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Lorena Miranda Cutlak

Enfrentando o Epílogo de “Crime e Castigo”


18 Comentários / Crítica Literária / Por Lorena Miranda Cutlak

Texto publicado originalmente no blog Ad Hominem, em abril de 2013.

Agora que meu mestrado entrou na fase ou vai ou racha, em que um ano e meio de leituras tem de
começar a transformar-se em texto, achei que era também a hora certa para reler a obra literária de
Dostoiévski. É claro que estou continuamente consultando seus romances e contos, mas uma leitura
integral e minuciosa da literatura dostoievskiana como sistema é algo que demanda um esforço
paralelo à minha pesquisa em si, que é mais sobre história cultural da Rússia.

Pois bem, tenho empreendido essa integral e minuciosa leitura.  Confesso que às vezes, por mera
curiosidade dir-se-ia psicológica, gostaria de voltar ao ponto em que me era possível defrontar
ingenuamente um romance de Dostoiévski. Por exemplo, voltar à percepção que tinha quando li
pela primeira vez Crime e Castigo e fiquei confusa quando, no fim do livro, Raskólnikov não se
arrepende explicitamente de seu crime. Lembro de almoçar com a Day Teixeira no bandejão da USP
e discutir – quase brigar – por causa disso. Era estranho, não fazia muito sentido, mas estava escrito lá:
entre um êxtase religioso e outro, o protagonista do livro declarava não se arrepender de seu crime.

Para completar, recentemente tive o privilégio mórbido de assistir a uma palestra do tradutor Paulo
Bezerra em que ele, peito estufado de orgulho, declarava: Raskólnikov não se arrepende! O crime foi
um experimento social. Dostoiévski foi, até o fim da vida, um homem de cosmovisão socialista, se
bem que perto da morte tenha deixado seu socialismo tingir-se de um certo matiz cristão.

Ao ouvir tal fala especializada, pude distinguir nitidamente onde e como o tradutor distorcia as ideias
e a biografia de Dostoiévski, mas ao mesmo tempo havia em minha memória a impressão daquela
primeira e já longínqua leitura de Crime e Castigo: de fato, parece que Raskólnikov não se
arrepende…

Foi nesse momento que percebi que já estava na hora de parar de ler interpretações da obra de
Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e fazer, por obrigação, aquilo de que mais gosto: enfrentar
os romances, agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e treslera, mas
curiosamente Crime e Castigo ficara relegado àquela primeira leitura pueril, talvez por ser muito
comentado pela crítica, o que cria a ilusão de que você conhece bem o romance só de ouvir falar
tanto nele.

Durante a releitura, fui pensando numa possível justificativa para a frase que encontraria
forçosamente no Epílogo – ele não se arrependia de seu crime. Pus-me a pensar sobre o pessimismo
(ou “realismo superior”) de Dostoiévski, em como ele mostra as consequências funestas de certas
ideias, elevando-as a sua máxima força e sugerindo, em geral sutil e prolixamente, que o leitor dê a
seu destino um rumo diverso daquele representado em seus romances. O príncipe Míchkin é
esmagado pelo mundo em O Idiota, Piotr Vierkhoviênski escapa no fim de Os Demônios… Ora, não
seria tão absurdo assim Raskólnikov terminar Crime e Castigo ainda infectado pelo “drama da razão”.
O que importa – pensava eu – é o leitor compreender que ele deveria arrepender-se, e nesse sentido
a figura de Sônia se impõe majestosamente ao longo de todo o romance.

Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei ao Epílogo do livro. E qual não foi minha surpresa ao
descobrir que Dostoiévski não é nem tão críptico, nem tão enviesado quanto sonha nossa vã leitura
ingênua! Eis o que nos diz, leitor, o Epílogo de Crime e Castigo(considerarei que meu interlocutor
conhece o enredo e as personagens, pois explicá-lo complicaria o meio de campo aqui):

Após muito agastar-se e adoecer, às voltas com a consciência de seu crime, Raskólnikov entrega-se à
polícia, é condenado e mandado aos trabalhos forçados na Sibéria. Sônia (a personagem positiva do
livro; o puro espírito cristão) o acompanha. Podemos dividir o Epílogo em dois momentos diversos e
antagônicos: o primeiro é mera continuação da porção precedente do livro e nele Raskólnikov
mantém a mesma atitude soberba e altiva de antes; não reconhece seu crime; despreza Sônia; não
consegue relacionar-se com os colegas de prisão (em outras palavras, com o povo russo). Esses são os
elementos para os quais devemos olhar se quisermos entender a visão de Dostoiévski sobre seus
personagens. Quando ele quiser nos comunicar a transformação espiritual de seu protagonista, usará
essas mesmas senhas. Todos esses elementos (a relação com o que Sônia representa e com o povo
russo) são passíveis de análise a partir do Epílogo, mas por questão de foco nos detenhamos apenas
no problema do crime.

No primeiro momento, nos diz o narrador:

Sofrimentos e lágrimas – ora, isso também é vida. Mas ele não se arrependia de seu crime. Ele
poderia ao menos enfurecer-se com sua tolice, como antes se enfurecera com os seus atos vis e mais
tolos, que o levaram à prisão. Mas agora, já na prisão, em liberdade, mais uma vez analisou e
ponderou todos os seus atos pregressos e de maneira alguma os achou tão tolos e vis como lhe
pareciam antes, naquele período fatal.

“E por que meu ato lhes parece tão vil? – dizia de si para si. – Por ter sido uma perversidade? O que
quer dizer a palavra ‘perversidade’? Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometido um
crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e derramado sangue, mas tome a minha cabeça
por letra da lei… e basta! Claro, neste caso até muitos benfeitores da humanidade, que não herdaram
mas tomaram o poder, deveriam ser executados ao darem os seus primeiros passos. No entanto,
aqueles homens aguentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas eu não aguentei e,
portanto, não tinha o direito de me permitir esse passo.”

Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no fato de não o ter aguentado e ter confessado a
culpa. (p. 554, ed. 34, 2008. Grifos do autor.)
Aparentemente, o tradutor Paulo Bezerra só leu Crime e Castigo até aqui. É muito curioso pensar no
peso que têm essas palavras sobre a percepção do leitor. Já disse que eu também me deixei enredar
por elas anos atrás. São palavras claras demais e talvez ganhem realce diante da sutileza do que vem
depois. É um efeito análogo ao que acontece em Os Irmãos Karamázov: os capítulos que se ocupam
da revolta metafísica de Ivan Karamázov eclipsam os que vêm depois, os quais, segundo desejava
Dostoiévski, deveriam ser “uma refutação triunfal” dos raciocínios de Ivan. Digo eclipsam aos olhos da
crítica: basta comparar a quantidade de análises sobre “O Grande Inquisidor” com o quão pouco se
escreveu sobre o Livro VI dos Karamázov, que contém a filosofia do stárietz Zossima, a qual coincide
com a do próprio Dostoiévski. De fato, não é injusto dizer que o gênio do romancista produz seus
mais instigantes frutos quando representa sua – por assim dizer – filosofia negativa; a expressão de
suas ideias positivas costuma resultar utópica e um tanto piegas (notem que me refiro à expressão).

Mas voltemos a Crime e Castigo. Imediatamente após o trecho citado acima, o narrador descreve a
reflexão de Raskólnikov sobre o ímpeto suicida que teve antes de entregar-se à polícia, enquanto
sofria esmagado entre o sentimento de culpa e a convicção da plausibilidade de seu crime:

Ele sofria também ao pensar: por que não se matara naquele momento? Por que ficou parado acima
do rio e preferiu confessar a culpa? Será que existe tamanha força nesse desejo de viver e é tão difícil
superá-lo? (Idem.)

E então se segue o turning point, o parágrafo no qual o narrador nos indica que o presente estado
mental e espiritual de Raskólnikov não é definitivo, não representa o estado do herói com que o
romancista conclui a narrativa:

Ele se fazia essa pergunta atormentado, e não conseguia entender que, naquele momento em que
estava sobre o rio, talvez pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas
convicções. Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser o prenúncio da futura
transformação em sua vida, de sua futura ressurreição, da sua futura concepção nova de vida. (Idem.
Grifo meu.)

Assim em destaque esse parágrafo é claro demais, mas é impressionante como certas leituras (como
a de Paulo Bezerra e tantos outros; procurem o livro Crime and Punishment and the Critics)
conseguem fazê-lo passar despercebido. O que esse parágrafo diz? Que Raskólnikov não se matou
porque, no fundo, reconhecia o valor da vida e, mais ainda, no contexto geral do livro, indica que ele
sabia que a condição de assassino o aferrava à existência, pois era preciso expiar o sangue
derramado. Trata-se do mesmo instinto que o faz entrar na delegacia e confessar o crime, mesmo
que ao longo de todo o caminho ele se perguntasse por que deveria confessar e não conseguisse
chegar, racionalmente, a uma conclusão. Aqui é preciso repetir aquilo que vem dito na orelha de
qualquer edição de Crime e Castigo: Raskólnikov é um nome derivado de raskól, palavra russa que
significa “cisma”; é o indivíduo cindido entre convicções intelectuais e instinto moral –
desenvolvimento de Bazárov, protagonista de Pais e Filhos, de Turguêniev.

Portanto, a tão temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu crime” está longe de ser a
palavra final de Crime e Castigo. O Epílogo continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de
Raskólnikov. Sua transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a desprezá-la e a
receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela, ele se surpreende com saudades
quando por vários dias ela não o visita, pois ficara doente. Quando os dois se reencontram, dá-se a
cena de seu verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue receber o amor
dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito do romance, não é qualquer mulher – é o
puro amor cristão. A partir do momento em que se une a ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”, ao
contato com o solo russo, com o Cristo russo. (Seria complicado explicar aqui a parte da filosofia de
Dostoiévski que diz respeito ao povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção” de
Raskólnikov pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se entrega espiritualmente
a Sônia, sua relação com os colegas de prisão transforma-se:

Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado, Raskólnikov, deitado na tarimba,
pensava nela [Sônia]. Nesse dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o olhavam
de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso.
Agora ele se lembrava disso com esforço, mas era assim que devia ser: acaso tudo não devia mudar
agora? (p. 559)

Por fim, o crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que foi transformado?

Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no primeiro impulso, pareciam-lhe algum
fato externo, estranho, até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele não
conseguia pensar de forma demorada e constante em nada, concentrar o pensamento em
nada; demais, agora ele não resolveria nada de modo consciente; apenas sentia. A dialética dera
lugar à vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente diferente. (Idem. Grifo meu.)

Raskólnikov já não é o indivíduo cindido. Ele abandona o racionalismo – a racionalidade alijada da


vida, da experiência concreta. Uma vez que já entregou-se ao castigo e aceitou a cruz, está livre da
obsessão pelo crime que cometeu.

O romance não poderia terminar de modo mais significativo: Raskólnikov abre o Evangelho, de que
até então apenas escarnecera. Mas, pensando em Sônia, para quem aquele era o único livro sobre a
terra, ele pergunta-se: “Será que agora as convicções dela podem não ser também as minhas
convicções? Os seus sentimentos, as suas aspirações, ao menos…”(p. 561; última página do romance)
Lembremos que Sônia é o indivíduo que, diante da confissão de assassino de Raskólnikov, dissera-
lhe: “Vai agora, neste instante, pára em um cruzamento, inclina-te, beija a terra, que tu profanaste, e
depois faz uma reverência a todo este mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em
voz alta: ‘Eu matei!’” (p. 428)

As convicções de Sônia agora são também as de Raskólnikov. Este é o livro que Dostoiévski escreveu,
a despeito do wishful thinking do tradutor Paulo Bezerra.

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