Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Artigo Lacunas - O Poder Dos Livros Que Não Lemos e Que Nos Definem
Artigo Lacunas - O Poder Dos Livros Que Não Lemos e Que Nos Definem
U ma vez sonhei com Harold Bloom. No sonho ele vive num teatro
Anotei o sonho e voltei a dormir – isso foi em outubro de 2019, Bloom tinha
morrido menos de duas semanas antes. Sonhos são como frutas e mariscos
de carne delicada, que ao serem retirados do seu meio natural logo
escurecem, oxidam. Por isso gosto de arquivá-los ainda frescos, num esforço
de conservar o frágil tecido onírico. Raramente dá certo: às vezes acontece
de reler o que escrevi e não me vir nenhuma cena, sensação, nada. Mas
agora há pouco (hoje é dia 4 de março de 2021 e acabo de abrir o laudo de
um exame de Covid-19 – deu negativo) aconteceu algo insólito: o sonho
com Bloom emergiu num flash, se soltou da lama do esquecimento para vir
boiar na superfície das minhas ondas cerebrais.
D ois traços me definem como leitor: a voracidade e o sentido de
déficit. Leio rápido e leio muito (a ansiedade é soberana nos meus dias), mas
não dou conta de sanar minhas faltas: a biblioteca de lacunas é mais
sedutora que uma parede coberta por livros lidos.
fizemos, com as lacunas que temos consciência de que não vamos preencher
no espaço de uma vida? Em 2007, o ensaio Como Falar dos Livros que Não
Lemos?, do crítico e psicanalista francês Pierre Bayard, se tornou um best-
seller. A obra investiga o papel da “não leitura” nas interações da vida
social e traz uma espécie de elogio das lacunas.
Na época dei boas risadas com o livro – reli há pouco tempo e senti que
envelheceu bem. Bayard sugere que todos mentem, mais do que estão
dispostos a admitir, sobre as próprias leituras (ou não leituras).
Frequentemente nos pronunciamos, até com eloquência – em rodas de
conversa ou mesmo em sala de aula –, sobre livros que no máximo
folheamos. Bayard defende que não devemos nos sentir culpados por isso,
pelo contrário. “É perfeitamente possível manter uma conversa apaixonante
a propósito de um livro que não se leu, inclusive, e talvez sobretudo, com
alguém que também não o leu.”
O lado jocoso é um ponto a favor do livro: não desdenho do que me faz rir.
Mas a abordagem sofística sempre conduz a paradoxos. A sacada de Bayard
é propor que a não leitura é “uma verdadeira atividade, que consiste em se
organizar em relação à imensidão de livros, a fim de não se deixar
submergir por eles”. Mas fica a impressão de que só os vazios de formação
interessam, assim como as táticas para reverter as lacunas a nosso favor
(falar com eloquência dos livros que não lemos). Além disso, Bayard apenas
tangencia aquilo que, num dos seus ensaios mais notáveis, o crítico francês
Roland Barthes chamou de “prazer do texto”. Nada substitui os júbilos e
desconfortos – inclusive físicos – da leitura. Às vezes um livro se enfurna
por anos num cantinho da mente para um dia vir à tona e nos encurralar
numa tocaia – mais ou menos como aconteceu comigo no sonho que tive
com Bloom.
a forma de listas de livros, filmes, listas de tudo – títulos que a diarista vai
riscando à medida que cumpre os encargos que ela própria, mais ninguém,
impôs a si mesma. “Ler Memórias Póstumas de Brás Cubas”, ela assinala de
modo imperativo em 20 de dezembro de 1960, aos 27 anos (décadas mais
tarde a autora americana escreveria um ensaio que transformou a recepção
de Machado de Assis nos Estados Unidos). Numa leitura rápida, o diário de
Sontag talvez servisse de exemplo do que Alan Pauls, em Trance, chama de
“precoce prodígio”: alguém que “não sabe que não sabe” e, “impulsionado
por uma inclinação natural, madrugadora, se limita a lançar-se sobre o seu
objeto como um predador”. Antes de completar 18 anos, Sontag tinha
devorado os diários de Gide, A Montanha Mágica, de Thomas Mann, e se
engajara não na leitura, mas na releitura do De Rerum Natura, de Lucrécio.
Ainda assim, o seu diário está marcado desde a adolescência pela percepção
angustiante dos hiatos – o que remete ao segundo tipo de precocidade a que
Pauls se refere, a “relação frustrada, desequilibrada, fora de escala, entre um
sujeito e um objeto de desejo em relação ao qual não se sente à altura”.
P or que é que não li os livros que escolhi não ler? Com a autoridade
A lacuna como presente que nos ofertamos – Lembro do verão, não faz muito
tempo, em que finalmente me ocupei de Guerra e Paz: foi o que me
aconteceu de mais surpreendente em matéria de vida naqueles meses que
passei trancado em casa, com o ar-condicionado na máxima potência. Li
quase tudo de Tolstói bem cedo (relativamente cedo, cedo para os padrões
de leitor retardatário de 20 e tantos anos). Mas Guerra e Paz eu guardava
para depois, um mimo que oferecia a mim mesmo. Fui acumulando edições,
primeiro a da Itatiaia, de letras miúdas, depois a da Cosac, lindíssima. Vivia
me dando de presente essa lacuna. Até que um dia peguei o livro num
impulso e ele me fez tão feliz como imaginei que aconteceria. São prazeres
que damos por certo, e que talvez por isso nos inclinamos a deixar
suspensos, sempre à espera da condição propícia que no entanto não vai vir,
não do jeito que fantasiamos: um fim de semana emendado com dois
feriados, um mês de férias, o ano sabático, a recuperação de uma
enfermidade que não é séria, mas nos obriga a passar muitas horas na cama.
A té para escrever este ensaio sinto que precisaria ter lido mais.
Acontece que quanto mais eu leio mais me dou conta de tudo o que me falta
ler: escrever sobre as lacunas é um jeito de me desapegar delas, de não
transformá-las em fetiche. O repertório de vazios é elástico, infinito – se
todos lêssemos as mesmas coisas, e do mesmo jeito, só haveria um único
leitor, um Arquileitor, materialização de uma cultura fechada em si mesma,
estática, morta. Ler é uma escolha. Deixar para depois, também.
Felipe Charbel