros de polis, indepen- dentemente das diversas ideologias, garantindo, aliés, exatamente por isso, a liberdade de cada profissio ideal. Ciencia e opiniéo Da mesma forma que a interde- pendéncia planctéria torna nao so- mente necesséria mas até possivel porque nécesséria a integracio su- pranactonal do governo politico do planeta, assim também a reestrutu- ago universal da titularidade do direlto politico de decidir torna possivel a integracao cultural dos hhomens. Com a condicdo, natural- ‘mente, de que a integracio cultu- ral se baseie no tanto na assim’ Jago mais ou menos forgada, mas na confrontacdo das culturas. Uma confrontagio deste tipo, por outro Jado, exige © emprego de uma esca- Ja racional que torne possivel confrontagéo © que postule, por- NOVOS RUMOS tanto, o primado da razio, entendi- da como razio cientifica que pro- cede do conhecido a0 desconheci- do (€ no 0 contrario) e do reco- nhecimento da cognicao do. mun- do — da acessibilidade universal do conhecimento, da nao-proposi fio de limitagdes preconceituais — 0s processos de conhecimento. Que estes reconhecimentos. sejam, em larga medida, incorporados. & ciéncia acumulada no Ocidente & um fato que deve ser totalmente desvinculado de uma pretensa ex- clusividade ocidental da ciéncia. Com base nisso, pode-se descar- tar, com certeza, tanto 0 nacione- lismo ou 0 racismo intelectual dos ocidentais quanto o relativismo de quem propoe um mostrustio de mais ciéncias possiveis que, a0 var a alavanca do relativismo, de- semboca fatalmente na negagéo da ciéncia e na equiparagao de ciéncia € nfio-ciéncia. Deve-se permanecer firme quanto a0 fato de que qual- quer discursa sobre o que deve set a ciéncia tem de ser feito no inte- rior do processo de pesquisa € nio em instincia extracientifica (polt- tica), porque o importante € impe- dir exatamente discursos_nao- tificos sobre a ciéncia, o importan- te € fechar a porta 2 qualquer re- conversio moderna da ciéncia em opiniao, de episteme em doxa, Pa- 1a isso contribui, entre outras coi- sas, a Iaicizacio da politica, a sua rigorosa contengao entre os muros da cidade democratica que permite a todos pensar, dizer e acreditar livremente. Esta contengao se torna hoje in- ispensdvel exatamente porque ¥ vemos processos de transformacao rmultiétnica dos Estados e, em cer- ta medida, 0 prdprio Estado nacio- nnal que herdamos esté em crise. Internacionalizagdo em curso ‘A universalizagio dos processos politicos que acompanha hé tempo a universalizacdo dos processos eco- némicos produziré também a uni- versalizacdo dos processos cultu- rais, Mas isgo nao significa que esta- mos entrando numa época caracteri- zada pela generalizaco necesséria a Esta contengio se torna hoje indispensével exatamente porque vivemos processos de transformagao multi-éinica dos Estados e, em certa medida, o préprio Estado nacional que herdamos estd em crise. da uniformidade. Seria um erro gra- ‘ve, por exemplo, — e alguns tedri- 608 0 cometem — afirmar o fim do conceito de soberania nacional, a partir da tendéncia & construgdo a comunidade supranacional. Este ‘erro € comum na ética de um euro- centrismo que esquece tanto as lu- tas passadas dos povos europeus na conquista do Estado nacional como as lutas atuais de muitas nagdes para se constituir em orgenismos estatais (exemplos fundamentais so Israel ea Palestina). A “super go” do Estado nacional nfo supe somente a “justa distribuigio” da condigdo estatal entre todas as na- Bes, mas supe tardbém a aceita- G0 do consenso quanto as limita- des da propria soberania nacional (como o faz o art, 11 da nossa Constituigio). E isso supde também a maturacio dos diversos regimes politicos nacionais no sentido da democrs (soberania popular, su- frdgio universal, representatividade legisladora). Em geral, é exatamen- te 0 crescimento da soberania dos povos na diregio do “consenso fi vre” com relacao as leis o que pode acelerar o consenso para a superio- ridade de uma lei metanacional. Um povo realmente seauro de sua propria soberania, porque treinado” na_democracia, se abre com maior facilidade & limitagio “externa” de sua propria soberania se isso The permite assegurar uma convivéncia pacifiea com outros.povos. A cul- tura da ocracia €, com efeito, fundamentalmente “aberta” exata- mente no sentido de que favorece @ expansio em diregdo as frontei- ras extremas do género humano, ‘em diregao ao reconhecimento wni- versal da centralidade dos direitos humanos, civis, politicos, sociais, de cada homem e mulher. No seio de cada Estado, a crise do Estado nacional tevanta duas ordens de problemas: crescem as * demandas de subjetividade por par- acho juridica das imigragdes con- temporanees. A histéria e 0 Estado nacional ‘As dificuldades dos Estados diante desta dupla pressio serio mais graves na medida em que a formaso da unidade politica € recente, e na medida em que a sol- dagem entre cultura nacional © po- yo € frace. Na Itélia, concorrem, no que parece, estas duas circuns- tincias, © aqui, portanto, so par ticularmente wtgentes medidas no sentido de abrir o organismo esta tal a uma gestao democrética, sen- sivel ao méximo de autonomi orientar 0 Estado de direito demo- crético em direcio a uma presenca cultural mais intensa. Com relagao 0 primeiro aspecto, é preciso dizer que o Estado unitério, centralizado, dispersou uma tradicao riquissima que estava profundamente enraiza- da nas formacies pré-unitérias — € s6 pensar nas pequenas cortes Hos Novos RUMOS ducados, nas relagdes de Veneza com o exterior, na civilizagéo re- formadora da Toscana, na tradiclo estatal do Reino das Duas Sicilias — sem grandes compromissos com proprio Estado democratico atrasou por muito tempo a formagao dos ‘rgfos tegionais e os limitou a uma gestio administrative muito pouco interessada na revalorizacdo das cculturas regionais e mais interess dda nas utilidades politicas dos par- tidos. Do ponto de vista da cultura nacional herdamos, inclusive, uma Tonga presenca do analfabetismo, tum baixo nivel de cultura profi nal e de cultura polftica, um inte- esse quase nulo por tudo aquilo que & piiblico. Impoe-se, portanto, junto com a extensio das autono- mins até as fronteiras do federali mo, uma mudanca radical no remo da cultura. & preciso proclamar a centralidade da escola em todos os niveis ¢ é preciso orientar 0 servico piiblico de rédio e televisio em di rego a um forte compromisso cul- tural. © tema condutor desta reto- ‘mada cultural deveria ser um novo estudo da hist6ria da Ttélia (até falta, nas universidades, um ensina- mento com esta denominacdo) que ultrapasse em muito 1861, reto- me 0 significado dramético de nos- sa saga nacional como pafs cultu- ralmente muito precoce, do ponto de vista da molernidade intelectual, ‘mas gravemente atrasado na consru- gdo de sua unidade politico-estatal. Os outros dois grandes temas deve- iam ser 0 do conhecimento. dos outros paises € das outras culturas c, por fim, 0 da ciéncia. Uma co- nexéo estreita entre as razies da cultura nacional e as da histéria ge- ral das nagGes com 0 conhecimento cientifico permitiré, a0 mesmo t po, consolidar a consciéncia pé ‘dos italianos e predispor a Ieé uma confrontagdo séria com os outros povos. Somente refexéncias seguras sobre a propria hist sobre a propria cultura ‘nacional destruir tanto os complexos de inferioridade quanto 0 desprezo para com as outras nacdes, © po- dem predispor as condig6es de uma integracio nfo servil nem ficticia O isco, de outro modo, & de ser- mos envolvidos e talvez.varridos por uma catistrofe antropolégica marcada pela barbérie cultural ou pelos antagonismos éinicos. A for ago de uma cultura integrada no plano mundial nao. passa, efetiva- mente, pela renuncia as caracteris ticas nacionais, mas pela sua pro- mogao em diregio a uma produti vidade intelectual méxima, Exata mente disso pode surgir, difundir- se e consolidarse a idéia de uma Fiumana eivilitas, tal como a cha- mou Dante, que proniova a media- ‘gio de todas as diferencas na cons- truco de uma “grande cidade das ages” — dizia Vico — e de uma idadania universal dos homens

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